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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MUSEU NACIONAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL JAMAIS FOMOS REPRESENTACIONALISTAS Ypuan Garcia Costa Rio de Janeiro 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

JAMAIS FOMOS REPRESENTACIONALISTAS

Ypuan Garcia Costa

Rio de Janeiro

2006

Page 2: JAMAIS FOMOS REPRESENTACIONALISTASobjdig.ufrj.br/72/teses/657317.pdf · 2014. 11. 3. · de Bruno Latour (2002), Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches, uma questão

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JAMAIS FOMOS REPRESENTACIONALISTAS

Ypuan Garcia Costa

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social, Museu Nacional,

da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de

Mestre em Antropologia Social.

Orientador: Otávio Guilherme Cardoso

Alves Velho

Rio de Janeiro

2006

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JAMAIS FOMOS REPRESENTACIONALISTAS

Ypuan Garcia Costa

Orientador: Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia

Social.

Aprovada por:

__________________________________________________

Prof. Dr. Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho

__________________________________________________

Prof. Dr. Marcio Goldman

__________________________________________________

Profa. Dra. Clara Mafra

Rio de Janeiro

2006

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GARCIA, Ypuan.Jamais Fomos Representacionalistas/ Ypuan Garcia Costa. Rio De Janeiro:

UFRJ/PPGAS, Museu Nacional, 2006.ix, 183 p.:30cmOrientador: Otávio Guilherme Cardoso Alves VelhoDissertação (mestrado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, 2006.Referências Bibliográficas: f. 179-1831. Representação 2. Faitiche 3. Crise 4. Embodiment 5. Construtivismo I.

Velho, Otávio Guilherme Cardoso Alves. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

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RESUMO

JAMAIS FOMOS REPRESENTACIONALISTAS

Ypuan Garcia Costa

Orientador: Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

Antropologia Social.

Esta dissertação busca discutir o que veio a se chamar de “crise da representação na

antropologia”, postulando que, no domínio prático, de um certo modo, esta crise

jamais aconteceu. O argumento fundamenta-se na possibilidade de estender até a

produção dos conceitos antropológicos a noção de “faitiche”. Ainda que Bruno

Latour não tenha tratado do prolongamento desta noção à produção de tais conceitos,

achamos razoável explorar suas considerações para a antropologia. A partir da

premissa que somos superados pelo que construímos, torna-se necessário afirmar que

jamais fomos representacionalistas, ou seja, seres que se imaginam existindo

apartados do mundo e dos objetos que fabricam, por serem dotados com uma mente

produtora de representações diferentes de si. Desse modo, procurou-se resgatar os

vínculos que atam na antropologia as práticas de pesquisa que produzem, embora com

pequenas diferenças, os “faitiches”, sem os quais qualquer análise jamais se efetuaria.

Palavras-chave: representação, faitiche, crise, embodiment, construtivismo

Rio de Janeiro

2006

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ABSTRACT

JAMAIS FOMOS REPRESENTACIONALISTAS

Ypuan Garcia Costa

Orientador: Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

Antropologia Social.

This dissertation attempts to discuss what is commonly called “the representation

crisis in anthropology” by putting forward the idea that, in the practical domain, the

mentioned crisis in fact never happened. The argument is based on the possibility of

extending to the production of anthropological concepts the notion of “faitiche”. Even

if Bruno Latour has not dealt with the prolongation of this notion to the production of

such concepts, we think it is worthwhile to expand his considerations to anthropology

itself. From the premise that we are surpassed by that which we construct, it becomes

necessary to affirm that we were never representacionalists, that is, beings that

imagine themselves existing apart from the world and of the objects that we

manufacture, by being endowed with a mind that products different representations of

itself. In this way, it was attempted to retrieve the bonds that tie, in anthropology, the

research practices that produce, although with small differences, the “faitiches”,

without which any analysis never would be effected.

Keywords: representation, faitiche, crisis, embodiment, constructivism

Rio de Janeiro

2006

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AGRADECIMENTOS

Sabedor, agora, dos percalços e dos imponderáveis que uma pesquisa encerra,

seja na escolha do tema, seja na feitura da pesquisa, seja na redação, gostaria, por

conseguinte, de agradecer as seguintes pessoas:

Os membros da banca examinadora, que aceitaram dela fazer parte. Ao

orientador Otávio Velho, só tenho a agradecer. Em primeiro lugar, por ter me aceito

como orientando, por ter confiado em mim, pela sinceridade e pelas sugestões ao

longo da pesquisa, assim como pelo incentivo.

Agradeço também a todo corpo docente do Museu Nacional, por oferecer um

ambiente tranqüilo e acolhedor para o desenvolvimento de pesquisas acadêmicas, em

especial os professores com quem tive a oportunidade de completar os créditos

necessários: Marcio Goldman, Gilberto Velho, Giralda Seyferth, Luiz Fernando Dias

Duarte, Lygia Sigaud. Os agradecimentos são extensivos aos funcionários da

secretaria e da biblioteca, sempre solícitos no atendimento.

À CAPES pelo apoio financeiro.

Os colegas de mestrado Andréa, Paula, Maria Elvira, Maria Paula, Luciana,

Renata, Deborah, Mila, Levindo, Ricardo que colaboraram de diversas formas para

esta dissertação. Agradeço, especialmente, ao Antônio, um verdadeiro amigo.

Agradeço, também, todos os amigos de longa data, que vêm me

acompanhando desde a graduação, particularmente o Leonardo, o Affonso e o Uirá,

que foram, com os seus comentários e revisões, fundamentais para a conclusão do

trabalho.

Não poderia me esquecer dos amigos da “confraria do cabrito”, Marcos e

Theou.

Agradeço aos amigos de sempre, Toni, Rafael, Cristhian, Renata, Mariana,

João, Rodrigo, que aturaram minhas seguidas ausências, e, sobretudo, a minha mãe,

ao meu irmão e a tia Zilda, que sempre me incentivaram.

Por fim, dedico esta dissertação aos meus Orixás e a minha Mãe Célia

d’Oxum, que novamente me conduziram a algum lugar.

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SUMÁRIO

Introdução 10

Capítulo 1: O problema da representação 20

1.1: A crítica cultural 20

1.2: Uma outra visada no problema da representação 23

1.3: A alternância das cesuras modernas 28

1.4: A mente 34

1.5: A sociedade 37

1.6: O que o mundo social separa e congela 47

1.7: A sociologia fenomenológica 52

1.8: A consistência da representação 53

1.9: A prática de fabricação de objetos 61

Capítulo 2: Mais vínculos do que cesuras 66

2.1: Desdobrando a crítica cultural 66

2.2: O “prolongamento de práticas” 69

2.3: Complementar ou sinonimizar? 79

Capítulo 3: Para “além” da representação 87

3.1: A fenomenologia cultural 88

3.2: Para “além” da representação 94

3.3: O que o paradigma do embodiment obscurece... 109

Capítulo 4: Jamais fomos representacionalistas 127

4.1: O embodiment e a aculturação do antropólogo 130

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4.2: A divisão das formas de “conhecimento tácito” 140

4.3: “Aprendo a aprender” e tradução cultural 152

4.4: Jamais fomos representacionalistas 173

Referências Bibliográficas 188

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INTRODUÇÃO

O propósito deste trabalho é postular que nós jamais fomos

representacionalistas, pois somos seres que nunca nos emancipamos daquilo que

construímos. O sentido geral dessa primeira frase será examinado, ao longo da

análise, no interior do que veio a ser uma suposta crise da representação na

antropologia.

* * *

Recordo-me das primeiras impressões, ainda no período em que era graduando

em história, aproximadamente em 2001, que eu e alguns dos meus colegas tivemos ao

folhear pela primeira vez um texto de Pierre Bourdieu (2000) chamado “Introdução a

uma sociologia reflexiva” - uma introdução a um seminário realizado, em outubro de

1987, na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Mesmo que pouco

entendêssemos a maioria do conteúdo daquelas páginas, onde Bourdieu se dedicava a

delimitar, entre outras coisas, uma “prevenção contra o fetichismo dos conceitos”

(Idem, p.27), algumas passagens do artigo nos animaram. Naquele momento, esta

prevenção era prenhe de sentido para alguns de nós. Não sendo tratados como “coisas

em si”, os conceitos dependiam absolutamente do modo em que o pesquisador os

colocava em ação. Bourdieu explicitava, de certo modo, uma dose de “anti-realismo”

ou “anti-substancialismo” que se estendia tanto aos conceitos quanto aos temas de

estudo. Dessa maneira, uma passagem do texto parecia não sair das nossas reflexões

acerca de alguns professores, que se automistificavam devido à relevância social das

suas pesquisas:

“O cume da arte, em ciências sociais, está sem dúvida em ser-se capaz de pôr em jogo “coisas

teóricas” muito importantes a respeito de objetos ditos “empíricos” muito precisos,

freqüentemente menores na aparência, e até mesmo um pouco irrisórios. Tem-se demasiada

tendência para crer, em ciências sociais, que a importância social ou política do objeto é por si

mesmo suficiente para dar fundamento à importância do discurso que lhe é consagrado – é isto

sem dúvida que explica que os sociólogos mais inclinados a avaliar a sua importância pela

importância dos objectos que estudam, como é o caso daqueles que, actualmente, se

interessam pelo Estado ou pelo poder, se mostrem muitas vezes os menos atentos aos

procedimentos metodológicos. O que conta, na realidade, é a construção do objecto, e a

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eficácia de um método de pensar nunca se manifesta tão bem como na sua capacidade de

constituir objectos socialmente insignificantes em objectos científicos ou, o que é o mesmo, na

sua capacidade de reconstruir cientificamente os grandes objectos socialmente importantes,

apreendendo-os de um ângulo imprevisto (...)” (Bourdieu, Idem, p.20; grifo nosso).

Isso, para nós, fazia todo o sentido em um curso de graduação, no qual alguns

pesquisadores deviam, muitas vezes, lutar para manter a integridade dos seus objetos

frente a certos predadores. Em outras palavras, a defesa obstinada das fontes

documentais acarretava na automistificação e na identificação quase precisa entre o

pesquisador e o seu assunto. Já na pós-graduação, em antropologia social, fui

confrontado, de alguma forma, com questões semelhantes, as quais não apontavam na

direção do arquivo, mas do trabalho de campo: experiência fundante da disciplina

antropológica. Rotineiramente, eu escutava que “alguém ia fazer ou fez ou seu

trabalho de campo em...” ou que “os meus nativos...”. Novamente, defrontei-me com

aquela situação bastante similar a da minha graduação: o vínculo essencial do

pesquisador ao seu tema de estudo.

Entretanto, parece que foram as próprias leituras, no mestrado, que me deram

uma alternativa para repensar essa “perfeita identidade” (Durkheim & Mauss, 1981)

que, até então, eu tomava muitas vezes de forma negativa. Ao consultar em um livro

de Bruno Latour (2002), Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches, uma

questão que ele colocava sobre os candomblecistas e suas divindades, pude atentar

para a minha própria experiência como um adepto que sou deste culto. Divindades

que, segundo Latour, são construídas, fabricadas, assentadas e, no entanto, reais

(Idem, p.20). Enfim, consegui dar conta da minha própria condição de adorador

dessas divindades que eu aprendi a amar e a não fazer a minha vida sem elas. Desde

então, dei um sentido positivo ao que Bourdieu retratava como uma ilusão do

pesquisador e também do ator comum. O que desejo afirmar, explicitamente, é que a

minha vivência no candomblé permitiu que eu chegasse a um entendimento específico

da antropologia simétrica de Latour, a partir do faitiche.

Duas possibilidades, a partir de então, se abriram para lidar com a questão do

vínculo entre o pesquisador e o seu tema: a primeira era manter o antifetichismo de

Bourdieu, respondendo que a recorrência, tanto na história quanto na antropologia,

não passaria de um engano do pesquisador iludido pela importância do objeto que

estuda. A segunda era conferir uma importância real a essa identificação e começar a

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movimentar uma outra configuração para a relação entre o “sujeito” e o “objeto”.

Alguns indícios desta nova configuração estavam presentes nas palavras de Bourdieu,

porém de uma forma ambígua. Embora ele insistisse na construção que está presente

na produção sociológica, acrescentando que a pesquisa era uma “atividade racional”

ao invés de uma “busca mística” (2000, p.18), não deixou de notar, em seus próprios

trabalhos, a confusão inicial que caracteriza os trabalhos que encontramos em estado

acabado. Esta confusão, expurgada do trabalho finalizado, é caracterizada por

“pinceladas, toques e retoques”, sendo que os vestígios desse processo concernem à

maneira que se “processa realmente o trabalho de pesquisa” (Idem, ibidem). Bourdieu,

contudo, não levou às últimas conseqüências a relevância do objeto para esse fazer. Se

o objeto possui uma importância, ela deve ser tomada como um elemento constituinte

de qualquer pesquisa, devemos insistir que sem essa agencialidade não há fazer que

alcance, por exemplo, os resultados efetivos de uma experiência de campo. Dessa

maneira, foi fundamental ir “aquém” do antifetichismo de Bourdieu e encontrar uma

solução que não dependesse de uma escolha cominatória entre as propriedades reais

ou construídas dos objetos, mas na sinonímia entre elas.

O antifetichismo, segundo Latour, “(...) é a proibição de apreender como se

passa da ação humana que fabrica às entidades autônomas que ali se formam, que ali

se revelam” (Idem, p.69). O faitiche, no entanto, é o que permite, na prática, passar

ininterruptamente da imanência à transcendência, da fabricação à realidade. Os

faitiches, conforme Latour, podem ser definidos “(...) como aquilo que oferece a

autonomia que não possuímos a seres que não a possuem tampouco, mas que, por isso

mesmo, acabam por nos concedê-la” (Idem, ibidem). Graças aos faitiches, “(...)

poderiam dizer os feiticeiros, os adeptos [do candomblé], os cientistas, os artistas, os

políticos, “podemos produzir seres que nos superam até certo ponto: divindades, fatos,

obras, representações” (Idem, ibidem). O faitiche é a união, em um único termo, sem

qualquer abdicação, das palavras fato fait (fato) e fetiche (fetiche), permitindo declarar

que nós somos “ligeiramente superados” por aquilo que nós construímos (Idem, p.45).

* * *

A definição de representação que faz parte do título do nosso trabalho é

mentalista, ou seja, aquela que produz um universo de seres dotados de

intencionalidade, cuja ação transforma uma realidade dada e externa em idéia ou

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representação. O problema das representações, sejam elas mentais ou individuais, é

elaborar uma série de emancipações que vai desde a divisão entre mente e natureza

(ou corpo) até a separação entre mente e sociedade. A escolha da sociologia

durkheimiana, em detrimento de outras, para discutir o problema central do nosso

tema, é motivada pela forma que ela fez da vida psíquica um epifenômeno da vida

coletiva, e constituiu um solo confiável para as traduções antropológicas. Em suma,

um solo consistente o bastante para transmitir, fidedignamente, nas traduções, as

informações do que havia de mais impessoal na vida nativa: as representações

coletivas. Todavia, veremos, logo no primeiro capítulo, que a invenção das

representações coletivas depende dos faitiches.

Seguiremos os laços que nos atam ao passado, negligenciando que tenha

ocorrido a Revolução Copernicana1 que nos separou dele (Latour, 1994a). Revolução

aqui é no sentido de uma ruptura irreversível com o nosso passado, como bem insinua

a “atitude crítica” dos modernos, a qual procura denunciar ou desvelar as “falsas

aparências” da “crença ingênua” dos atores. O nosso ponto de partida é relacionado ao

suposto momento de crise da representação na antropologia, motivada pelo fim do

modernismo. Não proporemos, entretanto, que o período decorrente deste momento

de incertezas propicie que nos emancipemos do nosso passado moderno. Poderemos

notar que os defensores pós-modernos da crise da representação são tão modernos

quanto os seus predecessores e estão, em sua prática de pesquisa, muitas vezes, até

mais próximos dos antecessores dos modernos – aqueles que foram ofuscados pela

sua emergência.

Assim, menos do que denunciar e criticar as “transparências” e a “transmissão

de informação” que, no “regime de enunciação da Ciência”, transformam os

mediadores em intermediários dos divisores (Latour, no prelo), buscaremos os

vínculos concretos que permitem asseverar que jamais fomos representacionalistas:

humanos que se imaginam existindo apartados do mundo e dos objetos que fabricam,

por serem dotados com uma mente produtora de representações diferentes de si.

Procuraremos através deste questionamento deduzir que tipo de prática o trabalho de

campo encerra. Os aspectos imediatos das relações, nas quais a purificação, do

1 Termo introduzido por Kant (Latour, 1994a; 2001; Merleau-Ponty; 1971), significando a mudança deperspectiva realizada por ele, na qual a natureza, ao invés de ser o modelo das estruturas cognitivas doshumanos, passou a ser modelada pelo pensamento dos últimos. Latour, em uma entrevista concedida aHugh Crawford, em 1993, explicava que a implicação da Revolução Copernicana era a inevitável

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método científico, que fabrica um divisor intransponível entre antropólogo e nativo é

secundarizada. A avaliação do relevo experiencial requer o questionamento da

representação, na antropologia, como “coisa em si” que purifica e traduz

objetivamente a experiência de campo.

A representação transforma o engajamento no mundo em construção do

mundo através da transcendentalidade da consciência, o locus do ser puro que obsta

ao sensível o Cogito. A oposição, portanto, dota a consciência da faculdade de

sintetizar todo o vivido em idéia ou representação. Entendendo que o trabalho de

campo envolve uma experiência atravessada por inúmeras mediações, que colapsam

as divisões entre consciência e mundo, sujeito e objeto, mente e corpo, seria

pertinente evocar o seu começo, segundo Merleau-Ponty (1971), localizado no

“irrefletido” que caracteriza a situação primordial de toda reflexão.

Embora a utilização, na tradução antropológica, dos conceitos de cultura,

sociedade2 e sistema, entre outros, desfaça a “comunhão de experiência” que,

vitalmente, caracteriza o empreendimento antropológico (Ingold, 1993, p.223); ainda

é possível elaborar uma contrapartida em que “[o] mundo não é um objeto no qual

possuo em meu íntimo a lei de constituição, [mas seja] o meio natural e o campo de

todos os meus conhecimentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade

não “habita” somente o “homem interior”, ou mais precisamente não há homem

interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece” (Merleau-Ponty,

1978, p.8). Logo, torna-se apropriado ponderar que “[a] reflexão não se retira do

mundo para a unidade da consciência como fundamento do mundo, ela retrocede para

ver brotar as transcendências, ela distende os fios intencionais que nos ligam ao

mundo para fazê-los aparecer, só ela é consciência do mundo porque o revela como

estranho e paradoxal” (Idem, p.11).

Ingold (1993; 2000) indica que o primado da construção, em antropologia,

aliado à universalização do relativismo, conduziu à constituição de um vínculo

separação com relação ao nosso passado. No entanto, se nós “jamais fomos modernos” seria precisoabandonar a teoria crítica, que pregaria a inevitabilidade das revoluções ou das rupturas.2 Quando nos referirmos, especialmente, aos conceitos de cultura e sociedade, não faremos umapontamento das configurações históricas locais no Ocidente que deram origem a tais conceitos.Configurações estas relativas ao surgimento do estado-nação, do capitalismo, do imperialismo e docolonialismo (Overing, 2000, p.335). Avaliaremos, no entanto, a importância específica que essesconceitos ganham no “período modernista” da antropologia que, segundo Edwin Ardener (1985), datade 1920 a 1975, para a compreensão do mundo dos “outros” em termos de sistemas ou unidades, queprimam pela coerência e pela homogeneidade. Estaremos lidando, sobretudo, com uma teoria danatureza humana, cuja principal peculiaridade é a construção de mundos sociais.

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artificial entre “Nós” e “Eles” porque separou o mundo passivo da realidade e os

modelos cognitivos (visões de mundo alternativas) que o vivificam. Latour (1994a;

2002) lembra que a cesura imposta aos humanos e às coisas, no mundo moderno,

criou na teoria a impossibilidade dos dois serem tomados em conjunto, de modo que a

escolha entre o real (fato) e o construído (feito) depende irremediavelmente da

denegação de um dos termos. A ruptura entre construção e realidade concerne à

invenção de uma ontologia da construção, na qual a divisão entre sociedade e

natureza ocorre no interior da mente, que termina por modelar o mundo físico como

dado ou inerte.

Martin Heidegger (2001), no artigo “Construir, habitar, pensar”, oferece uma

imagem que se desvia do construtivismo reenviando o pensamento à cotidianidade da

experiência. Ele aponta que a essência de todo construir é o habitar. Um duplo

equívoco estabeleceria uma relação meios-fim entre habitação e construção. O

primeiro admitiria que o construir é o fim de todo o habitar. O segundo, inversamente,

concluiria que o habitar é o fim que se impõe a todo construir. Enfim, habitar e

construir não seriam atividades separadas: “(...) construir como cultivar, em latim,

colere, cultura, e construir como edificar construções, aedificare – estão contidas no

sentido próprio de bauen, isto é, no habitar. No sentido de habitar, ou seja, no sentido

de ser e estar sobre a terra (...)” (Idem, p.127). Em outras palavras, construir e habitar

partilham uma unidade originária em que “[s]omente em sendo capazes de habitar é

que podemos construir” (Idem, p.139). Ingold quando menciona Heidegger e Merleau-

Ponty em conjunto não deixa de reparar que apenas por estarmos imersos no mundo

que podemos nos imaginar fora dele (2000, p.169). Uma citação exibe o sentido que

Heidegger confere ao pensamento, cujo fundamento não é o representar:

“Mesmo quando nos relacionamos com coisas que não se encontram em uma proximidade

estimável, demoramo-nos junto às coisas elas mesmas. O que fazemos não é simplesmente

representar, como se costuma ensinar, dentro de nós coisas distantes de nós, deixando passar

em nosso interior e na nossa cabeça representações como sucedâneos de coisas distantes. Se

agora - nós todos – lembrarmos em pensamento da antiga ponte de Heidelberg, esse levar o

pensamento a um lugar não é meramente uma vivência das pessoas aqui presentes. Na

verdade, pertence à essência desse nosso pensar sobre essa ponte o fato de o pensamento

poder ter sobre si a distância relativa sobre esse lugar. A partir desse momento em que

pensamos, estamos juntos daquela ponte lá e não junto a um conteúdo de representação

armazenado em nossa consciência” (2001, p.136).

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Enfim, postular que nós jamais fomos representacionalistas é insistir que, em

primeiro lugar, o primado da representação na ciência moderna só pode ocorrer por

uma série de depurações que nunca impedem, analogamente, uma cadeia de sucessões

de ligeiras superações que nos coloca sempre a par da impossibilidade de uma

existência sem vínculos. Em segundo lugar, motivado pelo primeiro, é resgatar os

vínculos que atam na antropologia as práticas de pesquisa que produzem, embora com

pequenas diferenças, os faitiches (Latour, 2002) sem os quais qualquer análise jamais

se efetuaria. A princípio, devemos explicar ao leitor que o trocadilho que o nosso

título indica, referente ao livro de Bruno Latour, Jamais Fomos Modernos, não é uma

pretensão retórica vazia, mas uma asserção de que nos esforçamos em dar os indícios

da sua possibilidade ao longo do nosso texto.

* * *

Ao ter em vista que a representação é o problema que guia as nossas

considerações, devemos avisar ao leitor que a palavra será parte integrante do título de

três dos nossos capítulos, que estão dispostos da seguinte forma:

No capítulo um, O problema da representação, denotaremos em que medida o

suposto fim do modernismo, acarretando uma determinada crise da representação

pode ser explorado, em primeiro lugar, em termos políticos que têm uma implicação,

segundo os seus defensores, na própria epistemologia das ciências. Trataremos, então,

de uma crítica cultural ou “pós-moderna” à representação. Em segundo lugar, as

análises sobre este fim, em termos mais ontológicos, podem, no entanto, detectar a

própria inexistência de um período, que afinal nunca começou e, conseqüentemente,

não foi superado pelo pós-modernismo. Seguindo este diapasão mais ontológico,

poderemos indicar algumas idiossincrasias do que veio a ser chamado de mundo

moderno e, assim, exploraremos o quanto esse mundo nunca deu conta das promessas

teóricas que fez aos seus habitantes. Em resumo, falaremos do quanto a invenção da

mente e da sociedade, enquanto operadores de uma série de cesuras intermináveis,

mesmo que tenha redundado na invenção de uma realidade exterior, não esconde um

certo fazer que coloca em simetria as práticas modernas e não-modernas. Não

perdendo de vista o eixo principal da nossa análise, deveremos apresentar algumas

implicações gerais na antropologia da invenção do mundo social. Realçaremos o que

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este mundo separa e congela. Além disso, no material balinês de Clifford Geertz,

veremos o quanto a edificação do mundo social possibilita uma tradução

antropológica preenchida de sujeitos que constroem mentalmente uma realidade dada

e independente, a partir das suas representações coletivas. O capítulo sustenta algumas

das questões que serão levantadas nos seguintes.

No capítulo dois, Mais vínculos do que cesuras, retomaremos os elementos da

crise da representação, a partir do que nomeávamos por “crítica cultural ou pós-

moderna”, a qual por se nutrir de uma “atitude eminentemente crítica” ataca o trabalho

de campo etnográfico, associado ao período modernista da disciplina. Reiteraremos

que as nossas pretensões estão voltadas para os vínculos que nos atam ao passado.

Negaremos, então, que tenha ocorrido a Revolução Copernicana que nos separou dele.

Poderemos notar, entretanto, que os defensores pós-modernos dessa crise são tão

modernos quanto os seus predecessores e estão, em sua prática de pesquisa, muitas

vezes, até mais próximos dos antecessores dos modernos – aqueles que foram

ofuscados pela sua emergência. Estaremos nos referindo aos ecos da ascensão da

antropologia malinowskiana sobre a antropologia de “gabinete” de James Frazer. Por

último, alongarei algumas das reivindicações da crítica pós-moderna à monografia de

Thomas J. Csordas, esboçando que tipo de limitação essa crítica pode sofrer. Além

disso, esta sessão nos permitirá tocar algumas questões, que serão examinadas no

capítulo subseqüente.

No capítulo três, Para além da representação, além de esmiuçar os dados de

campo de Csordas, assinalando que sua prática de pesquisa concentra uma oposição

parcial ao representacionalismo, buscaremos o quanto ele consegue obter êxito na sua

tentativa com o paradigma do embodiment. Por fim, mostraremos em que dimensão o

embodiment “obscurece” menos do que esclarece o problema da representação.

Recorreremos, então, a Marilyn Strathern, Tim Ingold e Bruno Latour, posto que

alguns de seus escritos lançam questões interessantes ao cerne do paradigma do

embodiment, o conceito de cultura. Explicitaremos que o paradigma do embodiment,

menos do que colapsar dualidades, mantém a polarização do indivíduo e da sociedade

como dada e originária. Além disso, tentaremos sublinhar que atributos da prática de

pesquisa de Csordas estão em continuidade com a de Geertz.

No capítulo quatro, Jamais fomos representacionalistas, deveremos notar que

algumas tentativas que buscam novamente nos reatar aos objetos recorrem a um sem

números de malabarismos para tentar manejar o que ficou eminentemente proibido na

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Constituição Moderna: o attachement aos objetos, chamados de fetiches (Latour,

1994b, p.598). Em termos genéricos, esse capítulo final oferecerá ao leitor alguns

indícios que formam uma superfície simétrica entre os modernos, os seus críticos e os

não-modernos, fundada em um elemento comum: um senso de fazer ou fabricar seres

que nos superam e acabam por nos conceder uma autonomia que sem eles não

possuiríamos. Continuaremos, então, apontado este fazer nas práticas de pesquisa de

alguns autores, que buscam promover uma outra conformação para a tradução

antropológica. Quando utilizamos a expressão “attachement aos objetos”, lembramos

daquelas práticas de pesquisa atentas aos impasses gerados pela epistemologia do

“sujeito conhecedor”. Estas práticas sugerem novas formas de tradução, ficando mais

cuidadosas acerca das dimensões sensíveis e imediatas do trabalho de campo, onde a

criação das condições apropriadas para a pesquisa de campo exige a própria

transformação do antropólogo. Especificamente, estaremos aqui tratando de três

experiências de “conhecimento encorporado” (embodied knowledge) em Carol

Laderman, Mark Harris e Robert Desjarlais.

* * *

Uma questão vem a deixar patente a limitação do nosso trabalho. A plena

demonstração de que jamais fomos representacionalistas, além de exigir um exame

do conjunto da produção antropológica - o que vai além do nosso escopo - exigiria

também a mesma solução pragmática que Latour lançou mão para obter este sentido

pleno: fazer pesquisa de campo no laboratório ou ver o funcionamento de uma ciência

em ação. O sentido pleno que a dissertação não alcança é exatamente esse. Por isso,

nós recorremos ao livro, "Reflexão ao culto moderno dos deuses fe(i)tiches", que por

ser ainda mais ensaístico do que o Jamais Fomos Modernos, permite pensar a questão,

que para Latour é resolvida na prática, de uma forma estritamente bibliográfica. Uma

“antropologia em ação”, não sei se o leitor concorda, talvez fosse o sentido pleno de

que jamais fomos representacionalistas. Entretanto, fico imaginando, por um lado, o

quanto seria embaraçoso para um antropólogo, durante o trabalho de campo, ser

seguido por um segundo antropólogo. Por outro lado, o relato de uma antropologia em

ação feita por um antropólogo, partindo da sua própria experiência, poderia cair nas

armadilhas da reflexividade. De preferência, o próprio faitiche coloca para a produção

antropológica questões com as quais podemos esboçar que jamais fomos

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representacionalistas, colapsando qualquer divisão entre o sujeito e objeto ou, mais

importante, o sujeito e as suas construções - fator que é próprio de uma certa

epistemologia que Rorty identifica em Descartes, que fez do representar o caráter

fundamental do pensamento.

* * *

É preciso esclarecer ao leitor que, não obstante as idéias de Latour estarem na

base deste trabalho, lançaremos mão de uma antropologia simétrica que se conforma a

nossas pretensões unicamente bibliográficas. Assim, menos do que propor a

pragmática de uma “antropologia em ação”, vamos partir de um plano mais

ensaístico, onde, segundo Latour, podemos “(...) definir a antropologia simétrica

como aquilo que revoga esta proibição [a do antifetichismo], e confere ao fe(i)tiche

[faitiche] um sentido positivo” (2002, p.69). Embora Latour não tenha tratado do

prolongamento do faitiche à produção dos conceitos antropológicos, achamos

razoável explorar suas considerações para a antropologia. Este é um movimento

autêntico do nosso trabalho. Em suma, é uma contribuição nossa. O que nós

empreenderemos aqui será contemplar, a partir da perspectiva do faitiche, o que

Latour não pronuncia: que as produções sociológica e antropológica são permeadas

por um attachement substancial aos objetos, que no mundo moderno são tanto os

humanos dos outros coletivos quanto os não-humanos em geral. Simetricamente, tanto

“Nós” como “Eles” possuímos faitiches.

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CAPÍTULO 1: O PROBLEMA DA REPRESENTAÇÃO

O intento central, neste capítulo, é acompanhar a produção de seres incertos

que podem ser, simultaneamente, imanentes ou transcendentes, já que os principais

conceitos que definem a especificidade da teoria antropológica são dotados com tal

ambigüidade. Em todo caso, a ambigüidade dá espaço, no plano da tradução

antropológica, muitas vezes, a uma busca incessante pela coerência e pela

homogeneidade que transforma esta imprecisão em uma escolha, teoricamente,

“cominatória” (Latour, 2002) que constitui as divisões do sujeito e do objeto, do

indivíduo e da sociedade, do corpo e da mente, da humanidade e da animalidade, da

cultura e da natureza.

O capítulo que se segue está organizado da seguinte maneira: em primeiro

lugar, deveremos considerar, de modo bem sucinto3, o que se designa por crise da

representação na antropologia, atentos ao que se nomeia por crítica cultural ou pós-

moderna à representação. Em segundo lugar, assinalaremos uma outra visada, na

antropologia, a indicar o problema da representação. Aqui nós lançaremos mão de

alguns dados concernentes às relações que os caçadores Cree no nordeste do Canadá

estabelecem com os animais que eles caçam, buscando salientar algumas

peculiaridades do mundo moderno relativas à construção de mundos sociais. Em

terceiro lugar, nos deteremos em certos aspectos desse mundo, tentando, mesmo que

de maneira incipiente, restituir alguma simetria desse mundo com os outros mundos.

Em quarto lugar, abordaremos duas das invenções caras ao mundo dos modernos: a

mente e a sociedade. Em quinto lugar, realçaremos algumas implicações que a

invenção do mundo social acarreta para a tradução antropológica. Em sexto lugar,

veremos detalhadamente, em três sessões, o prolongamento das sessões anteriores na

prática de pesquisa de Clifford Geertz sobre os balineses.

1.1 A crítica cultural

O que se designa por “crise da representação” na antropologia concentra um

grande número de apontamentos. Thomas J. Csordas (1997) indica dois conjuntos

principais: o primeiro é relativo aos fundamentos políticos e ideológicos da

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representação que têm implicações na própria epistemologia das ciências, uma crítica

cultural ou pós-moderna que propõe modos de representação alternativos; o segundo

admite por princípio um questionamento ao primado ontológico da representação na

descrição do mundo dos “outros”. Em ambos os lados, porém, as incertezas quanto à

pertinência da representação estão concentradas na tradução antropológica.

Marilyn Strathern (1996) considera que a obsolescência teórica do conceito de

sociedade coincide com o declínio do modernismo na antropologia. Este declínio

acarreta, entre outras coisas, a suspeita da distinção integral da modernidade e das

outras formas de vida; o repúdio à cesura entre sujeito e objeto, fundada na agência do

primeiro e na passividade do segundo; a desconfiança da totalidade, da coerência e da

estabilidade dos sistemas sociais; e, por último, a rejeição à transparência das

informações contidas nas traduções, em benefício da multiplicação das vozes e

discursos parciais que se prendem aos textos (Ardener, 1985; Eriksen & Nielsen,

2001).

Com isso em vista, devemos ressaltar duas questões importantes. Em primeiro

lugar, assinalar que o questionamento ao representacionalismo é, também, uma

contestação à manutenção da distinção entre “Nós” e “Eles”. Esta fronteira sustenta-se

na ênfase em culturas díspares ou diferentes com as suas categorias de pensamento

ordenadas em um sistema de símbolos estáveis compartilhados coletivamente. Em

segundo lugar, é preciso advertir que tais considerações na crítica cultural à

representação, sob o pós-modernismo, permanecem ao redor da associação entre

conhecimento e poder (Crawford, 19934; Latour, 1994a). Como veremos mais

adiante, isso redunda em um movimento denunciatório que substitui a neutralidade

das representações científicas pelas determinações causais das representações sociais

ou coletivas.

James Clifford (1986) sugere, em sua introdução da coletânea Writing

culture: the poetics and politics of ethnography, que a crise da representação funda-se

na inviabilidade da manutenção de uma linguagem comum na escrita etnográfica.

Uma linguagem que privilegia o controle irrestrito da experimentação “científica”,

fundada no rigor das técnicas de coleta dos dados. Segundo Eriksen e Nielsen, os pós-

modernos estão preocupados em “dessencializar” o “outro” exotizado e silenciado,

3 Em um capítulo posterior examinaremos mais detidamente alguns elementos dessa crise e poderemosnotar que os defensores pós-modernos desse momento conturbado são tão modernos quanto os seuspredecessores.

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abordando “(...) os modos de representação e o poder suscitados em um determinado

tipo de escrita” (2001, p.146). Estariam dispostos a investir na feitura de etnografias

experimentais, “(...) nas quais os informantes participariam como parceiros na

produção do conhecimento” (Idem, ibidem).

A crítica à representação refuta a impossibilidade do nativo representar a si

mesmo. Ela produz uma associação patente entre o questionamento da autoridade

colonial e o questionamento da autoridade científica, fixados no surgimento de

movimentos de independência nas colônias e na formação de uma intelligentsia

nativa. Podemos indicar, dentro do movimento pós-colonialista, através das artes e

das humanidades, o desafio ao direito dos intelectuais metropolitanos definir quem e

como eram os “nativos” (Idem, p.143). Parece uma crise tanto de uma reivindicação

por autonomia das colônias, que em certos casos recebiam um grande contigente de

antropólogos oriundos das metrópoles, quanto da dominação e dos jogos de poder

assimétricos que se estabeleciam com os nativos. Nesta conjuntura, faz-se notar a

passagem dos nativos de “objetos científicos” silenciados a “sujeitos políticos”,

estabelecendo uma conversação com o antropólogo. Nos termos da crítica cultural, a

crise deve ser solucionada por modos de representação alternativos que realcem uma

autoridade textual partilhada, rejeitem uma voz autoral neutra, ou não posicionada, e

contenham uma preocupação reflexiva com os estilos de escrita (Idem, p.150).

Como parece apontar Clifford (1986), a ideologia fundadora da escrita

etnográfica, baseada na transparência da representação e na imediatidade da

experiência de campo, deve dar lugar a uma tendência em que a etnografia encontrar-

se-ia no interior de poderosos sistemas de significado, e posicionaria suas questões

nas fronteiras das civilizações, culturas, classes, raças, e gêneros. A preocupação com

o encontro entre “culturas”, do qual decorreria toda etnografia, sucederia entre

pessoas que possuem “identidades” conflitantes, que são consideradas a interferir na

composição das representações etnográficas (Idem, p.2). A cultura, portanto, é

novamente objeto de discussão e de crítica: se anteriormente ela podia ser tomada, por

um lado, como uma totalidade em seus próprios termos, o que corroborava a eficácia

das traduções; e, por outro lado, sendo ela atributo essencial da natureza humana,

possuí-la era um aspecto decisivo para participar em uma cultura considerada como

outra e tratá-la como um objeto (Strathern, 1980, p.177). No momento atual, da crítica

4 Entrevista concedida por Bruno Latour.

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pós-moderna, a cultura é composta por representações e códigos contraditórios. A

objeção à transparência das representações etnográficas corresponde à mesma atitude

em relação à autonomia da Ciência frente à Sociedade.

Como vemos, duas importantes indagações podem ser elaboradas a esta

abordagem. Em primeiro lugar, há de se perguntar se encontramos tais realidades

culturais contraditórias que mereçam atenção especial, visto que, ao lançar mão, mais

uma vez, do conceito de cultura, não estaríamos novamente dando um teor mentalista

a tal encontro, que seria sustentado pela tensão dos programas mentais distintos dos

nativos e dos antropólogos. Em segundo lugar, recordando que a crítica à

representação investe contra a objetividade e a transparência do discurso científico,

que permeavam as etnografias, nos indagamos se o movimento em direção à

dimensão política do relato etnográfico permanece paralelo à insistência nas forças

impessoais do poder, gênero, classe, da raça, etc.. Essa última indagação pode ser

duplicada, pois fortalece a irredutibilidade entre ciência e política (Crawford, 1993;

Latour, 1994a), de maneira que a ciência fica ao lado do fato (realidade) e a política

ao lado do feito (construção). A cesura redunda em uma escolha que exclui na teoria

qualquer vinculação entre as duas esferas, logo é pertinente detectar a substituição de

uma metalinguagem por outra: a da empatia pelas relações de poder, o fato pela

ficção, a objetividade pela subjetividade, o significado transparente pela retórica, a

linguagem científica pela linguagem literária, o observador-participante pelo

antropólogo como autor (Clifford, 1986; 1998). O acento nas condições políticas e

sociais de produção do relato etnográfico é o complemento a uma série de

modificações que perpassam o métier do antropólogo. Clifford, portanto, explica o

saber pelo poder (Crawford, 1993; Latour, 1994a). O conhecimento, em sua denúncia,

teria por função sustentar a ordem social.

1.2 Uma outra visada no problema da representação

Posição marcadamente diferente é a de Tim Ingold. Menos do que se ater às

condições sociais de produção do relato etnográfico ou de esvaziar o trabalho de

campo, a atividade essencial da disciplina antropológica, ele delimita o ponto em que

as próprias noções de cultura e de sociedade congelam o mundo dos outros. Se a

crítica cultural acaba por corroborar a determinação que a representação impõe, isto é,

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a exacerbação do encontro entre culturas diferentes, que envolve toda etnografia, um

questionamento ontológico à representação postula a própria obsolescência da mesma.

Conforme Ingold (1996), a posição tradicional da antropologia social e

cultural é conferir aos humanos a capacidade de construir e ocupar “mundos

intencionais”. Nestes mundos, os objetos ganham forma ou significado por meio de

sistemas de representações mentais. Os diferentes mundos intencionais dos humanos,

permeados por uma “lógica da construção”, são diferenciados por elaborações

alternativas de uma realidade física independente, sendo amparados por um esquema

conceitual de valores e de padrões transmitido através de gerações. Alguns dos

problemas da representação, para Ingold (1993; 1996; 2001), são os seguintes: fazer

da mente um processador do conteúdo informacional transmitido pela cultura,

tornando a pessoa a portadora de um conjunto de regras cognitivas; limitar essa

capacidade estritamente aos humanos, forjando múltiplos meio ambientes humanos

cultural ou socialmente construídos, que são contrastados com um mundo físico único

e universal; criar fronteiras disciplinares irredutíveis, onde a natureza culturalmente

percebida ou modelada é objeto de estudo para os antropólogos, ao passo que a

natureza como ela “realmente é” torna-se objeto de estudo dos biólogos ou dos

ecologistas. A ilustração que se segue atinge alguns dos problemas supracitados e

demarca em duas monografias, de um mesmo contexto etnográfico, as disparidades

entre duas traduções relativas a um assunto de grande importância para os modernos:

a separação ou não entre humanos e animais.

Os caçadores Cree no norte do Canadá consideram que a personalidade é um

estado aberto a humanos, animais não-humanos e, até mesmo, a algumas entidades

não-animais5. Entre os Cree Wemindji, por exemplo, espíritos e certos agentes

geofísicos são dotados de personalidade. Logo, “[os] animais figuram para esses

caçadores do Norte (...) [como] parceiros na abarcadora economia cósmica da

coparticipação” (Ingold, 1996, p.131). Discutindo o modo que os caçadores Cree

percebem suas relações com os animais, Ingold suscita que a substância nutritiva dos

animais é uma dádiva recebida pelos humanos. “Caçar não é uma manipulação técnica

do mundo natural, mas um tipo de diálogo interpessoal, integral para o processo total

5 Ainda que o assunto fuja da temática desta dissertação, é importante observar os postuladosapresentados na análise de Ingold. Alguns deles serão fundamentais quando, mais adiante, discutirmoso paradigma do embodiment.

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da vida social, em que animal e humano são pessoas constituídas com suas

identidades e propósitos particulares” (Idem, ibidem).

Estes aspectos são amplamente registrados nas etnografias desses povos de

caçadores do norte6. Ingold, baseado nesses dados, tem duas finalidades centrais: a

primeira é sublinhar que embora os relatos etnográficos de Tanner e Scott estejam em

patente concordância7, suas interpretações permanecem díspares. Ele procura explorar

essas disparidades, em ambas as interpretações, com o intuito de sublinhar se a vida

dos Cree, que tratam os animais como pessoas, pode ser explicada ou não a partir de

um “mundo construído culturalmente”. A segunda, como prolongamento da primeira,

consiste em conceder alguma ênfase às premissas dos ocidentais que, distintamente

dos Cree, notabilizam-se em fabricar a divisão entre humanidade e animalidade; uma

divisão que se correlaciona com outras: “sujeito e objeto”, “pessoa e coisa”,

“moralidade e fisicalidade”, “razão e instinto”, “sociedade e natureza”, “mente e

corpo”. A existência humana, no mundo dos ocidentais, apresenta-se em duas ordens:

a ordem social, ou das relações intersubjetivas8, e a ordem natural, aquela das

interações entre meio ambiente e organismo, sendo que “(...) a existência animal é

restrita ao domínio natural” (Idem, p.131). Os seres humanos como organismos

participam do mundo natural, ao passo que os animais não compartilham o mundo

social, pois a estes é vedada a razão ou a personalidade.

6 Ingold restringe suas considerações aos estudos de dois povos Cree, Wemindji e Mistassini,etnografados, respectivamente, por James Scott e Adrian Tanner.7 Entre os Wemindji, descreve Scott, citado por Ingold, “(...) respectiful activity towards the animalsenhances the readinnes with wich they give themselves, or are given by god, to hunters” (1996, p.130).Entre os Mistassini, relata Tanner, também mencionado por Ingold, “(...) the hunter pays respect to ananimal; that is, he acknowledges the animal’s superior position, and following this animal “gives itself”to the hunter, that is, allows itself to assume a position of equality, or even inferiority, with respect tothe hunter” (Idem, ibidem).8 A intersubjetividade, enquanto “(...) constitutive quality of the social domain (...) a domain open tohuman beings but not to non-human kinds (...)”, torna-se uma noção limitada, no caso dos Cree, pois“(...) [in] the hunter-gatherer economy of knowledge, by contrast, it is as entire persons, not asdisembodied minds, that human beings engage with one another and, moreover, with non-humanbeings as well. They do so as beings in a world, not as minds excluded from a given reality (...) To coina term, the constitutive quality of their world is not intersubjectivity but interagentivity (Ingold,1996:129). Latour também observa que o mundo intersubjetivo é limitado às intencionalidadeshumanas (2001, p.21-22). Entre os Católicos Carismáticos, estudados por Csordas (1990; 1994), aconceptualização empreendida por ele, acerca da intersubjetividade, é decisiva para estabelecer, na suamonografia, o entrelaçamento de padrões de comportamento, os quais garantem um amplo patamarcomunicacional entre os nativos. Todavia, as entidades não-humanas, como os demônios [espíritos] oua experiência do sagrado, formam o “totalmente outro” que se distingue da experiência rotineira doshumanos. Além disso, é o próprio meio intersubjetivo que sustenta, por exemplo, as modalidades demanifestações dos demônios, os quais são construídos como objetos culturais. Mais adiantediscutiremos isso detalhadamente.

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Tanner, nas palavras de Ingold, interpreta que os animais caçados pelos Cree

têm uma presença dupla, tanto no domínio cultural quanto no domínio natural. Na

natureza, eles são entidades materiais que pertencem ao mundo objetivo e estão

prontos a serem “mortos e consumidos”. Na cultura, eles são trazidos para o domínio

das convenções e dos padrões sociais Cree, sendo antropomorfizados. No estudo de

Tanner, os animais são construídos como pessoas, a partir da sua transposição para

dentro do esquema das relações interpessoais, exclusivamente humanas. O mundo dos

animais é um espelho do mundo dos humanos. Neste caso, a forma em que os Cree

Mistassini constroem a caça e as trocas entre eles e os animais é apoiada nos padrões

que suas relações sociais manifestam com relação ao amor, à amizade, etc.. “[O]

argumento construtivista está fundado sobre o dualismo ontológico entre sociedade e

natureza (...) Por um lado, então, nós temos o mundo humano de modeladores de

animais, por outro, o mundo animal modelado como humano” (Idem, p.132).

Os Cree, porém, não corroboram o postulado que a personalidade é um

aspecto limitado aos humanos, ainda que eles se diferenciem dos animais. As

diferenças entre um ganso e um homem, entre os Cree Wemindji, não concernem

àquela entre um organismo e uma pessoa, antes entre um tipo de “organismo-pessoa”9

e outro.

“A personalidade, na perspectiva dos Cree, não é uma forma manifesta de humanidade, de

preferência o humano é uma das muitas formas de personalidade (...) quando os caçadores

afirmam que um ganso é em algum sentido como um homem, ou que ambos tenham a mesma

substância, longe de esboçar um paralelo figurativo, através de dois domínios

fundamentalmente separados, eles, entretanto, apontam para unidade real que subscreve a sua

diferenciação” (Idem, p.133).

Os Cree, nas palavras de Scott, referido por Ingold, assumem a similaridade

para, então, explorar as distinções entre humanos e não-humanos. Não há tal

perspectiva, como no pensamento Ocidental, de homologias ou analogias que

solucionem a dicotomia entre humanos e animais. Não há equivalência metafórica

entre humanos e animais, acarretando a redução do mundo destes ao mundo daqueles.

Ao contrário das interpretações de Tanner, as de Scott não terminam na

9 No original em inglês, organism-person.

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antropomorfização dos animais ou na biologicização dos humanos10. A personalidade

entre os Cree é o “potencial” que originariamente possibilita aos inúmeros seres

animados tornarem-se humanos, gansos, etc. (Idem, ibidem). Descartada a separação

radical entre humanos e animais - evocada pela interpretação seja das ações animais

em termos humanos seja das ações humanas em termos animais - a escolha teórica

entre o construtivismo (antropologia) e o realismo (biologia) não é mais

preponderante. A equivalência ontológica entre humanos e animais desfaz este

divisor. Perdem em importância, também, as qualidades diferenciais da mente, tais

como construir mundos intencionais, visto que não vêm mais a complementar a vida

física e, aliás, deixam de confirmar que os “[humanos] são capazes de representar uma

realidade externa deste modo: organizando os dados da experiência em conformidade

com os seus diversos esquemas culturais” (Idem, p.135).

Se um Cree insiste que os eventos circunscritos a uma caçada podem ser

tomados da perspectiva dos caçadores e dos animais, um observador imbuído dos

postulados construtivistas estaria predisposto a olhar a primeira como “literal” e a

segunda como “metafórica”. Tanner traduz a realidade do caribu ou do urso, tal como

foi apresentada pelos Cree, sob a forma de realidades culturalmente percebidas, que se

opõem à natureza. Tanner inventa uma distinção que os Cree, segundo Scott,

desconhecem, pois não se encontra entre eles termos que correspondam às noções de

cultura e de natureza. A realidade do caribu, do urso ou do ganso é proveniente do

seu envolvimento com o mundo. Assim, eles têm um ponto de vista porque prestam

atenção ao mundo, por meio de sua habilidade de ação e de percepção. As habilidades

propiciam aos gansos perceberem algo no meio ambiente que os caçadores não

prestam a atenção. Os caçadores, por seu turno, percebem situações com as quais os

gansos não estão sintonizados (Idem, ibidem). Ambos, gansos e humanos figuram um

no mundo perceptivo do outro, os primeiros, por exemplo, aprendem a distinguir as

situações em que os últimos estão ou não com intenção de caçá-los. Os animais

participam no mundo “(...) como criaturas dotadas com poderes de sentimento e ação

autônoma, cujos comportamentos, temperamentos e sensibilidades são conhecidos

10 A questão é posicionada do seguinte modo por Scott: “One Might observe that a consequence of thesort of analogical thinking that I have been describing would be to anthropomorphize animals, but thatwould to assume the primacy of the human term. The animal term reacts with perhaps equal force onthe human term, so that animal behaviour can become a model for humam relations” (apud Ingold,1996, p.133).

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durante o envolvimento com os mesmos no cotidiano de suas práticas” (Idem, p.136).

Os animais não são como pessoas, eles são pessoas. (Idem, p.135).

A divisão entre mente e natureza ou mundo social e mundo físico exige que o

envolvimento dos nativos com os constituintes humanos e não-humanos do seu meio

ambiente seja relegado à mente. As divergências entre as duas traduções são

importantes porque ratificam, como no caso de Tanner, aspectos essenciais do mundo

moderno. Um deles é a exportação para o universo Cree da divisão entre natureza e

cultura, levando a explicar suas relações com os constituintes não-humanos do seu

meio ambiente a partir de uma alternância entre imanência e transcendência que nós

encontramos no mundo moderno. A caça, então, corresponderia, ao mesmo tempo, à

consecução de certas condições básicas de subsistência ou realçaria um componente

mágico-religioso, logo reduzido a uma crença que dever ser explicada como uma

construção apoiada nos padrões culturais. Enfim, ou a natureza aparece como “ela

realmente é”, e os caçadores satisfazem suas necessidades orgânicas; ou a natureza é

culturalmente construída, sendo o mundo natural traduzido a partir das relações

interpessoais dos humanos. Como veremos abaixo, essa divisão é um dos atributos

mais singulares do mundo moderno.

1.3 A alternância das cesuras modernas

A análise de Ingold, dos estudos de Tanner e Scott, nos permite notar o quanto

a relação entre os caçadores Cree e os gansos é capaz de evocar o estranho mundo

habitado pelos modernos. Mundo em que a mistura entre o mundo social e o mundo

natural, sendo alvo de uma crítica, é substituída pela separação total entre eles

(Latour, 1994a, p.40). Na dupla linguagem da imanência e da transcendência residiria

a extensão da sua crítica ao mundo dos outros. O paradoxo moderno, segundo Latour

(Idem, p.35), consistiria em dois processos, um de “hibridização”, outro de

“purificação”, que, respectivamente, acentuam os mistos de natureza e de cultura e a

separação radical das duas. Uma das principais garantias da “Constituição” dos

modernos é ressaltar a configuração não-humana dos fatos naturais e a construção

humana do mundo social. Entretanto, Latour assinala que essas configurações podem

ser invertidas. A alternância entre a imanência e a transcendência permite aos

modernos construir a natureza e objetificar o social ou reiterar a facticidade da

natureza e a invenção da sociedade.

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Os modernos, na prática, lançam mão, simultaneamente, de ambas as

definições: ora a sociedade e a natureza são imanentes ora são transcendentes. Essa

passagem contínua é dissolvida, na teoria, com a dicotomia incomensurável entre os

dois pólos, uma dicotomia que ofusca todas as misturas que acontecem na prática.

Ainda assim, como todos os outros “coletivos”11, o mundo moderno vive da mistura.

A sua vantagem em relação aos “outros” é, sem acarretar qualquer contradição,

inverter os princípios de imanência e de transcendência, potencializando um

“repertório crítico” firmado nas leis da sociedade ou nas leis da natureza: “Você

acredita que o trovão é uma divindade? A crítica irá mostrar que se trata, neste caso,

de mecanismos físicos sem influência sobre os acontecimentos do mundo humano (...)

Você acredita que os espíritos dos ancestrais o prendem eternamente a suas leis? A

crítica irá mostrar que os espíritos e as leis são construções sociais que você criou para

si mesmo” (Idem, p.43). Nas palavras abaixo, é útil notar como essas alternâncias

impedem o congelamento introduzido pela teoria.

* * *

Ingold (1996) ressalta que a cesura, na teoria, entre natureza e sociedade

ocorre dentro dos limites do mundo dos cientistas (biólogos) e dos humanistas

(antropólogos). Porém, quando os últimos sugerem que as noções de cultura e de

natureza não são dadas, voltam a ressaltar que elas são resultado da cultura Ocidental,

que subitamente é lembrada como algo real, apoiando a primeira afirmação, em que as

noções de cultura e natureza não são dadas12. Similarmente, como vimos acima, a

natureza é culturalmente construída à medida que é do interesse das humanidades,

tornando-se real quando estudada pelos biólogos. No entanto, na perspectiva de

muitos antropólogos, ela não deixa de perder o status universal de entidade inerte e

passiva a ser modelada e domesticada pelos humanos.

Strathern (1980)13 apresenta uma asseveração alinhada com as que nós temos

acentuado até agora. De acordo com ela, os conceitos de natureza e de cultura, no

11 Segundo Latour (2001, p.346): “Ao contrário de sociedade, que é um artefato imposto pelo acordomodernista, esse termo se refere às associações de humanos e não-humanos”.12 A citação que Ingold (1996, p.119-120) lança mão é extraída de MacCormack: “Neither the conceptof nature nor that of culture is “given”, and they cannot be free from the biases of the [European]culture in which the concepts were constructed”.13 Ingold (1996) aponta que o artigo de Strathern assume a primazia da ontologia Ocidental, pois aausência das noções de cultura e de natureza, entre os nativos de Hagen, é definida a partir da divisão

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pensamento Ocidental, não detêm um único significado ou estão separados por uma

única dicotomia. Ao contrário, estamos diante de uma “matriz de contrastes”, que

formaria a metafísica Ocidental (Idem, p.177-178). Ora a cultura é comum à espécie

humana, sendo uma manifestação da natureza humana; ora a cultura é um acréscimo

ou refinamento à natureza animal que nós compartilhamos com outras espécies,

portanto ela acaba por particularizar a humanidade, ora a cultura é uma força ativa que

transforma uma natureza passiva e dada, ora a cultura é o produto final de um

processo, um objeto que depende de forças externas a si mesmo, ora a cultura existe

no plural, indicando a diversidade das experiências humanas14. Ora a natureza é a

natureza humana, ora é o meio ambiente não-social, ora é recurso, podendo ser sujeita

à modificação, ora é limitação, impondo suas próprias leis (Idem, ibidem).

As várias alternâncias, descritas acima, forjam um sem número de avaliações,

que estão circunscritas às divisões entre sujeito e objeto, real e construído, ativo e

passivo, etc.. Ingold e Strathern, tal como Latour, conseguem avistar o paradoxo que

fortalece os modernos.

* * *

Voltando a Latour: A fragmentação imposta pela crítica serve à

operacionalização das denúncias contra os sujeitos, quer para assinalar a sua liberdade

em face às crenças que ele porta, quer para afirmar a determinação do sujeito diante

da sua crença na liberdade (Latour, 2002, p.32). A determinação é explicada pelos

“fatos objetivos”, provindos dos saberes das Ciências naturais e humanas: “As leis da

biologia, da genética, da economia, da sociedade, da linguagem (...)” (Idem, p.34).

Quando o sujeito se vê livre das suas crenças, o domínio que deveria ser concedido a

ele é delegado à sociedade ou à cultura. A crítica ou acusação, em primeiro lugar,

sempre supõe que alguém se engana, se deixa enganar ou engana os outros. Em

segundo lugar, busca incessantemente eliminar e libertar os outros das suas ilusões.

Dessa crítica decorre um saber objetivo e sem crença, ancorado em princípios lógicos,

tais como os de Tanner, os quais facilitam embeber a tradução do mundo dos Cree

Mistassini nos mesmos divisores que os modernos se permitem fazer. Ele pontua a

entre natureza e cultura. Enfim, Ingold sugere que esta ausência opera dentro da própria cultura. A meuver, há um certo exagero de Ingold, visto que, ao longo do artigo, apesar de não citar expressamenteStrathern, lança mão das suas inferências acerca do construtivismo.

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natureza e a cultura como realidades independentes entre si e, também, independentes

dos sujeitos. Logo, é possível fabricar uma tradução que privilegie as consistências do

mundo natural e do mundo social, principalmente os padrões culturais que

supostamente guiariam as relações que os Cree estabeleceriam com o meio ambiente.

A pequena digressão abaixo é proveitosa para que nós comecemos a reabilitar

a simetria entre o mundo moderno e os outros mundos.

* * *

Latour (no prelo; 2001) assevera que, o regime de enunciação da “Ciência”,

com “c” maiúsculo, é aquele que evoca mensagens que tentam dar conta de uma

“ausência”, uma transcendência. A religião no seu regime manifestaria

“presentificações”, relações performativas que sempre se atualizariam pela

experiência das pessoas. A “Ciência” estaria vinculada à “transmissão de

informações” que se alastrariam como “móveis imutáveis”, percorrendo grandes

espaços linearmente, sem que o seu conteúdo substancial sofra alterações que

comprometam o cerne da sua imutabilidade: a evocação de uma realidade

independente (Ingold, 1993). A “Ciência” ratificaria uma transcendência entendida

como um elemento externo às considerações dos atores, em outros termos,

radicalizaria uma ausência que pode ser compreendida no acesso sem mediações a

uma realidade, desde sempre, independente. A religião, por outro lado, não operaria a

partir destes mecanismos, ao contrário, abrangeria uma atualização que exigiria a

presença e a transformação das pessoas. Resumidamente, na religião a atenção estaria

voltada para os mediadores, enquanto que na “Ciência” se destacaria a informação.

Contudo, menos do que estabelecer qualquer relação mecânica entre ciência e

religião, Latour sustenta que a “ciência”, com “c” minúsculo, é atravessada por

mediadores, que evocam as presentificações ao invés da transmissão de informação.

O discurso da “Ciência” depura o mundo entre “forma de vida prática” e

“forma de vida teórica” (Latour, 2002). Latour indica que na vida prática, onde é

possível passar indefinidamente da condição de sujeito autônomo a sujeito

determinado, não haveria, de modo algum, a cesura que tornaria inviável a sinonímia

entre construção e realidade. A divisão ou purificação seria um procedimento que,

segundo Ingold (1993; 2000), acontece posteriormente a uma experiência que é

14 Ver também Gonçalves (1996).

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basicamente desdobrada no mundo. Ingold sugere que não existe aprioristicamente

uma realidade independente. Simplesmente, habitamos o mundo. Se dermos um passo

adiante, veremos que a interlocução entre antropólogos e nativos ocorre no interior de

uma “comunhão de experiências” (Ingold, 1993, p.223). O acesso a esse patamar

comunicacional não abrange o corte sujeto/objeto, sendo preciso notar que as

traduções, incrustadas no regime de enunciação da “Ciência”, não assinalam esse

elemento fundamental e primário do trabalho de campo: os “modos de envolvimento”.

A representação, porém, faz parte dos “modos de construção”, um procedimento

secundário no processo reflexivo.

Em geral, Latour permite restituir ou reconsiderar a prática da fabricação de

objetos e a posterior autonomização dos mesmos: “(...) fatos que, apesar de fabricados

pelo homem, não são da autoria de ninguém (...)” (1994a, p.27). Esse fazer

desenvolvido na prática permanece ocultado na teoria. De acordo com Latour (2002,

p.39), um processo de depuração caracterizaria a passagem da fabricação dos fatos à

sua autonomização em face dos seus produtores. A descrição dessa passagem, além de

recolocar os não-modernos em igualdade com os modernos, acentua a própria

inexistência da modernidade; pois, faculta apreender a simetria entre feito-fetiche-

fabricação e fato-razão-realidade. O antifetichismo, segundo Latour, “(...) é a

proibição de apreender como se passa da ação humana que fabrica às entidades

autônomas que ali se formam, que ali se revelam” (Idem, p.69). O faitiche, no entanto,

é o que permite, na prática, passar ininterruptamente da imanência à transcendência,

da fabricação à realidade. Os faitiches, segundo Latour, podem ser definidos “(...)

como aquilo que oferece a autonomia que não possuímos a seres que não a possuem

tampouco, mas que, por isso mesmo, acabam por nos concedê-la”. Por meio do

faitiche, “(...) poderiam dizer os feiticeiros, os adeptos [do candomblé], os cientistas,

os artistas, os políticos, “podemos produzir seres que nos superam até certo ponto:

divindades, fatos, obras, representações”” (Idem, ibidem). O faitiche é a união, em um

único termo, sem qualquer abdicação, das palavras fato fait (fato) e fetiche (fetiche),

permitindo declarar que nós somos “ligeiramente superados” por aquilo que nós

construímos (Idem, p.45).

Como Pasteur e o fermento de seu ácido lático, construído exaustivamente no

laboratório e autonomizado, sob a forma de um dado imutável. Como os

candomblecistas que afirmam, simultaneamente, “fazer” ou “assentar” suas

divindades e insistir que são reais (Latour, 2002). Malinowski (1976, p.25) inscreve

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que entre os princípios metodológicos da pesquisa etnográfica o mais elementar é

assegurar ou “criar” as “condições adequadas” à observação, contudo essas mesmas

condições, que o etnógrafo supostamente construiu, ganham autonomia o suficiente

para superá-lo e afetá-lo, pois ele devia viver entre os trobriandeses e, posteriormente,

“(...) evocar o verdadeiro espírito dos nativos, numa visão autêntica da vida tribal”

(Idem, p.24). Da mesma maneira que os romancistas dizem que são “levados por seus

personagens”(Latour, 2002, p.46), os antropólogos se deixam guiar pelos nativos

(Evans-Pritchard, 1978, p.300). As mesmas acusações que a crítica interpela aos

romancistas, “Vocês fabricam seus livros? Vocês são fabricados por eles?” (Latour,

2002, p.46), os críticos da pesquisa de campo fazem analogamente contra os

antropólogos. Esses últimos, no entanto, como os romancistas, os negros e Pasteur,

deveriam responder: “Somos os fios de nossas obras”15 (Idem, p.46-47). Pasteur ao

explicar que tornou o seu fermento autônomo, os candomblecistas quando afirmam

assentar suas divindades e Malinowski ao criar, ou propiciar, as condições apropriadas

para a produção dos seus fatos etnográficos não se contradizem. De preferência, dão

um novo sentido aos seus “objetos”, que, afinal de contas, são “quase-objetos”, isto é,

híbridos nos concedendo uma autonomia que não possuímos (Crawford, 1993).

Peter Berger e Thomas Luckmann (1973) alcançam, ao longo das suas

reflexões, acerca do construtivismo social, o “paradoxo” do qual Latour consegue se

desviar. Um paradoxo que eles afirmam surgir da possibilidade do humano “(...) ser

capaz de produzir um mundo que em seguida experimenta como algo diferente de um

produto humano” (Berger e Luckmann, 1973, p.87). Aliás, os dois autores chegam

concluir que o “produto”, o mundo social, “reage sobre os produtores”, os humanos16.

Em todas as atividades supracitadas, o abismo entre fato (“objeto-causa”) e

feito (“objeto-encantado”) deixa de ser tão preponderante. Ademais, solapa a imagem

do sujeito desencarnado, proveniente do regime de enunciação da “Ciência”, sob a

cobertura da razão. Mantendo nossa atenção ao regime de enunciação da “ciência”,

15 Em geral, Malinowski (1976, p.23) afirma que o trabalho de campo acarreta em uma iniciação quecorresponde a um grande número de ocorrências desagradáveis e frustrantes para o antropólogo duranteo momento inicial da obtenção dos dados da pesquisa. Logo, a criação das condições apropriadas para arealização da etnografia define “(...) a maneira de pensar quando o objeto é “outro” e que exige nossaprópria transformação” (Merleau-Ponty, 1980, p.199).16 Todavia, a solução desse dilema, circunscrito àquele entre realidade e construção, é arranjada pelasua redução a um processo dialético contínuo formado por três momentos distintos que correspondem àconstituição do mundo social: em primeiro lugar, a sociedade é um produto humano; em segundolugar, a sociedade é uma realidade objetiva; em terceiro lugar; o homem é um produto social (Berger& Luckmann, 1973, p.87).

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fundado na presença e nos mediadores, o sentido mais geral que podemos alcançar em

uma prática de pesquisa é a tendência de permanecer envolvido pela experiência

etnográfica durante as traduções em “um mundo contínuo de pequenas diferenças”

(Ingold, 1993). Seria, então, necessário, a meu ver, nos voltarmos em direção às

mediações que restituem o lugar das continuidades, as quais tornam inexistente o

apriorismo da dicotomia entre sujeito e objeto. Na vida prática, estamos inseridos em

uma infralinguagem, advinda da contínua fluidez interna, concernente às próprias

relações, ao contrário da coleção de imagens que aludem à mensagem de um ente

ausente, a sociedade. O colapso dos grandes divisores, que nos apartam dos “outros”,

incide justamente na “presentificação” ou na preeminência das relações e do seu

potencial transformador, sem a qual o trabalho de campo não seria possível.

Embora as últimas asseverações proponham uma forma de conhecimento

distinta daquelas introduzidas pelos modernos, devemos dispor um pouco mais de

atenção ao que a “Constituição Moderna” (Latour, 1994a) permite mobilizar e isolar,

pois é imprescindível delimitar a invenção do “modo de construção”, que orienta a

tradução antropológica do mundo dos “outros”. Inicialmente, começaremos com

algumas de suas grandes divisões: mente e natureza ou mente e corpo. Em seguida,

notaremos que esse primeiro divisor dará origem a um segundo, tão potente quanto o

primeiro, constituindo o acabamento de uma polarização, que possibilitará aos

modernos alternar entre imanência e transcendência. Falo aqui da divisão entre mente

e sociedade. Comecemos pela primeira das divisões.

1.4 A mente

Richard Rorty17 afirma que a filosofia localiza “(...) a fundamentação do

conhecimento e encontra esses fundamentos num estudo do homem-enquanto-

conhecedor de “processos mentais” ou da “atividade da representação”, os quais

tornam o conhecimento possível” (1994a, p.19). Por conseguinte, “[conhecer] é

representar acuradamente o que está fora da mente; assim, compreender a

17 Objetivo principal da discussão de Rorty (1994, p.25) é explorar que as intuições subjacentes aodualismo cartesiano podem ser historicizadas. No entender de Rorty, o processo de profissionalizaçãoda filosofia redunda em um vocabulário técnico transportado para as instituições e os costumes. O queestabilizaria a posição da filosofia seria, em geral, a produção de uma base segura para todo oconhecimento. “Uma ciência da ciência”. A representação exata da “racionalidade” e da “objetividade”seria, então, uma tentativa de eternização do discurso científico, fundado nos critérios consensuais dasua época de formulação.

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possibilidade e natureza do conhecimento é compreender o modo pelo qual a mente é

capaz de construir tais representações” (Idem, ibidem). A cultura, segundo Rorty, é a

síntese desses conhecimentos dos quais a filosofia busca os fundamentos. Tais

fundamentos estão relacionados à compreensão da mente, logo as explicações

filosóficas procuram as fundações da natureza da mente. Enfim, “[a] preocupação da

filosofia é ser uma teoria geral da representação (...)” (Idem, p.20).

O século XVII, de acordo com Rorty, devido a Locke e a Descartes,

respectivamente, é o grande manancial de uma “teoria do conhecimento” respaldada

por uma compreensão dos “processos mentais” e do postulado que “a mente” era uma

“(...) entidade separada na qual ocorriam “processos””. Já, no século XVIII, é preciso

creditar a Kant uma noção de filosofia “(...) como um tribunal da razão pura,

sustentando ou negando as asserções do resto da cultura” (Idem, ibidem). Rorty

observa que a noção kantiana de filosofia adere ao pressuposto lockeano dos

“processos mentais” e cartesiano da “substância mental”. Além disso, assinala que o

vínculo ligando a filosofia contemporânea à filosofia de Locke, Descartes e Kant

consiste em pôr a “(...) atividade humana (...) dentro de um quadro que pode ser

isolado previamente à conclusão da inquirição” (Idem, p.24). O que torna esse quadro

pertinente é a determinação a priori da “natureza do sujeito conhecedor” e da

“realidade” (Idem, Ibidem). Decerto, aqui tratamos do a priori ontológico que separa a

mente do mundo (Ingold, 2000, p.391). A representações mentais seriam, de acordo

com Rorty, as imagens da realidade empírica ou, se preferirmos, as construções

mentais desta realidade.

“A imagem que mantém cativa a filosofia tradicional é a da mente como um grande espelho,

contendo várias representações – algumas exatas, outras não – e capaz de ser estudado por

meio de métodos puros, não-empíricos. Sem a noção de mente como espelho, a noção de

conhecimento como exatidão de representação não se teria sugerido” (Rorty,1994, p.27).

Como bem observa Rorty, a imaterialidade da mente e a materialidade do

corpo definem as qualidades que divorciam as duas entidades. Se por um lado, o

mental pode dividir-se em crenças, desejos, imagens (Idem, p.31), o corporal, por

outro lado, apresenta-se sob a forma dos processos nervosos e musculares. Em linhas

gerais, os estados mentais gozam de uma independência para com a fisiologia

corporal. A existência não-corporal da mente indica que ela escapa de qualquer

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tentativa de um registro empírico. Reduzido à representação ou à idéia, o mundo é

uma exterioridade absoluta, pois só pode ser conhecido por meio da interioridade

absoluta, ou consciência, do observador18. Se os humanos estão na natureza devido à

presença dos seus organismos, situam-se fora da mesma, desde que se considere a

existência das suas mentes. Rorty explica que ter uma mente é naturalizar a divisão

intransponível entre mente e corpo (organismo) ou mente e mundo (natureza). Em

acréscimo, a invenção da mente acarretou a fabricação de um mundo exterior

acessível apenas por meio de processos mentais. A consciência, que já estava presente

antes da constituição desse mundo em representação, é quem realiza o trabalho de

construção, estando aquém do tempo e do espaço. Afinal, no sentido kantiano (Kant

apud Merleau-Ponty, 1971), a distinção entre consciência e mundo é resultado da

reflexão da precedência do sujeito transcendental e do seu poder constituinte de

fabricar o real (Idem, 1971). O sujeito desfruta de uma subjetividade insuperável, cuja

força centraliza toda a capacidade de construir e sem a qual o mundo não existiria.

Retirado do corpo e do mundo, o Ser existe no espaço interno da mente, locus

não-espacial e invisível que determina a constituição do mundo da cultura. Esse

trabalho é desenvolvido pelo “Olho da Mente”, que é o modelo que recobre o

conhecimento de tipo “(...) contemplativo, conceitual ou direcionado às verdades

universais” (Rorty, 1994, p.51). A mente presume algo muito distinto do corpo, pois

sua não-espacialidade alcança o invisível e o imaterial. O “Olho do Corpo”, por outro

lado, não interiorizaria os universais, mas os particulares por meio das cores e das

formas individuais. Enfim, a Essência humana é Especular19 porque assume “(...)

formas intelectuais em vez de formas sensíveis como fazem os espelhos materiais”

(Idem, p.55).

Segundo Rorty, diferente de Aristóteles, para quem a imagem era o próprio

modelo para o intelecto - sem que haja uma distinção entre o olho e o espelho -

Descartes assegurou que “(...) o intelecto inspeciona imagens modeladas em imagens

retinais” (Rorty, 1994, p.58). Não há em Descartes um canal imediato que permita aos

objetos entrarem em contato com a mente, mas representações que mediam o

encontro. A representação do objeto é a representação interna ou da mente, uma posse

exata, ainda que indireta, de algo exterior. O caos dos estímulos externos acumulados

nas imagens retinais é, em Descartes, ordenado e inspecionado pelo intelecto. Em

18 Ver Merleau-Ponty (1971).19 Especular aqui é no sentido de espelho.

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suma, o conhecimento é uma “representação interna”. A novidade cartesiana “(...) foi

a noção de um único espaço interno onde as sensações corpóreas e perceptivas

(“idéias confusas do sentido e da imaginação”, na frase de Descartes), verdades

matemáticas, regras morais, a idéia de deus, disposições depressivas e todo o resto do

que agora chamamos de “mental” eram objetos de certa observação” (Idem, p.62).

Segundo Rorty, o “Olho Interno”, que inspeciona e ordena a representação, é o

fundamento de toda a desconfiança, desde o cartesianismo, em torno das “(...)

entidades modeladas em imagens retinais” (Idem, p.58) e do corpo. A essência da

consciência no cartesianismo concentra-se na exatidão de uma vida interior que

suspeita das substâncias físicas.

Bem como Rorty, Latour (2001) também acentua a invenção da mente e do

mundo exterior, embora ressalte que a sociedade seja uma invenção que veio a

substituir o “Ego transcedental”, já distanciado da “realidade”. A sociedade, longe de

reaproximar os humanos e o mundo, dilatou ainda mais a distância entre eles. Ao

quebrar o isolamento das mentes individuais, requisitou a presença da mente coletiva.

“Em lugar de uma Mente mítica que molda, esculpe, talha e ordena a realidade,

vinham os preconceitos, as categorias e os paradigmas de um grupo de pessoas

vivendo juntas a determinar as representações de cada uma na comunidade” (Latour,

2001, p.19). Constituindo-se na “realidade objetiva” da mente, a sociedade acentua a

distância entre mente e mundo, inventando um mundo exterior para a mente, um

mundo eminentemente humano. Já apartado do mundo e da natureza, ou das “coisas

em si”, o “sujeito para si” é ultrapassado por um domínio inerente a sua própria vida

mental. O domínio social é preenchido por culturas, tradições, padrões, códigos,

pontos de vista. Enfim, “[a] mente não apenas se desvinculara do mundo como cada

mente coletiva e cada cultura se isolaram uma das outras (...)” (Idem, p.20). O que, de

fato, intriga Latour é a essencialidade de uma “Mente extirpada” para a observação do

mundo exterior, embora essa “Mente” seja superada por um mundo surgido dela, o

mundo social. Tanto a invenção da mente quanto da sociedade correspondem a duas

cesuras fundamentais: uma da mente e da natureza e/ou corpo, outra da mente e da

sociedade.

1.5 A sociedade

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Enquanto Rorty nos ajudou relatando certas idiossincrasias do mundo

moderno, por exemplo, a invenção da mente como “(...) base para a epistemologia

moderna” (Rorty, 1994, p.58), Durkheim se torna extremamente interessante, na

medida em que elabora um vínculo para a mente: a sociedade. Em Durkheim, a mente

deixa de possuir uma existência não-espacial. A sociedade é quem lhe toma essa

prerrogativa, dado que ela opera na totalidade, ou seja, deixa de depender dos anseios

particulares dos indivíduos e explica a natureza da vida psíquica. A presença de

Durkheim, aqui, é um recurso para conseguirmos explicitar, em primeiro lugar, que o

mundo moderno nunca foi muito diferente dos outros, como se supunha, e, em

segundo lugar, que a sua teoria do conhecimento é importante para a tradução

antropológica, pois indica algumas cesuras que a invenção do mundo social acarreta.

Este segundo ponto será tema da sessão subseqüente.

* * *

Quando Durkheim (1970), em Representações individuais e representações

coletivas, afirma que “(...) a vida coletiva, como a vida mental do indivíduo, é feita de

representações; é, pois, presumível que as representações individuais e as

representações coletivas sejam, de certa forma, comparáveis” (1970, p.13); torna-se

plausível concluir que ele avista alguma analogia entre as “leis sociológicas” e as “leis

psicológicas”. Entretanto, à primeira vista, ele busca assinalar que a mente não é um

epifenômeno da vida física20, como teriam afirmado os psicofisiologistas. Essa busca

termina por alcançar a distinção entre o fenômeno representacional e o fenômeno

natural. Em todo caso, o alvo da crítica é a redução da representação a um fator

orgânico. Nos termos da psicofisiologia, a faculdade que sustenta a recordação de

uma situação estaria fixada na impressão orgânica que modifica o elemento nervoso,

predispondo-o à excitação similar em um outro momento, estimulando a lembrança.

Durkheim, entretanto, nega que a retenção mental de um fenômeno seja

produto da constância do elemento nervoso. Se a realidade da consciência, a

recordação, não é, nas suas explicações, um produto dos estados nervosos combinados

20 Ao contrário do epifenomenismo, o introspeccionismo posicionava a vida psíquica em um cosmo àparte do mundo. No entanto, “(...) os dois lados concordam em ver na vida psíquica nada mais que umadelgada cortina de fenômenos, transparentes em relação à consciência, segundo uns [osintrospeccionistas], despida de qualquer consistência, de acordo com outros [os epifenomenistas]”(Durkheim, 1970, p.39).

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a elementos externos, conseqüentemente, os estados nervosos não são o “primeiro

motor” (Veyne, 1974) da consciência, e a representação não tem sua existência

reduzida às condições de satisfação do substrato orgânico ou de uma certa

“polarização das células cerebrais” (Durkheim, 1970, p.19). Uma representação

estaria destinada ao desaparecimento caso não preenchesse tais condições:

“(...) se a memória é exclusivamente propriedade da substância nervosa, as idéias não podem

evocar-se umas às outras; a ordem pela qual retornam ao espírito pode apenas reproduzir a

ordem em que seus antecedentes físicos são re-excitados e até mesmo essa re-excitação se

deve exclusivamente a causas apenas físicas” (Idem, p.21).

Designando ser parte da “hipótese epifenomenista” as premissas da última

citação, Durkheim adverte que “(...) não há fundamento para que se considerem as

representações formadas de elementos definidos, espécies de átomos que poderiam,

mantendo-se idênticos a si mesmos, entrar na contextura das mais diversas

representações” (Idem, p.22). As idéias, então, não são idênticas a si mesmas em

qualquer contextura. “A brancura deste papel e a da neve não são as mesmas e nos

foram mostradas em representações diferentes” (Idem, ibidem).

Durkheim, em acréscimo, nega que as idéias possam ser fracionáveis, de tal

modo que cada uma corresponda a um determinado elemento nervoso; ou seja, ele

manifesta-se contra uma “geografia cerebral” que indique um território definido, ou

de entidades distintas, onde se constitua o limite da sensação, por exemplo, do verde,

do vermelho, do branco, etc.. A “hipótese epifenomenista” malogra. Neste sentido,

considerar cada representação um espelho do elemento nervoso é, também, admitir

que ela esteja localizada, precisamente, no cérebro. Durkheim assim exemplifica tal

territorialização:

“(...) a representação da folha em que escrevo seria literalmente dispersada por todos os

desvãos do cérebro! Não somente haveria de um lado a impressão da cor, de outro a da forma,

de outro ainda a da resistência, mas ainda a idéia de cor em geral localizar-se-ia aqui, ali

residiriam os atributos distintivos de tal matiz, em particular, acolá as características especiais

que têm esse matiz no caso presente e individualizado que tenha sob os olhos, etc.” (Idem,

p.23).

O fracionamento redundaria na incompreensibilidade da unidade e da continuidade da

vida mental. De acordo com ele, as diferenciações somos nós quem introduzimos no

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continuum da vida psíquica. Elas originariamente não estão aí e são os resultados da

abstração.

Libertas do julgo do sistema nervoso e do fracionamento, como desejava

Durkheim, as representações acabam por constituir uma realidade independente

situada na vida mental. A combinação das representações, na vida mental, acontece a

partir de um mecanismo mental ao invés de orgânico. “Uma representação não se

produz sem agir sobre o corpo e o espírito” (Idem, p.26). Isto não quer dizer, no

entanto, que haja, para Durkheim, alguma correspondência precisa entre os

movimentos corporais e as idéias, visto que o afastamento com relação à sensação

pura, proporcionalmente, enfraquece a importância positiva do elemento motor.

Assinalando a divisão entre o físico e o mental, Durkheim admite que o mental opera

em uma dimensão que traspassa o domínio físico.

“As funções intelectuais superiores pressupõem, sobretudo, inibições de movimentos, como o

provam não só o papel capital que para tanto desempenha a atenção quanto à própria natureza

da atenção, que consiste essencialmente numa suspensão, tão completa quanto possível, da

atividade física” (Idem, p.27).

Durkheim posiciona a percepção como uma faculdade intelectual de uma

consciência absoluta e transcendental. O que torna um elemento representável é, na

verdade, possuir elementos definidos que sirvam aos propósitos da vida representativa

ou mental. Caberia, então, ao pensamento definir o conteúdo exato desses elementos.

Tendo, portanto, destacado a representação do âmbito orgânico, Durkheim

começa, em seguida, a destacá-la da vida mental (consciência individual). Com efeito,

ele assinala que a vida mental é ultrapassada por uma vida representativa sui generis

constituída de preconceitos ou normas que guiariam o espírito.

“Se as representações, uma vez que existem, continuam a existir por si, sem que sua existência

dependa perpetuamente do estado dos centros nervosos, se são suscetíveis de agir diretamente

umas sobre as outras, de se combinar de acordo com leis que lhes são próprias, é porque são

realidades que mesmo mantendo íntimas relações com seu substrato, dele são, entretanto, até

certo ponto, independentes” (Idem, p.32).

A vida mental, também, contribuiria parcialmente para a formação da

representação de natureza coletiva. Em geral, afirma Durkheim, se as representações

individuais superam o elemento nervoso, as representações coletivas sobrepujam as

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consciências individuais que fundam a sociedade. A gênese das representações “(...)

que são a trama [da vida social]” está nas “(...) relações que se estabelecem entre os

indivíduos assim combinados ou entre os grupos secundários que se intercalam entre

o indivíduo e a sociedade total” (Idem, p.33). Metodologicamente, os passos de

Durkheim devem ser seguidos para que seja possível descrever as cesuras que,

gradativamente, ele faz ou fabrica. Em um primeiro momento, desvincula os

fenômenos psíquicos (psicologia) dos fenômenos nervosos (psicofisiologia). Em um

segundo momento, isola os fatos sociais (sociologia) das consciências individuais

(psicologia) quando se preocupa com uma lei sui generis para relatar a independência

e a exterioridade de tais fatos com relação aos indivíduos. Logo, “[a] independência, a

exterioridade relativa dos fatos sociais em relação aos indivíduos é mesmo mais

imediatamente aparente que a dos fatos mentais com relação às células cerebrais”21

(Idem, Ibidem). Consistindo em um espaço interno, a vida mental ou da consciência

individual, destacada do organismo e da natureza, é a primeira transcendência que dá

origem a uma segunda: a vida coletiva ou da consciência coletiva. O aspecto comum

a esses dois momentos é a separação radical com a natureza e com o organismo.

As representações coletivas derivam mais da cooperação do que dos

indivíduos considerados isoladamente. Um dos motivos do sucesso metodológico da

representação é fazer “o todo ultrapassar a parte” ou ser “exterior em relação ao

particular” (Durkheim, 1970, p.34). Quase como uma síntese química, a representação

da experiência paralisa o fluxo dos estímulos externos em um esquema ou sistema

abstrato estável com relação à efemeridade das sensações. O pensamento coletivo é o

pensamento do “agregado em sua totalidade” (Idem, Ibidem). Durkheim esforça-se no

sentido de evitar que os fenômenos coletivos sejam reduzidos a simples modificações

individuais. Simetricamente, o pensamento individual tem como suporte a síntese de

um determinado número de estados celulares ao invés de ser subordinado a uma

célula específica. Enfim, não há pensamento que se localize em uma região cerebral.

O problema central do texto é postular que a totalidade supera a fragmentação, seja na

vida psíquica seja na vida social. Logo, “[a] vida não se fraciona dessa forma: é una e,

por conseguinte, só pode ter por sede a substância viva em sua totalidade. Ela existe

no todo e não nas partes” (Idem, p.37). Desse modo, não é necessário dispersar as

21 Com ligeira tendência a vislumbrar alguma preeminência da sociologia, Durkheim a desvincula dapsicologia.

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forças elementares das quais resultam tanto os pensamentos individuais, com relação

às células cerebrais, quanto os fatos sociais, no caso dos indivíduos. O que Durkheim

vislumbra é que a sociedade deve ser explicada a partir do complexo e não do

simples, isto é, do indivíduo.

“Só resta, pois, explicar os fenômenos que se produzem no todo pelas propriedades

características do todo, o complexo pelo complexo, os fatos sociais pela sociedade, os fatos

vitais e mentais pelas combinações sui generis de que resultam. É esse o único percurso que

pode seguir a ciência” (Idem, p.37).

Há, portanto, duas equivalências em Durkheim: célula-indivíduo e vida

representativa-vida coletiva, sendo que a vida representativa e a vida coletiva

transcendem, respectivamente, a célula e o indivíduo. A ubiqüidade é a característica

mais acentuada da sociedade, pois ela não depende das partes que a compõe. A

difusão das representações coletivas e individuais acontece porque ambas não são

localizáveis nos desejos pessoais e nos tecidos nervosos: “Como não está presa a um

ponto determinado do espaço, não está sujeita a condições de existência limitadas”

(Idem, ibidem).

O estudo das representações mentais e coletivas tem como fundamento a

totalidade ou o conjunto que formam uma entidade com essência sui generis. Daí a

equivalência entre o mental e o coletivo ser respaldada pela autonomização que eles

adquirem quanto aos seus substratos nervoso e individual.

“Do ponto de vista em que nos colocamos, se chamamos de espiritualidade a propriedade

distintiva da vida representativa no indivíduo, devemos dizer, com relação à vida social, que

ela se define por uma hiperespiritualidade; entendemos com isso que os atributos da vida

psíquica aí se encontram, mas elevados a uma potência bem mais alta e de maneira a constituir

algo inteiramente novo” (Idem, p.40).

Como podemos observar, a produção sociológica é povoada pelos mesmos

seres, ao mesmo tempo, reais e construídos que encontramos nos outros coletivos.

Neste sentido, produzimos os faitiches que permitem avistar nas raízes etimológicas

das palavras fato (ciência) e feito (crença) a construção que, por ser bem feita,

possibilita aos fatos e aos espíritos alcançar a autonomia e a realidade. O que faz

Durkheim? A meu ver, uma boa fabricação que permite atingir a autonomia. A

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totalidade e a realidade dos fenômenos sociais são apreendidas por meio de uma

cadeia de “sucessões de ligeiras superações” (Latour, 2002), onde os humanos não

controlam aquilo que fazem, mas ganham autonomia frente ao organismo, a natureza

e a mente exatamente pela facticidade que suas construções adquirem. Em outras

palavras, somente inventando a sociedade e concedendo a esta uma autonomia que

não possuímos, podemos reunir as forças que nos dão autonomia para nós vivermos

sob os desígnios de outros seres: as representações, as visões de mundo, a cultura, as

tradições, etc.. Um vínculo deve substituir o outro. Os modernos nunca se

emanciparam das suas divindades: fabricam-nas ininterruptamente.

* * *

Já tendo assinalado as especificidades dos fenômenos sociais, torna-se, agora,

pertinente destacar em que proporção eles norteiam a cognição e as categorias do

pensamento. A vida psíquica não sendo mais explicada por uma natureza própria

(introspeccionismo) ou pelo elemento nervoso (epifenomenismo), deve ser analisada

na perspectiva da sociologia.

Durkheim (1981), junto com Mauss, em Algumas formas primitivas de

classificação, admitia que a “função classificatória” não surgira do simples

entendimento individual. Eles tampouco consideraram que as operações lógicas

dependeriam das consciências individuais. Procurando lançar as bases de uma

sociologia do conhecimento, Durkheim e Mauss asseveram que os “métodos do

pensamento cientifico” são “verdadeiras instituições sociais” que podem ter a sua

gênese desvendada a partir da sociologia de modo satisfatório. O objetivo central dos

autores é descrever a gênese das operações lógicas, assim, em primeiro lugar, é

preciso definir a própria noção moderna de classificação: “(...) classificar coisas é

ordená-las em grupos distintos entre si, separados por linhas de demarcação

nitidamente determinadas” (Durkheim & Mauss, 1981, p.400). Em segundo lugar,

estabelecer que as classificações primitivas ou “não-modernas” auxiliam na

compreensão dos procedimentos lógicos fundamentais para o pensamento científico.

Eles se afastam dessas nítidas divisões com o intuito de descrever a “pré-

história” dos sistemas classificatórios. Um retorno às classificações mais

“rudimentares” é o ponto de partida que orienta o esclarecimento da origem das

categorias do pensamento. Em termos genéricos, elaboram uma história da lógica que

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retorna aos sistemas de classificação mais rudimentares: aqueles das tribos

australianas, onde não se encontram purificações entre a classificação dos homens e a

classificação das coisas (Idem, p.403-405).

Fortemente concebidas em uma “confusão fundamental”, as formas

classificatórias elementares são caracterizadas pela indistinção entre humanos e não-

humanos. No “pensamento religioso”, Durkheim e Mauss verificaram as

metamorfoses e as transmissões de qualidades que perduram em um sem número de

coletivos. Nelas, os espíritos são materializados, os objetos materiais espiritualizados,

os homens identificam-se precisamente com coisa ou objeto de que é aparentado – por

exemplo, o homem e o seu totem. O primitivo experimentaria um estado de indivisão

entre os signos e os objetos, o nome e a pessoa, os lugares e os habitantes, etc.. (Idem,

p.402). Na “lógica” primitiva “(...) tudo se harmoniza rigorosamente com o princípio

estabelecido pela classificação” (Idem, p.408-409). Por exemplo, quando da ocasião

de um encontro de classe, nas mensagens enviada por um Obu, classe matrimonial da

fratria Wataru, pertencente à tribo dos Walkebura, da Queenslândia Norte-Central,

“(...) o remetente, o destinatário, o mensageiro, a madeira da mensagem, a caça designada, a

cor de que é pintada, tudo se harmoniza rigorosamente de acordo com o princípio estabelecido

pela classificação (...) Por conseguinte, o bastão de gídea, espécie de Acácia da fratria Wataru

de que fazem parte os Obu. A caça representada no bastão era a avestruz e o canguru, animais

da mesma fratria. A cor do bastão era azul, provavelmente pela mesma razão. Assim tudo se

harmonizava aqui à maneira de um teorema: o remetente, o destinatário, o objeto e a escritura

da mensagem, a madeira empregada, são todos aparentados. Todas estas noções parecem ao

primitivo serem comandadas com necessidade lógica” (Idem, Ibidem).

A indissociabilidade entre a classificação da natureza e a classificação dos humanos

produz a sinonímia entre uma classe de seres e um grupo social (Idem, p.416-417).

“É de boa-fé que um bororo imagina ser uma arara; ao menos, se não deve assumir sua forma

característica a não ser depois da morte, já a partir desta vida ele é para o animal aquilo que a

lagarta é para a borboleta (...) Os animais, os homens, os objetos inanimados foram quase

sempre concebidos na origem como mantendo entre si relações da mais perfeita identidade”

(Idem, p.402).

Embora falte ao pensamento “primitivo” ou não-moderno aquelas depurações

que circunscrevem o pensamento moderno, o fio condutor que aproxima ambos é a

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ausência de uma habilidade inata que permita espontaneamente classificar; visto que,

“[t]oda classificação implica uma ordem hierárquica da qual nem o mundo sensível

nem nossa consciência nos oferecem o modelo” (Idem, p.403). Tanto as classificações

primitivas quanto as classificações científicas possuem características essenciais

semelhantes: ambas, “(...) são sistemas de noções hierarquizadas” (Idem, p.450) cujo

modelo é disponibilizado pela sociedade. O objeto principal dos dois sistemas é, por

meio de ênfase fundamentalmente especulativa, “(...) não facilitar a ação, mas fazer

compreender, tornar inteligíveis as relações existentes entre os seres” (Idem, p.450-

451). As relações sociais são a base das relações lógicas, portanto

“(...) longe dos homens terem se dividido em classes devido a uma classificação pré-

determinada, eles classificaram as coisas porque estavam divididos em clãs (...) As primeiras

categorias lógicas foram categoriais sociais; as primeiras classes de coisas foram classes de

homens nas quais tais classes foram integradas. Foi porque os homens estavam agrupados e

viam-se em pensamento em forma de grupos que agruparam idealmente os outros seres, e as

duas maneiras de agrupamento começaram a confundir-se a ponto de se tornar indistintas”

(Idem, p.451; grifo nosso).

Durkheim e Mauss concluem que o lugar da coisa na sociedade determina o

seu lugar na natureza, assim como as divisões do conhecimento tomam de fonte as

divisões sociais. Em tempo, “(...) a hierarquia lógica não é mais do que outro aspecto

da hierarquia social e a unidade do conhecimento não é outra coisa senão a própria

unidade da coletividade, estendida ao universo” (Idem, p.452). A razão não é reduzida

à experiência individual, mas aos estados coletivos que, em última análise, constituem

uma ordem mais estável. A transcendência da sociedade reafirma as qualidades

transcendentais das representações coletivas, isto é, a manifestação concreta dos

fenômenos abstratos que são as consciências coletivas.

A sociedade, uma vez construída, continua a existir sem a nossa presença. Ao

esvaziar a consciência individual, denotando-a como algo composto por fantasias, o

pensamento crítico estabeleceu o pleno com a sociedade e seus fatos objetivos

(Latour, 2002, p.75). Deste modo, a interioridade e a exterioridade puderam ser

inventadas. A assimetria é dupla: em primeiro lugar, temos uma mente separada a

priori do mundo; em segundo lugar, essa mente é ultrapassada e dominada pela sua

realidade sui generis, a sociedade. O problema do sujeito e do objeto, segundo Latour,

provém da crítica moderna, a qual reduz às aspirações dos sujeitos à crença ingênua e

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a transparência dos objetos a um saber integral e sem mediações. Em Durkheim, a

vida interior do sujeito é naturalizada, em favor de causas objetivas que o

manipulariam. Enfim, “(...) o sujeito da interioridade serve de contrapartida para os

objetos da exterioridade” (Idem, p.77).

Como o fermento do ácido lático construído/descoberto por Pasteur, ou as

divindades que devem ser feitas pelos adeptos do candomblé, os fatos sociais

fabricados/descobertos por Durkheim requerem formas de existência que se

distanciam da divisão teórica entre construção e realidade, como apresenta a crítica

moderna. A questão é a seguinte: “(...) como é possível que a atividade humana

(handeln) produza um mundo de coisas (choses)” (Berger & Luckmann, 1973, p.34).

Afinal, “[a] sociedade possui na verdade uma facticidade objetiva. E a sociedade de

fato é construída pela atividade que expressa um significado subjetivo (...) É

precisamente o duplo caráter da sociedade em termos de facticidade e significado

subjetivo que torna sua realidade “sui generis” (...)” (Idem, ibidem). Mais uma vez,

como acontece aos “atores comuns” (Latour, 2002, p.45) dos outros coletivos, somos

superados por aquilo que nós construímos, ainda que essa construção seja dissimulada

na vida teórica através da alternância entre imanência e transcendência. Não estamos

completamente apartados dos objetos que construímos. Ao invés disso,

experimentamos um estado de indivisão com aquilo que fabricamos.

Podemos esboçar, ainda que de modo prematuro, que jamais fomos

representacionalistas porque a idéia de existir mentalmente pareceu tão descabida,

que logo um outro vínculo22 (Latour, 2000) veio a assegurar um novo mundo, “um

novo laço salvador”, para as nossas “Mentes extirpadas”, sem o qual a nossa

passagem de sujeito livre a sujeito determinado seria interrompida. Carentes de

vínculos, com os quais tivessem o exato sentido do que domina as suas ações, os

modernos não viveriam. Um mundo, como vimos acima, foi fabricado com esmero o

suficiente para garantir um terreno sólido para a mente: o mundo social. Como os Obu

e os Bororo, cujos espíritos são materializados e os objetos materiais espiritualizados,

nós “hiperespiritualizamos” a nossa própria “espiritualidade”, isto é, colocamos a

22 Vínculo é uma tradução para o termo original attachement. Em resumo, Latour (2000) delimita aspeculiaridades que o incompatibilizam aos programas sociológicos que se dividem entre as sociologiasdo indivíduo e da estrutura, pois o attachement não compartilha das saídas dialéticas que induzem aresolução das agitações entre indivíduo/liberdade e determinação/sociedade. Latour discorda dosmodernos porque ao inventar a noção de sociedade eles se emanciparam das mediações, tal depuração,em seguida, opera as formas que condicionam as ações entre interno e externo - a categoriasocialização, por exemplo, seria utilizada acentuando as distinções entre natureza e cultura.

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propriedade distintiva da vida representativa do sujeito no interior da totalidade da

vida representativa da coletividade.

Durkheim, portanto, restitui as divindades que foram destruídas no impulso

do cartesianismo. Mesmo assim, uma peculiaridade vem a pontuar essa restituição: o

“Ego transcendental” nunca mais recuperou sua conexão com a natureza e com os

não-humanos. Desfrutaria de uma natureza sui generis à sua própria existência, aquela

da sociedade e dos humanos. Esta, talvez, seja uma das diferenças marcantes dos

modernos com relação aos outros coletivos. Durkheim, menos do que emancipar a

sociedade dos indivíduos, substitui um vínculo por outro. A sociedade é um faz-fazer,

um attachement, que delimita o modo que os modernos vivem a possibilidade da ação

humana criar um mundo de coisas que os supera.

1.6 O que o mundo social separa e congela

Antes que vejamos algumas das implicações que a teoria do conhecimento

durkheimiana tem para a tradução antropológica, apontaremos algumas cesuras que a

invenção do mundo social acarreta.

A princípio, é necessário realçar algumas das características do mundo social.

Assim, recorreremos, novamente, à sociologia do conhecimento de Peter Berger e

Thomas Luckmann (1973). Os dois autores destacam que a universalidade dos termos

realidade e conhecimento, nos grupos humanos, constitui o ponto de partida para uma

análise sociológica comparativa dos processos nos quais um corpus de conhecimento

é socialmente estabelecido como realidade. A compreensão sociológica sustenta-se na

“relatividade social” dos fatos que ocorrem nas sociedades. Por exemplo, “[o] que é

“real” para um monge tibetano pode não ser “real” para um homem de negócios

americano” (Idem, p.13). A sociologia do conhecimento ocupa-se da análise da

construção social da realidade, pressupondo que o conhecimento humano

“desenvolve-se”, “transmite-se” e “mantém-se” em condições estritamente sociais.

Os humanos, ao contrário dos outros animais, não possuiriam uma relação

fixa com o seu meio ambiente23. Afinal, não têm uma distribuição geográfica restrita.

23 Geertz, por exemplo, explicita tal contraste da seguinte forma: “Os castores constróem diques, ospássaros constróem ninhos, as abelhas localizam seu alimento, os babuínos organizam grupos sociais eos ratos acasalam-se à base de formas de aprendizado que repousam predominantemente em instruçõescodificadas em seus genes e evocadas por padrões apropriados de estímulos externos – chaves físicasinseridas nas fechaduras orgânicas. Mas os homens constróem diques ou refúgios, localizam oalimento, organizam seus grupos sociais ou descobrem seus companheiros sexuais sob a direção de

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Os animais não-humanos vivem, segundo Berger e Luckmann, “(...) em mundos

fechados, cujas estruturas são pré-determinadas pelo equipamento biológico das

diversas espécies animais” (Idem, p.70). Os humanos, porém, teriam seu

desenvolvimento orgânico estabelecido por determinações sociais. A relação dos

humanos com o meio ambiente não seria um produto do seu aparato biológico. O

problema da variabilidade das formas de existência humana deve ser explicado menos

em termos biológicos do que sócio-culturais. Como recordam os dois autores, a

natureza humana não detém um substrato biológico fixo, onde estão inscritas a

pluralidade das organizações sócio-culturais. Os humanos só possuiriam uma natureza

à medida que ela constituísse estavelmente as suas formações sociais (Idem, p.72). O

ambiente social é o fator eminentemente humano que media e determina a relação

entre o eu e o organismo. Se, por um lado, o humano é um corpo enquanto tratado

como um outro organismo natural qualquer, por outro, o humano tem um corpo

quando cognitivamente usufrui de si próprio, tal “(...) como uma entidade que não é

idêntica ao seu corpo, mas que, pelo contrário, tem esse corpo ao seu dispor” (Idem,

p.74).

A ordem social é totalmente humana, sendo uma progressiva exteriorização à

“natureza das coisas” e às “leis da natureza” (Berger e Luckmann, 1973, p.76). A

exteriorização, segundo Berger e Luckmann, é uma necessidade humana fundada na

instabilidade do organismo, obrigando “(...) o homem a fornecer a si mesmo um

ambiente estável para sua conduta (...) embora nenhuma ordem social existente possa

ser derivada de dados biológicos, a necessidade da ordem social enquanto tal provém

do equipamento biológico do homem” (Idem, p.77). A objetividade da ordem social é

alcançada quando ela não permanece próxima à consciência, ou seja, no momento que

ganha autonomia em face aos indivíduos, surgindo como a natureza: “uma realidade

que é dada” (Idem, p.85). Tal objetividade é análoga à objetividade dos fenômenos

naturais, embora os últimos sejam, também, modelados pelos primeiros. Os conteúdos

do mundo social são transmissíveis porque os indivíduos defrontam-se com eles,

assim como se defrontam com o mundo natural. O mundo nesta perspectiva é produto

do pensamento e da ação dos homens. O mundo intersubjetivo, aquele em que os

homens participam em conjunto, depende, então, da intencionalidade humana. Tornar-

se humano ou construir o eu é um processo no qual um equipamento psicológico

instruções codificadas em diagramas e plantas, na tradição da caça, nos sistemas morais e nosjulgamentos estéticos: estruturas conceituais que moldam talentos amorfos” (1989, p.61-62).

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complementa a configuração das “emoções” e das “reações somáticas”. O eu é um

produto social.

Ingold aponta que a cesura entre indivíduo e sociedade, na sociologia

durkheimiana, efetua uma outra separação, respectivamente, entre sensação e

representação (2000, p.157-159). A primeira limita-se a uma ocorrência efêmera e

não-observável, ao passo que a segunda caracteriza-se pelo congelamento da

experiência sensível, em um sistema de conceitos. A consistência da representação é

um resultado da sua imersão no domínio público e social, enquanto as sensações são

privadas e individuais. As sensações consistem nas reações do organismo ao caos de

estímulos externos, que são codificados por meio das representações coletivas. As

sensações ganham sentido se representadas por meio de conceitos, dado que na

experiência vivida uma sensação não pode ser transmitida de uma consciência

individual para outra. Resumidamente, as representações coletivas ordenam as

experiências compartilhadas entre os indivíduos a partir da estabilidade de conceitos

abstratos e duradouros.

A problemática do conceito de sociedade, de acordo com M. Strathern (1996),

diz respeito à proliferação de outros conceitos, dos quais ele foi a principal matriz. Por

exemplo, o corpo e a religião representariam a sociedade; a asserção que as pessoas

em qualquer lugar representam a sociedade como uma realidade objetiva, cuja

transcendência é revelada nos rituais ou nas sanções sociais. Aliás, o primado

ontológico da vida social sobre a vida individual faz das relações entre os membros da

sociedade um “(...) fenômeno primário da vida” (Idem, p.62). Em acréscimo, é

possível falar de sociedade tanto no plural quanto no singular, caso desejamos

ressaltar tanto a presença universal desta entidade nas formas de existência humana

quanto a singularidade de cada formação social, em correlação com as outras. As

sociedades, embora possuam singularidades irredutíveis, são passíveis de

equivalências e de tipologias por meio da conexão entre as suas diferenças e

similaridades. Por exemplo, “uma regra de casamento entre doze sociedades torna-se

doze exemplos de regras de casamento” (Idem, ibidem).

Não surpreende que Strathern admita que a dicotomização entre indivíduo e

sociedade produziu um sem número de incomensurabilidades com fundo retórico e

ficcional. Segunda ela, muito mais como um constructo que reside na mente do

observador do que algo que seja observável reificadamente nas relações, o conceito de

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sociedade é exposto como uma retórica24 que, devido a um certo “esgotamento” do

paradigma modernista, não pode mais reivindicar os privilégios da teoria. Strathern,

em consonância com Leach (1996), admite que o conceito de sociedade como um

objeto abstrato de pensamento tem por princípio estabelecer relações estruturais no

interior de uma terminologia que prima pela coerência. Conceitos como exogamia,

clã, papel, status expressariam somente aquilo que o antropólogo acentua. Desse

modo, o controle sobre a significação da terminologia antropológica incide na

construção de sistemas sociais estáticos. O abuso, no entanto, é tornar esses

procedimentos, de construção e conceitualização, o objeto essencial da vida de outros

povos, estabelecendo uma tolerância (Asad, 1986) com relação ao outro, pois a

sociedade é a realidade objetiva, comum a “nós” e a “eles”, que modela

universalmente a atividade humana.

Strathern propõe uma mudança que efetue um certo esvaziamento na noção de

sociedade, que não constitua um retorno à noção de indivíduo, tornando desnecessário

o pêndulo, que faz oscilar as análises sociológicas entre os dois pólos. Pois, mesmo

que nos voltemos para o pólo indivíduo, a sociedade apresenta-se como entidade ou

força externa que suprime as ambições individuais. O que permanece constante é a

transcendência da sociedade, afinal ela estaria contra os indivíduos (Strathern, 1996,

p.63). O movimento do pêndulo da sociedade para o indivíduo, nas explicações

antropológicas, denota a forma em que o emprego do conceito de sociedade é

efetuado; podendo ora reificá-la, ora reificar o indivíduo. Ora a sociedade é

construída, ora é real. Ora o indivíduo é livre, ora é alienado.

Strathern discorda da divisão entre indivíduo (parte) e sociedade (todo),

porque as relações sociais não são extrínsecas à existência humana, ao contrário, são

intrínsecas. Nas pessoas e nas suas relações com as outras que se encontram,

potencialmente, os princípios organizativos das relações sociais. Sem as tensões do

dilema da escolha teórica entre indivíduo e sociedade, não há mais a necessidade de se

optar por um deles ou tampouco pensá-los como entidades separadas.

O realismo sociológico, de Durkheim, concede às traduções antropológicas a

possibilidade de evocar uma entidade ausente, a sociedade, que com seus padrões,

sanções, códigos e pontos de vista estaria vinculada a mesma “transmissão de

24 Retórica aqui aparece é no sentido das “ficções etnográficas” que Leach (1996) já apontara, quandodenotou as discrepâncias entre os modelos analíticos dos antropólogos e a inconsistência das relaçõesque eles estudavam. As situações práticas ultrapassariam a exatidão das traduções.

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informações” da “Ciência”, fundada em um saber realista e sem crença. Ou seja, a

tradução manteria uma integridade, tal como um “móvel imutável”, quando

percorresse espaços diferentes, fazendo isso de modo linear. Ela sinalizaria, portanto,

para uma realidade independente ou transcendente, cujo acesso seria obtido sem as

mediações da vida prática ou do terreno existencial do “aqui e agora”, onde estão

concentradas as pessoas. Ingold sintetiza, bem, a questão com a seguinte inferência:

“(...) a fabricação antropológica de sistemas culturais é um produto da representação

da diferença no discurso da homogeneidade” (1993, p.218). A consistência da

representação emerge da possibilidade dos humanos serem, de preferência,

preenchidos por um conjunto de regras e padrões sociais que conduziriam as suas

mentes.

Enfim, nós devemos, em primeiro lugar, à mente e, em segundo lugar, à

sociedade, os dualismos que criaram, seqüencialmente, a separação entre mente e

mundo, ou mente e corpo, e entre mente e sociedade. Assim, as próprias teorias da

“percepção indireta” - aquelas em que a mente separada do mundo e apoiada nas

representações coletivas ordena o caos de estímulos externos registrados através dos

sentidos – são o núcleo tradicional da teoria da cultura na antropologia (Idem, p.219).

* * *

No seu famoso artigo, Pessoa, tempo e conduta em Bali, Geertz (1989) utiliza

alguns tópicos da metodologia de Alfred Schutz, engajando-se na “sociologia

fenomenológica” (Wagner, 1979) do filósofo austríaco25. O propósito, neste

momento, é, através da abordagem de Geertz (1989), circunscrever alguns atributos,

em uma prática de pesquisa, do que se designa por abordagem representacionalista.

Em primeiro lugar, definiremos o que vem a ser a sociologia fenomenológica. Em

segundo lugar, explicitaremos a relevância que ela possui na constituição da

abordagem supracitada. Por último, retomaremos a discussão sobre a fabricação dos

objetos - como mencionamos ligeiramente acima - nos próprios termos desses dois

autores.

25 Contudo, a preocupação é mais sociológica do que fenomenológica.

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1.7 A sociologia fenomenológica

Segundo Helmut Wagner (1979), a sociologia fenomenológica é uma síntese

crítica efetuada por Schutz das obras de Edmund Husserl e Max Weber. A reflexão

fenomenológica é uma descrição do vivido, que começa por colocar “entre

parênteses” ou “suspender” os pressupostos sobre o mundo (epoche). Na

fenomenologia, através da “redução fenomenológica”, importa descrever a verdade

como sinônimo de experiência vivida, “(...) o modo originário da intencionalidade,

isto é, o momento da consciência em que a própria coisa de que se fala se dá em

carne e osso, em pessoa, à consciência” (Lyotard, s.d., p.40).

Assim, a consciência não é uma interioridade que surge de si para si própria,

mas intencionalidade entre o sujeito e o mundo em que está envolvida. Logo, o

mundo não é exterioridade, porém ambiente; e o eu não é interioridade, mas existente

(Lyotard, s.d., p.56). A experiência da consciência humana é passível de ser descrita

quando todas as suposições ontológicas acerca do mundo são suspensas. No entanto,

Schutz não segue a “filosofia da consciência” ou “fenomenologia transcendental” de

Husserl, ao invés disso enxerga nos escritos de Weber algumas soluções para os

impasses da intersubjetividade em Husserl.

O propósito da síntese crítica dos dois autores é assegurar um fundo mais

sociológico às questões relativas ao entendimento dos grupos sociais, que, de acordo

com Schutz, Husserl não resolveu. A intersubjetividade, em Schutz, provém de um

mundo compartilhado ou de um ambiente comum que não é vedado aos sujeitos em

relação. A intersubjetividade diz respeito à vivência comum. Nesse caso, se a

consciência não é algo em si, mas de alguma coisa, ela tem no ambiente o fundamento

para o estabelecimento da comunicação. O mundo intersubjetivo é compartilhado,

sendo comum a todos, não é um mundo privado (Schutz, 1979, p.159). Desse modo,

a mente está comprometida ao mundo habitado com os outros.

”A socialidade se constitui através de atos comunicativos em que o Eu se volta para os outros,

apreendendo-os como pessoas que se voltam para ele, e todas conhecem esse fato. Entretanto a

compreensão da outra pessoa ocorre apenas por meio de apresentação, sendo que todos têm

como dadas “em presença originária” apenas as suas próprias experiências. Isso leva ao fato de

que dentro do ambiente comum qualquer sujeito tem seu ambiente subjetivo particular, seu

mundo privado, originalmente dado a ele, e a ele somente” (Idem, p.161).

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A distinção entre a “apresentação”26 e a “presença originária” é o modo em

que o corpo é dado imediatamente à percepção. A apresentação constitui uma série de

imagens mentais que ordenam a suposta vida psicológica do outro, vedada à presença

originária. Logo, a compreensão, ou verstehen, em um ambiente comum “(...)

pressupõe que a mesma coisa que me é dada agora (mais precisamente, em um agora

intersubjetivo), com um determinado colorido, pode ser dada a outro do mesmo modo,

depois, no fluxo do tempo intersubjetivo, e vice-versa” (Idem, p.161-162). Com a

sociologia weberiana, Schutz confere significação às ações dos sujeitos entre si, o que

as transforma em ações sociais. A conduta humana, portanto, possui um “significado

subjetivo” que vai da forma que um sujeito significa as suas ações ao modo que a

sociologia imprime um significado às ações do sujeito observado.

“(...) [O] sociólogo tenta encontrar o que seria uma média típica do significado que um

número razoável de pessoas atribui ao mesmo tipo de ação; ou constrói um tipo extremo ou

ideal de tal conduta, mostrando suas características “puras”. Essencialmente, qualquer tipo

ideal de ação baseia-se na suposição de uma conduta estritamente racional por parte do ator

ideal típico” (Wagner, 1979, p.10).

Schutz traz para a sociologia conceitos básicos da fenomenologia, que

poderiam ser preenchidos, com algumas correções, pelas atitudes básicas da

metodologia sociológica na vida cotidiana, como veremos adiante. A sociologia

fenomenológica analisa os domínios do mundo social através dos quais o indivíduo

orienta as suas ações. Ou seja, traz à tona o sistema de relevâncias sociais que

perfazem as atenções do ator na vida cotidiana.

1.8 A consistência da representação

Distanciando-nos das diferenças que tradicionalmente acompanham a

formulação dos conceitos de cultura e de sociedade, apresentaremos esses conceitos

estando dotados de alguma equivalência. Por conseguinte, a definição de cultura que

vamos trazer à baila é aquela de Clifford Geertz: Menos do que um “(...) complexo de

padrões concretos de comportamento”, ela seria “(...) um conjunto de mecanismos de

controle” (1989, p.56). Um mecanismo que não se localiza na consciência individual,

26 Diferente da presentação, a apresentação é “[uma] experiência real que remete a outra que não édada através da percepção” (Schutz, 1979, p.310).

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mas no domínio social ou público27. “A perspectiva da cultura como “mecanismo de

controle” inicia-se com o pressuposto de que o pensamento humano é basicamente

tanto social como público – que seu ambiente natural é o pátio familiar, o mercado e a

praça da cidade” (Idem, p.57).

Concedendo ao social tal primazia, Geertz, ao reafirmar os preceitos

durkheimianos, termina por optar pela consistência da representação sob a veste da

cultura. A fluidez das experiências é subjugada à especificidade dos sistemas

simbólicos que modelam as ações humanas em uma mesma situação ordinária. Se há

alguma diferença substancial nas ações, ela é conseqüência da utilização de um

sistema conceitual distinto. A cognição cultural só é acessível no espaço da vida

coletiva. Por outro lado, a função da cultura é permitir ao indivíduo “(...) fazer uma

construção dos acontecimentos através dos quais ele vive” (Idem, p.57). A cultura, em

correspondência com a sociedade, mantém os seus símbolos em uma ordem destacada

dos indivíduos.

O pensamento, na discussão de Geertz (1989), é um ato indubitavelmente

social, fazendo da cultura um estudo pertinente, que não se perde nas tramas

indecifráveis da consciência individual e, conseqüentemente, no seu obscurantismo. A

cultura consiste em padrões de significados que dão sentido tanto às ações dos

homens como ao mundo. Sem portar tais significados, a orientação dos humanos seria

impossível. A partir dessas considerações, Geertz28 emparelha sua análise à

fenomenologia científica da cultura: “(...) um método desenvolvido para descrever e

analisar a estrutura significativa da experiência (aqui, a experiência das pessoas)

conforme ela é apreendida por membros representativos de uma sociedade particular,

num ponto de tempo particular” (1989, p.229). Geertz insiste que haja uma

necessidade orientacional, inerente à condição humana, que pode ser verificada

universalmente, porém com diversidade ímpar. O que ele pretende enfocar é o estudo

da noção de pessoa dentro da especificidade em que os padrões culturais são

construídos.

A fenomenologia de Schutz propicia a Geertz, metodologicamente,

conceptualizar a noção de pessoa de um ponto mais totalizante. Afinado às noções

schutzianas de “consócios”, “contemporâneos”, “predecessores” e “sucessores”,

27 Ver Ingold (2000, p.159).

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Geertz (1989) opera um esboço da dialética entre os conceitos de experiência-próxima

e os de experiência-distante, que ele viria a sublinhar posteriormente29. Em resumo,

Geertz (Idem, p.230-232) apreende das distinções entre as noções supracitadas, que os

“consócios” são pessoas que compartilham uma relação direta, ou seja, participam um

da biografia do outro no tempo e no espaço. Por exemplo, os amantes enquanto dura o

amor ou os participantes de um jogo. As relações entre os consócios possuem alguma

persistência. Os contemporâneos partilham apenas de uma relação comum

estabelecida a partir do tempo, não desfrutam da natureza das relações face a face, ao

contrário, difundem-se “(...) no conjunto generalizado de pressupostos formalizados

simbolicamente” (Geertz, 1989, p.230). Ancoram-se no anonimato das “relações

sociais indiretas”, formatam-se àquilo que Schutz (1979, p.223) designou por

“orientação para o eles”: não há a imediatidade das relações face a face dos consócios,

pois consiste na apreensão do comportamento do outro por tipos ideais. A predicação

é o que caracteriza a “orientação para o eles”, então se tomo um trem e confio que o

maquinista me conduzirá até o meu destino, o tipo ideal do “maquinista de trem” é a

predicação de “alguém que leva os passageiros (...) a seu destino” (Idem, p.223). Os

contemporâneos inflexivelmente se relacionam a partir da expectativa que suas ações

correspondam à tipicidade que se espera do seu comportamento. Os predecessores e

os sucessores são indivíduos que não compartilham de uma comunidade no tempo,

assim não podem interagir. Os predecessores podem ser conhecidos por aqueles que

os sucedem e até mesmo exercer alguma influência na vida destes últimos. Os

sucessores, por outro lado, não podem ser conhecidos, pois estão situados no porvir.

Empiricamente essas disjunções não são claras e tampouco estanques. Sendo

um tipo de objetificação do observador, fundada na separação entre sujeito e objeto,

tais noções não correspondem ao que é vivido concretamente pelos sujeitos. Contudo,

as objetificações são um dado universal, em Geertz, porque a generalidade dos

“símbolos significantes”, que permite apreender os componentes da vida social,

concentra-se na sua imposição sobre a compreensão das obrigações morais, dos

grupos sociais, dos companheiros, das instituições públicas, etc. (Geertz, 1989,

p.233). Em suma, assinala a dominância da representação devido a sua consistência.

28 O propósito que guia o artigo, nas palavras de Geertz, é analisar o “tom afetivo da vida balinesa” nãosendo tão psicológica quanto fenomenológica (Geertz, 1989, p.266). No entanto, a marca que seimprimiu ao artigo foi sociológica.

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Seguindo os termos schutzianos, Geertz indica que a povoação, entre os

balineses, é o solo em que se verifica a predominância dos consócios. Dentro de uma

povoação, o nome pessoal não é duplicado, logo “cada pessoa, por menos saliente que

seja o seu nível social, possui pelo menos rudimentos de uma identidade cultural

completamente única” (Idem, ibidem). Entretanto, os nomes pessoais, entre os

balineses, não são importantes publicamente ou socialmente. Vejamos o que o social

aqui acarreta, especificamente, no paralelismo entre pessoa e estrutura social.

Na elaboração da definição de pessoa, em Bali, não há demora em apontar a

constância da representação nos termos das regularidades do sistema cultural. A

individualidade tem importância residual porque, de acordo com injunções religiosas,

deve ser evitada. Ela é privada. Se um balinês morre o nome desaparece com ele, os

atributos biográficos perdem-se na efemeridade “da sua existência como ser humano”

(Idem, p.235). O que resiste à morte é um sem número de convenções com certa

durabilidade.

Quanto à terminologia de parentesco, o “sistema” balinês “(...) define os

indivíduos num idioma basicamente taxonômico, não face a face, como ocupantes de

regiões num campo social, e não como sócios numa interação social” (Idem, p.238-

239). O ponto nevrálgico da observação resulta na tomada dos “símbolos

significantes”, que a terminologia de parentesco absorve. Assim, o que ela coordena

na sua “estrutura conceptual” é a mediação conveniente para situar os indivíduos em

harmonia com os outros estratos, que sustentam a definição-pessoa, em Bali. Eis

alguns deles: política, religião e estratificação (Idem, p.239).

Em geral, a proposição que se une à noção de sistema é aquela da

imutabilidade do tempo, ou seja, a repetição da forma que caracteriza a estrutura

social. Guiando-nos por Ingold, o procedimento de Geertz criou um tipo de inversão

no ato da tradução, que “(...) substituiu a pessoa como um nexo de relações sociais

pela pessoa como portadora de um conjunto de regras cognitivas” (1993, p.218-219).

Simultaneamente, os símbolos significantes e a perenidade das representações

organizam a experiência, sublinhando o primado da consciência representativa sobre a

inconsistência das relações.

29 No artigo intitulado “Do ponto de vista dos nativos: a natureza do entendimento antropológico”,publicado em 1974, discutia-se as implicações epistemológicas da publicação dos diários deMalinowski.

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Por exemplo, a tecnonímia balinesa coaduna-se ao “status procriativo”, o

último aponta a importância da procriação e da “(...) continuidade reprodutiva, a

capacidade da comunidade se perpetuar” (Idem, p.243). As honrarias que isso implica

se reproduzem na “hierarquia social”. Tal hierarquia abrange tanto as pessoas sem

filhos como aquelas que são “bisavós de”, passando pelas que são “pai (mãe) de” e

“avô (avó) de”. O “status procriativo” é um aspecto decisivo na conformação da

identidade social, ademais institui um “estado estável” ou “sincrônico” da condição

geral da pessoa, em Bali.

Os títulos de “status” não abarcam grupos, mas o indivíduo. Tal pessoalização

“independe de quaisquer fatores estruturais sociais” (Idem, p.246). No entanto, a

finalidade dessa asserção é manter-se congruente à natureza da padronização que

delimita os títulos. Em outras palavras, o sistema que torna funcional o título de status

é estritamente de prestígio, desse modo ele abarca uma série de classificações sociais

que sinalizam para o tipo de conduta que o indivíduo terá em qualquer situação da

vida cotidiana ou “pública”. A conduta independe do laço que se desdobra na relação

em questão, pois a polidez é um gradiente tão fundamental que se mistura menos à

elegância do que a parâmetros metafísicos. Entenda-se metafísico por religioso, que

modela e reflete-se na “interação cotidiana”.

O sistema de etiqueta expressa o sistema de títulos de status.

Concomitantemente, os dois açambarcam um tipo de desigualdade humana que, antes

de ser política, econômica ou moral, é completamente religiosa. A coincidência entre

o “valor espiritual” e a “posição social” ocorre com categorizações prescritas no

“Sistema Varna”. Resumidamente, o sistema Varna possui conformidade com a

atribuição de poder e riqueza, assim como da estima. O Varna engloba os títulos e os

títulos englobam os homens individualmente. O que se fabrica, em geral, é uma

ordenação entre o mundo terreno e o religioso em uma padronização permanente

(Idem, p.247).

A compreensão metodológica da fenomenologia schutziana, da qual Geertz se

apropria, atravessa também o tipo de categoria de que uma pessoa é imbuída no

cumprimento de uma tarefa, sem que ao menos estejam em voga as singularidades ou

discrepâncias que acompanham tal realização. O assunto aqui é de função social: “os

homens são aquilo que eles fazem” porque são preenchidos fisicamente por suas

atribuições, sejam elas de carteiro, médico, motorista, etc. (Geertz, 1989, p.251). No

contexto da vida pública que, em Bali, é separada da vida privada, os indivíduos são

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consumidos pelo papel que o título implica, ao passo que os mesmos afirmam que “

(...) o papel que desempenham é a essência de sua verdadeira personalidade” (Idem,

p.252). Com efeito, o título público e o papel social que ele prescreve são alcançados

por uma ligação estrita com os títulos de “status” e a organização destes nas

categorias Varna. Logo, as idiossincrasias dos homens vinculados aos papéis se

esmaecem, dado que a vida social é um reflexo distorcido da ordem metafísica ou

religiosa.

Geertz pontua uma transcendência que inscreve uma outra: a tipologia da

identidade pessoal é concernente à transcendência das categorias culturais, que não

mudam, e a partir delas os homens assentam sua posição. Insinua, ainda, que há uma

ordem simbólica que sobrepuja a agência dos atores, se confundindo com as

propriedades sobrenaturais e imutáveis do sagrado. Não há alguma coisa como uma

presença, que pontifique um “aqui e agora” (Latour, no prelo; 2004) da religião na

vida dos balineses, mas uma ausência que acentua um domínio que traspassa os

humanos. Mais uma vez, a cultura prescreve um sistema de categorias que são tão

imutáveis quanto à hierarquia espiritual, que dá acesso aos títulos, e prescreve a sua

importância. No caso da descrição de Geertz, o regime de enunciação da “Ciência”

interpõe uma leitura da religião em um patamar tão transcendental quanto o da

representação científica.

Segundo Geertz, as relações entre consócios, predecessores e sucessores são

um âmbito importante da vida balinesa, porém essas formas de interação não são tão

tematizadas nas interações entre os balineses a ponto de tomar algum espaço na sua

abordagem cultural. À vista disso, “[o] estilo cerimonioso da interação” (Geertz,

1989, p.256) introduz fundamentalmente que a “definição-pessoa”, em Bali, tematiza

o anonimato e a abstração que, à moda dos contemporâneos, incita à impessoalização

ou à eternização, cuja gênese é encontrada em “(...) uma ordem metafísica

persistente” (Idem, ibidem).

Geertz destaca que na análise das relações mediatas dos contemporâneos há

espaço para a análise da noção de pessoa, já que entre os consócios (“o presente

evanescente”) a intermitência das relações face a face perece quando abandona esse

nível. Os predecessores (“passado determinante”) e sucessores (“futuro moldável”)

não fazem muito pelo entendimento da vida balinesa, pois envolvem um relevo

diacrônico que nela não é observável. A harmonia entre tempo e pessoa, em Bali, é

resumida, por Geertz da seguinte forma:

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“(...) uma simples contemporaneidade necessita de um presente absoluto no qual viver; um

presente absoluto só pode ser habitado por um homem que se torna contemporâneo. Em Bali,

há um cerimonial durante as interações que interrompe todo fluxo pessoalizador e emocional

(...) um correlato lógico de uma tentativa em andamento de bloquear a visão dos aspectos mais

criaturais da condição humana” (Idem, p.265).

Tal bloqueio é amparado por “convenções” e “conveniências” que se reúnem

ao redor de “uma preocupação espiritual profunda” (Idem, p.266). O “estilo

comportamental balinês” exalta a exterioridade e a aparência. Junto à arte e à religião

é uma etiqueta que agrada aos deuses, ao outro e a si mesmo. Geertz segue o curso das

tematizações sobre o comportamento, que se acrescentam às conclusões que ele faz

delas. Portanto, o Lek, erroneamente traduzido por “vergonha balinesa”, deve ser

tomado como um regulador das relações interpessoais, sendo definido como “terror

do palco”. Desdobrando-se em um medo ou nervosismo da falha em cumprir e

controlar o seu papel ao longo das relações na vida cotidiana.

O relevo da análise de Geertz, de um ponto de vista fenomenológico, é

consistente com as características formalizadoras da predicação ou representação. No

entanto, tais predicações são as objetificações dos atos performativos que as

produzem. Nesse caso, o social, irmão gêmeo da padronização e do espaço público,

corrobora o distanciamento entre os indivíduos, realçado pela etiqueta. O Lek é o

dispositivo que encerra o indesejável colapso da “performance pública” e da

“distância social”. Quando ocorre uma falha da etiqueta “(...) os homens tornam-se

consócios indesejáveis, presos no embaraço mútuo, como se tivessem penetrado

inadvertidamente na intimidade do outro. O Lek é imediatamente a consciência da

possibilidade onipresente de ocorrer tal desastre interpessoal e, como terror do palco,

uma força motivadora para evitá-lo” (Idem, p.269). O tom da descrição é

representacional porque não contempla a imediatidade existencial do Lek. Todavia, se

levássemos a sério as ponderações de Geertz, acerca da polidez balinesa, não haveria,

durante o trabalho de campo, acesso a tal esfera das vivências, pois a “intimidade”

não avançaria no terreno das relações interpessoais30.

30 Barth situa as considerações de Geertz no equívoco de quem guia suas análises a partir de um pontode vista externo, vejamos porque: “No norte de Bali, percebi logo no início do trabalho de campo,quando descobri que na comunidade de balineses mulçumanos onde eu trabalhava empregava-se atecnonímia, ou seja, os pais e avós, quando nascem os primogênitos, passam a ser chamados de pai-de-x, avô-de-x, e assim por diante. Meu plano de pesquisa naquele momento era estudar a organização

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Em um segundo momento, Geertz não dá primazia às configurações

cristalizadas das formas culturais, visto que não comportam algum significado

intrínseco ou uma propriedade lógica, como a “doçura é a propriedade do açúcar” e a

“fragilidade é a propriedade do vidro”. No plano experiencial é investida a

preeminência, que Geertz concede aos atores, de impor significados aos “objetos”,

“atos” e “processos”. Estes não têm “propriedades intrínsecas”, mas significados

impostos pelos homens que habitam o mundo social, embora, ao mesmo tempo, os

homens “(...) estão sob a direção dos símbolos [com os quais] eles percebem, sentem,

raciocinam, julgam e agem” (Idem, p.256). Há muito aqui do “paradoxo” moderno,

como já sublinhou Latour, a questão pode ser sumarizada na seguinte indagação:

“Quem fala no oráculo é o humano que articula ou o objeto-encantado?” (2002, p.17).

Em suma, os símbolos são considerados, por um lado, produtos da ação humana e, por

outro lado, condicionadores da ação humana posterior. A ênfase ou o acento de

Geertz, todavia, é sobre o efeito que as “estruturas simbólicas balinesas” exercem

sobre os sujeitos. A sensação é significativa porque é apreendida pelo pensamento,

cujo aparato se revela na durabilidade da representação. Na tradução, a correlação das

estruturas simbólicas, sintetiza-se do seguinte modo: “Uma interação cerimoniosa

apóia as percepções padronizadas dos outros; as percepções padronizadas dos outros

apóiam uma concepção de “estado estável” da sociedade; a concepção de estado

estável da sociedade apóia uma percepção taxonômica do tempo” (Idem, p.272).

social e a noção de pessoa entre os mulçumanos balineses e compará-las as dos bali-hinduístas do sultal como representados na obra de Geertz, especialmente em seu trabalho “Pessoa, tempo e conduta emBali” (Geertz 1966). Nesse trabalho, Geertz interpretava a tecnonímia como uma dentre uma série depadrões culturais através dos quais os balineses constroem a noção de pessoa (personhood) erepresentam uns aos outros como contemporâneos estereotipados, companheiros abstratos e anônimosque evitam encontros próximos entre os seus respectivos “eus” (selves) singulares e inseridos natemporalidade. Tentei discretamente sugerir essa interpretação ao pequeno círculo de pessoas que tinhacomo interlocutores em Bali. A incompreensão inicial deles rapidamente transformou-se em umasegura tentativa de explicar como as coisas realmente são. Passaram a mostrar-me como ao contráriodo que sugerira, eles empregam esse costume para lisonjear os orgulhosos pais e avós quando nasce oprimeiro filho, destacando esse evento pessoal, que naquele momento tem para essas pessoas grandeimportância. Mais tarde, usar esse nome servirá para evocar esse tempo feliz e criar um sentimento decamaradagem através da relembrança conjunta. Depois, descobri que os bali- hinduístas do nortetambém vêem tal costume desse modo. Seu significado para aqueles que o empregam e as orientaçõesque ele revela são, portanto, o oposto daquilo que Geertz descreve. Longe de tornar anônimas eestereotipadas as pessoas, trata-se de enfatizar uma realização individual de maneira a lisonjear, a atiçara vaidade do outro, e também para evocar, entre amigos íntimos, a memória compartilhada desseimportante evento da vida (...) o significado dessa prática, o que ela expressa na relação social na qual éefetivamente empregada, e a orientação que revela para nós, pessoas de fora, são de modo geral ooposto do que sugere a interpretação de Geertz, feita a partir de um ponto de vista externo (...) só sepode estar razoavelmente seguro de ter entendido corretamente um significado quando se presta muitaatenção às pistas relativas ao contexto, à práxis, à intenção comunicativa e à interpretação; só issopermite entrar experimentalmente no mundo que eles constroem” (2001, p.130-132).

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Por mais que formule uma crítica ao logicismo e ao psicologismo, a sensação,

em Geertz, não é “vivida”, mas interpretada ou apreendida, não há espaço para as

especificidades do vivido nessa análise. O relato se concentra nas predicações, em

contrapartida às ante-predicações (Merleau-Ponty, 1971; Schutz, 1979), que os

balineses experienciam, porém essa divisão é efetuada na tradução do antropólogo.

Resumidamente, os “símbolos significantes” são “(...) os veículos materiais da

percepção, da emoção e da compreensão” (Idem, p.275). O ante-predicativo ou pré-

objetivo só é vivenciado pessoalmente. Schutz delineia que toda experiência dos

contemporâneos é predicativa por natureza, portanto não passa pelo estrato pré-

predicativo das relações face a face (1979, p.219). Insistindo no lastro

representacional, Geertz fundamenta sua análise nas inferências que se desenvolvem

nesse plano, ao invés da imediatidade que caracteriza o pré-objetivo. O exame da

noção de pessoa dirige-se às “formas de pensamento observáveis”, pelas quais é

possível “(...) alcançar uma teoria cultural plausível” (Geertz, 1989, p.275). Assim,

como indicaremos abaixo, a congruência de um exame representacional molda-se à

natureza das práticas oficiais, e não oficiosas, de pesquisa.

1.9 A prática de fabricação de objetos

Um dos artifícios oficiosos de relatos como o de Geertz é não se furtar em

nenhum momento de pôr realidade e construção em sinonímia, o faitiche (Latour,

2002). Uma das primeiras considerações do seu texto, em uma das primeiras notas,

consiste em delinear o quanto seu relato é fabricado31. Como vimos acima, essa

fabricação supera seu produtor com o estabelecimento de uma ordem cultural que,

universalmente, orienta a natureza humana. Em acréscimo, observaremos abaixo, que

tanto a impessoalidade, que subjaz as interações balinesas, quanto os próprios

balineses podem ser fabricados enquanto criaturas, que obedecem as ordens do seu

criador. Entretanto, as criaturas ganham a autonomia e fazem que o criador fale

(Latour, 2002) delas como se fossem estofadas de uma natureza humana universal,

aquela propalada pelos modernos: estofadas de razão, de mente, de representação, de

cultura, de sociedade, de natureza. Assim, tanto a equivalência entre sujeito e objeto

quanto a dignidade do último são, simultaneamente, estabelecidas. Os dois

31 A citação está reproduzida ao final deste parágrafo.

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compartilham de uma mesma existência e de um mesmo mundo social. Mas, com a

maior serenidade, Schutz tratará, mais abaixo, de nos mostrar esse fazer, o qual Geertz

começa a revelar da seguinte forma:

“Na discussão subseqüente, serei forçado a esquematizar drasticamente as práticas balinesas e

a representá-las como muito mais homogêneas e bastante mais consistentes do que elas são

realmente. Particularmente as afirmativas categóricas, tanto da variedade positiva como

negativa (“todos os balineses ...” ; “nenhum balinês...”) devem ser lidas como tendo afixada a

elas a qualificação implícita “... até onde vai o meu conhecimento” (...)” (Geertz, 1989 n.6;

grifos nossos).

Como os adeptos do candomblé, Pasteur, Malinowski e Durkheim, Geertz não

supõe que se engana ou acredita ingenuamente no objeto que ele criou (Latour, 2001;

2002). De preferência, esclarece o quanto ele fabricou os, desde então, congelados

fatos sociais balineses. “Por todos os lugares onde instalam suas máquinas de destruir

fetiches, os brancos recomeçam como os negros [da Costa da Guiné], a produzir os

mesmos seres incertos, os quais não saberíamos dizer se são construídos ou

compilados, imanentes ou transcendentes” (Latour, 2002, p.25).

Seguindo a sociologia interpretativa de Schutz, é correto afirmar que os

conceitos originam-se no mundo da vida cotidiana. Schutz equilibra-se na seguinte

asserção: tanto o senso comum quanto a doxa científica debruçam-se nas operações

mentais que constroem “sínteses”, “generalizações”, “formalizações” e “idealizações

específicas”. O que difere o senso comum da ciência não é o mundo do qual provém

as suas respectivas construções mentais, mas o “nível de organização do pensamento”

(Schutz, 1979, p.268). Uma teoria que seguisse “a experiência do senso comum do

mundo social” seria apoiada

“[nos] objetos de pensamento construídos pelo senso comum dos homens que vivem sua vida

diária dentro do seu mundo social. Assim, os construtos das ciências sociais são, por assim

dizer, construtos de segundo grau, ou seja, construtos dos construtos feitos pelos atores no

cenário social, cujo comportamento o cientista social tem de observar e explicar de acordo

com as regras de procedimento da sua ciência” (Idem, p.268-269).

Tais conceitos do senso comum são denominados verstehen (compreensão),

isto é, denotam uma experiência que redunda no conhecimento do “mundo social e

cultural” (Idem, p.269). A verstehen, de acordo com Schutz, tem por primado a

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subjetividade do ator e, de modo similar, o que ele significa com a sua ação. Não se

deve reduzir a verstehen aos atos dos sujeitos, mas, em conjunto, obriga-se designá-la

a uma sociologia da compreensão que visa “(...) descobrir o que o ator significa em

sua ação, em contraste com o significado que essa ação tem para o parceiro do ator ou

para um observador neutro” (Idem, p.270). O ponto de partida da interpretação

subjetiva (ou sociologia interpretativa), inspirada em Weber, é a inclusão do “(...)

significado subjetivo que uma ação tem para o ator” (Idem, ibidem). No entanto, “[os]

construtos científicos de segundo grau, formados de acordo com as regras de

procedimento válidas para todas as ciências empíricas, são construtos objetivos

típicos, idealizados e, como tais, de tipo diferente dos desenvolvidos no primeiro grau,

o do senso comum, o qual tem de substituir”32 (Idem, p.271).

Schutz observa que o cientista social não tem lugar no mundo social, pois

“[está] numa situação científica” (Idem, p.272). Como resultado disso, a ele é vedado

entrar como consócio em qualquer relação. O registro de explicação científico “(...)

substitui sua situação biográfica enquanto ser humano no mundo” (Idem, p.273).

Peculiarmente, Schutz admite que tal distanciamento da vivência e o questionamento

da sua atitude ingênua ou natural (o mundo como coisa em si), colocando em

suspenso os seus preconceitos, faz-se com o intuito de descrever a sua essência. A

redução fenomenológica é um dos pressupostos básicos do trabalho científico.

Entretanto, o próprio Schutz a utiliza para contrapor atitude científica e atitude natural

(do senso comum), ao invés de pôr entre parênteses a atitude natural do pensamento

científico, como, por exemplo, a disjunção entre sujeito e objeto. Em face disso, “[o]

observador participante, ou o que trabalha no campo, estabelece contato com o grupo

estudado como um homem entre semelhantes, só que o sistema de relevâncias que lhe

serve de código de seleção e interpretação é determinado pela atitude científica

temporariamente deixada de lado para logo ser retomada” (Idem, ibidem). Nela é

concebível verificar a utilidade dos “padrões de interação social”, que são inventados

a fim de que sob um conjunto de condições, “definidas pelo cientista social”, os

32 Geertz faz apontamento semelhante ao evidenciar que: “Isso significa que as descrições das culturasberbere, judaica ou francesa devem ser calculadas em termos das construções que imaginamos que osberberes, os judeus ou os franceses colocam através da vida que levam, a fórmula que eles usam paradefinir o que lhes acontece. O que isso não significa é que tais descrições são elas mesmas berbere,judaica ou francesa – isto é, parte da realidade que elas descrevem ostensivamente; elas sãoantropológicas – isto é, partem de um sistema em desenvolvimento de análise científica (...)Resumindo, os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e na verdade, de segunda eterceira mão. E por definição, somente um “nativo” faz a interpretação em primeira mão: é a suacultura” (1989, p.25).

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indivíduos ajam de modo racional. “Através desse arranjo, o comportamento padrão,

tal como os chamados papéis sociais, comportamentos institucionais, etc., podem ser

estudados isoladamente” (Idem, p.276). A construção de tipos e atores fictícios

desloca-se até a margem que é útil aproxima-los à vida diária.

Em outras palavras, o tipo ideal que o cientista social inventa é o habitual, ou

seja, não se dirige à pessoa concretamente vivida em uma “interação social face a

face”, mas ao anonimato das “relações sociais indiretas” (Idem, ibidem). A cisão é a

mesma que opera na explicação dos consócios e dos contemporâneos. A criação do

tipo, segundo Schutz, tanto na observação direta quanto na indireta, fixa-se “(...) no

aspecto conceitual das formas externas de comportamento ou seqüências de ação

(...)”33 (Idem, p.284). Na experiência concreta se manifesta a relevância das relações

sociais diretas ou indiretas em um grupo. Portanto, quando Geertz (1989, p.225)

deduz que entre os balineses o cosmo dos contemporâneos é preponderante, há na

representação o movimento que se junta à certeza do “(...) pensamento humano ser

rematadamente social (...)”. O epíteto social corresponde à sincronia da ordem

simbólica, facultando-lhe obter uma superfície mais ampla e estável para a análise.

Recusando o psicologismo, cai no sociologismo que caracteriza a formulação dos

construtos sociológicos em Schutz. Posto que, entre os contemporâneos, as noções

generalizantes predominam do mesmo modo que os padrões.

Realçando esta prática explícita de fabricação de objetos, podemos supor que

jamais fomos representacionalistas. Geertz deve fazer os balineses, que deverão

permitir que ele fale através de um patamar comunicacional baseado na cultura, com a

qual ele dotou a sua criação. O attachement ao objeto (Latour, 1994b) é o que move

Geertz, simultaneamente, a apresentar o seu material com esta consistência e a não

conseguir ofuscar a fabricação dos fatos sociais balineses.

Enfim, torna-se difícil estabelecer qualquer diferenciação entre a vida nativa e

os pressupostos do antropólogo, pois a cognição cultural funciona dos dois lados. A

objetividade da predicação e da “teoria nativa” confirma a impessoalidade do mundo

dos contemporâneos, produzindo o “(...) tipo ideal de pessoa abstrato e anônimo (...)”

(Schutz, 1979, p.287). Também indica que o comportamento sendo sustentado por

33 Continuando com Schutz: “O boneco “tipo ideal de pessoa” nunca ... é um sujeito ou centro deatividade espontânea. Não tem por missão dominar o mundo e, em última análise, não tem mundoalgum. Seu destino é regulado e determinado por seu criador, o cientista social, numa harmoniapreestabelecida tão perfeitamente quanto o mundo criado por deus, como Leibnitz o imaginou. Pela

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uma ordem simbólica incide em um “contexto de significado objetivo”, em uma

“relação meios-fim”, através da qual a noção de pessoa, em Bali, é compreendida.

Pois, é no terreno da representação que Geertz inventa o triângulo cultural de forças

balinês: pessoa, tempo e conduta. Afinal, “[quanto] mais anônimo é o meu parceiro,

mais posso usar os signos objetivamente” (Idem, p.225).

A confluência das abordagens está listada nos alvos da critica à representação,

tanto entre os que a colocam limitada à produção textual quanto àqueles que buscam

um fundo mais “ontológico” para o debate das suas deficiências. Vejamos na próxima

sessão, então, se o exame de Geertz difere profundamente da prática que é sugerida

pelos relatores dos males do representacionalismo. É preciso, agora, dar voz à crítica

mais afobada.

graça de seu construtor lhe é atribuída a espécie de conhecimento de que ele precisa para desempenharo trabalho em função do qual foi trazido ao mundo científico” (1979, p.282-283).

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CAPÍTULO 2: MAIS VÍNCULOS DO QUE CESURAS

Na apresentação do modo em que ficaria dividido o primeiro capítulo,

incluímos uma nota, a de número três, onde havíamos indicado que aprofundaríamos

a sessão “A crítica cultural” mais à frente. Destarte, faremos isso neste capítulo.

Retomar, agora, os elementos da crise da representação, a partir do que nomeávamos

por “crítica pós-moderna ou pós-modernista”, será, antes de qualquer coisa, reiterar

que as nossas pretensões estão voltadas para os vínculos que nos atam ao passado.

Negamos, então, que tenha ocorrido a Revolução Copernicana que nos separou dele.

Revolução é no sentido de uma ruptura irreversível com o nosso passado, como bem

insinua a “atitude crítica” dos modernos, a qual procura denunciar ou desvelar as

“falsas aparências” da “crença ingênua” dos atores. Poderemos notar, entretanto, que

os defensores pós-modernos dessa crise são tão modernos quanto os seus

predecessores e estão, em sua prática de pesquisa, muitas vezes, até mais próximos

dos antecessores dos modernos – aqueles que foram ofuscados pela sua emergência.

Referimo-nos, aqui, aos ecos da ascensão da antropologia malinowskiana sobre a

antropologia de “gabinete” de James Frazer.

Neste capítulo, utilizaremos, no início das duas primeiras sessões, citações um

pouco extensas de Bruno Latour, pois nelas encontraremos algumas passagens que

enriquecerão a nossa argumentação. Em primeiro lugar, desdobraremos, como

informei acima, alguns aspectos da crítica cultural. Em segundo lugar, orientado por

uma ênfase nos vínculos entre as posições “pré-modernas”, “modernas” e “pós-

modernas” na antropologia, apontaremos em que intensidade as práticas pós-

modernas se atam aos dois dos seus grupos de antecessores. Por último, alongaremos

algumas das reivindicações da crítica pós-moderna ao trabalho de Thomas J. Csordas,

esboçando que tipo de limitação essa crítica pode sofrer. Além disso, esta sessão nos

permitirá tocar algumas questões, que serão examinadas no quarto capítulo.

2.1 Desdobrando a crítica cultural

“A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores ou jornalistas. Ainda

assim, todas as definições apontam, de uma forma ou de outra, para a passagem do tempo.

Quando as palavras “moderno”, “modernização” e “modernidade” aparecem, definimos por

contraste, um passado arcaico e estável. Além disso, a palavra encontra-se sempre colocada

em meio a uma polêmica, em uma briga onde há ganhadores e perdedores, os antigos e os

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modernos. “Moderno”, portanto, é duas vezes assimétrico: assinala um ruptura na passagem

regular do tempo; assinala um combate no qual há vencedores e vencidos” (Latour, 1994a,

p.15).

Se um marco cronológico é um momento privilegiado, no qual os modernos

interrompem o fluxo do tempo e se colocam a obscurecer o passado, demonstrando

sua indignação, é preciso que incluamos a “Revolução malinowskiana”, na década de

20, e a publicação póstuma dos seus diários, no ano de 1967, em um domínio onde

tais interrupções ou rupturas são sentidas. Distanciando-nos dos modernos, que tratam

de congelar o passado, ainda que no presente ele não tenha cessado de existir,

buscaremos mais os desdobramentos do que as rupturas nas considerações que

apontam para a crise da representação.

James Clifford (1998) afirma que a crise - ou fim do modernismo, em

antropologia - está associada à desagregação do colonialismo, na década de 50. O

refluxo, que tal crise acarretou, fez-se notar na elevação de teorias que se insurgiram

contra o consenso dos, até então, bem consolidados paradigmas da disciplina. A crise

da representação, em antropologia, seria uma crise sistêmica, isto é, abarcaria uma

variedade de instâncias que contornam a disciplina. Clifford, ao insistir nesse colapso,

busca afirmar que simultaneamente à crise do colonialismo, emerge não mais o objeto

que se delineara no passado, porém agentes que interpretam a si mesmos e aos outros.

A comunicação, em tal panorama, não é mais disposta entre observador e observado,

mas, sobretudo, entre sujeitos. A fragmentação política, tendo uma implicação na

própria epistemologia das ciências, faculta a Clifford conciliá-las à transformação da

“escrita” e da “representação da alteridade” (Idem, p.20).

A etnografia, sendo, por conseguinte, uma forma de tradução da experiência,

estaria submetida à prescrições de natureza política e institucional, que

transcenderiam o antropólogo. No entanto, a relutância a essas regras, que se

imporiam ao jogo, seriam expressas sob a “autoridade científica” que se desdobraria

na escrita etnográfica. “O modo predominante, e moderno, de autoridade no trabalho

de campo é assim expresso: “você está lá ... porque eu estava lá” (Idem, p.18).

Clifford sugere que o etnógrafo, ao realizar o trabalho de campo, corrobora uma

presença, embora ele pontue a presença nos parâmetros da autoridade etnográfica.

Ainda que ele reconheça que o antropólogo torne, como Malinowski, “o sistema de

troca kula (...) algo perfeitamente visual, centrado numa estrutura de percepção”

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(Idem, ibidem), e mesmo considerando os contornos sensíveis que a experiência

etnográfica embebe, Clifford converge seus esforços para a produção textual e, não

por acaso, deixa em relevo a importância do autor/ator ao invés do teórico-

pesquisador de campo. Ele considera errônea a operação textual que na constituição

da autoridade etnográfica põe às claras, como mencionamos anteriormente, a

pontuação de uma presença, “eu estava lá”, e de uma ausência, o sumiço do

antropólogo da escrita.

Um exemplo dessa filtragem, e que chama sua atenção, é o evento que

introduz a descrição de Geertz, a respeito da briga de galo balinesa e a “fábula do

contato”34 que ela conta.

“Ao representar os nuer, os trobriandeses ou os balineses como sujeitos sociais, fontes de uma

intenção cheia de significados, o etnógrafo transforma as ambigüidades e diversidades de

significados da situação de pesquisa num retrato integrado (...) O processo de pesquisa é

separado dos textos que ele gera e do mundo fictício que lhes cabe evocar. A realidade das

situações discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada. Mas os informantes –

juntamente com as notas de campo - são intermediários cruciais, são tipicamente excluídos de

etnografias legítimas” (Clifford, 1998, p.41-42).

Clifford (1986) indica que a escrita e o texto devem receber vigilância, no que

concerne à antropologia, ao invés dessa produção estar ofuscada pela observação

participante. A atenção às tramas que contornam a arquitetura do texto se insurge

contra a observação direta e a transparência da representação. Se a predominância do

realismo que Clifford explicita, nas etnografias, é ligada a uma certa objetividade, por

outro lado reivindica que as funções retóricas ou literárias destinadas à confecção do

texto merecem maior atenção. A ênfase no texto contrapõe representação e retórica,

fato e ficção, objetividade e subjetividade. A representação, nos dizeres de Clifford,

suprimiu a literatura da doxa científica; entretanto, o que haveria de mundano na

etnografia seria a escrita. A escrita etnográfica à medida que é moldada torna-se uma

34 A observação de Clifford é a seguinte: “Podemos novamente citar a briga de galos de Geertz, em queuma inicial alienação em relação aos balineses, um confuso status de “não-pessoa”, é transformada pelaatraente fábula da batida policial e sua demonstração de cumplicidade. A anedota estabelece umpressuposto de conexão, que permite ao escritor funcionar em sua análise subseqüente como umexegeta e um porta-voz onipresente e sábio. Este intérprete situa o esporte ritual como um texto nummundo contextual e brilhantemente “lê” seus significados culturais. O abrupto desaparecimento deGeertz em sua relação – a quase-invisibilidade da observação participante – é paradigmático. Aqui elefaz uso de uma convenção estabelecida para encenar a realização da autoridade etnográfica” (Clifford,1986, p.42-43).

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ficção. As verdades etnográficas são parciais porque se vinculam aos contextos

históricos específicos e às relações de poder, que ultrapassam o controle irrestrito do

antropólogo sobre o material coletado e o texto escrito (Idem, p.7). Clifford

correlaciona a representação à neutralidade da autoridade científica, pois ambas

possuiriam um fundo monológico. De preferência, diz ele, elas estão englobadas por

um cenário de códigos sociais e convenções que se prende à retórica e ao poder.

Assim, a intenção de Clifford é instituir a polifonia no interior da produção textual,

mesmo que não especifique os pormenores que caracterizam tal instituição, na

experiência concreta que a gera35. Em geral, diz ele, é preciso pluralizar a autoria do

texto. Clifford traz à baila uma teoria textual acerca da etnografia (Idem, p.20) na qual

a representação foi reduzida a um padrão estilístico próprio do realismo literário.

O retorno da diacronia na crítica “pós-antropológica” ou “pós-literária”36

oferece valor considerável às supostas determinações causais da sociedade – a crítica,

produzida por Clifford, parece substituir a imanência da autoridade pela

transcendência do processo histórico, formado por sistemas de forças impessoais

como a raça, o gênero, o poder, a identidade, etc.. Modernamente, em primeiro lugar,

destaca a inviabilidade das abordagens anteriores, por meio de uma linguagem que

privilegia a superação de uma verdade por outra mais legítima. Modernamente, em

segundo lugar, supõe que na experiência de campo estes sistemas constituam um

referente monotemático para essa prática Será que no trabalho de campo o

antropólogo reflete durante boa parte da sua visita sobre tais referentes? Parece pouco

provável. Em suma, Clifford assinala, por um lado, a diacronia com o intuito de

denunciar a sincronia, por outro lado, os sistemas de forças impessoais buscando

revelar as “verdadeiras” intenções dos antropólogos.

2.2 O “prolongamento de práticas”

““Potencialmente” o mundo moderno é uma invenção total e irreversível que rompe com o

passado, da mesma forma que “potencialmente” as Revoluções francesa ou bolchevique são as

parteiras de um novo mundo. Em “rede”, o mundo moderno, assim como as revoluções,

permite apenas prolongamentos de práticas, acelerações na circulação dos conhecimentos,

35 Não há uma fala sobre as relações concretas com o Outro, porém a preocupação se resume àdescrição de tais relações, algo muito próximo da coxia ou dos bastidores da pesquisa. Ou comopondera Rabinow (2002): Ele não fala prioritariamente sobre as relações com o Outro, pelo contrário,sua preocupação analítica central é com os tropos discursivos, as estratégias utilizadas para descrevertais relações. Clifford, diga-se de passagem, não é antropólogo.

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uma extensão das sociedades, um crescimento dos actantes, numerosos arranjos de antigas

crenças. Quando olhamos para elas “em rede” as inovações dos ocidentais permanecem

reconhecíveis e importantes, mas não há o bastante aí para se construir toda uma história, uma

história de ruptura radical, de destino fatal, de tristezas ou felicidades irreversíveis” (Latour,

1994a, p.52).

Marilyn Strathern (1990), insistindo na continuidade das idéias que podem ser

traçadas, através do tempo, nota que a denúncia não proporciona a abertura de um

fosso entre as tendências que circulam pela disciplina antropológica. Renato Rosaldo

(1986) consegue antever isso através da antropologia de Evans-Pritchard, avaliando os

desdobramentos da regularidade que um procedimento adquire nas monografias. De

fato, Strathern (1990) está se referindo às pretensas descontinuidades ou rupturas que

separam “potencialmente” o presente do passado no horizonte moderno. Longe de

estabelecer uma “atitude crítica” (Latour, 1994a), ela adota uma postura mais

“compreensiva” que procura reconsiderar o fluxo entre as idéias de Frazer e

Malinowski. Strathern aponta na direção de um viés mais “pragmático”, insistindo

que o valor investido à intransponibilidade, entre as idéias, confunde-se com “o lugar

que [elas] (...) têm em nossas práticas” (Strathern, 1990, p.84). A maneira que elas são

acentuadas em nossas perspectivas, a partir da sua eficiência. No prosseguimento da

discussão desenvolvida pela autora, buscaremos, sempre que possível, fazer menções

a Clifford.

A obsolescência da obra de Frazer emerge com a fidedignidade da observação

direta, a questionabilidade das fontes literárias e a incomensurabilidade da história

(Strathern, 1990). De acordo com Clifford, o que ocorreu foi a substituição da divisão

das tarefas do “antropólogo na metrópole” e do “man on the spot” pela junção das

mesmas na figura do “teórico-pesquisador-de-campo” (1998, p.23). Os males que a

história conjuntural transmitia foram pulverizados através dos empiricismos de

Malinowski e de Radcliffe-Brown. O funcionalismo rompe com os exageros do

evolucionismo, propostos pela sua lógica seqüencial, universal e etnocêntrica; e não

se sente atraído pelo particularismo incrustado na história conjuntural - a fragmentária

e “descontextualizada” elaboração dos dados. O trabalho de Frazer foi condenado por

ser “muito literário”, tratando eventos, comportamentos, dogmas e ritos, “fora de seu

contexto” de observação direta (Strathern, 1990, p.88).

36 As expressões são empregadas por Clifford (1986, p.5).

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71

É prudente que não deixemos de relacionar tal crítica à Revolução ou ao corte

malinowskiano. Se por um lado, baseado no primado da evolução e do método

comparativo, Frazer concebia que vestígios, ou atavismos, da “barbárie” podiam ser

detectados na “civilização”, por outro lado, Malinowski inverte o sentido da

proposição e capta a “civilização na barbárie” (Idem, p.90). A espécie da contradita

proposta, por Strathern, acena que a “superação” ou a “obsolescência” da antropologia

frazeriana, funda-se na criação de um outro contexto persuasivo, a partir de

Malinowski. Uma continuidade, no entanto, vincularia as obras de Frazer e de

Malinowski, pois os dois depararam-se com uma questão comum: conforme

Strathern, qualquer obra escrita que pretende obter um certo efeito deve ser

considerada uma obra literária (Idem, p.91)

“Como criar um conhecimento de mundos sociais diferentes se nos utilizamos dos termos

disponibilizados pelo nosso? (...) mais do que simplesmente armazenar o sabor de uma

atmosfera particular – ambos, Frazer e Malinowski, criaram descrições evocativas, coloridas

por um senso de localidade (...) [Mais] do que a facilidade para traduzir de uma visão de

mundo para outra, quando se depara com idéias e conceitos de uma cultura concebida como

outra, o antropólogo enfrenta a tarefa de apresentá-las dentro de um universo conceitual que

tenha espaço para elas, e assim deve ainda criar este universo (...)” (Idem, p.91-92).

Torna-se imprescindível notar na qualidade da escrita a “persuasão”,

apreendendo que ela “funda uma discursividade”37 (Geertz, 2002, p.32), já que aclara

um novo arranjo singular para as idéias. Uma composição interna que conduz o leitor

às minúcias da experiência daqueles que o autor descreve. Se a ficção é imanente ao

texto, a disjunção do estilo literário de Frazer e do científico de Malinowski malogra,

pois o diapasão ficcional tem um significado particular e comum ao estilo de ambos:

criar um universo discursivo ímpar.

“Preparar uma descrição requer estratégias literárias específicas, a construção de uma ficção

persuasiva: uma monografia deve ser disposta de uma tal maneira que possa veicular novas

composições de idéias. Isso se torna questão de sua própria composição interna, de

organização da análise, da seqüência que o leitor é introduzido aos conceitos, do modo que

categorias são justapostas ou dualismos invertidos” (Strathern, 1990, p.92-93).

37 A proposição é foucaultiana, Geertz a utiliza do seguinte modo: “(...) os fundadores de discursividade[foram] autores que produziram não apenas suas obras, mas que, ao produzi-las, “produziram algomais: as possibilidades e as regras de formação de outro textos”, são cruciais não só para odesenvolvimento de disciplinas intelectuais, mas para a própria natureza destas” (Geertz, 2002, p.82).

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72

O sucesso da obra de Frazer, junto aos seus contemporâneos, não aconteceu

devido a uma nova conceptualização, mas pelas analogias entre os bárbaros e os

civilizados, que fizeram os temas de seus escritos estarem aproximados dos leitores.

Como Strathern desconfia, Frazer não teve que inventar o contexto para que suas

idéias operassem, dada a familiaridade delas entre o seu público, por exemplo,

“tratando o Velho Testamento como um arquivo”. O advento da “Revolução

malinowskiana” foi a importação do distanciamento entre autor e leitor, que

simultaneamente englobou a distinção entre observador e observado.

O modernismo, portanto, reordenou a relação entre autor e leitor, visto que em

Frazer não havia tal necessidade. No entanto, antes de supor que houve uma ruptura

com a promoção da obra de Malinowski, há continuidades com a de Frazer. Uma das

mais importantes foi a forma de escrever, embora a criação de um novo contexto

permitisse que novas idéias fluíssem. Daí o trabalho de campo estendeu uma nova

composição a essas idéias, pois “trouxe vida para elas” (Idem, p.98).

A essencialidade de Malinowski, para a antropologia, é medida na

corporificação de uma nova técnica, que rejeitou a diacronia e pôs em seu lugar a

sincronia. Malinowski inventou uma forma de compor o texto que dispôs em uma

outra ordem a relação entre escritor, leitor e tema (Idem, p.97). Além disso, já

antecipava Geertz (1989), produziu um solo discursivo que através da escrita fixou a

inconsistência do “dito” em “formas pesquisáveis”. “O kula desapareceu ou foi

alterado, de qualquer modo, Os Argonautas do Pacífico Ocidental continua a existir”

(Idem, p.31). Se Frazer, ao justapor os mundos primitivo e civilizado, alcançou a

atenção do público, Malinowski efetuou outro tipo de justaposição, a do antropólogo

que adentra a cultura do “outro” - fundando a argumentação nessa contrapartida, o

“outro” foi inventado.

“(...) não foi realmente a descoberta de novas idéias como etnocentrismo e sincronia que

tornou Frazer obsoleto: foi [sobretudo] a sua implementação como um instrumento ficcional

para a construção de uma nova relação entre o antropólogo e seu tema, a qual também

solicitou uma nova relação entre o escritor e os profissionais, em seu público, que se

identificavam com ele” (Strathern, 1990, p.121).

Tal desenvolvimento se evidencia na divisão entre observador e observado,

que pôs o leitor a par da alteridade que legitima a diferença absoluta entre “Nós” e

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“Eles” em um plano e nos similariza em outro. É o próprio Malinowski que faz da

cotidianidade (Veyne, 1996), tanto um atributo comum das vidas civilizada e

selvagem, quanto um abismo entre “Nós” e “Eles”, com o intuito de explicar as idéias

e os comportamentos em seu contexto de origem (Strathern, 1990, p.101). A

abordagem de Frazer, ao contrário, produz uma continuidade entre leitor e escritor,

porque ele “exotiza o familiar”, suscita a “conjunção de barbárie e civilização” e traz

o leitor para o texto. “Leitor e escritor compartilham um texto: o que o escritor

incentiva seus leitores a compreender é a própria irregularidade do texto, sua

multivocalidade, sua conjunção de barbárie e civilização lado a lado” (Idem, p.107).

* * *

Reconstituindo a trama desses vínculos, Strathern, utilizando-se dos artifícios

inventados pelos pós-modernos38, “ensaia” que haja uma possível continuidade deles

com os “antecessores” do modernismo. Há um nexo que se esboça no tipo de livro

que eles escrevem. Dada a circunstância, segundo os pós-modernos, que seus

“predecessores” baseavam sua autoridade na observação direta dos fenômenos:

“estiveram lá”. Os pós-modernos exigem uma autoria compartilhada ou múltipla, que

deve ser delimitada nas monografias. A “vizinhança” entre Frazer e os pós-modernos

encontra-se exatamente no ato que é denunciado pelos modernos: colocar as coisas

“fora do seu contexto”, à vista disso os pós-modernos brincam com o contexto,

misturam gêneros, inserem múltiplas vozes e colapsam dualismos. “Em suma, esta

poderosa imagem modernista, a distinção entre nós e eles que criou o contexto para

posicionar o escritor em relação àqueles que ele/ela descrevia, tornou-se

completamente desacreditada” (Strathern, 1990, p.110). No mesmo impulso, a

“transparência da representação” esmaece e dá lugar às “representações de

representações”39 (Rabinow apud Strathern, Idem, p.111). O contexto foi para os

38 A alcunha, por mais que seja rejeitada por alguns dos autores que aderiram à “tendência”, aqui seancora em um sentido mais próximo ao do Latour (1994a): pós-moderno porque visa superar omoderno e porque acredita, baseado na Revolução, poder cortar definitivamente os laços com opassado.39 Uma ressalva, porém, pode ser destinada a Rabinow (2002), que apesar de considerar a representaçãoum fato social, concebe-a em uma extensão que ultrapassa a própria localidade histórica da sua origem,realçada exaustivamente na sua argumentação. Ele “sobreinterpreta” (Veyne, 1996) ou superestima arepresentação ao indicar que: “(...) antropólogos interpretativos trabalham com o problema darepresentação de representação de outros; historiadores e metacríticos da antropologia trabalham com aclassificação, canonização e explicitação da representação de representações de representações”(Rabinow, 2002, p.91).

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modernos um quadro organizado, ao passo que os seus “sucessores” justapõem-no e

brincam com ele. Entretanto, não há uma emancipação aos mediadores, sobretudo

acontece a modificação das relações que nos atam a eles. Brincar com o contexto não

é um destacamento dos vínculos, apenas exige outro (Idem, p.117).

Procurando esses vínculos concretos que Rabinow, no seminário da Escola de

Investigação Americana de Santa Fé, em 198440, sinaliza, através de Rorty, que “(...) a

partir do Século XVII o saber tornou-se interno, representacional e peremptório. A

filosofia nasceu quando um sujeito conhecedor, dotado de consciência e de seus

conteúdos representacionais, tornou-se o problema central para o pensamento, o

paradigma de todo saber” (2002, p.72). Na primazia da mente, apartada de uma

realidade exterior, o cânone cartesiano serviu, e serve, de pano de fundo a muitas

discussões que buscam explorar as nuanças das relações com o outro. Segundo

Rabinow, a representação não é um indicativo da transcendência da consciência que

se equipara à verdade, mas persiste no interior de práticas: “(...) o pensamento não é

nada mais e nada menos do que um conjunto de práticas historicamente localizáveis”

(Idem, p.72). Ao sublinhar a noção de “regime de verdade”, os “estilos históricos de

raciocínio” (Idem, p.75), introduzida por Foucault, Rabinow traça o contorno

mundano do estabelecimento das disciplinas científicas41. Tal estabelecimento, em um

campo determinado, obriga nessa “localidade” a correspondência de suas “condições

de satisfação”, a saber, objetos, sujeitos e métodos (Rabinow, 2002, p.75). Portanto,

antes de ser verdadeira ou falsa, uma suposição deve instalar-se no “verdadeiro”

produzido no interior da disciplina (Idem, p.75).

40 Seminário que deu origem à coletânea Writing culture: the poetics and politics of ethnography,publicada em 1986.41 Mesmo que faça uma excelente análise das continuidades entre a prática de pesquisa de Clifford e dealguns dos autores alvos da sua crítica, neste caso Geertz, Rabinow quer suplementar às consideraçõesde Rorty as categorias de poder e de sociedade, as quais ele acha que são negligenciadas na sua análise.Segundo Rabinow, isto é devido “(...) a sua incapacidade de perceber o saber como sendo mais do quelivre e edificante conversação”, enfim o que está ausente para ele “(...) é uma discussão de como opensamento e as práticas sociais se interconectam [pois] o pensamento não é nada mais e nada menosdo que um conjunto de práticas historicamente localizáveis” (2002, p.77). Consagrando a Foucault aprimazia das explicações sobre o pensamento, Rabinow o designa como uma “(...) prática pública esocial” (Idem, Ibidem). Foucault, ao invés de tratar a representação enquanto um problemacaracterístico da história das idéias, como faz Rorty, faz da representação um problema de ordemcultural. A denúncia de Rabinow faz o pensamento sucumbir diante das determinações causais dasociedade, retirando-as do interior do sujeito. Rorty continua, de certo modo, a ser mais produtivoporque demonstra como a epistemologia do sujeito transcendental e do objeto serve de fundamentotanto para a antropologia quanto para outras disciplinas. Rabinow, nesta parte do seu texto, ficavinculado às considerações durkheimianas, mencionadas no primeiro capítulo, acerca da naturezaindubitavelmente social da vida psíquica.

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75

* * *

Latour (1994a) explica que todo conhecimento, a princípio, é local. O que o

retira daí é a “rede”. Esta constatação é congruente, por exemplo, à rotinização, na

antropologia, a partir da experiência de Malinowski, no Arquipélago de Trobriand,

das normas pedagógicas que tiveram um efeito decisivo para o desenvolvimento da

disciplina. O efeito de verdade atingido pelas proposições malinowskianas não

congelou a disciplina – como se supõe em algumas das críticas de Clifford –, mas

criou um regime que proporcionou novas práticas e relações.

Consonantes à argumentação de Marilyn Strathern, a meu ver, são os indícios

que Latour (2002) acompanha, com o propósito de esboçar uma antropologia dos

modernos, ao estimar que uma passagem se efetiva no instante em que aquilo que nós

construímos ligeiramente nos supera e passa a nos afetar – o faitiche. Insistir que

Malinowski desencadeia uma Revolução na antropologia investe a sua obra com os

atributos do faitiche, um faz-fazer, pois constitui nas gerações seguintes um novo

prolongamento para a rede, um outro questionário (Veyne, 1981) e uma forma de

operar que supera aqueles que dela lançam mão. Antes de imobilizar, a antropologia

de Malinowski gerou um universo impensado de relações que a atitude crítica persiste

em obliterar. Ainda assim, Clifford parece denunciar com a intenção de revelar uma

verdade mais verdadeira do que as funcionalistas ou realistas.

Rabinow, por conseguinte, sublinhará as mediações que facultarão uma

compreensão preenchida com “pequenas diferenças”, através da fecundidade que

pode haver em um entendimento, à la Clifford, das “fraquezas” do interpretativismo

de Geertz e do dialogismo “parasitário” do próprio Clifford.

“Geertz (como outros antropólogos) ainda direciona seus esforços para reinventar uma ciência

antropológica com a ajuda de mediações textuais. A atividade principal continua sendo a

descrição social do Outro, embora modificada por discurso, autor e texto. O Outro para

Clifford é a representação antropológica do outro. Isto significa que Clifford tem um controle

mais firme do seu projeto, sendo simultaneamente mais parasitário. Ele pode inventar suas

questões com poucas coerções; ele precisa, no entanto, nutrir-se constantemente dos textos de

outros” (Rabinow, 2002, p.81; grifos nossos).

O ponto decisivo na acusação de Clifford é que a purificação, ancorada na

escrita antropológica, silenciou o âmbito dialógico do trabalho de campo, investindo

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ao antropólogo um controle absoluto sobre o texto. Tanto Geertz quanto Clifford, no

domínio da tese do segundo, fazem da “auto-referência” o dispositivo para a

visualização da sua autoridade. Geertz pronuncia isso na experiência, Clifford

“(...) discute muito acerca da inevitabilidade do diálogo estabelecendo sua autoridade como

“aberta”, mas seus textos não são dialógicos, porém escritos num modificado estilo indireto

livre. Eles evocam um tom de ‘eu estava lá na convenção antropológica’, enquanto mantêm

consistentemente uma distância flaubertiana. Tanto Geertz quanto Clifford falham em usar a

auto-referência como algo mais que um artifício para estabelecer sua autoridade. A reveladora

leitura que Clifford faz da briga de galos balineses como sendo uma construção panóptica

explica esta questão, mas faz a mesma omissão num outro nível. Clifford lê e classifica,

descrevendo intenções e estabelecendo um cânone; mas ele não examina sua própria escrita e

situação” (Idem, p.83-84).

Embora Clifford (1998) historicize e enumere as inovações que

proporcionaram a consolidação do estilo representacional, na antropologia, frisando

os embates que relegaram ao esquecimento alguns dos contemporâneos de

Malinowski. Ele, contudo, lança mão de uma estratégia similar quando elenca os

quatro tipos de autoridade etnográfica – experiencial, interpretativa, dialógica e

polifônica42 - cronologizando-as e, no mesmo instante, classificando-as. A intenção

que se enreda, em Clifford, é similar a que ele imputou à antropologia malinowskiana

e seus tributários, pois “[a] classificação é um movimento essencial no

estabelecimento da legitimação disciplinar ou subdisciplinar” (Rabinow, 2002, p.84).

Recordando as palavras anteriores e continuando a seguir Rabinow, as

conclusões de Clifford se incrustam no “verdadeiro” da disciplina, no seu momento

atual: a crise dos pressupostos teóricos dos modernistas. No entanto, menos do que se

emancipar das cristalizações da textualização43, ou do discurso, que elimina as

interlocuções e autonomiza o texto, o dialogismo (ou modelo do diálogo), como

demarca Clifford:

42 Por mais que ele admita, ao final do ensaio, que nenhum deles estejam obsoletos ou sejam puros, aolongo do texto, porém, ele os arranja em uma ordem de progressão que vai do mais simples, oexperiencial, ao mais complexo, o polifônico. Aqui ele é tão moderno quanto os seus acusados, poisincorpora a sua reflexão a inevitabilidade da superação de uma autoridade por outra.43 Resumidamente, a textualização consistiria na inscrição da ocorrência única de um discurso socialem seu contexto, sob a forma de um relato que pode ser visitado novamente para além das suascontingências. O etnógrafo “inscreve” o discurso social: “ele o anota”. A escrita conserva ou fixa umsignificado (Geertz, 1989, p.29).

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“(...) ressalta precisamente aqueles elementos discursivos – circunstanciais e intersubjetivos –

que Ricouer teve de excluir de seu modelo de texto. Mas se a autoridade interpretativa está

baseada na exclusão do diálogo, o reverso também é verdadeiro: uma autoridade dialógica

reprimiria o fato inescapável da textualização. Enquanto as etnografias articuladas como

encontros entre dois indivíduos podem dramatizar com sucesso o dar-e-receber intersubjetivo

do trabalho de campo e introduzem um contraponto de vozes autorais, elas permanecem

representações do diálogo” (1998, p.46).

Como podemos observar, a oposição entre os dois modos de autoridade não é muito

clara, pois “[textos] dialógicos podem ser tão encenados e controlados quanto textos

experimentais ou interpretativos” (Rabinow, 2002, p.86).

Sem dúvida, Rabinow tem o mérito de evocar a dignidade dos vínculos ao

denotar que a crise da representação não pode ser resolvida abolindo-os: “Uma vez

que o significante está livre da sua relação a um referente externo, ele não flutua livre

de qualquer referencialidade; pelo contrário, outros textos, outras imagens tornam-se

seus referentes (...) Se tentarmos eliminar a referencialidade social, outros referentes

vão ocupar o espaço vazio” (Idem, p.91). Por conseguinte, se a tematização das

condições macropolíticas e econômicas reorientaram a direção em que se convergia a

relação com o outro, não necessariamente, os ecos que isso reverberou na

antropologia alteraram essas circunstâncias “globais”. “As metareflexões sobre a crise

da representação na escrita etnográfica indicam uma mudança da concentração das

relações com outras culturas para uma preocupação não-tematizada com tradições de

representação e metatradições de metarepresentações na nossa cultura (...)” (Idem,

p.92-93). A ausência de auto-reflexão dos pós-modernos surge da própria situação que

é verificada nas instâncias do seu paradigma: “(...) o pós-modernista, como tal, está

comprometido com uma doutrina de parcialidade e fluxo na qual até mesmo coisas

como as próprias situações individuais são tão instáveis e sem identidade que não

podem servir como objetos de reflexão prolongada” (Idem, p.93).

Clifford abole a prática do seu vocabulário quando inicia suas ações do pólo

discursivo, logo mantém o divisor ativo entre o discurso e a prática. Por mais que

deseje opô-los, termina reforçando a predominância do discurso. Ele consegue

abranger as distorções entre o oficial e o oficioso, porém vê o oficioso às voltas não

com as relações, ao contrário, ratifica seu interesse nos artifícios retóricos que

ofuscam tais relações.

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“Ao invés de passar para o estudo empírico das redes, que dá sentido ao trabalho de

purificação que denuncia, o pós-modernismo rejeita qualquer trabalho empírico como sendo

ilusório e enganador. Racionalistas decepcionados, seus adeptos sentem claramente que o

modernismo terminou, mas continuam a aceitar sua forma de dividir o tempo e não podem,

portanto, recortar as épocas senão através de revoluções que sucederiam uma às outras”

(Latour, 1994a, p.50).

Como observamos na prática de pesquisa geertziana, à medida que ele situa a

descrição na ordem das consistências/transparências e por mais que procurasse

esvaziar a força dos híbridos ao reduzi-los a intermediários44, que conduzem a força

da sociedade, não era possível silenciá-los completamente. Do mesmo modo, a crítica

à prática de Geertz restitui o lugar da construção (feito) em contraposição à

objetividade (fato) e à autonomia da representação. Entretanto, ao efetuar a crítica, o

reconhecimento da “intenção autoral”, simultaneamente, é suplantado pelo contexto

histórico que transcende a agência do autor. Novamente, o ímpeto dos híbridos pode

ser contido, pois eles são intermediários dos pólos cientista (etnógrafo) e autor (ator),

ao passo que com Geertz eram relativos tanto ao indivíduo e à cultura quanto a prática

da fabricação de objetos.

Em um primeiro momento, Clifford é moderno pois recorre à imanência da

autoridade etnográfica e sinaliza para a transcendência das mudanças conjunturais,

denunciando os limites que se impõem, após a publicação dos diários ou do fim do

colonialismo, ao consenso disciplinar. Enfim, substitui uma metalinguagem por outra.

Latour sublinha que a indignação e a denúncia são atributos da auto-estima dos

modernos, sendo relativos à retórica que se faz uso nos seus “tribunais da razão”:

“Revelar sob as falsas consciências os verdadeiros cálculos ou sob os falsos cálculos

os verdadeiros interesses” (1994a, p.48). Seguir o trabalho de mediação, que cria os

híbridos, e de purificação, que os pulveriza, é o esforço que circunscreve a

impossibilidade do mundo moderno ter existido, como se propõe na sua Constituição.

44 A Constituição Moderna faculta a Geertz assinalar as inconsistências e, ao mesmo tempo, produziruma análise baseada na “transmissão de informação” (Latour, no prelo; 2004), dando um tom derealidade e imutabilidade a ela. Geertz, também, concebe os divisores que se polarizam na Constituiçãocomo coisas em si, que não precisam ser discutidas. Se as formas simbólicas traspassam os humanos ouse os últimos as fabricam, ambos esvaziam-se como meros intermediários que portam a determinaçãoda sociedade ou a ação do sujeito. “Por crer na separação total dos humanos e dos não-humanos, e porsimultaneamente anular esta separação, a Constituição tornou os modernos invencíveis. Se você oscriticar dizendo que a natureza é um mundo construído pelas mãos dos homens, irão mostrar que ela étranscendente e que eles não a tocam. Se você lhes disser que a sociedade é transcendente e que suasleis nos ultrapassam infinitamente, irão dizer que somos livres e que nosso destino está apenas emnossas mãos” (Latour, 1994a, p.42-43).

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O que caracteriza a “atitude não-moderna” é o impulso que “(...) desdobra ao invés de

desvelar, que acrescenta ao invés de amputar, que confraterniza ao invés de

denunciar” (Idem, p.51). E, além disso, vincula ao invés de emancipar (Latour, 2002).

Em um segundo momento, Clifford é “amoderno” pois da mesma maneira que

Pasteur, os candomblecistas, Malinowski e Geertz, não consegue esconder esse fazer

que está na sua prática. Horrorizado por ter quebrado uma das principais divindades

dos modernos, a neutralidade das representações, ele a substitui rapidamente não por

uma, mas por várias divindades tão potentes quanto aquela, as forças impessoais da

sociedade, do poder, da identidade, do gênero, da raça. Novamente, jamais fomos

representacionalistas porque, mesmo na metacrítica de Clifford, a possibilidade de

viver sem divindades ou vínculos pareceu desesperadora. Assim, ele não demora a

fazer outras divindades, que preenchem o vazio deixado pela destruição da “Mente

extirpada” (Latour, 2001).

Agora, veremos algumas das reivindicações da crítica pós-moderna na

monografia de Thomas J. Csordas, esboçando que tipo de limitação essa crítica pode

sofrer. Além disso, esta sessão nos permitirá tocar algumas questões, que serão

examinadas no quarto capítulo.

2.3 Complementar ou sinonimizar?

Conciliando mais do que denunciando, procuraremos ouvir os ecos da

denúncia de Clifford no trabalho não tão cliffordiano de Thomas J. Csordas. Dando

prosseguimento às palavras supracitadas e àquelas que compreenderam o primeiro dos

nossos exames, é necessário frisar que Geertz encontra-se em uma posição

intermediária na história da antropologia porque produziu sob o corte malinowskiano

e no período que sucede à publicação dos diários. Novamente, ele estará presente na

nossa discussão. Csordas incorpora ao seu trabalho as nuanças provenientes da crítica

à representação, mesmo que não se limite a denunciar a representação no plano

textual, ele se preocupa com os aspectos retóricos que, desde então, se alistaram nos

encargos da escrita etnográfica.

Por conseguinte, uma visada mais detalhada dessas questões pode ser

alcançada no prefácio da sua monografia, The sacred self: a cultural phenomenology

of charismatic healing, publicada em 1994, realizada a partir do trabalho de campo,

no movimento Renovação Carismática Católica, por aproximadamente duas décadas.

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Os Católicos Carismáticos que ele pesquisou se concentram no sudeste de New-

England, EUA. Os dados dispostos na monografia incluem-se no período da pesquisa,

que vai de 1986 a 1989.

A monografia não centra seu argumento na prática da cura Carismática em seu

contexto social e cultural, pois um inventário detalhado dos problemas que essas

práticas dissolvem, ele denota, acabam por obter resultados teóricos redundantes e,

conseqüentemente, efeitos supérfluos. Com efeito, o objetivo de Csordas (1994,

p.VIII) não é escrever sobre a cura Carismática, mas se perguntar sobre o que é a cura

carismática. Não fazendo mistério do seu propósito, Csordas está pronto para afirmar

que a cura Carismática é sobre o self. Disposto a especificar a importância do trabalho

para a disciplina antropológica, no princípio da argumentação, esforça-se em enredar

uma articulação, subjacente, entre os “conceitos de experiência-próxima” e os

“conceitos de experiência-distante” (Geertz, 1997). Afinal, descrever somente a cura

Carismática abriria um espaço de interesse apenas para o universo dos seus adeptos.

Geertz infere que é possível produzir uma interpretação do mundo da vida de um

grupo, que não fique subjugada estritamente às suas idiossincrasias, como seria o caso

de “(...) uma etnografia sobre bruxaria escrita por uma bruxa” (Idem, P.88). A

proposição consiste na dialética entre os construtos teóricos e a evidência empírica, na

medida que a cura Carismática exige que o antropólogo se mova para além da

descrição das suas características singulares e da experiência dos seus participantes. A

noção de self, segundo Csordas, preenche e junta as diferenças que percorrem esses

domínios.

O self, portanto, cria um espaço para a problemática que envolve a natureza da

tradução projetada por Csordas (1994): uma noção de self que contemple tanto o caso

etnografado quanto seja válida para outras situações etnográficas, isto é,

“transculturalmente”. O self é definido como um “processo orientacional” (Idem,

p.IX), tendo sua gênese na fenomenologia. O conceito de self alarga o espaço de

conceptualização, desde que seja possível através dele implicar na monografia os

processos do self que estão articulados à cura Carismática. São eles os seguintes:

imaginação, memória, linguagem e emoção. Com a noção de pré-objetivo, Csordas

inventa um arcabouço que não concerne, estritamente, à representação, mas à

experiência vivida. Ele delineia que a temática da sua monografia destina-se à análise

desses processos que são constitutivos do self e recobrem o próprio intuito do livro.

Estabelecendo uma ponte, Csordas acaba por entender que não é ainda conveniente se

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basear no self, visto que, no mínimo, deve estar associado ou incluso na apreciação de

temas psicoculturais que, na cura Carismática norte-americana, acarretam em

orientação. São eles: espontaneidade, controle e intimidade.

Atento às reverberações da crítica ao modernismo, Csordas não demora em

precisar que as pretensões da monografia fogem ao seu controle. Lembrando que há

para os leitores todo um campo, em aberto, onde sua autoridade permanece sob

suspeita. Não por acaso, ele atenta a algumas formas em que o texto pode ser lido.

Todavia, parece estar escrevendo para aqueles que, como ele, vêem no livro uma

contribuição ao pensamento antropológico. No mesmo movimento, Csordas acentua

sua proximidade à fenomenologia merleau-pontyiana e posiciona essa variante, com a

intenção de manifestar precisão analítica e especificidade. Finalmente, aviva que a

conceptualização do self é destinada à experiência corporal percebida como solo

existencial da cultura e do sagrado. Csordas inventa mais uma ponte para amplificar

ou facilitar o trânsito da argumentação, destacando a congruência metodológica entre

semiótica e fenomenologia – irmãs gêmeas metodológicas (Idem, p.XI). Enfim, o que

sintetiza tais ligações é a exacerbação, no texto de Csordas, do equilíbrio entre os dois

pólos que constituem as divisões, tais como: fenômeno e representação, experiência

vivida e textualização, self e temas psicoculturais.

Csordas, com uma solução dialética, move o pêndulo da sociedade em direção

ao sujeito, dilatando, portanto, o mesmo tipo de tensão moderna que caracteriza a

análise de Geertz (1989) do material balinês. O oxímoro que ele sustenta e designa

por “fenomenologia cultural”, é “(...) a preocupação em sintetizar a imediatidade da

experiência encorporada (embodied) com a multiplicidade do significado cultural em

que estamos sempre e inevitavelmente imersos”45 (Csordas, 1994, p.VII). É na

“garantia moderna”, na qual as leis da sociedade transcendem o indivíduo, que Geertz

assegura sua análise. Csordas, contudo, quebra a onipresença dessas leis, enfatizando

que os homens constroem a sociedade, para logo em seguida pôr em relevo a

transcendência da cultura, em contraposição às indeterminações do “pré-objetivo”. Os

híbridos ou quase-objetos, a par nas duas análises, estão atados sutilmente em

perspectivas que, à primeira vista, se concentram em pólos opostos. No entanto, não é

45 O conceito de cultura que Csordas utiliza tem a mesma conotação semiótica daquele que Geertz(1989, p.15) emprega: buscar o significado ordenado a partir de uma “descrição densa”, da “teia designificados”. A cultura, em todo caso, para os dois antropólogos tem uma essência indubitavelmentepública e textualizada. A cultura é “(...) esse documento sobre o qual o antropólogo se debruça”(Geertz, 1989, p.20).

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preciso aqui antecipar considerações mais detidas no conteúdo do trabalho de

Csordas, pois retomaremos esses assuntos no próximo capítulo.

Csordas, no meu entendimento, não radicaliza o colapso dos divisores, apenas

complementa dimensões afastadas em dois pólos: o da representação e o da

experiência vivida46. Se para Latour (2002), construção e realidade são sinônimos, em

Csordas, a realidade, elemento secundário do processo reflexivo, é complementar à

construção, estabelecida originariamente na experiência vivida.

Ao objetificar a polarização como algo em si, Csordas evita os mediadores e

utiliza-se dos intermediários que se encontram em um ponto eqüidistante entre as duas

extremidades (Latour, 1994a). Logo, as emoções pertencem ao reino da consciência

perceptiva, as reflexões à consciência representativa. No ponto de encontro, elas se

complementam de modo que as segundas são um desdobramento secundário das

primeiras. Tal procedimento conduz-lhe ligeiramente ao cerne da sua

conceptualização do self, como um modo de orientação no mundo. Para Csordas, os

conceitos não podem ser estudados diretamente. Afirmar que o livro é sobre o self

consiste em inferir que há uma dialogicidade entre a reflexão e o fenômeno concreto.

Como se nota, nada muito distinto das inferências de Malinowski (1976) ou daquelas

de Geertz (1989). A cura Carismática “(...) é um veículo para o discurso sobre o self,

que em si mesmo é um construto que só pode ser propriamente definido dentro de um

corpo coerente de dados empíricos” (Csordas, 1994, p.X). Csordas deseja dispor o

tema em um “círculo hermenêutico” que contenha o conceito e o dado empírico, pois

não seria convincente uma noção de self que derive da indução ou da dedução; mas,

ao contrário, localize-se entre a teoria e os dados.

Csordas leva às últimas conseqüências a tomada de partido mais equilibrada,

de maneira que ele não acede totalmente à textualização ou à pura dialogicidade. No

entanto, ele busca a conciliação entre aquilo que Clifford expõe de insatisfatório na

antropologia geertziana e estabelece ressalvas aos exageros do pós-modernismo.

Quando Csordas detecta a crise da representação, não termina por relegá-la à

produção textual, não esvazia o trabalho de campo em favor da denúncia sobre a

46 Especificamente, Csordas dedica-se a elaborar o assunto: “Instead of Barthe’s “work” and “text”, Iprefer “text” and “textuality”, and to them I would like to juxtapose the paralels figures of the “body”as a biological, material entity and “embodiment” as an indeterminate methodological field defined byperceptual experience and mode of presence and engagement in the world. Thus defined, the relationbetween textuality and embodiment as corresponding methodological fields belonging respectively tosemiotics and phenomenology completes our series of conceptual dualities. The point of elaborating a

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autoridade etnográfica. Para ele, é possível voltar às relações e inventar um outro tipo

de tradução47, visto que o momento atual torna improvável uma tradução que

privilegie a totalidade e a coerência. O círculo hermenêutico que Csordas aponta é o

“movimento circular” gerado na textualização, o qual Clifford constata que “(...) isola

e depois contextualiza um fato ou um evento em sua realidade englobante” (1998,

p.40). Clifford ainda observa que tal mudança produz o esvaziamento da experiência

em favor do texto, conduzindo à narrativização da vida cotidiana. O discurso quando é

convertido em texto autonomiza-se em face do seu contexto de enunciação. No

interpretativismo, a autoridade etnográfica é mantida, pois “[para] entender o

discurso, “você tem de ter estado lá”, na presença do sujeito” (Idem, ibidem).

Ao citar Clifford, Rabinow (2002) constata que, “nos seus próprios termos”, a

sua argumentação dificulta a oposição do dialógico ao interpretativo, pois nas

palavras do primeiro “[dizer] que uma etnografia é composta de discursos e que seus

diferentes componentes estão relacionados dialogicamente não significa dizer que sua

forma textual deva ser de um diálogo literal” (Clifford, 1998, p.47). Mesmo ciente das

indagações de Clifford, Csordas não resvala em alguma grande distinção entre

interpretação e dialogia (Rabinow, 2002), e pragmaticamente toca as conclusões de

Rabinow. Csordas engaja a noção de diálogo ao asseverar que seu texto deve ser

compreendido “(...) em termos de diálogos múltiplos, imbricados e simultâneos.

Proponho [Csordas] a vocês um modelo do nosso texto como uma fábrica de tramas

dialógicas, algumas vociferadas outras sussurradas, algumas contínuas outras

intermitentes (...) o texto registra diálogos entre mim e indivíduos Carismáticos, e

entre pacientes carismáticos e curadores” (1994, p.X-XI).

Csordas avalia, na sua prática de pesquisa, os obstáculos das proposições de

Clifford (1998) no instante em que menciona a “reflexividade” e, também, a sua

inclusão no diálogo, sinalizando a intenção autoral. Csordas intercala duas questões

que se atam às reivindicações cliffordianas, logo ele não se auto-referencia,

inicialmente, como“pesquisador”, mas se nomeia “autor.

A primeira é atinente à simultaneidade que se engendra, ao estar na narrativa

como ator e autor, ele considera que seu papel duplica: “como se entrasse no espaço

paradigm of embodiment is then not supplant textuality but to offer it a dialectical partner” (1997,p.12).47 Csordas (1997, p.11) nota que dentre as posições, listadas por Clifford (1986), que contestam arepresentação não se fez menção à fenomenologia.

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criado por uma nova tecnologia de “realidade virtual” (...) eu sou meu duplo virtual

que eu analiso como autor” (Csordas, 1994, p.XI).

A segunda, agudamente um fragmento geertziano, radicaliza a própria noção

de reflexividade, dado que se imediatamente “(...) todos os sistemas de cura buscam

dar sentido à aflição, o entendimento antropológico da cura requer uma dupla

hermenêutica. Uma hermenêutica de uma hermenêutica, uma interpretação de uma

interpretação” (Idem, ibidem). Motivado por essa ocorrência eminentemente

condicionada pela pesquisa, é que Csordas compreende haver na reflexividade, em

antropologia, um paradoxo: “Se um sistema de cura é um sistema interpretativo,

também encerra suas próprias formas de reflexividade” (Idem, ibidem). Csordas

(1994) entende que, na década de 80, muito se discutiu a respeito da reflexividade, em

antropologia. Começando pelas formas mais freqüentes: a maneira como o

antropólogo deve estar autoconsciente sobre as condições em que seus dados foram

coletados; passando pelas formas intermediárias, dar voz ao Outro; e chegando às

ocasionais: aquelas em que a cultura é criada dialogicamente com o Outro. Contudo, o

relato etnográfico raramente traça a reflexividade do Outro. Nesse caso, o

brilhantismo de Csordas se faz presente, quando, habilmente, move uma questão

central do projeto de Clifford para o abismo assimétrico que o mesmo beira. Se nas

suas lições a comunicação não se dá mais entre sujeito e objeto, porém entre sujeito e

sujeito, qual a importância, então, de uma reflexão da própria prática de pesquisa, uma

autoconsciência coerciva que se assemelha, muitas vezes, às autoflagelações do

narciso às avessas?48

Csordas afirma de maneira sub-reptícia que se leve a reflexividade do Outro às

últimas conseqüências, entretanto tal reflexividade é captada apenas no “contexto da

pesquisa”, recordando, é preciso “ter estado lá”. O pós-modernista “brinca com o

contexto”, destarte é plausível, como indagou Strathern (1990), examinar a

antropologia de Clifford sendo inventada no “gabinete”. A dimensão da experiência

existencial que o trabalho de campo desdobra não está ao alcance das objetificações

48 Tomo emprestada essa expressão a partir da personagem (o torcedor) que Nelson Rodrigues (1993[17/05/1958], p.49-50) dedica a crônica intitulada, O quadrúpede de 28 patas: “Ora, o torcedor quenega o escrete está, como o meu amigo, xingando-se a si mesmo. E por isso, porque é um narciso àsavessas, que cospe na própria imagem, eu o promovo a meu personagem da semana”. Longe de quererfazer galhofa, a crise da representação engloba questões éticas que foram aventadas após a publicaçãodos diários (Geertz, 1997, p.85-86), visto que os antropólogos tiveram a verossimilhança dos seusrelatos questionada. Ademais, a crítica à autoridade etnográfica fez daquilo que os antropólogosescreveram acerca dos outros coletivos, observados em seu contexto, algo “repugnante” (Strathern,1990, p.109).

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de Clifford. Isto o dirige à impossibilidade de simetricamente “textualizar” a

reflexividade do Outro. Essa seria uma ironia que Csordas permite avistar na

imprecisão de algumas das conclusões de Clifford. E como bem poderia dizer

Malinowski (1935), há o contexto da situação, no qual os discursos são enunciados,

que escapa irremediavelmente à metaetnografia de Clifford.

“Assim, na extensão que é possível, não devemos apenas descrever as práticas da cura

carismática no seu contexto cultural, mas compreender que um relato pertinente inclui as

interpretações Carismáticas de suas próprias práticas. A “exegese nativa” não é simplesmente

uma fonte de dados entre outras, mas um elemento de reflexividade entre especialistas

[curadores] e pacientes no sistema da cura” (Csordas, 1994, p.XI).

* * *

Um “porém” pode ser lançado quanto à validade universalizante da

reflexividade, pois isso funciona na elaboração do discurso científico, não é um

assunto que se alastre nos mesmos termos em outras localidades. No entanto, Csordas

faz “antropologia em casa” e muitos dos nativos “teorizam” acerca das suas práticas

rituais, relacionando-as às da medicina convencional e da psiquiatria. Isto é visto entre

os Carismáticos que são treinados nessas especialidades terapêuticas (Idem, p.XI-XII).

Enfim, no caso de Csordas, a especificidade do “diálogo de reflexividades” é produto

de uma antropologia “feita em casa”, o que raramente é atingido, com eficiência,

quando se trabalha em um grupo distante (Idem, p.XI-XII).

Analogamente a uma certa imposição da reflexão, ou do pensamento, que é

uma questão local ou parcial, há o risco de cometer um equívoco, e, então, “(...)

universalizar e ontologizar uma situação histórica particular” (Rabinow, 2002, p.93).

Aí estão instalados os dualismos que na conceitualização transformam o mundo dos

nativos em um conteúdo da mente, sendo apenas expresso nos moldes da

representação ou de esquemas abstratos (Ingold, 1993). Em resumo, visões de mundo

que traduzem uma realidade dada em idéia. A consciência que já estava presente antes

da constituição desse mundo, em representação, é que realiza o trabalho e está aquém

do tempo. Afinal, no sentido kantiano da análise reflexiva (Kant apud Merleau-Ponty,

1971), a distinção entre consciência e mundo não é resultado da reflexão, mas da

precedência da consciência interior e do seu poder constituinte que fabrica o real,

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obscurecendo a experiência no mundo. O sujeito desfruta de uma subjetividade

insuperável, cuja força centraliza toda a capacidade de construir, e sem a qual o

mundo não existiria. A reflexividade, como um artefato, que cria um espaço para a

conceptualização, é um elemento que contempla o mundo da vida científica.

* * *

Complementando menos do que sinonimizando, Csordas novamente retoma

Clifford e destaca o diálogo que há entre ele e seu texto, assim como entre ele e o

leitor. Aborda esse intercâmbio como autor ao contrário de pesquisador - a divisão é

aprofundada por Clifford (1986). Csordas não rejeita a tendência textualista, apenas

subtrai a sua preponderância ao manifestar sua complementaridade com a

fenomenologia. O resultado da equação é este: a relação entre experiência e os temas

psicoculturais é um diálogo. Nada muito alienígena às intenções modernas, pois

mantém a tensão interminável entre experiência e cognição. No próximo capítulo,

veremos como as complementações operam na prática de pesquisa de Csordas.

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CAPÍTULO 3: PARA “ALÉM” DA REPRESENTAÇÃO

No primeiro capítulo, analisamos o problema da representação, demonstrando

as cesuras que uma existência baseada na mente implicava. Assim, partindo dos

caçadores Cree, tomamos por princípio a potência da “crítica moderna” que, ao

oscilar entre imanência e transcendência, mobiliza um repertório no qual os sujeitos se

enganariam, ininterruptamente, acerca do domínio da sua ação e da força dos objetos

que fabricam. Quando nos referimos a Richard Rorty, pudemos notar o quanto é

decisiva a invenção da mente e, conseqüentemente, do “sujeito conhecedor”. Com

Durkheim, postulamos que a divisão entre mente e corpo, ou entre mente e mundo, foi

superada por uma segunda invenção: a da sociedade. Esta invenção deslocou a vida

psíquica das mentes isoladas para os preconceitos, sanções, códigos e pontos de vista

da sociedade. Assim, lembramos o que o domínio social separa e impõe, apontando

para as incomensurabilidades entre sensação e representação, humanidade e

animalidade, indivíduo e sociedade, sujeito e objeto. Introduzimos, com os dados de

Geertz, a consistência que a representação concede à fabricação de objetos.

No último capítulo, vimos que há muito mais vínculos do que cesuras atando a

“atitude da crítica” “pós-moderna” aos “modernos” e mesmo aos “pré-modernos”.

Fomos mais adiante e apontamos algumas extensões da crítica, tal como a de Clifford,

nas considerações de Csordas, expondo, todavia, a sua limitação. A passagem pelo

prefácio da monografia de Csordas possibilitou que notássemos o quanto ela absorve

alguns elementos centrais da “crise da representação”, seja da escrita etnográfica, seja

da “observação participante”, com a vantagem de não se afastar da experiência

fundante da disciplina: o trabalho de campo. É nele que o problema da representação

tem mais chances de ser evidenciado. Não esquecemos, igualmente, que o trabalho de

Csordas é uma tentativa de colapsar divisores ou solucionar o problema da

representação, complementando pré-objetificação e objetificação ou

metodologicamente, fenomenologia e semiótica. Ademais, adiantamos alguns dos

principais objetivos da monografia de Csordas: indicar que a cura carismática é sobre

o self.

Neste capítulo, o propósito central é, além de esmiuçar os dados de campo de

Csordas, procurando assinalar que sua prática de pesquisa concentra uma oposição

parcial ao representacionalismo, buscar em que proporção ele consegue alcançar o

êxito na sua tentativa. Em primeiro lugar, relataremos um sentido geral do que seria a

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distinção, nos escritos de Csordas, entre os corpos semiótico e fenomenológico. Em

seguida, exibiremos o que Csordas denominaria por fenomenologia cultural e, então,

introduziremos o paradigma do embodiment, paradigma que orienta a maneira que

Csordas maneja o seu material de campo. Em segundo lugar, iremos em direção à

operacionalização deste paradigma na sua prática de pesquisa, a qual ele busca situar

“além” da representação. Por último, mostraremos em que proporção o embodiment

“obscurece” menos do que esclarece o problema da representação. Recorreremos,

então, a Marilyn Strathern, Tim Ingold e Bruno Latour, posto que alguns de seus

escritos lançam questões interessantes ao cerne do paradigma do embodiment, o

conceito de cultura. Explicitaremos que o paradigma do embodiment, menos do que

colapsar dualidades, mantém a polarização do indivíduo e da sociedade como dada e

originária. Além disso, tentaremos sublinhar que atributos da prática de pesquisa de

Csordas estão em continuidade com a de Geertz.

Em termos genéricos, o capítulo repetirá com certa freqüência algumas

passagens, tais como a especificidade do meio ambiente a que Csordas se refere, as

complementaridades que ele evoca e o modo que trata os não-humanos. Isto poderá

parecer um pouco enfadonho para o leitor, todavia é uma de forma de mantê-lo

situado nas nossas considerações. Devemos alertar que a riqueza etnográfica da

monografia de Csordas está um pouco ofuscada para atender aos propósitos do nosso

trabalho. Além disso, advertimos ao leitor que menções ocasionais a Merleau-Ponty

serão feitas à medida que sejam importantes para o uso que Csordas faz da sua

filosofia. Elucidaremos, apenas, aqueles assuntos que se confundem com a nossa

proposição central: a que nós jamais fomos representacionalistas. O objetivo central

do capítulo, seguindo uma discussão do primeiro, é notar a maneira que Csordas

conceptualiza a relação entre humanos e não-humanos, por meio da sua teoria acerca

do sagrado.

3.1 A fenomenologia cultural

Michael Jackson (1983) formulou uma série de indagações ao que chama de

“linguagem da representação” que predominaria nos estudos sobre o corpo. Ele

diverge das tendências intelectualistas ou semióticas que amarram a experiência

corporal nas formas verbais e conceituais. Como já havíamos notado em Berger e

Luckmann (1973), o corpo, devido à cesura moderna entre mente e organismo, é

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atravessado por uma divisão dos seus aspectos simbólicos, estudados no interior das

humanidades, e dos seus aspectos fisiológicos, objeto de estudo das ciências

biológicas. A escolha dos elementos simbólicos, próprios da vida social, redunda, em

primeiro lugar, na exclusão dos processos somáticos e biológicos do corpo e, em

segundo lugar, no realce do mundo da cultura, evidenciando a separação com a

natureza (Jackson, 1983, p.328) O corpo possui dois níveis que delimitam tanto a sua

presença na natureza quanto sua ausência da mesma, quando referido à cultura. Em

outras palavras, se o humano é tomado como um corpo, ele nada informa sobre suas

relações sociais; se ele é apresentando tendo um corpo, ele nada nos explica sobre as

emoções e a fisiologia49.

Jackson insiste que o modelo semiótico tem predominado nos estudos

antropológicos acerca do corpo. Neles, a experiência encorporada é um simulacro da

ordem social, cujos conceitos são preservados nos modelos linguísticos. Três

problemas centrais, segundo Jackson, suprimem o corpo no representacionalismo. O

primeiro é olhar a praxis corporal enquanto o resultado secundário da praxis verbal. A

comunicação estabelecida por meio do corpo, um simples veículo físico, acaba por ser

reduzida a um signo. O segundo, em conexão com o primeiro, é fazer do corpo um

objeto relegado às operações da mente, levando à separação cartesiana entre o sujeito

conhecedor e o corpo físico. No entanto, esse sujeito conhecedor é guiado pela mente

coletiva, logo o corpo é um veículo inerte e passivo que media a relação entre o

indivíduo e a sociedade. Temos três instâncias que se determinam progressivamente:

sociedade-indivíduo-corpo. A sociedade, portanto, modela o corpo físico dos

indivíduos, começando pela suas mentes. “Nesta visão o corpo humano é

simplesmente um objeto de entendimento, ou um instrumento da mente racional, um

tipo de veículo para a expressão de racionalidade social reificada”50 (Idem, p.329). O

terceiro, e último, é uma síntese dos dois primeiros: a carência de estudos nos quais o

corpo não seja um “(...) meio neutro e ideográfico de encorporar idéias (...)”, isto é,

49 O divisor expresso nessa última frase é paralelo àquele introduzido por Ingold (1996), quesublinhamos no primeiro capítulo, sobre a distinção entre a “natureza culturalmente construída”, objetode estudo dos antropólogos, e a natureza como ela “realmente é”, fonte de conhecimento de biólogos eecologistas.50 Nas palavras de Mary Douglas, a questão é colocada assim: “O corpo social constrange a maneira emque o corpo físico é percebido. A experiência física do corpo, sempre modificada por categorias atravésdas quais é conhecida, sustenta uma visão particular da sociedade” (1970, p.65). Como observamosanteriormente, em Berger e Luckmann, o corpo físico é algo dado e universal, ao passo que o corposocial é dotado de uma multiplicidade de significados. O corpo adotaria, passivamente, pressões sociaisde diferentes formas, seja na alimentação, seja no repouso, seja nas terapias, etc..

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“(...) demonstrado a fim de que o valor simbólico das suas várias partes, no discurso

indígena, possa ser enumerado” (Idem, ibidem).

As objeções que Jackson lança ao representacionalismo conduzem ao

“empiricismo radical” (Jackson apud Csordas, 1997, p.10), no qual, insiste ele, “[a]

subjugação do corporal ao semântico é empiricamente insustentável” (Jackson, 1983,

p.328). Dessa primeira contestação, decorrem outras: pensar através do corpo

antecede e permanece além da fala; o significado não pode repousar fora das

ocorrências imediatas de uma relação, como se supõe na construção cultural do

mundo; é preciso sublinhar o “meio natural” onde a mente e o corpo têm uma

existência simétrica, isto é, “(...) na experiência do corpo como uma realidade vivida”

(Ibidem, p.329).

Csordas (1997), embora concorde com quase todas as asseverações de

Jackson, não quer elaborar uma solução para os impasses do representacionalismo que

exclua a semiótica. Ele mesmo posiciona as pretensões de Jackson, no interior do

questionamento da crise da representação, na antropologia, em um plano mais radical

ou não-representacional. Menos do que propor isto, Csordas quer retirar a

fenomenologia da sombra da semiótica, propondo a complementaridade entre as duas

disciplinas.

* * *

No primeiro capítulo, indicamos o exercício que Geertz empreendeu ao

aplicar, no seu material balinês sobre a pessoa, o tempo e a conduta, a “sociologia

fenomenológica” de Alfred Schutz. Observamos que a obra de Schutz lhe facultava

produzir uma tradução que abrangia mais as homogeneidades do que as

inconsistências das relações entre os balineses. No segundo capítulo, esboçamos o que

a crítica cultural ou pós-moderna denominaria pelo representacionalismo de Geertz.

Além disso, verificamos algumas das implicações dessa crítica no prefácio da

monografia de Csordas, The Sacred Self: a cultural phenomenology of charismatic

healing. Katz e Csordas (2003) pontuam que a “fenomenologia cultural” surge no

contexto da crise da representação ou da etnografia inserida no período modernista da

disciplina.

Anteriormente, apresentávamos esta primeira definição da fenomenologia

cultural: “(...) a preocupação em sintetizar a imediatidade da experiência encorporada

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(embodied) com a multiplicidade do significado cultural em que estamos sempre e

inevitavelmente imersos” (Csordas, 1994, p.VII; grifos nossos). O paradigma51 do

embodiment é a síntese destas duas extremidades separadas radicalmente na “forma de

vida teórica” do universo moderno: os processos de subjetivação (self) e de

objetificação (pessoa). O self, por exemplo, não é uma coisa em si, porém um modo

de orientação no mundo que Csordas, metodologicamente, opõe à pessoa. Se o self é

parte da indeterminação da experiência, a pessoa surge como algo dado e já

objetivado.

Presentemente, acrescentamos que a fenomenologia cultural

“(...) é caracterizada por reconhecer a epoche no momento da alteridade, não apenas como

alteridade no sentido do encontro com outras pessoas, mas como alteridade no sentido da

diferença cultural ao que é alienígena, estranho e fantástico. É, também, caracterizada por uma

ênfase sobre o embodiment como o solo comum para o reconhecimento da humanidade do

outro e da imeditidade da intersubjetividade” (Katz & Csordas, 2003, p.278).

Como lembra Csordas (1990), atentar para o paradigma do embodiment é

considerar que o corpo é o solo existencial da experiência mundana ao invés de um

objeto importante para o estudo antropológico passivo às forças externas da vida

social; assim “(...) a abordagem do embodiment começa do postulado metodológico

que o corpo não é um objeto para ser estudado em relação à cultura, mas é para ser

considerado como o sujeito da cultura, ou em outras palavras a base existencial da

cultura” (Csordas, 1990, p.5) Baseando-se na “fenomenologia” de Merleau-Ponty,

com a noção de pré-objetivo, e na “teoria da prática” de Bourdieu, com o conceito

habitus, Csordas elenca como ponto central do paradigma: a dissolução de dualismos,

como, por exemplo, entre mente e corpo ou sujeito e objeto. Em geral, Csordas (1990;

1994; 2002) insiste que Merleau-Ponty e Bourdieu, em suas respectivas teorias,

colapsaram dualismos: o filósofo francês questiona àqueles que dizem respeito à

divisão entre sujeito e objeto, enquanto Bourdieu solapa as distinções entre estrutura e

prática.

“Desse modo, para Merleau-Ponty, o corpo é um “cenário em relação ao mundo”, e a

consciência é o próprio corpo projetando a si mesmo no mundo; para Bourdieu, o corpo

socialmente informado é o “princípio gerador e unificador de todas as práticas”, e a consciência

51 Csordas define paradigma da seguinte forma: “(...) uma consistente perspectiva metodológica que

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é uma forma cálculo estratégico fundido com um sistema de potencialidades objetivas”

(Csordas, 1990, p.8).

Csordas lança mão dos questionamentos do filósofo francês aos postulados

empiricistas e intelectualistas relativos ao modo que a consciência constitui os seus

objetos. No empiricismo, a percepção é originada na objetividade de um mundo de

impressões e de estímulos em si. No intelectualismo, a percepção sustenta-se no poder

absoluto da consciência em transformar o mundo em idéia ou representação. O

equívoco das duas posições é tratar, por um lado, o mundo como algo dado e, por

outro lado, a percepção ora como resultado de um mundo de estímulos externos, ora

como capacidade intrínseca da consciência. Merleau-Ponty (1971) diz que a

experiência desdobrada, desde sempre no mundo, é indeterminada, assinalando, ainda,

que antes da percepção não há objetos, pois a mesma termina em objetos. Os “(...)

objetos são o produto secundário do pensamento reflexivo, pois no nível da percepção

não temos objetos, estamos simplesmente no mundo” (Csordas, 1990, p.9). Se isto está

correto, a distinção entre sujeito e objeto é, também, um momento secundário da

reflexão, pois a percepção começa no corpo e termina em objetos. “No silêncio da

consciência originária, vê-se aparecer não somente o que querem dizer as palavras,

mas ainda o que querem dizer as coisas, o núcleo da significação primária em torno do

qual se organizam os atos de denominação e expressão” (Merleau-Ponty, 1971, p.13).

A fenomenologia, segundo Merleau-Ponty, é a descrição da nossa experiência

tal como ela é ou, conforme Csordas, “(...) é a ciência descritiva do começo existencial

e não dos produtos culturais já constituídos” (1994, p.8). Merleau-Ponty demarca que

o momento privilegiado da fenomenologia é captar o momento de transcendência em

que a percepção começa, o qual não pode ser completamente absorvido pela

objetificação. Nesse momento de transcendência, “(...) a percepção constitui e é

constituída pela cultura” (Csordas, 1990, p.9). A essência do mundo não é o que se

verifica no pensamento enquanto lei, mas no pré-objetivo. Apoiando-se em Merleau-

Ponty, ele retira a percepção da esfera cognitiva, da oposição entre mente e corpo, para

situá-la na pré-objetividade. Contrariando o dualismo cartesiano, Csordas entende que

a percepção do mundo não é indireta, não ocorre através da construção desse mundo

em representação – a partir de uma faculdade da consciência –, mas pela percepção

direta, na orientação em seu interior. Na experiência do ser-no-mundo, o corpo não é

encoraja a reanálise de dados existentes e sugere novas questões para a pesquisa empírica” (1990, p.5).

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um objeto para nós, mas a própria consciência se projetando no mundo (Csordas,

1994, p.7).

Csordas reitera, no entanto, que careceram a Merleau-Ponty as conexões entre

a percepção e um “mundo cultural” que se confundiriam com o processo de

objetificação: a passagem do ser-no-mundo à representação. Em todo caso, o filósofo

francês, afirmou que

“[é] tão falso nos colocarmos na sociedade como um objeto no meio de outros objetos, como

colocarmos a sociedade em nós mesmos como objeto de pensamento; e, dos dois lados, o erro

consiste em tratar o social como um objeto. É necessário que retornemos ao social, com o qual

estamos em contato devido ao único fato de existirmos, e que temos unido a nós antes de

qualquer objetivação” (Merleau-Ponty, 1971, p.365).

Passagens como essas possibilitam que Csordas junte as duas metades

metodológicas do paradigma do embodiment, pois o pré-objetivo não é um pré-

cultural, mas um pré-abstrato. Procurando um viés que não termine na esfera

microanalítica e individual, como se predica à fenomenologia, Csordas traz à baila a

noção bourdieuana de habitus 52.

O eixo complementar do paradigma é a noção de habitus, pois ela preenche o

hiato merleau-pontyiano relativo a uma relação entre a percepção e as análises

culturais e históricas. Csordas (2002) afirma que a definição da dialética entre

consciência perceptiva e prática coletiva é um modo crucial para a elaboração do

embodiment como um paradigma. O habitus opera no domínio da prática, onde o

corpo é ao mesmo tempo ferramenta, agente e objeto. O conceito de habitus define um

sistema de disposições duradouras, tal sistema constitui uma “(...) inconsciente

orquestração de práticas” (Idem, ibidem), em que o corpo “socialmente informado” é o

princípio gerador e unificador de práticas e de representações. Enfim, Csordas lança

mão do conceito de habitus com o intuito de desvendar as condições de satisfação de

uma determinada ação.

O habitus recobre um conjunto determinado de práticas que estão em

consonância com as condições objetivas da satisfação de um estilo de vida. Assim, o

52 O conceito de habitus, desenvolvido por Bourdieu, introduzido por Mauss, no seminal artigo sobre as“técnicas corporais”, prefigurou a maneira que o paradigma do embodiment media as dualidades entremente e corpo, signo e significado. O corpo, simultaneamente, é um objeto em que se inscrevem astécnicas corporais padronizadas e um instrumento que origina subjetivamente essas técnicas (Csordas,1990, p.11).

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corpo sintetiza a ação dos sujeitos e essas condições. O habitus une as “condições

objetivas da vida” e a “totalidade das aspirações e práticas completamente compatíveis

com essas aspirações” (Idem, ibidem). O “corpo socialmente informado” preenche as

lacunas das formulações de Merleau-Ponty. Nas palavras de Csordas (1994, p.9), se a

partir de Merleau-Ponty o objetivo é retornar ao momento de transcendência que

caracteriza o estudo da percepção, indo dos objetos para os processos de objetificação,

com Bourdieu a intenção, por meio da noção de habitus, consiste em permitir tratar o

fato social não como um opus operatum, porém analisar o seu modus operandi. Desse

modo, o habitus sendo um “sistema de disposições duradouras”, é a noção que permite

a síntese entre comportamento e meio ambiente, um meio ambiente social e cultural,

onde as práticas são efetuadas.

A convergência entre as abordagens de Merleau-Ponty e Bourdieu, no

paradigma elaborado por Csordas, vai em direção à simultaneidade entre a experiência

vivida e a sua imersão no fluxo das disposições inculcadas no aprendizado. A

equiparação entre o pré-objetivo e o habitus está situada na intersecção entre a

improvisação e a imitação. A primeira é a indeterminação da experiência, a segunda é

a reprodução das condições que iniciam o aprendizado. Ambas são pré-conscientes e

possuem uma relação dialógica incrustada no corpo. Enfim, a fenomenologia cultural

sintetiza a imediatidade da experiência pré-objetiva com os significados culturais do

habitus, que inevitavelmente carregamos.

3.2 Para “além” da representação

Precisamos, agora, dar prosseguimento àquelas discussões do prefácio da

monografia de Csordas entre os católicos carismáticos. Acima discutimos, ainda que

teoréticamente, as complementações que ele utiliza para dar forma ao paradigma do

embodiment. Vamos, nesse momento, dar maior atenção aos seus dados de campo,

analisando a operacionalização do paradigma em sua prática de pesquisa. Quando

dizemos “para além da representação” nos referimos, como vimos na última sessão,

ao momento de transcendência em que a percepção não pode ser absorvida pela

reflexão. Nos referimos à distinção entre representação e ser-no-mundo que

“(...) é metodologicamente crucial, pois é a diferença entre entender a cultura em termos de

abstração objetificada e de imediatidade existencial. A representação é fundamentalmente

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nominal e, portanto, nós podemos falar de uma “representação”. O ser-no-mundo é

fundamentalmente condicional, e portanto nós devemos falar de “existência” e “experiência

vivida”” (Csordas, 1997, p.10).

O que Csordas propõe: uma alternativa mais complementar do que não-

representacional. O ser-no-mundo captura a imediatidade que não é o momento

sincrônico do “presente etnográfico”, porém o envolvimento e a presença sensorial

temporalmente situados (Idem, ibidem).

* * *

A Renovação Carismática Católica53 é um movimento no interior da Igreja

Católica Romana que incorpora ao catolicismo práticas pentecostais. O movimento

iniciou sua trajetória simultaneamente ao Segundo Concílio do Vaticano (1962-1965).

As deliberações do Concílio arranjaram as condições favoráveis para a constituição do

movimento. Primeiro a possibilidade teórica de “carismas”, ou “dádivas espirituais”,

que permitiu a incorporação de fenômenos pentecostais; segundo a reinterpretação

dos sacramentos tornou a confissão, o sacramento da reconciliação, ao invés da culpa,

e a extrema-unção, o sacramento do doente, ao invés do morto, abrindo caminho para

a cura carismática; terceiro a introdução da linguagem vernácula, no lugar do latim,

configurou as preces comunitárias carismáticas. De 1967 a 1970, o Movimento foi um

ajuntamento de pequenos grupos personalísticos que interagiam em redes

frouxamente organizadas. De 1970 a 1975, a Renovação passou por uma rápida

institucionalização, consolidando um estilo de vida. Nos anos 80, o movimento

tornou-se, entre outras coisas, conservador no catolicismo e permanece com uma

hierarquia estável (Csordas, 1994, p.16).

A “identidade” de um católico carismático é constituída por meio de uma

relação particular com a divindade. O carismatismo oferece um “relacionamento

pessoal” com Jesus, acesso direto ao poder divino e inspiração através de “carismas” e

“dádivas espirituais”. Csordas acrescenta que esse tipo de objetificação é crucial para

o self sagrado, visto que a relação particularizada com a divindade é animada pela

orientação no mundo, um processo direcionado para a descoberta “de quem eu sou em

53 Seguiremos até o final desta sessão com a monografia de Csordas e com o seu artigo sobre oparadigma do embodiment, pois os textos estão interligados.

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Cristo”. A “identidade carismática” se entrelaça à abordagem reivindicada no

paradigma do embodiment, porque é voltada para o self ou para a experiência vivida.

Entretanto, essa experiência acontece no meio psicocultural norte-americano, decisivo

para o processo de auto-objetificação, orientação e encorporação do self sagrado.

Logo, ela não é pré-cultural, mas pré-abstrata. Esse meio ambiente psicocultural é

preenchido por três temas fundamentais: “espontaneidade”, “controle” e “intimidade”.

A fenomenologia destas objetificações propicia um método que mantém

Csordas atencioso à experiência do paciente na cura carismática. Assim, ele é

cuidadoso em ressaltar que, diferentemente das objetificações deste meio, os

processos constitutivos do self sagrado são a “imaginação”, a “memória”, a

“linguagem” e a “emoção”. Essa diferenciação entre a tematização e a encorporação

do self sagrado concerne à fenomenologia cultural, pois é apenas na sua imersão no

mundo que o conteúdo representacional dos temas possui algum sentido. Csordas

acentua estas tematizações com a finalidade de atentar para a psicologia cultural dos

norte-americanos.

Digamos que, no entender de Csordas, os americanos buscam realçar a

“espontaneidade” nas relações interpessoais, que no caso dos carismáticos é também

estendida à experiência espiritual. O tema do “controle”, entre os americanos,

confunde-se com as metáforas de autocontrole sobre a vida e com a libertação das

pressões. Entre os carismáticos o controle pode ser tematizado positiva ou

negativamente. Positivamente, perder o controle é sucumbir à vontade de Deus.

Negativamente, todavia, é ser alvo da recorrência de um comportamento ou emoções

negativas que revelam a presença de um mau espírito e da conseqüente perda do

controle. A “intimidade”, no caso dos americanos, pode ser resumida nas noções de

“amor romântico” e “comunicação íntima”. Entre os carismáticos, a espontaneidade

revela a motivação dos crentes para as inter-relações com a comunidade, através da

relação íntima com a divindade. Csordas faz uma fenomenologia destes temas, porque

o self sagrado carismático é elaborado em correlação a eles (Idem, p.18-20).

A cura carismática, por um lado, “(...) é um veículo para o discurso sobre o

self, que em si mesmo é um construto que só pode ser propriamente definido dentro

de um corpo coerente de dados empíricos” (Csordas, 1994, p.X). Por outro lado, “(...)

é um envolvimento com problemas básicos da vida, definidos em um meio religioso e

cultural particulares” (Idem, p.35). Do corpo coerente de dados empíricos, Csordas

informa ao leitor sobre a eficácia do “processo terapêutico” da cura religiosa, como

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ela trabalha. Ele expõe algumas hipóteses sobre este funcionamento, procurando

indicar o quão elas são insatisfatórias, devido a falta de especificidade analítica.

Em primeiro lugar, a hipótese “estrutural” postula uma correspondência ou

homologia entre os atos simbólicos e objetos, metáforas, ou estrutura cosmológica,

por um lado, e as emoções, comportamento e pensamentos do afligido, por outro. O

caso paradigmático desta hipótese é aquele de Lévi-Strauss, do Ritual Cuna, que

embora saliente a homologia, não estabelece porque ou se a homologia funciona, ou

tem um efeito. Em segundo lugar, a hipótese “clínica” conduz à analogia entre o

curador religioso e o doutor tratando um paciente com a expectativa de um resultado

definitivo. A hipótese “clínica” tenderia a ofuscar as especificidades que a cura

religiosa possuiria. Em terceiro lugar, a hipótese do “suporte social” obscureceria a

eficácia da cura, reduzindo-a, como no caso dos Ndembu, etnografados por Victor

Turner, ao fortalecimento da solidariedade da comunidade e à resolução de conflitos

interpessoais ou identitários. Nesta hipótese, a eficácia não é bem definida,

prevalecendo uma explicação funcionalista da cura. Por último, a hipótese

“persuasiva” concentra-se na fé que o afligido cultiva quando é persuadido pelos

artifícios retóricos de um curador, acarretando na mudança do mundo do paciente.

Nesta hipótese, a cura ritual não é uma repetição litúrgica, “(...) mas ação social

intencional direcionada para a qualidade e o conteúdo da experiência” (Idem, p.3).

Csordas indica que estas hipóteses sobre a eficácia terapêutica tendem a

agrupar um conjunto restrito de mecanismos globais, tais como “transe”, “catarse”,

“efeito placebo” e “sugestão”. Os relatos sobre a cura descritos a partir delas fazem

desses mecanismos, que constituem o processo terapêutico, caixas-pretas. A ausência

de especificidade experiencial deste processo acontece por causa de um privilégio, na

descrição, da “teoria” nativa oferecida pelos “especialistas na objetificação cultural”,

os curadores. De preferência, o paciente deve ser o centro da análise, pois a eficácia

transformativa da cura ritual não está nos “sintomas”, nas “desordens psiquiátricas”,

no “significado simbólico” ou nas “relações sociais”, mas no self que engloba todas

essas instâncias.

* * *

Csordas atento às complementaridades, na sua prática de pesquisa, descreve a

cura carismática representacionalmente como um “(...) sistema de performance ritual

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compreendido por eventos rituais específicos, gêneros estilísticos e atos de

empowerment” (Idem, p.35), dos quais ele retira a especificidade experiencial do

processo que é ligado à aquisição do self sagrado. O evento ritual proporciona, nas

sessões de cura, os instrumentos que objetificam o self e a sua capacidade de

crescimento. Os gêneros de cura carismática articulam a noção nativa de “pessoa

tripartite”54: corpo, mente e espírito.

Os rituais da cura carismática são divididos em grandes sessões públicas,

pequenas sessões, sessões privadas e orações individuais e solitárias, por meio das

quais o afligido roga por sua cura ou a de uma outra pessoa ausente. Em uma grande

sessão pública, por exemplo, o curador principal é assistido por um time de curadores

assistentes, que servem de condutores para aqueles que serão rezados, de catchers aos

que podem ser envolvidos pelo poder divino, terminando por “repousar no espírito”55,

de músicos e de membros de pequenas equipes de reza. Nestas sessões, o curador

principal caminha pela igreja, aspergindo sobre a platéia água benta, e reza com as

mãos sobre (laying on of hands) a cabeça ou ombro paciente, sem tocá-lo, ou sobre

uma parte específica do seu corpo afetada por uma doença. Assim feito, ele retorna à

parte frontal da igreja e começa um sermão sobre a cura divina, acompanhado por

canções carismáticas. Os pacientes, nestas sessões, têm poucos minutos,

aproximadamente dois ou três, com o curador ou com o seu time de curadores. Alguns

membros do público são convidados a compartilhar ou testemunhar curas anteriores

que experimentaram. Os curadores diagnosticam “espontaneamente” os problemas

daqueles que são afligidos por alguma doença. Nas sessões de cura, realizadas pelos

grupos de reza, que acontecem semanalmente, entretanto, ocorre uma maior

intimidade entre o paciente e o curador ou uma equipe de curadores. Nestas sessões de

cura, o tempo do paciente, com um ou mais curadores, varia de dez a vinte minutos,

possibilitando uma forma alternativa de terapia que se aproxima de uma ênfase mais

psicológica. Se em grupos de reza a atenção destinada ao paciente é de dez a vinte

minutos, nas sessões privadas é de uma hora ou mais. O seu local de realização, por

exemplo, pode ser na casa do próprio paciente. No entanto, alguns curadores preferem

as grandes sessões públicas, pois o poder divino é quem deve abranger os detalhes do

problema da cura de uma pessoa (Idem, p.37-39).

54 Mais abaixo explicaremos esta noção.

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No “sistema” da cura carismática, a pessoa é concebida enquanto um

compósito de corpo, mente e espírito, demarcando uma distinção com a noção de

pessoa da psicoterapia e da medicina convencional que é dualizada entre corpo e

mente. Os gêneros de cura ritual correspondem a cada parte da pessoa tripartite: “a

cura física à doença corporal, a cura interna às doenças emocionais e a libertação aos

efeitos adversos ocasionados por maus espíritos” (Idem, p.40). Cada gênero comporta

diferentes conceitos de aflição e elementos de técnica ritual. O mais comum é que os

curadores se especializem em um desses gêneros, todavia eles indicam a importância,

em muitos casos, de combiná-los, “(...) à medida que os componentes da pessoa

tripartite estão holisticamente relacionados (...)” (Idem, ibidem).

A técnica da cura física, por exemplo, consiste em colocar as mãos sobre a

parte ferida, acrescentando uma oração para a recuperação do paciente. A cura interna

é importante para todos os tipos de problemas emocionais, é, também, considerada

uma “cura de memórias”. De acordo com os nativos, uma técnica cuja principal

finalidade é tratar dos eventos traumáticos na vida de uma pessoa.

“[Desde que] a origem da aflição é atribuída a um trauma interpessoal, problemas psicológicos

e emocionais são tratados a partir da busca de causas biográficas embebidas em “memórias”.

A técnica típica é rezar pela vida interna do suplicante estágio por estágio, do momento do

nascimento ao presente” (Idem, p.40-41).

O que emerge durante esta rememoração da história de vida do paciente são

aqueles eventos ou relações inconciliáveis, sendo sugerido perdoar a pessoa que o

injuriou, transformando a memória. Esta rememoração é acompanhada por orações,

que podem incluir um processo imaginativo espontâneo ou sugerido pelo curador. A

cura interna introduz Jesus como um agente que cura e está presente na vida de uma

pessoa. Na libertação (deliverance), “(...) a presença de maus espíritos é identificada

ou discernida pelo curador ou suplicante através da persistência incontrolável de

pecados ou formas negativas de pensamento, emoção e comportamento” (Idem, p.41).

Os carismáticos diferenciam a sua libertação dos maus espíritos daquela dos

protestantes. Se para os últimos a libertação é violenta, entre os carismáticos as

manifestações são moderadas. Os demônios não adquirem um controle completo

55 “Repousar no espírito” (resting in the espirit) é um semidesmaio espontâneo caracterizado pordissociação motora, sendo induzido pelo poder do espírito sagrado. O tema psicocultural é fundamentalnesse ato, pois indica a “intimidade” entre o paciente e o sagrado.

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sobre as pessoas. Durante este gênero de cura ritual, os espíritos são comandados a

partir do corpo do seu hospedeiro “em nome de Jesus” para o “pé da cruz”, pois entre

os carismáticos a autoridade divina é absoluta.

Acrescentam-se aos eventos e gêneros rituais, os atos de empowerment: atos

performativos em que “dizer alguma coisa” é igualmente um modo de “fazer alguma

coisa”, sendo fundamentais para o processo da cura (Idem, p.45). Os atos de

empowerment são verbais e não-verbais, neles os carismáticos experimentam o poder

divino em determinado ambiente ou sobre um indivíduo em particular. Os

carismáticos possuem um vasto número de atos desta natureza. Acima, por exemplo,

explicitamos o laying on of hands e o resting in the spirit. Os atos performativos,

também, são relativos aos dons da palavra: “dádivas espirituais” que do “(...) ponto de

vista êmico não são atos, mas experiências espontâneas de inspiração” (Idem, p.47).

Entre algumas dessas dádivas nós temos a “palavra de conhecimento”, a

palavra de sabedoria e a profecia. No contexto do grupo, elas são conhecidas como

“dádivas da palavra”. A “palavra de conhecimento”, por exemplo, é uma informação

recebida, através de uma inspiração divina, em que o curador é capaz de receber

informações da pessoa e do problema impossíveis de saber por meios humanos (Idem,

ibidem). Além destes atos verbais, a revelação acontece a partir de “visões”, que são

experienciadas por meio de imagens sensoriais. Quando o curador sente a orelha

queimar, deve mostrar na platéia que alguém está sendo curado de um problema

auricular. Os pacientes também recebem visões espontâneas no decorrer das orações

ou no processo imaginativo proposto e guiado pelo curador. O que é imaginado são

memórias que ordinariamente carregam os eventos traumáticos na biografia da

pessoa. A libertação, “no sistema da cura ritual”, contém os seus próprios atos

performativos de cura. O “discernimento” ou a “identificação” de uma presença

maligna é uma “dádiva espiritual”, a ele se junta o “despacho” dos maus espíritos.

Performativamente, o demônio é discernido, amarrado - evitando as manifestações

violentas - nomeado pela voz do afligido e comandado, “em nome de Jesus, a partir

do corpo do seu hospedeiro” (Idem, p.48).

A inter-relação dos componentes da pessoa tripartite, os gêneros de cura e os

seus respectivos atos performativos formam, para Csordas, um “sistema coerente”.

Uma pessoa afligida por um mau espírito tem como motivo algum trauma sofrido no

passado. Por exemplo, cicatrizes emocionais, devidas a abuso sexual sofrido na

infância, podem servir de entrada para o espírito “Lascívia”. Neste caso, a terapia

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exige a combinação de dois gêneros de cura: a de memórias e a libertação. Do mesmo

modo, uma doença pode ser atribuída a um trauma biográfico e, assim, será preciso a

cura interna antes da cura física. Em outro exemplo, Csordas volta a ressaltar o

“holismo” que liga as partes da pessoa tripartite: uma artrite pode não requerer uma

oração para a cura física da doença, visto que pode ser fruto de um ressentimento

causado por algum maltrato. O êxito da terapia, neste caso, depende da cura interna e

da concessão de perdão pelo afligido, embora a libertação de maus espíritos seja

necessária, posto que o espírito “Ressentimento” “agarra-se” ao paciente.

* * *

Csordas atento às complementaridades, na sua prática de pesquisa, descreve a

especificidade experiencial das transformações que o processo terapêutico, da cura

carismática, efetua no paciente. Chegamos à outra ponta que, na prática de pesquisa

de Csordas, se refere à cura carismática não como um sistema, mas como processo

indeterminado ou pré-objetivo da encorporação do self sagrado.

A paciente é uma mulher de cinqüenta e seis anos, casada, professora e

carismática ativa. O seu caso é fenomenologicamente descrito como “parcialmente

curada” de um problema físico, uma influenza crônica que ao longo da sua vida

provocou que ela perdesse dias de aula, quando criança, e tempo no trabalho, já

adulta. Ela procurou a sessão de cura quando a influenza resultou em uma irritação,

cuja hemorragia nasal não parava, chegando mesmo a procurar um médico para

realizar uma cauterização. Ao longo da sessão de cura, demonstrando “intimidade”

com o poder divino e com o habitus carismático, ela “repousou no espírito”, porém

não notou os resultados imediatos da cura. Entretanto, no mês de novembro, o pior

para os sintomas da influenza, ela passou o período experimentando apenas o início

do problema. Houve uma ocasião em que se afastou do trabalho, contudo a

intensidade da gripe diminuiu parcialmente, de modo que o início do sintoma foi

vivido por ela como um “lembrete” de Deus, isto é, que ele havia lhe concedido a

cura. Assim, a atenção da paciente ao lembrete era expressa no agradecimento a Deus,

baseado na “consciência preventiva”. Neste caso, ela orava caso os sintomas

aparecessem (Idem, p.69-70). A consciência preventiva é um “modo somático de

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102

atenção”56 à medida que constitui uma antecipação dos sintomas. “O processo

terapêutico na cura física pode ser uma alteração do modo de atenção, uma

capacidade para a orientação no mundo e então um processo do self” (Idem, p.67).

O modo somático de atenção é uma reorientação no mundo e a obtenção de

certas habilidades para lidar com os sintomas. “O reconhecimento da cura é uma

modulação da atenção no mundo” (Idem, p.70). O postulado de Csordas consiste em

definir que o processo terapêutico traspassa o evento ritual, tornando-se um processo

cotidiano do self. O embodiment, como deseja Csordas, abrange essa especificidade

experiencial ao invés das objetificações do ritual. Existencialmente, ou na perspectiva

do ser-no-mundo, a mulher não reconstrói os sintomas como indícios somáticos a

serem ordenados pela mente, mas compreende a cura na imediatidade da sua vida

cotidiana; nas atualizações que são necessárias nos autolembretes da benevolência de

Deus, quando ela antecipa os sintomas da influenza. O corpo, portanto, não é um dado

passivo, mas o solo existencial do self.

A paciente não idealiza o sintoma, pois ele é o próprio lembrete da gratidão

divina. A mudança na atenção somática da paciente não é uma síntese idealizada do

processo terapêutico. Ela não tem uma teoria acerca da cura, mas tem sua atenção

educada para esta experiência. Ela não predica, porém reorienta-se no mundo. As

objetificações culturais, que formam o self sagrado carismático, não aparecem

originariamente como representações, mas sim como um modo de orientação, dispondo

aspectos indeterminados à experiência da paciente, pois são voltados à atenção ao

mundo. Csordas indica a importância do processo terapêutico e não somente dos

procedimentos técnicos que envolvem o ritual. Estamos, então, “além” da

representação.

A fenomenologia, segundo Merleau-Ponty (1971), é a descrição da nossa

experiência tal como ela. A “redução fenomenológica” é a “(...) resolução de fazer

aparecer o mundo tal como é antes de qualquer retorno sobre nós mesmos, é a

ambição de igualar a reflexão à vida irrefletida da consciência” (Idem, p.13).

* * *

56 Ver também Csordas (2002).

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A noção de pessoa, em Csordas, como apontávamos acima, distintamente do

self, é uma representação cultural que tem um papel importante na formação semiótica

de um meio ambiente comportamental. “A pessoa já objetificada é uma representação

culturalmente constituída do self. O self pré-objetivo, contudo, é um modo

culturalmente constituído de ser-no-mundo” (Csordas, 1994, p.14). Os dois níveis

analíticos compreendem metodologias distintas. A noção de pessoa opera de maneira

semiótica, enquanto a de self de modo fenomenológico. Uma abordagem

fenomenológica sobre o self, nas palavras de Csordas, nunca foi completamente

desenvolvida; de preferência, nos anos 60, este tipo de análise foi ofuscado pelo

entendimento da cultura e do self “(...) como sistema de símbolos e significados”

(Idem, p.4). Csordas baseia a cultura e o self na fenomenologia do corpo, embora,

como ele mesmo adverte: “(...) não pretendo oferecer uma alternativa estrita à

abordagem semiótica (...) Em outras palavras, eu entendo a fenomenologia cultural

como um contrapeso e um complemento à ênfase da antropologia interpretativa no

signo e no símbolo” (Idem, ibidem).

Essa complementaridade funciona do seguinte modo: Csordas assevera que o

retorno e o desdobramento das idéias fenomenológicas no estudo da religião seriam

reações ao peso que se dá ao símbolo e ao signo na compreensão do sagrado, isto é, à

predominância da semiótica na discussão antropológica acerca da religião. Nestes

termos, ele retoma a definição Geertziana da religião: “Um sistema de símbolos que

atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações

nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência real e

vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e

motivações parecem singularmente realistas” (Geertz, 1989, p.104-105); buscando o

que se aproximaria da sua fenomenologia cultural. Por conseguinte, além de um

sistema de símbolos “(...) articulados em um sistema de relações sociais” (Csordas,

1994, p.5), Csordas dá igual importância às “disposições e motivações duradouras”

estabelecidas pela religião, postulando que elas são afins da noção de “otherness”

(“alteridade”), elaborada pelos fenomenólogos da religião.

A otherness é aquilo que faz do sagrado um encontro com o que não somos,

ou seja, com aquilo que está nos limites da nossa humanidade. Este aspecto “inefável”

do sagrado é atribuído ao elemento misterioso, ou sobrenatural, que se traduz em um

“totalmente outro” (Otto, 1992), isto é, um fenômeno que Csordas diz ser pré-

objetivo, dado que contraria a normalidade da vida social. Ele reconhece que

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104

Durkheim identificou esta alteridade do sagrado, ainda que a tenha restringido à

sociedade, adotando uma definição funcionalista para o sagrado, “(...) como a

sociedade mistificando-se e adorando-se, e desse modo estabelecendo autoridade

moral e solidariedade social” (Csordas, 1990, p.33). Por ter feito o sagrado uma

imagem do social, Csordas constata que Durkheim esvaziou a sua importância

enquanto uma categoria sui generis. A sociologia durkheimiana da religião deu

origem a inúmeras análises em que a sociedade cria o sagrado como algo “inefável”,

ou como uma esfera além do indivíduo, que produz autoridade moral absoluta. Esse

reducionismo, aponta Csordas, é o mesmo que ele nota na definição da religião sob a

forma de um sistema de símbolos. A alternativa encontrada na fenomenologia,

alternativa esta ao representacionalismo, não esgota, de modo algum, a definição de

Geertz; apenas introduz uma extensão até a experiência vivida e, conseqüentemente,

ao self. Csordas se apropria dos estudos de fenomenólogos e historiadores da religião,

buscando um sentido para a alteridade. Menos do que uma “função da sociedade” a

alteridade seria “(...) uma capacidade genérica da natureza humana” (Idem, ibidem).

Em Rudolf Otto,

“[o] misterioso em sentido religioso, o verdadeiro mirum, é para empregar o termo que é a sua

expressão mais exata, o “totalmente outro” (...) aquilo que nos desconcerta, o que está

absolutamente fora do domínio das coisas habituais, compreendidas, bem conhecidas e, por

conseguinte, “familiares”; é o que se opõe a esta ordem de coisas e, por isso, nos enche de

espanto que paralisa” (Otto, 1992, p.39).

Colocando essas questões lado a lado com os seus dados sobre a cura

carismática, Csordas assevera que, por meio do embodiment, a percepção da

experiência religiosa passa pela “espontaneidade”, um atributo do poder divino e pela

falta de “controle”, um fator demoníaco. Quando um pensamento, ou imagem

encorporada, espontaneamente é projetada na consciência de um carismático ele não

diz: “eu tive um insight”, mas declara que “isso não estava em mim, como eu podia

ter pensado nisso. Deve estar no Senhor” (Idem, p.34). A experiência divina não se

origina em um conteúdo da mente, porém “(...) é constituída pelo ajustamento

espontâneo da inspiração com as circunstâncias” (Idem, ibidem). Igualmente, quando

um mau hábito torna-se uma compulsão, quando alguém não consegue controlar o

próprio temperamento, o carismático não deduz: “Minha personalidade está confusa”,

mas “este não sou eu, estou sob o ataque de maus espíritos” (Idem, ibidem). O

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105

demônio, sendo uma objetificação cultural, não é a causa do mau hábito ou da raiva,

mas é a conseqüência de um ato pecaminoso; visto que a percepção começa no corpo

e termina em objetos. No nível da percepção nós não temos objetos, apenas estamos

no mundo. “A natureza sui generis do sagrado é definida não pela capacidade para ter

tais experiências, mas pela propensão humana à tematizá-las como “totalmente

outras”” (Csordas,1990, p.34). O embodiment permite estudar o sagrado como

experiência da consciência humana, afastando-se do realismo da sociologia

durkheimiana.

O aspecto fundamental da natureza sui generis do sagrado encontra em Otto o

apoio fundamental para a tese de Csordas, porque a predicação do divino é o

momento secundário das emoções que ele provoca na vida íntima da pessoa. Assim, a

experiência religiosa “(...) como todo o dado originário e fundamental, é objeto não de

definição no sentido estrito da palavra, mas somente do exame” (Otto, 1992, p.15).

Em outras palavras, esta experiência com a divindade não pode ser demonstrada em

conceitos, mas em sentimentos, que a partir da “redução fenomenológica” devem ser

descritos como aspectos originários de um momento em que as racionalizações estão

suspensas. Otto sugere que no demoníaco e no sobrenatural o sentimento do

“totalmente outro” é mais agudo. Esse “não-eu”, como vimos acima, é a implicação

da transcendência do sagrado, da sua inefabilidade. Otto vislumbra que “(...) o terror

especial que experimentamos perante o “sinistro” provoca uma reação física particular

que o temor e o terror naturais já não produzem. “Teve frio na espinha”. “Tenho a

pele de galinha”” (Idem, p.25). Desse modo, mais uma vez, estamos operando “além”

da representação.

* * *

O que Otto aponta não ser racionalizável, Csordas indica estar na esfera do

pré-objetivo ou do ser-no-mundo. Este afastamento da representação garante na sua

monografia tomar a demonologia carismática em dois planos: um semiótico e outro

fenomenológico. Entre os carismáticos, o domínio da pessoa inclui tanto o humano,

adulto e criança, quanto o não-humano, Deus. A divindade Carismática é composta

por três pessoas, que são correlatas de cada uma das três partes da pessoa tripartite.

Assim, o Pai, o Filho e o Espírito Santo correspondem, respectivamente, à mente, ao

corpo e ao espírito. Csordas explica que cada “pessoa divina” é compatível com o

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substrato dentro da pessoa humana. Os maus espíritos ou demônios, todavia, não

recebem a “dignidade” de pessoas, são nomeados “entidades inteligentes”. Na

demonologia carismática, os espíritos são designados em conformidade com a

maneira que eles agem sobre as pessoas. Logo, os espíritos são denominados por

Depressão, Lascívia, Raiva, Tristeza, Adultério, etc.. Esta demonologia “(...) pode ser

entendida como uma representação coletiva da pessoa enquanto um repertório de

atributos negativos potenciais” (Idem, p.185). Como uma representação coletiva, a

demonologia carismática compreenderia a “teoria nativa”, como um processo de

subjetivação ou do self, ela seria parte da experiência dos pacientes.

Da perspectiva da representação, o espírito maligno pode ser descrito como

um ser imaterial e inteligente sob o domínio de Satã. Os maus espíritos assediam,

oprimem ou possuem os humanos ao interagir com eles. Neste nível, Csordas vê a

demonologia como algo abstrato e especulativo que reproduz as distinções entre

interioridade e exterioridade, onde “(...) os demônios transgridem as fronteiras do

corpo e são expulsos. Na verdade, referências a espíritos sendo “expulsos” e a

definição cultural das manifestações físicas como “signos” de espíritos (...)”

(Csordas,1990, p.14-15) são momentos tardios do processo de objetificação cultural.

As manifestações físicas da libertação de demônios são predicações do curador, “o

especialista na objetificação cultural”, que “discerne” se a aflição do paciente é ou não

de origem demoníaca (Idem, ibidem).

Da perspectiva do ser-no-mundo, os pacientes não percebem um demônio

dentro deles, mas sentem que um pensamento, um comportamento ou uma emoção

está fora do seu controle (Idem, ibidem). O elemento pré-objetivo destas

manifestações é que os pacientes experimentam-nas espontaneamente e sem um

contorno pré-ordenado (Idem, p.15). No “irrefletido”, que caracteriza o início do

processo de significação, “a coisa expressa” “não existe aparte da expressão”. A

experiência dos pacientes com os espíritos malignos não é definida pelos “meios

convencionais de comunicação” que definem a demonologia carismática como uma

representação, porém pela “intensidade”, “generalização”, “duração” e “freqüência”

de uma aflição (Idem, p.14). Em termos etnográficos, o paradigma do embodiment

possibilita a Csordas (1994) designar, no processo terapêutico, a subjetivação do

paciente. Assim, ele analisa as sessões de “libertação” buscando a especificidade

experiencial das emoções dos pacientes afligidos por demônios, pois pretende “(...)

capturar as especificidades transformativas atingidas na performance ritual” (Idem,

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p.224). Csordas, então, quer alcançar um espaço que o observador não chega, quando

fica limitado às práticas rituais.

Vejamos um dos casos relatados na sua monografia: A paciente estava

envolvida em um processo de cura interior. Durante a sessão de cura é constatado que

há uma conexão causal entre os espíritos ocultos e as dores de cabeça da paciente. A

anomalia do sintoma (a dor de cabeça) é invocada para explicar a causa (os espíritos

ocultos) (Idem, p.203), logo a “libertação” é necessária no ritual. A curadora deve

integrar várias técnicas rituais nesta sessão:

“O time pôs as mãos sobre a cabeça e os ombros da paciente; a glossolalia foi usada tanto na

“autoridade” para a libertação quanto para louvar a divindade; o discernimento da presença

demoníaca foi exercido pela curadora principal, como também foi a palavra de sabedoria

quando ela identificou a localização e a persistência da dor de cabeça da paciente, e quando

espontaneamente inquiriu a paciente sobre a sua filha; manifestações demoníacas eram

evidentes no “bocejo liberado” pela equipe de cura (...) a paciente foi instruída a perdoar

diferentes pessoas e a renunciar a Satã; o poderoso arcanjo foi não apenas invocado, mas feito

presente no imaginário; e a reza de comando foi proferida contra maus espíritos específicos”

(Csordas,1994, p.202).

A líder da equipe de curadores “discerniu” a presença demoníaca, visto que as

pessoas que a auxiliavam na cura bocejavam57. Durante o procedimento ritual, o

espírito “Escuridão”, subordinado na demonologia carismática ao espírito Mestre,

Oculto58, é “discernido” pela curadora sendo ordenado a deixar a paciente, sendo

enviado, “em nome de Jesus”, para o “pé da cruz”.

57 Bocejar ou tossir é um indício, entre outros, da presença e da partida de demônios, que entre oscarismáticos tiveram suas manifestações domesticadas, ou seja, deslocadas dos pacientes para oscuradores, permitindo que os demônios sejam controlados na performance ritual. Desse modo, édesnecessário para o paciente saber que o espírito está sendo expulso. Bocejar e tossir, no habituscarismático, ao contrário do bocejar e do tossir ordinários, são muito mais profundos. O exorcismocarismático é uma versão branda do exorcismo evangélico, visto que os carismáticos, sendo em suamaioria da classe média americana, se acham mais seguros com a libertação acontecendo sutilmente.58 Para muitos curadores, que praticam a libertação, os maus espíritos tendem a operar em grupos,chefiados por um Mestre. Além do espírito Escuridão, estão subordinados, ao Oculto, os espíritosBruxaria, Fetiche, Magia Branca, Astrologia, etc.. Ao espírito Mestre Impureza Sexual, estãosubordinados os espíritos Lascívia, Fantasia, Homossexualismo, Adultério, etc. Ao espírito MestreInsegurança, estão os espíritos Inferioridade, Timidez, Inadequação, etc.. (Csordas, 1994, p.189-190).Na demonologia carismática, a nomeação dos demônios por emoções, comportamentos e padrõesnegativos de pensamento reflete a importância contemporânea da psicologia no mundo norte-americano. “Cosmologicamente”, entretanto, cria a ambigüidade e a tensão entre os domínios dalibertação e da psicoterapia, pois introduz no sistema da cura a oscilação entre as “origens internas” eas “causas externas”, o “psicológico” e o “espiritual”, já que é possível notar, por exemplo, a rejeiçãocomo uma emoção humana ou como um demônio. A existência dos demônios como seres inteligentes e

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No entanto, Csordas diz que parar a análise neste ponto é somente fazer um

apanhado sistemático dos atos performativos deste gênero de cura ritual. Além deles,

há algo invisível para o observador: a performance imaginária encorporada. Após a

sessão, ele toma o “relato experiencial”59 da paciente, desejando apontar o significado

total do episódio.

Menos do que a dor de cabeça explicar a presença de maus espíritos, o motivo

que parece estar implícito na presença dos mesmos, redundando nas dores de cabeça,

é uma maldição lançada pela prima da paciente, envolvida com o ocultismo. O

surgimento das suas dores de cabeça coincide com a volta da sua sobrinha à

vizinhança, que era alvo de disputa pela sua educação com a prima. A prima, como a

sobrinha, era envolvida com a bruxaria. Na performance imaginária da paciente, um

processo constitutivo do self sagrado, a imagem do arcanjo São Miguel atravessa o

mal com a sua espada, o que simultaneamente provoca a visão da prima sendo vista e

ouvida gritando em um protesto ameaçador. Jesus, com sua luz divina, surge na cena,

unido a intensa “glossolalia” (speaking in tongues)60 do time de curadores, e rompe

com as correntes imaginárias que prendem a paciente ao seu cativeiro espiritual. As

dores de cabeça são tomadas, na experiência, como uma forma de controle

interpessoal, isto é, da tentativa da prima de controlá-la. Na linguagem do processo

terapêutico a experiência do sagrado elabora uma alternativa ao controle interpessoal,

sendo a atualização da mudança o alívio das dores de cabeça. Csordas, também,

consegue tocar a tematização do controle, própria do meio psicocultural carismático,

ligado, neste caso, às fortes dores de cabeça da paciente. A percepção dos maus

espíritos começa no corpo, nas dores de cabeça, e termina em objetos, o espírito

“Escuridão”.

ativos cria, todavia, a distinção entre esses dois “sistemas de prática de cura”, diferenciando ademonologia de qualquer lista de emoções (Idem, p.187).59 A linguagem, na abordagem fenomenológica de Csordas, não é uma “(...) simples forma decomportamento observável, mas um meio de intersubjetividade, de maneira que é correto dizer que alinguagem nos dá acesso autêntico à experiência” (Csordas, 1994, p.XII). A divisão entre linguagem eexperiência é o resultado de uma teoria representacional da linguagem que invalida o estudo daexperiência, devido à mediação central da linguagem e do discurso operar na ordem da representação(Csordas, 1994; 1997). Csordas lança mão do existencialismo heideggeriano porque, para o filósofoalemão, “[a] linguagem é particularmente a casa do ser e a habitação do ser-no-mundo” (Heidegger,1973, p.115). O comentário experiencial é coletado após o término da sessão. Csordas acompanha oprocesso terapêutico ao longo do ritual. Essa restrição exige que ele trate a linguagem no domínio doser-no-mundo, procurando colapsar a divisão entre linguagem e experiência.60 A glossolalia, também, é um ato performativo, sendo utilizada como um modo mais poderoso de orarpela cura do que a linguagem vernácula permite; além disso, é, entre outras coisas, um meio que ocurador tem de deixar o controle do processo curativo para Deus (Csordas, 1994, p.46).

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O aspecto fundamental da fenomenologia deste processo do self é a

formulação do tema psicocultural do controle. Na cura carismática, a linguagem do

controle tem uma grande importância experiencial. O curador “liberta” o paciente do

cativeiro do mau espírito, que invadiu o seu corpo, através de uma “(...) ferida

emocional entendida como um buraco no self” (Idem, p.227), e o paciente retoma o

controle sobre si. As características encorporadas imaginativamente pela paciente ao

longo da objetificação, que acompanha a cura, faz do tema do “controle” um indício

fundamental que o pré-objetivo não é um pré-cultural. O controle de si é uma questão

fundamental no meio ambiente cultural e no habitus carismático.

Uma vida saudável junta metáforas de autocontrole e de libertação das

pressões. Entregar-se à vontade divina é restaurar o autocontrole perdido por causa

das manifestações demoníacas. A paciente revela a exacerbação de um limite de

tolerância que torna a aflição intensa e freqüente (Csordas, 1990; 1994). Csordas

entende que

“[as] manifestações são atos originais de comunicação em um meio intersubjetivo altamente

qualificado. Embora sejam existencialmente originais, estes atos, todavia, tomam parte em um

número limitado de formas comuns, porque emergem de um habitus compartilhado, e é a

participação neste habitus que permite ao curador reconhece-las e objetificá-las como

manifestações” (1994, p.226).

O mistério da origem das dores de cabeça torna-se o espírito Escuridão no

momento em que é discernida a influência oculta do feitiço, lançado pela prima sobre

a paciente. Na indeterminação do pré-objetivo nós encontramos a dimensão das

emoções, que caracterizam os processos constitutivos do self.

3.3 O que o paradigma do embodiment obscurece...

No primeiro capítulo, indicamos o modo que Ingold (1996) observava os

limites da noção de intersubjetividade. Ele ponderava que os ocidentais, distintamente

dos Cree, notabilizavam-se em fabricar a divisão entre humanidade e animalidade;

uma divisão que se correlaciona com outras: “sujeito e objeto”, “pessoa e coisa”,

“moralidade e fisicalidade”, “razão e instinto”, “sociedade e natureza”, “mente e

corpo”. A existência humana, no mundo dos ocidentais, estaria em duas ordens: a

ordem social, ou das relações intersubjetivas, e a ordem natural, aquela das interações

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entre meio ambiente e organismo, sendo que “(...) a existência animal é restrita ao

domínio natural” (Idem, p.131). Os seres humanos como organismos participariam do

mundo natural, ao passo que os animais não compartilhariam o mundo social, pois a

estes é vedada a razão ou a personalidade. Ao longo da nota que adicionamos a essa

passagem, a de número oito, Ingold acrescentava que a intersubjetividade, enquanto

“(...) qualidade constitutiva do domínio social (...) um domínio aberto a seres

humanos mas não a tipos não-humanos”, era uma noção limitada, no caso dos Cree,

pois “(...) [na] economia do conhecimento dos caçadores-coletores, contrastivamente,

é como pessoas inteiras, não como mentes desencorporadas, que os humanos se

envolvem uns com os outros e além disso, também, com os seres não-humanos. Eles

fazem assim como seres em um mundo, não como mentes excluídas de uma dada

realidade (...) Para cunhar um termo, a qualidade constitutiva do seu mundo não é a

intersubjetividade, mas a interagentivity”61 (Idem, p.129). Vejamos, desde já, os ecos

desse assunto nos dados de campo de Csordas.

Entre os Católicos Carismáticos, a conceptualização que Csordas empreende,

acerca da intersubjetividade, é substancial para organizar, na sua monografia, a

relação entre os selves e entre o self e o sagrado. No caso da relação entre os selves,

predominariam as co-presenças que, entrelaçadas ao habitus, garantem uma ampla

comunicação entre os nativos. Csordas coloca o problema no instante em que tenta

solucionar as diferenças entre as teorias de Merleau-Ponty e de Bourdieu. Este último,

segundo Csordas, rejeitava os conceitos fenomenológicos tais como “experiência

vivida” e “intencionalidade”. Importava para o sociólogo frânces “(...) basear a

condição para a inteligibilidade da vida social na homogeneização do habitus dentro

de grupos ou classes, e explicar a variação individual em termos de homologias entre

os indivíduos” (Csordas,1994, p.12). Essa divergência é “resolvida” quando Csordas,

apoiado em Merleau-Ponty, infere que a “(...) intersubjetividade não é interpenetração

de intencionalidades isoladas, mas um entrelaçamento entre padrões de

comportamento familiares” (Idem, ibidem).

Por exemplo, se alguém percebe a cólera e o luto no outro isto não leva a

recordação de uma experiência interna de sofrimento, pois a raiva e o desgosto são

modos de pertencer ao mundo, sem haver qualquer divisão entre o corpo e a mente.

Não é dividida porque estas experiências aparecem imediatamente no “corpo

61 O termo pode ser traduzido, talvez, por “interagencialidade”.

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111

fenomenal” do outro (Merleau-Ponty apud Csordas, 1994, p.13). A emoção do outro é

imediata, podendo ser compreendida pré-objetivamente, no entanto, é familiar

contanto que possuamos o mesmo habitus (Csordas, 1994, p.13). No campo

perceptivo, os outros humanos não são percebidos como objetos, mas como um “eu

mesmo”, ou enquanto seres intersubjetivos, com os quais estabelecemos uma

verdadeira comunicação. Tanto o corpo quanto outras pessoas viram objetos em um

momento secundário do processo reflexivo.

Csordas ressalta que a intersubjetividade, reservada aos humanos, é o elemento

fundamental para analisar a relação entre o self e o sagrado. A experiência pré-

objetiva da outra pessoa como um “eu mesmo” distingui-se radicalmente da

experiência do outro sagrado, o “não-eu”. Em outras palavras, as entidades não-

humanas, como os demônios [espíritos], em maior intensidade, já dizia Otto, ou a

experiência com o divino, formam o “totalmente outro”, cujas aparições excepcionais

abalam o andamento da vida social ordinária. Uma primeira indagação, a meu ver,

deve ser elaborada. Se os demônios, por exemplo, são seres apartados do mundo

totalmente humanos dos selves, que tipo de seres eles são? Eles nada são. É o próprio

meio intersubjetivo que sustenta, por exemplo, as modalidades de manifestações dos

demônios, os quais existem como objetos culturais no mundo carismático.

Mesmo que a “cosmologia” carismática apresente a divisão entre os reinos de

Satã e de Deus, estando os dois reinos envolvidos em uma batalha espiritual mortífera,

Csordas não se esforça para dar um tratamento simétrico aos humanos e aos maus

espíritos. Se ele ressalta a presença ativa e cotidiana dos demônios na “pragmática

comportamental” dos carismáticos, isto ocorre dentro de um meio ambiente cultural.

O seu esforço para colapsar dualidades, sugerindo com o seu material de campo

começar não dos objetos culturais já constituídos, porém do irrefletido, que

caracteriza o início de toda objetificação, não dá conta dessa divisão entre humanos e

não-humanos. Ao partir da perspectiva do ser-no-mundo, Csordas assinala o quanto é

insatisfatório analisar a demonologia como representação. Ele rejeita o primado da

vida social sobre a vida individual que faz das relações entre os membros da

sociedade um “(...) fenômeno primário da vida” (Strathern, 1996, p.62). Csordas

critica a primazia da representação sobre a emoção, destacando que na última reside o

começo de toda reflexão. Por não se tratar de um pré-cultural, mas de um pré-abstrato,

o pré-objetivo, metodologicamente, propicia que ele tome os “encontros com o mal”

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em uma dimensão voltada para as aflições que tais encontros impõe ao self. O corpo,

locus do self, é um fenômeno cultural ou solo existencial da cultura.

Csordas restaura o lugar das emoções e das sensações, que desde Durkheim

teriam sido consideradas inconsistentes e ultrapassadas pelas representações coletivas.

Descartando essa transcendência, ele não se desfaz, devemos assinalar, do seu ímpeto

moderno, apontando para a noção de habitus. Uma transcendência que vem suprir a

sua primeira denúncia: os objetos são o produto secundário do processo reflexivo62.

Mais uma vez, quando os atores se achavam livres da realidade absoluta dos seus

conceitos, Csordas afirma que as suas intencionalidades são comandadas por “uma

orquestração inconsciente de práticas”, que é marcada diretamente nos seus “corpos

socialmente informados”. O que está além da representação, para Csordas, não escapa

à normalização ou à socialização ou ao controle. A natureza humana regula com as

normas sociais os impulsos ou instintos que são parte da nossa animalidade.

* * *

Entre os Carismáticos, o controle sobre as manifestações emocionais pré-

culturais separa irremediavelmente os humanos e os espíritos, sendo os últimos

comandados a partir em nome de Jesus. Somente Deus é quem sabe para onde se

destina o espírito. Os curadores acham presunçoso saber o lugar que o espírito vai

depois que é “despachado” para o “pé da cruz”. A libertação, “cosmologicamente”,

realça a batalha entre as forças do reino de Deus e do reino de Satã. Os maus espíritos

construídos culturalmente, segundo a análise de Csordas, são os expoentes de algo

que parece sustentar a sua monografia: a tensão entre natureza e cultura. A natureza,

devemos esclarecer, mais uma vez, é o que na sociologia durkheimiana

corresponderia ao individual, emocional, inato, somático e pré ou anti-social. Em

suma, ao que deve ser controlado pelas normas sociais.

Em Hagen, nas terras altas da Papua Nova Guiné, por exemplo, quando os

nativos, segundo Marilyn Strathern (1980), cultivam novos jardins na orla de trechos

cultivados ou de floresta são cuidadosos, pois não querem perturbar um espírito do

local; se estiverem pertos de um cemitério, mantêm-se cautelosos do ataque de

62 A experiência do sobrenatural é uma suspensão das categorias e dos esquemas abstratos, sendopassível de ser submetida à “redução fenomenológica” (Csordas, 2004).

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fantasmas. Em Hagen, os “(...) espíritos selvagens atacam pessoas, porém tais ataques

são azares e infortúnios ao invés de uma batalha em curso entre forças selvagens e

culturais” (Idem, p.199). Os nativos não possuem qualquer motivação para dominar

essas forças, mas, sobretudo, chegar a um acordo com elas, evitando sua interferência

nas atividades cotidianas. Caso um nativo seja atacado por um espírito selvagem, o

curador remove o espírito do corpo do afligido e não o destrói, porém o envia para a

sua área de origem. Em Hagen, os nativos não lidam com os espíritos com metáforas

de controle e de libertação.

Strathern afirma que a “simbolização convencional” entre os ocidentais,

aparta, ao mesmo tempo, a ação humana do mundo natural e, ademais, faz a primeira

ser a reguladora do segundo. Em outros coletivos, contudo, a ordem convencional é

considerada inata. Entre os ocidentais, as convenções coletivas devem modelar e

regrar o inato e o individual, para os nativos de Hagen as convenções são elementos

naturais que compõem a humanidade e o universo, em relações as quais os indivíduos

se particularizam, diferenciam e improvisam. Em Hagen, a distinção entre doméstico

(mbo) e selvagem (rømi) é dada. Em outras palavras, é real ao invés de ser construída,

ou seja, um termo não pode superar o outro. Selvagem ou pré-social não é uma

imagem do pré-humano.

Para os ocidentais, por exemplo, a criança estaria mais próxima da natureza,

dada a sua incapacidade de andar ereta, falar e excretar controladamente, logo o seu

desenvolvimento é uma imagem originária da socialização dos humanos. No início da

sua vida, a criança está sem o “controle” sobre as suas funções fisiológicas, assim ela

deve ser cultivada e treinada dentro da sociedade para adquirir sua humanidade e se

afastar da animalidade. Em Hagen, todavia, a maturidade social não corresponde à

modelação da natureza selvagem ou pré-social da criança; embora falte a criança

consciência total da sua humanidade, ela já cresce dentro da maturidade social ao

invés de ter que atingi-la. Não há uma natureza pré-social ou animal a ser modelada,

pois a socialidade sendo algo inato deve ser nutrida. Quando o corpo da criança

responde a nutrição ela “(...) adquire identidade, relações com outros e eventualmente

autoconsciência” (Idem, p.196). A “consciência de humanidade” da criança não é

desenvolvida por meio da apreensão de um esquema de valores abstrato, mas pela

nutrição.

Durkheim e Mauss (1981) diziam, como expomos no primeiro capítulo, que

embora falte ao pensamento “primitivo” ou não-moderno aquelas depurações que

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circunscrevem o pensamento moderno, o fio condutor que aproxima ambos é a

ausência de uma habilidade inata que permita espontaneamente classificar. Visto que,

“[t]oda classificação implica uma ordem hierárquica da qual nem o mundo sensível

nem nossa consciência nos oferecem o modelo” (Idem, p.403). Tanto as classificações

primitivas quanto as científicas possuem características essenciais semelhantes: ambas

“(...) são sistemas de noções hierarquizadas” (Idem, p.450) cujo modelo é

disponibilizado pela sociedade. Strathern (1980) sustenta que os ocidentais usam o

“contraste hierárquico” entre a natureza e a cultura para definir as relações internas da

sociedade – como ocorre entre os gêneros, por exemplo.

Csordas, podemos admitir, idealiza o mesmo “contraste” ao enfatizar que o

tema psicocultural do controle constitui a possibilidade dos carismáticos

experimentarem o sobrenatural como o “totalmente outro” ou como a ausência de

controle, que é restabelecido com a objetificação do self, correspondendo à própria

objetificação dos demônios, que são construídos culturalmente. A aquisição do self

sagrado é o processo indeterminado de “socialização” no mundo carismático, tal

como o é com as crianças, com uma pequena diferença: a constituição do self sagrado

denota a indeterminação que acompanha a constituição dos objetos culturais, embora

a cultura seja a condição fundamental para esses processos. Ingold, apontava

anteriormente, que a cultura, nestes termos, pode ser paradoxalmente real e

construída.

A tematização do controle é a mesma tematização da domesticação das

entidades pré-humanas ou naturais, que caracteriza a metafísica Ocidental (Strathern,

1980). Quando Csordas afirma que na percepção não temos objetos, mas apenas

estamos no mundo, ele fala de um mundo cultural, quando afirma que o corpo é a

consciência se projetando no mundo, o corpo é envolvido por um habitus. Tratar o

sagrado como um “totalmente outro” é realçar, ainda mais, na nossa compreensão, a

divisão entre humanos e não-humanos, ou seja, entre natureza e cultura, sujeito e

objeto. Aqui me refiro ao sujeito da aflição, o paciente, e ao objeto dessa aflição,

discernida pelo curador, o demônio. Csordas é moderno porque privilegia a separação

radical entre o mundo social e o mundo natural, a partir da sua conceptualização do

sagrado. A perda do controle é relativa à preeminência de um comportamento,

pensamento ou emoção anti-social contrariando o habitus carismático. O demônio

torna-se um objeto cultural porque é domesticado ou objetificado. Em Hagen, Marilyn

Strathern não observa qualquer indício de um meio intersubjetivo que oponha os

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humanos e os espíritos, pois, segundo ela, eles não possuem a divisão originária entre

natureza e cultura.

* * *

Como aponta Ingold, o paradigma do embodiment não problematiza a relação

entre biologia/natureza e cultura, pois postular que o corpo é o sujeito da cultura deixa

o organismo sem corpo, “(...) reduzido a uma massa de potencial biológico” (2000,

p.170)63. Ele sugere que o processo do embodiment é um e o mesmo que o

desenvolvimento do organismo no meio ambiente (Idem, ibidem). Pronunciar-se desta

maneira sobre o embodiment é ofuscar a própria fenomenologia cultural, pois o meio

ambiente originário de que fala Csordas não é o mesmo que comenta Ingold. Para o

primeiro, é o meio ambiente cultural ou intersubjetivo, realidade objetiva das nossas

práticas, acessível aos humanos, e restritos aos não-humanos, como vimos no caso dos

demônios. O meio ambiente em Csordas é um conjunto de constrangimentos culturais,

nos quais estamos inevitavelmente imersos. O processo do self é a aquisição desses

constrangimentos, pois o self é uma “capacidade” indeterminada para a orientação no

mundo. Para o segundo, o meio ambiente constitui uma entidade em contínua

mudança e indivisa com a “pessoa toda”. O meio ambiente está envolvido

continuamente com os seus constituintes humanos e não-humanos, assim como

possibilita o envolvimento dos últimos. O processo de embodiment é muito diferente

daquele de enskilment (Ingold, 1993), pois o primeiro só pode ser operacionalizado

para lidar com um meio ambiente cultural, enquanto o segundo é mais totalizante,

pois deve englobar, simetricamente, os constituintes humanos e não-humanos do meio

ambiente.

Em termos etnográficos, a conclusão que Csordas (1990) chega, ao confirmar

que a otherness não é uma função da sociedade, mas uma “capacidade” ou

“propensão” genérica da natureza humana, o distancia ainda mais de Ingold, que lança

algumas restrições aos termos capacidade e performance. A noção de “capacidade” é

63 Csordas (1997) já reconhecia que a relação entre o embodiment e a biologia não estava clarificada noseu paradigma. Em termos fenomenológicos, ele resolve o impasse sugerindo que tanto a culturaquanto a biologia são formas de objetificação ou de representação. A partir da redução fenomenológica,é preciso que coloquemos as duas categorias entre aspas, suspendendo a atitude natural com relação asmesmas. Em todo caso, o retorno ao pré-objetivo não foge das determinações da cultura, visto que nãoé um pré-cultural mas um pré-abstrato. Csordas mantém o divisor porque a cultura é o fundamento dabiologia e da própria cultura.

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sustentada pelas “(...) metáforas de conteúdo e recipiente da psicologia humana como

um conjunto pré-constituído de compartimentos modulares ou de planos de aquisição,

esperando ser preenchido com informação cultural na forma de representações”

(Ingold, 2001, p.134). A mente, então, é um recipiente, e a cultura o conteúdo da

psicologia humana. O conceito de “competência” é igualmente problemático, visto

que se opõe à noção de performance. Quando evocada, a competência suscita que o

aprendizado está separado do envolvimento perceptivo dos atores com o mundo,

formulando um programa de padrões comportamentais que respondem

adequadamente a uma determinada situação. A complementaridade entre a capacidade

e a competência surge na equivalência das capacidades inatas do indivíduo e da sua

interação com os inputs do meio ambiente. Provêm, dessa última interação, as

competências culturais específicas. A performance, por fim, limita-se à execução

mecânica de comandos situadas no intelecto, uma simples externalização de

representações dispostas na mente (Idem, p.134-135).

Não obstante, podermos supor que Csordas esteja de acordo com as

considerações ingoldianas, acerca principalmente da performance, suas intuições

sobre a otherness como “capacidade” genérica da natureza humana têm alguma

disparidade com as explicações de Ingold. Em primeiro lugar, Csordas para introduzir

que os humanos tematizam a experiência do sagrado ou do sobrenatural como

“totalmente outras” necessita que o self permaneça uma capacidade genérica da

consciência humana para se orientar no mundo. Em segundo lugar, ele precisa que o

self seja direcionado por uma entidade transcendente que lhe dê competências

culturais especificamente encorporadas para se orientar no mundo. O habitus é quem

forja, ainda que inconscientemente, essa experiência em um meio ambiente desde

sempre cultural e estritamente humano. A capacidade e a razão são atributos que

separam os humanos da natureza ou do domínio das emoções, que, no entender

Csordas, são as formas que os demônios são percebidos na prática.

Csordas, como Ingold, não faz da performance um epifenômeno dos conteúdos

mentais, ao contrário, ele ressalta que nos atos performativos da cura carismática falar

alguma coisa é fazer alguma coisa. Também acrescentaríamos que Csordas

provavelmente concordaria com Ingold se a performance fosse tomada como um

movimento que incide na presença no mundo, seria, de fato, uma realização da

“pessoa toda” no meio ambiente. A abordagem ecológica ou a “ecologia sensível” de

Ingold é fundada na premissa que

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“(...) a inteligibilidade humana não é fundada em alguma combinação de capacidades inatas e

de competências adquiridas, mas em skills (...) o executante competente da ciência cognitiva é

amarrado à execução mecânica de um plano pré-determinado. Uma vez estabelecido um curso

para a ação, ele não pode alterá-lo sem interromper a execução a fim de reconfigurar o plano à

luz do novo dado. O movimento do sujeito skilled, por contraste, é continuamente e

fluentemente responsivo às perturbações do meio ambiente percebido. Isto é possível porque o

movimento corporal do sujeito é, um e ao mesmo tempo, um movimento de atenção; porque

olha, ouve e sente mesmo quando trabalha” (2001, p.135).

O “movimento da atenção” na abordagem ecológica inscreve o envolvimento

perceptivo da pessoa com os constituintes humanos e não-humanos do seu meio

ambiente. Nestes termos, o que distinguiria, no caso específico, a maior destreza de

um curador experiente do novato não é acúmulo de representações, mas o nível de

sintonização ou de envolvimento que ele possui com a terapia e o novato não. Em

todo caso, para ser um curador entre os carismáticos é fundamental ter passado pela

cura, a qual é fundamental para a constituição do self sagrado. Encontramos, aqui,

outra possível concordância entre Ingold e Csordas, pois segundo o último o curador

não diagnostica, mas graças às “dádivas espirituais” e a intuição que “discerne” a

presença de um mau espírito. A skill é, nas palavras de Ingold, “(...) a fundação de

todo conhecimento”, inclusive o científico (Idem, p.136).

O processo de enskilment é um elemento comum às condições de felicidade

específicas da cura carismática e da ciência. A sensibilidade implicada nas skills

alcança a ciência porque os julgamentos científicos são também apoiados em

percepções originadas em um meio ambiente particular, exigindo que a atenção esteja

educada para os seus constituintes (Ingold, 2000, p.25). As habilidades perceptivas, ao

invés de uma oposição à razão, são tanto o princípio experiencial que recobre a

vivência em um meio ambiente quanto partes do “(...) processo de desenvolvimento

em um meio ambiente historicamente específico (...) A ecologia sensível é desse

modo pré-objetiva e pré-ética” (Idem, ibidem). Ingold, como ele mesmo demonstra,

não reivindica a introdução de uma ciência indígena alternativa, em contraposição a

Ocidental, mas uma outra ontologia, a da “habitação”.

O processo de embodiment não implica nessa mesma condição, pois só pode

ser mantido em condições em que a cultura seja condição inicial e final da análise. O

curador embodified de Csordas é aquele que objetifica a presença do espírito pela

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familiaridade das suas manifestações intersubjetivas culturalmente determinadas. Ao

ser expulso, o espírito vem a causar alguma reação física no corpo fenomenal do

paciente, a partir das disposições culturais orquestradas no habitus carismático. O

habitus inconscientemente guia as “imagens cinestésicas” que evocam ação dos maus

espíritos: vomitar, urrar, rolar no chão, etc. Essas manifestações mais violentas

acontecem quando as pessoas são assediadas por um grupo de espíritos.

Representacionalmente, a inclusão da manifestação física da expulsão do demônio é

feita dentro de um signo cultural. Quando, por exemplo,

“(...) o espírito da Bruxaria parte com o “riso estridente de uma hiena”, deve ser entendido em

relação à definição cultural da bruxaria como uma prática oculta conectada com Satã, e daí

profundamente maligna. O grito horripilante é um componente somático enraizado na

experiência e no simbolismo do mal na América do Norte – daí a conexão aparentemente

“natural” entre o grito e o espírito” (Csordas,1990, p.17).

Ao tratar o self como o elemento que permite apontar a experiência com o

demoníaco como “totalmente outra”, Csordas, todavia, faz do sagrado e das entidades

não-humanas o não-eu, que afinal é o inefável ou transcendente. O relato dos

caçadores Cree sobre os encontros com o caribu demonstra os atos de atenção que

requerem uma presença sentida olho por olho com o animal, que é uma outra pessoa,

ao invés de um não-eu, cujo ser é entrelaçado com o do caçador (Ingold, 2000, p.24-

25).

Um equívoco de Csordas é propor a conceptualização da origem do

“sobrenatural”, por meio dos seus dados de campo, como algo inefável e

transcendente, que em certa medida pode ser conveniente para a análise da

experiência religiosa dos carismáticos, na qual o transe ou a possessão é caracterizado

por interromper o fluxo habitual dos rituais. Fica uma lacuna acerca daquelas

experiências em que o transe do paciente constitui um elemento fundamental e bem-

vindo no processo terapêutico.

No candomblé, por exemplo, a possibilidade desse “totalmente outro”,

“transcendente” e “inefável”, fica ainda mais obscurecida. Em primeiro lugar, O

Orixá “não está fora”, mas habita o corpo do adepto, que afinal de contas é um dos

seus descendentes, visto que é o seu filho. O corpo é o meio ambiente, também em

constante mudança, que inter-relaciona os seus constituintes humanos e não-humanos.

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Em segundo lugar, estar possuído pelo ancestral64 só acarreta, inicialmente, uma

experiência desagradável de perda do controle, muito mais devido ao processo de

acomodação contínuo e simultâneo entre o Orixá e o filho, efetuado no corpo, sendo

este último e a pessoa, unos. A perda do controle não é uma situação permanente de

mal-estar, mas transitória. Csordas equivoca-se ao considerar o self o centro

fenomenológico da encorporação da “identidade” carismática, sendo um conceito que

deve ser verificado “transculturalmente”, para além do seu contexto etnográfico.

Veremos adiante que a polarização do self e da pessoa é o mesmo tipo de polarização

que ocorre entre a experiência e a cognição.

* * *

Na citação que trouxemos do primeiro capítulo para este, já disposta em seus

pormenores no início dessa sessão, Ingold afirmava que a economia do conhecimento

dos caçadores Cree não podia ser entendida em termos de intersubjetividade, mas de

“interagencialidade”, pois os humanos e os não-humanos tinham uma ontologia

simétrica que os permitiam serem potencialmente dotados de personalidade. Ingold,

sem dúvida, quer dizer que esta simetria redunda na impossibilidade dos Cree terem

natureza ou cultura, situação próxima àquela dos nativos de Hagen.

Latour (1994b), atento às idiossincrasias do mundo moderno, mantém que é

possível reverter “aqui”, e não apenas “lá”, a intersubjetividade em

“interobjetividade”. O principal procedimento para essa reversão é modificar o

“papel” dos objetos na interação social dos modernos, e igualmente a definição de

interação. Latour (2001) observa que o mundo intersubjetivo é limitado às

intencionalidades e consciências humanas, deixando pouco espaço para a

intencionalidade dos não-humanos. Desse modo, o objetivo central do texto é

demonstrar que o estatuto dos objetos deve ser mudado na análise social, pois eles

devem ter o “papel” de atores nas suas várias relações com os humanos.

A interação social, segundo Latour (1994b), concentra alguns aspectos

básicos: ter pelo menos dois atores, que devem estar presentes fisicamente face a face;

eles devem estar a par um do comportamento do outro, implicando em uma

comunicação, de modo tal que o comportamento de cada um deve estar em função das

64 Entre os carismáticos, por exemplo, existe um ato performativo chamado de cutting of bonds em queos ancestrais são definitivamente afastados dos seus descendentes.

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modificações acarretadas pelo comportamento do outro. Latour insinua que essa

definição clássica de interação é “(...) melhor adaptada à sociologia dos primatas que

a dos humanos” (Idem, p.588). É mais bem adaptada porque ela é um exemplo

extremo de interacionismo, os atores estão co-presentes e se envolvem face a face,

“(...) em ações cuja dinâmica depende, em contínuo, da reação dos outros” (Idem,

ibidem). Encontramos, como designa Latour, já entre os símios a “socialidade

complexa” das interações. A sociologia dos símios facultaria posicionar a simetria

entre a vida social dos humanos e dos primatas.

A sociologia humana não poderia, desde então, explicar as diferenças entre

humanos e babuínos, pois mesmo que não sejamos babuínos ou chimpanzés, nossas

relações são envolvidas com as deles. A diferença marcante dos humanos e dos

primatas é a seguinte: enquanto entre os primeiros a interação forma a vida social,

entre os segundos a interação é um fenômeno primário que diz muito pouco acerca da

vida social. A divisão do social e da interação é a mesma que se encontra entre a

irredutibilidade na “forma de vida teórica” entre a polarização das sociologias do

indivíduo e da estrutura. Ora a interação é dirigida pela totalidade do social, ora a

interação é a suspensão momentânea dessa interferência. Mais uma vez, Latour

observa que as interações dos humanos têm uma ordenação paradoxal, implicando em

uma contradição: se ela é circunscrita a um quadro de co-presenças, é, igualmente,

uma rede que desloca a simultaneidade, a proximidade e a personalidade. A interação,

local, e a estrutura social, global, são, no caso do universo moderno, separadas pelo

abismo introduzido teoricamente entre elas (Idem, p.590-591). A interrupção desse

fluxo, segundo Latour, é a medida propriamente paradoxal dos modernos com relação

aos símios. Mais uma vez, entre os últimos, o “(...) social compõe-se inteiramente de

interações” (Idem, p.591).

Os primatólogos tal como os sociólogos quando querem superar ou se afastar

da imediatidade das interações precisam de um

“(...) instrumento capaz de calcular, um equipamento capaz de somar (...) os defensores da

estrutura social supõe sempre a existência prévia desse ser sui generis, a sociedade, que se

manifesta nas interações. Ora, a única prova que temos da existência desse ser vem da

impossibilidade de manter uma interação face a face sem que venha logo com ela um

emaranhado de relações estabelecidas com outros seres, em outros lugares e em outros tempos.

Sozinha a debilidade da interação face a face, força a inventar o quadro sempre presente da

estrutura” (Idem, ibidem).

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Apropriando-nos da perspectiva de Latour, podemos inferir que a solução para

os impasses, devido à ênfase nas relações diádicas, da intersubjetividade tem uma tela

de fundo comum tanto na “fenomenologia cultural” quanto na “sociologia

fenomenológica”: a vida social ou cultural. Na primeira a solução é feita com a

utilização da noção de habitus. Na segunda, como observamos no capítulo um, o

problema é resolvido nas “tipificações” ou “ações racionais” que a vida social produz.

Nas duas metodologias, o abismo que separa o indivíduo e a sociedade é um dado

originário. Elas julgam haver um fosso separando o “agente da estrutura” ou o

“indivíduo da sociedade” (Latour, 1994b, p.593).

Geertz imagina resolver este problema recorrendo a uma abordagem que

divide a vida social em camadas de relações, que podem ser elaboradas, através do

nível de proximidade dos sujeitos por categorias como “consócios”,

“contemporâneos”, “predecessores” e “sucessores”. Baseando-se no projeto

schutiziano, ele achou pertinente posicionar a qualidade da interação entre os

balineses no nível mais formal, ou representacional, dessas camadas, o dos

contemporâneos; sendo este onde as interações conservam uma maior racionalização.

Csordas pretende solucionar o impasse com uma saída que denota ainda mais a

profundidade do abismo: toma o caminho inverso dos defensores da estrutura social,

delimitando que o fundo comum de toda interação é o espaço do “irrefletido”, onde a

consciência não sente os efeitos determinantes da cultura ou da sociedade. Csordas,

entretanto, supõe que esse irrefletido não pode ficar muito tempo sem uma

referencialidade, logo a cultura é o próprio meio ambiente desse irrefletido.

Em ambas as abordagens, uma solução dialética parte dos pólos indivíduo e

sociedade para “imaginar fórmulas intermediárias” de arranjo entre eles que mais

confundem do que esclarecem (Latour, 1994b, p.595). O problema do ator e do

sistema provém da obrigação de escolher um ponto de partida, seja na estrutura, seja

na ação individual, seja em partir dos dois pólos.

Csordas é tão moderno quanto Geertz, pois, além de reduzir os não-humanos a

objetos culturais, faz o trajeto de toda a “atitude crítica” moderna: “(...) impedir e

resistir ao attachement dos objetos” (Latour, 1994b, p.598), projetando nos demônios

as determinações da vida social. Ele toma o indivíduo e a sociedade como entidades

absolutas que definem a qualidade das interações e das estruturas, logo o pré-objetivo

e o objetivo são “adventos” para lidar com o paradoxo que os próprios modernos

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inventaram para si. As ciências humanas, segundo Latour, não estudam os objetos

porque eles são reduzidos a fetiches. Os carismáticos, na monografia, projetam nos

seus demônios a sua vida social. Os demônios, afinal, não contam neles mesmos.

Csordas, neste sentido, é um pouco antifetichista. Latour indica que a ciência social

precisa abandonar a imitação das ciências naturais, deixar de fazer a bifurcação entre

o papel dos objetos feitos, os maus objetos, e dos objetos reais, os bons objetos, que

são as forças imateriais da sociedade ou da natureza.

* * *

A meu ver, estar “além” da representação não ocasiona, na prática de pesquisa

de Csordas, o fim das cesuras dos humanos e dos não-humanos, visto que os maus

espíritos, atuando no plano das emoções, são percebidos pelos afligidos como um

pensamento e um comportamento que fogem ao seu controle, algo eminentemente

restrito à consciência humana. Os maus espíritos discernidos são “(...) construídos

como elementos do seu habitus (o dos carismáticos) e ameaças para o self sagrado”

(Csordas,1994, p.201). No pré-objetivo, o outro sagrado é veiculado no self pela

recorrência de uma emoção. Quando representada ou ideada, nas práticas rituais, essa

mesma emoção transforma-se nos maus espíritos: objetos culturais que na realidade

restrita aos humanos são comandados a partir, “em nome de Jesus”, do corpo do seu

hospedeiro, para o “pé da cruz”.

A cultura sendo uma faculdade humana torna improvável e impensável que os

espíritos venham a habitar o mundo dos carismáticos como entidades dotadas de

agência. Csordas, ao formular sua teoria acerca da origem da religião, move o pêndulo

da objetivação da sociedade para a subjetivação dos indivíduos. A dicotomia entre

humanos e não-humanos nunca é desfeita, pois a inter-relação entre os carismáticos e

os espíritos é desenvolvida em um meio ambiente comportamental cultural. Os maus

espíritos são as versões mais radicais da alteridade do sagrado porque agem no plano

mais não-humano dos humanos, as emoções. Mais não-humano porque são pré-

abstratas, pré-racionais e anti-sociais. A proeminência da cultura na abordagem de

Csordas ocasiona essa cesura com o sobrenatural. A imposição dessa solução dialética

provoca um impasse do qual Csordas não sai em nenhum momento. Apesar de

apontar o momento de transcendência que preenche o início de toda percepção,

Csordas não se dá por satisfeito e aponta a cultura como um meio ambiente que seria

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a condição necessária para a formalização do conteúdo indeterminado das emoções do

ser-no-mundo. Todavia, já apontamos, Csordas não se cansa de afirmar que o próprio

Merleau-Ponty reconheceu que na sua obra faltou elaborar uma análise em que a

relação entre percepção e os processos culturais estivesse explícita. Baseando-se nessa

negligência, Csordas utiliza a sociologia bourdieuana.

Porém, o próprio Merleau-Ponty parece não negligenciar os aspectos culturais

com a fenomenologia, somente afirma que o mundo social ou cultural pode ser “(...)

campo permanente ou dimensão de existência” (1971, p.365). O mundo social não é

um objeto ou soma de objetos, “(...) mas já existe quando o conhecemos ou o

julgamos” (Idem, ibidem). Todavia, isso não demonstra que o social seja algo real ou

construído, entretanto que existe efetivamente se suscita uma presença no sujeito. O

social, em Merleau-Ponty, é uma modalidade existencial entre outras. “O sujeito e o

objeto [são] dois momentos abstratos de uma estrutura única que é a presença”

(Ibidem, p.433). No método fenomenológico, antes de deduzir a consciência ao

exterior ou o exterior à consciência, há uma comunicação originária com o mundo.

Sentir-se semelhante a alguém é devido à coexistência em uma situação, um

compartilhar de obrigações e gestos. “Não é a economia ou a sociedade consideradas

como sistemas de forças que me qualificam como proletário, é a sociedade ou a

economia tais como as trago em mim, tais como as vivo – e não é também uma

operação intelectual sem motivo, é minha maneira de estar no mundo (...)” (Ibidem,

p.446).

Merleau-Ponty apresenta um projeto existencial radical, enquanto Csordas,

procurando as complementaridades, na fenomenologia cultural, cai em uma solução

moderna, tentando achar uma transcendência para suprir a subjetivação “radical” dos

carismáticos. Do mesmo modo que observamos em Geertz, a representação dará a

consistência ou homogeneidade necessária a sua tradução. Enfim, a fenomenologia

cultural é um oxímoro e está muito próxima da “sociologia fenomenológica”. Se na

primeira o self é o construto que viabiliza a análise do material carismático, na

segunda a pessoa é o construto que permite a conceptualização material balinês. A

pessoa é somente a representação do self.

* * *

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Csordas atenta para o caráter especulativo e consistente das representações, no

entanto não resolve o problema da série de complementaridades que fabrica. O pré-

objetivo é utilizado como um advento metodológico porque a pesquisa se apóia em

uma intensa negociação entre antropólogo e nativo. Advento é no sentido utilizado

por Marilyn Strathern (1990), a “tecnologia” que cria uma tradução que abranja as

inconsistências dessas relações. Seria menos uma outra ontologia do que uma forma

de conceptualizar a grande extensão do seu material. No caso de Ingold (1993), o pré-

objetivo está sempre presente, porém como “comunhão de experiência” “educação da

atenção” “skills”, seus propósitos são mais “radicais” que os de Csordas.

O pré-objetivo, nos escritos de Csordas, talvez, não tenha estado aí desde

sempre porque supõe uma objetividade inevitável. O pré-objetivo, pré-conceitual,

ante-predicativo, pré-tético são noções que, na filosofia Ocidental, expressam a tensão

entre experiência e cognição, ou seja, são tentativas de recolocar a ciência no mundo

ou na “escuridão da caverna”. A pertinência do pré-objetivo, se a tradução traspassa

aquilo que está sendo traduzido, é esticar os fios da reflexão em direção ao mundo em

que ela se origina. Porém, no meu entender, substituir o “relativismo cultural” por um

“relativismo fenomenológico” é continuar exportando as grandes divisões, isto é, o

primado deixa de ser das visões de mundo alternativas de uma realidade externa e

passiva, e passa à experiência vivida, que é anterior a qualquer objetificação.

A situação, portanto, é a seguinte: ao invés de universalizar a preeminência da

cognição, universaliza-se a predominância da experiência, até aqui, tudo bem,

entretanto se universaliza, em um único movimento, a natureza indispensável das

objetificações, que se formam após a experiência. A natureza dessas objetificações

não é problematizada quanto à localidade dessas discussões no seio da epistemologia

Ocidental; tampouco, diga-se de passagem, o alcance ou o limite desse movimento

forçoso, da percepção à objetificação, em outras localidades é perseguido. Podemos

formular esta indagação: Será que as mesmas polarizações fazem da parte do universo

Bororo, Obu ou Cree, por exemplo? Csordas mundaniza a natureza da reflexão, mas

relativisticamente faz da experiência→ objetificação uma passagem inevitável e

universal à representação. Ele não delimita a parcialidade desse registro de

explicação, ainda assim afirmar que as objetificações, no regime de enunciação da

Ciência, são o produto secundário do processo reflexivo (Idem, p.7-8) pode conferir

um tom mais mundano à tradução antropológica.

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Se em Geertz e na sociologia fenomenológica observamos que era possível,

com alguma consistência, fabricar o objeto, dando-lhe uma mente, uma sociedade,

uma cultura, etc; no caso de Csordas e da fenomenologia cultural a intensa negociação

entre ele e os nativos permite que conduza a subjetivação dos pacientes às últimas

conseqüências, ainda que isso seja um plano complementar ao das objetivações ou das

sistematizações. Csordas é moderno, dado que seu faitiche consiste em fazer

remendos - naquilo que está quebrado “forma de vida teórica” (Latour, 2002) - através

de um grande número de operações dialéticas que restituem artificialmente as

conexões entre self e pessoa, subjetivação e objetificação, pré-objetivo e habitus,

fenomenologia e semiótica, etc.

Como Pasteur, os candomblecistas, Malinowski, Durkheim, Geertz, Clifford,

Csordas fortalece as hostes “amodernas”, pois conscienciosamente faz remendos ou

pontes no continuum que foi quebrado no mundo moderno, aquele entre a experiência

e a cognição. Csordas não segue os impulsos iconoclastas de Clifford, fica resignado

com a possibilidade de complementar o que, de fato, na “forma de vida prática” é

sinonimizado. Ele deseja complementar as forças das duas divindades que no mundo

moderno vivem a desfazer as ilusões dos sujeitos: a imanência e a transcendência da

cultura/sociedade. Mesmo que procure arrumar um mundo, onde elas possam viver

harmoniosamente, Csordas é superado por elas e começa, por conseguinte, a se

desfazer das forças, que entre os modernos são desprezíveis: a dos não-humanos. Na

sua fenomenologia cultural, os demônios só têm algum estatuto no mundo da cultura

se forem o seu objeto, isto é, construídos culturalmente. Se não for desse modo, eles

são um mero apanhado de emoções, pensamentos e comportamentos fora do controle

da cultura, ou da sociedade, e do self.

Jamais fomos representacionalistas, mais uma vez, porque Csordas não

consegue colapsar as dualidades que propunha. As suas próprias divindades, a

experiência e a cognição, fazem que ele se perca ou se confunda no meio do caminho.

Csordas vai contra a maior das prescrições do mundo moderno: tentar aproximar essas

divindades inconciliáveis com artifícios dialéticos, que só obscurecem mais do que

esclarecem o paradigma do embodiment.

Assinalamos neste capítulo o quanto o deslocamento em direção à pré-

constituição dos objetos culturais é um pouco decepcionante para o tratamento do

problema da representação, continuamos a nos nutrir das mesmas noções que deram

aos modernos a sua invencibilidade diante dos outros coletivos, são elas a natureza e a

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cultura. No próximo capítulo, exibiremos aquelas práticas de pesquisa em que o

problema das teorias representacionais do conhecimento, principalmente o problema

da epistemologia do sujeito e do objeto, é questionado, a partir do próprio

conhecimento que o antropólogo aprende perceptivamente ao longo da experiência de

campo. O que comumente é chamado de “conhecimento encorporado”, tipo de

conhecimento que exige algum tipo de conceptualização das próprias transformações

que o antropólogo passa, com o intuito de criar condições de pesquisa etnográfica

mais intensas e íntimas em relação aos nativos ou porque o próprio nativo exige a

mudança.

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CAPÍTULO 4: JAMAIS FOMOS REPRESENTACIONALISTAS

No primeiro capítulo, introduzimos a possibilidade de um plano mais

simétrico entre as práticas modernas e não-modernas, a partir do faitiche. Mostramos

que a fabricação do mundo social, na sociologia durkheimiana, constituía tanto uma

forma de existência humana, que demonstrava toda a temeridade que envolvia a

emancipação do “Ego Transcendental” e sua vida sem vínculos, quanto um novo solo

para as traduções antropológicas, baseadas na descrição das representações coletivas.

O efeito na tradução antropológica foi duplo: primeiro garantiu uma nova fundação

para a cognição ou para as operações lógicas, cujo manancial, desde então, era a

sociedade; e segundo, permitiu a essas traduções captar as consistências ou a

objetividade das representações, transportando-as do mundo dos nativos ao outro, o

dos antropólogos, sem grandes perturbações. Geertz, como mencionamos, podia

laboriosamente fabricar os seus objetos e depois apresentar, de modo bastante

sistemático, os fatos sociais balineses. Nesse capítulo, vislumbramos como seriam

estes seres que, embora construídos por nós, conseguem nos superar.

No segundo capítulo, fomos até Clifford e destrinchamos a impossibilidade da

sua pós-modernidade, pois ele vivia a sombra dos mesmos seres sem os quais os

modernos não conseguiriam viver. Clifford, o iconoclasta por excelência, acreditava

que os modernos “acreditavam ingenuamente” (Latour, 2002) na neutralidade do

“sujeito conhecedor” (Rorty, 1994). Cego pelo ímpeto de destruir imagens, ele não

enxergava que os seus maiores adversários criavam infatigavelmente as “condições

apropriadas para a realização da pesquisa de campo” (Malinowski, 1978). Retomando

a lucidez, compreendeu a violência dos seus atos, pondo-se a substituir a divindade

expurgada, do observador neutro, por outras tão potentes quanto as primeiras: as

forças impessoais da raça, do gênero, do poder, da cultura e da sociedade. Pudemos

notar nas ações de Clifford as mesmas atitudes dos modernos: quebrar para então

remendar grosseiramente as suas divindades.

No terceiro capítulo, buscamos uma prática de pesquisa, a de Csordas, que não

se seduzia por uma crítica à representação nos moldes de Clifford, ou seja, não

limitava a representação à produção textual, sob os padrões estilísticos do realismo

literário. Csordas promove um questionamento à objetividade na antropologia que não

é um ataque a mesma, porém uma via em que possa construir uma ponte com a

subjetividade. Ele, no entanto, malogrou, a meu ver, porque no centro das suas

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conceptualizações mantinha como dadas e originárias as polarizações que davam

sentido às alternâncias das cesuras modernas. O autor foi superado pelas divindades

que tentava conectar, perdendo-se no caminho entre a experiência e a cognição.

Dizíamos, portanto, que Csordas ia contra maior das prescrições do mundo moderno:

tentar aproximar essas divindades inconciliáveis com artifícios dialéticos, que só

obscureciam mais do que esclareciam o paradigma do embodiment. O resultado dessa

aproximação não foi dos mais produtivos, pois, afinal, mantinha intacto os divisores.

Em todos esses momentos, delimitamos o quanto nós jamais fomos

representacionalistas porque, por um lado, sempre estávamos envolvidos com seres

ou operadores que nos superam ligeiramente. Por outro lado, o mais assustador para o

nosso trabalho foi constatar que, entre os modernos, o attachement aos objetos

(Latour, 1994b, p.598) é algo tão insuportável que toda tentativa de solucionar os

impasses são mirabolantes, pontuando em todos os momentos o improvável do mundo

moderno: uma aproximação sem intermediários entre os pólos natureza e cultura,

sociedade e indivíduo, fato e feito, humano e não-humano que são parte da sua

Constituição. Enfim, mantemo-nos fiéis à hipótese principal da dissertação: afirmar

que os faitiches (Latour, 2002) são, como nos outros coletivos, nos laboratórios, para

o ator comum, embora com “pequenas diferenças” (Ingold, 1993), também, parte

integral da produção sociológica e antropológica.

No nosso capítulo final, deveremos notar que algumas tentativas que buscam

novamente nos reatar aos objetos recorrem a um sem números de malabarismos para

tentar lidar com o que ficou eminentemente proibido na Constituição Moderna: o

attachement aos objetos, chamados de fetiches (Latour, 1994b, p.598). A Grande

Divisão reproduziu uma “matriz de contrastes” (Strathern, 1980) e não somente

aquelas entre humanos e não-humanos ou natureza e cultura, mas também entre “Nós”

e “Eles”. Esta última polarização ratificou a preeminência da razão e da

predominância das forças impessoais da sociedade, uma das nossas maiores

divindades; e povoou, ao mesmo tempo, o mundo com crentes ingênuos que não

reconhecem o verdadeiro domínio das suas ações. O que impressiona, nos modernos,

é a série de remendos que eles tiveram que fazer para restaurar os seus faitiches,

quebrados a golpes de martelo pela ferocidade da sua iconoclastia.

Até aqui, temos visto que todos os autores, cujos textos analisamos, não

conseguem esconder esse fazer, que simetricamente compõe as raízes da palavra fato,

aquela de um saber objetivo e sem crença, e da palavra feito, aquela do saber falso dos

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fetiches, atividade dos crentes ingênuos. Em maior ou menor intensidade, temos visto,

principalmente, com Durkheim, Geertz, Clifford e Csordas, um grande número de

tentativas de solucionar os impasses da existência substancial e dada do indivíduo e da

estrutura. Em nenhum momento, porém, eles conseguiram suprimir o fazer que

acompanha simetricamente as práticas modernas e não-modernas.

Continuaremos, então, a apontar este fazer nas práticas de pesquisa de alguns

autores, que buscam promover uma outra configuração para a tradução antropológica.

Quando utilizamos a expressão “attachement aos objetos”, lembramos daquelas

práticas de pesquisa que, atentas aos impasses gerados pela epistemologia do “sujeito

conhecedor”, propõem novas formas de tradução, ficando mais cuidadosas acerca das

dimensões sensíveis e imediatas do trabalho de campo, onde a criação das condições

apropriadas para a pesquisa de campo exige a própria transformação do antropólogo.

Especificamente, estaremos aqui tratando de três experiências de “conhecimento

encorporado” (embodied knowledge). Em termos genéricos, o propósito deste capítulo

final é oferecer ao leitor alguns indícios que formam uma superfície simétrica entre os

modernos, os seus críticos e os não-modernos, fundada em um elemento comum: um

senso de fazer ou fabricar seres que nos superam e acabam por nos conceder uma

autonomia que sem eles não possuiríamos.

Em primeiro lugar, estaremos trazendo à baila um artigo de Carol Laderman

(1997), explicitando as armadilhas que este reatamento dos vínculos entre “Nós e

Eles” podem produzir, de maneira ainda mais exacerbada, a promoção da metafísica

Ocidental (Strathern, 1980) sobre as outras formas de existência humana. Desse

modo, o mais interessante na sessão será notar como Laderman exporta para os outros

coletivos as mesmas tensões que já havíamos evidenciado em Csordas, a partir da

passagem inevitável do fenômeno à representação. Laderman fabrica a sua própria

aculturação no interior destas tensões e chega a um resultado que aos olhos de um

não-moderno seria muito familiar.

Em segundo lugar, notaremos que Mark Harris (2003), ainda que não incorra

nos mesmos procedimentos de Laderman, não consegue se ver livre dos mesmos

remendos ou complementações que encerravam, na prática de pesquisa de Csordas, a

especificidade dos faitiches dos modernos: quebrar para depois remendar ou restaurar,

na vida teórica, a passagem ou união entre a experiência e a cognição. Harris expõe

formas de “conhecimento tácito”, cognitivas e práticas, - que embora postulem cada

qual ao seu modo uma nova fundação para o conhecimento - enquanto maneiras

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alternativas de constituir uma prática de pesquisa. Enfim, sintetiza estas duas metades,

em tensão permanente no mundo moderno, no conceito de habitus.

Em terceiro lugar, encontraremos, na monografia de Robert Desjarlais,

algumas das preocupações centrais do que se veio a chamar de crise da representação

na antropologia, crise das teorias representacionais do significado e das traduções que

são animadas por esse espírito. O ponto central do conhecimento que ele encorpora,

através do transe xamânico, é sustentado tanto em premissas construtivistas,

fabricando os mesmos seres dotados de cultura, mente, natureza, metafísica, self

quanto em premissas realistas, pois ele é arrebatado por esses seres que conferem

objetividade à sua tradução de uma maneira visceral: o seu transe é viabilizado,

efetivamente, pela promoção do seu modo de conhecer sobre o dos nativos. Desjarlais

atinge o transe devido aos seres que tal como os candomblecistas, ele teve que

“assentar” (Latour, 2002).

Por fim, a quarta sessão, homônima do título da dissertação, é uma extensão

dos comentários sobre a monografia de Desjarlais e a recapitulação dos momentos da

dissertação, onde indicamos a proporção em que nós jamais fomos

representacionalistas. Devo advertir ao leitor que por se tratar de uma monografia, o

texto de Desjarlais receberá uma atenção maior que outros. Em todo caso, a riqueza

dos seus dados de campo, principalmente sobre os procedimentos rituais do xamã

Yolmo, será um pouco ofuscada por estar atendendo aos interesses da nossa análise.

4.1 O embodiment e a aculturação do antropólogo

Carol Laderman no artigo, The embodiment of symbols and the acculturation

of the anthropologist65, produzido a partir de experiência de campo na zona rural da

costa leste da Malásia, salienta que os sistemas simbólicos possuem níveis que,

embora variem dos mais abstratos aos mais concretos, estão interpenetrados,

contribuindo para a manutenção do sistema.

“O nível mais abstrato reflete e dá coerência para uma visão de mundo (...) O nível médio de

abstração fornece metáforas para o raciocínio no mundo rotineiro. O nível mais concreto é a

experiência sensorial direta que ancora o sistema em pontos estratégicos da realidade empírica

e age como um suporte estrutural do edifício simbólico” (Laderman, 1997, p.183).

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Ela explica que as evidências mais salientes da validade do sistema

apresentam-se “(...) no contexto da cura ou nas situações tidas como perigosas” (Idem,

ibidem). Da mesma maneira que Csordas, ela não escapa ao problema fundamental do

paradigma do embodiment: propor soluções dialéticas para colapsar a dicotomia entre

experiência e representação. Eis, por conseguinte, que “[a] estrutura simbólica torna a

experiência significativa, mas sem o input da realidade sensorial o edifício

esmigalharia” (Idem, ibidem). Em resumo, ela mantém as complementações ou

remendos do embodiment, pois “[a] dialética entre a realidade simbólica e a

experiência corporal sustenta ao invés de questionar paradigmas” (Idem, p.196).

Laderman, no texto, indica que quatro aspectos fundamentais do simbolismo

malaio, explicados por seus informantes, tornaram-se parte da sua experiência

pessoal. A realidade empírica, locus dos nossos sentidos, é, segundo ela,

experienciada por todos nós, sendo fundamental, em primeiro lugar, para a

manutenção de um sistema simbólico, impedindo-o de se destacar da existência

humana. Em segundo lugar, é este mesmo sistema simbólico, por um outro canal, que

nos permite “(...) interpretar a experiência em uma maneira que nos ajuda a acreditar

que o cosmo é significativo, que coisas se conectam, que a vida tem um objetivo, e

que seres humanos (...) podem adquirir conhecimento para lidar com o funcionamento

de um universo ordenado” (Idem, ibidem; grifo nosso).

Podemos inferir que a “confusão é completa”, pois explicita as alternâncias

das cesuras modernas entre imanência e transcendência: por um lado, a realidade

empírica da experiência humana impede o sistema simbólico de se destacar desta

experiência; e, por outro lado, este sistema simbólico determina, por um outro canal,

esta mesma realidade. A princípio, já podemos entrever este “paradoxo moderno” que

acompanha a prática de pesquisa de Laderman, que, ao invés de sinonimizar realidade

e construção, permanece indecisa quanto à objetividade dos sistemas simbólicos e a

subjetividade da realidade empírica, de modo que a primeira determina a segunda, e

esta mantém aquela atada à existência humana. A realidade empírica, o locus dos

nossos sentidos, é padronizada por um sistema simbólico e apartada dos constituintes

não-humanos da realidade “real” da natureza. Enfim, é restrita somente aos humanos.

65 O artigo está coletânea organizada por Thomas J. Csordas, Embodiment and experience: theexistencial ground of culture and self (1997).

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Destarte, ela divide o artigo em duas sessões: “A primeira sessão deste

capítulo discutirá o embodiment do simbolismo malaio. A segunda sessão discutirá a

aculturação deste embodiment, como foi experienciada pela antropóloga” (Laderman,

1997, p.183). Observemos, a princípio, os elementos simbólicos considerados por ela

para, gradativamente, sublinhar a série de divisores que ela lança mão com o intuito

de fabricar a sua encorporação.

* * *

De acordo com a “teoria malaia”, conforme ela descreve, ao nascermos nós

possuiríamos quatro humores corporais, variedades de “Ventos Internos” (angin), que

determinam a personalidade, e o “Espírito da Vida” (Semangat)66. Além destes

atributos inatos, que compõem o self, ela destaca que há também alguns alimentos

(bisa) que causam algum desarranjo a tais atributos, levando a perda do equilíbrio

interno. O equilíbrio é o elemento fundamental para o bem-estar do indivíduo, da

comunidade e do universo na vida malaia. O equilíbrio é o “tema psicocultural”

(Csordas, 1994) que harmoniza a interação entre o “microcosmo” e o “macrocosmo”,

a “pessoa” e a “sociedade”, o “interno” e o “externo” e assim por diante (Laderman,

1997, p.183).

O “raciocínio humoral”, por exemplo, é baseado, nas palavras de Laderman,

na “crença” universal em quatro elementos básicos: terra, ar, fogo e água. As

manifestações desses elementos no “corpo político”, no “cosmos”, e na “pessoa

humana” são questões contemporâneas no pensamento malaio (Idem, p.183-184). As

“metáforas” do sistema humoral são voltadas às noções de calor e de frescor. A

primeira é identificada com a destruição, já a segunda com a saúde. “Sejuk (frescor)

pode ser usado como um sinônimo de “saudável, energético e agradável” (...) Pana

(calor) pode ser sinônimo de má-sorte, agouro, desastre” (Idem, p.184). Uma pessoa

cujo fígado, a sede das emoções entre os malaios, é frio permanece tranqüila e

despreocupada, se o fígado torna-se quente, o ódio é estimulado.

No plano da pessoa humana, por exemplo, os malaios dependem dos seus

xamãs (bomoh), que lidam com doenças causadas pelo ataque de espíritos ou por

causas mundanas. Um espírito aflige os humanos quando sopram o seu ar

66 Sempre que for necessário esclarecemos estes termos ao leitor, com o intuito de situá-lo na nossadiscussão.

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superaquecido nas costas da vítima, perturbando seu equilíbrio humoral. O curador

detém vários métodos para restaurar o frio e umedecer os elementos terrestres e

aquosos do corpo do paciente. Durante o procedimento ritual, fórmulas mágicas são

recitadas com o paciente de costas para o curador que, em momentos específicos da

recitação, sopra seu ar resfriado, por causa do encantamento, nas costas do paciente

(Idem, p.184-185). Laderman, entretanto, sublinha que as doenças provocadas pelo

ataque de espíritos são mais raras do que as febres, doenças respiratórias ou distúrbios

digestivos, resultantes do desequilíbrio humoral. O desequilíbrio é motivado por uma

dieta, trabalho e repouso impróprios, mudanças climáticas ou problemas na vida diária

(Idem, p.185).

As comidas também são humoralmente quentes ou frias. Comidas quentes

incluem gorduras, óleos, carne animal, especiarias, salgados, etc.. Comidas frias são

suculentas, viscosas, ácidas e adstringentes. A percepção do frescor ou do calor dos

alimentos depende da variabilidade física e temperamental dos indivíduos. Há, por

outro lado, as comidas adequadas para o consumo (sederhana), chamadas de neutras.

Em geral, o sistema humoral é indeterminado: “(...) uma pessoa que tende para a

polaridade quente classificaria como neutra uma comida considerada “fria” por muitas

pessoas, visto que seu próprio corpo não sente seus efeitos refrescantes tão

intensamente quanto os outros deviam” (Idem, ibidem).

Bisa é o poder que os malaios consideram ser usado para o bem ou para o mal.

As palavras de um curador, quando fala cotidianamente, são neutras, mas em uma

cerimônia de cura são bisa, evocando o seu poder curativo. As palavras do sultão são

sempre bisa para os seus súditos. O uso mais ordinário do bisa entre os malaios está

em conexão com a ingestão e a abstenção de alimentos (Idem, p.186). Para os

malaios, evitar as comidas bisa é benéfico à saúde, já que elas exacerbam desarmonias

que preexistem na pessoa, sem que ela o saiba. As comidas bisa podem ser aquelas

que provocam alguma reação alérgica nos nativos. Laderman nota que alguns malaios

desenvolveram uma irritação cutânea, ocasionando marcas avermelhadas na pele,

após ingerirem cavalinha espanhola e albacora. Imediatamente, eles afirmaram que

estes peixes eram bisa. (Idem, p.187).

Laderman entende que as manchas eram resultado do veneno escombrídio. Os

peixes de várias espécies, ela esclarece, contêm a substância chamada histadina, que

em contato com bactérias transforma-se em saurina, uma substância que pode

provocar diferentes alergias. Os peixes escombróides, por causa da temperatura nos

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trópicos, são propensos a ficarem tóxicos quando conservados no sol ou em casa. Ela

ainda acrescenta que o curador orienta o paciente a não comer o peixe quando ele está

envelhecido.

Na passagem que se segue, ela projeta o divisor comum às abordagens

relativistas: as recomendações dietéticas do curador “(...) podem estar baseadas na

realidade, assim como no simbolismo da comida impura” (Idem, ibidem). Na natureza

(realidade), o peixe é parte da espécie dos escombróides liberando toxinas que

provocam alergias nos malaios. Na cultura (construção), o peixe é simbolicamente um

alimento impuro. As reações alérgicas, construídas culturalmente, traduzem o mal-

estar causado pelo peixe, a partir do bisa. A divisão, entre o domínio da realidade

“real” da alergia e o domínio cultural ou “metafórico”, é explícita.

O antifetichismo dos modernos, a meu ver, é o mesmo que conduz Laderman

a recusar o vínculo dos malaios aos não-humanos, dissipando o potencial do peixe que

perturba o equilíbrio interno dos nativos. As alergias são explicadas, não partindo do

princípio que estes peixes são comidas bisa; mas, de preferência, pelas asseverações

das ciências biológicas ou das ciências sociais. A “crença” dos malaios é explicada

dentro da divisão epistemológica das ciências ocidentais. Ao lado da natureza (fato), o

que importa é a produção da saurina, toxina que provoca a alergia. Ao lado da cultura

(construído), importa apreender o simbolismo do alimento impuro, que é, afinal de

contas, uma visão de mundo alternativa para as reações alérgicas que a saurina

provoca universalmente. Culturalmente, a “inteligibilidade” do sistema bisa explica a

“crença” dos malaios, nas palavras de Laderman, suas observações “folk” (1997,

p.185). A “Ciência” no texto de Laderman é o índice de realidade que sustenta a

pertinência das observações tradicionais dos malaios, desprovidas de objetividade ou

de um saber sem crença, tal como o dos modernos. Os malaios, portanto, se enganam

duplamente sobre as reações maléficas provocadas por certos alimentos. Tanto a

cultura quanto a natureza norteiam a realidade e a construção das causas que

provocam o desequilíbrio humoral.

Os problemas da abordagem de Laderman são insolúveis porque ela apresenta

como dadas as divisões entre natureza e cultura, realidade e construção, estendendo-as

ao momento em que ela descreve a experiência da sua “aculturação”, após a

encorporação dos símbolos malaios.

* * *

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Trataremos agora do que ela considera ser o exemplo mais surpreendente

dessa aculturação, relativa ao embodiment do self malaio. Tudo começou quando

passou boa parte da sua estadia observando rituais xamânicos e entrevistando os

curadores e os seus pacientes. Laderman indica que estas observações eram somente a

“ponta do iceberg”, pois a experiência e os dramas dos participantes, aquilo que

sentiam, era invisível ao observador (Idem, p.193). A especificidade do caso de

Laderman, em relação ao de Csordas, é que entre os pacientes malaios, ao contrário

dos carismáticos, nas sessões de cura, o transe não era uma manifestação demoníaca

ou sobrenatural. Esta situação impedia que eles lhe respondessem sobre a

especificidade experiencial do transe. As respostas convergiam na direção de um

caminho exclusivo: a única maneira de conhecer o transe era experimentá-lo.

Laderman sentia-se “(...) desconfortável com a falta de controle que o transe

implicava” (Idem, Ibidem). No segundo ano da pesquisa, quando presenciava um

Main Peteri - “(...) a performance xamânica que cura por meio do canto, da dança, do

transe e de caracterizações dramáticas das forças espirituais” (Idem, p.190) -, o xamã

acenou para que ela se sentasse no tapete abandonado por um paciente. Laderman, a

princípio, julgou que o xamã fosse realizar um pequeno ritual para lhe aliviar de

certos perigos; ao contrário, surpreendeu-se, o xamã começou a recitar a estória do

Angin Dewa Muda, o seu “Vento Interno” (Angin).

O “Vento Interno” define, desde o nascimento dos malaios, a sua

personalidade, talentos e vontades. A presença destes “Ventos” não é detectada no

comportamento do seu possuidor, entretanto é dada à observação somente no transe.

Os “Ventos Internos” corresponderiam, segundo Laderman, ao temperamento que é

herdado, no nascimento, dos ancestrais (Idem, ibidem). Os “Ventos Internos” são

arquétipos que atraem os malaios para profissões ou exigências particulares do seu

Angin. Um homem possuidor de Angin Hala, o Vento do Tigre, expressa seu

temperamento apenas se é um lutador ou ocupa uma posição social que o permita,

sem sofrer retaliações, canalizar sua agressividade. A profissão de uma pessoa deve

estar em consonância com o Angin que possui, a inadequação provoca sakit berangin,

uma doença devida ao bloqueio dos “Ventos Internos”. Um “Vento” reprimido terá

efeito sobre a mente e o corpo, incluindo dores de cabeça, dores nas costas, problemas

digestivos, vertigem, asma e depressão. No Main Peteri, quando é diagnosticado que

os “Ventos Internos” estão sofrendo de sakit berangin, deve ser permitido que se

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expressem “(...) libertos dos confins da prisão corporal, capacitando a mente e o corpo

do sofredor a retornar a um equilíbrio saudável” (Idem, p.191). O paciente entra em

transe quando a estória do seu Angin é evocada corretamente pelo xamã, sendo

acompanhada por sons percussivos de música, colocando o paciente em contato com o

seu Ser interno, com a sua própria natureza interior. No transe, um homem que seja o

possuidor de um Angin Hala rugirá e pulará como um tigre, manifestando as partes

reprimidas da sua personalidade, o que favorece o retorno do equilíbrio.

O Angin Dewa Muda, Vento Interno que Laderman possuía, arquetipicamente,

de acordo com os malaios, confere ao seu possuidor o papel de um jovem semideus,

“(...) cujas necessidades são aquelas da realeza: roupas finas, comida delicada,

perfumes aromáticos, vida confortável, amor e respeito dos vizinhos, parentes e

amigos” (Idem, p.190). Os portadores deste “Vento” devem ser mimados, admirados e

seguros da sua dignidade.

Laderman ressalta que a confiança que depositava no xamã era suficiente para

dissipar os seus medos, assim permitiu que sua consciência adentrasse um estado

alterado. No auge do seu transe, ela relata que sentia o “Vento Interno” com a força de

um furacão no seu interior. A experiência, relatada aos nativos, foi tomada como uma

experiência comum a eles também.

Uma outra experiência, devido à perda do Semangat, vem a realçar, ainda

mais, a sua aculturação e a conseqüente encorporação mais intensa do self malaio:

durante a segunda estadia no campo, uma epidemia de dengue hemorrágico atingiu a

população e também a ela. Laderman indica que o contágio ocorreu nos últimos dias

da pesquisa, manifestando os sintomas, como a febre altíssima, quando chegou a

Nova York, tendo então que ser internada. A dor, ela narra, era intensa. Duas semanas

depois, deixou o hospital sentindo-se exausta e vulnerável. Meses depois, a constante

falta de energia, a suscetibilidade às emoções e a falta de proteção, pois os nervos

pareciam estar na superfície do seu corpo, fizeram-lhe constatar que havia perdido o

Semangat (Idem, p.194).

A pessoa entre os malaios é composta de partes que são encontradas,

igualmente, em toda a criação, algumas compartilhadas com os animais, algumas

restritas à coletividade dos humanos e outras presentes somente em indivíduos. Os

humanos, sendo criaturas de Deus, devem inalar o sopro da vida no nascimento (Idem,

p.188). O “Espírito da Vida” (Semangat) engloba o universo, habitando humanos,

bestas, pedras e plantas. A vida do fogo, por exemplo, é rápida, a da pedra, longa. O

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Espírito da Vida fortalece aqueles que habita, proporcionando-lhes saúde, seja para o

talo de arroz, seja para o corpo humano. O Espírito da Vida, contudo, é extremamente

tímido e sensível, podendo fugir do seu receptáculo, caso ele sofra um susto ou seja

abordado por um objeto pontiagudo, por exemplo. “A perda do Semangat é sentida

como a perda de energia, a perda de confiança, uma fraqueza do corpo e da mente”

(Idem, ibidem).

Laderman relata que provavelmente perdeu o Espírito da Vida quando no

período da doença o médico e o seu assistente fizeram algumas tentativas de tirar

amostras de tutano da sua pélvis. Uma amiga, achando que seria benéfico para ela,

possibilitou que fizesse uma sessão em um tanque de flutuação que provoca a

privação sensorial. O tanque só comporta um corpo. Quando fechado, a pessoa fica

em um estado de silêncio e de escuridão absolutos. Laderman descreve que no tanque

você pode ouvir os murmúrios da respiração, os batimentos do coração e o som do

sangue correndo através das veias. Sem qualquer orientação de tempo e de espaço, o

seu corpo começou a ondular de cima a baixo e logo após girou em um círculo

completo. Ela demarca que isso era fisicamente impossível, pois o diâmetro do seu

corpo era maior que o tanque. Assim que o giro parou, ela via bandos de andorinhas,

que juntas voavam ao redor de uma cacatua brilhantemente colorida. A cacatua

tornou-se o gigante pássaro Garuda, montaria de Vishnu. No entanto, quem montava o

pássaro não era Vishnu, mas Laderman, cujo corpo permanecia na água. Ela conta que

o pássaro foi se aproximando do seu corpo e se fundiu com ele (Idem, p.195).

Neste momento, ela foi tomada por um sentimento de totalidade e de alegria, a

visão demonstrava que o Semangat havia retornado para ela. Depois de sair do tanque,

ela experienciou que não se sentia mais desprotegida. Naquela noite, ao refletir sobre

o ocorrido, lembrava que os malaios “representam” o Semangat por um pássaro. As

andorinhas parecem, segundo ela, “representar”, também, uma parte da sua

personalidade, porque estes pássaros nunca estão parados, ao contrário, parecem

sempre ocupados. Ela era vista desse modo pelos nativos: como uma pessoa que

nunca descansava ou hesitava em ficar acordada a noite inteira para realizar um parto,

assistir uma cerimônia de cura, etc.. A cacatua simbolizava outra faceta do seu self, o

Angin Dewa Muda, que “(...) ama roupas bonitas, jóias e se deleita com a admiração

dos amigos” (Idem, p.195).

Os malaios antes da conversão ao islamismo eram hinduístas. As entidades

hindus ainda aparecem nas cerimônias de cura como seres benéficos, que falam

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através do xamã. Laderman considera que Vishnu é um “(...) símbolo apropriado para

o retorno do Espírito da Vida para uma antropóloga que havia sido recentemente

absorvida no estudo das performances malaias de cura” (Idem, ibidem).

Mesmo que Laderman procure com a sua experiência um relato que aponte

para alguma continuidade entre “Nós” e “Eles”, exporta os grandes divisores que

impedem o attachement aos objetos e aos outros coletivos, partindo da premissa, por

exemplo, que os malaios “crêem” que o “calor” e o “frescor” são “metáforas” do

sistema humoral. O embodiment por estar desde sempre ancorado na

intersubjetividade e na cultura, não consegue tratar os objetos como elementos

constituintes do meio ambiente, apenas ratifica a denúncia que caracteriza a “Crítica

Moderna”: revelar sob as falsas aparências as determinações da cultura e da natureza.

Os constituintes não-humanos da vida malaia são reduzidos a “metáforas”, isto é, são

culturalmente construídos, participando do domínio dos humanos como objetos

codificados pela intencionalidade humana, guiada por um sistema simbólico, o

aparato fundamental que torna a “crença” inteligível e traduzível pela observadora

estrangeira.

Um exemplo é bastante significativo dessa capacidade construtiva dos

humanos que, segundo Ingold, termina por intensificar “(...) o dualismo ontológico

entre sociedade e natureza (...) Por um lado, então, nós temos o mundo humano de

modeladores de animais, por outro, o mundo animal modelado como humano” (1996,

p.133). Podemos acrescentar que essa modelação também é estendida aos vegetais,

minerais e agentes geofísicos. No caso dos Cree, o fato do animal, nos relatos de Scott

e Tanner, respectivamente, ser ou parecer como uma pessoa, expressa as diferenças

acerca das duas análises sobre uma mesma região etnográfica. Se ele é uma pessoa,

não há equivalência metafórica entre humanos e animais, acarretando a redução do

mundo dos últimos ao mundo dos primeiros. Ao contrário das interpretações de

Tanner, em que os animais são como pessoas, as de Scott não terminam na

antropomorfização dos animais ou na biologicização dos humanos; afinal, a

personalidade entre os Cree é o “potencial” que originariamente possibilita aos

inúmeros seres animados tornarem-se humanos, gansos, etc.. (Ingold, 1996, p.133).

Laderman, ao insistir que o Espírito da vida (Semangat) habita humanos e não-

humanos, refere-se a uma equivalência entre eles nos mesmos termos da equivalência

metafórica, que Ingold observa nos escritos de Tanner. Vejamos um exemplo, o do

Espírito do Arroz (Semangat Padi), cujos sentimentos e sensibilidades, na colheita,

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devem ser respeitados, evitando que ele fuja. O arrozal, quando da ocasião da colheita

(o nascimento), é para o malaio como uma mulher grávida, os talos do arroz,

equivalendo ao nascimento de uma criança, após serem cortados de suas plantas, são

envolvidos como os recém-nascidos. Para não assustar o Espírito do Arroz, uma

lâmina curvada escondida, sob a mão, é utilizada para cortá-los. O arroz colhido é

armazenado em uma caixa com um coco, óleo de coco, limas, xampu de raiz de

beluru, cana-de-açúcar, água e um pente. Tudo isso, é para o uso do Espírito do

Arroz, personificado como uma jovem mulher (Laderman, 1997, p.188). O arroz deve

ser estocado por três dias em silêncio, pois o seu espírito é facilmente afugentado.

Nos termos construtivistas, o arroz tem um espírito porque participa no mundo

dos humanos como uma construção cultural alternativa da satisfação de uma

necessidade humana básica, o consumo. Na cultura, o arroz é trazido para o cosmo

dos padrões sociais e das convenções malaias, sendo antropomorfizado. Na natureza,

ele é uma entidade material pertencente ao mundo objetivo e pronto para ser

consumido. O arroz, na abordagem cultural de Laderman, possui um espírito porque é

transposto para o interior das relações intersubjetivas, unicamente, humanas (Ingold,

1996).

* * *

Laderman conclui que a encorporação do sistema simbólico malaio redundou

na sua aculturação, pontuando claramente que as situações pelas quais passou não são

uma prova que o Semangat, Angin ou o “raciocínio humoral” existem como uma

verdade única e absoluta sobre a humanidade e o universo (Idem, ibidem). Esses

termos nativos são “visões de mundo alternativas” (Ingold, 1993; 2000), pois em

outras localidades pessoas são aculturadas por outros sistemas simbólicos. Laderman

tenta configurar uma equivalência entre os sistemas simbólicos Ocidental e malaio,

apontando como condição para isso ter sido aculturada. Em um certo sentido,

podemos supor que, embora aponte que a encorporação é uma situação potencial no

seu trabalho, não consegue viabilizar essa situação sem perder de vista um fundo

ontológico comum a “Nós” e “Eles”: a capacidade de adquirir cultura, a partir de um

equipamento biológico de que somos naturalmente dotados (Geertz, 1989; Ingold,

2000). Destarte, “[o] conteúdo das visões varia com o conteúdo de pensamentos

despertos e das assunções sobre a realidade” (Laderman, 1997, p.196).

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Relativisticamente, ela delimita que se fosse cristã os pássaros seriam um indício da

presença do Espírito Sagrado da Anunciação que surgiu para a Virgem Maria sob a

forma de um rola (Idem, ibidem). A importância fundamental que ela confere à

aculturação esvazia completamente o contexto prático do seu enskilment em prol de

uma transmissão cultural unicamente mentalista (Ingold, 2001), assim consegue uma

consistência e um controle quase absolutos sobre as situações do seu transe, por

exemplo. Na próxima sessão, aprofundaremos um pouco mais este comentário.

De novo, jamais fomos representacionalistas porque Laderman para aceitar a

possibilidade do seu embodiment deve recorrer a mesma prática de “fabricação de

objetos” que Geertz empreendeu; ou seja, para estabelecer um certa comunicação com

os nativos eles são dotados de cultura, sistemas e crenças. Operadores que criam um

fundo ontológico comum para ela iniciar uma experiência encorporada. Entretanto,

ela avança um pouco mais do que Geertz e diz que esses mesmos atributos capacitam-

na ser aculturada por meio da encorporação dos símbolos que ela dotou aos nativos.

Laderman explicitamente é superada por aquilo que construiu, conseguindo uma

autonomia que ela nunca alcançaria sem este faz-fazer. Enfim, além de inventar um

universo cultural malaio, se reinventa com os operadores que ela fabrica. Ela inventa

a cultura, sendo aculturada por essa mesma cultura. Mais uma vez, as divindades

venceram. Ela é tão amoderna como Pasteur, os candomblecistas, Malinowski,

Durkheim, Geertz, Clifford e Csordas.

4.2 A divisão das formas de “conhecimento tácito”

Uma experiência de “conhecimento encorporado” distinta da última que

observamos é a de Mark Harris em “Giving shape to the world: knowing, learning,

representing amongst an amazonian caboclo people”. A tese central do texto

desenvolvido, a partir de pesquisa de campo realizada em um povoado de pescadores

ribeirinhos em Parú, planície aluvial na margem norte do rio Amazonas, próximo à

cidade de Óbidos, no estado do Pará, concerne a uma tradução, sem prejuízos, do

“conhecimento encorporado” (embodied knowledge), um conhecimento que não é

empiricamente observável pelas formas lingüísticas. O que está em jogo no texto são

as próprias técnicas da pesquisa de campo, as análises do conhecimento gerado por

meio da pesquisa de campo e sua expressão na etnografia (Harris, 2003, p.1). Se o

conhecimento encorporado, indica Harris (Idem, p.2), é um resultado da imersão no

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mundo ao invés da transcendência ou da abstração, qual é a implicação desta

afirmação para a etnografia? Harris diz que esta ponderação tem sido renovada no

interior de quatro tendências contemporâneas na antropologia: “(...) a reaproximação

entre antropologia e psicologia, a crítica à autoridade etnográfica, o desafio da

antropologia visual a uma disciplina dominada pela palavra e o desenvolvimento de

uma antropologia do corpo humano” (Idem, ibidem).

O conhecimento prático que Harris apreende participativamente é um modo de

aprender a prestar atenção ao mundo em acordo com outras pessoas. O aprendizado,

então, possui relevância significativa para uma ênfase na participação como uma

parte fundamental do trabalho de campo. Deixar-se guiar pelos nativos (Evans-

Pritchard, 1978), abre um espaço para “(...) re-experienciar formas corporais de

conhecimento” (Harris, 2003, p.11). Formas que se salientam na sua experiência de

campo. Em termos gerais, ele acrescenta que a divisão entre as demandas do trabalho

de campo e da academia ofusca o espaço da consciência corporal que ele obteve no

âmbito pré-objetivo ou intuitivo, onde se origina a pesquisa. Expurgadas das

monografias ou purificadas na tradução, as experiências corporais restringem-se às

idiossincrasias das imediatidades do trabalho de campo.

Através da sua experiência de campo, Harris relata que durante este período,

em janeiro de 1994, conversando com um casal de nativos (Ailton e Ermiria) - o tema

principal da conversa era a sua partida - os três relembravam o que ele havia

aprendido, vasculhando um sem número de eventos e situações, tais como remar uma

canoa, nadar no rio, usar um machete, pescar e limpar peixes, caçar à noite, etc..

Harris conta que se considerava razoavelmente hábil em muita destas atividades, que

ele jamais havia performado antes. Os nativos, embora reconhecessem que havia

aprendido essas atividades, permaneciam céticos que ele pudesse empreendê-las como

um garoto de dez anos. Harris indaga Ailton e Ermiria sobre o por quê um menino

podia remar melhor do que ele. O casal explica que lhe faltava um jeito. Ailton, por

exemplo, explicou a Harris que ele não tinha desenvolvido estas atividades ao longo

da sua vida, e o período que viveu em Parú não era o suficiente para que se tornasse

um perito, pois não aprendeu isto na situação biográfica dessa localidade: “O

conhecimento deste tipo é obtido em processo personalizado de trabalhar e conviver

com outros parentes e vizinhos, sendo constitutivo do vínculo a um lugar” (Idem,

ibidem).

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Em uma certa ocasião, em que observava alguns adolescentes laçando um

bezerro, ele foi convidado a tentar fazer o mesmo. Após muitas tentativas, não

conseguia passar o laço ao redor do pescoço do animal. Harris foi pedir conselhos a

um homem, que prontamente lhe disse não ser professor, aconselhando-o a continuar

praticando e observando os adolescentes. Desse conselho, ele inferiu que seria uma

boa pista para seguir as relações entre pais e filhos, a fim de entender os processos de

aprendizagem e de comunicação nativos. O aprendizado e a reprodução de skills em

Parú não ocorre formalmente, segundo Harris, as crianças nunca são ensinadas

formalmente a pescar, lavar roupas, tirar espinhas de um peixe, ordenhar uma vaca,

etc (Idem, ibidem). Estas atividades são aprendidas pela observação de parentes mais

velhos e vizinhos, sendo praticadas em continuidade. Eventualmente, elas são

acompanhadas pelas explicações verbais dos pais (Idem, p.9). Os nativos ficavam

perplexos quando eram indagados se tais atividades precisavam ser ensinadas. O

desenvolvimento das crianças acontece dentro de um envolvimento ativo com as

atividades dos adultos. O aprendizado não é separado das situações concretas de

instrução.

O artigo de Mark Harris aponta em direção às formas de existência em que o

aprendizado de skills (Ingold, 1993; 1996; 2000; 2001) constitui um elemento

imediato e originário para a imersão em um meio ambiente, neste caso o meio

ambiente da planície aluvial da Amazônia. A “economia do conhecimento” (Ingold,

1996) dos nativos não pode ser de uma faculdade intelectual que constrói em idéia ou

representação esse meio ambiente. Esta economia é mais provável de ser abordada

plausivelmente caso consideremos que viver e conhecer são partes do mesmo

processo. Dos apontamentos de Mark Harris, podemos suscitar o limite que ele

encontra no campo para a ontologia do “sujeito conhecedor” (Rorty, 1994) ao indicar

que a sua pesquisa foi “(...) um processo de re-skilling, de uma transformação

corporal e intelectual” (Harris, 2003, p.3). Harris, entretanto, acena que apenas na

escrita e com o apoio de uma literatura sobre aprendizagem alcançou essa inferência.

Os informantes, ainda que o advertissem que o processo não era pleno, falavam que

ele havia apreendido mais do seu modo de vida que escrevia nos seus cadernos de

campo (Idem, ibidem). Ele havia apreendido, por conseguinte, muito das formas locais

de um conhecimento participativo e não-verbal.

Harris entende que na antropologia contemporânea, muitos autores têm

conferido, ao que ele designa por “conhecimento tácito” ou prático (knowledge tacit),

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definições variadas, que vão desde as perspectivas mais fenomenológicas até àquelas

cognitivistas, abrangendo o conhecimento aprendido no campo e as dificuldades de

transpô-lo para o texto. Entre estas noções ele enfileira, entre outras, o habitus, as

skills, o senso comum, as técnicas corporais. Noções que portam diferentes

entendimentos do conhecimento tácito ou prático. Em suma, o principal desafio de

Harris seria conceder uma forma textual ao conhecimento vivido, que é acessível

somente através do aprendizado (Idem, ibidem). O ponto de partida: o seu “(...) corpo

skilled, como um resultado do trabalho de campo, torna-se um instrumento sensível a

partir do qual [ele] pode trabalhar antropologicamente. Esta técnica foi desenvolvida

como o resultado do envolvimento no campo, requisitando que [ele] avalie a forma e a

representação do conhecimento antropológico” (Idem, ibidem).

Atento às discrepâncias entre uma prática oficiosa e um discurso oficial sobre

a pesquisa, Harris declara que os etnógrafos, costumeiramente, procuram padrões e,

então, constróem esquemas que reduzam a “miríade de observações”, as “técnicas

corporais” e as conversações a modelos, que se diferenciam ou se afastam

abruptamente das fontes originárias em que este conhecimento é viabilizado (idem, p.

4). Ele elabora duas questões para esse tom fictício que acompanha as monografias

(Leach, 1996; Strathern, 1989; 1996).

Na primeira Harris faz-nos, indiretamente, recordar a natureza das traduções

com “grandes traições” que caracterizam os compromissos com a “transmissão da

informação”, no regime de enunciação da Ciência com “c” maiúsculo (Latour, 2000;

2004; no prelo). Faz-nos recordar, também, da substituição dos “modos de

envolvimento”, que viabilizam qualquer etnografia, pelos “modos de construção”, que

invertem, a partir dos conceitos de cultura, sociedade, identidade, entre outros, a

realidade da pessoa como um nexo de relações, pela pessoa como portadora de um

conjunto de regras cognitivas (Ingold, 1993, p.218-219). O primado da

“comunalidade de experiência” é, segundo Harris, uma outra resposta ao impasses que

as traduções criam, visto que por meio da existência encorporada do nosso ser-no-

mundo é possível atingir um plano comunicacional, onde self e outro são um (Harris,

2004, p.4). As skills e a participação, no texto, são dois elementos que evocam uma

tradução com “pequenas traições”, pois a tradução é afetada por aquilo que está sendo

traduzido (Latour, 2000; Velho; 2003). De acordo com Harris, o aprendizado de novas

skills gera um movimento criativo na confecção da descrição de formas de

conhecimento historicamente situadas (2003, p.4).

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Na segunda ele aponta para os desafios que acompanham a evocação, na

escrita acadêmica, de modos alternativos para trazer à baila uma descrição que

permita a recriação de uma situação que é aberta apenas às formas de aprendizado

não-verbalizadas. Em outras palavras, acentua os obstáculos que acompanham a

tradução dentro de um registro de explicação, o antropológico, em que predomina a

captação, empiricamente observável, da comunicação verbal. (Idem, p.4-5). Além

disso, Harris (Idem, p.5), mencionando Gísli Palsson, enfatiza que o desenvolvimento

de skills implica em mudanças existenciais que fazem das situações de campo, não um

acontecimento para ser traduzido culturalmente, mas um evento que estabelece uma

conversação que se estende até a escrita, chegando aos períodos posteriores à

experiência de campo.

* * *

Harris explica que o “conhecimento tácito” da prática pode ser dividido em

dois grandes grupos de perspectivas: o primeiro é o que nós temos observado até

agora nas suas palavras, o de skills, o segundo é próprio da ciência cognitiva, ou seja,

um tipo de conhecimento mais conceptual que acontece nas operações cognitivas do

cérebro. A natureza do conhecimento tácito é apreendida com a participação corporal

em um meio ambiente. Por um lado, há um tipo de conhecimento tácito que é prático,

“(...) o qual emerge de um processo de desenvolvimento em meio ambiente específico

(...) Estas habilidades encorporadas são não-denotativas, não são signos ou

representações” (Idem, p.7). Por outro lado, há uma forma de conhecimento tácito que

diz respeito à

“(...) multidão de informações que ficam além do que pode ser (facilmente) colocado em

palavras, e é mais conceitual. É o tipo de informação que surge imediatamente na mente

quando eu penso no restaurante que eu visitei na última noite, por exemplo. Se eu articulasse,

em palavras, toda esta informação, eu gastaria muitos dias, senão mais, tentando fazer isto. O

“processamento” não-lingüístico do conhecimento deve também incluir outros aspectos dos

quais eu possa ter uma consciência parcial (...) minha memória do restaurante é construída de

modelos mentais cujo conteúdo e estrutura são implícitos, tornando possível a ação humana

inteligente e a ação” (Idem, ibidem).

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145

Ele, então, lança mão de duas perspectivas inerentes a estas duas formas de

conhecimento.

Uma perspectiva adotada por Harris é a perspectiva do aprendizado, a mesma

de Ingold (1993; 2000; 2001), que, tomada a partir de uma analogia com o

aprendizado das crianças, assinala o processo de “educação da atenção” que mobiliza

inteiramente a sua percepção. O processo não é relativo à aquisição de esquemas

convencionais, mas a uma percepção direta dos constituintes humanos e não-humanos

do meio ambiente, através da relação contínua com eles: “(...) aprender a perceber é

uma situação não de adquirir esquemas convencionais para ordenar dados sensoriais,

mas de aprender a prestar atenção ao mundo em certas maneiras através do

envolvimento com os outros nos contextos cotidianos de ação prática” (Ingold,1993,

p.223).

Harris, baseando-se em Ingold, afirma que analogamente ao aprendizado da

criança, relacionado à obtenção de skills ou de um conhecimento vivido, o

antropólogo no campo aprende a perceber da mesma maneira. Se para Ingold o

aprendizado de skills é a condição sem qual uma pesquisa de campo não pode ser

realizada, para Harris, diferencialmente, é uma metodologia, ao lado de outras, que

são parte das estratégias para a coleta dos dados de campo. Em todo caso, ele introduz

que “(...) se uma etnógrafa [ou etnógrafo] aprende uma skill, ao praticá-la ela [ou ele]

pode experienciar a transformação corporal e o contexto onde o aprendizado é

situado, aprendendo a aprender” (Harris, 2003, p.5). Em termos gerais, Harris delimita

que, na sua prática de pesquisa, o tempo que gastou não-intencionalmente em algumas

semanas de trabalho de campo, participando dos jogos e pequenas expedições de caça

com crianças de aproximadamente dez anos, permitiu que criasse condições

favoráveis para a realização do seu trabalho de campo, nutrindo-se de um tipo

particular de papel na pesquisa e sendo introduzido na vida de Parú (Idem, ibidem).

Harris, todavia, adverte que uma analogia estrita entre o processo de

aprendizado e as metodologias antropológicas pode não salientar as “pequenas

diferenças” (Ingold, 1993) entre as condições para o aprendizado das crianças e dos

antropólogos. Para as crianças, por exemplo, aprender a remar uma canoa é uma skill

entre as muitas outras que contribuem para o seu desenvolvimento total (Harris, 1996,

p.6). Para o antropólogo, que se vê obrigado a refletir sobre esses momentos “triviais”

da vida nativa, o entusiasmo provocado pelo aprendizado é um passaporte para um

estranho que tenta ganhar a simpatia de um grupo de pessoas indiferentes a sua

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presença. Distintamente das crianças, “[por] um lado, os etnógrafos deveriam

participar em atividades cotidianas no campo e, por outro lado, eles têm que sair desse

fluxo a fim de refletir, ainda que imperfeitamente, sobre estas experiências e entender

seu significado local” (Idem, ibidem). Harris conclui que o conhecimento tácito da

prática só poder obtido por meio da imersão corporal, posto que não sendo

verbalizado é impossível de ser articulado.

Antes que possamos postular que Harris não busca colapsar divisores com a

junção de metades metodológicas teoricamente opostas, como nos apresentava

Csordas nas dificuldades entre conciliar fenomenologia e semiótica, ele percorre o

mesmo caminho e, por uma série de remendos, tenta complementar fenomenologia e

cognitivismo.

Outra perspectiva, portanto, a do cognitivismo, introduz que as operações

cognitivas estruturam modelos mentais ou esquemas que existem independentemente

da linguagem, sendo implícitos. A comunicação verbal, portanto, não possui uma

soma de importância para o aprendizado do esquema ou é uma via para acessá-lo.

“Desse modo, a estrutura da cultura é determinada em um modo fundamental por

processos psicológicos universais” (Idem, p.6). Harris ao posicionar o cognitivismo

dentro das alternativas possíveis para o estudo do conhecimento tácito, obscurece

mais do que esclarece as próprias colocações de Ingold (2000; 2001) de que lança

mão.

Ingold mantém em seus textos uma oposição ao cognitivismo, que segundo

ele, tem uma preocupação patente com a “transmissão cultural” do conhecimento ao

invés de se voltar aos contextos práticos de enskilment. Os cognitivistas, portanto,

lidam mais com a modelação de esquemas abstratos do que com a experiência. A

cultura, nestes termos, é um corpo de conhecimentos transmitidos

intergeracionalmente e independente da experiência. Um exemplo de Ingold (2001),

retirado de um texto do antropólogo cognitivista Dan Sperber, sublinha o que nós

tentamos delinear acerca da prática das conceptualizações de Harris.

Quando procuramos um livro de receitas para preparar um prato, tudo o que se

necessita para a receita está descrito no livro. Nos termos cognitivistas, uma vez que

você transcreveu a receita na sua mente, você deve convertê-la em um comportamento

corporal (Ingold, 2001, p.137). Os comandos verbais da receita, no entender de

Ingold, não se vinculam, entretanto, às representações mentais situadas na mente do

leitor, mas dentro da situação familiar das atividades em sua casa. Em outras palavras,

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se o livro instrui que o cozinheiro deve derreter a manteiga em uma panela e mexer a

farinha, a conversão das instruções não ocorre por causa de uma operação mental, que

comanda o movimento. Os cognitivistas explicam que a configuração de uma

representação pública obedeceria a um padrão que pode ser lido, já a leitura do padrão

depende de um aparato cognitivo que faz da representação pública uma representação

mental (Idem, p.139). Ao converter uma representação pública em mental, o aspirante

a cozinheiro deve transformar os inputs do padrão em um conjunto correspondente de

imagens na mente. Essa organização das imagens faz as vezes de transmissão das

informações. Cozinhar, segundo Ingold, nas considerações de Sperber, “(...) é a

expressão de cópias que já estão estabelecidas na mente do cozinheiro” (Ingold, 2001,

p.139). Ao contrário dessas asseverações, Ingold sugere que a possibilidade de seguir

a receita é proveniente das experiências anteriores do próprio cozinheiro iniciante de

mexer e de derreter, de manusear a farinha e a manteiga, e de achar os outros

ingredientes e os utensílios relevantes na cozinha (Idem, p.137). A informação na

receita do livro não é em si, como aborda Ingold, um conhecimento. De preferência,

ela dá um passo para o conhecimento porque o contexto das skills, obtidas antes desta

experiência, abre uma rota que é compreensível e pode ser seguida (Idem, ibidem).

Distintamente das skills, que são um “movimento da atenção” não-

representacional, pois nesse plano a experiência e o conhecimento são a única e

mesma coisa, os mecanismos cognitivos que, inatamente, equipam todos os humanos

sustentam representações. O que faz parte da cultura, assim o é por ser compatível

com as disposições inatas. Como salienta Sperber (2001), algumas das informações

recebidas pelo cérebro têm mais possibilidade de serem processadas do que outras.

Por exemplo, uma longa história é mais fácil de ser relembrada do que os dígitos de

um número telefônico porque somos equipados cognitivamente para lidar com

estruturas narrativas. A seleção de algumas representações pode ser explicada pelo

equipamento inato que viabiliza a sua transmissão e permanência na cultura. A

“epidemiologia de representações” (Sperber, 2001) eqüivale ao caráter distributivo

que as mesmas apresentam na sociedade, isto é, o estudo da proliferação das

representações merece a mesma atenção que os epidemiologistas dão à distribuição

das doenças. Algumas representações são mais contagiosas do que outras. Sperber

afirma que a seleção é o processo crucial na distribuição das representações. O ponto

central nas suas premissas é que mecanismos inatos predispõem a seleção de algumas

representações ao invés de outras. Enfim, os humanos são mais suscetíveis a

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representações que podem ser dispostas taxonomicamente ou que podem ser

organizadas em uma estrutura narrativa. A transmissão de uma representação é o

resultado do seu encaixe em alguns mecanismos cerebrais que permitem a sua

proliferação. As skills, menos do que um método para a feitura da pesquisa de campo,

são, conforme Ingold (2001), a fundação de todo conhecimento, portanto não podem

ser combinadas com o cognitivismo.

Harris esclarece que as duas metades, a da fenomenologia e do cognitivismo,

podem ser encontradas sintetizadas na noção de habitus. Uma combinação das mais

improváveis é concebida da seguinte forma: o habitus é definido

“(...) como um padrão de disposições que subjaz tipos completamente disparatados de

comportamentos, transferíveis de uma geração a outra. O componente importante da prática é

o “conhecimento tácito”, as premissas escondidas. O habitus gera o que é expresso na ação e

nos modos de perceber, fazendo isso inconscientemente. Esta é uma perspectiva incrivelmente

útil, pois mostra que este aprendizado (e as funções cognitivas e perceptivas que o sustenta)

estão em curso na vida do indivíduo. Por outro lado, a teoria prática assume que há um aspecto

do aprendizado que vem integralmente com ele, e não é verbalizado. Estes aspectos implícitos

vêm a formar um habitus coerente, fundindo vários aspectos da vida da pessoa” (Harris, 2003,

p.7).

Mais uma vez, o habitus aparece como o lenitivo para um possível

nominalismo das teorias como a de Ingold. Harris, distintamente de Csordas, não

chega nem a ensaiar apontar as impossibilidades da junção no conceito de habitus da

fenomenologia e do cognitivismo. Csordas, como já vimos anteriormente, tentava

contornar os impasses das teorias de Bourdieu e de Merleau-Ponty com uma série de

complementações. Vejamos, agora, algumas das implicações das conceptualizações

de Mark Harris nos seus dados de campo.

As variações sazonais são partes do movimento criativo da vida cotidiana dos

nativos de Parú. Em outras palavras, as mudanças anuais do meio ambiente, a cheia e

a seca do rio, as migrações dos peixes, determinam, segundo Harris, a vida social. A

sazonalidade “(...) é constituída pelos movimentos das pessoas e a estrutura rítmica de

suas atividades, que ressoam com e respondem às mudanças periódicas no meio

ambiente da planície aluvial” (Harris, 2003, p.7). Nas margens do baixo Amazonas,

cada casa possui um porto que deve ser sempre remanejado ou reconstruído, em

pequenos espaços de dias, conforme o aumento ou o decréscimo do nível da água do

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rio. Um porto deve ser necessariamente funcional e também fornecer uma passagem

segura do rio para a terra. Além disso, no porto desenrolam-se atividades domésticas

essenciais: lavar roupas, limpar peixes, etc.. A percepção contínua e a atenção para as

mudanças do rio configuram, nas palavras de Harris, o ajustamento do porto e

consequentemente da vida das pessoas (Idem, p.8). Mesmo quando não estão

trabalhando no porto, as pessoas monitoram sensorialmente o rio, permanecendo

vinculadas aos seus próximos movimentos, registrando as mudanças nos peixes e nas

plantas associadas a ele. Harris ressalta que neste sentido é possível falar de percepção

e de skills como pré-objetivas, aqui no sentido de Csordas, que se baseia em Merleau-

Ponty. Já apontamos anteriormente a inviabilidade das abordagens de Ingold e de

Csordas serem tomadas em conjunto.

Mesmo assim, Harris prossegue afirmando que a percepção do rio implica a

participação ativa das pessoas no seu monitoramento. Retomando as palavras de

Ingold, Harris (2003, p.8) indica que a percepção não toma lugar em um corpo

passivo e imóvel, que recebe os estímulos externos através da visão, sendo

processados no cérebro; ao contrário, a percepção é uma atividade que acontece entre

o mundo, o corpo e a cabeça. Harris, no entanto, depura ou separa o que para Ingold

(2000) forma uma totalidade indivisível, aquela do organismo e do meio ambiente,

pois assinala que a interação entre os aspectos do meio ambiente, o monitoramento

sensorial e a interpretação cognitiva da informação do rio são traduzidos de volta para

o comportamento. O corpo, então, é um instrumento passivo aos estímulos externos

que são processados pelo cérebro. Desse modo, o entendimento do “sujeito skilled” é

aquele que consulta simultaneamente as informações do mundo e suas

“representações mentais e crenças” (Harris, 2003, p.8). Mais uma vez, uma solução

dialética, vem a produzir uma terceira saída para um problema que os modernos criam

para dele se alimentar: a incomensurabilidade entre a experiência e a cognição.

A prática de pesquisa de Harris oscila entre um relato mais experiencial e

outro mais cognitivo. Em todo caso, ele tem o mérito de privilegiar a viabilidade

daquilo que se tornou improvável nas modernas ciências humanas, não reduzir a

realidade dos outros à crença e aos fetiches que devem ser esclarecidos pelas

determinações causais das forças da sociedade, evitando o risco de fazer retornar ao

naturalismo ou mesmo à crença. O corpo, por conseguinte, “(...) é um tipo de

barômetro da mudança do meio ambiente (...) O corpo situado é um composto de

relações e de skills” (Harris, 2003, p.8). A rechonchudez do corpo no período de baixa

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das águas do rio é uma expressão de saúde, conectada com os próprios cuidados

recebidos dos parentes e de outros, do trabalho duro e de desfrutar a vida. A magreza

do corpo, nas estações chuvosas, no entanto é resultado da contração da vida social.

Harris oscila em momentos particulares do artigo, pois não consegue se desvencilhar

de uma moldura social que deve cercar as interações.

Harris assinala que a passagem das estações não é um fenômeno natural, cuja

percepção efetuada pela mente resultaria em esquemas classificatórios que codificam

estes acontecimentos ocorridos no mundo físico. Cada estação, todavia, é conhecida

pela maneira que as pessoas se envolvem com os processos do meio ambiente, assim a

atenção e a percepção voltam-se para o tipo de trabalho que é útil e deve ser feito,

onde trabalhar, que peixe vender no mercado, etc.. As propiciações, ou affordances,

sazonais formam, segundo Mark Harris, uma “gramática prática” (2003, p.8). O rio

não determina as ações, porém envolve o corpo todo em atividades que se voltam para

a variação dos níveis da sua água. Através de Ingold, Mark Harris ressalta que as

pessoas vêem pelo e de acordo com o rio, que é um agente essencial para os

reajustamentos da vida dos ribeirinhos. Harris oscila de novo, ao considerar que o

corpo registra as mudanças no rio que são replicadas nos fluxos social e econômico

(Idem, ibidem), como mencionamos acima, todavia, a magreza do corpo na estação

chuvosa espelharia as contrações da vida social.

“Para os habitantes das planícies aluviais, skill e conhecimento prático são sinônimos do

controle sobre a própria vida. O objetivo da criança é o domínio da skill para lidar com as

relações pessoais e as mudanças sazonais (...) Enskilment, ao invés de enculturação ou

socialização, é um processo em que cada geração representa sua parte em estabelecer as

situações e as oportunidades em que sucessores podem, através da mistura entre imitação e

improvisação, desenvolver suas próprias skills encorporadas de ação e performance. Desse

modo, este tipo de conhecimento não é tão transmitido quanto continuamente regenerado

dentro do contexto das interações dos novatos com os vários componentes dos seus meio

ambientes humano e social” (Idem, p.9-10).

Novamente, se o processo de enskilment não é uma simples transmissão

intergeracional de esquemas mentais que devem ser apreendidos ao longo da

socialização, não devemos mais admitir um meio ambiente social e, estritamente,

humano. Os constituintes não-humanos do meio ambiente, como o rio, por exemplo,

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devem ser parte integrante da obtenção de skills em um meio ambiente que absorve a

“interagencialidade” (Ingold, 1996) de humanos e não-humanos.

Harris parece hesitante em optar por uma solução mais radical às tensões

modernas, por exemplo, entre a experiência e a cognição. Destarte, ele tenta conservar

os mesmos remendos, ainda que num plano diferente, da análise de Csordas. Ao final

do texto, ele manifesta uma certa insatisfação pelo corte que, nas monografias,

promove a primazia dos modos de exposições acadêmicos que ofuscam as

imediatidades sensíveis da pesquisa. Antes que possamos concordar com Harris, ele

acrescenta que o seu corpo é um instrumento sensível, a partir do qual ele pode

trabalhar antropologicamente. Harris deixa à vista dois grandes impasses na sua

prática de pesquisa. O primeiro é sintetizar os pólos da experiência e da representação

na noção de habitus, operação que não dissipa a incomensurabilidade das duas

posições. Ingold, por exemplo, posiciona sua conceptualização das skills em clara

oposição ao cognitivismo.

O habitus é uma noção que opera dando um sentido social às expressões

corporais tidas como biologicizadas, devido à naturalidade com que são manifestadas.

O habitus denuncia sobre essas falsas aparências, que deixariam as ciências sociais

próximas às biológicas, as determinações da classe, do gosto, do adequado, etc.,

constituindo-se em uma outra forma moderna de sustentar, por via da inconsciência

dessas forças que nos dirigem, o antinaturalismo das ciências humanas (Latour,

1994b). Em outras palavras, não há em Csordas, Laderman, Harris ou em Desjarlais,

como veremos abaixo, nenhuma fala sobre as mudanças anatômicas proporcionadas

por essa reorientação no mundo ou por esse aprendizado. Em outras palavras, embora

esta afirmação não sintetize este problema, realça uma divisão persistente nestes

autores entre natureza e cultura. Na maioria das vezes, quando pronunciada, a

mudança corporal é relativa à maneira em que o corpo se reajusta aos “objetos

culturais” da terral natal do antropólogo: a maneira de sentar, dormir em uma cama,

etc.. Em suma, uma preocupação com as utilizações sociais do corpo. O corpo, sem

dúvida, aparece como um instrumento que pode ser dado à inspeção reflexiva do

“Olho da Mente” (Rorty, 1994). Quando Harris menciona o seu re-skilling parece

muito mais afinado com a possibilidade do corpo ser um veículo para conhecer uma

racionalidade social tácita. O corpo, portanto, é um veículo que pode ser um

intermediário fundamental para a homogeneidade da “transmissão da informação”,

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visto que nele podemos evocar a ausência ou transcendência da sociedade (Latour, no

prelo).

Mais uma vez, jamais fomos representaciolistas porque Harris apresenta os

desafios impostos pelos divisores e pela “crise da representação”, mas, ao recorrer às

complementações, demonstra hesitação. Em consonância com Csordas, ele também

não chega à iconoclastia de Clifford, porém o seu projeto quase malogra, uma vez que

ele tenta romper o tabu das Grandes Divisões modernas com operações dialéticas que

procuram realinhar as nossas divindades incompatíveis. Jamais fomos

representacionalistas, por conseguinte, devido às exigências das divindades que

impulsionam a sua conceptualização. Harris não esconde que a determinação por

esses seres é garantia fundamental da sua tradução. Ele é superado por aquilo que

construiu. Neste sentido, mesmo esta forma mais recente de conhecimento etnográfico

partilha das mesmas inquietações dos seus antecessores: a tensão entre interação e

estrutura, isto é, entre as duas formas de “conhecimento tácito”, que ele denota como

métodos alternativos para a realização da pesquisa de campo. Afinal, lidamos com a

mesma alternância entre imanência e transcendência que tornaram os modernos

invencíveis.

4.3 “Aprendo a aprender” e tradução cultural

Na monografia de Desjarlais, Body and emotion: the aesthetics of illness and

healing in the Nepal Himalayas, publicada em 1992, podemos encontrar as

indagações que Harris faz acerca da possibilidade de uma tradução das sensibilidades

encorporadas.

Desjarlais realizou o seu trabalho de campo, durante o período que vai de

fevereiro de 1988 a março de 1989, entre os Yolmo Sherpa, um povo tibetano que

vive em Halembu, no Himalaia, região centro-norte do Nepal. Na região de Halembu,

sua estadia foi na aldeia Gulphubanyang. Os Yolmo são um povo budista que lançam

mão da cura xamânica. Desjarlais participou de aproximadamente vinte e quatro

cerimônias de cura como aprendiz de xamã (bombo) de um curador ancião chamado

Meme. A monografia gira em torno do universo relacional deste nativo. Desjarlais

conviveu com os seus amigos e pacientes, portanto quando fala dos Yolmo, ele parte

da convivência travada com Mingma, Tenzin, Nyima, Latu, Lopsang, Yeshi, Kusang,

etc..

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Durante as sessões que se iniciavam, ao anoitecer, e duravam até o início da

manhã, Meme era auxiliado por Desjarlais, que tocava o tambor, sacrificava galinhas

e rogava que os deuses entrassem no seu corpo. Durante muitas cerimônias, Desjarlais

atingiu o transe que, embora o tomasse inteiramente, era, de fato, diferente dos xamãs

Yolmo, que experimentavam os deuses “caírem” em seus corpos. O transe do

antropólogo era paralelo à descida dos deuses no corpo de Meme. Na condição de

aprendiz, o chacoalhar do corpo de Meme era seguido pelo seu. O projeto de pesquisa

de Desjarlais é centrado nesse aprendizado, que redunda, a meu ver, na produção do

“sujeito” pelo “objeto”, condição decisiva para o desdobramento da pesquisa. A

atenção aos ensinamentos do xamã foi o que trouxe vida ao trabalho, de modo que o

transe implica, nas suas palavras, que “(...) a música insistente ressoava dentro de

mim [de Desjarlais], chegando em um crescendo, carregando meu corpo e o cômodo

com um significado impactante. Ondas de tremores atravessavam meus membros,

descargas elétricas fluíam, cores expandiam-se, o aposento ganhou vida com vozes,

fogo, risos e escuridão” (Desjarlais, 1992, p.5).

O aprendizado a que se submeteu permitiu que tivesse uma intimidade com

paciente e curadores, a qual alongou os seus relatos, à medida que conseguiu “(...)

estar com eles dias e semanas após as cerimônias. Com Meme e os jovens curadores,

[ele procurou] dar conta das sutilezas do aprendizado das adivinhações (...) Com os

pacientes, [pediu] que contassem sua experiência de doença e cura” (Idem, p.13). Ao

viver com os aldeões, mais como neófito do que enquanto intruso, fez da sua condição

um impulso, a partir do qual pôde entrever a qualidade da educação que é própria dos

processos de prestar atenção com o corpo, criando um patamar comunicacional com

os nativos, onde seu corpo “(...) desenvolveu um entendimento parcial e experiencial

do seu mundo” (Idem, ibidem).

Desjarlais pergunta-se como alguém em uma terra distante pode entender as

experiências de outras pessoas ou povos, de uma posição em que seja possível

descrever o seu conteúdo sensível e, simultaneamente, “traduzir” em palavras para

apresentar esse conhecimento ao leitor. O transe foi o caminho que encontrou para

confeccionar uma resposta que se desloque das considerações até então postuladas

pela literatura antropológica acerca do transe; a qual geralmente torna a experiência

do antropólogo, em transe, um retrato fidedigno e unívoco da experiência dos

pacientes e dos curadores (Idem, p.14-15). Ele questiona a transparência das traduções

que não problematizam os estados de transe, ou seja, passar pela incorporação cria a

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necessidade de uma exposição que não resolve a questão às custas de, supostamente,

descrevê-las em “primeira mão”. Como afirma Desjarlais, o transe que viveu

corroborou que naquele momento de continuidade entre ele e Meme haviam

“pequenas diferenças” (Ingold, 1993), que só poderiam se constituir no desenrolar

desta relação. Ele verifica que o transe não pode ser reduzido a uma simples

aproximação entre “Nós” e “Eles”, através da miscelânea de sensações que perpassam

a experiência.

Em suma, o seu comportamento no transe se distinguia daquele com que os

Yolmo estavam familiarizados, todavia isto não deixava de fortalecer a inferência

nativa que relacionava o seu transe aos deuses - assim como a sua capacidade de

abrigá-los - embora as suas visões fossem tratadas com pouca relevância. Eis

algumas: tigres, cavernas, criaturas da floresta como o ri bombo, o xamã da floresta

etc.. Desjarlais pergunta a Meme o que estas visões significavam. Meme responde o

seguinte: “Quando você chacoalha, os deuses estão olhando atentamente o interior do

seu corpo para ver se você é puro ou não. Desde que você [Desjarlais] não conhece

bem a nossa linguagem e não sabe com o que os deuses se parecem, você apenas vê

flashes no escuro, tal como um homem que é golpeado na cabeça” (Idem, p.16).

A partir da “incompetência ritual” e da “irrelevância cultural” das suas visões

xamânicas, Desjarlais compreende que alcançar alguma intensidade experiencial com

os nativos não repercute automaticamente em uma boa descrição do seu universo. Ele

observa que os relatos reflexivos de Maya Deren, no Haiti, de Michael Taussig e

Michael Harner, em rituais xamânicos sul-americanos, de Larry Peters, entre os

Tamang do Nepal, que lançam mão do transe para explicar a “visão de mundo dos

nativos”, essencializam esta experiência. Por exemplo, o encontro de Deren com uma

“escuridão branca” parece falar mais da sua personalidade que dos haitianos. Desse

modo, ele afirma que estas experiências subjetivas não são um acesso, ao mundo dos

nativos, transparente e livre de mediações. Quando poderíamos esperar que Desjarlais

constituiria uma prática de pesquisa livre das polarizações, imobilizando as práticas

que apresentávamos acima, ele declara que as experiências subjetivas são sustentadas

por padrões de um contexto cultural há muito estabelecido que forma e informa as

identidades. Afinal, ele acha que alguém “(...) não pode adotar culturas como

facilmente alguém muda de roupa” (Idem, p.17). Menos do que se tornar um Yolmo

ou ter um acesso transparente ao seu mundo, nos primeiros meses de pesquisa, foi

como ele mesmo afirmou, um híbrido que compartilha um meio-termo entre culturas

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(Idem, p.18). Alguns insights antropólogicos, ele presume, podem surgir da “colisão

entre visões de mundo” ou da “tensão entre sistemas simbólicos” (Idem, p.18-19).

Desjarlais aponta que sua cultura não o havia pré-condicionado para o transe,

assim experimenta sua “(...) existência xamânica como um descontrolado gânglio de

nervos, uma frouxa miscelânea de sensações desordenadas” (Idem, p.16). A cultura

aparece como um código contraditório que no encontro entre antropólogos e nativos

deve mediar, como uma força impessoal, os limites e as aproximações possíveis entre

eles; ainda que tal aproximação seja um produto patente da universalização metafísica

Ocidental (Strathern, 1980). Um encontro entre culturas é sempre um encontro, a meu

ver, de decepcionadas “Mentes Extirpadas” (Latour, 2001) que já apartadas do

mundo, constróem outro, tal como vimos como Durkheim, para não viver sem um

vínculo. Peculiaridade moderna: a cultura, mesmo que Desjarlais não se disponha a

tecer uma abordagem representacional, é o eixo do seu trabalho. O contexto cultural

constitui-se, como à la Geertz, de símbolos significantes que concernem ao

conhecimento que opera e tem como fonte o domínio público ou social.

Diferente de um Yolmo, aprendiz de xamã, que sabe como é possível se tornar

um mesmo que não o fosse, Desjarlais não sabia. Ele, portanto, deveria aprender com

o corpo e na sua interação com os outros, a ser um xamã. Aliás, um “aprender a

aprender” que ele toma emprestado da noção batesoniana de deutero-learning, sendo

o coração do seu empreendimento etnográfico (Desjarlais, 1992, p.17). Na

monografia, no entanto, não há grandes indícios da sua iniciação, o que é um pouco

surpreendente para o tipo de tradução que ele faz.

O que Desjarlais exacerba na sua pesquisa de campo é um questionamento

pragmático à representação. Um relato que sobrepusesse a representação à experiência

sensível não iria muito longe (Idem, p.249-250). O tipo de tradução feita por

Desjarlais envolve uma hermenêutica, sugerindo a participação reflexiva na vida

cotidiana. O autor reconhece que o envolvimento com os nativos é talhado apenas no

primeiro capítulo. Dali em diante, estas referências não aparecem mais no texto,

embora ele afirme que muitas das suas interpretações são resultado do envolvimento

corporal com os modos de existir Yolmo.

A princípio, poderíamos supor que a monografia de Desjarlais não produziria

uma divisão congelada entre observador e observado. A falta de perícia é uma

maneira instrutiva de intensificar a experiência e a intimidade com os nativos. A

nuanças da experiência são, em muitos casos, os indicativos que denotam a qualidade

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da experiência existencial que o trabalho de campo incita. Desjarlais constata o que

nele se modificou após a estadia entre os Yolmo, acrescentando as implicações destas

metamorfoses na tradução. Mesmo que não deixe patente em que proporção ele foi

produzido ou recriado pelo “objeto”, implicitamente, sua monografia vai nesta

direção; afinal, ele teve que “aprender a aprender” (Idem, ibidem).

Além disso, podemos delimitar que, em consonância com o próprio Csordas,

Desjarlais conceptualiza sua condição de “autor” para evocar um tipo de relação entre

ele e o leitor. O apontamento abriga questões que examinávamos no segundo capítulo,

e permanece muito próximo às considerações de Marilyn Strathern (1990) que

indicavam alguma proximidade entre as práticas de pesquisa frazerianas e pós-

modernas. As implicações da “crítica pós-moderna”, que também alcançam a sua

monografia, são mais evidentes na reaproximação necessária entre leitor e escritor,

enfatizando que o escritor deve proporcionar ao leitor engajar-se no fluxo das ações

cotidianas dos Yolmo. Uma composição textual mais sensorial do que

representacional inventa um espaço para a conceptualização dos dados que leva à

aproximação do leitor ao assunto e ao escritor. O sucesso da tradução como da estória

é inscrever-se no corpo do leitor ou do ouvinte. “O leitor, desse modo, começa a sentir

(...) como a cultura funciona” (Desjarlais, 1992, p.251).

A “tradução cultural”, nas palavras de Desjarlais, além de transmitir as

imediatidades sensíveis, deve contextualizar a base, a natureza e o significado das

experiências que também são diferenciadas. “O leitor é assim lançado no círculo

hermenêutico, sempre precisando interpretar o significado dos eventos para o ator

cultural, contudo sempre questionando a validade destas interpretações” (Idem,

p.252). Ele conclui que é fundamental criar um espaço onde o universo das culturas

consideradas como “outras” possa evocar um sem número de associações, no mundo

do leitor, que estejam em uma posição intermediária, um meio-termo, permitindo

transportar o fluxo das experiências Yolmo a um público não-Yolmo. Desjarlais acena

que a saída para isto é não-representacional, pois, como suas visões xamânicas e seu

“conhecimento encorporado” demonstraram, sua tradução repousa entre duas culturas.

Devemos lembrar que Latour (no prelo) salienta que a “visualização

científica” oferece um veículo muito mais transcendental, imaterial e espiritual do

qualquer coisa que nós poderíamos pensar. Esta visualização serve para traçar o que

pode ser evocado no regime de enunciação da “Ciência”. As implicações de uma

“tradução cultural” para uma experiência de campo que inicialmente é um exercício

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para captar as sensibilidades estéticas nativas, não deixam de acentuar as dificuldades

que a “Constituição Moderna” (Latour, 1994a) impõe aos que tentam se reatar aos

objetos, acreditando que a divisão entre “Nós” e “Eles” seja, de fato, real e originária,

posto que Nós depuramos e eles, ao contrário, não.

Da mesma maneira que Carol Laderman, Desjarlais, ao tornar-se parcialmente

“socializado” para o transe Yolmo, entra, nas suas palavras, em um processo de

“aculturação”, que Meme gradativamente observou e passou a colocar, mais

facilmente, o tambor em suas mãos (Idem, p.18). O embodiment de Desjarlais pode

ser tratado de modo análogo ao de Laderman, isto é, a uma encorporação dos

símbolos nativos, acarretando em uma transmissão cultural que esvazia o contexto

prático do seu enskilment. Ele começou “(...) a encorporar um esquema de valor que

lhe ensinou adequadamente a cumprimentar Meme, andar no vilarejo e comer um

bolinho de arroz” (Idem, p.251). Devemos notar que a ênfase na aculturação é

consonante com o argumento construtivista (Ingold, 1996; 2000). Segundo Ingold

(2000, p.379), este argumento postula que por sermos pré-equipados com um

equipamento biológico universal, terminamos por ser modelados por esquemas

culturais diversos, podendo, como já ressaltava Geertz (1989), viver um sem número

de vidas diferentes. Ao argumento construtivista, que emerge nos textos de Desjarlais

e Laderman, podemos acrescentar as duas premissas realistas em que, segundo

Strathern (1980, p.177), a cultura, por um lado, é uma totalidade em seus próprios

termos, o que corrobora a eficácia das traduções; e, por outro lado, sendo ela atributo

essencial da natureza humana, possuí-la é um aspecto decisivo para participar em uma

cultura considerada como outra e tratá-la como um objeto. Uma tradução cultural é,

como vimos no primeiro capítulo, um procedimento comum ao texto

representacionalista de Geertz que analisamos.

Desjarlais “aprendeu a aprender” entrar em transe não somente por ajudar a

entrar nas cerimônias de cura de Meme, mas por freqüentar lojas de chá, pátios de

Gulphubanyang, por andar com Meme pelas trilhas que levam a outras aldeias e por

sentir o som e o cheiro dos terraços (Desjarlais, 1992, p.17). Ele aprendeu a usar o

corpo e prestar atenção com o corpo, o que lhe facultou mobilizar as “condições

apropriadas” para a eficácia dos seus “esforços mais ritualizados” (Idem, ibidem).

Como em Malinowski ou em Geertz, Desjarlais não esconde o fazer, que é essencial à

viabilidade de qualquer pesquisa de campo. Ele deixa entrever na sua prática de

pesquisa a importância de ser superado por aquilo que construímos e assim fazer com

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que façamos certas coisas que sem os faitiches seria impossível (Latour, 2002).

Desjarlais, entretanto, neutraliza a força dos híbridos que mobiliza para posicionar as

memórias do seu transe em um “(...) transcrição sensorial de uma conversação entre

culturas. Com [suas] próprias experiências denotando a permuta entre os modos de

existir americano e himalaio” (Desjarlais, 1992, p.17). O transe em Desjarlais é mais

uma tentativa de conformar e dar sentido à sociedade Yolmo. Ele “aprende a

aprender” porque os “paradigmas” Yolmo, tais como os dos balineses, estudados por

Bateson, são guiados por princípios cinestésicos que permitem atingir o transe. No

aprendizado, que é parte do transe, as visões xamânicas passaram de cenários

desordenados a uma paisagem mais controlada, ordenada e precisa.

Tacitamente, é no corpo que esse conhecimento vem a ser encorporado, ou

seja, a partir das interações com os nativos. O corpo assimila o fundo de significados

culturais da vida Yolmo, sendo o “instrumento” que Desjarlais utiliza para ter acesso

ao modo tácito que os Yolmo “(...) experienciam as formas somáticas e sociais”

(Idem, p.27). O corpo como um instrumento sensível tem a mesma dinâmica passiva

que encontramos em Mark Harris. Desjarlais utiliza os seus membros da mesma

forma que os nativos, que costumeiramente, enquanto conversavam, ficavam

agachados, pés plantados sobre o chão, joelhos dobrados, cabeça baixa, nádegas

tocando os calcanhares, mãos entrelaçadas ao peito e um cigarro entre os dedos (1992,

p.27). Ele conta que os seus membros se aproximavam desta posição, que oferecia um

solo sensorial diferente daquele que estava habituado, influenciando o seu

entendimento da vida dos Yolmo. Ao utilizar seu corpo deste modo lidou com

práticas distintas das suas: “(...) como o funcionamento do corpo freqüentemente

reflete a fisiologia da sociedade (...) levou-me [Desjarlais] à compreensão que a

família ou a aldeia Yolmo aparecem juntas tal como uma fazenda: como uma coleção

de partes distintas e unidas frouxamente em um todo unificado” (Idem, ibidem). O

corpo sendo um veículo da racionalidade social faz Desjarlais lançar mão de Mary

Douglas e de Bourdieu.

Quando interpreta, por conseguinte, as imagens que se sucederam em um

transe, menos de um mês após chegar a Halembu, na cerimônia de cura de uma

mulher casada, que abortou um filho, Desjarlais começa a tocar o “ethos” e a

“epistemologia” predominante em Halembu. Em uma das imagens da visão, a mulher

está com as mãos tapando a boca e a sua família com as mãos sobre os olhos,

evidenciando que “(...) o corpo, como a casa, esconde os conteúdos dos olhos dos

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outros, e os aldeões geralmente acham difícil saber o que a outra pessoa está pensando

ou sentindo” (Idem, p.21). Desjarlais sustenta que as suas visões são estruturadas e

impedidas pelo sistema local de conhecimento, pois

“(...) o pesquisador de campo conecta-se com as mesmas tramas comunicativas que seus

informantes fazem uso, seus pontos cegos e insights formam parte da cibernética cultural, sua

posição subjetiva influencia a interpretação das sensibilidades locais, e ela é afetada por

paradoxos culturais similares e patologias do conhecimento. O antropólogo torna-se parte do

sistema sendo estudado, e muitas ferramentas de inquérito devem se conformar às

características deste sistema” (Idem, p.25).

Em Halembu, ele encontrou um “sistema de portas e bocas fechadas” que

constrangeram a natureza da pesquisa. Desjarlais não trabalhou com um assistente e

como não conhecia muito bem a língua, consumiu muito tempo, nos primeiros meses

em Halembu, no plano ordinário da vida dos Yolmo, teve conversas com os amigos

de Meme, sentou em casas de chá, assistou cerimônias de cura e funerais. Nessas

ações, acabou “(...) desenvolvendo um sentido tácito dos traços mundanos da vida dos

Yolmo”67 (Idem, ibidem). Desjarlais encontrou obstáculos para adentrar a intimidade

dos nativos, visto que entre os Yolmo revelar os desejos pessoais aos outros é indigno

e perigoso, uma vez que alguém pode tirar vantagem deste conhecimento através da

bruxaria ou nos negócios. Ciente dos constrangimentos locais sobre a comunicação

social, ele teve que partir em direção às experiências Yolmo, enfatizando seus

artefatos e examinando minuciosamente as imagens e sensações permitidas a sua

imersão no campo. Desjarlais nomeia tal procedimento por “arqueologia do

significado”, um procedimento que não é operacionalizado por meios mentalistas,

mas por formas intuitivas ou fenomenológicas.

A epistemologia do self , em Bateson, é o que estrutura a natureza do processo

do seu aprendizado: o self, nas palavras do próprio Bateson, é “[A] unidade total

autocorretiva (...) que processa informação, ou como eu digo [Bateson], “coisas”,

“atos”, e “decisões” em um sistema cujas fronteiras não coincidem com as fronteiras,

seja do corpo, seja do que é popularmente chamado de “self” ou “auto-consciência””

(Bateson apud Desjarlais, Idem, p.26). Desjarlais infere que “(...) o self-system do

antropólogo pode conhecer mais do seu self consciente (...) e como nas revelações do

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xamã (...) pode explorar e cultivar o “conhecimento tácito” (Desjarlais, 1992, p.26). O

conhecimento tácito é encorporado, logo as visões no transe também o são, e estão em

consonância com o saber local dos Yolmo. Começam no irrefletido das suas

experiências. O ininteligível ou inarticulável dos Yolmo, as emoções e a intimidade,

puderam ser exploradas com o seu envolvimento corporal em um solo existencial

onde “(...) o curador é parte antropólogo, perceptivo e atento aos significados e

tensões locais, então o antropólogo pode tornar-se parte xamã, penetrando no

implícito da “racionalidade local” para adivinhar as causas e a natureza do sofrimento

humano” (Idem, p.24). Desjarlais define a sua monografia como “interpretativa e

fenomenológica” (Idem, p.32). Fenomenológica porque busca registrar as sensações

que perpassam a aflição da “perda do espírito”. Interpretativa porque é destinada a

analisar, com conceitos estranhos à realidade dos Yolmo, as tensões políticas e

formações sociais que impulsionam as experiências corporais (Idem, ibidem).

Desjarlais ressalta que a sua tradução, ao invés de ser uma conversão literal de

conceito por conceito para a sua língua, “depressão” por “perda da alma” ou

“inconsciente” por “conhecimento divino”, deve estar atenta aos “rudimentos de

forma”, que são as imagens socialmente derivadas, esquemas e estruturas que animam

as experiências culturais (Idem, p.33). Desse modo, é necessário relatar as formas

particulares que as culturas assumem. Os rudimentos de forma “(...) envolvem

padrões de relações, sensibilidades estéticas, ritmos de experiência”, informando para

as “(...) pessoas como a dor é sentida, o espaço imaginado, o mal exorcizado e a morte

adquirida” (Idem, ibidem). A conversação entre culturas é um momento privilegiado

que, tendo o corpo como um veículo de reflexão, atinge as diferenças marcantes entre

a diversas formações culturais.

Seguindo os termos do cientista cognitivista Mark Johnson, Desjarlais fala de

uma “geografia da experiência humana”, que está relacionada ao entendimento básico

das “dimensões não-proposicionais” desta experiência, partir de certos “embodied

schemata” (Idem, p.38) A orientação para o mundo, segundo Johnson, parafraseado

por Desjarlais deriva de “(...) orientações corporais tácitas (a sensação visceral de

força) ao invés de, aparentemente objetivas, categorias proposicionais do raciocínio

humano (idéias racionais de força e lógica)” (Idem, ibidem).

67 Eventualmente, Karma, um bacharel jovem e talentoso, como Desjarlais descreve, de uma famíliaLama da parte Oriental de Halembu, que ensinava inglês em um internato, em Kathmandu, foi seutradutor e informante-chave, na última parte da sua pesquisa (Desjarlais, 1992, p.13).

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Dentro das formas de conhecimento tácito que, em Harris, pareciam variar de

formas mais práticas, como as skills de Ingold, às mais cognitivas, Desjarlais opta

pelo cognitivismo, pois, nas declarações de Johnson, que ele segue, “(...) o “embodied

schemata surge da experiência física e, assim, transcende aparentemente diversas

tradições culturais (...) Johnson propõe que “certos aspectos do significado da

“sexualidade” são culturalmente, e, talvez, humanamente, dimensões compartilhadas

de nossa experiência no nível pré-conceitual” (Idem, ibidem). Aliás, segue, também, o

mesmo paradoxo que situa a noção de cultura não em uma única dicotomia, mas na

“matriz de constrastes”, que Strathern (1980, p.177-178) já se dedicava a entrever. Em

suma, ora a cultura é comum à espécie humana, sendo uma manifestação da natureza

humana, ora a cultura existe no plural, indicando a diversidade das experiências

humanas. Desjarlais salienta que as apreciações de Johnson não explicariam, por

exemplo, a diversidade entre as orientações corporais e as formas simbólicas Yolmo e

norte-americanas. De um fundo pré-conceitual que pode ser verificado

universalmente, tal como uma natureza física e dada, emerge a diversidade das formas

culturais.

Este é o sentido do relato interpretativo e fenomenológico de Desjarlais. Se

comparada à monografia de Csordas, a de Desjarlais é mais interpretativa do que

fenomenológica. Alguns fatores contribuem para um exame preocupado, ainda que

manifeste o contrário, com a consistência de um universo conceptual, onde a vida dos

Yolmo pode ser traduzida com fidedignidade. O primeiro desses fatores é o tempo em

que ele permanece no campo, apenas um ano, o que faz dos resultados que ele

apresenta na monografia surpreendentes. O segundo fator é a dificuldade com a

língua. O terceiro, tão importante quanto os outros, é o fato do universo relacional dos

Yolmo, como ele mesmo apresenta, sofrer restrições quanto à intimidade. Em termos

etnográficos, portanto, é mais provável que ele conceptualize o modo como os Yolmo

experienciam seus corpos da mesma maneira que constróem casas, conduzem rituais e

contam histórias, estando tais atividades situadas no contexto das formações sociais e

da história política (Idem, p.39). Vejamos agora algumas implicações desses

apontamentos gerais nos seus dados de campo. Partindo da mesma divisão que

Csordas institui na sua monografia, vamos partir dos relatos mais sistemáticos da vida

nativa.

* * *

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O corpo (lus) entre os Yolmo é o meio primário de dar forma e significado à

experiência, “(...) é um todo dinâmico, um corpus de espaço (...) pois possui

dimensões espaciais finitas e mapeia a experiência – conhecimento, moralidade,

sentimento – em forma espacial” (Desjarlais, 1992, p.39). O corpo tem uma aura de

santidade e as suas oito entradas, olhos, ouvidos, narinas, boca e ânus, são defendidas

pelas divindades. Quando um corpo está saudável, o pulso flui ritmadamente, quando

doente, motivadas pelo ataque de um fantasma, o pulso fica descompassado: rápido

ou devagar. A espacialização do corpo entre os Yolmos dota as suas formas com

“dimensões espaciais significativas” e “representações”. “As formas destas

representações deriva, eu acredito [Desjarlais], de uma metafísica particular do

espaço” (Idem, p.40).

O espaço entre os Yolmo é “(...) menos uma abstração do que uma entidade

tangível em si mesma” (Idem, ibidem), sendo preenchido por uma imagem em que

está sempre cheio e não vazio. Isto se reflete em uma casa próspera que tem as

paredes e os armários adornados com fotos, utensílios de cozinha e garrafas cheias

com águas coloridas. Igualmente, um templo lamaísta é guarnecido com tal disposição

do espaço, “(...) pilares e vigas são entalhados e pintados com azuis, vermelhos e

dourados escuros; as paredes e os tetos mostram pinturas de Buda e suas

manifestações” (Idem, p.41-42). O corpo dos nativos é tão denso quanto os templos e,

ademais, abriga um conjunto de dimensões que, divididas em profundidade, largura e

comprimento, implicam em esquemas de valores que se alternam entre exterior e

interior, alto e baixo, esquerda e direita, etc.. “O corpo entre os Yolmo representa um

microcosmo do universo, as cinco direções, e o panteão dos deuses cartografados por

estes pontos cardeais” (Idem, p.42).

Desjarlais, ao tomar a relação dos Yolmo com o espaço como um resultado de

uma metafísica distinta da Ocidental, mantém uma orientação mentalista no seu

trabalho. A questão de a metafísica ser diferente é o produto de formas culturais que

se distinguem da Ocidental, em que o espaço deve ser preenchido para ser visível, já

que vazio ele é uma abstração (Idem, p.40). O corpo termina por ser o veículo das

representações nativas, expressando uma topografia que salienta os seus esquemas de

valores; por exemplo, o decréscimo da pureza e o acréscimo da poluição variam do

cimo da cabeça para a sola dos pés. “[A] nosologia imita a cosmologia (...) [logo] os

deuses celestiais (jo) fazem mal aos olhos, fantasmas telúricos (shi ’dre) geram dores

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estomacais e divindades-serpente subterrâneas (klu) afligem, na maioria das vezes, a

pele das pernas e dos pés” (Idem, p.43).

O corpo, como a casa, é um local seguro contra as ameaças provindas do

exterior, protege e separa o self do meio ambiente comportamental. “As doenças,

muitas vezes, resultam da invasão patológica de espíritos, fantasmas e forças malignas

no corpo. Os serviços de cura funcionam para “lançar” demônios das profundezas do

corpo” (Idem, p.46). O fantasma entra no corpo e vai habitá-lo. Os Yolmo procuram

defender-se de tais espíritos com amuletos, como aqueles que as crianças usam em

seus pescoços para erigir um impenetrável muro de fogo. Os adultos ostentam anéis

em seus dedos médios, porque neles os fantasmas tocam ou influenciam o corpo. Um

xamã no início de um cerimonial de cura magicamente sela o seu próprio corpo para

se defender das bruxas (Idem, p.45-46). Mesmo que os limites entre interior e exterior

estejam bem delimitados, não impedem que haja um fluxo contínuo de “fantasmas”,

“sentimentos” e “forças vitais” através dessas fronteiras. Em contrapartida, utilizando-

se de artifícios mágicos, os nativos paralisam este fluxo mantendo o interior do corpo

a salvo do exterior.

Desjarlais mantendo-se fiel ao seu argumento representacionalista, acerca do

corpo, afirma que ele é um mediador das tensões que se verificam nas relações sociais

Yolmo entre os valores contraditórios da “autonomia” e da “interdependência” Nos

últimos anos, Desjarlais indica que as mudanças políticas têm provocado a

substituição de uma ordem baseada no parentesco por uma direcionada ao templo e à

aldeia. (Idem, p.47). Os Yolmo estão organizados em um arranjo de grupos, cujos

membros formam o grupo doméstico, que é parte de um grupo maior, a família

extensa, dentro de uma hierarquia de status. Os dois estratos, os grupos domiciliares e

a família extensa, possuem autonomia e recursos financeiros e políticos, que garantem

sua sobrevivência, assim como critérios particulares de inclusão. A aldeia é que

engloba as famílias extensas, que são compostas por grupos domiciliares que trocam

ajuda, esta configuração faz do grupo domiciliar, simultaneamente, interdependente e

autônomo. Em outras palavras, os recursos aferidos por um grupo familiar, advindos

do seu esforço em permanecer autônomo, devem ser compartilhados com os outros

grupos. Mesmo assim esta organização harmônica está sujeita a fissuras. “Um aldeão

vê-se como um grupo de “interesse” para si, com corpo, fala e mente, que trabalham

juntos para o benefício do todo somático” (Idem, p.52). Como a geografia da aldeia,

formada por círculos concêntricos que englobam dos membros de um grupo

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domiciliar às famílias extensas, o corpo “(...) assume a colagem de cérebro, estômago

e pé, que, idealmente, funciona junta como um todo unificado” (Idem, p.52-53). Se o

funcionamento complementar da interdependência e da autonomia falhar, o conflito

que decorre daí pode explicar a causa de uma doença. Os fantasmas que assolam uma

pessoa refletem a natureza dos seus intrincados relacionamentos sociais.

Os conceitos de personalidade dos Yolmo são fundados sobre as tensões

alojadas entre o self e a sociedade, a experiência da doença conglomera, muitas vezes,

tal conflito (Idem, p.54). Os conflitos relativos à autonomia e à interdependência

atravessam a fisiologia do corpo do aldeão, sendo evidenciados, segundo Desjarlais,

na relação entre o “heartmind” (sems) e o “cérebro” (klad pa). O primeiro, parte do

entendimento que os Yolmo têm do pensamento e da emoção, é o locus das

memórias, sonhos e desejos, em suma, das volições pessoais (Idem, p.55). Pensar é

“ver” e “conhecer” com o “heartmind”68 (Idem, p.56). Quando alguém quer mover

parte do corpo, o sems deseja e informa ao klad pa, que então comanda o corpo a agir.

Um sems forte é aquele que retém e armazena as emoções. O sems funciona em

conjunto com o “cérebro”, pois o último refreia as fantasias do primeiro. Segundo

Desjarlais, “(...) enquanto o sems deseja, o “cérebro” comanda” (Idem, p.57). Se

alguém faz algo prejudicial a outrem, o sems deseja vingar-se, enquanto o klad pa é

quem ordenará o que o sems executará. Desjarlais insinua que o “cérebro” é o

superego do “heartmind”, à vista disso o “cérebro” representa a “moral coletiva” e o

“heartmind”, os desejos pessoais (Idem, Ibidem). A divergência entre os dois espelha

as tensões entre os desejos pessoais e as necessidades coletivas, animando o

surgimento das doenças.

Em Halembu, os “suportes vitais” (srog) vivem no coração e são responsáveis,

como a espinha dorsal, pela estrutura física. Os suportes vitais são as nove “vigas”

que sustentam o corpo de um homem: as têmporas, os olhos, a espinha, as panturrilhas

e os testículos. Segundo Latu, um filósofo local, quando dois destes suportes deixam o

corpo, alguém deve empenhar-se em reavê-los, pois a perda de mais um deles pode

levar a morte (Idem, p.63). Mingma, um ancião Yolmo, perdeu cinco desses suportes,

conforme contou a Desjarlais, os fantasmas surrupiaram-los na terra dos mortos

68 Desjarlais pontua que o aprendizado do xamã Yolmo é realizado sem o uso de livros. Os nativosficavam espantados quando ele registrava as lições de Meme em fitas cassete ou no caderno de campo,“(...) ao invés de colocá-las dentro [seu] “heartmind”” (Desjarlais, 1992, p.27). Os Yolmo zombavamdessa situação que, de acordo com ele, não foi muito longe, pois um “verdadeiro” xamã tem de saber

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(Idem, ibidem). Meme esforçou-se em evitar a morte prematura de Mingma, tentando

recuperar os suportes perdidos e revitalizar a duração da sua vida. O ancião sentia

dores no corpo, falta de apetite e insônia.

Uma semana após a cerimônia de cura, Desjarlais foi visitá-lo, com o desejo

de ter informações sobre a sua recuperação. As respostas que ele obteve, relativas ao

evento da perda das forças vitais e aos presságios, sob a forma de sonhos, que

antecipavam a iminência da doença - como, por exemplo, ver pessoas mortas, andar

em um território de cremação, descer uma encosta - são próprias da forma que

Mingma avaliou sua dor, deu forma e significado ao seu mal-estar e experienciou o

processo da cura. Um homem perde suas forças, ele também respondeu, quando é

amedrontado enquanto caminha em uma estrada, durante a noite, na escuridão (Idem,

p.64-65). Toda a avaliação do processo que vai da doença à cura “(...) foi padronizado

por uma implícita, politicamente dirigida, “estética” da vida cotidiana” (Idem, p.65).

A estética, palavra que aparece no título da monografia, tem uma definição

menos artística ou performativa, sendo relativa às persistências ou aos

prolongamentos tácitos que “(...) modelam as construções culturais do corporal e das

interações sociais” (Idem, ibidem). Entre os Yolmo, as formas estéticas são

encorporadas por meio da experiência visceral dos atores culturais ao invés de serem

apreendidas, conforme Desjarlais, por princípios cognitivos. As dimensões estéticas

da doença e da cura formam a tese central do livro. Uma estética da experiência é

ligada

“(...) às formas culturais tácitas, valores e sensibilidades – estilos, modos de ser e fazer – que

proporcionam estilos diferentes, configurações e qualidades sensíveis às experiências locais.

Quando os Yolmo padronizam como os aldeões dão sentido às formas básicas (corpo, família

e aldeia) que caracterizam seu modo particular de viver, eles modelam o terreno sensorial da

experiência do sofrimento e o terreno emocional ocasionado por tais experiências” (Idem,

ibidem).

Desjarlais segue a metodologia fenomenológica para após fazer uma ligação

com as objetificações culturais. Afinal, o intuito é promover ao cerne da análise os

princípios da estética local, advindos da experiência corporal, que moldam “(...) as

noções indígenas de pessoa, emoção e experiência” (Idem, ibidem). Começaremos,

pelo coração. Como os nativos de Parú, os Yolmo têm formas de aprendizado, em que a ilustração nãopode ser dada fora das situações de aprendizado.

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166

agora, a tomar a monografia de Desjarlais, a partir de um viés que ele considera ser

uma fenomenologia da dimensão estética do cotidiano dos Yolmo, sustentada por um

meio intersubjetivo de processos psicofisiológicos, sociais e políticos compartilhados.

* * *

Uma estética da cura e da doença engloba imagens opostas. Uma estética da

doença é feita por imagens de declínio e de perda. Uma estética da cura ou da saúde é

preenchida por imagens de harmonia, integração e perfeição. Desjarlais demarca que

tais imagens não são parte de um fundo biológico que guia as experiências entre

valores opostos, mas garante que preocupações políticas, ainda que tácitas, ordenam

tais experiências. Assim, Desjarlais ressalta que para John Dewey a experiência

estética surgiria pela ordem natural das coisas, naquilo que seria nas palavras de

Dewey - citado por Desjarlais - o “lugar-comum biológico”, que “(...) se refere aqui às

interações dos seres vivos com o seu meio ambiente, interações que ocasionam os

ritmos de ordem e desordem, perda e recuperação, que caracterizam a experiência do

ser” (Idem, p.69). Desjarlais discorda da perspectiva de Dewey que não explica a

diversidade dos sistemas estéticos espalhados pelo mundo e, tampouco, as

sustentações políticas destes sistemas. Desse modo, recorre a Bourdieu e desfaz as

falsas aparências do “lugar-comum biológico”, afirmando, em seguida, que as

atividades humanas ordinárias são culturalmente construídas e inculcadas pelo

habitus, o qual dá um tom biologicizado ao que é eminentemente social. O corpo é o

veículo “natural”, como sustenta Desjarlais, apoiando-se na sociologia bourdieuiana,

ou receptáculo natural, dos modos de comer, falar ou andar que governam o senso

pessoal do que é a elegância, o adequado e o saudável: “(...) visto que as diferentes

classes sociais são pensadas a ter diferentes gostos, comidas, arte, lazer, tais gostos

envolvem um modo de construir e avaliar o mundo social, a fim de dar aparência de

naturalidade às distinções sociais” (Idem, Ibidem).

Desjarlais não se contenta em considerar o pólo da impessoalidade das

homologias do habitus e, em um movimento semelhante ao de Csordas – que se

perdeu entre a objetificação e o pré-objetivo -, busca, no meu entender, uma solução

de complementaridades que na sua prática de pesquisa volte a remendar aquilo que na

“Constituição Moderna” foi para sempre, teoricamente, separado: os processos

fisiológicos e a estética social. Se Bourdieu negligencia a ligação entre esses pólos,

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Bateson, embora careça de uma visada mais atenta à dimensão política da estética,

alcança exatamente o que faltava na análise bourdieuiana: a dimensão fisiológica da

estética encorporada. Bateson atinge, nas asseverações de Desjarlais (Idem, Ibidem),

os paradigmas “auto-evidentes” de experiência para o comportamento balinês,

traçando como a propensão dos balineses a alcançar o transe é motivada por uma

“socialização cinestésica”. Esta socialização faculta ao corpo a capacidade de se

engajar em um circuito de “reflexos espinhais” (Idem, ibidem).

O que falta a Bateson? Ainda que possa associar a maneira que os valores

culturais são correlacionados ao processo fisiológico, não pode explicar como a

“síntese da gravidade e o reflexo espinhal” toma o molde que é inerente à cultura

balinesa. Desjarlais constitui uma ponte que liga a perspectiva dos dois autores.

“Desde que Bourdieu admite uma política da estética, pareceria ser razoavelmente útil para

responder ao dilema de Bateson, uma fenomenologia da experiência estética deveria tirar

proveito da integração das redes analíticas de Bateson e Bourdieu, onde a força de cada

perspectiva ajudaria a resolver as desvantagens de cada uma” (Idem, p.70).

Uma fenomenologia da estética dos Yolmo deve monitorar como os “gostos e

valores sociais” vêm a ganhar vida nas experiências dos nativos, tal fenomenologia

“(...) deve começar e terminar com o corpo. Os corpos Yolmo modelam e são

modelados por comportamentos padronizados e hábitos do senso comum da vida

diária” (Idem, ibidem). O entendimento da estética dos Yolmo exige que nós

consideremos como as formas Yolmo funcionam cotidianamente. A estética Yolmo é

cercada por sensibilidades somáticas que envolvem dimensões de “harmonia”,

“controle”, “integração”, “presença” e “pureza”, as quais estão inter-relacionadas às

noções de doença, saúde e loucura (Idem, ibidem). A preocupação de Desjarlais é com

as imediatidades sensíveis da experiência cultural, relativas aos momentos da doença

e da cura. A estética, sendo encorporada, não pode ser analisada com os paradigmas

intelectualistas, simbolistas ou psicológicos, acabando, respectivamente, por ser

apresentada como um sistema de crenças, sob a forma de uma descrição densa da ação

simbólica e a partir dos profundos significados psíquicos das crenças culturais (Idem,

p.71). Na abordagem de Desjarlais, o corpo é menos um texto do que uma instância

“visceral” em um meio ambiente cultural. Em resumo, Desjarlais acentua que as

manifestações primárias do corpo não são um dado natural, mas fazem parte das

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exigências da “vida social local”. O modo que um homem anda quando desce uma

encosta, o modo como cuida dos seus netos e envelhece são parte das disposições

inconscientes do habitus. Encorporar, em Desjarlais, é um processo, que por parecer

auto-evidente, deve ser tratado no plano do pré-objetivo ou anterior às objetificações

do processo cognitivo.

A “harmonia” entre os Yolmo é um valor estético requerido tanto para o self

quanto para a sociedade. Os aldeãos mantêm seus corpos harmonizados e

equilibrados, realçando o quanto eles estão sãos. Os aldeões de alto status fazem o

necessário para evitar a fissura do grupo domiciliar, da família extensa e da aldeia.

“Idealmente, parece, os Yolmo experienciam seus corpos como todos unificados”

(Idem, p.72). A doença surge da fragmentação do corpo que se torna incompleto e

desequilibrado.

Intracorporalmente, os Yolmo obstinam-se em marcar a essencialidade da

harmonia, da comunicação e da coordenação. O “heartmind” e o “cérebro” precisam

coordenar suas ações, a fim de uma pessoa pensar, lembrar e mover suas partes

corporais (Idem, p.74). O corpo entre os Yolmo produz as suas próprias formas de

coordenação, por conseguinte se o pé não se comunica com o “heartmind” ou com as

outras partes do corpo termina emudecendo. Paralelamente, o grupo domiciliar, a

família extensa e a aldeia precisam desse mesmo tipo de coordenação. A manutenção

da coordenação somática e social assegura o “equilíbrio” do corpo e da sociedade. A

estética da experiência Yolmo é, sobretudo, veiculada em uma equilibrada harmonia.

“O excesso de emoções ou estímulos pode conduzir à doença, especialmente a

loucura” (Idem, p.75). As emoções abalam a serenidade e o equilíbrio.

O “controle” é uma outra dimensão estética fundamental da vida nativa.

Quando um Yolmo se desentende com o outro não revela o seu descontentamento,

conservando a sobriedade e a “paz social” (Idem, p.76). O Yolmo precisa controlar os

desejos pessoais em favor da coletividade; igualmente, o “cérebro” deve controlar os

caprichos do “heartmind”. Se uma pessoa ingere bebida destilada ela perde o

autocontrole e o “cérebro” não pode inspecionar o “heartmind”.

Além de controlar os anseios egoísticos, os aldeões “(...) lutam para controlar

seu meio ambiente comportamental” (Idem, Ibidem). A atenção que os Yolmo

dedicam ao meio ambiente é, como entre os Paruáros, contínua. Dadas as dificuldades

da vida no terreno montanhoso, os nativos permanecem atentos aos perigos, por

exemplo, supõe Desjarlais, de cair em uma ravina em uma manhã enevoada. A

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atenção que os Yolmo dão ao meio ambiente é proporcional ao grau de familiaridade

das relações pessoais que são necessárias, caso queiram permanecer saudáveis (Idem,

p.78). Em outras palavras, quando um habitante de Halembu perde este senso de

familiaridade e atenção ao meio ambiente pode tornar-se doente e atormentado por

um fantasma. Sonhos que retratam terras e pessoas estrangeiras pressagiam doenças.

Os Yolmo possuem uma “atenção cinestésica” que é decisiva para a saúde,

transbordando um ambiente de “presenças” na atenção estrita ao fluxo dos

acontecimentos diários, evitando tanto as memórias quanto as promessas do futuro

(Idem, Ibidem). Quando o heartmind demora-se muito no passado ou em uma terra

distante, a pessoa pode ficar doente devido à sua prolongada ausência do corpo. A

recordação da morte de uma pessoa deve ser evitada, pois o “heartmind” pode ir com

ela e a pessoa adoece. “O que o corpo requer para a saúde é uma presença atenta ao

seu meio ambiente imediato, livre de demorar-se em distrações”69 (Idem, p.80).

O corpo e o heartmind entre os Yolmo devem sempre permanecer “puros”.

Um corpo poluído é distinguido por uma deformação externa, uma erupção ou ferida

na pele (Idem, ibidem). Uma mulher menstruada, refeições já tocadas por outrem,

comer com a mão esquerda levam a poluição do corpo. A poluição primeiro atinge a

superfície do corpo depois, a alma ou vida espiritual.

A doença, entre os Yolmo, é um processo de “entropia física e espiritual”

(Idem, p.87). O corpo dissolve-se e as forças vitais deterioram-se. Como a lua

minguando, o corpo erode e encorpora as sensibilidades que englobam essas

ocorrências: “dispersão”, “fragmentação” e “declínio” (Idem, ibidem). A doença

repercute a estética das sensibilidades e, simultaneamente, os ditames éticos que

percorrem a vida dos Yolmo. “A cura xamânica é o meio integral dos Yolmo

construírem suas inter-relações entre corpo, espírito e sociedade” (Idem, p.161). O

conceito de saúde, para os nativos de Halembu, é mais agudo que dos ocidentais. A

saúde não se limita ao bem-estar individual, porém engloba a integração de relações

familiais, sociais e cósmicas, no interior de uma totalidade equilibrada. O universo

dos Yolmo é dividido em três reinos: o celeste, lar dos deuses, o telúrico, mundo dos

humanos e o “inferno” subterrâneo. O reino dos humanos é habitado por um sem

número de fantasmas, divindades-serpente e xamãs da floresta que podem atormentá-

los, quando eles cruzam as suas trilhas (Idem, ibidem).

69 Mais abaixo esta dimensão estética da presença merecerá maior atenção da nossa parte.

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A maior incidência de dor, em Halembu, é um tipo de doença que pode ser

denominada por “perda da alma” (soul loss). Esta doença pode tomar formas variadas.

Por exemplo, os aldeões sofrem disto quando, ao sofrer um pavor súbito, o espírito

deixa o corpo e vaga pela zona rural, tornando-se presa para fantasmas, demônios e

bruxas malevolentes (Idem, p.13). A pessoa, em conseqüência, sente o corpo “pesado”

e lhe falta energia e paixão; enfim, “(...) ela não deseja trabalhar, conversar, viajar ou

socializar” (Idem, ibidem). Um sonho que anuncia um mau agouro é, também, o

indício de uma propensão a uma doença. Quando a pessoa adoece, o xamã é intimado

pela família, procurando ritualmente localizar e recuperar o espírito perdido, que, em

última instância, é a força vital a ser reintegrada ao corpo do paciente. A monografia

é, sobretudo, “(...) um registro das almas Yolmo: como e por quê elas são perdidas,

como os curadores fazem-nas retornar para seus portadores, e por que incidentes de

“perda da alma” ocorrem tão freqüentemente em certas regiões de Halembu” (Idem,

ibidem). Desjarlais, então, “(...) deseja examinar o jogo, entre as sensibilidades

culturais e as aflições, de forças culturais que moldam, dão sentido e ocasionalmente

exacerbam sentimentos de perda, dor e desespero nas instituições sociais que

abrandam a dor e a ansiedade freqüentemente atadas a esses sentimentos” (Idem,

p.13-14). Em resumo, o propósito central de Desjarlais na monografia é esboçar os

modos em que as sensibilidades estéticas influenciam como e por que os aldeões

perdem o seu espírito, ou seja, como modelam a experiência e a expressão da doença

(Idem, p.137). Vejamos um caso relatado por Desjarlais.

Yeshi, uma jovem recém-casada, “perdeu o espírito”. Desjarlais acompanha

Meme até a sua casa para a realização de uma cerimônia de cura em seu benefício.

Yeshi vivia com o marido, Tenzin, os dois filhos e o sogro enviuvado, Kusang.

Distante e reticente, ela sentou entorpecida quando Meme procurou na terra dos

mortos o seu espírito. Desjarlais notou que seria indevido perguntar a Yeshi o que lhe

ocorria e se pôs a indagar Tenzin sobre o quê atormentava a sua esposa. O marido

disse que a mulher sentia tonteira e dores lancinantes no pescoço, braços e pernas

(Idem, p.148). Desjarlais, ao contrário de outros pacientes curados por Meme, nunca

falou diretamente com Yeshi. Nos meses que antecederam e sucederam essa

cerimônia, observava-a como uma pessoa retraída e sem vida. Nos funerais, festivais e

cerimônias de cura, onde se encontravam, ela permanecia quieta e reservada.

Desjarlais entende que é possível causalmente compreender a doença de Yeshi. Como

uma recém-casada, Yeshi afastou-se do lar paterno. Chegando à aldeia do marido, a

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esposa envolve-se no trabalho pesado e nas condições de vida do seu grupo domiciliar

(Idem, ibidem). Antes de ter filhos, ela podia retirar-se, caso estivesse insatisfeita, por

longos períodos, indo para a sua terra natal. A difícil adaptação à nova casa parecia

estar incomodando Yeshi, visto que a sua aldeia de origem era distante daquela que,

agora, habitava com o marido (Idem, p.149). Ademais, sua sogra falecera há poucos

anos, tornando-a a única mulher da casa. A ausência da sogra não lhe permitiu obter a

intimidade que se desenvolve com a nora, principalmente, se ela tem filhos. O marido

e o sogro tratavam-na de modo pouco afetuoso.

Desjarlais comenta que a impossibilidade de transcender essas privações levou

Yeshi a “perder o espírito”. Yeshi não dispunha de soluções imediatas que pudessem

reverberar a sua insatisfação, então se sentiu mal (Idem, p.150). Para curar Yeshi,

Meme, em primeiro lugar, é obrigado a adivinhar as causas primárias da doença. A

adivinhação oracular é um dado significativo do conhecimento imprescindível à cura

(Idem, p.164); contudo, o conhecimento é de difícil obtenção porque nem todos os

acontecimentos aflitivos e que habitam o “heartmind” são conhecidos pelos nativos.

Os Yolmo consideram extremamente difícil um paciente discernir as causas do seu

mal-estar: as forças que atuam no “heartmind” estão escondidas (Idem, ibidem). Os

aldeões relatam a Desjarlais a inconsciência do seu estado debilitado. Antes dos

sintomas mais graves abaterem uma pessoa, ela continua incauta acerca da sua

patologia. A reincidência da indisposição leva os Yolmo a procurarem os serviços de

um xamã. No início de uma doença, os Yolmo, segundo Desjarlais, recorrem a

terapias exclusivamente voltadas à cura física.

O xamã é quem detém a sabedoria que legitima a autoridade dos seus

diagnósticos sobre as forças que atormentam o corpo do paciente. Se uma paciente,

como Yeshi, autodiagnostica a perda do seu espírito, suas palavras, influenciadas pela

doença, serão, de acordo com Meme, “como o vento” (Idem, p.166). O xamã, no

oráculo, é o porta-voz dos deuses, revelando informações sobre o mundo que jamais

seriam acessíveis aos humanos. A habilidade do xamã para adivinhar surge da sua

intimidade com os deuses. Os deuses são os gurus divinos dos xamãs, os professores

espirituais, uma divindade pessoal que propicia, por exemplo, o decurso tranqüilo de

uma cerimônia de cura. O guru divino do xamã também é adorado pelo seu discípulo.

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Distintamente dos sonhos dos leigos, o sonho do xamã tem significado divinatório

sobre os eventos que afligem um nativo70.

A divindade como um raio solar invade as janelas dos corpos do paciente,

ilumina o seu interior e o examina. A divindade revela as profecias que associam

emoções às doenças, é a voz interior que o paciente não tem acesso, sendo verbalizada

no transe do xamã. Yeshi é isenta de responsabilidade pela sua dor, que é causada por

outras pessoas. A família do marido é repreendida pela divindade. O “heartmind” de

Yeshi estava, segundo a divindade, doente e em confusão (Idem, p.177). Ela estava

sofrendo algo semelhante à “dor da separação” (tsher ka), uma dor que se segue ao

corte dos laços pessoais. O tsher ka é uma perda da intimidade, seja pelo casamento,

quando uma jovem vai morar na aldeia do marido e se afasta dos pais, seja quando um

filho vai sozinho trabalhar na Índia ou em Kathmandu. Em suma, o tsher ka, constata

Desjarlais, “(...) é um sentimento de isolamento e abandono” (Idem, p.104). Yeshi

perdeu a sua “vida” devido a sua “falta de controle” e por causa da aflição provocada

pelos constrangimentos sociais, que limitam, em Halembu, a comunicação e a empatia

(Idem, p.178-179).

“As adivinhações xamânicas fornecem um meio para expressar dor, aflição e ira aos outros.

Um curador, através da correspondência com o sagrado, transcende os limites culturais para o

conhecimento social; suas predições fornecem um esboço discursivo para comunicar ou

“purificar” as emoções que não podem ser expressas na sociedade Yolmo” (Idem, p.179).

A cura entre os Yolmo incita um conhecimento daquilo que é incomunicável

ou irreconhecível na vida cotidiana.

O que faz o xamã? Acessa visceralmente, de acordo com Desjarlais, o que é

latente no corpo dos pacientes. O xamã, portando um conhecimento tácito, que inclui

a padronização das sensibilidades, a partir do sistema estético, reconhece as

disposições corporais que se relacionam a tais estados: as rugas ao redor dos olhos, o

fluxo do pulso e o modo que o corpo se move. O xamã sente como o paciente conduz

o seu corpo, por conseguinte, ele tem perícia para adivinhar as tensões intrínsecas do

seu mal. No caso de Yeshi, por exemplo, é o olhar distante e a cabeça baixa. A

revelação do mal que perturba a fisiologia da paciente é também um indício do

70 Desjarlais conta que freqüentemente sonhou com Meme, desde que deixou o Nepal. Em seus sonhos,os conselhos de Meme auxiliaram na escrita da etnografia (Idem, p.166-167). A instrução xamânica éinscrita no sonho.

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desequilíbrio que afeta a sua família, pois a fisiologia da casa, do corpo e da família se

espelham. A junção da rede analítica de Bourdieu a de Bateson funciona com o intuito

de conferir um estatuto sociológico a própria “socialização cinestésica” do xamã, que

o permite, segundo Desjarlais, estar atento ao que os seus vizinhos não estão. No caso

de Yeshi, por exemplo, a experiência estética da doença é detectada pela sua cabeça

sempre baixa e o seu desânimo, ocasionada pela eminente tensão provocada pela

dissolução dos seus laços paternos após o casamento. O heartmind demora-se muito,

nas suas recordações da terra natal, deteriorando todo o seu senso de presença, assim

ela cai doente.

4.4 Jamais fomos representacionalistas

Neste momento, vamos apresentar algumas inferências da monografia que

fazem a prática de pesquisa de Desjarlais estar em continuidade com as suas

antecessoras. Em seguida, retomaremos os momentos principais, no nosso trabalho,

em que pudemos assinalar os elementos nas práticas de pesquisas que, de um modo

geral, jamais nos tornaram representacionalistas.

* * *

A nossa preocupação, como explicamos no início do capítulo, não é tanto com

as singularidades dos procedimentos da cura xamânica quanto com as idiossincrasias

do patamar comunicacional que Desjarlais fabricou para produzir a sua tradução

cultural, baseada no universo relacional de um xamã do qual é aprendiz. Não faltam

motivos locais para sustentar o contato mais íntimo com um único xamã. Entre os

Yolmo, por exemplo, uma pessoa pode ficar confusa e adoecer se for, ao mesmo

tempo, aprendiz de dois xamãs. Mesmo assim, o que nos interessa é assinalar o

patamar apresentado, na monografia, relativo ao seu aprendizado enquanto xamã. Em

primeiro lugar, o aprendizado é sustentado no primado da cultura, como vimos no

início desta sessão. A cultura é tanto uma teoria da natureza humana, que cria uma

equivalência ontológica entre “Nós” e “Eles”, quanto o meio ambiente intersubjetivo,

que faz parte da fenomenologia da estética. Em segundo lugar, o sentido que atribui

ao transe e aos augúrios das divindades é um produto do conhecimento tácito que os

xamãs obtêm no envolvimento cotidiano com os seus vizinhos.

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Desjarlais tem um procedimento muito engenhoso: ao demarcar que os Yolmo

tem uma “socialização cinestésica” ele cria um oxímoro metodológico que termina

por ser tão complementador quanto o de Csordas: ele complementa à cinestesia, a

política da estética de Bourdieu. Isto ocasiona um meio muito consistente para o seu

aprendizado, visto que o corpo expressaria a fisiologia da sociedade. O aprendizado

ganha os mesmos contornos representacionalistas dos seus predecessores porque

Desjarlais depreende que o mesmo, nas casas de chá, na forma adequada de

cumprimentar os anciãos ou comer os bolinhos de arroz, faz parte da aquisição de um

conhecimento tácito, o habitus, ou seja, das homologias entre os comportamentos dos

indivíduos. Como nos mostrava Mark Harris, o habitus é uma forma de conhecimento

tácito que confere uma dimensão sociológica às manifestações corporais consideradas

mais naturalizadas. Desjarlais, em suas próprias palavras, encorporou o “habitus

tácito” dos Yolmo (1992, p.29). Foi, portanto, socializado cinestesicamente. O sentido

desta socialização é mensurado no grau em que entre os Yolmo a sociedade penetra a

carne e os ossos dos corpos de seus membros, levando às dissonâncias, tais como a de

Yeshi, já que os valores Yolmo impedem que as pessoas manifestem suas

insatisfações pessoais.

Neste momento da análise, o próprio Desjarlais recorda que a epistemologia

do self, em Bateson71, estruturando a natureza do processo da sua aprendizagem, traz

uma possível simetria entre os self-systems do antropólogo e do curador, pois “(...) o

self-system do antropólogo [pode] conhecer mais do seu self consciente (...) e como

nas revelações do xamã (...) pode explorar e cultivar o “conhecimento tácito” (Idem,

p.26). O conhecimento tácito é encorporado, logo as visões no transe também o são e

estão em consonância com o saber local dos Yolmo. Começam no irrefletido das suas

experiências. O ininteligível ou inarticulável dos Yolmo, as emoções e a intimidade,

puderam ser exploradas com o seu envolvimento corporal em um solo existencial

onde “(...) o curador é parte antropólogo, perceptivo e atento aos significados e

tensões locais, então o antropólogo pode tornar-se parte xamã, penetrando no

implícito da “racionalidade local” para adivinhar as causas e a natureza do sofrimento

humano” (Idem, p.24). Estas palavras já foram mencionadas.

71 Nas palavras do próprio Bateson, é “[A] unidade total autocorretiva (...) que processa informação, oucomo eu digo [Bateson], “coisas”, “atos”, e “decisões” em um sistema cujas fronteiras não coincidemcom as fronteiras, seja do corpo, seja do que é popularmente chamado de “self” ou “auto-consciência””(Bateson apud Desjarlais, Idem, p.26). Esta passagem já está citada na página de número cento ecinquenta e nove.

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A novidade que emerge é a seguinte: se antes as qualidades do seu self-system

permitiam que ele encorporasse, individualmente, o conhecimento tácito, da vida dos

Yolmo; agora, ele substitui a imanência da condição em que se desdobrava o

aprendizado pela transcendência dos valores que o aculturaram:

“Se comparamos a epistemologia de Bateson para os modos Yolmo de conhecer, achamos que

os “self-systems” Yolmo, ainda mais expansivos que as versões ocidentais, incluem aspectos

da experiência social e corporal excedendo o alcance do heartmind [self] – até certo ponto que

a expressão “self-system”, em si mesma, parece inapropriada. Talvez, devêssemos falar de um

“societal-system” ou de uma “ecologia do conhecimento”72. O fluxo do pulso de Yeshi, o

xamã da floresta, o guru de Meme, os deuses dos cincos céus todos tomam parte e trabalham

para esta ecologia” (Idem, p.184).

O nível tácito do societal-system, vedado ao heartmind, é o nível das “visões

do xamã e do trabalho dos deuses” (Idem, ibidem). A princípio, Desjarlais realça a

simetria entre o seu self-system e o do xamã, que lhe permitiu adentrar certos aspectos

tácitos da vida dos Yolmo. Mais tarde, dota os Yolmo com um societal-system que faz

o self-system parecer inapropriado para retratar a ecologia que engloba o seu mundo.

Ecologia, aqui, tem um sentido, em nossa compreensão, cultural. Os contextos

práticos de enskilsment, que seriam parte dessa ecologia, são limitados a uma

aquisição mentalista ou cultural dos sistemas ou esquemas de valores Yolmo. Dois

fatores emergirão, após essa longa citação, e darão mais clareza à alternância entre

imanência e transcendência na monografia de Desjarlais:

“(...) o transe é o meio primário através do qual o corpo fala. Meme pode apenas conhecer o

“ininteligível” quando hospeda os deuses dentro do seu corpo, com a ajuda do seu guru, e

assim os aldeões (incluindo Meme) atribuem suas revelações aos deuses. Na verdade, o poder

do oráculo para explorar as veias primordiais da experiência Yolmo conduz à sensação que

forças inumanas estão envolvidas (...) Através da adivinhação, o corpo de Meme serve como

um canal que ressoa os acordes básicos da experiência Yolmo – acordes que passam por

famílias e aldeias, e tomam forma entre corpos, não pertencem, desse modo, a uma única

pessoa (...) Forjando a sensação da aflição no corpo em fantasmas, perda de espíritos e mal-

estares corporais, o divino, assim, forma parte do circuito cultural de conhecimento. O circuito

transcende os corpos individuais. Engloba interações entre corpos, famílias e o meio ambiente,

sendo delineados de e contribuindo para a experiência coletiva. Circula pela risada em uma

72 O termo é do Bateson.

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casa de chá, os sonhos de um xamã e os “rios” de um corpo. Seu valor repousa em seus

aspectos coletivos” (Idem, p.183).

O primeiro fator: o diagnóstico encorporado do xamã cria um nível

comunicacional com o paciente que engaja o corpo dos dois. Meme, com o seu corpo,

presta a atenção à doença e ao corpo do paciente. Esta disposição no processo

terapêutico depende de uma “comunalidade de experiência” (Harris, 2003) que só é

obtida, por Meme, nas relações diárias que antecedem e se posteriorizam à cerimônia.

O corpo do xamã reverbera uma propensão à empatia, embora o seu “heartmind” não

saiba o que se passa com o afligido.

Qual é a função do transe xamânico e da eventual aculturação de Desjarlais?

Alcançar as formas tácitas de conhecimento que os xamãs acessam, tornando

evidentes as forças impessoais da sociedade que são vedadas ao ator comum. A

imanência do self no aprendizado dá lugar a transcendência da socialização quando o

conhecimento tácito é encorporado. Podemos antecipar que, novamente, jamais fomos

representacionalistas, porque Desjarlais deve dotar o seu “objeto” com propriedades

estranhas a ele, o que o permite fabricar uma conversação que termina por superá-lo:

do self-system ele chega ao societal-system, um nível de sensibilidade tácita que

apenas os xamãs e os deuses possuem. Na prática de pesquisa, ele efetua uma

passagem constante entre a imanência e transcendência, passando de sujeito livre a

sujeito determinado (Latour, 2000; 2002). O mais surpreendente tanto em Laderman

quanto em Desjarlais é que eles vão mais longe do que os seus predecessores e

chegam a ser possuídos pelas suas próprias fabricações, sofrendo espasmos, tremores

e tendo visões de elfos, pássaros divinos, criaturas da floresta, etc.; que são para eles

visões fornecidas metaforicamente pela cultura. Quanto mais os modernos tentam

retomar os seus vínculos com os outros coletivos por soluções dialéticas, mais

evidente é a sua amodernidade.

O segundo fator: Desjarlais traça uma equivalência entre a ação “misteriosa”

dos não-humanos e da sociedade, a qual inventa o sagrado para se fazer parecer algo

“totalmente outro” e fora do indivíduo (Csordas, 1990; Otto, 1992). O corpo de

Meme, ao servir como um canal que ressoa os acordes básicos da experiência Yolmo,

ressoa a vida coletiva. Os acordes, atravessando as famílias e as aldeias e se formando

entre os corpos, não pertencendo a uma única pessoa, facultam ao sagrado criar

solidariedade social e autoridade moral. O sagrado, aqui, corresponde à formulação

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177

durkheimiana, que se estendia à obra de Geertz, para a qual Csordas procurava um

novo sentido fenomenológico. Como em Geertz, a religião, na monografia de

Desjarlais, é analisada com as mesmas configurações do regime de enunciação da

“Ciência” (Latour, no prelo; 2004). Segundo Latour,

“[o] mundo invisível da crença é equivocadamente edificado além do mundo visível da

ciência, ao passo que é quase o oposto: a ciência dá acesso a uma forma de invisibilidade e a

religião a uma forma de visibilidade (...) a noção de crença é a projeção nos mediadores

religiosos da trajetória da transferência de informação” (no prelo, p.17-18).

Desjarlais, quando fala dos não-humanos, fantasmas, espíritos, indisposições

corporais, está pontuando uma transcendência, que concede a estas entidades a

autoridade própria à onipresença invisível da sociedade. Afirmar que os nativos

forjam a sensação das aflições e angústias do corpo, atribuindo isto a fantasmas, por

exemplo, é também dizer de um modo sutil que eles “crêem” ou se enganam acerca

do domínio invisível que constitui a origem da força dos seres inumanos: a sociedade.

Em termos etnográficos, o poder dos deuses sobrepuja aquilo que aos aldeões,

individualmente, é vedado ou restringido: expressar as emoções. Os acontecimentos

que escapam à normalidade são tratados como casos que expressam a inefabilidade do

sagrado, que se relaciona com a ordem de acontecimentos estranhos ao cotidiano,

transcendendo o corpo individual.

O corpo e o “heartmind” são as instâncias em que o paciente avalia o êxito ou

o fracasso de uma cura ritual, que deve transformar a maneira que a pessoa sente. A

cura xamânica desfaz as tensões sociais ocasionadas por um comportamento

agressivo, de forma que atribui os sintomas a demônios ou bruxas, evitando “(...) o

estigma social da raiva descontrolada” (Idem, p.229). A objetificação da raiva é

moldada nas interferências que o “radicalmente outro” (Csordas, 1990; Otto, 1992)

instala na ordem social. Portanto, a raiva do paciente é motivada por um agente

externo que o desresponsabiliza dos seus erros. Desjarlais insinua que o exorcismo

depura as tensões porque é uma resolução de conflitos inerentes a uma determinada

estrutura social. Um mal-estar é recorrente, por exemplo, se as tensões que o

ocasionam também o são. A cura é parcial, nestes casos, pois deve ser realizada

diversas vezes, apenas aliviando a dor.

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178

A oposição geral entre a emoção e a representação é um elemento comum às

traduções de Desjarlais e Csordas, onde tanto um quanto o outro tratam os não-

humanos, demônio ou fantasmas como seres culturalmente construídos para codificar

as perturbações que são supostamente o resultado de um comportamento anti-social.

A alteridade do sagrado, embora seja conceptualizada, em Csordas, como vimos no

último capítulo, enquanto uma propensão humana a serem tematizadas como

“totalmente outras”, aparece na monografia de Desjarlais com o intuito de dotar a

excepcionalidade do transe como um momento em que a sociedade reafirma a

onipresença dos seus valores e leis.

Desjarlais evidencia que o transe e o sagrado são expressões da vida coletiva.

Do começo ao fim, o mundo social/cultural e as dicotomias que ele traz se fazem

presentes na sua análise. Em suma, os dois fatores estão em consonância com a feitura

de uma tradução cultural: a evocação da invisibilidade e da consistência das

representações coletivas, seja no aprendizado, seja na conceptualização do sagrado,

explicitando os próprios limites da cura xamânica.

Os ritos de Meme não erradicam as fontes de uma doença, porém são um

lenitivo para a dor. Meme, por exemplo, acessa as sensibilidades somáticas dos seus

pacientes, estando muito mais habilitado a tratar os males “psicossociais”,

relacionados ao medo ou ao sono, do que as indisposições “biológicas” (Desjarlais,

1992, p.229). O divisor é do autor. O limite do xamanismo, entre os Yolmo, esbarra

nas dores que não se dissolvem pela magia. Deste limite, decorrem “crises

epistêmicas”, como as relatadas no caso de um homem de cinqüenta e um anos, em

que a cura não se efetivou (Idem, p.230). O seu nome era Lopsang. Algumas

cerimônias de cura foram realizadas em seu benefício. Desjarlais conta que ficou

surpreso porque, ao entrar na sua casa, era visível o seu sofrimento. Quando Meme

tocou tambor, uma dor alastrou-se pelo corpo de Lopsang. Os nódulos linfáticos do

seu pescoço sobressairam-se e a pele contraiu-se contra os ossos. Magro e esquálido,

o paciente era incapaz de se levantar quando Meme resgatou o seu espírito da terra

dos mortos. Quem o ajudava, segurando os seus braços, era a sua esposa. Meme

desempenhou um grande número de técnicas para recuperar o espírito do paciente,

que durante a manhã não apresentava qualquer sinal de melhora. O xamã limpou o seu

corpo da poluição, da dor e tentou recuperar os seus noves “suportes vitais” (srog).

Entrevistando Lopsang, na sua casa, quatro semanas mais tarde, Desjarlais

encontrou-o ainda doente e se queixando de uma forte queimação no peito, o

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estômago estava inchado e tinha uma salivação azeda na boca. Lopsang sofria de

problemas gástricos que já se arrastavam por quatro anos, sendo que haviam se

intensificado quatro meses antes da cura. (Idem, ibidem). Antes de recorrer a Meme, o

paciente foi duas vezes a um hospital em Kathmandu, gastando trezentas rúpias em

remédios, que tiveram um efeito inútil. O quadro médico requeria uma cirurgia na

Índia (Idem, ibidem).

Quando retornou a Halembu, Lopsang chamou Meme, que interpretou os

sintomas e sonhos significando doenças variadas: o sonho com túmulos predizia que

um fantasma o afligia, a divindade-serpente negra era causa do estômago inchado, os

seus nove suportes foram perdidos e sofria de “astrological plight” (Idem, p.230-231).

Meme performou uma série de ritos que acarretaram em grandes despesas sacrificiais,

incluindo quatro bodes e muitas galinhas. O preço de cada sessão variou de quarenta a

sessenta rúpias, aproximadamente uma semana de salário (Idem, p.231). A dor não

cessou, apenas o estômago havia melhorado. O deus, na adivinhação, vaticinava, com

bastante segurança, que ele morreria em quatro meses. Lopsang, simultaneamente,

estava desesperado com o seu destino e em dúvida quanto a veracidade do oráculo.

Nove meses depois, Desjarlais falou com Lopsang que, apesar de ter ganho

algum peso, ainda aparentava estar fraco e frágil. Neste intervalo, o paciente havia

retornado a Kathmandu, pois não sentia muitas melhoras após as cerimônias de cura.

Um médico ayuverdista lhe receitou, além de uma série de remédios, uma dieta.

Mesmo com a ligeira recuperação, ele achava que ainda era assolado por uma doença

de origem espiritual. Desjarlais relata que Lopsang, embora parecesse indeciso quanto

à origem da sua dor, seja por motivos espirituais, seja por causas biológicas,

permanecia autoconfiante que não morreria (Idem, p.232).

Ainda que os ritos de Meme tenham falhado no âmbito biológico, tiveram

êxito no plano psicológico que fazia parte dos seus distúrbios. Os pesadelos pararam

de acontecer, a ansiedade e o medo foram abrandados (Idem, ibidem). Em relação a

Meme, Desjarlais demarca que a sua falha foi, em última instância, associada à

vontade dos deuses em manter o paciente doente, levando-o à morte inevitável.

Meme, nas considerações de Desjarlais, ao sentir e temer o fracasso definitivo dos

seus procedimentos, evita a responsabilidade para o sofrimento de Lopsang,

predizendo que ele morreria em quatro meses (Idem, ibidem). Enfim, tanto Meme

quanto Lopsang estavam desesperados. O primeiro porque não conseguia curar. O

segundo porque estava fadado a morrer. Lopsang ficou dividido entre duvidar do

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xamã e acreditar nos deuses. Ele estava envolto em incertezas, ouvindo dos vizinhos

que as adivinhações de Meme podiam estar erradas. Em suma, o caso da contínua

doença de Lopsang aponta para os limites que Desjarlais observa no conhecimento

Yolmo. Ele conclui que por ser um “construto cultural” as adivinhações dos nativos

operam apenas em alguns domínios da experiência (Idem, p.233).

Desjarlais diz notar nos relatos dos nativos uma cesura entre as terapias da

medicina e da cura xamânica que evidencia os limites de cada uma. Enquanto a

medicina trata do interior, o xamanismo trata do exterior. Ele sente que a proposições

nativas são úteis, pois situam, por exemplo, o ataque de uma bruxa, que inflige sobre a

superfície da carne da pessoa, a parte mais exposta do corpo, dores e feridas, um

diagnóstico das tensões sociais que podem ser motivadas por um conflito interfamiliar

(Idem, p.233-234). Os problemas de saúde, puramente físicos, que persistem após

várias sessões de cura, são encaminhados a uma clínica. Ao dotar os Yolmo com uma

cultura, uma metafísica, uma epistemologia, Desjarlais incorre na mesma “prática de

fabricação de objetos” que havíamos observado no material balinês de Geertz, cujo

conteúdo representacional também é alvo das suas críticas. O que surpreende na

fenomenologia da estética de Desjarlais é a fabricação de uma oposição entre interno

e externo que polarizadamente faz das doenças um apanhado discernível e separado

de causas biológicas (internas) e sociais (externas). O autor purifica aquilo que ao

longo da monografia, a partir relato dos nativos, é indivisível, posto que a vida dos

Yolmo, nas palavras de Desjarlais, é guiada por princípios cinestésicos.

A “confusão é completa” se considerarmos que a alternância entre a imanência

e a transcendência cria um jogo intricado entre o exterior e o interior: Em primeiro

lugar, a sociedade é a entidade transcendente que produz o sagrado para criar

autoridade moral e solidariedade social. Em segundo lugar, o sagrado, revelando a

manifestação de certas tensões sociais, explica porque os ataques de fantasmas ou de

bruxaria são evidenciados naquilo que é empiricamente observável para os nativos: a

pele. Em terceiro lugar, no entanto, a cura é um processo que alivia as tensões

causadas por um dos principais paradigmas da vida Yolmo: o controle das emoções e

dos desejos pessoais; enfim a cura trata do que é implícito, mas que é revelado por

alguns indícios corporais, que acabam refletindo conflitos incontornáveis. Em quarto

lugar, não sabendo mais o que está dentro ou o que está fora, eis que surge a solução

definitiva: a cura xamânica é um constructo cultural que cuida de problemas

psicológicos e sociais, enquanto a medicina cuida de problemas biológicos.

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Quem está ao lado do “feito” ou da “construção”? As “crenças” nativas no

xamanismo que são reduzidas às forças impessoais da cultura e da sociedade. Quem

nesse movimento é desprovido de qualquer agência? Os não-humanos, que frutos da

tensão social, são reduzidos a meros objetos culturais, demarcando aquilo que deve

ser expurgado do meio intersubjetivo, limitado aos humanos. Quem está ao lado do

“fato” e da “objetividade”? A medicina que cura aquilo que os xamãs falham em fazer

desaparecer. Até onde vai o conhecimento do xamã? Vai até ao limite que caracteriza

a divisão entre biologia e cultura. De que faz-fazer é preenchida a tradução cultural?

Do mesmo faz-fazer que liga Desjarlais a Geertz: ele deve dotar os nativos de uma

“dignidade ontológica” e universalizada que crie um diálogo, ainda que mentalista,

entre culturas que, no atual momento da disciplina, são permeadas por relações de

poder e códigos contraditórios.

Por quê mais uma vez jamais fomos representacionalistas? Porque a tentativa

de nos reatar aos objetos e aos outros coletivos é um processo tão complicado quanto

aquele que nos separou deles. Afinal, como notávamos anteriormente, uma das

peculiaridades mais agudas do mundo moderno é um caminho sem volta, onde nós

estamos envolvidos em um sem número de superações e rupturas com relação ao

nosso passado. Desse modo, ao contrário dos outros coletivos que vivem da mistura,

nós estamos pronto a depurar e a purificar, distanciando-nos ainda mais dos outros. O

que parece incomodar a Desjarlais? A impossibilidade de colapsar essa situação,

entretanto ele não consegue sair da trilha e busca restituir os nossos vínculos com os

outros, a partir de uma série de operações complicadas em que a cultura é o ponto de

partida básico.

O que ele procura estabelecer? Procura estabelecer que a sua monografia é

baseada em um “aprender a aprender”. Porém, que tipo de aprendizado? O

aprendizado é concernente à socialização, tal como uma criança, que não está ciente

dos padrões culturais, que controlam as expressões cotidianas de gentileza, de

intimidade ou do transe, assim ele participa da vida Yolmo com o intuito de modelar

seu equipamento biológico que lhe faculta viver em culturas diferentes. O que está

dado na sua monografia? A divisão entre inato e adquirido. Do que ele não consegue

escapar? Tal como vimos a partir de Durkheim, do acento em um mundo social real e

dado que se transformou na medida dos nossos julgamentos e procedimentos lógicos.

Desjarlais, a meu ver, malogra ao não conseguir restituir alguma simetria entre “Nós”

e “Eles”, que não passe pela promoção da sua forma de existência sobre a nativa. A

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exportação das soluções filosóficas fundadas nas tensões entre fenômeno e

representação, percepção e conhecimento, sensorial e simbólico cria um relativismo

fenomenológico, que já havíamos entrevisto na monografia de Csordas. Não

reproduzindo certas homogeneizações do relativismo cultural, tendo, na prática de

pesquisa, um ponto de partida estritamente fenomenológico, Desjarlais distende os

fios da reflexão para o mundo sensível. Entretanto, da mesma maneira que Csordas,

ele não considera que o pré-objetivo ou pré-conceitual e o objetivo ou

representacional sejam exportações aos outros coletivos das incomensurabilidades da

“Grande Divisão”.

Acima destacávamos, entre as dimensões estéticas que caracterizam as

sensibilidades Yolmo, a “presença”. Desjarlais mencionava que, além dos Yolmo

lutarem para controlar os seus desejos subjetivos, eles deviam empenhar-se para

controlar o seu meio ambiente comportamental (1992, p.77). Sobre o controle do meio

ambiente comportamental, Desjarlais parece, no nosso entender, não desdobrar uma

questão fundamental, até mesmo, para as suas considerações acerca das diferenças

metafísicas entre os ocidentais e os malaios. Em um apontamento anterior, ligado às

relações que os Yolmo estabeleciam com o espaço, expusemos que Desjarlais

considerava que o espaço entre os Yolmo era “(...) menos uma abstração do que uma

entidade tangível em si mesma” (Idem, p.40), sendo preenchido por uma imagem em

que está sempre cheio e não vazio. Isto se refletia em uma casa próspera que tem as

paredes e os armários adornados com fotos, utensílios de cozinha e garrafas cheias

com águas coloridas (Idem, ibidem). Com estas palavras, novamente mencionadas,

afirmávamos que Desjarlais, ao tomar a relação dos Yolmo com o espaço sendo o

resultado de uma metafísica distinta da Ocidental, manteve uma orientação mentalista

no seu trabalho. A questão de a metafísica ser diferente derivaria do produto de

formas culturais que se diferenciam da Ocidental, na qual o espaço deveria ser

preenchido para ser visível, já que vazio ele é uma abstração (Idem, ibidem).

No caso da dimensão estética da “presença”, Desjarlais, a meu ver, também,

equivoca-se ao interpretar que os Yolmo lutam para controlar o seu meio ambiente,

embora indique que esse meio ambiente inclua os constituintes não-humanos. Os

nativos, como ele próprio afirma, devem estar conscientes dos perigos da vida na

montanha, pois a familiaridade com o contexto é um elemento fundamental para

evitar cair em uma ravina durante uma manhã enevoada. Se a dimensão estética da

presença é uma atenção constante aos seres humanos e não-humanos que constituem o

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meio ambiente, este último não é controlado, mas aparentado aos nativos, que estão

familiarizados com os seus perigos. Um dos maiores problemas da monografia de

Desjarlais é afirmar que os Yolmo lutam para controlar o seu meio ambiente

comportamental. Comportamental é, sobretudo, um epíteto de intersubjetivo: um meio

inerente ao domínio social, limitado aos humanos e inacessível para os não-humanos.

Logo, ele não escapa das divisões que acompanham uma abordagem baseada na

cultura.

Os yolmo, segundo Desjarlais, exacerbam o seu senso de presença devido ao

imperativo de uma sólida base perceptiva. A pessoa deve prestar atenção ao fluxo da

vida ao seu redor. Os habitantes transpiram a importância de uma certa “hereness”, no

interior de uma “atenção cinestésica”, para a manutenção de uma vida saudável,

evitando o que as memórias guardam ou o que o futuro anuncia. Sonhar com pessoas

e terras estranhas é um presságio de doenças. Se o “heartmind” demora-se muito em

uma terra distante ou no passado, ficando muito tempo fora do corpo, a pessoa pode

ficar doente. “Os Yolmo wa deveriam separar a realidade da imaginação (e o presente

do passado)” (Idem, p.78). O “cérebro” procura evitar que o “heartmind”, por causa

de desejos não concretizados, termine em realizar “excursões imaginativas” deixando

o corpo. Quando, por exemplo, o “heartmind” vai a muitos lugares, o cérebro fica

confuso e não pode decidir o que fazer ou focar.

Para os Yolmo, portanto, a visibilidade e a presença são um elemento essencial

do seu mundo. Para os modernos, no entanto, a evocação de uma ordem invisível e

ausente constitui o cerne da representação individual (do “Ego Transcendental”) e da

coletiva (da “sociedade”), como discutimos no primeiro capítulo. A primeira concerne

ao “sujeito conhecedor”, desvinculado do mundo físico. A segunda, fruto da primeira

desvinculação, diz respeito ao sujeito que constrói para si um mundo eminentemente

humano, o mundo social. Enfim, os dois movimentos expressam, ao mesmo tempo,

duas superações ou transcendências que nos apartaram duplamente da natureza, desde

então, cognicizada em idéia ou representação. A existência fora do mundo, entre os

modernos, é viabilizada por uma “Mente extirpada” (Latour, 2001), cuja realidade,

apontava Durkheim (1970), é a memória e a recordação. Entre os habitantes de

Halembu, todavia, a recordação, a memória ou qualquer movimento especulativo, que

paralise a atenção da pessoa às imediatidades do meio ambiente, conduz à doença. O

caso de Yeshi é emblemático. A introspecção que lhe acometeu, ocasionada pelo tsher

ka (“a dor da separação”), quando casou e se afastou dos parentes, fê-la perder, por

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causa do excesso de reflexão, o senso do “aqui e agora” sem o qual um Yolmo pode

enlouquecer. Em Halembu, por conseguinte, indagações auto-reflexivas, do tipo

“quem sou eu?”, não são bem-vindas (Desjarlais, 1992, p.106).

No primeiro capítulo, assinalávamos, a partir de Durkheim (1970), a pouca

importância positiva que o elemento motor possuía para as operações mentais.

Delimitando a bifurcação entre o físico e o mental, ele admitia que o mental opera em

uma dimensão que traspassa o domínio físico.

“As funções intelectuais superiores pressupõem, sobretudo, inibições de movimentos, como o

provam não só o papel capital que para tanto desempenha a atenção quanto à própria natureza

da atenção, que consiste essencialmente numa suspensão, tão completa quanto possível, da

atividade física” (idem, p.27).

Durkheim posiciona a atenção como uma faculdade intelectual de uma

consciência absoluta e transcendental. Se considerarmos, entretanto, que entre os

Yolmo a “atenção cinestésica” mobiliza a “pessoa toda” (Ingold, 1993) de modo tão

visceral que ela adoece caso se separe da familiaridade com o meio ambiente,

encontramos o limite de uma tradução baseada no a priori construtivista de que os

mundos humanos são culturalmente construídos (Ingold, 1996). Se os Yolmo mantêm

a sua atenção vinculada cinestesicamente ao mundo, a possibilidade de terem cultura,

natureza e sociedade é improvável. Em outras palavras, o destacamento dessa

habitação do mundo, originado por estes conceitos, leva a acentuar o erro que

acompanha as conceptualizações de Desjarlais. Muito preocupado com a cultura, ele

deixou de sublinhar o ponto em que os Yolmo jamais foram representacionalistas:

humanos que se imaginam existindo apartados do mundo e dos objetos que fabricam,

por serem dotados com uma mente produtora de representações diferentes de si. Se a

atenção é cinestésica, ao invés de mentalista, uma tradução cultural não vai muito

longe em captar essas diferenças que Desjarlais verificou na sua experiência de

campo. Elas são reduzidas a uma dimensão estética que, tacitamente, inculca nos

nativos os padrões comportamentais ligados às imagens da doença e da cura. Em

resumo, se os Yolmo tivessem cultura eles adoeceriam ou então enlouqueceriam.

* * *

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Como Pasteur e o seu fermento de ácido lático, construído laboriosamente no

laboratório; como os candomblecistas que devem assentar as suas divindades; como

Malinowski que cria as condições apropriadas para captar o espírito da vida nativa;

como Durkheim que inventa a sociedade que supera os indivíduos que a construíram;

como Geertz que deve estofar os balineses com cultura, natureza, metafísica para

assim poder falar e conversar com eles; como James Clifford que, decepcionado com

a sua iconoclastia, substitui a imparcialidade do teórico-pesquisador de campo pela

transcendência das forças impessoais do poder, da raça e do gênero; como Csordas

que preocupado com o abismo entre experiência e cognição cria uma terceira saída

para o impasse e acaba sendo surpreendido por essas força inconciliáveis no mundo

moderno; Desjarlais para postular um novo vínculo para “Nós” e “Eles” tem de seguir

as prescrições da divindade reinante, a cultura, e termina por efetuar uma tradução que

deve considerar as mesmas operações que as de Geertz, só que no nível do corpo, mas

o corpo que representa a fisiologia da sociedade ou o seu conhecimento tácito

relacionado também ao habitus.

Em todas essas experiências jamais fomos representacionalistas porque nunca

conseguimos nos separar, emancipar ou deixar de sermos produzidos por aquilo que

construímos. O que nós fizemos aqui foi contemplar, a partir da perspectiva do

faitiche, o que Latour não pronuncia: que as produções sociológica e antropológica

são permeadas por um attachement substancial aos objetos, que no mundo moderno

são tanto os humanos dos outros coletivos quanto os não-humanos em geral.

Simetricamente, tanto “Nós” como “Eles” possuímos faitiches. Sem dúvida, essa foi

uma contribuição desta dissertação. Do passado ao presente somos superados, ainda

que com “pequenas diferenças” (Ingold, 1993), principalmente, em termos de prática

de pesquisa, pelo seres que nos presenteiam com a dádiva de fazer coisas que sem eles

seria impossível. Somos, ao mesmo tempo, os seus produtores e os seus produtos.

Temos, ao final da dissertação, dois problemas que atravessam as abordagens

examinadas anteriormente que buscam resolver, dentro da pesquisa de campo, a

experiência fundante da disciplina antropológica; os desafios de uma crise que,

supostamente, se abateu sobre a disciplina: a crise ocasionada pelo fim do

modernismo.

Em primeiro lugar, no nosso trabalho, temos assinalado, até agora, que tal

crise, de certa forma, nunca ocorreu, visto que uma das premissas substanciais do

modernismo jamais se concretizou na “forma de vida prática” (Latour, 2002) dos

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modernos, seja dos cientistas nas centrais de cálculo, seja entre os atores comuns, seja

dos antropólogos: a desvinculação ou depuração completa entre o “Ego

transcendental” e o mundo (Latour, 2001). Se tal crise ocorreu, o seu domínio efetivo

foi dentro de uma perspectiva intelectualista ou em uma “forma de vida teórica”

(Latour, 2002) da antropologia. Nesta vida, a cesura entre o sujeito e o objeto é dada,

ao passo que na prática sempre inexistiu, cedendo lugar às misturas, hibridizações,

afetos, enskilments. Em todo caso, quando apontamos o problema da representação

tanto na crítica cultural quanto nos autores, por exemplo, que buscam um fundo mais

ontológico para questionar o primado da representação, mostramos que eles estão

preocupados com a tradução da experiência de campo. A primeira confecciona uma

metacrítica que realça a importância das cesuras modernas, devendo ser superada por

uma “verdade mais verdadeira”. Esta metacrítica, tão distanciada quanto está do Real,

que aparece na sua denúncia como dado e inerte, parece afastar-se das próprias

antinomias de que ele, o Real, é feito (Velho, 2005). Caso o intuito seja apontar os

indícios de uma crise, o próprio Real diz o quanto ela é inexistente. Por conseguinte,

os segundos encontram nas experiências imediatas do trabalho de campo os limites do

representacionalismo, e, desse modo, propõem saídas que dão conta da nossa própria

amodernidade. Eles não se emancipam das representações, mas constatam na tradução

o quanto a inteligibilidade humana é englobada pela obtenção de skills e pela

produção de faitiches. A própria existência de uma crise pode, então,

antinomicamente, ser o maior sintoma da sua inexistência. A contradição não depende

de uma inferência do intelecto, está atada à realidade.

Em segundo lugar, temos destacado, também, que mesmo nas formas mais

agudas do representacionalismo, quando apresentamos a invenção da sociedade,

efetuada por Durkheim, ou a invenção de um mundo povoado de balineses com uma

cultura, uma metafísica, uma natureza, etc.; não escapamos de um acontecimento que

nos simetrizaria, ainda que com “pequenas diferenças”, aos outros coletivos, onde a

purificação entre os humanos e as coisas não constitui um dado originário do seu

mundo: nós também produzimos faitiches (Latour, 2000; 2002), isto é, produzimos

seres que nos superam ligeiramente e cuja força pode ser revertida para nós, acabando

por nos dotar de uma autonomia que sozinhos nós jamais mobilizaríamos.

Sem faitiches, Malinowski não conseguiria, no tratado que inaugura um

período tomado como revolucionário na antropologia, realizar a pesquisa de campo.

Afinal, ele não esconde o fazer que abrange tanto a produção dos fatos quanto a dos

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fetiches. Quando afirma criar as condições adequadas para a realização da pesquisa de

campo, estamos mais do que nunca dentro daquilo que parece ser invisível aos

detratores desta experiência: a inescapável sinonímia entre realidade e construção.

Criar as condições é ressaltar o “attachement aos objetos” (Latour, 1994b), sem os

quais ele perde o faz-fazer que aparecerá muito bem delineado em uma teoria

etnográfica que visa captar o verdadeiro espírito da vida nativa. A ênfase em uma

crise da representação, como discutimos, também sempre toma como dada a divisão

entre indivíduo e sociedade, tentando preencher o abismo entre eles, nas suas práticas

de pesquisa, com uma série interminável de soluções dialéticas. Se postularmos que

nós jamais fomos representacionalistas, porque jamais abandonamos em nossas

práticas os vínculos aos constituintes humanos e não-humanos, que no mundo

moderno recebem a nomenclatura comum de objeto, deixam de ser tão interessantes

as complementações de Csordas ou Desjarlais, tentando encontrar uma “dignidade”

para os objetos, dizendo que tanto “Nós” quanto “Eles” compartilhamos de uma

natureza humana comum, a partir da cultura.

Durkheim e seu próprio faitiche, por exemplo, denotam, com a sociedade, que

vivermos emancipados e sem um vínculo, tal como era evidenciado na solidão do

sujeito conhecedor que cria um mundo que, apesar de produzido pelas consciências

individuais, ganha autonomia o suficiente para superá-lo e começar a produzir a seu

contento normas, visões de mundo, sanções, etc.. Durkheim talvez tenha sido um dos

principais autores a se esforçar para restituir um vínculo para a existência “em si” do

“Ego transcedental” e atingir o objetivo em recolocar este Ego no mundo, porém em

um mundo eminentemente social, vedado aos seres não-humanos. O mais interessante

é que Durkheim não perde de vista esse attachement em uma prática de pesquisa que

se consagrou por ter um método baseado exclusivamente na “experimentação

indireta”. Destarte, esse método que analisa as coisas “fora do seu contexto” não deixa

que Clifford fique “aliviado” com os seus gestos iconoclastas. Assim, ele substitui a

neutralidade do “Ego transcedental” do pesquisador pela impessoalidade das forças da

sociedade, do gênero, da raça, da economia, etc.. Novamente, uma divindade deve dar

lugar à outra. A ausência delas colapsaria a vida dos modernos.

Aqui devemos lembrar de Latour que, com uma certa ironia, talvez, dissesse

que os modernos ainda zombariam dos candomblecistas que devem “assentar” ou

fazer suas divindades. Este é o sentido geral que perfaz o próprio título do nosso

trabalho: somos superados, e mesmo recriados, pelo que nós construímos.

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