latour iconoclash

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Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun. 2008 O QUE É ICONOCLASH? OU, HÁ UM MUNDO ALÉM DAS GUERRAS DE IMAGEM? * Bruno Latour Instituto de Estudos Políticos de Paris – França Resumo: O autor oferece uma reflexão a partir das obras apresentadas na exposição Iconoclash. Beyond the Image Wars in Science, Religion and Art, em 2002, no Center for New Art and Media, em Karlsruhe, cuja curadoria juntou três ambientes, os da religião, da ciência e da arte contemporânea, em que as imagens vêm se apresentando como “armas culturais” por meio de uma luta ambígua que tanto produz como destrói imagens, ícones e emblemas. Iconoclash foi o termo escolhido para definir a temática dessa exposição e nortear a reflexão do autor sobre o ódio e o fanatismo, nos diversos âmbitos da vida cultural social e política. Movendo-se em direção a um tipo alternativo de “iconofilia”, para além das guerras de imagens, sugere a suspensão do gesto iconoclasta optando-se por uma cascata de imagens em transformação, ao invés de se ater obsessivamente a imagens fixas e congeladas fora de seu fluxo. ** Palavras-chave: arte, ciência, imagem, religião. Abstract:The author offers a reflection based on the works presented at the exhibit Iconoclash. Beyond the Image Wars in Science, Religion and Art, at the Center for New Art and Media, in Karlsruhe in 2002, where the curators put together three fields – religion, science and contemporary art, in which images have been presented as “cultural weapons” through an ambiguous struggle that both produces and destroys images, icons and emblems. Iconoclash was the term chosen to define the theme of this exhibition and guide the author’s reflection on hatred and fanaticism, in the diverse * Tradução para o português da versão original em inglês What is Iconoclash? Or Is There a World Beyond the Image Wars?, introdução do catálogo da exposição Iconoclash. Beyond The Image Wars in Science, Religion and Art, realizada no Center for New Art and Media, em Karlsruhe, Alemanha, 2002. A versão em inglês desta introdução encontra-se disponível no site do autor (Latour, 2002). (N. de E.). ** Resumo de autoria dos organizadores. (N. de E.).

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  • 111O que iconoclash? Ou, h um mundo alm das guerras de imagem?

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun. 2008

    O QUE ICONOCLASH? OU, H UM MUNDOALM DAS GUERRAS DE IMAGEM?*

    Bruno LatourInstituto de Estudos Polticos de Paris Frana

    Resumo: O autor oferece uma reflexo a partir das obras apresentadas na exposioIconoclash. Beyond the Image Wars in Science, Religion and Art, em 2002, no Centerfor New Art and Media, em Karlsruhe, cuja curadoria juntou trs ambientes, os dareligio, da cincia e da arte contempornea, em que as imagens vm se apresentandocomo armas culturais por meio de uma luta ambgua que tanto produz como destriimagens, cones e emblemas. Iconoclash foi o termo escolhido para definir a temticadessa exposio e nortear a reflexo do autor sobre o dio e o fanatismo, nos diversosmbitos da vida cultural social e poltica. Movendo-se em direo a um tipo alternativode iconofilia, para alm das guerras de imagens, sugere a suspenso do gestoiconoclasta optando-se por uma cascata de imagens em transformao, ao invs dese ater obsessivamente a imagens fixas e congeladas fora de seu fluxo.**

    Palavras-chave: arte, cincia, imagem, religio.

    Abstract:The author offers a reflection based on the works presented at the exhibitIconoclash. Beyond the Image Wars in Science, Religion and Art, at the Center for NewArt and Media, in Karlsruhe in 2002, where the curators put together three fields religion, science and contemporary art, in which images have been presented ascultural weapons through an ambiguous struggle that both produces and destroysimages, icons and emblems. Iconoclash was the term chosen to define the theme of thisexhibition and guide the authors reflection on hatred and fanaticism, in the diverse

    * Traduo para o portugus da verso original em ingls What is Iconoclash? Or Is There a WorldBeyond the Image Wars?, introduo do catlogo da exposio Iconoclash. Beyond The ImageWars in Science, Religion and Art, realizada no Center for New Art and Media, em Karlsruhe,Alemanha, 2002. A verso em ingls desta introduo encontra-se disponvel no site do autor(Latour, 2002). (N. de E.).

    ** Resumo de autoria dos organizadores. (N. de E.).

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun. 2008

    ambits of the cultural, social and political life. Moving towards an alternative type oficonophilia, beyond the image wars, the author suggests the suspension of theiconoclast gesture, opting for a cascade of images in transformation, instead of focusingobsessively on images fixed and frozen out of their flow.

    Keywords: art, image, religion, science.

    Prlogo: um tpico iconoclash1

    Esta imagem vem de um vdeo. O que signifi-ca? Hooligans vestidos de vermelho, com ca-pacetes e machados, esto despedaando ajanela reforada que protege uma preciosaobra de arte. Eles esto batendoenlouquecidamente no vidro, que se estilhaaem todas as direes enquanto altos gritos dehorror s suas aes so ouvidos da multidoem torno deles, que, no importa quo furiosa,

    permanece incapaz de parar a pilhagem. Outro triste caso de vandalismo, cap-turado por uma cmera de vigilncia? No. Corajosos bombeiros italianos, al-guns anos atrs, arriscando suas vidas, na catedral de Turim, para salvar ofamoso Sudrio de um incndio devastador que provoca os gritos de horror damultido impotente que se juntou atrs deles. Em seus uniformes vermelhos eseus capacetes protetores, eles tentam quebrar com machados a caixa de vidrofortemente reforada que foi construda em volta do linho sagrado, para proteg-lo no do vandalismo mas da louca paixo dos devotos e peregrinos a quemnada deteria at que o rasgassem em pedaos para obter relquias preciosas. Acaixa to bem protegida contra os devotos, que no pode ser colocada emsegurana, longe do fogo intenso, sem esse ato aparentemente violento dequebrar o vidro. Iconoclasmo quando sabemos o que est acontecendo no

    1 Iconoclash [icon = cone, clash = choque, embate] pode ser traduzido como iconochoque.Todavia, em respeito sonoridade e ao jogo de palavras intraduzvel do original em paralelismoe em contraste com iconoclasm [iconoclasmo] optou-se por manter o termo em ingls. (N. de E.).

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    ato de quebrar e quais so as motivaes para o que se apresenta como umclaro projeto de destruio; iconoclash, por outro lado, quando no se sabe,quando se hesita, quando se perturbado por uma ao para a qual no hmaneira de saber, sem uma investigao maior, se destrutiva ou construtiva.Esta exposio sobre iconoclash, no sobre iconoclasmo.

    Por que as imagens provocam tanta paixo?

    Freud est totalmente certo ao insistir no fato de que estamos lidando, no Egito,com a primeira contra-religio da histria da humanidade. aqui que, pela primeiravez, foi feita [por Akhenaton] a distino que provocou o dio daqueles excludospor ela. a partir dessa distino que o dio existe no mundo, e a nica maneira deir alm dela voltar s suas origens. (Assman, 2001, p. 283).2

    Nenhuma citao poderia resumir melhor o que vejo como o objetivo deiconoclash. (Devo de sada alertar o leitor quanto ao fato de que nenhum doscuradores concorda completamente com os objetivos desta exposio! Comoeditor, eu s tenho o privilgio de dar primeiro a minha opinio.) O que propomosaqui, nesta mostra e neste catlogo, uma arqueologia do dio e do fanatismo.3

    Por qu? Porque estamos cavando em busca da origem de uma distinoabsoluta e no relativa entre verdade e falsidade, entre um mundo puro,absolutamente esvaziado de intermedirios feitos pelo homem e um mundorepulsivo, composto de mediadores feitos pelo homem, impuros, porm fasci-nantes. Se, ao menos, alguns dizem, pudssemos ficar sem qualquer ima-

    2 Retraduzido do francs: Freud a parfaitement raison dinsister sur le fait que nous avons faire enEgypte la premire contre-religion monothiste quait connu lhistoire de lhumanit. Cest icique sest opre pour la premire fois la distinction qui a attir sur elle la haine des exclus. Cestdepuis lors que la haine existe dans le monde, et le seul moyen de la dpasser est de revenir sesorigines, j que a verso em ingls bastante diferente: Freud concentra toda a fora contra-religiosa do monotesmo Bblico na revoluo de Akhenaton acima. Esta foi a origem de tudo. Freuddestaca (muito corretamente) o fato de que se est lidando com o primeiro movimento monotesta,contra-religioso e exclusivamente intolerante deste tipo na histria humana. A similaridade destainterpretao com a de Manetho evidente. este dio provocado pela revoluo de Akhenatonque informa os textos judeofbicos da Antigidade. (Assmann, 1997, p. 167).

    3 Sobre a genealogia dos fanticos e outros Schwrmer (N. de T.: visionrios), ver o relatofascinante de Dominique Colas (1992) e Christin Olivier (1991).

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    gem. Quo melhor, mais puro, mais rpido, seria nosso acesso a Deus, Natu-reza, Verdade, Cincia. Ao que outras vozes (ou, s vezes, as mesmas)respondem: Que pena (ou: felizmente), no conseguimos ficar sem imagens,intermedirios, mediadores de todos os jeitos e formas, porque essa a nicamaneira de ter acesso a Deus, Natureza, Verdade e Cincia. Esse odilema que queremos documentar, compreender e, talvez, superar. No vee-mente resumo que Marie-Jos Mondzain realizou da discusso bizantina sobreas imagens: La vrit est image mais il nya a pas dimage de la vrit [Averdade imagem, mas no existe uma imagem da verdade].4

    O que aconteceu, que tornou as imagens (e por imagem queremos dizerqualquer signo, obra de arte, inscrio ou figura que atua como mediao paraacessar alguma outra coisa) o foco de tanta paixo? A ponto de destru-las,apag-las, desfigur-las se ter tornado a pedra de toque para provar a validadeda f, da cincia, da perspiccia, da criatividade artstica de algum? A pontode que ser iconoclasta parece a mais alta virtude, a mais alta piedade em crcu-los intelectuais?

    Alm disso, por que que todos os destruidores de imagens, essesteoclastas, esses iconoclastas, ideoclastas, geraram tambm uma fabulosapopulao de novas imagens, de cones frescos, mediadores rejuvenescidos:maiores fluxos de mdia, idias mais poderosas, dolos mais fortes? Como se adesfigurao de um objeto pudesse inevitavelmente gerar novas faces; comose o desfiguramento e o refiguramento fossem necessariamente coetneos5[ver Belting, Powers].6 Mesmo a minscula cabea de Buda que HeatherStoddard ofereceu para nossa meditao , depois de ter sido despedaadapela Guarda Vermelha durante a Revoluo Cultural, conseguiu adquirir uma

    4 Ver o captulo da autora neste catlogo e Mondzain (1996).5 Vrios sculos depois de Farel, o iconoclasta de Neuchtel, ter queimado livros e esmagado esttuas

    da Igreja Catlica, ele mesmo foi honrado com uma esttua na frente da igreja, agora esvaziada. Vera foto e o texto de Lchot neste catlogo. Os mais chocantes casos de substituio de um dolo porum cone (ou, dependendo do ponto de vista, de um dolo por outro dolo) so descritos em SergeGruzinski (1988). Quando, durante a conquista espanhola do Mxico, padres pedem a outros padresque coloquem as esttuas da Virgem Maria nos mesmos lugares onde os dolos jaziam esmagadosao cho.

    6 Latour faz indicaes desse tipo, neste texto, para remeter o leitor a trabalhos que se encontram nocatlogo da exposio do qual este texto apenas a introduo. Essas indicaes foram mantidas eaqui aparecem entre colchetes. (N. de E.).

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    nova face, sarcstica, franzida e dolorosa [ver Stoddard].E o que aconteceu que possa explicar que, aps cada cono-crise, um

    cuidado infinito seja posto em ao para restaurar as esttuas despedaadas,salvar os fragmentos, proteger os escombros? Como se fosse sempre necess-rio desculpar-se pela destruio de tanta beleza, de tanto horror; como se derepente no se tivesse certeza do papel e da causa da destruio que, antes,parecia to urgente, to indispensvel; como se o destruidor tivesse, de repen-te, se dado conta de que algo alm houvesse sido destrudo por acidente, algoem relao ao qual uma reconciliao fosse agora devida. No so os museusos templos nos quais sacrifcios so feitos para se pedir desculpas por tantadestruio, como se quisssemos de repente parar de destruir e estivssemoscomeando o culto indefinido de conservar, proteger, reparar?

    isso que nossa exposio tenta fazer: esse cafarnaum de objetos hete-rogneos que montamos, quebramos, consertamos, ajeitamos, (re)descrevemos,oferece aos visitantes uma meditao sobre as seguintes questes:

    Por que as imagens tm atrado tanto dio?Por que elas sempre voltam a retornar, no importa o quanto queiram

    livrar-se delas?Por que os martelos dos iconoclastas sempre parecem bater obliqua-

    mente, destruindo algo alm, que parece, a posteriori, importar imensamente?Como possvel ir alm desse ciclo de fascinao, repulsa, destruio,

    reconciliao, que gerado pelo culto imagem proibida?

    Uma exposio sobre iconoclasmo

    Ao contrrio de muitas tentativas similares, esta no uma exposioiconoclasta: ela sobre iconoclasmo.7 Ela pretende suspender a nsia de des-

    7 Ver, por exemplo, a exibio de Berna e Estrasburgo em 2001 (Dupeux et al., 2001). A exposiode Berna foi inteiramente construda em honra aos corajosos destruidores de cones que haviamlibertado a cidade do poder da imagem para levar ao simbolismo superior da cruz at um dioramaonde figuras de cera derretiam clices e relicrios inteis para moldar teis moedas de ouro suas!Mas em um timo iconoclash a ltima sala mostrava os resqucios permanentes das esttuasquebradas que haviam sido transformadas de dolos hediondos em obras de arte piamente conserva-das! Nenhuma indicao era dada aos visitantes de qualquer iconoclash possvel A mesma piedadeiconoclstica pode ser vista na recente exposio do Louvre de Rgis Michel chamada La peinturecomme crime, Runions des muses nationaux, Paris, 2002.

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    truir imagens, nos pede para parar por um momento; deixar o martelo descan-sar. Ela reza para que um anjo venha e segure nosso brao sacrificial queempunha a faca sacrificial pronta para cortar a garganta do cordeiro sacrificial. uma tentativa de voltar, de envolver, de encerrar o culto da destruio daimagem; dar a ela uma casa, um lugar, um espao de museu, um lugar demeditao e surpresa. Ao invs de o iconoclasmo ser uma metalinguagem rei-nando como um mestre sobre todas as outras linguagens, o culto ao prprioiconoclasmo que, por sua vez, interrogado e avaliado. De um recurso, oiconoclasmo convertido em um tpico. Nas palavras propostas pelo belottulo de Miguel Tamen: ns queremos que os visitantes e os leitores se tornemamigos de objetos interpretveis (ver Tamen, 2001).

    De certo modo, esta exposio tenta documentar, expor, fazer a antropo-logia de um certo gesto, de um certo movimento da mo. O que significa dizerde alguma mediao, de alguma inscrio, que ela um produto humano?

    Como bem sabido por historiadores da arte e telogos, muitos conessagrados que tm sido celebrados e cultuados so chamados acheiropoiete;ou seja, no feitos por mos humanas [ver Koerner, Mondzain]. Faces deCristo, retratos da Virgem, o vu de Vernica; existem muitos exemplos dessescones que caram do cu, sem intermedirios. Mostrar que um humilde pintorhumano os fez seria enfraquecer sua fora, manchar sua origem, dessacraliz-los. Alm disso, acrescentar a mo s pinturas equivalente a estrag-las,critic-las. O mesmo verdade com relao religio em geral. Se algum dizque ela feita pelo homem, anula a transcendncia das divindades, esvazia aafirmao de uma salvao do alm.

    De maneira mais geral, a mente crtica a que mostra as mos dos huma-nos agindo em todos os lugares, a fim de trucidar a santidade da religio, acrena nos fetiches, o culto ao transcendente, os cones mandados do cu, afora das ideologias. Quanto mais se puder ver que a mo humana trabalhouem uma imagem, mais fraca ser a pretenso da imagem de oferecer verdade(ver o exemplo prototpico de Tintin). Desde a Antigidade, os crticos nunca secansaram de denunciar os esquemas tortuosos de humanos que tentam fazeros outros acreditarem em fetiches que no existem. O truque para desvendar otruque sempre mostrar a baixa origem do trabalho, o manipulador, o contraventor,o fraudador por baixo do pano, pego em flagrante.

    O mesmo vlido em relao cincia. Tambm ali a objetividade devesupostamente ser acheiropoiete, no feita por mo humana. Se algum mos-tra que h mos a trabalhar no tecido humano da cincia, acusado de man-

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    char a santidade da objetividade, de arruinar sua transcendncia, de proibirqualquer desejo de verdade, de pr fogo nica fonte de iluminao que pode-mos ter [ver Lvy-Leblond]. Ns tratamos como iconoclastas aqueles que fa-lam dos humanos que trabalham cientistas em seus laboratrios por trs oupor sob as imagens que geram a objetividade cientfica. Eu tambm fui presadesse iconoclash paradoxal: a nova reverncia s imagens da cincia consi-derada sua destruio. A nica maneira de defender a cincia das acusaesde falsificao, de evitar o rtulo de socialmente construda, , aparentemen-te, insistir em que mo alguma jamais tocou na imagem que produziu (ver Daston;Galison, 2001; Galison, 1998). Assim, em ambos os casos, da religio e dacincia, quando a mo mostrada a trabalhar, ela sempre a mo que segurao martelo ou o archote: sempre mo crtica, destruidora.

    Mas e se as mos forem realmente indispensveis para alcanar a verda-de, para produzir objetividade, para fabricar divindades? O que aconteceria se,ao dizer que determinada imagem produto humano, estivssemos aumentan-do, no diminuindo, a reivindicao de verdade? Seria o trmino da disposiocrtica, o fim do antifetichismo. Poderamos dizer, contra mpeto crtico, quequanto mais humanos h, mais o trabalho humano se mostra, melhor a apreen-so da realidade, da santidade, da devoo. Que quanto mais imagens, media-es, intermedirios e cones se multiplicam e so abertamente fabricados, quan-to mais eles so explcita e publicamente construdos, mais respeito temos porsua capacidade de acolher, reunir, recolher a verdade e a santidade (religere8 uma das muitas etimologias da palavra religio). como Mick Taussig mos-trou, de forma to bela: quanto mais se revelam os truques necessrios paraconvidar os deuses para a cerimnia durante a iniciao, mais forte a certezade que as divindades esto presentes (Taussig, 1999). Longe de desfazer oacesso aos seres transcendentes, revelar a labuta humana, os truques, reforaa qualidade desse acesso [ver Sarr, de Aquino].

    Portanto, podemos definir um iconoclash como aquilo que ocorre quandoh incerteza a respeito do papel exato da mo que trabalha na produo de ummediador. a mo com um martelo pronto para expor, denunciar, desbancar,desmascarar, mostrar, desapontar, desencantar, dissipar as iluses de algum,

    8 Do latim, significando conexo. (N. de T.).

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    para deixar o ar correr? Ou , ao contrrio, uma mo cautelosa e cuidadosa,com a palma virada como se fosse pegar, extrair, trazer luz, saudar, gerar,entreter, manter, colher verdade e santidade?

    Mas a, claro, o segundo mandamento j no pode ser obedecido: Nofars para ti imagem de escultura, nem figura alguma de tudo o que h no altodo cu, ou em baixo na terra, ou que est debaixo da terra nas guas(Deuteronmio, 5:8).9 No h necessidade de evasivas quanto inteno e tenso desta exposio, tal como a imaginamos nos ltimos quatro anos: ela sobre o segundo mandamento. Temos certeza de que o entendemos correta-mente? Ser que cometemos um longo e terrvel erro sobre seu significado?Como podemos conciliar essa demanda por uma sociedade, uma religio e umacincia totalmente anicnicas com a fabulosa proliferao de imagens que ca-racteriza as nossas culturas recheadas de mdia?

    Se as imagens so to perigosas, por que temos tantas? Se elas so ino-centes, por que causam tantas e to duradouras paixes? Tal o enigma, ahesitao, o quebra-cabea visual, o iconoclash que desejamos colocar sob osolhos do visitante e do leitor.

    Religio, cincia e arte: trs padres diferentes de construo de imagem

    O experimento que planejamos consiste em juntar trs fontes deiconoclashes: religio, cincia e arte contempornea. Queremos situar os muitoseventos, lugares, obras e exemplos, apresentados neste catlogo e nesta expo-sio, em meio tenso criada por esse arranjo triangular.

    Embora iconoclash rena grande poro de material religioso, no umaperegrinao teolgica; embora apresente muitas inscries de tipo cientfico,no um museu de cincias para maravilhar pedagogicamente; embora agrupenumerosas obras de arte, no uma mostra de arte. Cada um de ns visitan-tes, curadores e leitores traz consigo um padro muito diferente de crena,raiva, entusiasmo, admirao, dvida, fascinao, suspeita e despeito por cada

    9 Todas as citaes bblicas em portugus, que constam na traduo deste texto, esto em conformi-dade com traduo bblica autorizada e foram retiradas da edio brasileira da Bblia publicada pelaEdio Barsa, 1968. (N. de E.).

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    um dos trs tipos de imagens, e por essa razo que queremos fazer com quesejam mutuamente relevantes. O que nos interessa o padro ainda mais com-plexo criado pela sua interferncia.

    cones e dolos

    Mas por que trazer tantos cones religiosos para esta mostra? Eles j noforam esvaziados pelo julgamento esttico, absorvidos pela histria da arte,tornados rotina pela piedade convencional, a ponto de estarem mortos parasempre? Ao contrrio: basta lembrar as reaes destruio dos Budas deBamiyan pelos talibs, no Afeganisto, para nos darmos conta de que as ima-gens religiosas so ainda as que atraem as paixes mais ferozes [ver Centlivres,2001; Frodon; Clement]. Do teoclasta de Akhenaton em diante, destruirmonastrios, igrejas e mesquitas, e queimar fetiches e dolos em fogueiras enor-mes ainda uma ocupao diria para imensas massas no mundo inteiro, exa-tamente como no tempo do que Assman chama de distino mosaica [verPietz, Corbey, Taylor]. Mas destri os seus altares, quebra as suas esttuas,corta os seus bosques sagrados (xodo, 34:13): a instruo para queimar osdolos to presente, to candente, to impetuosa, to subterrnea como osrios de lava, sempre ameaadores, do Etna. Mesmo no caso hilariante da destrui-o, neste vero, do Mandarom uma esttua gigantesca e horrenda, erguidapor uma seita no Sul da Frana cuja destruio os crentes compararam aniquilao dos Budas afegos.

    E, obviamente, a destruio de dolos no est de forma alguma limitadas mentes religiosas. Que crtico no acredita que seu mais importante dever,seu mais urgente compromisso, destruir os totens, expor as ideologias, desen-ganar os idlatras? Como muitas pessoas notaram, 99 por cento daqueles quese escandalizaram com o gesto de vandalismo dos talibs descendem de an-cestrais que deixaram em pedaos os cones mais preciosos de algum outropovo ou, em verdade, participaram eles mesmos de algum ato de desconstruo[ver Nathan, Koch].

    O que tem sido mais violento: o desejo religioso de destruir dolos paratrazer a humanidade ao culto certo do Deus verdadeiro, ou o desejo anti-religi-oso de destruir os dolos sagrados e trazer a humanidade ao seu perfeito juzo?, de fato, um iconoclash, pois, ainda que eles no sejam nada, ningum sabese esses dolos podem ser quebrados sem quaisquer conseqncias (So ape-

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun. 2008

    nas pedras, disse o mul Omar,10 assim como os iconoclastas bizantinos e,posteriormente, os iconoclastas luteranos), ou se eles devem ser destrudosporque so to poderosos, to portentosos (Se eles so to vazios, por quevocs os levam a srio?; Seu dolo o meu cone.) [ver Koerner, Christin].

    Inscries cientficas

    Mas por que, afinal, imagens cientficas? Certamente, elas oferecem re-presentaes do mundo que so frias, no-mediadas, objetivas, e portanto nopodem despertar a mesma paixo e frenesi que as figuras religiosas. Ao con-trrio destas, as imagens cientficas simplesmente descrevem o mundo de ma-neira demonstravelmente verdadeira ou falsa. Precisamente porque so frias,elas so sempre novas [fresh] e podem ser verificadas, elas so largamenteincontroversas, so o objeto de uma concordncia rara, quase universal. Entoo padro de confiana, crena, rejeio e rancor em relao a elas inteira-mente diferente daquele gerado pelos dolos/cones. por isso que h tantasdelas aqui, e, como iremos ver, por isso que elas oferecem tantos tipos diferen-tes de iconoclashes.

    Para comear, para muitas pessoas, elas nem so imagens, mas o mundoem si. No haveria nada a dizer sobre elas, apenas aprender sua mensagem.Cham-las de imagem, inscrio, representao, deix-las em exposio lado alado com cones religiosos, j um gesto iconoclstico. Se estas so merasrepresentaes de galxias, tomos, luz, genes, ento poder-se-ia dizer, indig-nadamente, que elas no so reais, que elas foram fabricadas. E no entanto,como ficar visvel aqui [ver Galison, Macho, Huber, Rheinberger], aos poucosfica mais claro que, sem instrumentos enormes e carssimos, grandes grupos decientistas, vastas quantias de dinheiro, longo treinamento, nada seria visvelnaquelas imagens. por causa de tantas mediaes que elas so capazes deser to objetivamente verdadeiras.

    10 Ou essas esttuas esto associadas a crenas idlatras, comentou o mul, ou so apenas pedras; noprimeiro caso, o Isl ordena que se as destrua, no segundo, que importa que sejam quebradas? [Ouces statues sont lies des croyances idoltres, a comment le Mollah, ou il ne sagit que de simplescailloux; dans le premier cas, lislam commande de les dtruire, dans le second, quimporte quon lesbrise] (Centlivres, 2001, p.141).

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun. 2008

    Aqui est outro iconoclash, o exato oposto daquele erguido pelo culto dadestruio da imagem religiosa: quanto mais instrumentos, mais mediao, me-lhor a apreenso da realidade [ver Schaffer]. Se h um domnio no qual osegundo mandamento no pode ser aplicado, aquele governado pelos queconfiguram objetos, mapas e diagramas na forma de tudo o que h no alto docu, ou em baixo na terra, ou que est debaixo da terra nas guas(Deuteronmio, 5:8). Ento, o padro de interferncia pode permitir-nos reno-var nossa compreenso da construo da imagem: quanto mais imagens huma-namente produzidas forem geradas, mais objetividade se colher. Na cincia,no h algo que seja mera representao.

    Arte contempornea

    Ento por que ligar mediaes religiosas e cientficas arte contempor-nea? Porque aqui ao menos no h dvida de que pinturas, instalaes,happenings, eventos e museus so humanamente produzidos. A mo que tra-balha visvel em todos os lugares. No se espera que surja nenhum coneacheiropoiete desse grande redemoinho de movimentos, artistas, promotores,compradores e vendedores, crticos e dissidentes. Ao contrrio, as reivindica-es mais extremas vm sendo feitas em nome de uma criatividade individual,baseada no homem. Nada de acesso verdade ou s divindades. Abaixo atranscendncia! [ver Belting, Groys, Weibel].

    Em nenhum outro lugar, a no ser na arte contempornea, h melhor labo-ratrio, montado para tentar e testar a resistncia de cada item que compe oculto da imagem, da figura, da beleza, da mdia, do gnio. Em nenhum outrolugar tantos efeitos paradoxais foram produzidos e lanados ao pblico paracomplicar sua reao s imagens [ver Gamboni, Heinich]. Em nenhum outrolugar tantos esquemas foram inventados para retardar, modificar, perturbar,perder o olhar ingnuo e o regime escpico do amateur dart [ver Yaneva,Lowe]. Tudo vem sendo lentamente confrontado em experimentos e feito empedaos, desde a representao mimtica, passando pela construo de ima-gem, a tela, a cor, o trabalho artstico, at o prprio artista, sua assinatura, opapel dos museus, dos patrocinadores, dos crticos para no esquecer osfilistinos, ridicularizados ao extremo.

    Tudo e todos, qualquer detalhe do que a arte e do que um cone, umdolo, uma vista, um olhar, foram jogados na panela para serem cozinhados e

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    queimados ao longo do sculo passado, no que foi chamado de arte modernis-ta.11 Um Juzo Final foi promulgado: todas as nossas maneiras de produzirrepresentao de qualquer tipo foram consideradas deficientes. Geraes deiconoclastas despedaando mutuamente seus trabalhos e rostos. Um fabulosoexperimento niilista em larga escala [ver Sloterdijk, Weibel]. Uma alegria man-aca na autodestruio. Um sacrilgio hilariante. Uma espcie de infernoanicnico e deletrio.

    E no entanto, claro, como seria de se esperar, h aqui outro iconoclash:tanto desfiguramento e tanto (re)figuramento [ver Obrist, Tresch, Lowe].Desse experimento obsessivo para evitar o poder da construo tradicional daimagem, uma fonte fabulosa de novas imagens, novas mdias, novas obras dearte foi encontrada; novos esquemas para multiplicar as possibilidade de viso.Quanto mais a arte se tornou sinnimo de destruio da arte, mais arte vemsendo produzida, avaliada, comentada, comprada e vendida, e, sim, cultuada.Novas imagens vm sendo produzidas, to poderosas que tem sido impossvelcompr-las, toc-las, queim-las, arrum-las e mesmo transport-las, gerandoassim ainda mais iconoclashes [ver Gamboni]. Uma espcie de destruiocriativa que Schumpeter no havia previsto.

    Um reembaralhamento da confiana e da desconfiana em relao imagem

    Assim, juntamos trs diferentes padres de rejeio e de construo deimagem, de confiana e desconfiana na imagem. Nossa aposta que a inter-ferncia entre os trs deveria nos levar alm das guerras de imagem, alm doBildersturm.

    No trouxemos imagens religiosas para uma instituio de vanguarda dearte contempornea para mais uma vez submet-las a ironia ou destruio,nem para novamente apresent-las como objeto de culto. Elas foram trazidasaqui para ressoarem com as imagens cientficas e mostrarem de que maneiraselas so poderosas e que espcie de invisibilidade ambos os tipos de imagenstm sido capazes de produzir [ver Koerner, Mondzain].

    No trouxemos as imagens cientficas para instruir ou iluminar o pblicode uma maneira pedaggica, mas para mostrar como elas so geradas e como

    11 Ver, a esse respeito, o magnfico trabalho de Tim J. Clark (1999).

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    elas se conectam, a que espcie de iconoclasmo elas tm sido sujeitadas [verGalison, Schaffer], que tipo peculiar de mundo invisvel elas geram.

    Quanto s peas de arte contemporneas aqui expostas, elas no com-pem uma mostra de arte, mas, sim, vm traar as concluses desse enormeexperimento de laboratrio sobre os limites e virtudes da representao, quevem se dando em tantos meios e atravs de tantas empreitadas ousadas einovadoras [ver Weibel].

    Com efeito, estamos tentando construir, para a arte iconoclasta recente,uma espcie de cmara para os dolos, similar quelas feitas pelos profanadoresprotestantes quando removeram as imagens do culto, tornando-as objetos dehorror e escrnio, antes que se tornassem os primeiros ncleos do museu dearte e da apreciao esttica [ver Koerner]. Uma pequena reviravolta, comcerteza, e mais do que um pouco irnica mas muito bem-vinda.

    Os padres rotineiros de respeito, espanto, desconfiana, devoo e con-fiana, que geralmente distinguem as mediaes religiosas, cientficas e artsti-cas, devero se redistribuir atravs desta mostra.

    Que objeto selecionar?

    Como j deve estar claro agora, iconoclash no nem uma mostra dearte nem um argumento filosfico, mas um gabinete de curiosidades, curiosida-des reunidas por amigos de objetos interpretveis para sondar a fonte dofanatismo, dio e niilismo gerados pela questo da imagem na tradio ociden-tal. Um projeto pequeno, se tanto! Mas, j que os curadores desta mostra noso totalmente loucos, no tentamos cobrir toda a questo da devoo e des-truio da imagem, desde o Akhenaton at o 11 de setembro. Nosso empreen-dimento no enciclopdico. Ao contrrio, ns, muito seletivamente, escolhe-mos apenas os lugares, objetos e situaes em que h uma ambigidade, umahesitao, um iconoclash quanto a como interpretar a construo da imageme a destruio da imagem.

    Cada um dos curadores tem um diferente princpio de seleo, e o apre-senta a seguir; vou ento declarar o meu princpio da forma mais clara possvel:estou interessado em representar o estado de esprito daqueles que destruramfetiches ou o que prefiro chamar de fe(i)tiches ou factiches (Latour, 1996,1998, 1999) e que entraram no que Assmann chama de contra-religio.

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    Um dilema impossvel

    Como eles suportam viver com os pedaos do que tinha sido, at que eleschegassem, a nica maneira de produzir, de reunir, de saudar as divindades?Quo assustados devem ficar ao olharem para as suas mos, que no so maiscapazes de completar as tarefas em que, por eras, foram bem-sucedidas, asaber: ocupar-se em um trabalho e ainda assim gerar objetos que no so feitospor elas prprias? Agora eles tm de escolher entre duas demandas contradit-rias: isso vocs fizeram com suas prprias mos, e nesse caso no tem valor;ou isso objetivo, verdadeiro, transcendente, e, sendo assim, vocs jamais po-deriam t-lo feito. Ou bem Deus est fazendo tudo e os humanos no fazemnada, ou ento os humanos esto fazendo todo o trabalho e Deus no nada.Excesso, ou demasiada escassez, quando os fetiches se vo.

    Ainda assim, claro, os fetiches tm de ser feitos. As mos humanas nopodem parar de trabalhar, produzindo imagens, figuras, inscries de todas asespcies, para continuar a gerar, saudar e colher objetividade, beleza e divinda-des, exatamente como nos agora proibidos velhos tempos reprimidos eobliterados. Como poderia algum no se tornar um fantico, se os deuses, asverdades e a santidade tm de ser feitos e se j no h nenhuma maneiralegtima de faz-los? Minha pergunta ao longo desta exposio : como sepode viver com esse dilema sem enlouquecer? Ns enlouquecemos? H umacura para este devaneio?

    Vamos contemplar por um momento a tenso criada por este dilema, quepode explicar muito da arqueologia do fanatismo. Ao esmagador de dolos, aodestruidor de mediadores, restam somente dois opostos polares: ou ele (pare-ce-me justo deixar no masculino) est em pleno comando de suas mos, masento o que ele produziu simplesmente a mera conseqncia de suaprpria fora e fraqueza projetadas na matria j que ele incapaz de produ-zir mais output do que teve de input e nesse caso ele s pode alternar entrehybris e desespero, conforme enfatize seu poder criativo infinito ou suas for-as absurdamente limitadas.

    Ou ento ele est nas mos de uma divindade transcendente, no-criada,que o criou do nada e produz verdade e santidade da maneira acheiropoietica.E da mesma maneira que ele, o fabricante humano, alterna entre hybris edesespero, Ele, o Criador, vai alternar loucamente entre onipotncia e no-exis-tncia, conforme Sua presena possa, ou no, ser mostrada e Sua eficcia, pro-

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    vada. O que costumava ser sinnimo eu fao e eu no estou no controle doque fao tornou-se uma contradio radical: Ou voc faz ou voc feito.12

    Essa alternncia brutal entre exercer o comando como um poderoso (im-potente) criador humano ou estar nas mos de um onipotente (impotente) Cri-ador j bastante ruim; mas pior ainda, o que realmente complica o duplovnculo do dilema e coloca o humano, j em camisa-de-fora, num frenesi ex-tremo, que no h jeito de parar a proliferao de mediadores, inscries,objetos, cones, dolos, imagem, figura e signos apesar da sua interdio. Noimporta quo inflexvel se possa ser em relao a quebrar fetiches e impor a simesmo a proibio do culto s imagens: templos sero construdos, sacrifciossero feitos, instrumentos sero empregados, escrituras sero cuidadosamenteredigidas, manuscritos sero copiados, incenso ser queimado, e milhares degestos tero de ser inventados para coletar verdade, objetividade e santidade[ver Tresch no caso notvel de Francis Bacon, Halberthal no triste caso dotemplo de Jerusalm].

    O segundo mandamento ainda mais terrvel por no haver como obede-c-lo. A nica coisa que se pode fazer para fingir respeit-lo negar o trabalhodas prprias mos, reprimir a ao sempre presente na feitura, fabricao,construo e produo de imagens, apagar a escrita ao mesmo tempo quese escreve, bater nas prprias mos ao mesmo tempo em que se est manu-faturando. E sem mos, o que voc pode fazer? Sem imagem, a qual verdadevoc ter acesso? Sem instrumento, que cincia dar a voc instruo?

    Podemos medir o infortnio enfrentado por aqueles que tm de produzirimagens e que esto proibidos de confessar que as esto fazendo? Pior: ou elestero de dizer que o demiurgo est fazendo todo o trabalho, escrevendo asescrituras sagradas diretamente, inventando os rituais, ordenando a lei, juntan-do as multides, ou ento, se o trabalho do fiel revelado, ns seremos fora-dos a denunciar aqueles textos como meras fabricaes, aqueles rituais comofaz-de-conta, sua feitura [making] como inveno [making up], suas constru-es como um embuste, sua objetividade como socialmente construda, suasleis como simplesmente humanas, demasiado humanas.13

    12 Ver um caso chocante na fbula de La Fontaine Le statuaire et la statue de Jupiter (livre neuvime,fable VI); [ver Gamboni] para outra interpretao.

    13 Ver Jean-Franois Clment (1995). Para uma investigao cuidadosa sobre o cime de DeusCriador em relao ao artista e a possibilidade constante de atesmo na rejeio manaca de dolos,ver o catlogo.

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    Ento o esmagador de dolos duplamente louco: no s ele se privou dosegredo para produzir objetos transcendentes, como tambm continua a produ-zi-los ainda que essa produo tenha se tornado absolutamente proibida, sempossibilidade de registro. Ele no s hesita entre poder infinito e fraqueza infini-ta, liberdade criativa infinita e dependncia infinita da mo de seu Criador, mastambm alterna constantemente entre a negao dos mediadores e sua presen-a necessria. o bastante para enlouquecer a pessoa. Suficiente, ao menos,para produzir mais de um iconoclash.

    Freud, no seu estranho pesadelo sobre Moiss, se props a explicar umaloucura similar a inveno da contra-religio uma lenda das mais bizar-ras, a do assassinato do pai egosta e dominador pela horda primitiva de seusfilhos ciumentos (Freud, 1996). Mas a tradio oferece outra lenda, maisreveladora, na qual no o pai que morto, mas os meios de subsistncia dopai que so deixados em pedaos pelo seu filho superempreendedor.14

    Diz-se que Abrao, aos seis anos de idade, destruiu a oficina de dolos deseu pai, Terah, quando ela estava temporariamente a seu encargo (ver o ane-xo). Que timo iconoclash! At hoje ningum entende a resposta ambgua dopai questo do filho: Por que seu ouvido no escuta aquilo que a sua bocadiz? o filho recriminando o pai pelo seu culto aos dolos ou , ao contrrio, opai que est recriminando o filho por no entender o que os dolos podem fazer[ver Nathan]? Se voc comear a destruir os dolos, meu filho, com quais me-diaes voc vai saudar, coletar, acessar, compor e juntar suas divindades?Voc tem certeza de que entende os preceitos do seu Deus? Que espcie deloucura voc vai adentrar se comear a acreditar que eu, seu pai, ingenua-mente acredito nestes dolos que fiz com minhas prprias mos, cozi em meuprprio forno, esculpi com minhas prprias ferramentas? Voc realmente acre-dita que eu ignoro a sua origem? Voc realmente acredita que essa origembaixa enfraquece a reivindicao de realidade? Sua mente crtica to ing-nua assim?

    Essa lendria discusso pode ser vista em todos os lugares em termosmais abstratos, sempre que uma mediao produtiva quebrada em pedaos e

    14 A diferena entre os dois tipos de assassinato pode explicar alguns dos estranhos aspectos visuais dogabinete de Freud. Ver Marinelli [no catlogo], e mais amplamente o que Andreas Mayer [nocatlogo] chama de objetos psquicos.

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    substituda pela questo: Isso feito ou isso real? Voc tem que escolher!15O que tornou o construtivismo impossvel na tradio ocidental? Uma tradioque, por outro lado, construiu e descontruiu tanto, mas sem ser capaz de con-fessar como foi capaz de faz-lo. Se os ocidentais tivessem realmente acredi-tado que tinham de escolher entre construo e realidade (se eles tivessem sidoconsistentemente modernos), eles nunca teriam tido religio, arte, cincia epoltica. Mediaes so necessrias em todos os lugares. Se algum as probe,voc pode se tornar louco, fantico, mas no h maneira de obedecer a ordeme escolher entre opostos bipolares: ou feito, ou real. Essa uma impossibi-lidade estrutural, um impasse, um dilema, um frenesi. to impossvel quantopedir ao manipulador dos bonecos no bunraku que escolha, de agora em dian-te, entre mostrar seu fantoche ou se mostrar a si mesmo no palco.

    Aumentar o custo da crtica

    Ento, de minha parte, selecionei itens que revelam esse dilema e o fana-tismo que ele provoca (para o exemplo prototpico que est na origem destamostra, ver o anexo Abrao e a Oficina de dolos de seu Pai Terah) (Murthy,1996). como se a mente crtica no pudesse superar a quebra original dosfactiches16 e se desse conta de quanto perdeu ao forar o fabricador a umaescolha impossvel entre a construo humana e o acesso verdade e obje-tividade. A suspeita nos deixou idiotas. como se o martelo da crtica tivessevoltado e batido insensivelmente na cabea do crtico!

    por isso que esta exposio tambm uma reviso do esprito crtico,uma pausa na crtica, uma meditao sobre a nsia de desmarcarar, de apres-sadamente atribuir crena ingnua aos outros [ver Koch] (Sloterdijk, 1987). Osdevotos no so idiotas [ver Schaffer]. No que a crtica no seja mais ne-cessria, mas, sim, que ela se tornou, ultimamente, muito vulgar.

    15 Em nenhum lugar isso mais claro que nos estudos cientficos, meu campo original, onde seorganiza toda e qualquer posio entre realismo e construtivismo; ver Ian Hacking (1999).

    16 Latour prope o termo faitishe, mesclando as palavras fetishe e fait (fato/feito); aqui, comoalternativa traduo fe(i)tiche, prope-se factiche [mais prximo, inclusive, da verso em inglsno texto do autor: factishe] em que as letras fact remetem a fatos/factos (latim factu) e tambm aofeito (latim factum). (N. de E.).

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    Poder-se-ia dizer, com mais do que uma pequena dose de ironia, que temhavido uma espcie de miniaturizao dos esforos crticos: o que nos sculospassados requereu o formidvel esforo de um Marx, um Nietzsche, um Ben-jamin, se tornou acessvel por nada, muito semelhantemente ao que se deu comos supercomputadores dos anos 1950, que costumavam encher salas enormese gastar uma quantidade enorme de eletricidade e calor, e so agora acessveispor uma moedinha e no maiores que uma unha. Voc pode agora ter a suadesiluso baudrillardiana ou bourdiana por uma cano, sua desconstruoderridiana por um nquel. A teoria da conspirao no custa nada para serproduzida, a descrena fcil, desbancando o que se aprende em aulas deprimeiro semestre de teoria crtica. Como o anncio recente de um filme deHollywood proclamou, Todo mundo suspeito todo mundo est vendae nada verdade!

    Gostaramos (eu gostaria) de tornar a crtica mais difcil, de aumentar seucusto, adicionando outra camada a ela, outro iconoclash: e se a crtica tivessesido no-crtica a ponto de tornar invisvel a necessidade de mediao? Qual o ponto vulnervel do Ocidente, a mola oculta do modernismo, que move seumaquinrio? Mais uma vez: e se tivermos entendido mal o segundo mandamen-to? E se Moiss foi forado a atenu-lo, retransmiti-lo numa conexo sembanda larga, por causa da limitao de seu povo?

    Uma classificao grosseira dos gestos iconoclsticos

    Agora que temos alguma idia de como foi selecionado o material para amostra e o catlogo, talvez valha a pena para o leitor e para o visitante o bene-fcio de uma classificao dos iconoclashes aqui apresentados. obviamenteimpossvel propor uma tipologia padronizada, consensual, para um fenmenoto complexo e elusivo.

    Tal coisa pareceria at ir contra o esprito da mostra. Pois, como afirmei,de modo um tanto enftico: no estamos atrs de uma (re)descrio da iconofiliae do iconoclasmo justamente para produzir ainda mais incerteza sobre os tiposde culto de imagem/destruio de imagem com que nos deparamos? Comoento poderemos separ-los de modo preciso? Mas, ainda assim, pode ser tilapresentar resumidamente os cinco tipos de gestos iconoclsticos revisitadosnesta mostra, com o simples propsito de melhor avaliar a extenso da ambi-gidade gerada pelos quebra-cabeas visuais que vnhamos procurando.

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    O princpio por detrs desta classificao, reconhecidamente grosseira, olhar para:

    as intenes ntimas dos destruidores de cones; os papis que eles do para as imagens destrudas; os efeitos dessa destruio naqueles que apreciavam aquelas imagens; como essa reao interpretada pelos iconoclastas; e, finalmente, os efeitos da destruio nos sentimentos do prprio des-truidor.

    A lista rudimentar, mas creio que slida bastante para guiar atravs dosmuitos exemplos reunidos aqui.

    As pessoas A so contra todas as imagens

    O primeiro tipo uso letras para evitar qualquer terminologia carregadade conotaes constitudo por aqueles que querem libertar os crdulos osque eles julgam ser crdulos do falso vnculo com dolos de todos os tipos eformas. dolos cujos fragmentos agora jazem por terra no eram nada maisque obstculos no caminho que leva a virtudes maiores. Tinham de ser destrudos.Causavam muita indignao e dio nos coraes dos corajosos destruidores deimagens. Viver com eles era insuportvel.17

    O que distingue os As de todos os outros tipos de iconoclastas que elesacreditam que no s necessrio, mas tambm possvel, prescindir inteira-mente de intermedirios e ter acesso verdade, objetividade e santidade.Eles pensam que sem estes obstculos ter-se- finalmente acesso mais suave,mais rpido, mais direto coisa real, que o nico objeto digno de respeito eculto. Imagens nem mesmo fornecem preparao, reflexo, uma vaga idia dooriginal: elas probem qualquer acesso ao original. Entre imagens e smbolos,voc deve escolher ou ser amaldioado.

    17 Como lembrado por Centlivres (ver catlogo), o mul Omar fez um sacrifcio de cem vacas, umahecatombe muito cara para padres afegos, como reparao por ter durante tanto tempo falhadoem destruir os Budas: cem vacas para pedir remisso por esse horrvel pecado de onze sculos semos destruir.

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    O tipo A ento a forma pura do iconoclasmo clssico, reconhecvel narejeio, pelo formalista, da imaginao, dos desenhos e modelos [ver Galison],assim como nos muitos movimentos bizantinos, luteranos e revolucionrios dedespedaadores de dolos, e nos horrveis excessos da Revoluo Cultural[ver Konchok]. A purificao sua meta. O mundo, para as pessoas A, seriaum lugar muito melhor, muito mais limpo, muito mais esclarecido, se fosse pos-svel se livrar de todas as mediaes e de um salto pr-se em contato diretocom o original, as idias, o Deus verdadeiro.

    Um dos problemas com os As que eles tm de acreditar que os outros aqueles coitados, cujos adorados cones foram acusados de serem dolos mpios acreditam neles ingenuamente. Tal suposio implica que, quando os filistinosreagem com gritos de horror pilhagem e ao saque, isso no pra os As. Aocontrrio, prova quo certos eles estavam [ver Schaffer]. A intensidade dohorror dos idlatras a melhor prova de que aqueles pobres crdulos ingnuoshaviam investido demais naquelas pedras que no so, essencialmente, nada.Armados com a noo de crena ingnua, os paladinos da liberdade constante-mente se equivocam a respeito da indignao daqueles que eles escandalizama fim de efetivar um vnculo abjeto a coisas que eles deveriam destruir aindamais radicalmente.

    Mas o problema mais profundo dos As que ningum sabe se eles noso Bs!

    As pessoas B so contra a imagem congelada, no contra imagens

    Os Bs so tambm destruidores de dolos. Eles tambm causam devasta-o nas imagens, rompem costumes e hbitos, escandalizam os devotos, e pro-vocam os gritos horrveis de Blasfemo! Infiel! Sacrilgio! Profanao! Masa enorme diferena entre os As e os Bs distino que percorre toda a expo-sio que estes no acreditam ser possvel nem necessrio se livrar dasimagens. O que eles combatem o congelamento das imagens, ou seja, ex-trair uma imagem do fluxo, e se tornar fascinado por ela, como se isso fossesuficiente, como se todo movimento tivesse parado.

    O que eles buscam no um mundo livre de imagens, purificado de todosos obstculos, livre de todos os mediadores, mas, ao contrrio, um mundo cheiode imagens ativas, mediadores em movimento. Eles no querem que a produ-o de imagens pare para sempre como os As gostariam eles querem queela continue to rpida e fresca quanto possvel.

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    Para eles, iconofilia no significa ateno exclusiva e obsessiva ima-gem, pois eles no toleram as imagens fixas mais do que os As conseguemtolerar. Iconofilia significa passar de uma imagem para a prxima. Eles sa-bem que a verdade imagem, mas no h uma imagem da verdade. Paraeles, a nica maneira de se ter acesso verdade, objetividade e santidade passando rapidamente de uma imagem para a outra, e no sonhando o sonhoimpossvel de se saltar para um original no-existente. Contrariamente cadeiaplatnica de semelhanas, eles nem mesmo tentam passar da cpia ao protti-po. Eles so, como o velho bizantino iconfilo costumava dizer, econmicos[ver Mondzain], essa palavra significando, na poca, um longo e cuidadosa-mente organizado fluxo de imagens em religio, poltica e arte sem o sentidoque tem agora: o mundo dos bens.

    Enquanto os As acreditam que aqueles que se atm s imagens soiconfilos, e que as mentes corajosas que rompem com a fascinao pelasimagens so iconoclastas, os Bs definem iconfilos como aqueles que noaderem a uma imagem em particular, mas so capazes de passar de uma paraoutra. Para eles, iconoclastas so ou aqueles que absurdamente tentam se li-vrar de todas as imagens, ou aqueles que permanecem na contemplao fasci-nada de uma imagem isolada, congelada.

    Exemplos prototpicos de Bs poderiam ser: Jesus expulsando os mercado-res do Templo; Bach chocando os ouvidos da congregao de Leipzig e expul-sando a msica obtusa (Taborde, 1992); Malevich pintando o quadrado negropara acessar as foras csmicas que haviam permanecido escondidas na pin-tura representacional clssica (Groys, 1990); o sbio tibetano apagando umtoco de cigarro numa cabea de Buda para mostrar seu carter ilusrio(Stoddard, 1985). O dano feito aos cones , para eles, sempre uma injunocaridosa para redirecionar a ateno para outras imagens sagradas, mais no-vas, mais frescas no para ficar sem imagens.

    Mas, claro, muitos iconoclashes vm do fato de que nenhum cultuadorpode saber ao certo quando seu cone/dolo favorito vai ser quebrado e jogadoao cho, ou se um A ou um B quem comete o ato ominoso. Estamos sendochamados eles se perguntam a ficar sem nenhuma mediao e tentar cone-xes diretas com Deus e a objetividade? Estamos convidados a simplesmentemudar o veculo que at agora vnhamos usando para praticar o culto? Estamossendo incitados para um sentido renovado de adorao e solicitados a retomarmais uma vez, desde o incio, nosso trabalho de construo de imagens? Pense-se na longa hesitao daqueles que esperavam ao p do Monte Sinai o retorno

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    de Moiss: o que devemos fazer, o que nos foi pedido? to fcil enganar-se aesse respeito e comear a moldar o Bezerro de Ouro [ver Pinchard].

    Ser que nem os As nem os Bs sabem ao certo como ler as reaesdaqueles cujos cones/dolos esto sendo queimados? Esto furiosos por esta-rem sem seus dolos adorados, como crianas pequenas repentinamente priva-das de seu objeto transicional? Esto envergonhados por terem sido falsamenteacusados de acreditar de modo ingnuo em coisas no existentes? Esto eleshorrorizados por serem to impositivamente levados a renovar a adeso suaadorada tradio, que eles haviam deixado cair em descrdito, decair em merocostume? Nem os As nem os Bs podem decidir, do estardalhao dos oponen-tes, que espcie de profetas eles mesmos so: so eles profetas que pregam odescarte das imagens, ou os que, economicamente, querem deixar a cascatade imagens mover-se de novo para recomear o trabalho de salvao?

    Mas este no o fim de nossa hesitao, de nossa ambigidade, de nossoiconoclash. As e Bs poderiam, afinal de contas, ser simplesmente Cs disfarados.

    As pessoas C no so contra as imagens, exceto as de seus oponentes

    Os Cs tambm querem desacreditar, desencantar, destruir dolos. Tam-bm eles deixam em seu rastro saques, escombros, gritos de horror, escnda-los, abominao, blasfmia, vergonha e profanao de todos os tipos. Ao con-trrio dos As e dos Bs, eles no tm nada contra as imagens em geral: eles sse opem imagem qual seus oponentes aderem com mais fora.

    o bem conhecido mecanismo de provocao: para destruir algum comrapidez e eficincia mximas, basta atacar o que mais adorado, o que setornou o repositrio de todos os tesouros simblicos de um povo [ver Lindhardt,Sloterdijk]. Bandeiras queimadas, pinturas rasgadas, objetos tomados comorefns so exemplos tpicos. Diga-me o que lhe mais caro, e eu o destruireipara matar voc mais rpido. Essa a estratgia mini-max to caractersticadas ameaas terroristas: mximo dano com mnimo investimento. Abridores decaixas e bilhetes de avio contra os Estados Unidos da Amrica.

    A busca pelo objeto apropriado para atrair destruio e dio recproca:Antes de voc querer atacar a minha bandeira, eu no sabia que gostava tantodela, mas agora eu sei [ver Taussig]. Portanto, os provocadores e aqueles queeles provocam esto brincando de gato e rato, o primeiro procurando aquilo quecom mais rapidez provoca indignao, os outros procurando ansiosamente pelo

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    que desencadear mais violenta indignao.18 Durante essa busca, todos reco-nhecem a imagem em questo como um mero emblema; ela s serve comoocasio para que o escndalo se manifeste [ver Koch]. Se no fosse peloconflito, todos, nos dois lados, folgariam em confessar que no o objeto queest em disputa; que ele s um marco para algo completamente diferente.19Ento para os Cs, a imagem em si no est de modo algum em questo, elesno tm nada contra ela (como os As tm) ou a favor dela (o caso dos Bs). Aimagem simplesmente no tem valor sem valor, mas atacada, e por isso de-fendida, e por isso atacada

    O que terrvel para os destruidores de dolos que no h jeito de decidircom certeza se eles so As, Bs, ou Cs. Talvez eles tenham se equivocadoquanto sua vocao; talvez eles estejam interpretando mal os gritos de horrordaqueles que chamam de filistinos, quando estes vem seus dolos reduzidos ap. Eles se vem como profetas, mas talvez sejam meros agentes provocado-res. Eles se vem libertando as pobres almas miserveis aprisionadas porcoisas monstruosas; mas e se eles fossem, ao contrrio, difamadores procurade maneiras de humilhar mais eficientemente seus opositores?

    O que aconteceria comigo se, ao criticar os crticos, eu prprio estivessesimplesmente tentando criar outro escndalo? E se o iconoclash, na sua preten-so de redescrever o iconoclasmo, no fosse nada mais que outro gestoiconoclstico tedioso, outra provocao, a mera repetio do trejeito sem fimdos tesouros mais queridos da intelligentsia? No sabemos ao certo.

    Ah, mas por isso que se chama iconoclash.

    As pessoas D esto quebrando imagens inadvertidamente

    H outro tipo de destruidor de cones, presente nesta exposio um casomuito desviante: o daqueles que poderiam ser chamados de vndalos inocen-tes. Como bem sabido, vandalismo um termo de insulto inventado para descre-

    18 O politicamente correto parte dessa atitude: patrulhar todos os lugares procurando por boasocasies para ficar escandalizado.

    19 Sobre o mecanismo de difuso de escndalos na arte contempornea, ver Heinich Gamboni (1996e neste catlogo). Para casos sociais e polticos, ver Luc Boltanski (1990). O mecanismo tpicopara ver objetos como emblemas foi proposto por Ren Girard (1987).

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    ver aqueles que destroem no tanto pelo dio s imagens, mas por ignorncia, pordesejo de lucro e pura paixo e insanidade (Chastel, 1983; Rau, 1994).

    Claro, o rtulo pode ser usado para descrever a ao dos As, dos Bs etambm dos Cs. Todos podem ser acusados de vandalismo pelos outros, queno sabem se eles so crdulos inocentes furiosos por terem sido acusados deingenuidade, se so filisteus despertados de seu sono dogmtico por chamadosprofticos, ou amantes de escndalos, deliciados por serem a vtima da crticae, assim, capazes de demonstrar a fora e a retido de sua indignao.

    Mas os vndalos inocentes so diferentes dos vndalos normais, os maus:eles no tinham absolutamente a mnima idia de que estavam destruindo algu-ma coisa. Ao contrrio, eles estavam adorando imagens e protegendo-as dadestruio, e mesmo assim so acusados de t-las profanado e destrudo!20Eles so, por assim dizer, iconoclastas em retrospecto. O exemplo tpico odos restauradores, acusados por alguns de matar com ternura [ver Lowe]. Ocampo da arquitetura, em especial, est repleto desses inocentes que, quan-do constroem, tm que destruir, e seus prdios so acusados de no seremnada mais que vandalismo [ver Obrist, Geimer]. Seu corao est cheio deamor pelas imagens portanto, eles so diferentes de todos os outros casos mas ainda assim eles despertam as mesmas imprecaes de profanao,sacrilgio e blasfmia, como todos os outros.

    A vida dura: ao restaurar as obras de arte, embelezar cidades, recons-truir stios arqueolgicos, eles os destruram dizem seus oponentes a pontode parecerem os piores iconoclastas, ou ao menos os mais perversos. Masoutros exemplos podem ser encontrados, como o daqueles curadores de museuque guardam os lindos mallagans da Nova Guin, apesar de estes no teremmais valor, j que, aos olhos daqueles que os fabricaram, eles deveriam serdestrudos em trs dias [ver Derlon, Sarr], ou que guardam aqueles objetosafricanos que foram cuidadosamente feitos para apodrecer no cho e que socuidadosamente salvos por negociantes de arte e assim privados de seu poder,aos olhos de seus fabricantes [ver Strother].21 O feiticeiro aprendiz no real-

    20 A censura pode ser um aspecto dos Ds: destruindo ou escondendo imagens para proteger outras imagense escolhendo o alvo errado. Cineastas esto ocupados deletando imagens do World Trade Center de seusfilmes para no chocar o pblico (International Herald Tribune, 25 de outubro de 2001).

    21 Outros casos podem ser encontrados de destruio retrospectiva na tecnologia: asbesto costumavaser o material mgico antes de seus produtores serem acusados de matar milhares de pessoas comele; DDT costumava ser o pesticida mgico antes de ser acusado dos mesmos crimes. Ver UlrichBeck (1995), para um relato desta acusao retrospectiva sobre a noo de efeito secundrio.

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    mente um feiticeiro do mal, mas algum que se torna do mal por causa de suaprpria inocncia, ignorncia e negligncia.

    E aqui, novamente, os As assim como os Bs e os Cs podem ser acusadosde serem Ds, ou seja, de mirar no alvo errado, de esquecer de levar em consi-derao os efeitos colaterais, as ltimas conseqncias de seus atos de destrui-o. Voc acreditava salvar as pessoas da idolatria, mas voc simplesmenteos privou dos meios para cultuar. Voc acredita ser um profeta renovando oculto das imagens com imagens mais frescas, mas voc nada mais que umdifamador sedento de sangue estas e outras acusaes similaresfreqentemente se nivelam em crculos revolucionrios, em mtuas acusaesde que o outro est constantemente no passo errado, de que horrescoreferens reacionrio. E se o que fizemos foi matar as pessoas erradas, des-truir os dolos errados? Pior: e se assim sacrificamos dolos para o culto de umBaal maior, mais sangrento e mais monstruoso?

    As pessoas E so simplesmente as pessoas: eles ridicularizam osiconoclastas e os iconfilos

    Para completar, devemos adicionar os Es, que duvidam dos quebradoresde dolos tanto quanto dos cultuadores de cones. Eles desconfiam de quaisquerdistines marcadas entre os dois plos; eles exercem sua ironia devastadoracontra todos os mediadores; no que queiram livrar-se destes, mas porque es-to muito conscientes de sua fragilidade. Eles adoram manifestar irrevernciae falta de respeito, eles querem gozao e zombaria, eles exigem direito abso-luto blasfmia e o fazem de um modo feroz, rabelaisiano [ver Pinchard], elesmostram a necessidade da insolncia, a importncia do que os romanos chama-vam pasquinadas to necessrias para um senso saudvel de liberdadecivil , a dose indispensvel do que Peter Sloterdijk chamou kinicismo [kynicism](em oposio ao cinismo [cynicism] tipicamente iconoclasta).

    Existe um direito de no acreditar e outro, ainda mais importante, de noser acusado de acreditar ingenuamente em algo. Talvez no exista isso a quechamamos um crdulo. Com exceo do raro destruidor de cones que acreditana crena e que, estranhamente, acredita em si prprio como o nico no-crdulo. Esse agnosticismo saudvel, amplo, popular e indestrutvel pode ser afonte de muita confuso porque, aqui tambm, as reaes que os Es desenca-deiam so indistinguveis daquelas criadas pelos atos de destruio-regenera-

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    o dos As, Bs, Cs e Ds. to fcil ficar chocado. Todo mundo tem umaquantidade de chocabilidade que pode certamente ser aplicada a diferentescausas, mas de maneira alguma esvaziada ou mesmo diminuda.

    Tome-se o cone, agora famoso, do papa Joo Paulo II cado ao cho,atingido por um meteorito [ver Maurizio Cattelan, La Nona Hora]. Ser queele demonstra uma irreverncia saudvel pela autoridade? Ser que um casotpico de provocao barata, dirigida a londrinos blass que esperam ficar mo-deradamente chocados quando vo a uma mostra de arte, mas que no do amnima em relao morte de uma imagem maante como a do papa? Ou ,ao contrrio, uma tentativa escandalosa de destroar a crena dos visitantes demuseu poloneses, quando a obra for mostrada em Varsvia? Ou , como ChristianBoltanski afirma, uma imagem profundamente respeitosa, que mostra que, nocatolicismo, demanda-se do papa sofrer a mesma quebra, a mesma destruioextrema que o prprio Cristo?22 Como possvel examinar essa amplitude deinterpretaes?23

    Da a paisagem sonora desta exposio.

    Uma cacofonia bem-vinda

    Nossa mostra almeja escutar aqueles gritos de desespero, horror, indig-nao e estupefao simultaneamente, todos ao mesmo tempo, sem ter deescolher apressadamente, sem ter de cerrar fileiras nos partidos e sair brandin-do algum martelo para completar algum ato de desconstruo. Da a cacofonia,que o equivalente auditivo dos iconoclashes e que ocupa tanto espao nestaexposio [ver Laborde].

    22 Christian Boltanski, comunicao verbal.23 Eu propus um teste a um catalo: substituir o papa, que todos (talvez no os poloneses) esperam ver

    esmagado no cho, por algum cuja destruio provocaria a indignao dos intelectuais: por exem-plo, mostrar Salman Rushdie morto por um tiro islmico Horrvel demais, escandaloso demais,me disseram (Obrist, comunicao verbal). Ah! Ento o papa pode ser atingido, mas no algumrealmente merecedor de respeito aos olhos dos que pensam criticamente! Mas quando propus o queparecia ser um sacrilgio verdadeiro e no banal, o que eu buscava? Outra provocao dirigida a fiiscrticos ao invs de fiis papistas? Quem pode dizer? No tenho nem certeza se entendo as reaesdaqueles que se encolheram de horror ante minha sugesto.

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    Por meio do som tanto quanto da imagem, queremos restaurar esse sensode ambigidade: quem est gritando contra a destruio, e por qu? Seroesses os lamentos dos eternos filisteus, chocados por serem tirados de seutedioso e estreito crculo de costumes? Ouam, ouam! Sero esses os lamen-tos de humildes devotos, privados de sua nica fonte de virtude e vinculao, asrelquias sagradas, os fetiches preciosos, os frgeis factiches que costumavammant-los vivos e esto agora quebrados por um reformador arrogante e cego?(Nathan, 1994). Ouam, ouam! O som dos soluos dos As ao se darem contade que nunca iro alcanar a violncia gentil dos profticos Bs, e que elessimplesmente esvaziaram o mundo e o tornaram ainda mais aterrador. Ouamnovamente, por trs dos lamentos cacofnicos, a risada sarcstica dos blasfe-mos Es, to saudveis, to felizes por dispor e exibir seu charivari juvenil. E portrs disso tudo, o que isso? esse outro som? Ouam, ouam! a trombetaproftica despertando-nos de nossa vinculao mortal para ressuscitar um novosenso de beleza, verdade e santidade das imagens. Mas quem faz esse rudohorrvel, estridente? Ouam, ouam! Que estardalhao, o som estridente dosprovocadores, procurando uma nova presa.

    Sim, um pandemnio: nosso mundo dirio.

    Para alm das guerras de imagens: cascatas de imagens

    Como podemos ter certeza de que nossa mostra no outra mostraiconoclasta? Ter certeza de que no estamos pedindo ao visitante e ao leitorpara descer mais uma espiral no inferno do desmascaramento e da crtica?Que no estamos adicionando outra camada de ironia, empilhando descrenasobre descrena, continuando a tarefa de desencantamento com ainda maisdesencantamento? Novamente, no h nenhuma concordncia entre oscuradores; seja como for, um consenso no nosso objetivo, j que estamosatrs de iconoclashes, no de certezas. E ainda assim nossa exposio afirmaser capaz de ir alm das guerras de imagens. sempre uma afirmao auda-ciosa, essa pequena palavra: alm. Como podemos ser fiis a ela?

    Apresentando imagens, objetos, esttuas, signos e documentos, de ummodo que demonstre as conexes que eles tm com outras imagens, objetos,esttuas, signos e documentos. Em outras palavras, estamos tentando afirmarque pertencemos ao grupo dos Bs contra os As, os Cs, os Ds e mesmo os Es.Sim, ns pretendemos ser da linhagem proftica! As imagens contam, sim; elasno so meros emblemas, e no por serem os prottipos de algo longe, acima,

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    abaixo; elas contam porque permitem que se passe para outra imagem, preci-samente to frgil e modesta quanto a anterior mas diferente.24

    Assim, a distino crucial que desejamos traar nesta mostra no entreum mundo de imagem e um mundo de no-imagem como os combatentes daguerra das imagens queriam que acreditssemos mas entre o fluxo interrom-pido de figuras e uma cascata delas. Ao dirigir a ateno dos visitantes paraas cascatas, no esperamos paz a histria da imagem est por demais carre-gada ; mas estamos gentilmente dando uma cutucada para que o pblico pro-cure outras propriedades da imagem, propriedades que as guerras religiosasesconderam completamente na poeira levantada em seus muitos incndios einjrias.

    A opacidade dos cones religiosos

    Tome-se, por exemplo, esta pequena e humilde Piet, vinda do Museu deMoulins, na Frana. Protestantes ou, posteriormente, fanticos revolucionrios(ou talvez vndalos) decapitaram a Virgem e quebraram as pernas do Cristomorto embora as escrituras digam que nenhum de seus ossos ser quebrado.Um pequeno anjo, intacto, invisvel na imagem, segura com pesar a cabeadescada do Salvador. Um gesto iconoclasta, com certeza. Mas, espere! O que um Cristo morto seno outro cone quebrado, a imagem perfeita de Deus,dessacralizada, crucificada, perfurada e pronta para ser colocada na tumba?Ento o gesto iconoclasta golpeou uma imagem que j havia sido quebrada[ver Koerner]. O que significa crucificar um cone crucificado?

    No nos defrontamos aqui com um bom iconoclash? O quebrador dedolos foi redundante, j que ele (por alguma razo obscura, continuo mantendoo masculino para tal tipo de feito) despedaou um cone que j fora quebrado.Mas h uma diferena entre os dois gestos: o primeiro era uma meditaoprofunda e antiga sobre a fraqueza de todos os cones; o segundo apenas adici-onou uma espcie de vontade simplria de se livrar de todos os dolos, como sehouvesse dolos e cultuadores de dolos! Os que combatem as imagens sempre

    24 No seu timo resumo visual de imagens e seu prottipo, Jean Wirth (2001) manifesta uma vez maisa contradio do argumento, j que para mostrar a diferena entre respeito pela imagem (dulia) eadorao do modelo (latria), ele forado, por necessidade, a desenhar duas imagens uma para oprottipo e outra para o original.

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    cometem o mesmo erro: eles ingenuamente acreditam em crena ingnua. Odestruidor de dolos s fez demonstrar sua ingenuidade ao imaginar que o pri-meiro destruidor era um cultuador de dolos, quando na verdade ele (ou ela)deve ter sido um timo destruidor de cones Nessa tradio, a imagem sempre aquela de uma brecha para tornar o objeto imprprio para o consumonormal [ver Mondzain, Stoddard].25

    Como Louis Marin argumentou em um belo livro, o mesmo verdade emrelao a pinturas religiosas crists, que no tentam mostrar nada ao contr-rio, tentam obscurecer a viso (Marin, 1989). Milhares de pequenas invenesforam o espectador, o devoto, a no ver o que est apresentado diante dele oudela. Mas no, como os defensores de cones freqentemente dizem, fazendo aateno afastar-se da imagem e direcion-la ao prottipo. No h prottipopara ser olhado isso seria um platonismo enlouquecido ; h somente oredirecionamento da ateno para outra imagem.

    Os peregrinos de Emas no vem nada no seu companheiro de viagem,tal como foi pintado por Caravaggio, mas a partilha do po revela o que elesdeveriam ter visto, o que o espectador s consegue ver atravs da luz suaveque o pintor acrescentou ao po. Mas no nada alm de uma pintura.Redirecionar a ateno sempre a tarefa que essas pinturas tentam realizar,forando assim o fiel a passar de uma imagem para a prxima. Ele ressurgiu,j no est aqui; eis o lugar onde o depositaram (Marcos, 16:6).

    Quo equivocadas estavam as guerras das imagens: no h sequer umafigura que j no esteja quebrada ao meio. Todo cone repete: noli me tangere,e eles so acusados por seus inimigos de atrarem muita ateno! Vamos mes-mo gastar mais um sculo a ingenuamente redestruir e desconstruir imagensque j foram to sutil e inteligentemente destrudas?

    Isolada, uma imagem cientfica no tem referente

    A cascata de imagens ainda mais impressionante quando se olha para asrie reunida sob o rtulo de cincia.26 Uma imagem cientfica isolada no tem

    25 Ver o lindo captulo de Joseph Koerner (1998) sobre Bosh; ver a noo de dissimiles em GeorgesDidi-Huberman (1990).

    26 A palavra cascata para descrever essa sucesso foi primeiramente usada por Trevor Pinch(1985), Mike Lynch e Steve Woolgar (1990) e Jones e Galison (1998).

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    significado algum, no prova coisa alguma, no diz nada, no mostra nada, notem referente. Por qu? Porque uma imagem cientfica, at mais do que umaimagem religiosa crist, um conjunto de instrues para alcanar outramais alm.27 Uma tabela de nmeros leva a um grfico que leva a uma fotogra-fia que ir levar a um diagrama que ir levar a um pargrafo que ir levar auma afirmao. A srie como um todo tem um significado, mas nenhum deseus elementos tem qualquer sentido.

    Nos belos exemplos sobre a astronomia, apresentados por Galison, no sepode parar em nenhum ponto da srie, se se quiser entender o fenmeno queelas representam. Mas se voc percorrer a srie inteira, de cima a baixo, entoobjetividade, visibilidade e veracidade iro surgir. O mesmo vale com relaoao exemplo da biologia molecular, oferecido por Rheinberger: na radiolabelling28 no h nada para ver em estgio algum, e no entanto no h outrojeito de se ver os genes. A invisibilidade na cincia ainda mais notvel do quena religio por isso, nada mais absurdo que a oposio entre o mundo visvelda cincia e o mundo invisvel da religio [ver Huber, Macho]. Nenhum delespode ser compreendido a no ser por meio de imagens quebradas de tal modoque sempre apontam para mais uma outra.

    Se voc quisesse abandonar a imagem e, no lugar dela, voltar o olhar parao prottipo, do qual elas so supostamente a imagem, voc veria menos, infini-tamente menos.29 Voc ficaria cego de vez. Pea a uma cientista, uma fsica,que pare de olhar para as inscries produzidas pelos seus detectores, e ela novai encontrar nada: ela s vai comear a ter uma mnima idia a respeito sereunir ainda mais inscries, ainda mais resultados instrumentais, ainda maisequaes (Galison, 1997). somente l dentro das paredes da sua torre demarfim que ela ganha acesso ao mundo l fora.

    Esse paradoxo das imagens cientficas de novo inteiramente perdido poraqueles que combatem as imagens; eles nos pediriam com violncia para esco-lher entre o visvel e o invisvel, a imagem e o prottipo, o mundo real l fora eo mundo inventado e artificial aqui dentro. Eles no conseguem entender que

    27 Para uma descrio desse efeito cascata, ver Bruno Latour (1999, cap. 2).28 O mtodo de identificao ou triagem radioativa de partculas biolgicas, radio labelling, tem sido

    traduzido para o portugus como marcao radioativa. (N. de E.).29 Por isso demorou tanto para o olhar cientfico acomodar sua vista s estranhas novas imagens

    cientficas como magnificamente demonstrado em Lorraine Daston e Katherine Park (1999).

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    quanto mais artificiosa a inscrio, maior a sua habilidade de se conectar, de sealiar a outras, de gerar uma objetividade ainda melhor.

    Assim, pedir aos destruidores de dolos que despedacem os muitos medi-adores da cincia para atingir o mundo real l fora, melhor e mais rpido, seriauma chamada barbrie, no iluminao. Ns realmente teremos que passarmais um sculo alternando violentamente entre construtivismo e realismo, en-tre artificialidade e autenticidade? A cincia merece algo melhor do que cultoingnuo e desdm ingnuo. Seu regime de invisibilidade tem tanta elevao quan-to o da religio e da arte. A sutileza de seus traos requer uma nova forma decuidado e ateno. Ela requer por que evitar a palavra? , sim, espiritualidade.

    A arte no para ser redimida

    Conectar imagens com imagens, brincar com sries delas, repeti-las, re-produzi-las, distorc-las levemente, tem sido uma prtica comum na arte mes-mo antes da infame era da reproduo mecnica. Intertextualidade umdos modos pelos quais a cascata de imagens discernvel no domnio artstico a firme e intricada conexo que cada imagem tem com todas as outras queforam produzidas, a complexa relao de seqestro, aluso, destruio, distn-cia, citao, pardia e disputa [ver Jones, Belting, Weibel]. Mesmo a conexomais simples to importante para uma definio de uma vanguarda que, umavez que um tipo de imagem foi concebido, no mais possvel para outrosproduzi-la da mesma forma.

    Mas h uma relao mais direta: de muitas maneiras, atravs da questoda representao mimtica, as artes ocidentais tm sido obcecadas pelas som-bras colocadas pelas imagens cientficas e religiosas: como escapar da obriga-o de mais uma vez apresentar os credos dos fiis? Como escapar da tiraniadas ilustraes quase-cientficas, simplesmente objetivas, puramente repre-sentativas? Libertar o olhar dessa obrigao dual explica em grande parte asinvenes do que chamado de arte moderna. E, claro, os crticos reacionri-os nunca se cansam de pedir por um retorno real presena, repre-sentao correta, mimese e ao culto beleza, como se posse possvelfazer o relgio andar para trs (Clair, 1983; Steiner, 1991).30

    30 Para um arquivo sobre o debate em torno da arte contempornea, ver P. Barrer (2000).

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    Eis ento outro paradoxo, outro iconoclash: o que isso de que a artecontempornea tanto se esforou por escapar? A que alvo foi direcionado tantoiconoclasmo, tanto ascetismo, to violenta e, por vezes, frentica energia? Aoscones religiosos e sua obsesso por presena real? Mas eles nunca tiveramalgo a ver com a apresentao de outra coisa que no a ausncia. Ao imagin-rio cientfico? Mas nenhuma imagem cientfica isolada tem qualquer podermimtico; no h nada menos representacional, menos figurativo, que as figu-ras produzidas pela cincia, as quais so, apesar disso, tidas como o que nos da melhor apreenso do mundo visvel (Elkins, 1999).31

    Aqui, novamente, temos outro caso de guerras de imagem dirigindo nossaateno para um alvo completamente falso. Muitos artistas tentaram evitar acarga pesada da presena e da mimese evitando religio e cincia, as quaistentaram ainda mais intensamente evitar presena, transparncia e mimese!Uma comdia de erros.

    Por quanto tempo iremos julgar uma imagem, instalao ou um objetocom base nas outras imagens, instalaes e objetos que este almeja combater,substituir, destruir, ridicularizar, classificar, parodiar? Ser que to essencialpara a arte que um longo squito de escravos e vtimas acompanhe cada obra? Adistoro de uma imagem j existente mesmo o nico jogo disponvel por a?

    Felizmente, existem muitas outras formas de arte, muitos outros tipos deinstalaes, dispositivos de toda sorte, que de maneira alguma se apiam nessaconexo negativa entre imagem e distoro. No que eles se apiem na mimese,o que restringiria o olhar ao tipo mais entediante de costume visual; mas porqueaquilo de que eles mais gostam a transformao das imagens; a cadeia demodificaes que altera completamente os regimes escpicos da clssica ima-gem congelada, extrada do fluxo [ver Lowe, Yaneva, Jaffrennou].

    Essa diferena entre a distoro iconoclasta, que sempre se apia no po-der do que destrudo, e uma cascata produtiva de re-representao podeexplicar por que, nesta exposio, a definio de arte dada por Peter Weibel,por exemplo, no se cruza de modo algum com a de algum como Adam Lowe eis outro iconoclash, e, espera-se, bastante fecundo visualmente.

    31 Pode-se at argumentar que de olhar pinturas (provavelmente pinturas holandesas) que os filso-fos da cincia tiraram suas idias do mundo visvel e sua epistemologia modelo/cpia. Ver o clssicoSvetlana Alpers (1983).

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    Depois do 11 de setembro

    Como Christin, Colas, Gamboni, Asmann e muitos outros mostraram, sem-pre houve uma conexo direta entre o status da imagem e a poltica. Destruirimagens sempre foi uma ao cuidadosamente planejada, governada e elitista.Nada menos popular, espontneo e no-dirigido que a destruio de dolos.Embora a palavra representao aparea ainda mais vividamente na esferapblica do que na cincia, na religio e na arte, ns no tratamos o iconoclasmona poltica como um domnio separado.

    H uma razo simples para isso: para rejuvenescer a definio de media-dores polticos essencial, primeiro, ir alm das guerras de imagem. A polticaest por todo lado, na mostra, mas intencionalmente espalhada. O iconoclasmose tornou muito banal quando aplicado na esfera poltica. Em nenhum outrolugar, mais do que na poltica, pode-se ouvir esta requisio absurda, pormestridente: manipulado ou real? como se, novamente, o trabalho manu-al, a manipulao cuidadosa, a mediao humana, devessem ser colocados emuma coluna, e a verdade, a exatido, a mimese, a representao fiel, em outra.Como se tudo o que fosse adicionado como crdito em uma coluna tivesse deser deduzido da outra. Contabilidade estranha! isso faria a poltica, assimcomo a religio, a cincia, a arte, totalmente impossveis. Mais um caso deaplicao impossvel do segundo mandamento.

    Mas a devoo destruio da imagem, o culto do iconoclasmo como amxima virtude intelectual, a mente crtica, o gosto pelo niilismo tudo aquilodeve ter mudado abruptamente devido a um evento terrvel, estranhamentecodificado pelo nmero 911 o nmero telefnico de emergncia nos EstadosUnidos. Sim, desde 11 de setembro de 2001 um estado de emergncia foiproclamado, relativo ao modo como lidamos com imagens de todos os tipos, emreligio, poltica, cincia, arte e crtica e uma busca frentica pelas origens dofanatismo comeou.

    O niilismo entendido aqui como a negao de mediadores, o esqueci-mento da mo que trabalha no despertar dos objetos transcendentes, o cortemodernista entre o que se faz e o que se pensa que o outro est fazendo poderia aparecer como uma virtude, uma qualidade robusta, uma fonte formi-dvel de inovao e fora, desde que ns pudssemos aplic-la aos outros deverdade e a ns mesmos apenas simbolicamente. Mas agora, pela primeiravez, so os EUA, somos ns, os ocidentais, os corajosos quebradores de

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    dolos, os guerreiros da liberdade, que somos ameaados pela aniquilao epelo fanatismo.

    Da mesma maneira que os roteiristas de Hollywood esto de repenteachando insuportveis os efeitos especiais dos filmes de horror que eles mes-mos prepararam, porque suas realidades so vvidas demais e s eram suport-veis quando no poderiam acontecer, ns podemos achar que a fala ininterruptasobre destruio, desmascaramento, crtica, exposio e denncia no , afinal,to divertida, to produtiva, to protetora.

    Ns sabamos (eu sabia!) que jamais fomos modernos, mas agora o so-mos menos ainda: frgeis, fracos, ameaados; ou seja, de volta ao normal, devolta ao estgio ansioso e cuidadoso no qual os outros costumavam viverantes de serem libertados de suas crenas absurdas pela nossa corajosa eambiciosa modernizao. De repente, parecemos apegar-nos com nova inten-sidade aos nosso dolos, nossos fetiches, nossos factiches, aos modos extraor-dinariamente frgeis com que nossa mo pode produzir objetos sobre os quaisno temos nenhum comando. De certo modo, vemos as nossas instituies,nossas esferas pblicas, nossa objetividade cientfica, mesmo nossas maneirasreligiosas tudo que antes amvamos odiar com uma simpatia renovada.Menos cinismo, de repente; menos ironia. Uma devoo s imagens, um desejopor mediadores cuidadosamente construdos, aquilo que os bizantinos chama-vam de economia, o que costumava simplesmente ser chamado de civilizao.

    Nenhuma exposio, nenhum catlogo, pode fazer muito. Sei disso muitobem, mas redirecionar a ateno para a fraqueza e a fragilidade dos mediado-res que nos permitem rezar, conhecer, votar, desfrutar de uma vida em comum,isto o que tentamos em Iconoclash. Agora, leitores e visitantes, com vocs:ver por si prprios o que querem proteger e o que querem destruir.

    Ah, e a propsito: como Moiss redigiria o segundo mandamento se no otivesse interpretado mal? um pouco cedo para saber, ns precisamos primei-ro ouvir e ver as reaes de vocs, mas minha aposta que uma leitura seguraseria: No congelars nenhuma imagem gravada.

    Anexo 1 Abrao e a oficina de dolos de seu pai Terah

    Rabi Hiya, filho do rabi Ada, disse que Terah [pai de Abrao] era umadorador de dolos. Um dia Terah teve de sair da loja [em que vendia dolos].Ele ps Abrao para cuidar da loja na sua ausncia. Um homem veio e queria

  • 145O que iconoclash? Ou, h um mundo alm das guerras de imagem?

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun. 2008

    comprar um dolo. Abrao perguntou-lhe: Quantos anos voc tem? E ele res-pondeu: Cinqenta ou sessenta anos. Abrao ento falou, Digno de pena ohomem de sessenta anos que cultua dolos que s tm um dia de idade. Entoo homem saiu envergonhado. Uma vez, veio uma mulher com uma oferenda detima farinha. Ela disse a ele [Abrao]: Eis aqui, pegue-a e traga-a perante [osdolos]. Abrao levantou-se, pegou um cajado, quebrou todos os dolos, e colo-cou o cajado de volta nas mos do maior dolo entre eles. Quando seu pairetornou, indagou: Quem fez isso a eles? Abrao respondeu: Eu no lhe ne-garei a verdade. Uma mulher veio com uma oferenda de tima farinha e pediuque eu a trouxesse diante deles. Ento eu a trouxe diante eles, e cada um disse:Eu comerei primeiro. Ento o maior de todos levantou-se, tomou o cajado emsuas mos e quebrou todos os outros. E Terah disse a ele: Por que voczomba de mim? Estes [dolos] sabem alguma coisa [falar e mover-se]? EAbrao respondeu: Seus ouvidos no escutam o que sua boca fala?

    Midrash Rabbah, No, Parte 38, Seo 13Traduzido para o ingls por Shai Lavi

    Anexo 2 Jagannath e seu salagrama

    O trecho a seguir, de uma novela da escritora indiana Anantha Murthy,est na origem desta mostra. uma rara descrio do ntimo de um iconoclasta.Jagannath,32 o personagem principal, um brmane que retorna da Inglaterradecidido a libertar os intocveis do controle que ele e seu salagrama (a pedrasagrada de seus ancestrais) tem sobre eles:

    As palavras ficaram presas em sua garganta. Esta pedra nada, mascoloquei nela meu corao e estou estendendo a mo para entreg-la a voc:toque-a; toque o ponto vulnervel da minha mente; esta a hora da precenoturna; toque; o nandadeepa ainda est queimando. Aqueles de p atrs demim [sua tia e o sacerdote] esto me puxando de volta pelos muitos laos de

    32 No sem um pouco de ironia, o heri tem o nome de Jagannath, ou Senhor do Mundo, que tambm o nome da pesada carruagem de Krishna debaixo da qual diz-se que os devotos se jogam paramorrer. Isto nos deu, em ingls, juggernaut, para designar uma fora poderosamente esmagadora.Outro iconoclash.

  • 146 Bruno Latour

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun. 2008

    obrigao. O que vocs esto esperando? O que eu trouxe? Talvez seja assim:isto se tornou um salagrama porque eu o ofereci como pedra. Se voc toc-lo,ento ele seria uma pedra para eles. Esta minha impertinncia se torna umsalagrama. Porque eu o dei, porque vocs o tocaram, e porque eles todos teste-munharam esse evento, deixem esta pedra virar um salagrama, neste anoite-cer. E deixem o salagrama virar uma pedra. (101)

    Mas os prias se encolhem em horror.Jagannath tentou acalm-los. Ele disse, em seu tom cotidiano de profes-

    sor: Isto mera pedra. Toquem-na e vero. Se no o fizerem, permanecerotolos para sempre.

    Ele no sabia o que lhes havia acontecido, mas viu que o grupo inteiro derepente se encolhia. Eles contraram os rostos em expresso desconfiada, te-merosos de ficar e temerosos de sair dali. Ele havia desejado e ansiado por estemomento auspicioso este momento dos prias tocando a imagem de Deus.Ele falou com voz embargada de grande fria: Sim, toquem-na!

    Avanou na direo deles. Eles recuaram, encolhidos. Alguma cruelda-de monstruosa tomou conta do homem que havia nele. Os prias pareciamcriaturas repulsivas, rastejando sobre suas barrigas.

    Ele mordeu o lbio inferior e disse em voz baixa e firme: Pilla, toque-a!Sim, toque-a!

    Pilla [um capataz da casta dos intocveis] ficou parado, piscando os olhos.Jagannath sentiu-se exausto e perdido. Tudo que lhes havia ensinado durantetodos esses dias fora um desperdcio. Ele chacoalhou de modo amedrontador:Toquem, toquem, vocs TOQUEM-NA!

    Era como o som de algum animal enfurecido e veio rasgando atravsdele. Ele era pura violncia; ele no tinha conscincia de nada mais. Os priasacharam-no mais ameaador que Bhutaraya [o esprito-demnio do deus lo-cal]. O ar fora fendido pelos seus gritos. Toquem, toquem, toquem. A tensoera demais para os prias. Mecanicamente, eles avanavam, apenas tocavamo que Jagannath lhes estendia, e imediatamente se retiravam.

    Exausto pela violncia e a opresso, Jagannath atirou de lado o salagrama.Uma crescente angstia chegara a um fim grotesco. A tia conseguia ser huma-na mesmo ao tratar os prias como intocveis. Ele por um momento perderasua humanidade. Os prias tinham sido para ele coisas insignificantes. Ele bai-xou a cabea. No sabia quando os prias haviam partido. A escurido j bai-xara quando ele se deu conta de que estava s. Desgostoso com sua prpriapessoa, comeou a andar a esmo. Perguntou a si mesmo: quando eles a toca-

  • 147O que iconoclash? Ou, h um mundo alm das guerras de imagem?

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun. 2008

    ram, ns eles e eu perdemos nossa humanidade, no foi? E ns morremos.Onde est a falha, em mim ou na sociedade? No houve resposta. Depois deuma longa caminhada ele veio para casa, sentindo-se perturbado. (98-102)

    Anantha Murthy, Bharathipura, Madras (ndia), Macmillan, 1996.Traduzido do Kannada original.

    Referncias

    ALPERS, Svetlana. The art of describing. Chicago: University of ChicagoPress, 1983.

    ASSMANN. Jan. Moses the Egyptian: the memory of Egy