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J. p. Miller Guerra e A. Sedas Nunes A crise da Universidade em Portugal: reflexões e sugestões A exemplo do que se tem verificado em numerosos países, as Universidades portu- guesas encaminham-se para uma situação de crise estrutural grave. Cristalizadas em mol- des institucionais recebidos duma época his- toricamente ultrapassada, isoladas do meio social que as envolve, impossibilitadas de corresponder às novas necessidades e solici- tações resultantes do desenvolvimento econó- mico e da evolução sócio-cultural, invadidas por massas de alunos muito maiores do que aquelas para que foram previstas, contesta- das pelos movimentos estudantis carecem de uma reforma global, que só uma política universitária resolutamente modernizadora e solidamente apoiada numa política de desen- volvimento geral do país poderá realizar. Duas ordens de motivos colocaram os problemas universi- tários na primeira linha dos que mais ocupam, presentemente, a atenção dos governantes, num grande número de países. Por um lado, os movimentos estudantis despertam sérias preocupações de índole política. Por outro lado, tomou-se consciência de que as Universidades tradicionais se revelam frequentemente incapazes de formar, na quantidade e com as habilitações necessárias, os quadros científicos e técnicos indispensáveis ao desenvolvimento económico, social e cultural. Estes dois aspectos da «crise universitária» actual estão longe, porém, de abranger todas as suas coordenadas fundamen- tais. Naturalmente, o conhecimento da natureza, das causas e das possíveis soluções dessa «crise» é, por enquanto, incompleto. Toda- via, importa lograr uma visão tão ampla e clara quanto esteja ao nosso alcance, a fim de entender e poder orientar em sentido cria- dor um fenómeno que, também em Portugal, tende a assumir e não apenas episodicamente grandes proporções.

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J. p.Miller

Guerrae

A. SedasNunes

A crise da Universidadeem Portugal:reflexões e sugestões

A exemplo do que se tem verificado emnumerosos países, as Universidades portu-guesas encaminham-se para uma situação decrise estrutural grave. Cristalizadas em mol-des institucionais recebidos duma época his-toricamente ultrapassada, isoladas do meiosocial que as envolve, impossibilitadas decorresponder às novas necessidades e solici-tações resultantes do desenvolvimento econó-mico e da evolução sócio-cultural, invadidaspor massas de alunos muito maiores do queaquelas para que foram previstas, contesta-das pelos movimentos estudantis — carecemde uma reforma global, que só uma políticauniversitária resolutamente modernizadora esolidamente apoiada numa política de desen-volvimento geral do país poderá realizar.

Duas ordens de motivos colocaram os problemas universi-tários na primeira linha dos que mais ocupam, presentemente,a atenção dos governantes, num grande número de países. Porum lado, os movimentos estudantis despertam sérias preocupaçõesde índole política. Por outro lado, tomou-se consciência de que asUniversidades tradicionais se revelam frequentemente incapazesde formar, na quantidade e com as habilitações necessárias, osquadros científicos e técnicos indispensáveis ao desenvolvimentoeconómico, social e cultural.

Estes dois aspectos da «crise universitária» actual estãolonge, porém, de abranger todas as suas coordenadas fundamen-tais. Naturalmente, o conhecimento da natureza, das causas e daspossíveis soluções dessa «crise» é, por enquanto, incompleto. Toda-via, importa lograr uma visão tão ampla e clara quanto esteja aonosso alcance, a fim de entender e poder orientar em sentido cria-dor um fenómeno que, também em Portugal, tende a assumir— e não apenas episodicamente — grandes proporções.

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Não podendo tratar de toda a matéria, que é demasiado vasta,cingir-nos-emos, na l.a Parte, a quatro aspectos significativos.O primeiro respeita ao movimento estudantil, como sucesso mun-dial; o segundo, às formas de acesso às Universidades; o terceiro,às relações da Universidade com a vida nacional; o quarto e úl-timo, às implicações do desenvolvimento económico e da evoluçãosócio-cultural sobre os sistemas universitários. Não pretendemosapresentar um estudo completo, mas apenas um conjunto de pon-tos de vista e de reflexões, que nos parecem particularmente opor-tunos na actual conjuntura universitária portuguesa.

Na 2.a Parte, alinharemos — com a modéstia de quem pro-cura contribuir para a resolução de problemas que sabe seremdifíceis— um certo número de sugestões para a definição de umapolítica de reforma universitária, no nosso país.

AS COORDENADAS FUNDAMENTAIS DA CRISE

1. O movimento estudantil, como sucesso mundial

1.°) Como se explica o movimento estudantil que, desde hátempo, tem afectado as Universidades num elevado número depaíses?

Não deixa de surpreender este movimento, tão extenso e pro-fundo, que se está dando nas Universidades, quer das nações quevão na vanguarda do progresso técnico, económico e científico,quer das de médio ou fraco desenvolvimento. Não falta quematribua estes factos apenas à «revolta da juventude», ou melhor:à transposição, para as «cidades» ou «campus» universitários, doconhecido conflito das gerações. E também não falta quem, maissimplista e radical, filie o movimento estudantil numa simplesinstigação política revolucionária. Estas explicações são insufi-cientes perante a extensão e grandeza do fenómeno e não se apli-cam, nem a todas as Universidades, nem a todos os países. Será,portanto, necessário procurar uma explicação genérica, que abranjaao mesmo tempo, se for possível, os países desenvolvidos e ospouco desenvolvidos, e tanto os países ocidentais como os de ideo-logia comunista. Acerca destes últimos possuímos, naturalmente,menos informação, pela própria dificuldade de a colher.

Uma das causas que estão na raiz destes movimentos é

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decerto a rigidez das estruturas universitárias, perante o dina-mismo e a rapidez da evolução social. Esta discordância entremovimento histórico e a instituição universitária cria pontos defricção, que ocasionam acções de «contestação» emanadas dascategorias menos comprometidas na ordem social e mais livres,que são os estudantes.

Por um lado e em consequência do desenvolvimento socio-eco-nómico e do incremento da mobilidade social, aumentou em pro-porções inesperadas ou imprevisíveis o número dos estudantes queprocuram o ensino superior. Este facto deve ser sublinhado, por-quanto não é preciso reflectir muito nele para se ver que umainstituição concebida para pequenos grupos e com pequena diver-sidade de cursos e de saídas ocupacionais, mas invadida subi-tamente por massas compactas de estudantes- (cujas aspiraçõesé incapaz de satisfazer, em primeiro lugar porque a sua concepçãoessencialmente «elitista» está em discordância com a necessidadede educação de largas «massas» populacionais), não corresponde àsnecessidades das sociedades modernas.

Por outro lado, o número de docentes, os métodos de ensino,a concepção geral, as finalidades do ensino superior, a organizaçãouniversitária e o modo de enquadramento das Universidades dentrodas sociedades industriais ou em vias de industrialização, consti-tuem pontos de conflito ou de desajustamento. De uma maneirageral, observa-se que as instituições universitárias de carácter na-poleónico-latino, como as portuguesas, resistem muito mais doque as anglo-saxónieas à adaptação à vida moderna. É esta, segu-ramente, uma das razões que explicam que seja nos países latino--europeus e latino-americanos que se manifestam com maior vigore amplidão os movimentos de directa rebelião contra as institui-ções universitárias, e que, pelo contrário, seja nos países anglo--saxónicos que as acções estudantis tenham assumido, e aindaconservem, carácter mais difuso e aspectos menos estritamenteuniversitários.

Haja em vista que os movimentos estudantis recentes irrom-peram na Universidade de Berkeley, em 1964, com uma carac-terística de contestação^ globaà, não propriamente contra a Uni-versidade em si, mas contra as estruturas sócio-culturais da«sociedade afluente» ou «de consumo» e contra o que se temdesignado de «complexo militar-industrial». Daí o movimento ge-neralizou-se, aparecendo na Universidade de Berlim um poucocom o mesmo carácter e dando origem àquilo a que posterior-mente se chamou a «Universidade crítica». Depois, e para sófalar de alguns dos seus passos, estendeu-se, em 1967, à Itália,e finalmente, em 1968, atingiu a sua máxima expressão com aschamada^ revoltas do Maio-Junho em França.

Em Portugal, como noutros países, apenas se tomou cons-

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ciência da amplitude, gravidade e seriedade destes fenómeno*,quando apareceram em França, pela retumbância que mundialmenteteve o movimento de contestação universitária gaulês. Mas seriaver as coisas muito superficialmente circunscrever as atenções àFrança. Este país, com a capacidade de irradiação cultural quepossui, foi apenas o ponto de referência, ou o «revelador», deuma crise universitária mais vasta e complexa, surgida nos paísescitados.

2.°) Pensamos que estas são algumas das linhas que podemsituar os movimentos estudantis dentro da sociedade e da culturaactuais. Mas é evidente que o que acabamos de expor nem sequeré uma análise, mas apenas uma primeira aproximação de um fenó-meno muito mais profundo do que geralmente se supõe.

De facto, quando os «enragés» diziam que se tratava de umacrise da civilização e proclamavam a «revolução cultural», esta-vam menos longe da verdade do que pode parecer. Na realidade,a crise universitária registada em França e noutras nações implicaefectivamente a crítica radical de certo tipo de sociedade que jáexiste em alguns países (a «sociedade afluente») e na qual outrosaspiram a viver.

Como sempre acontece nos movimentos sociais, existe, porém,um certo número de factos e de linhas de influência que se entre-cruzam, tornando difícil a apreciação imediata dos sucessos. Nãodeixa, por exemplo, de ocasionar surpresa, olhando as coisas sobcerto aspecto, que, em países que ainda estão longe da fase pós--industrial ou da «afluência», já se conteste essa própria forma deorganização social. Este fenómeno parecerá, no entanto, menosparadoxal, se levarmos em conta a permuta de influências quenaturalmente se verifica entre os movimentos estudantis dosdiferentes países. Na verdade, até uma data recente, a acçãoestudantil, nos países menos desenvolvidos, insistia noutros pon-tos, que de resto não abandonou, como a participação no governodas Universidades, a reivindicação da liberdade intelectual, a de-núncia da opressão política e da exploração económica, a lutapelo desenvolvimento nacional, a contestação do imperialismo eco-nómico e político das grandes potências.

Outro aspecto importante é que não basta vigorarem regimesdemocráticos para que desapareçam as contradições entre a ins-tituição universitária e a vida social. A França e a Itália sãoexemplos concludentes de que certas instituições socio-jurídicastradicionais, como as Universidades napoleónico-latinas, dificil-mente se adaptam às modificações sociais, mesmo sob regimesdemocráticos. Somos assim levados a um outro ponto, que é adiferença entre determinados problemas, quando surgem nos paí-

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ses cujas estruturas acabamos de mencionar e quando ocorremem países com uma estrutura sócio-política mais rígida e tradi-cional. Neste último caso, esses problemas tornam-se mais com-plexos, visto que há mais obstáculos às reformas, além dos queexistem nas sociedades democráticas.

3.°) Sob uma aparência de uniformidade à escala mundial(aparência que lhes é dada pelo denominador comum da «contesta-ção»), os movimentos estudantis dos diferentes países revelam-se,quando observados mais de perto, nitidamente diversificados emnão poucos aspectos essenciais.

Sem dúvida, todos exprimem um mesmo fenómeno que jul-gamos indispensável levar em conta em quaisquer reformas univer-sitárias e para o qual queremos, por isso, chamar a atenção. Umpouco por toda a parte e embora sob diferentes formas, as popu-lações discentes tendem a transformar-se — de simples «massas»dispersas, desconexas, sem objectivos próprios e passivas anteas organizações de ensino superior que as acolhem — em «gruposactivos» que a si mesmos se vêem e assumem como distintos dasinstituições universitárias e como detentores (em face destase da própria sociedade) de interesses, valores e projectos especi-ficamente estudantis. Isto mesmo se observa em Portugal.

Todavia, para além desse elemento que, sendo comum a todosos movimentos estudantis, é igualmente fundamental, uma vezque põe em causa o pressuposto basilar das formas tradicionaisde organização universitária (a saber: que o estudante é um«cliente» individualista, a quem apenas interessa adquirir, semdiscussão, o produto de que a Universidade antecipadamente dis-põe para lhe fornecer), são grandes as divergências que se veri-ficam nas orientações da acção estudantil, de país- para país,quando não de Universidade para Universidade e até dentro damesma Universidade.

Os estudiosos do assunto têm mostrado que tais divergênciasse relacionam não só com as diferentes características tipologicase estruturais das instituições universitárias, mas também e nãomenos com as diversidades de estrutura, organização, nível dedesenvolvimento e situação socio-política daâ sociedades ondeos movimentos estudantis se manifestam. Isto significa — prova-velmente na generalidade dos casos — que não devemos supor queestes movimentos se extinguirao em consequência de simplesmentese operarem reformas universitárias, mesmo arrojadas.

O que se pode, sob certas condições, esperar é que, depoisde terem constituído um catalizador de reformas e inovações naestrutura e na actividade universitária, os movimentos estudantisorientem a sua acção num sentido que não impeça as Universida-

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des modernizadas de exercerem normalmente, salvo em ocasiõesexcepcionais, as suas funções. A este respeito cabe, por exemplo,lembrar que, apesar das muitas acções colectivas estudantis de quea Imprensa vem dando notícia e que se referem às nações anglo--saxónicas, as Universidades destes países continuam, dum modogeral, a funcionar com elevado rendimento cultural e pedagógico.

Cremos não errar admitindo que, por via de regra, os movi-mentos de estudantes1 só se tornam — a partir de certo grau deintensidade — incompatíveis com o funcionamento corrente e efi-caz do sistema universitário, quando este, pelo seu mesmo arcaís-mo, se oferece como alvo privilegiado da «contestação» estudantil,ou quando as características do sistema socio-político global sãotais que somente pela via da Universidade essa «contestação»encontra possibilidades de se exprimir.

2. A «massificação» e as formas de acesso às Universidades

1.°) O crescimento rápido do número dos alunos matriculadosnas Universidades tem suscitado, em muitos países, um debate,por vezes extremamente vivo, acerca das formas de acesso às ins-tituições de ensino superior. Em Portugal, têm-se ouvido algunsecos desse debate, em certos casos inspirados pela preocupação,ou apoiados no argumento, de que a «massificação» das Univer-sidades ocasiona por força a sua deterioração.

A respeito deste assunto, parece-nos conveniente começar poralgumas observações preambulares, a primeira das quais se refereao termo «massificação», que é equívoco.

Se com essa palavra se pretende designar o próprio facto deas populações universitárias serem hoje incomparavelmente maisnumerosas do que no passado e tenderem a crescer incessantemente,recusar a «massificação», assim entendida, significa pura e sim-plesmente recusar o desenvolvimento e o progresso. Esta asserçãoé particularmente válida no caso da sociedade portuguesa, ondeo número dos estudantes, comparado com a população do país,e a taxa de escolarização universitária das correspondentes classesde idades são dos mais baixos, não só da Europa, mas do mundo(tirante as nações extremamente subdesenvolvidas e aquelas cujaestrutura engloba um amplo «proletariado racial» interno).

O termo «massificação» pode, no entanto, ser também usadocomo sinónimo de congestionamento das instituições universitá-rias. Neste caso, é evidente que importa evitá-la ou pôr-lhe cobro.Mas o congestionamento só pode ser correctamente interpretadocomo um fenómeno de desajustamento entre, por um lado, a di-

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mensão atingida pela população discente (no seu conjunto ou emdeterminados sectores) e, por outro, a dimensão do sistema uni-versitário e a sua capacidade material e institucional para acolheralunos. O que se torna necessário, em tal situação, não consiste,portanto, em refrear o crescimento do número dos estudantes,mas em ampliar e adaptar as estruturas do sistema.

Finalmente, a discussão no nosso país do problema que vamosseguidamente abordar tem, a nosso ver, de basear-se num pres-suposto fundamental: o de que é indispensável fomentar, em Por-tugal, uma democratização do acesso às Universidades. Além dosfactos acima referidos, lembre-se que a informação estatísticamais recente de que se dispõe mostra, não só que a «selectividadesocial» do recrutamento estudantil português se revela, quandosubmetida a confronto internacional, muito estrita (mais de quatroquintos dos estudantes provêm de cerca de um décimo das famílias),como ainda que esse alto grau de rigorismo social da «selecção»universitária não é, nem exclusiva, nem sequer principalmenteimputável ao baixo nível de desenvolvimento económico do país.Aquela democratização pode, porém, ser alcançada, tanto atravésde uma política de atribuição de bolsas de estudo e de outrosbenefícios directos ou indirectos, como por meio de processos ins-titucionais a que adiante, em parte, aludiremos e que têm que vercom a própria organização das Universidades.

2.°) Posto isto, notemos que há três formas principais deacesso estudantil às Universidades. A primeira é a entrada livre:o estudante ingressa no ensino superior sem mais formalidadesdo que aquelas que exigem o certificado de estudos secundáriosou equivalente; a segunda é a entrada mediante exame de admis-são ou aptidão; consiste a terceira na entrada mediante concursopara o preenchimento de um número fixo de lugares, o denominado«numerus clausus».

Não é fácil pronunciarmo-nos sobre as vantagens ou desvanta-gens absolutas de qualquer destes regimes, que têm de ser apre-ciados segundo as circunstâncias nacionais (e até locais), segundoo desenvolvimento e o momento evolutivo das instituições univer-sitárias e segundo a composição das estruturas soeio-económicase culturais. Ã primeira vista, parece que o melhor método deadmissão seria a entrada livre, visto que, em face das enormesnecessidades em diplomados universitários que têm as sociedadesmodernas, não seriam demais todos aqueles que procurassem asUniversidades. Mas, de acordo com a experiência, a entrada livreapresenta graves inconvenientes, um dos quais consiste em povoaras instituições de ensino superior de indivíduos com capacidadeinsuficiente para levarem os seus estudos a bom termo.

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Quanto aos exames de admissão, as suas desvantagens têmsido apontadas por várias vezes no nosso país, e, tal como se pra-ticam, não são mais do que uma repetição desnecessária das dis-ciplinas estudadas no Liceu. Por outro lado, se se pretende, comessa prova, filtrar os mais capazes — segundo o termo consagrado:aqueles que têm «vocação» para determinada carreira ou activi-dade —, esse exame é quase inútil, visto que não se sabe, no estadoactual dos conhecimentos neste domínio, quais são as disposiçõespsicológico-temperamentais mais adequadas para um curso oupara outro, a não ser com um grau de generalidade tal que tornaa prova irrelevante.

Tome-se, como exemplo, o caso da Medicina. Quais são as qua-lidades de um «bom médico» ? Qual é a função do médico no mundomoderno, atento à multiplicidade das especializações, tais como aclínica geral, a radiologia, as análises clínicas, a medicina sani-tária, a cirurgia, a investigação e tantas outras? Que traço espe-cífico comum existe entre um cirurgião e um médico sanitarista,ou entre um analista e um clínico geral? Como se pode, dada estadisparidade de funções e atributos, encontrar um denominadorcomum que, à entrada do curso, defina a tão falada «vocaçãopara médico»? O que persiste ainda na mente do público, doslegisladores e até de alguns médicos, é a imagem do médico dopassado, do clínico' de família, polivalente, «topa-a-tudo», semespecialização, personagem hoje quase lendária, a não ser nasregiões subdesenvolvidas. Cremos que, para outros cursos, sepode dizer aproximadamente o mesmo e que, por consequência,o exame de admissão, ou qualquer exame do mesmo tipo, no estadoactual dos conhecimentos psicotécnicos, tem apenas uma impor-tância muito secundária.

Com respeito ao terceiro modo de selecção dos estudantes uni-versitários— o «numerus clausus» —, é, em alguns países, desig-nadamente na Inglaterra, um processo com os seus créditos firma-dos, como aliás também em França, nas «Grandes Écoles». O en-sino superior francês pratica os dois tipos de acesso — o acessolivre às Faculdades e o acesso mediante concurso às «GrandesÉcoles» —; e no entanto, mesmo em França, onde essa experiênciadupla está feita desde há largo tempo, ainda o acordo se nãoestabeleceu sobre as suas vantagens relativas. Sem dúvida que,na Inglaterra, o aproveitamento escolar é dos mais altos domundo, o que, em grande parte, os próprios Ingleses atribuemà rigorosa selecção feita no momento do ingresso. Não falta, porisso, quem recorra ao exemplo inglês para defender, como umdos remédios para as dificuldades com que as Universidades por-tuguesas se debatem, o estabelecimento do «numerus clausus».

Mas atente-se num ponto, pelo menos: para que este processode selecção vigore com eficiência e possa ser admitido, é impres-

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cíndível que os alunos excluídos Hufria Faculdade encontrem pos-sibilidades de acesso noutra Faculdade. Se assim não for, con-verte-se a instituição do «numerus clausus», não somente numobstáculo ao crescimento da população universitária e ao desen-volvimento cultural, científico e técnico do país, como tambémnuma selecção de carácter social e não intelectual. De facto, aspossibilidades económico-financeiras dos que podem repetir oupreparar concursos durante sucessivos anos acabam, por preva-lecer sobre os dotes de inteligência e cultura dos economicamentemenos favorecidos.

E com isto voltamos a um ponto em que tocámos anterior-mente, o qual vem a ser a estrutura particularmente favorável àconservação das «élites sociais», que a nossa Universidade man-tém. A composição social dos estudantes não representa de formanenhuma, como dissemos, nem a composição, nem o valor da popu-lação nacional, visto que é a imagem invertida dessa mesma popu-lação. As classes essencialmente representadas na Universidadesão as mais restritas e, digamos, as que ocupam os vértices sociais,ao passo que aquelas que estão na base, e que são naturalmenteas mais numerosas, têm uma participação insignificante ou nula.

A adopção do «numerus clausus», se fosse desacompanhadade uma amplificação progressiva do sistema universitário (me-diante sucessiva criação de novas Escolas), não poderia deixarde conduzir a um agravamento dessa discriminação social. O ca-rácter de instituição de classe da Universidade portuguesa acen-tuar-se-ia ainda mais.

3.°) Em consequência do que acabamos de expor, e que é so-mente um ligeiro apontamento sobre um tema que necessitaria,e necessita, de estudo aturado, podemos concluir, basicamente,que os sistemas de acesso estudantil à educação de nível universi-tário que se adoptem numa eventual reforma do ensino superiorportuguês, terão de ser cuidadosamente adaptados à diversidadedas necessidades, situações e perspectivas dos diferentes ramosde ensino e, de forma alguma, rígidos, uniformes, inflexíveiscomo se fossem bons ad aeternum. Efectivamente, uma determi-nada forma de acesso, aconselhável em certo ramo ou Escola,pode estar contra-indicada, em razão de circunstâncias peculiares,noutro sector ou noutra instituição. E é perfeitamente admissívelque, nuns casos, se pratique a entrada livre, noutros a entradamediante exame de aptidão e, noutros ainda, a admissão atravésde concurso.

A entrada livre pode, designadamente, justificar-se em secto-res ou instituições deliberadamente orientados para proporcionar,num primeiro escalão de ensino, uma formação superior a amplas

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«massas» de alunos, a partir das quais se venham depois a selec-cionar, internamente, os indivíduos comprovadamente aptos paraum padrão mais alto de qualificações técnicas ou científicas.

No extremo oposto, o «numerus clausus», com a admissão dealunos mediante concurso, é susceptível de se revelar indispensávelou conveniente, ao menos nas duas seguintes eventualidades*a) quando a dimensão da população discente de uma dada Escolaja atingiu proporções tais que importa evitar, sob pena de deterio-ração institucional e pedagógica, a continuação do seu crescimento(o número dos alunos de cada instituição não pode aumentar inde-finidamente) ; b) quando a procura de educação superior em certo {ramo corre o risco de exceder a tal ponto a capacidade de absorção §dos diplomados pelo respectivo mercado dos empregos, que per- fmitir o incremento ilimitado das matrículas significaria consentirque um forte contingente de estudantes entrasse por vias semsaída. Contudo, no primeiro caso, e conforme já notámos, a in-trodução do «numerus clausus» teria de ser concomitante com acriação de novas Escolas paralelas. No segundo, seria impres-cindível acautelar institucionalmente o sistema, quer contra o«malthusianismo» corporativo, tendente a manter rara a ofertade licenciados e anormalmente altas as correspondentes remune-rações, quer contra o possível cerceamento, por outras «classesprofissionais», do desenvolvimento de novas categorias de espe-cialistas universitários, potencialmente concorrentes a posiçõespor aquelas normalmente ocupadas.

Finalmente, quanto aos exames de aptidão, em princípio deve-riam oferecer a vantagem de evitar, como dissemos, que as insti-tuições de ensino superior se povoem de indivíduos com capaci-dade insuficiente para levarem os seus estudos a bom termo.Pensamos, porém, que, tais como estão concebidos e se praticamem Portugal, não desempenham efectivamente tal função. Elimi-nam, certamente, uma parte considerável dos candidatos a estu-dantes universitários que a lei obriga a sujeitarem-se a essas pro-vas; mas não oferecem qualquer garantia de que os não-eliminadossejam «aptos» (ou sequer «os mais aptos») para os estudos su-periores.

Independentemente, pois, das decisões que hajam de ser toma-das acerca dos ramos de ensino ou Escolas onde estes exames devammanter-se, o problema de fundo que suscitam é o da sua próprianatureza. A exemplo do que fazem as Universidades estrangeirasonde este assunto tem sido atentamente considerado, deveriam dei-xar de consistir numa simples e inútil re-verificação de aproveita-mento escolar, para assumirem o aspecto de uma avaliação da capa-cidade geral e da maturidade dos estudantes. Conviria, por conse-guinte, antes do mais, conhecer em pormenor os métodos postos

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em prática e os resultados obtidos, neste domínio, por essas Uni-versidades.

3. As Universidades e a vida nacional

a) O desfasamento entre a Universidade e a sociedade

A conexão da Universidade com a vida nacional tem sidoobjecto de estudo e crítica na generalidade dos países. O factoessencial consiste no frequente enquistamento da Universidade noseio de uma sociedade em evolução e com exigências múltiplas.Esta assincronia entre uma instituição semi-parada e um meiosocial em transformação representa seguramente, como vimosacima, uma das razões dos movimentos estudantis actuais.

As Universidades, e nunca é demais remontar à Históriaquando nos serve para esclarecer o presente, são instituições quenasceram e se desenvolveram desde a Idade Média, atingindoo apogeu e as suas formas actuais no período de ascensão daburguesia. Corresponderam, portanto, e adequadamente, em certaépoca, às necessidades de uma classe social em plena expansão. Assuas estruturas, o quadro de Faculdades, os licenciados que lan-çavam para a vida activa harmonizaram-se com formas de culturae de educação que desde há alguns anos entraram em crise.Nestas condições, por um lado as Universidades continuaram, porum fenómeno de inércia institucional, a «produzir» licenciados quecorrespondem a exigências em vias de declínio e, por outro lado,não preparam os investigadores e especialistas de que a vida mo-derna carece de maneira rapidamente progressiva.

Em resultado daqueles factos, certas Universidades tiveram etêm extrema dificuldade em corresponder às necessidades e aosestímulos que lhes vêm do exterior e, em razão disso, muitas delassepararam-se da vida social que as circunda. Um exemplo éo das Faculdades de Medicina, que recebem os estudantes que asprocuram, formando um certo número de médicos, sem que elasmesmas tenham conhecimento das necessidades médico-sanitáriasnacionais.

As Faculdades de Medicina ignoram (e a responsabilidadenão lhes cabe, mas ao sistema em que estão envolvidas) as neces-sidades reais do país, por exemplo em medicina de saúde pública,em especialistas, em clínicos gerais, etc. Estão sujeitas, comoaliás as outras, a um certo mecanismo de oferta e procura, massem nenhum processo de ajustamento às exigências positivas daSaúde enquanto serviço social. Parece, portanto, e para só falardeste ponto, que deveria ser estabelecida, numa futura reforma,

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â íígaçao orgânica, intrínseca, entre as instituições que têm pòffim formar médicos e as instituições que os utilizam — como aSaúde, a Assistência e a Previdência.

Outro aspecto da questão é o seguinte: sabemos hoje que ocurso ministrado por estas Faculdades não é bastante para que olicenciado possa desempenhar todas as funções que a medicinamoderna reclama. O curso médico, como já se tem dito, deve serconsiderado apenas como uma introdução à vida profissional e, deforma nenhuma, como o princípio e o fim da preparação para avida clínica. É útil chamar a atenção para a expressão corrente«formado». Este termo, «formado», como sinónimo de completo, depronto para a actividade clinica, é uma sobrevivência do passado.

Na verdade, o médico, ao concluir o curso, não está formado,está apenas licenciado. Hoje, as Faculdades de Medicina devemprolongar o seu ensino e a prática médica para além dos anosescolares, nos chamados cursos pós-graduados, que constituem aprimeira fase de uma educação médica permanente. Pode alegar-seque as Faculdades de Medicina já ministram cursos pós-gradua-cios; mas o de que se trata não é tanto desses cursos feitos deuma forma ocasional e — por que não dizê-lo?—ao sabor dainiciativa de alguns professores ou directores de serviços, masde cursos que venham a fazer parte da própria estrutura do en-sino médico, estando incluídos, como hoje está o curso normal,nos programas do ensino superior. Além disso, os cursos pós-gra-duados têm outras funções — porventura mais importantes doque o aperfeiçoamento profissional: preparam especialistas de di-ferentes ramos e fornecem a preparação para os graus académicosmaâs elevados, visto que presentemente não basta a graduação quese obtém no curso tradicional de Medicina, sendo necessário quehaja uma diferenciação para além dele, em que a competênciacientífica e técnica seja consagrada por um grau supra-escolar.

Tomámos o exemplo das Faculdades de Medicina, não somentepor ser o que é melhor conhecido por um dos autores deste texto,mas também porque os médicos são talvez os universitários quemais frequentemente têm discutido, em Portugal, o ensino superiore as suas instituições. Não cremos, todavia, que fosse difícil dis-cernir, noutros sectores, análogas situações de desfasamento edesarticulação entre as Universidades e a vida social.

Algumas dessas situações têm vindo, aliás, desde há certotempo, a ser progressivamente diagnosticadas. Para não citar se-não um caso, relembre-se que em 1962 se reuniu na capital, comgrande afluência de participantes e larga repercussão, o Congressodo Ensino de Engenharia, onde vozes particularmente autorizadasfizeram ressaltar com clareza o desacordo existente entre, de umlado, as concepções e os esquemas universitários do referido en-sino, e, do outro, as condições do exercício das profissões de

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engenheiro e as exigências do desenvolvimento nacional. No en-tanto, nenhuma alteração foi até agora introduzida nos cursosde Engenharia.

b) Os problemas da autonomia universitária e da adminis-tração pública do ensino superior

1.°) Os dois exemplos citados — o da Medicina e o da Enge-nharia— são extremamente significativos dos vigorosos obstá-culos que, de dentro ou de fora das Universidades, não só dificul-tam a sua adaptação às transformações da vida económica esocial, como as impedem de representar um eficiente «propulsor»dessas mesmas transformações. Problema crucial de qualquer re-forma universitária que se proponha conjugar a evolução dasinstituições do ensino superior com os requisitos do progressoeconómico, social e cultural, será exactamente o da eliminaçãode tais obstáculos, ou melhor: o da instauração, nas Universidades,de condições que permitam e assegurem, em toda a medida dopossível, um processo evolutivo criador.

Em Portugal, como noutros países, este problema tem sidofrequentemente identificado com o da autonomia universitária.Alega-se que, uma vez libertas da estrita subordinação ao Estadoa que se acham sujeitas (tanto no domínio administrativo e finan-ceiro, como nas formas do recrutamento dos professores e dosestudantes, na programação dos cursos e na constituição dos ór-gãos directivos), as Universidades revelariam plenamente a capa-cidade adaptativa e inovadora que lhes é inerente. E acrescenta-seque esta capacidade só não transparece, nas actuais circunstân-cias, por se encontrar quase inteiramente ilaqueada pela totalcentralização das decisões fundamentais em órgãos políticos eadministrativos exteriores ao sistema universitário.

Evidentemente, o centralismo estatal representa, por simesmo, um importante elemento de rigidez e lentidão. Os seusefeitos serão, como é óbvio, tanto mais contraditórios com a indis-pensável flexibilidade das instituições do ensino superior e coma sua adaptabilidade ao desenvolvimento económico e à mudançasócio-cultural, quanto mais burocratizada, lenta e rígida se mani-festar a própria Administração de que as Universidades dependem.

Na sociedade portuguesa, as situações e os problemas res-peitantes à educação em geral e ao ensino universitário em par-ticular, pertencem ao número dos que mais rapidamente se têmvindo a modificar e a ganhar vulto. Entretanto, a orgânica e osmétodos da Administração Pública, neste sector, praticamente

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não acusaram, no decurso das últimas décadas, qualquer alteraçãoassinalável, apesar de ter sido criado,~mas como órgão consultivoe marginal, o Gabinete de Estudos e Planeamento da Acção Edu-cativa, Por tal motivo e em virtude do aludido e forte centra-lismo dos poderes legais de decisão, aquela orgânica e aquelesmétodos não puderam deixar de sofrer um processo de crescente«burocratização», transformando-se progressivamente, pela pró-pria força da situação de desfasamento que se foi avolumando,num pesado factor de imobilismo institucional, ao nível do sistemade ensino.

Uma remodelação profunda das estruturas, dimensões, orien-tações e formas de acção do departamento da Educação Nacionalparece-nos, por conseguinte, constituir um pressuposto impres-cindível de uma política verdadeiramente modernizadora em ma-téria de ensino, capaz de promover uma reconversão universitáriaadequada às condições e aos imperativos do mundo em que vive-mos. Esse departamento necessita de ser dotado de um conjuntode órgãos convenientemente dimensionados, equipados e articula-dos, de tal modo que, ao contrário do que presentemente sucede,se lhe torne possível, a cada passo, estudar, prever, definir, deci-dir e fazer executar com eficiência, critérios modernos e continui-dade, não apenas as grandes reformas, mas igualmente as inces-santes adaptações, que doravante se impõem.

A modernização do ensino e das suas instituições, que teráde ser permanente, subentende, a nosso ver, a do Ministério supe-riormente responsável pela acção educativa.

2.°) O esquema das relações entre as Universidades e osórgãos da Administração dos quais dependem é, precisamente, umdos pontos a rever, na linha do que acabamos de expor. E, logi-camente, é aqui que surge e se enquadra o problema da autonomia,objecto de persistentes reivindicações jamais atendidas.

Em que medida deverão as Universidades (do Estado, enten-da-se) ser autónomas e, portanto, auto-governar-se ? A questãoreveste-se de maior complexidade do que, por vezes, se supõe.

Compreende-se que um certo número de universitários (pro-fessores ou estudantes), particularmente desejosos de mudançase por isso agudamente sensíveis ao centralismo imobilizador a quenos referimos, sejam espontaneamente induzidos a pensar quereside nele a causa única da «cristalização» universitária em for-mas que desejariam ver alteradas. De facto, a própria intensidadeda centralização e dos seus efeitos estagnantes tem ocultado, emPortugal (ou melhor dizendo: tem impedido de se revelarem),outros obstáculos, não menos consideráveis, à evolução das ins-tituições universitárias.

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Remontando de novo à História, porque uma vez mais nosajuda a iluminar o presente, importa lembrar que, no- passado,todas as reformas universitárias de fundo—tanto em Portugalcomo noutros países (mas mais especialmente nas nações lati-nas) — tiveram de ser impostas às Universidades, contra a suadeclarada oposição, por um Poder exterior e mais forte, na maiorparte dos casos o Poder Público.

Em nossos dias, o modo como se tem desenvolvido e aplicadoa reforma francesa de 1968 (Lei Faure) — reforma acerca da qualse pode dizer que foi exigida, não só às. Universidades, comotambém ao próprio Estado, pelos estudantes — é igualmente es-clarecedor a respeito das poderosas resistências que, no seio dosorganismos universitários tradicionais, tendem a impedir inova-ções profundas. Uma vez quebrada a unidade e reduzido o vigordo movimento contestativo estudantil, assistiu-se em França, mor-mente em determinados sectores, como os do Direito, da Medicinae das Ciências, a surpreendentes e significativos fenómenos de res-tauração (sob novas aparências) de antigas estruturas e de situa-ções arcaicas, que a «explosão de Maio» momentaneamente elimi-nara. O princípio da autonomia universitária, consagrado pela LeiFaure, facultou, exactamente, a estas «acções de recuperação»,um instrumento jurídico de grande eficácia.

Julgamos, pois, que a História e a experiência contemporâneasão suficientemente demonstrativas de que as instituições univer-sitárias tradicionais, designadamente as do tipo napoleónico-latino,não se auto-reformam, limitando-se a pedir ou consentir altera-ções circunscritas, que não afectam o seu carácter essencial.

Somos assim levados a concluir que a autonomia não pode serconsiderada como o adequado ponto de partida — ou a alavanca —de uma autêntica reforma estrutural do sistema universitário,nomeadamente no nosso país. Por outras palavras: não cremosque a necessária reforma da Universidade seja viável enquantoauto-reforma.

3.°) O que dissemos não implica, no entanto, que 01 actualregime das relações entre o departamento da Educação Nacionale as Universidades não deva ser objecto de um certo número demodificações, precisamente no sentido de uma maior liberdadee facilitação da iniciativa universitária, mesmo antes de qualquerreforma global.

Mencionando apenas um exemplo, aliás clamoroso, parece evi-dente que simples revisões dos planos de cursos já instituídos eaté, em determinados casos, a criação de novos cursos em Escolaspré-existentes, não deveriam estar sujeitas ao complicado e mo-roso processo administrativo-político que, de acordo com a legis-lação em vigor, tem de ser forçosamente seguido. Neste como

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noutros domínios, medidas legislativas — cuja elaboração não ofe-rece, supomos, particular dificuldade — poderiam (e deveriam)introduzir importantes elementos de simplificação administrativa,de flexibilidade institucional e de relativa autonomia no funciona-mento do sistema de ensino superior de que o país presentementedispõe. Sob este aspecto, as próprias Universidades terão segura-mente valiosas propostas e sugestões a fazer — e, de resto, quantoa certos pontos, já não seria a primeira vez que as exporiam.

Por outro lado, a autonomia — convenientemente conciliadacom um controle estadual maleável, exercido através de órgãoseficientes e modernizados—é uma característica necessária dequalquer Universidade progressiva, capaz de se manter atenta ereceptiva às solicitações do movimento científico, tecnológico, eco-nómico e social e facilmente adaptável à acelerada evolução con-temporânea da Cultura, dos conhecimentos e dos métodos de tra-balho intelectual. Deste modo, não podendo embora ser adoptadacomo ponto de partida para a reforma universitária, a autonomiadeve constituir um objectivo a atingir mediante essa mesma re-forma.

O essencial é que as estruturas internas, as formas de orga-nização e gestão e as condições gerais de funcionamento das insti-tuições' universitárias remodeladas sejam tais que naturalmenteas levem a servir-se da sua própria autonomia, não para se isola-rem da vida social e cultural, imobilizando-se perante o mo-vimento histórico, mas, pelo contrário, para mais estreitamentese ligarem à sociedade, participando activamente na sua trans-formação e transformando-se a si mesmas, a fim de melhor seadaptarem às exigências do desenvolvimento social. Só a insti-tuições inovadoras a autonomia servirá como instrumento de ino-vação. Em instituições de tendência conservadora, representaria,essencialmente, um instrumento de conservação.

Tudo isto significa, em nosso entender, que o problema daautonomia não pode ser correctamente equacionado' senão no qua-dro de uma discussão de âmbito mais geral, com maior alcancee efectivamente prioritária, acerca, por um lado, do modelo insti-tucional dos organismos universitários, e, por outro, das formas departicipação no governo das Universidades das principais catego-rias interessadas no ensino superior: professores, assistentes, alu-nos, investigadores e empregadores de diplomados.

Quanto ao primeiro ponto, parece-nos incontroverso, por mo-tivos que adiante indicaremos, que o modelo napoleónico-latinotradicional tem de ser progressivamente substituído por outro que,nas suas linhas gerais, corresponda ao das modernas e dinâmicasUniversidades anglo-saxónicas.

Quanto ao segundo, limitar-nos-emos a acrescentar que, emnossa opinião, a capacidade criadora e renovadora das instituições

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universitárias só ficará assegurada, desde que, nos seus órgãosde decisão, os elementos mais propensos a inovações— os docentesjovens, os estudantes, os investigadores, etc. — tenham represen-tação que lhes permita exercer efectiva influência. Apenas talinfluência poderá compensar as resistências à mudança e as ten-dências isolacionistas que normalmente se desenvolvem nos gran-des aparelhos institucionais, sobretudo quando os sistemas socio--políticos que os envolvem apresentam acentuadas característicasde rigidez e de concentração do poder.

4. Universidade, desenvolvimento e evolução sócio-cultural

A desconexão entre a Universidade e a vida social resulta,como vimos, do frequente enquistamento da instituição universi-tária no seio de uma sociedade em transformação e com necessida-des que progressivamente se vão multiplicando e diversificando.

Desenvolveremos seguidamente esta ideia, destacando quatropontos fundamentais: o ensino superior científico e tecnológico;o ensino das Ciências da economia, da administração e da socie-dade; os problemas decorrentes da rápida obsolescência dos conhe-cimentos e da expansão da procura de educação superior; e asincidências sobre os sistemas universitários da crescente hete-rogeneidade social dessa mesma procura.

a) O ensino superior científico e tecnológico

1.°) O progresso científico e tecnológico encontra-se cada vezmais estreitamente associado ao desenvolvimento socio-económico.Qualquer país que, ao invés de o impulsionar prioritariamente, oignore ou descure, votar-se-á seguramente a uma condição de irre-mediável inferioridade e dependência: o movimento inovador ecriador revela-se hoje a tal ponto revolucionário neste domínio,que às suas estruturas de produção só através de uma subordina-ção crescente a economias estrangeiras científica e tecnicamenteprogressivas se poderão abrir perspectivas de crescimento a longoprazo. Um desenvolvimento será decerto possível, mas custará aperda da capacidade de manter ou edificar uma independência polí-tica real.

Neste ponto crucial, a situação portuguesa é muito desfavo-rável. A proporção do pessoal superiormente qualificado (doponto de vista científico e técnico), no conjunto da populaçãoactiva, é comprovadamente exígua. O número dos investigadores

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e engenheiros ocupados em tarefas de «investigação e desenvolvi-mento» é diminuto, relativamente à dimensão social do pais.

O volume anual das licenciaturas nos cursos científicos etecnológicos, além de particularmente baixo segundo os padrõeseuropeus, não aumenta regularmente e tem mesmo estacionado ouregredido, ao longo de sucessivos anos. A relação entre os quan-titativos dos alunos que concluem esses cursos e os dos que nelesse inscrevem é anormalmente fraca.

A feminização intensiva das Faculdades de Ciências, não sódemonstra que as carreiras científicas não atraem os homens emPortugal, como tende a transformar essas instituições em Escolasde preparação para o magistério secundário.

Os estudos de pós-graduação praticamente não existem, salvosob a forma de raros doutoramentos arcaicamente regulamenta-dos, geralmente autodidácticos e individualmente preparados.Mais de metade desses doutoramentos respeitam, aliás, à Medicina,sector onde o valor profissional do título de doutor estimula, maisdo que nos outros ramos científicos e técnicos, a sua realizaçãoe onde o binómio Faculdade-Hospital Escolar facilita, em muitoscasos, a sua preparação.

Cursos de «reciclagem» ou de «refrescamento», só esporadica-mente se organizam. Os próprios cursos de licenciatura obedecema esquemas antiquados que obrigam desnecessariamente todos osalunos a efectuar estudos longos e apenas proporcionam um lequemuito restrito de opções, sem conduzirem propriamente a umaespecialização.

A pedagogia, essencialmente escolástica e mnemónica, nãoexercita as capacidades inventivas dos estudantes. A populaçãoescolar, enquadrada por um corpo docente escasso, não exclu-sivamente dedicado à investigação e ao ensino, acha-se privadadas orientações e dos estímulos que uma relação directa e fre-quente e um trabalho em comum com os professores lhe poderiamoferecer.

2.°) Esta situação — que se encontra claramente descrita emestudos publicados — exige uma reconversão geral das condiçõesque informam, no nosso país, o ensino superior científico e tecno-lógico. Não cremos seja excessivo pensar que o futuro da sociedadeportuguesa está pendente, em medida muito considerável, dasdecisões que venham a tomar-se neste campo. Aliás, já o estevede decisões semelhantes, em séculos transactos, quando as forçasdominantes no país e na Universidade, primeiro obstaram ao de-senvolvimento das expressões então modernas do Conhecimentoe da Cultura, e depois adoptaram as formas institucionais menosaptas para as promover e transmitir. Foi essa porventura uma dasrazões historicamente mais decisivas do atraso em que o país hoje

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se encontra, Em nossos dias, opções análogas teriam certamenteconsequências ainda mais graves.

Em contrário do que acabamos de expor, argumenta-se, porvezes, que já existem em Portugal excedentes de licenciados emcertos ramos das Ciências e da Tecnologia, onde se verificam difi-culdades de colocação no mercado dos empregos. Dada, porém,a exiguidade internacionalmente comprovada do escol científicoe técnico português, esses excedentes, a existirem de facto, só po-dem ter um de dois significados, senão ambos. Ou resultam deuma simples discordância entre, por um lado, a estrutura quanti-tativa e/ou qualitativa da oferta de diplomados e, por outro, acomposição da respectiva procura — e, neste caso, adequadas me-didas de política e de reforma universitária poderão lograr ummelhor ajustamento, porquanto aquela estrutura é largamentedeterminada pela do sistema universitário e pelas suasí condiçõesde funcionamento. Ou têm origem na incapacidade das própriasestruturas económicas, culturais e institucionais do país para rece-ber e ocupar osi agentes qualificados de que o desenvolvimentonacional tem premente necessidade — e, nesta hipótese, estar-se-áperante uma situação de atraso estrutural global, que se deveráprocurar vencer mediante um conjunto de reformas modernizantese convergentes em vários sectores, um dos quais será exactamenteo do ensino universitário. Voltaremos a tratar deste último pontona parte final.

b) O ensino das Ciênaias da economia, da administraçãoe da sociedade

Também no domínio das Ciências Económicas e Sociais, com-preendendo as Ciências e as Técnicas da Administração, são indis-pensáveis alterações profundas nos esquemas tradicionais do en-sino superior.

1.°) O desenvolvimento necessita de ser gerido — isto é: pro-gramado e administrado — e requer, portanto, especialistas emgestão, tanto ao nível das empresas, como ao nível da sociedade.As modernas unidades de produção não podem prescindir dosinstrumentos analíticos e provisionais, dos modelos de organizaçãoe dos métodos de gestão adequados à diferente natureza e ampli-tude dos problemas que têm de enfrentar na economia concorren-cial contemporânea, baseada na inovação e no progresso tecnoló-gico. Por seu turno, a Administração Pública, agora agente centraldo desenvolvimento (sobretudo nas sociedades pouco industriali-

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zadas) tem igualmente de crescer e de se modernizar, afeiçoandoas suas estruturas, a sua orgânica e os seus processos à novae primordial responsabilidade que, perante o desenvolvimento, lhecabe. Dirigentes e técnicos modernos, capazes de gerir com dina-mismo e eficácia organizações públicas e privadas modernas, repre-sentam, pois, uma condição estratégica do progresso económicoe social. Em todos os países desenvolvidos — mas presentementejá não só nesses —, existem, por isso, instituições e cursos univer-sitários ou de nível equivalente (quando não mais elevado), que sedestinam à sua preparação.

Por outro lado, mesmo quando não (ou pouco) se desenvol-vem, as sociedades modificam-se, complexificam-se e relativizam--se hoje extraordinariamente. Daqui resulta que adquirem a neces-sidade de se analisarem, compreenderem e discutirem a si própriase de preverem e controlarem, quanto possível, o processo de trans-formações a que se encontram forçosamente sujeitas. As CiênciasEconómicas e Sociais vêm precisamente responder a esta necessi-dade, podendo servir, quer como instrumento de gestão, quer comorecurso para a crítica social. De todo o modo, são indispensáveis,porque a opacidade social, que elas procuram romper, constitui,só por si, no nosso tempo, um pesado obstáculo ao desenvolvimento.É tão ampla e funda a mudança de ideias, atitudes, comportamen-tos, organizações e estruturas que o desenvolvimento subentendee suscita, que qualquer sociedade onde não se verifique umatomada de consciência permanente e lúcida de si mesima, da suasituação e evolução e das alternativas que se lhe oferecem, correo risco de tropeçar repetidamente em dificuldades excessivas).Queremos aludir, nomeadamente, às dificuldades que podem resul-tar, sieja de os seus problemas só virem a ser objecto de suficienteatenção quando já adquiriram demasiado vulto e complexidade,seja de o país não dispor, em tempo oportuno, dos especialistase dos métodos apropriados para enfrentar esses mesmos proble-mas e para, resolvendo-os, assumir a responsabilidade da constru-ção do steu destino nacional,

2.°) Nas Universidades tradicionais, o lugar que hoje devepertencer às Ciências da Economia, da Administração e da Socie-dade era preenchido pelas Faculdades de Direito, cujos diplomadosexerciam (e em certos países continuam a exercer) funções nãoapenas de peritos no conhecimento, interpretação e aplicação dasleis, mas de dirigentes e quadros superiores das mais diversasactividades. Em Portugal, foi possível criar — além dessasi Facul-dades, se bem que fora das Universidades que as incluíam — duasEscolas universitárias de Economia e uma de AdministraçãoUltramarina.

Preparando directamente para o exercício de funções públicas

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e semi-públicas na Metrópole, mas num sector demasiado circuns-crito, só existe, um organismo docente, o Instituto de Estudos So-ciais, cujo estatuto se mantém indefinido e inferiorizado e cujaestruturação se conserva incipiente e estagnada há vários anos.Por iniciativa particular, surgiram outras instituições, como o Ins-tituto de Estudos Superiores de Évora e a Escola Superior deOrganização Científica do Trabalho, que visam a formação dequadros empresariais, mas que não podem, só por si, dar respostacabal à necessidade de preparar dirigentes para a economia portu-guesa. Também a não dão, por ora, as mencionadas Faculdadesde Economia, quer porque não estão organicamente dispostas parao efeito, quer porque não produzem senão um número demasiadorestrito de diplomados. A respeito destas Faculdades, verifica-se,de resto, presentemente, o paradoxo de — estando concebidas prin-cipalmente como Escolas de formação de especialistas em proble-mas de economia nacional — encontrarem, no entanto, o seu maiormercado de colocações no sector privado.

Fora do campo da Economia, não existe, ao nível do sistemaeducacional estadual, qualquer ensino especificamente programadono sentido de formar especialistas e investigadores noutras Ciên-cias Sociais, como a Demografia, a Sociologia, a Psicologia, etc.E todavia, já se manifesta no país uma procura de pessoal quali-ficado nestes domínios.

No conjunto, a actual situação do ensino das Ciências Econó-micas e Sociais parece, pois, ainda menos favorável em Portugalque a do ensino superior científico e tecnológico. Aliás, as obser-vações críticas que anteriormente fizemos acerca deste últimoaplicam-se igualmente ao primeiro, sem grandes alterações. Entre-tanto, comparações internacionais recentemente efectuadas mos-tram que as Ciências Económicas e Sociais são objecto, no nossopaís, de uma procura de educação pós-secundária especialmenteintensa; contudo, a percentagem dos estudantes universitários por-tugueses inscritos em cursos deste ramo é, internacionalmente,muito fraca. Um tal contraste é manifestamente expressivo de queo sistema universitário português não corresponde, neste campo,às necessidades e solicitações1 do meio social que o envolve.

3.°) Uma melhoria significativa desta situação pressupõe quese adoptem moldes institucionais diferentes dos que vigoram nasUniversidades napoleónico-latinas.

Focando apenas o problema das Escolas de AdministraçãoPública ou de Gestão Empresarial, é evidente que, se fossemconstituídas à imagem das Faculdades tradicionais, não seriaminteiramente inúteis. Faltar-lhes-ia, no entanto, por diversos mo-tivos, a agilidade indispensável para poderem desempenhar satis-fatoriamente as funções que devem assumir.

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Em instituições desta natureza, tão «normal» será o estu-dante jovem e sem profissão, como o aluno adulto e/ou prof issio-nalizado. ;É manifesto, porém, que os programas, os horários, osmétodos pedagógicos dos cursos destinados a indivíduos destasegunda categoria (e pense-se, por exemplo, nos quadros médiosem vias de promoção, ou nos dirigentes, de grandes» organizações)não podem ser decalcados sobre os dos cursos essencialmente diri-gidos aos do primeiro grupo. Por outro lado, em não poucas dasmatérias a ensinar, a competência depende muito mais do «curri-culum» profissional do que dos títulos académicos. Desta forma,os processos universitários clássicos de acesso à função docenteimpediriam, com frequência, o recrutamento dos professores maishabilitados.

Cursos vespertinos, cursos breves e intensivos de especiali-zação ou actualização e cursos por correspondência são correntesem Escolas de: Administração. Através deles, uma parte da popu-lação activa que não pode submeter-se à escolaridade normal dasFaculdades tradicionais ou já ultrapassou a idade habitual dosestudos, logra beneficiar de oportunidades de formação superiorque, noutras condições, lhe estariam vedadas. Simplesmente: cur-sos desta índole só são possíveis se, nas instituições onde funcio-nam, uma parcela muito considerável do corpo docente trabalhaem regime de plena ocupação e se as próprias instituições gozamde autonomia para — designadamente por meio de convénios comoutros organismos públicos ou privados — definir e rever progra-mas, angariar e gerir fundos, contratar docentes temporários, etc.

Acresce que, em matérias de Administração, convém que o en-sino «intra-muros» se articule e conjugue com experiências pro-fissionais. Isto supõe que as respectivas Escolas, não só possuammeios materiais e humanos apropriados para organizar e controlarestágios dos seus alunos, como mantenham relações estreitas e con-tínuas com as organizações onde os estágios devam ter lugar.Nenhum destes requisitos se verifica nas Faculdades tradicionais,a não ser, até certo ponto, nas de Medicina.

c) Problemas decorrentes da rápida obsolescência dos conhe-cimentos e da expansão da procura de educação superior

Para além das incidências especialmente referidas ao ensinosuperior científico e tecnológico e das Ciências Económicas e So-ciais, a que acabamos de aludir, a evolução contemporânea da so-ciedade e da cultura põe, porém, às Universidades um certo númerode problemas novos de ordem mais geral. Por ser fundamental

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levá-los em conta em qualquer reforma universitária, convém quesejam mencionados, nesta alínea e na que se lhe segue.

1.°) Como dissemos atrás e voltamos a repetir, porque se tratade um ponto muito importante, em nossos dias os conhecimentos,as técnicas e as qualificações científicas e profissionais estão su-jeitos a um processo de constantes revisões e mutações. A obsoles-cência das formações e competências adquiridas em certo momentoda vida tende, assim, a acentuar-se com extraordinária e crescenterapidez. Passou definitivamente o tempo em que o que se aprendiana idade juvenil era válido para a vida inteira. Daqui resulta queo ensino superior tem de ser hoje concebido em novos termos, quelargamente contrariam aqueles que foram tradicionalmente adop-tados como pressupostos da sua organização, mormente nas Uni-versidade napoleónico-latinas.

Em primeiro lugar, as Universidades não podem continuara ser pensadas como instituições que se destinam, essencialmente,à educação de jovens. Os adultos já nelas formados, mas cujosconhecimentos se vão rapidamente desactualizando, têm igual-mente de ser assumidos como objecto normal da sua acção edu-cativa. Numa Universidade adaptada às exigências do nosso tempo,cursos de «reciclagem» ou de «refrescamento», em vez de se limita-rem a iniciativas esporádicas mais ou menos bem sucedidas, devemrepresentar uma forma institucionalizada e regular de «educaçãopermanente». Por outras palavras: de Universidades concebidase ordenadas para educar jovens, tem de passar-se a Universidadesdirigidas à educação dos indivíduos ao longo de toda a sua vidaactiva.

Por outro lado, a efemeridade das formações e competênciasobriga a que a aprendizagem fundamental que o estudante tem defazer seja a da capacidade de sucessivamente re-aprender e, porconseguinte, a da correlativa aptidão para se libertar do que pre-cedentemente haja aprendido e se tenha entretanto desactualizado.As implicações pedagógicas e institucionais desta nova perspec-tiva do ensino universitário são profundas. Designadamente, a ne-cessidade de associar o ensino à investigação torna-se imperiosa,porque é através do contacto com o esforço de elaboração do conhe-cimento e mediante participação em trabalhos de pesquisa quemais eficazmente se pode desenvolver aquela capacidade, hojeessencial, de analisar, criticar, rever, re-inventar, re-aprender.

Finalmente, o progresso das Ciências e a evolução das qualifi-cações profissionais fazem-se, na actualidade, em muito largamedida, nos terrenos fronteiriços inter-disciplinares. Entre a Me-dicina e a Química, como entre a Engenharia e a Economia, a Lin-guística e a Matemática, a Psicologia e a Biologia, a Sociologia

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e a Arquitectura, etc, uma Universidade moderna carece de dispor,tanto para fins de investigação, como para objectivos de ensino,de toda uma rede de múltiplas ligações e colaborações inter-depar-tamentais instituídas. Um esquema orgânico desta natureza — que,aliás, deve exprimir-se na própria forma arquitectónica, assimcomo na implantação territorial concentrada (mas não urbanisti-camente segregada) dos edifícios universitários — é exactamenteo oposto do que modela as nossas Universidades. Como se sabe,estas compõem-se de Faculdades estanques e auto-suficientes,física e institucionalmente isoladas umas das outras.

2.°) Novos são também os problemas que derivam do aumentoespectacular da procura de educação superior.

De cada classe de idades, é cada vez maior a percentagem dosjovens que pretendem ter acesso à Universidade. As mulheres,outrora inteiramente arredadas da educação superior, tendem aprocurá-la em proporções sucessivamente mais próximas das doshomens. E, a par dos jovens sem responsabilidades familiares eprofissionais, outros indivíduos aspiram a adquirir instrução pós-• secundária, sejam adultos que não fizeram estudos avançados nasua juventude, sejam jovens a quem os respectivos recursos nãopermitiram retardar para além da adolescência a entrada na vidaactiva.

Verifica-se, deste modo, um vigoroso crescimento das popu-lações escolares, que suscita, primeiramente, a necessidade de am-pliar os sistemas universitários nacionais, mediante fundação denovas Escolas e novas Universidades, Por um lado, como já dis-semos, o volume dos alunos inscritos em cada Escola ou cursonão pode subir indefinidamente, sob pena de insuportável conges-tionamento. Por outro lado, a experiência demonstra que, a partirde certa dimensão — que, por exemplo, o «complexo universitário»de Lisboa já atingiu—, o funcionamento das Universidades tor-na-se demasiado difícil e acusa sensíveis reduções de eficiência.As Universidades gigantescas têm-se revelado geralmente inde-sejáveis, sendo esse um dos motivos por que presentemente seassiste, em muitos países, à rápida multiplicação do número dasinstituições universitárias.

Simultaneamente, a tradicional concepção elitista da Univer-sidade tem de ceder ante uma concepção mais democrática de Uni-versidade de massa. É nesta linha, que se insere, em especial, a ten-dência de diversas reformas universitárias recentes para diminuira duração curricular da maior parte dos cursos de licenciatura.De facto, não se trata propriamente de abreviar os estudos superio-res, mas de distinguir dois escalões na educação universitária: umprimeiro escalão, acessível à grande maioria dos estudantes e san-

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cionado por um diploma que assegura uma qualificação social-mente válida e útil, e um segundo escalão, destinado aos alunosmanifestamente aptos para o prosseguimento de estudos mais exi-gentes e para o exercício das funções profissionais ou científicasmais complexas.

Neste aspecto, o que actualmente sucede, em certas Faculda-des tradicionais, é que, invadidas por uma população escolar muitomaior do que aquela para que foram previstas, sacrificam nume-rosos alunos, desde os primeiros anos dos respectivos cursos,a determinadas exigências básicas de um ensino de élite que,todavia, não estão em condições de proporcionar. Faltam-lhes,para o efeito, não só professores em número suficiente e ocupadosem regime de exclusividade, como métodos pedagógicos adequados,actividades de pesquisa científica e cursos de pós-graduação.

Em Portugal, cerca de dois terços dos estudantes que se ma-triculam nas Universidades não chegam a concluir os seus cursos.As dimensões! deste enorme desperdício de recursos humanos vãoprovavelmente aumentar ainda mais, porquanto a produtividadeuniversitária tem decrescido regularmente em todos os ramosdo ensino. A adopção de um esquema bi-escalonar, como o que aci-ma se mencionou, representaria decerto, desde que conveniente-mente estruturado, uma das medidas susceptíveis de permitiremao país tirar melhor partido da actual afluência estudantil às Uni-versidades e, ao mesmo tempo, de democratizar o acesso a títulosuniversitários.

d) A diversificação social da procura de educação superiore as suas incidências sobre o sistema universitário

Ao mesmo tempo que se expande muito para além do que seriaprevisível segundo os padrões tradicionais, a procura de educaçãosuperior torna-se muito mais heterogénea. São vários os proble-mas levantados por uma tal diversificação. Sem pretender enun-ciá-los todos neste lugar, julgamos necessário evocar pelo menosos principais.

1.°) A «massificação» da procura feminina de educação supe-rior. — Outrora exclusivamente frequentadas por homens, as Uni-versidades acolhem, na actualidade, proporções cada vez menosdesiguais de homens e de mulheres. Portugal não foge a essa ten-dência e é, de resto, um dos países do mundo onde a taxa de femi-nização do estudantado universitário se apresenta mais alta.

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Quando as primeiras mulheres procuraram as Universidades,o seu número era pequeno e os seus projectos consistiam, presu-mivelmente, na generalidade dos casos, em ter acesso a posições efunções idênticas às dos homens. A essas mulheres, uma vez for-madas, podiam naturalmente levantar-se dificuldades, em virtudeda resistência social à realização dos seus propósitos. Mas às ins-tituições universitárias, em si mesmas, não se punham problemasnovos. Concebidas como vias de acesso a formas de instrução e deactividade tradicionalmente reputadas masculinas, podiam, seminconveniente, manter-se inalteradas, porquanto o que interessavaàs poucas mulheres que as procuravam era, exactamente, servir-sedelas para atingir esses objectivos.

A situação torna-se, porém, muito diferente, na medida emque se assiste à «massificação» da procura de educação superiortambém no sector feminino das camadas sociais donde provéma grande maioria dos estudantes. Não se pode, com efeito, ignorarque a composição das oportunidades profissionais que se oferecemàs mulheres (mesmo às que adquirem instrução universitária) con-tinua a diferir significativamente, ao menos nas sociedades ociden-tais, da das que se abrem aos homens. Nestas condições, o facto deas Universidades: conservarem intactos os seus esquemas funda-mentais de ensino e não adoptarem novas modalidades de formação(por certo não especificamente femininas, mas em todo caso maisadaptadas às possibilidades de colocação de muitas das mulheresno mercado dos empregos) conduz a resultados que, simultanea-mente, prejudicam um elevado número das suas alunas e a própriaòociedade. Aquelas tendem a concentrar-se nos cursos profissio-nalmente mais indefinidos, onde não se habilitam para o exercíciode funções em que, mais tarde, a sociedade as poderia utilizar.E esta só retira, do afluxo feminino à educação superior, um bene-fício muito menor do que aquele que lhe seria possível obter.

Em Portugal, estes efeitos são particularmente sensíveis,tendo ocasionado a pletora e a crise aguda com que actualmentese debatem as Faculdades de Letras e de Ciências, onde se aglo-meram dois terços das alunas universitárias. Um ponto que, comvista a uma futura reforma da Universidade portuguesa, deve,por isso, merecer exame especialmente atento e ponderada reflexãoé, sem dúvida, o que respeita ao elenco, finalidades, currículo earticulações dos ensinos a ministrar nessas Faculdades ou atravésde Departamentos que venham a situar-se nas áreas do conheci-mento por elas actualmente cobertas. Esse ponto terá de ser con-siderado na sua dupla relação, de uma parte com os problemas,já de si distintos, da formação de especialistas e investigadorese da preparação de docentes para o magistério secundário, e daoutra com as oportunidades que, no mercado do trabalho, os dife-rentes sectores da actividade económica, social e cultural desde já

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oferecem, ou virão a oferecer, no nosso país, a mulheres qualifi-cadas com diversos tipos e níveis de instrução superior.

Seja como for e de acordo, por exemplo, com o que se começaa verificar em França e nas novas Universidades espanholas, nãocremos que a concepção clássica — segundo a qual aquelas Facul-dades, e mormente asf de Letras, se constituem como simples pro-longamentos, num escalão mais elevado, de certas disciplinas in-cluídas nos programas liceais — possa doravante manter-se. Paranão citar senão um caso, entre outros possíveis, parece-nos óbvioque, na actualidade, já não se justifica que o ensino superior dasLínguas vivas continue exclusivamente associado ao das respec-tivas Literaturas. Articulações diferentes — v.g. com a Adminis-tração, as Relações Internacionais, a Informação, a Economia, etc.— são igualmente concebíveis e profissionalmente úteis. Mediantefórmulas de cooperação inter-diseiplinar e inter-departamental,que são vulgares nas Universidades modernas, combinações destaíndole tornam-se facilmente exequíveis.

Evidentemente, todas estas questões — na medida em que res-peitam às Faculdades de Letras — terão de ser pensadas e resol-vidas dentro de uma nova concepção acerca da posição e da funçãoque devem caber, no sistema universitário, à investigação e aoensino das chamadas «humanidades». Não podendo, porém, trataraqui, com o necessário desenvolvimento, deste ponto fundamental,deixá-lo-emos para uma próxima oportunidade.

2.°) O desenvolvimento da procura «tardia» e «profissional».— Não é apenas quanto à composição por sexos que a procura deeducação superior se apresenta, em nossos dias, muito mais hete-rogénea do que no passado.

Conforme notámos acima, nas sociedades contemporâneasoutros indivíduos — além dos jovens sem profissão — aspiram, emquantidades crescentes, a adquirir instrução universitária. Nunscasos, trata-se de jovens ainda, mas já profissionalizados; noutros,de adultos que tardiamente desejam efectuar estudos superiores.

Ê a própria transformação das estruturas produtivas, dospostos e métodos de trabalho e das condições da mobilidade socialque suscita este movimento. Na economia moderna, os estudossecundários tornam-se insuficientes para o exercício de um nú-mero cada vez maior de funções. Ao mesmo tempo, surgem cons-tantemente novas profissões que requerem formação superior eavoluma-se a importância do nível formal de educação como ele-mento do estatuto social e económico dos indivíduos. Compreen-de-se, assim, que numerosos profissionais — jovens ou adultos —pretendam valorizar-se através do acesso às Universidades.

Como, porém, até uma data recente, as Universidades não

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tiveram de corresponder a uma procura desta natureza, os seusesquemas tradicionais de funcionamento não lhe estão adequados.Em especial, os horários e os regimes de escolaridade tradicional-mente praticados são 09 que convêm, em princípio, a jovens semocupação profissional. De modo que, no caso de se pretenderdar satisfação às novas aspirações educacionais que actualmentese desenvolvem na população activa, será necessário, não propria-mente revê-los, mas acrescentar-lhes outros (cursos à tarde e ànoite, cursos intensivos, cursos por correspondência, etc), comode resto o têm feito numerosas Universidades estrangeiras, comindiscutível êxito.

No caso português, isto implicaria um prévio e substancialaumento do quadro e do número dos docentes universitários, bemcomo um outro regime de serviço, de carreira e de remuneração.A relação quantitativa entre o número dos docentes e o dosalunos é, com efeito, muito desfavorável, actualmente, em Por-tugal e tende a deteriorar-se progressivamente. Por outro lado,além de escassos, os professores e assistentes acumulam, na suagrande maioria, funções extra-universitárias. A manterem-se inal-teradas tais condições, aquela ampliação dos esquemas de funcio-namento das Universidades não pode deixar de se considerar im-praticável, pelo menos na maior parte dos ramos de ensino. E,no entanto, representaria — consoante a experiência estrangeirao demonstra — um dos processos mais eficazes de democratizaçãodo acesso à educação superior.

3.°) O acesso à Universidade de camadas eãucacionálmentepobres. — A mobilidade profissional e social suscitada pelo desen-volvimento, ainda que limitado, da economia moderna, e bem assima maior importância hoje atribuída à instrução como elementodo status económico e social dos indivíduos, impelem para asUniversidades um volume crescente de alunos originários de meiossociais e familiares educadonalmente pobres. Deste modo, mesmoquando o recrutamento estudantil se faz apenas, ou basicamente(e é esse o caso português), a partir das restritas camadas sociaiseconomicamente mais favorecidas, nem por isso a população uni-versitária deixa de se tornar mais heterogénea sob o ponto devista cultural.

Deparamos, assim, com o terceiro e último aspecto, que nosparece indispensável salientar, da diversificação contemporâneada procura de educação superior. Provavelmente, são-lhe atribuí-veis— sem dúvida que não a título exclusivo, mas em medidaapreciável — as tendências para a diminuição da produtividadeuniversitária que se têm vindo a registar num certo número depaíses. De facto, estudos recentes demonstraram que o nível de

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instrução das famílias donde os estudantes são oriundos e ariqueza (ou pobreza) cultural dos ambientes onde evoluíram exer-cem influências muito significativas sobre as suas: aptidões parao sucesso escolar, em todos os escalões do ensino. O volume ea natureza do «capital cultural», assimilado pelos indivíduos atra-vés de vias não-escolares, são factores importantes das suascapacidades para apreender, com maior ou menor facilidade, acultura transmitida pela Escola.

Este problema põe-se com grande acuidade em Portugal, onde,comparadas em volume relativo com as de outras nações de civi-lização europeia, as camadas detentoras de instrução superior,ou pelo menos secundária, se revelam particularmente exíguas.Nestas condições, o recrutamento dos estudantes tem necessaria-mente de se efectuar, em escala muito sensível e crescente, dentrode sectores cujo nível educacional é baixo. Por um lado, isto podeajudar-nos a entender que a produtividade universitária portu-guesa (medida pela percentagem dos estudantes que chegam aconcluir os seus cursos) seja excepcionalmente fraca segundo ospadrões europeus e acuse uma descida constante desde há váriosanos. Por outro lado, porém, obriga-nos a enfrentar de novo aquestão basilar da inadequação dos métodos pedagógicos e daescassez do enquadramento docente, nas actuais Universidadesdo país.

Quando os estudantes portugueses provinham, essencialmente,de meios sociais eãucãcionalmente privilegiados, a pedagogia dita«escolástica», baseada na prelecção» catedrática, não lhes levantavadecerto especiais dificuldades, "porque havia, entre os docentese os discentes, uma fundamental e sólida comunidade de catego-rias de pensamento, de linguagem e de quadros culturais. Alémdisso, o número médio dos alunos por professor era pequeno,o que facultava oportunidades de contactos relativamente frequen-tes e directos; entre ambas as partes. Esta situação encontra-sehoje substancialmente modificada, sobretudo nos ramos de ensinomais procurados pelos grupos em mobilidade ascendente. O monó-logo professoral, mais ou menos completado por «exercícios deaplicação» em aulas práticas, deixou de constituir, para muitosdos alunos, um processo eficaz de comunicação pedagógica, umavez aue, entre esses estudantes e os professores, aauela profundaafinidade cultural já não existe ou perdeu muito da consistênciaaue no passado a caracterizou. Por outro lado, a forte elevaçãodo número dos alunos, não sendo acompanhada por um crescimentoparalelo do corpo docente, veio reduzir sensivelmente as possi-bilidades de contactos pessoais anteriormente existentes.

Estas razões levam-nos a pensar que, se continuarem a con-jugar-se no futuro os três fenómenos a que acabamos de aludir —a saber; o carácter predominantemente «escolástico» da pedago-

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gia, a progressiva elevação do número médio dos alunos por pro-fessor e o aumento da proporção relativa dos alunos provenientesde meios sociais e familiares educacionalmente pobres—, a pro-dutividade do sistema universitário português não oferece pers-pectivas de melhorar. Corre, pelo contrário, o risco de prosseguiro seu andamento declinante.

Perspectivas de franca melhoria, cremos que somente aspoderão proporcionar Universidades dotadas de um corpo docentemuito mais denso do que o actual (relativamente à massa dosseus alunos) e enquadrado por condições materiais e institucionaisde trabalho e remuneração que o induzam, não só a prestar aosestudantes uma assistência pedagógica muito mais eficaz, comoa adoptar e praticar uma pedagogia baseada na participaçãoestudantil activa.

5. Conclusão: a crise do modelo tradicional das Universidadesportuguesas

Apesar do esquematismo a que tivemos de sujeitá-la, a expo-sição precedente terá sugerido, supomos, que o desenvolvimentoeconómico e a evolução contemporânea da sociedade e da culturaobrigam a pôr em causa, radicalmente, o modelo institucional —ou, se preferirmos, a estrutura e a forma de organização—dasUniversidades que existem no nosso país.

Esta ideia merece ser mais explicitamente aclarada. Para oefeito, retomaremos, sob nova perspectiva, vários dos pontos ante-riormente abordados, acrescentando-lhes, porém, alguns outrosque ainda não foram referidos.

1.°) Caracterização institucional das Universidades portugue-sas— As actuais1 Universidades portuguesas podem ser institu-cionalmente caracterizadas por um certo número de aspectos prin-cipais, que seguidamente enunciaremos.

Convém no entanto advertir, previamente, que nos situare-mos num plano de generalidades. Não nos seria, com efeito, pos-sível considerar aqui, separadamente, cada uma das Faculdades oumesmo cada um dos ramos do ensino universitário. Fica dito,por conseguinte, que, em relação a vários dos aspectos apontados,as situações que se observam em algumas Escolas são um tantodiferentes daquelas que a seguir se indicam.

— As Universidades são formadas por meros somatórios deFaculdades, entre as quais não se encontra instituída, nem sese verifica de facto, qualquer colaboração relevante para fins

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de ensino ou de pesquisa. Em Lisboa e no Porto, a dispersão espa-cial dos edifícios universitários consagra e consolida, material-mente, esta separação.

— As Faculdades são essencialmente instituições docentes,onde se dão aulas e se fazem exames, e não organismos de inves-tigação com ensino associado.

— O corpo docente está repartido por duas categorias funda-mentais: a dos professores (incluindo, na prática, os assistentesdoutorados), que ocupam, na generalidade dos casos, postos per-manentes, e a dos assistentes não-doutorados, que ocupam postostemporários. O número dos professores é praticamente limitadopor um pequeno quadro fixo de lugares, rigidamente definido porvia legislativa e calculado em função do elenco das disciplinasa reger e não do quantitativo dos alunos a enquadrar. Pelo con-trário, o número dos assistentes tem-se revelado inflacionável,mediante contratação de pessoal além do quadro. Apesar de oquadro dos professores ser muito restrito, verifica-se, ao queparece na maioria das Escolas, uma proporção importante devagas, por não existirem, ou não serem utilizados, mecanismosinstitucionais que determinem o seu preenchimento.

— A legislação universitária atribui, em princípio, aos docen-tes outras responsabilidades além das do ensino; mas só regula-menta e exige de facto o exercício destas' últimas, pressupondoassim, tanto para os assistentes como para os professores, umregime de ocupação em tempo parcial.

— As remunerações dos professores e assistentes também nãosão de molde a induzir a sua dedicação plena à docência e à inves-tigação. Particularmente baixas no nível dos assistentes, obrigamgeralmente à acumulação de funções extra-universitárias desde osprimeiros passos na carreira do ensino.

— O regime do sferviço docente e o respectivo volume efec-tivo de trabalho são, em regra, tanto menos absorventes quantomais alta a posição atingida na hierarquia universitária, Como,porém, as Faculdades não oferecem, à generalidade dos profes-sores, condições que os incitem a dedicar-sie, para além da docên-cia, a outras funções universitárias (investigação, etc.) condig-namente remuneradas, gera-se uma situação em que os docentes,à medida que vão subindo na escala académica, se tornam, em mui-tos casos, mais disponíveis para o exercício de cargos extra-uni-versitários que implicam, frequentemente, desvio das actividadescientíficas. M f-'iwí

— O acesso aos lugares estáveis e aos graus sucessivamentemais elevados da hierarquia universitária só por rara excepçãonão depende de determinados requisitos (doutoramentos e con-cursos) para cuja efectivação a Universidade não contribui. Comefeito, as Faculdades, nem proporcionam formação para douto-

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randos, nem possuem, em geral, adequados dispositivos e recur-sos que lhes permitam assegurar a orientação e realização de in-vestigações, nem sequer podem, habitualmente, remunerar as acti-vidades de pesquisa científica dos membros do seu corpo docenteou de outros passíveis candidatos a doutores e professores. Aocontrário do que sucede em certos países com Universidades domesmo tipo, também não existe, entre as carreiras do ensino su-perior e outras carreiras científicas, qualquer articulação suscep-tível de compensar, ao menos em parte, essas deficiências dosmecanismos de promoção do corpo docente.

— Na ausência de apoio material e1 institucional adequado,os doutoramentos, além de terem, na maior parte dos casos, deser individualmente preparados por processos auto-didácticos ecumulativamente com o exercício de funções profissionais extra--universitárias, implicam encargos muito consideráveis que recaemsobre os candidatos. Estão, ademais, concebidos e regulamentadosem termos que não se coadunam com as características da acti-vidade científica contemporânea. Por um lado, o doutorando, emcertos estabelecimentos, é forçado a estudar, exclusivamente paraefeitos de exame, uma ampla gama de matérias aleatórias, muitasdas quais, por serem alheias à sua especialização, não pode conhe-cer em profundidade. Por outro lado, seja qual for a extensão eimportância do anterior «curriculum» e da obra publicada docandidato, a Universidade não pode considerar comprovada a suacompetência para a investigação científica, a não ser que uma«tese original e impressa», especialmente elaborada para o douto-ramento, lhe seja presente e receba a sua aprovação. Todas estascircunstâncias concorrem para que, na grande maioria das Facul-dades, os doutoramentos sejam raros e representem um poderosofactor de bloqueamento das possibilidades de recrutar novos pro-fessores.

— Os elencos das disciplinas que compõem os diferentes cur-sos superiores são, em princípio, uniformes à escala nacional.Rigidamente estabelecidos mediante decisão política, não podem,por isso, ser alterados através de deliberações dos órgãos! uni-versitários.

— A responsabilidade e a orientação do ensino em cada dis-ciplina cabem, por princípio, ao docente (em regra um único,independentemente do número dos respectivos alunos) que, pordireito de cátedra ou por função atribuída, se acha investido nacorrespondente regência. Nenhum processo que implique uma coor-denação de programas, em cada «ano curricular» e no conjuntodos sucessivos «anos» de cada curso, se encontra obrigatoriamenteestabelecido ou é habitualmente praticado. Quem rege é, normal-mente, quem decide, com inteira autonomia (sobretudo tratando-se

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de um professor), a escolha e a extensão dos temas que se propõeabordar.

— A qualidade do ensino ministrado pelos professores, bemcomo o seu esforço de actualização das docências que exercem,não estão sujeitos a qualquer controle institucional ou de grupo:dependem inteiramente dos seus critérios e comportamentos indi-viduais, que são naturalmente variáveis. Deste modo e a partirde determinado grau hierárquico, só o mérito próprio dos docentesconstitui garantia do nível e progresso do ensino.

— Os órgãos directivos das Faculdades são exclusivamenteconstituídos pelos professores que ocupam os mais altos postosda hierarquia académica. Nem os docentes das restantes catego-rias, que são frequentemente os mais absorvidos e integrados naactividade universitária, nem os estudantes, têm nesses órgãosqualquer participação.

— O ensino processa-se basicamente através de prelecções em«aulas teóricas», frequentemente completadas por «exercícios» em«aulas práticas» (onde no entanto também muitas vezes se expõematéria «teórica» adicional) ou em laboratórios. Salvas algumasexcepções, toda a informação decorre, unilateralmente, dos docen-tes. Aos alunos cabe, normalmente, o papel passivo de a receber.Essa informação é geralmente susceptível de ser arquivada emmanuais ou «sebentas» e em cadernos de «exercícios» e «aponta-mentos», que constituem os instrumentos habituais do trabalhodos estudantes. Este reduz-se, em regra, à preparação para osexames (única forma de controle dos resultados geralmente adop-tada) e concentra-se intensivamente nas épocas em que eles seefectuam. Os alunos não são pedagogicamente induzidos a umtrabalho de aprendizagem continuada, activa e pessoal, ao longodo ano lectivo.

— Os próprios edifícios universitários, inclusive os mais re-centes, reflectem, na sua estrutura interna, uma concepção da Uni-versidade de acordo com a qual o estudante é, dentro dela, prin-cipalmente um auditor. As suas instalações compreendem salase outros dispositivos para a realização de aulas (e, por vezes,gabinetes para professores), mas não locais de trabalho especial-mente destinados aos alunos. Pressupõe-se, fundamentalmente, queos estudantes vão às Faculdades ouvir os professores, fazer os«exercícios» que lhes são determinados e eventualmnte consultarobras nas bibliotecas, mas que não é nas Faculdades que devempessoalmente trabalhar.

— Finalmente, as Universidades portuguesas são estrutural-mente não-concorrenciais, De um lado, em cada um dos três cen-tros universitários (Coimbra, Lisboa e Porto), existe apenas umaFaculdade em cada um dos ramos de ensino nele instituídos. Dooutro, os programas dos cursos professados nas várias Faculdades

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de cada ramo são idênticos ou muito semelhantes à escala nacionale não podem, como dissemos, ser modificados por iniciativa dosórgãos universitários.

A maior parte dos inconvenientes associados a estas caracte-rísticas gerais do modelo universitário português é tão óbviaou transparece com tal clareza no confronto com o enunciado deproblemas anteriormente apresentado, que supomos desnecessárioalongarmo-nos na sua explanação.

Apontar esses inconvenientes significaria, evidentemente, ex-pressar um juízo de valor respeitante, não às pessoas, mas àsestruturas institucionais que as enquadram. Em justiça, não sepode, aliás, deixar de reconhecer que, sendo em geral as estruturastão desfavoráveis quanto o são, é à excepcional competência e de-dicação de um certo número dos docentes que, no nosso país,se deve, em grande parte, o facto de o ensino universitário não seencontrar numa situação ainda mais crítica do que aquela que, emlinhas gerais, procurámos descrever. Outro factor propício, masmuito deficientemente aproveitado, tem residido nas preocupaçõesde modernização cultural e social de que são portadores não poucosdos membros das novas gerações chamadas a ensinar, ainda quetemporariamente, nas Universidades.

2.°) Tendências para o agravamento da crise das Universi-dades. — Cremos que será útil, antes de concluir, chamar a aten-ção para o facto de certos inconvenientes do modelo institucionaldescrito tenderem a agravar-se progressivamente, em consequênciado impacto, sobre as Universidades, do desenvolvimento económicoe da evolução sócio-cultural contemporânea. Focaremos apenasdois pontos, deixando os restantes à reflexão dos leitores.

Em primeiro lugar, o afluxo de um número incomparavel-mente mais elevado e sempre crescente de alunos tende a desar-ticular o dispositivo docente de determinadas Faculdades. Ou me-lhor: os esquemas de recrutamento e promoção dos professorestendem a ficar bloqueados, à medida que a massa discente se ex-pande^

Com efeito, como o quadro dos professores é fixo, as Facul-dades só podem adaptar-se ao aumento da afluência estudantil,elevando o número dos assistentes. E cria-se, deste modo, umasituação em que, para a larga maioria dos numerosos assistentes,se tornam insignificantes as probabilidades de acesso aos escassospostos professorais, o que retira às suas funções um dos princi-pais atractivos de que tradicionalmente se rodearam.

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Por outro lado, faltando professores ou revelando-se insufi-ciente o seu número, muitos dos assistentes são investidos emfunções de regência, ao mesmo tempo que o crescimento rápidodas populações escolares os sobrecarrega de pesadas tarefas ma-teriais. Os jovens docentes — que, como dissemos, se vêem geral-mente obrigados a acumular funções profissionais extra-universi-tárias, desde os seus primeiros passos no ensino — ficam, assim,impedidos de se dedicar à preparação das condições indispensáveisao prosseguimento das suas «carreiras» (o doutoramente e os con-cursos) , já de si mesmas fortemente dificultadoras. Ora, sem dou-toramento© e concursos, não se recrutam novos professores,

Consequentemente, a posição de assistente tende a apresen-tar-se, ante os possíveis candidatos e mesmo ante muitos daquelesque já a ocupam, como simultaneamente penosa e com reduzidasperspectivas de promoção. Corre, portanto, o risco de, mormentenas Faculdades mais populosas, deixar de atrair (ou vir a serabandonada por) grande parte dos licenciados a quem, noutrascondições, mais poderia interessar, mas aos quais o desenvolvi-mento socio-económico entretanto oferece, fora do sistema univer-sitário, oportunidades cada vez mais. sedutoras de colocação. Namedida em que tal risco se concretiza, tem de baixar-se o padrãodas qualificações exigidas na admissão dos novos assistentes.Baixando esse padrão, reduz-se, porém, não só o nível do ensino,como também a probabilidade de, entre os membros! jovens docorpo docente, virem a surgir futuros professores.

Contra este perigoso círculo vicioso de efeitos cumulativos,pelo qual várias Faculdades vão sendo simultânea ou sucessiva-mente afectadas, algumas Escolas encontram-se relativamente «de-fendidas», quer porque a sua população discente não cresce, querporque existe uma certa simbiose entre a carreira académicae a carreira profissional. Designadamente nas Faculdades de Di*reito (sobretudo, talvez, na de Lisboa) e de Medicina, as vanta-gens extra-universitárias associadas ao exercício de funções; do-centes e à aquisição de títulos universitários elevados são de talmodo importantes sob o ponto de vista profissional, que tendema compensar os efeitos de desencorajamento acima apontados. To-davia, essas Escolas só representam uma pequena parte do sistemauniversitário português. Por outro lado, o seu progressivo con-gestionamento poderá conduzi-las, a pouco e pouco, salvo se viera ser detido, a uma situação semelhante à das demais Faculdades.

O segwndo e último ponto que desejamos salientar é que, nocontexto de uma sociedade em desenvolvimento (mesmo relativa-mente limitado), como a portuguesa, a circunstância de as Facul-dades serem, essencialmente, instituições de ensino com pessoal

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ocupado em tenipo parcial, e nào organismos de investigação comensino associado e pessoal trabalhando em tempo completo, acar-reta — mais seguramente do que numa situação de estacionaridadesócio-económica — a tendência para uma anquilose da culturauniversitária.

De uma parte, o ensino superior não pode, assim, beneficiar,na escala indispensável, das influências inovadoras que lhe seriampermanentemente instiladas por uma investigação organizada econtínua, a cargo do próprio corpo docente. Além disso, torna-se,na maior parte dos seus ramos, basicamente tributário de ideiase conhecimentos recebidos não só do exterior das Universidades,como sobretudo do exterior do país, uma vez que a investigaçãoextra-universitária também é, em Portugal, muito insuficiente.Certas Faculdades — que o país necessitaria de que fossem centrosde promoção da pesquisa fundamental e organismos onde se for-massem agentes altamente qualificados e informados acerca dasrealidades e dos problemas nacionais — têm de limitar-se a fun-cionar principalmente como agentes de transmissão, para o inte-rior da sociedade portuguesa, de ideias e conhecimentos elabo-rados noutras sociedades. De facto, só instituições universitáriasorganicamente articuladas ao redor de actividades de investiga-ção podem reunir condições que lhes permitam, ao mesmo tempo,abrir-se inteiramente ao progresso universal da Ciqncia e daCultura e desenvolver um esforço original de análise e equacio-namento dos problemas específicos da nação a que pertencem.

De outra parte, o desenvolvimento socio-económico dá origema que se multipliquem a quantidade e a força das solicitações,de que muitos dos professores são objecto, para se dedicarem lar-gamente a actividades extra-universitárias e extra-científ iças, ondeo prestígio social dos seus títulos académicos lhes faculta fácilacesso e altas remunerações. Essas actividades podem, porém,ser exercidas em acumulação com as do ensino, dado que estasobedecem a um regime de ocupação em tempo parcial que, emgrande parte dos casos, se torna tanto menos absorvente quantomais alta a posição atingida na hierarquia universitária. Destemodo — e ao abrigo da norma que confia toda a responsabilidadee orientação de cada disciplina ao professor investido na corres-pondente regência—, sucede que, de par com o desenvolvimentosocio-económico, se acentua a pressão para que o próprio trabalhoindividual de actualização do ensino cesse, em muitos casos, desderelativamente cedo.

Estes fenómenos somente poderão ser evitados em Universi-dades organizadas à base de Departamentos (ou Institutos) deinvestigação, nos quais, não diremos a totalidade, mas ao menosuma parte muito considerável do corpo docente se encontre ocu-pada em regime de tempo integral convenientemente retribuído.

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SUGESTÕES PARA UMA POLÍTICA DE REFORMADAS UNIVERSIDADES

Tendo em vista o anteriormente exposto, julgamos que asituação de crise estrutural que se tem vindo a desenhar nas Uni-versidades portuguesas, tendendo a agravar-se progressivamente,deverá ser enfrentada pondo em prática duas ordens de medidas,umas imediatas, outras a prazo. Mas aquelas sem estas seriamestéreis, melhor dizendo: seriam contraproducentes, porque des-pertariam esperanças vãs.

O ponto essencial é a vontade de empreender reformas impor-tantes e honradas. Importantes quer dizer que modernizem de factoo sistema português de ensino superior, segundo as necessidadesde uma nação que não pode deixar de entrar no caminho da Cul-tura moderna e da Técnica, ou seja: na civilização europeia dosnossos dias. Honradas significa que procedam da firme e rectaintenção de reconverter o sistema, melhorando significativamenteo ensino universitário, e, de forma nenhuma, do propósito de ape-nas introduzir alterações circunstanciais ou de mera oportunidade.

Exporemos, seguidamente, um certo número de sugestões, asprimeiras das quais respeitam a medidas a tomar prontamente,e as segundas, ao caminho que nos parece o mais adequado paraatingir uma reconversão global das instituições universitárias donosso país.

1. Medidas a adoptar imediatamente

a) Em relação ao corpo docente

l.a) Aumentar o número dos professores catedráticos e ex-traordinários e não somente o dos assistentes. Para o efeito, pro-mover o preenchimento rápido das numerosas vagas existentes,alargar substancialmente o quadro legal dos professores em todasas Faculdades onde essa medida se imponha com urgência e esta-belecer o princípio de que, não devendo o número dos alunos acargo de cada professor exceder determinado quantitativo, essequadro será automaticamente ampliado à medida que o cresci-mento das populações escolares e o desdobramento de turmaso exijam.

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2.a) Modificar o regime do recrutamento dos professores, comvista a que: a) se torne muito mais expedito do que o actual;b) se evite que as vagas que se vão abrindo permaneçam a des-coberto durante sucessivos anos: c) assuma relevo decisivo a apre-ciação do «curriculum» e da obra dos candidatos, evidenciando-seclaramente, nos concursos, as suas actividades e o valor das suascontribuições para o progresso da investigação e do conhecimentonos ramos a que se dedicam.

3.a) Criar novas categorias professorais, nomeadamente a de«professor associado», que permitam integrar facilmente no corpodocente universitário individualidades a cuja competência, desen-volvida e comprovada através de carreiras não-universitárias, asinstituições portuguesas de ensino superior têm manifesta neces-sidade de recorrer, como de resto sucede na maioria das melhoresUniversidades do mundo.

4.a) Com o fim de tornar possível o rápido aumento do nú-mero dos professores acima referido, recorrer, na medida em queseja necessário, a professores contratados, independentemente dostítulos académicos que possuam. Proporcionar a esses professoresa possibilidade de, ao fim de um certo número de anos, terem acessoa posições estáveis, mediante prévia avaliação, em concurso, dosserviços docentes que hajam prestado e dos trabalhos de investi-gação que tenham produzido.

5.a) Instituir, a título de opção oferecida tanto aos professo-res como aos assistentes que pretendam dedicar-se unicamente aoensino e à investigação, um regime de ocupação em tempo integral,condignamente remunerado e devidamente controlado. Seguindoo exemplo de certas Universidades estrangeiras, e designadamentedas novas Universidades espanholas, também poderá revelar-seútil, pelo menos em algumas Faculdades, criar — além desse novoregime do dedicação exclusiva e do que actualmente vigora — umterceiro regime intermédio, obrigando a um número determinadode horas semanais de ocupação na Universidade para além das dadocência, mas não à exclusividade do serviço universitário.

6.a) Alterar substancialmente a regulamentação dos doutora-mentos, quanto aos seguintes pontos: a) transformação dos dou-toramentos que actualmente se praticam em verdadeiras provasde avaliação e selecção de competências especializadas para a in-vestigação científica, nas quais se atenda basicamente ao «curri-

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culum» científico dos candidatos; b) estabelecimento da faculdadede, tal como se verifica em modernas Universidades estrangeiras,os doutorandos utilizarem, como elementos essenciais das suasteses, os trabalhos de pesquisa originais que já tenham publicado;c) criação, em prazo breve e onde seja possível, de cursos pós-gra-duados de doutoramento, amplamente dotados de bolsas para dou-torandos; d) impedir que seja legalmente possível que as provassó tenham lugar muito tempo depois de os doutorandos teremapresentado os respectivos requerimentos.

7.a) Eliminar os entraves, presentemente em vigor, à valida-ção em Portugal dos títulos académicos obtidos fora do país, emUniversidades de reconhecido nível e prestígio, e intensificar oapoio material e institucional à preparação de especialistas portu-gueses nessas Universidades e, dum modo geral, nos melhores cen-tros científicos e culturais estrangeiros.

8.a) Procurar atrair a Portugal, oferecendo-lhes posições econdições de trabalho estimulantes, professores e investigadoresportugueses que, em número considerável, se encontram noutrospaíses.

9.a) Obstar a que os assistentes, salvoi caso de absoluta inevi-tabilidade, sejam sobrecarregados por um tal volume de trabalhoou por uma tal dispersão de serviços, que se vejam impossibi-litados de progredir na sua especialização e de preparar as condi-ções necessárias para o prosseguimento das suas carreiras.

b) Em relação ao corpo discente

l.a), Autorizar e, se necessário, suscitar a criação e o funcio-namento normal, em todas as Escolas, de associações de estudan-tes, democraticamente constituídas.

2.a) Rever, num sentido análogo ao adoptado no decreto querecentemente reorganizou os sindicatos nacionais, o regime vigenteem matéria de eleições dos corpos directivos das associações deestudantes.

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3.a) Permitir que, legalmente —e não, como tem sucedido,à margem da lei —, se constituam, para além das associações aca-démicas de Escola, organismos estudantis de coordenação (ou comfunções especializadas), pelo menos à escala de cada um dos trêsaglomerados universitários.

4.a) Estimular o desenvolvimento das relações entre os corposdocente e discente, facilitando a participação activa dos estudantesna vida institucional das Universidades, através, designadamente(numa primeira etapa), de órgãos mistos de gestão pedagógica,cuja constituição seria indispensável encarar com prioridade.

5.a) Instaurar, entre o Ministério da Educação Nacional, asautoridades universitárias e as associações de estudantes, umprocesso de diálogo permanente, cuja fórmula teria de ser deter-minada com o acordo de todas as partes interessadas.

6.a) Reforçar largamente o actual dispositivo de concessãoaos estudantes economicamente menos favorecidos, de bolsas deestudo e de outros subsídios directos e indirectos, utilizando-osimultaneamente como instrumento de democratização do acessoà educação universitária e como processo de estimular a procurados cursos que ao país mais convém que vejam a sua populaçãoescolar desenvolver-se.

c) Em relação às infra-estruturas

l.a) Enfrentar prontamente os graves problemas de insufi-ciência espacial e de equipamento com que diversas Escolas sedebatem, mas cuidando de não comprometer — pela adopção desoluções «precipitadas» e de alto custo — a futura qualidade peda-gógica das infra-estruturas físicas, arquitectónicas e urbanísticasdas Universidades. Será imprescindível ter presente que, nas Uni-versidades modernas, estes aspectos se revestem de importânciacrucial e que, por isso, decisões aparentemente das mais oportunas— como a de promover, para uma ou outra Escola, a imediataconstrução' de novos edifícios, projectados em prazo curto porarquitectos mal informados acerca da moderna arquitectura uni-versitária e implantados em locais apressadamente escolhidos —podem, a mais longo termo, vir a revelar-se extremamente inade-

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quadas, quando não desastrosas (vd. o caso de Nanterre). Deveráigualmente considerar-se que o recurso a instalações provisórias,construídas nomeadamente à base de elementos pré-fabricados,é susceptível de, ao menos em certos casos, possibilitar soluçõesrápidas, elásticas, económicas e facilmente substituíveis por edi-ficações mais maduramente pensadas.

2.a) Estender o ensino universitário a estabelecimentos e lo-cais exteriores àqueles onde é presentemente ministrado, sejacriando novas secções de certas Faculdades, ou centros autónomosde educação superior, nas mesmas cidades, em áreas periféricasou noutras cidades, seja levando o ensino de algumas Escolas aoutros locais (centros industriais, por exemplo) ou a outros esta-belecimentos (hospitais não-universitários, organismos de investi-gação, instituições docentes, etc).

3.a) Multiplicar e melhorar significativamente as instalaçõesdestinadas aos estudantes (zonas de convívio, cantinas, locais detrabalho, etc), cujas deficiências são hoje, na generalidade doscasos, por demais evidentes.

2. Bases para a definição de uma política de reforma do sistemauniversitário português

1.°) Em nosso entender e conforme já tivemos ocasião dereferir, o conjunto de medidas imediatas que acabamos de esboçarsó poderá contribuir eficientemente para a superação da crise epara a renovação profunda das Universidades portuguesas, desdeque represente apenas o ponto de partida para uma acção de longoprazo que se proponha atingir uma reconversão global do sistemauniversitário no nosso país.

Julgamos que essa acção de maior alcance deverá, mais con-cretamente, visar dois objectivos essenciais:

a) transformar as Universidades tradicionais de que a socie-dade portuguesa dispõe em Universidades modernas, ca-pazes die corresponder com inteira eficácia, adequação edinamismo às novas necessidades implicadas no desenvolvi-mento da economia e na evolução contemporânea dasociedade e da cultura;

b) criar novas Universidades em Portugal que, simultanea-mente, permitam eliminar ou prevenir o progressivo con-

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gestionamento das que já existem e fazer radicar no paísum novo modelo imtitucional universitário adaptado àsexigências do progresso técnico, científico, socio-económicoe cultural.

Cremos que estas novas Universidades, se forem concebidase organizadas segundo os moldes sugeridos na l.a Parte desteestudo, representarão um factor de decisiva importância para atransformação e modernização estrutural das instituições universi-tárias actualmente existentes.

2.°) A questão mais delicada reside, a nosso ver, no processoatravés do qual os dois objectivos apontados poderão ser atingidos.

Sugerimos que esse processo seja desencadeado do seguintemodo:

— Numa primeira fase, e tendo já sido anunciado oficialmenteo propósito de reformar a estrutura do sistema universitário por-tuguês, as Universidades seriam solicitadas e estimuladas a exa-minar, discutir e propor soluções para os seus mesmos problemas.Uma Comissão para a Reforma do Ensino Superior — composta porindividualidades! competentes em questões universitárias, nomeadapelo Governo e sem carácter representativo—seria entretantocriada, como órgão técnico independente, dotado de um secre-tariado executivo e de orçamento próprio.

O trabalho de reflexão crítica das Universidades sobre si mes-mas deveria decorrer, não apenas ao nível dos conselhos escolarese dos demais órgãos superiores universitários, mas também dentrodas várias categorias de docentes, nas associações académicas enoutros organismos estudantis. Apelar-se-ia para a criação, emtoda a medida do possível, de grupos mistos constituídos por pro-fessores, assistentes e alunos, análogos aos que, sob diferentesformas, surgiram, em determinado momento do ano lectivo findo,em Lisboa, designadamente nas Faculdades de Ciências, Medicinae Letras, nos Institutos Superiores de Ciências Económicas e Fi-nanceiras e de Agronomia e na Escola Superior de Belas-Artes.

A Comissão acima referida, agindo sob a sua própria respon-sabilidade, apoiaria o trabalho em curso, fornecendo documentaçãosobre os problemas da Universidade em Portugal e noutros paísese elaborando um «texto de trabalho» que conteria o esquema,devidamente fundamentado, dos assuntos que, em seu entender,deveriam ser discutidos. Esse texto seria remetido1, não somenteàs Universidades (professores, assistentes e alunos), mas outros*

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sim às Ordens e Sindicatos das profissões universitárias, às socie-dades científicas, aos centros de investigação e a outros sectoresinteressados da vida cultural, social, económica e do ensino. A to-das estas entidades seria pedido que se pronunciassem sobre osproblemas da reforma e modernização do ensino superior portu-guês. Para o envio à Comissão, dos estudos e propostas tanto dasUniversidades, como dos restantes sectores, seria fixado um prazo.

Além de preparar e difundir o mencionado «texto de trabalho»,a Comissão procederia, ou mandaria proceder, a um certo númerode estudos complementares indispensáveis, como por exemplo: pre-visões do crescimento da população discente nos diversos ramose Escolas, tendências quantitativas e qualitativas da procura dosempregos de nível superior, custos financeiros de novas fórmulasde organização universitária, necessidades de preparação de novosprofessores e investigadores, localizações mais adequadas paranovas Faculdades ou Universidades, formas de financiamento dareforma universitária e das novas instituições a criar, etc. Para-lelamente, promoveria a ida ao Estrangeiro de individualidadescompetentes, com o fim de recolher «in loco» informação fidedignae minuciosa sobre as estruturas e o funcionamento de Universi-dades modelares e sobre os métodos adoptados e os resultadosobtidos nas reformas universitárias realizadas, ou em curso, desdehá alguns anos, em vários países.

Com base, por um lado, nos textos recebidos das Universi-dades, Ordens, etc, e por outro, nos estudos por ela mesma efec-tuados ou encomendados e na informação colhida acerca dasexperiências estrangeiras, a Comissão elaboraria — dentro de umprazo antecipadamente fixado — um Relatório sobre a Reformaão Ensino Superior em Portugal, contendo a síntese de todo o tra-balho decorrido nas condições referidas.

— Numa segunda fase, a Comissão tornaria público, sob asua exclusiva responsabilidade, aquele Relatório. Amplamente di-vulgado na Universidade e no país, esse documento seria discutido,durante um período que se convencionaria.

Após esse período e de posse das críticas recolhidas, a Comis-são decidiria das alterações ou aditamentos que deveriam, em seuentender, introduzir-se no texto publicado, e entregaria ao Governoum Relatório revisto, juntamente com a documentação respeitanteao debate havido.

— Finalmente, dispondo do Relatório na sua versão final e doconhecimento das posições que publicamente se haviam definido

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: cerca dos problemas da reforma universitária, o Governo pos-suiria todos os elementos necessários para decidir a sua própriapolítica.

3. Nota final sobre as condições de viabilidade da reforma uni-versitária

A experiência demonstra — já o assinalámos — que a reali-zação de reformas universitárias profundas suscita grandes difi-culdades e resistências. Parece-nos, pois, indispensável apontar,a concluir, duas condições que julgamos necessário se congreguempara que a modernização e a ampliação do sistema universitárioportuguês possam ser levadas a cabo com êxito.

Consiste a primeira na reforma do Ministério da EducaçãoNacional a que aludimos na l.a Parte deste texto. Não repetindoas razões que justificam a premente necessidade de tal reforma,limitar-nos-emos a acrescentar que, a par da Comissão para aReforma do Ensino Superior, deveria ser criada uma outra queelaborasse, em prazo breve, um projecto, a pôr em prática tão cedoquanto possível, de reorganização geral dos serviços, dos esquemasde funcionamento e dos métodos de trabalho do Ministério. Asduas Comissões deveriam, naturalmente, trabalhar em estreitaligação uma com a outra.

Reside a segunda em que a reconversão do dispositivo univer-sitário, embora haja de ser directamente suscitada e conduzidapelo Ministério da Educação Nacional, terá de ser firmementeassumida e enquadrada por um verdadeiro programa de Governo,como parte integrante de uma política nacional de desenvolvi-mento, na qual o Poder Público esteja colectivamente empenhado.Essa reconversão necessita, com efeito, de ser coordenada comoutras transformações estruturais — de carácter económico, admi-nistrativo, social e institucional — que convirjam no objectivocomum de desenvolver e modernizar globalmente a sociedade por-tuguesa. Além disso, a importância dos meios materiais e legisla-tivos que será indispensável movimentar, bem como a naturezadas dificuldades e resistências que se terão de vencer, implicamsério risco de paragem e consequente desaire, se o programa e oprocesso da reforma universitária, não dispuserem de sólido apoionos diferentes sectores da governação.

O futuro do sistema universitário português depende estreita-mente de condições que lhe são exteriores. Tudo na sociedade seliga, entrelaça, encadeia e está suspenso de opções que transcen-dem sectores específicos de actividade. Mas as diversas estruturasconstituem um todo e, por isso, as reformas, se por um lado depen-

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dem umas das outras, também por outro lado se dinamizam reci-procamente. «Ce qui est difficile — notou Louis ARMAND — est dese réformer quand les autres ne se réforment pas; une reforme enentraíne d'autres et crée une action en chaíne». O que importaé desencadear, em pontos estratégicos — e a Universidade é umdeles — acções que libertem as energias criadoras encarceradasnas estruturas envelhecidas #.

Agosto de 1969

* Para a elaboração da l.a Parte deste texto («As coordenadas funda-mentais da crise»), os autores socorreram-se, não só dos trabalhos que ante-riormente publicaram sobre problemas universitários (de onde, por vezes,extractaram alguns fragmentos de texto), como também de estudos de outrosautores, designadamente dos que foram reunidos nos dois volumes de AnáliseSocial (n.08 20-21 e 22-24) dedicados ao tema «A Universidade na Vida Por-tuguesa». Praticamente toda a informação respeitante a Portugal em que otexto da l.a Parte se baseia, foi colhida nesses volumes.

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