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IX ENCONTRO DA ABCP Política e economia MOEDA E ESTADO: A INCLUSÃO DO PODER SOBERANO NAS QUESTÕES MONETÁRIAS Aline Regina Alves Martins Unicamp Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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IX ENCONTRO DA ABCP

Política e economia

MOEDA E ESTADO: A INCLUSÃO DO PODER SOBERANO NAS QUESTÕES MONETÁRIAS

Aline Regina Alves Martins

Unicamp

Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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MOEDA E ESTADO: A INCLUSÃO DO PODER SOBERANO NAS QUESTÕES MONETÁRIAS

Aline Regina Alves Martins Unicamp

Resumo do trabalho: Nos recorrentes manuais de Economia são apresentadas as três funções básicas que a moeda desempenha no mundo econômico: unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor. A moeda mais importante da hierarquia monetária é a única que consegue exercer integralmente todas as funções clássicas da moeda. Contudo, neste artigo objetiva-se ir além das definições da moeda propostas pelos manuais, buscando elementos teóricos que auxiliem no entendimento das correlações existentes entre Estado, poder e moeda. Assim, apresenta-se a perspectiva da moeda enquanto uma “criatura do Estado”, abordagem desenvolvida pela teoria cartalista da moeda. Nesse sentido, a moeda está ligada de modo intrínseco ao poder político. A ampliação da esfera de influência das finanças e moedas dos Estados sempre esteve ligada à expansão de seus territórios econômicos. Uma moeda estatal forte integra-se a um sistema financeiro nacional também robusto. Nesta pesquisa utiliza-se o método dedutivo e descritivo, com análise de bibliografia especializada e de base de dados de instituições multilaterais. Palavras-chave:Economia Política Internacional; Moeda e Estado; Teoria Cartalista da Moeda; Hierarquia Monetária.

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INTRODUÇÃO1

Nos manuais de Economia são apresentadas as três funções básicas que a moeda

desempenha no mundo econômico: unidade de conta (ou unidade de valor), meio de

pagamento e reserva de valor. A diferenciação entre a moeda em suas três funções baseia

o entendimento de uma “hierarquia entre todos os instrumentos financeiros que funcionam

como moeda” (CRESPO, CARDOSO, 2010:12). Enquanto unidade de conta, a moeda

exerce o papel de medir o valor das coisas. Por meio dessa função, conseguimos comparar

o valor de diferentes bens. Como meio de pagamento, a moeda funciona como uma

intermediária das trocas. Assim, podemos adquirir um produto ou serviço sem necessidade

de possuir outros bens para dar em troca. Por vez, na função reserva de valor, a moeda

aparece na forma de poupança, a fim de se preservá-la e gastá-la futuramente.

Não somente o Estado é capaz de criar moeda, mas é também um papel

desempenhado pelo setor privado (bancos, por exemplo). Contudo, não são todas as

moedas que exercem integralmente essas três funções, o que se reflete no grau de

aceitação de cada uma delas.

A moeda também cumpre essas três funções no plano internacional2. A moeda mais

importante da hierarquia monetária é aquela que consegue exercer integralmente todas as

funções clássicas. Destarte, ela é utilizada em grande medida “nas transações monetárias

(meio de troca) e financeiras (unidade de denominação dos contratos), bem como é o ativo

mais líquido e seguro e, assim, mais desejado pelos agentes como ativo de reserva”

(PRATES, 2005:274).

Não obstante, neste artigo buscamos ir além das definições e funções da moeda

propostas pelos manuais. Objetivamos buscar elementos teóricos que auxiliem no

entendimento das correlações existentes entre Estado, poder e moeda. Para tal,

1 Esta pesquisa foi em grande parte financiada pela Capes. 2 Todavia, especialistas estabelecem diferenças entre essas funções da moeda nos âmbitos privado (mercados internacionais) e público (relação entre governos, bancos centrais). Assim, a moeda no plano internacional exerce seis papéis. De acordo com Cohen (2009), com essa separação nestes dois âmbitos, é possível compreender mais eficazmente a relação da moeda com o poder estatal, pois será possível compreender, por exemplo, quais funções são mais determinantes que outras para o estabelecimento da hegemonia de uma moeda internacionalmente. Dessa maneira, as funções da moeda no cenário internacional são: meio de pagamento/moeda veicular (meio de pagamento); moeda de denominação (unidade de conta); moeda de investimento e financiamento (reserva de valor) – âmbito privado; moeda de intervenção (meio de pagamento); moeda de referência/âncora (unidade de conta); moeda reserva (reserva de valor) – âmbito público (DE CONTI, 2011).

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intentamosapresentar a perspectiva da moeda3 enquanto uma “criatura do Estado”,

abordagem desenvolvida pela teoria cartalista da moeda. Nesse sentido, a moeda está

ligada de modo intrínseco ao poder político e, dessa forma, torna-se um elemento

importante de estudo para a Ciência Política. Igualmente, o entendimento das funções

monetárias é de fundamental importância para a compreensão das Relações Internacionais,

já que a hierarquia entre as moedas reflete, no plano internacional, a assimetria de poder

existente nas relações interestatais.

A teoria cartalista da moeda foi iniciada com Georg Friedrich Knapp em 1905 e

retomada contemporaneamente (revisada e com novas proposições) por autores pós-

keynesianos. É importante enfatizar que desde Knapp, autores como Max Weber, John

Maynard Keynes e Abba Lerner absorveram em maior ou menor medida a perspectiva

cartalista, inclusive desenvolvendo críticas diretas à Knapp, como Weber, por exemplo,

considerando questões inflacionárias as quais o primeiro não teria se preocupado em suas

análises. Por sua vez, Keynes, apesar de influenciado pelo cartalismo, conferiu mais

importância ao sistema bancário do que Knapp em sua teoria monetária. Já na retomada

contemporânea da abordagem cartalista, esta ganha novos elementos para a compreensão

de uma nova ordem monetária pautada em uma moeda totalmente fiduciária.

Não pretendemos expor a contribuição de cada autor à teoria cartalista, mas sim

apresentar de modo geral sua essência, abordando de modo singelo as divergências entre

os considerados cartalistas ou influenciados por esta abordagem.

Igualmente, buscamos discorrer sobre outras abordagens sobre a moeda que

somam à compreensão de sua relação com o Estado e sua aceitabilidade na economia.

Dessa forma, apresentamos as possíveis convergências entre a teoria convencionalista da

moeda, de Michel de Aglietta e André Orléan, com a teoria cartalista da moeda. Além disso,

procuramos expandir o entendimento sobre a conformação e a aceitação de uma moeda na

economia nacional e internacional por meio da utilização do conceito de poder simbólico do

sociólogo francês Pierre Bourdieu.

1.TEORIA CARTALISTA: MOEDA COMO UMA “CRIATURA” DO ESTADO

Para a teoria cartalista, a moeda está ligada, inerentemente, a questões políticas.

Para esta abordagem teórica, a moeda é uma “criatura” do Estado. Cabe ao poder político a

denominação da unidade de conta e do meio de pagamento que será usado na economia.

3 Nesta pesquisa se usará moeda e dinheiro como sinônimos, apesar de haver discussões concernentes à diferenciação entre esses dois termos.

4

É o Estado que determina o dinheiro da economia ao declarar qual moeda aceitará

para pagamento de tributos. O importante, destarte, para uma moeda é a sua aceitação ou

não pela autoridade soberana. Esta é a força central no desenvolvimento de um sistema

monetário já que tem o poder de escolher qualquer coisa, seja moeda metálica, papel-

moeda, e torná-la aceitável de modo geral ao proclamar que a aceitará como pagamento de

impostos e taxas. O que faz o dinheiro ser aceito pelos cidadãos é sua utilidade em liquidar

essas obrigações ao Estado. Para pagar impostos, o setor privado necessita adquirir o

dinheiro estatal (Bell, 2001).

A origem da moeda não está no âmbito privado, usada inicialmente como um

instrumento facilitador de trocas (como aponta a teoria metalista da moeda), mas sim no

setor público, ligada à denominação e pagamento de dívidas para instituições públicas

(METRI, 2007). Knapp (2003) não desconsidera que a moeda não esteja também

relacionada à busca da diminuição dos custos de transação no processo das trocas, mas, “a

moeda não pode ser definida apenas ou principalmente pela sua função de facilitadora de

trocas, muito menos uma mercadoria eleita entre todas as outras para cumprir este papel”

(AGGIO, ROCHA, 2009:156).

Constata-se que Knapp (2003) parte, efetivamente, de uma crítica aos princípios

teóricos da tradição metalista com a finalidade de analisar o que pensou ser o equívoco

basilar desta (e da literatura econômica de um modo geral): “a exclusão do poder soberano

das questões monetárias, desde o conceito mais elementar de moeda” (METRI, 2007:26).

Para Knapp (2003), não é possível separar a teoria monetária da teoria do Estado.

Com efeito, é importante que se exponha sucintamente a visão da teoria metalista da

moeda com o intuito de se traçar claramente à qual visão a perspectiva cartalista se

contrapõe e compreender mais eficazmente a própria abordagem da “moeda cartal”.

1.1 Alguns aspectos da teoria metalista: uma breve explicação

Existem muitas controvérsias a respeito da natureza e do papel do dinheiro. A

divergência entre metalistas e cartalistas consolida as visões antagônicas que se tem sobre

a origem e a utilidade da moeda na sociedade (BELL, 2001).

A abordagem metalista corresponde em tratar a moeda como um elemento

subordinado à lógica do mercado. A moeda teria surgido espontaneamente na sociedade a

fim de facilitar as trocas em uma economia de escambo. O poder soberano não participaria

desse processo. Muitas ineficiências das trocas seriam superadas, como os custos de

transação. O mercado teria surgido antes que a própria moeda, devido a uma pré-

disposição humana para a troca, defende essa visão. Aristóteles, em “Política”, afirma que a

moeda foi inventada para as necessidades de comércio: “Uma vez que a moeda foi

5

providenciada, o desenvolvimento foi rápido; e aquilo que começou como uma troca

necessária de bens tornou-se comércio...”[...]“O dinheiro, pretendia-se, seria um meio de

troca” (ARISTÓTELES, 1999;158/162). Além disso, as outras funções da moeda, unidade de

conta e reserva de valor, teriam papel secundário. Bell (2001) afirma que a metodologia dos

metalistas é ahistórica e sua abordagem, asocial, tentando “deduzir” o sistema monetário

sem a ideia de um Estado ou reduzir o papel deste a segundo plano.

O valor do dinheiro, nesta análise convencional, foi determinado em algum momento

pelo valor do metal precioso o qual representava. Os metalistas deram destaque aos metais

na função de meio de pagamento em decorrência da sua durabilidade e divisibilidade.

Deste ponto de vista, a moeda não é relevante para o desenvolvimento de um país,

no sentido de só ter valor na medida em que seria conversível em uma mercadoria real. A

demanda por moeda é vista para atender a motivos transacionais, sendo assim, estável ou

previsível (VAL, LINHARES, 2008: 3). A moeda seria um elemento neutro na economia, não

afetando comportamentos ou decisões dos agentes econômicos, já que, de acordo com a

Lei de Say (aceita pelos metalistas), toda oferta (produção) de um setor já corresponde em

si mesma a uma demanda de outro setor.

Outro ponto importante defendido por esta abordagem é que para amplamente

exercer a função de meio de troca, o objeto escolhido para ser dinheiro deve ser “[a] thing

that is useful and has exchange value independently of its monetary function”

(SCHUMPETER, 1994: 63, apud BELL, 2001). Em outras palavras, o dinheiro deve ter um

valor intrínseco. Para os metalistas, os indivíduos coletivamente decidem usar metais

preciosos a fim de facilitar o processo de troca.

Com o intuito de resolver o problema de identificar a quantidade e a qualidade de um

metal que funciona como meio de troca, este começou a requerer uma estampa (garantia)

antes de poder circular amplamente. Dessa forma, caberia ao Estado a cunhagem da

moeda, mas ele somente sancionaria uma moeda que já teria sido elegida pela sociedade.

O poder soberano se limitaria a atestar a integridade do metal precioso, o que leva a

concluir que as moedas metálicas seriam aceitas porque teriam valor por si mesmas, o que

faria delas meios de troca convenientes. Não haveria nenhuma influência ou incentivo por

parte do Estado nesta escolha. O “selo” da moeda não seria a origem do valor da moeda

para a teoria metalista: “’the money commodity goes by weight and quality as do other

commodities’ and that the stamp is put on for convenience ‘to save the trouble of having to

weight it every time, but … is not the cause of its value’ (Idem, p.153).

No que se refere à moeda-papel (ou seja, dinheiro enquanto símbolo e não em sua

forma metálica), os metalistas argumentam que neste momento, o signo do dinheiro (usando

uma expressão de Marx [1988]), poderia ser substituído pela moeda metálica. Porém, a

6

moeda-papel deveria ser conversível em metais preciosos. Contudo, Bell (2001) destaca o

dilema que a teoria metalista enfrenta com o surgimento da moeda fiat, ou seja, quando a

moeda não precisa mais se tornar conversível em metal4. Da mesma forma, essa visão não

conseguiria explicar a demanda por moeda simplesmente para a compra de outra moeda,

ou seja, compreender a moeda como um ativo. Dada a incompletude da teoria metalista, a

abordagem cartalista da moeda busca responder a estas e outras questões.

1.2 Caráter político e social da moeda

A teoria cartalista ou teoria estatal da moeda está relacionada diretamente ao livro

“The State Theory of Money”, de George F. Knapp, lançado em 1905. Esta obra influenciou

as obras de Keynes (1930), Weber (1921), Abba Lerner (1947) e de autores

contemporâneos, como Charles Goodhart, Hyman Minsky, Randall Wray, Stephanie Bell e

outros pós-keynesianos, vinculados diretamente ou não à teoria cartalista da moeda.

Contudo, a discussão concernente à moeda ser uma criação do Estado é anterior à

obra de Knapp (2003). É possível encontrarmos “vestígios” da abordagem cartalista da

moeda em atores como Adam Smith e principalmente na chamada Escola Histórica Alemã

no século XIX5. De acordo com Bell (2001), a noção da moeda como uma “criatura” do

Estado tem uma longa história, talvez datando desde Platão, mas claramente reconhecida já

em Adam Smith.

Bell (2001) argumenta que Smith teria resolvido um paradoxo que os metalistas

teriam sido incapazes de resolver convincentemente por meio desta passagem: A Prince,

Who should enact that a certain proportion of his taxes should be paid in a paper money of a

certain kind, might thereby give a certain value to this paper money (SMITH, 1937:312, apud

BELL [2001]). Apesar de nunca ter se aprofundado nesta questão, Smith teria respondido

por meio dessa frase à indagação de o porquê o dinheiro sem valor intrínseco continua a

circular. Smith pontuou que qualquer coisa que o Príncipe aceite como meio de pagamento

de taxas será imediatamente imbuído de valor, e por isso será demandado como meio para

liquidação de imposto. Destarte, o valor desse dinheiro depende da sua função de liquidar

impostos ou outras obrigações e não da sua relação com qualquer metal (BELL, 2001)6.

4 Walras tentaria solucionar esta questão ao afirmar que a moeda poderia ser reduzida a um número puro (numeraire). Assim, a moeda poderia ser vista como simplesmente a representação de um símbolo de mercadorias “reais” com sua origem sendo considerada irrelevante (BELL,2001). 5 Aggio (2008) discorre que o conceito de moeda do Estado já estava presente em Aristóteles, Platão e no jurista romano Paulus. 6 Bell (2001) argumenta que embora a citação de Smith seja consistente com a teoria cartalista da moeda, ele não a desenvolveu em seus escritos. E inclusive não há um consenso no que concerne à relação mais direta de Smith à teoria cartalista. Esta, em sua forma mais geral é melhor descrita na obra de Knapp (2003), como já discorrido acima.

7

A teoria cartalista prega que a fim de qualquer “coisa” funcionar como moeda, ela

deve ser reconhecida pelo Estado. Nessa relação fundamental entre poder soberano e

sistema monetário, a moeda torna-se essencialmente um instrumento político que visa o

fortalecimento do poder estatal e a concentração de poder. Esta abordagem teórica procura

desvendar como a origem da moeda está imbricada às lutas de poder político e de

dominação, inicialmente por meio da tributação no âmbito nacional. Fiori (2004: 30) afirma

como as moedas estatais tornam-se de importância decisiva “para o processo de

acumulação de poder (...) ‘a moeda e não mais a terra tornou-se a forma dominante de

riqueza. Só então é que os grandes monopólios de poder deixam de se fragmentar e sofrem

uma lenta transformação centralizante...’”.

A princípio se restringindo a economias nacionais, a teoria estatal da moeda, ao

relacionar o poderio estatal com o poder monetário, também contribui para a análise da

moeda no plano internacional. A moeda torna-se um dos cenários de disputa nas relações

interestatais.

(...) o dinheiro só tem validade e curso normal dentro de cada país porque está assegurado por uma autoridade (...). O mesmo deve ser dito da circulação supraestatal do dinheiro e do primeiro regime monetário internacional (...) a administração da moeda tem papel decisivo, tanto na competição intercapitalista como na luta por poder e hegemonias internacionais. Cada sistema ou regime monetário internacional representa “síntese”’ transitória da correlação de forças entre os agentes privados e poderes políticos e é verdadeira radiografia do grau de soberania econômica de cada Estado Nacional (Fiori, 2001: 20 e 21).

À maneira como ocorre dentro das fronteiras nacionais, internacionalmente são “os

movimentos do poder político a pista principal para o entendimento da construção de

territórios monetários que ultrapassem as fronteiras políticas do soberano7” (METRI,

2007:54). A ampliação da esfera de influência das finanças e moedas dos Estados sempre

esteve ligada à expansão de seus territórios econômicos. Uma moeda estatal forte integra-

se a um sistema financeiro nacional também robusto, aliança esta que tende a se ampliar.

A expansão e a aceitação de uma dada moeda no âmbito internacional pode se dar

mediante: o acesso a colônias, engendrando a capacidade de tributar para além de suas

fronteiras; o controle da produção e comercialização de matérias-primas estratégicas; o

poder diplomático para abrir mercados e compelir políticas monetárias e fiscais favoráveis

em outros Estados nacionais; a expansão de firmas em territórios estrangeiros. Além desses

7 De acordo com Crespo e Cardoso (2010), os cartalistas (pelo menos Knapp e seus contemporâneos) não se

ativeram ao desdobramento lógico da ordem hierárquica monetária no âmbito internacional.

8

elementos, existe um outro que se destaca: ele diz respeito ao poderio dos sistemas

financeiros em criarem créditos e obrigações denominados na moeda do Estado para além

de suas próprias fronteiras (CRESPO, CARDOSO, 2010). Fiori (1997) argumenta que no

final do século XIX, iniciou-se a aliança entre o Estado e as “altas finanças”. Os avanços

financeiros, juntamente com as conquistas comerciais passaram a definir as novas fronteiras

econômicas dos Estados nacionais. Nos séculos XX e XXI, a aliança entre o capital

financeiro e os grandes poderes políticos se tornou ainda mais intensa e imprescindível do

que no período anterior.

A assimetria existente nas relações interestatais se reflete na hierarquia monetária

no plano internacional. O Estado com maior poder político, econômico e militar detém maior

aceitação de sua moeda.

Dessa forma, para a teoria cartalista, “[é] pois impossível separar a teoria monetária

da teoria do Estado” (WRAY, 2003:43). Knapp (2003:viii) afirma que “espera pela aprovação

e talvez pela ajuda daqueles que tomam o sistema monetário (ou melhor, todo o sistema de

pagamentos) como um ramo da Ciência Política”. O Estado, portanto, assume papel central

no estabelecimento de um sistema monetário.

1.3 Moeda como dívida: centralidade da função unidade de conta

A teoria cartalista procura desvendar a origem do valor como mais do que a simples

representação do dinheiro vinculado a metais preciosos (moeda metálica). A moeda neste

caso não é vista como uma commodity com valor de troca, como simplesmente uma

mercadoria escolhida dentre outras para exercer o papel de moeda. Assim, os cartalistas

não se atêm primordialmente à função meio de troca do dinheiro (BELL, 2001). Essa

abordagem procura de fato desvendar as propriedades essenciais do dinheiro enquanto

unidade de conta e meio de pagamento. Ao se atentarem à origem social da moeda, os

cartalistas elaboram uma teoria do dinheiro desvinculada do mercado.

A moeda é vista pelos cartalistas como um crédito para quem as possui e dívida

(obrigação) para quem a emite. A criação de dinheiro envolve a aceitação do débito do

outro. Alfred Mitchell Innes é um dos autores que afirma ser a relação entre débito e crédito

anterior tanto lógica quanto historicamente ao meio de troca. Nesta perspectiva, Metri

(2007:14), se baseando em Innes (2004) afirma: “toda transação econômica não representa

a permuta de uma mercadoria (ou serviço) por um meio de troca (uma moeda), mas, sim, a

troca de uma mercadoria (ou serviço) por um crédito, isto é, por um direito a receber, por um

haver” (Idem). Não há necessidade de uma moeda em espécie (moeda metálica, por

exemplo) para que as transações se concretizem. A moeda pode funcionar apenas

idealmente, em decorrência do reconhecimento comum da relação credor-devedor.

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No caso da criação de moeda emitida pelo Estado, indivíduos privados concordam

em manter a dívida do Estado, e a moeda corrente do poder soberano torna-se de fato

dinheiro ao ser amplamente aceito. Por um lado há o ativo (uma taxa de crédito), por parte

do indivíduo; por outro lado, há a dívida que o Estado assume com esse indivíduo (a moeda

é uma dívida; o Estado assume a promessa de recebê-la de volta em pagamento de taxas

ou outras dívidas). Dessa forma, a criação do dinheiro, envolve sempre dois lados que

interagem concomitantemente, como se fossem dois lados de uma balança, na qual uma

parte está de acordo em manter a dívida da outra parte.

Segundo Knapp (2003), as dívidas (moedas) são expressas em uma unidade de

valor – unidade em que o total do pagamento é expresso. Unidade de conta é um padrão

abstrato e arbitrário de medição. No caso da moeda, a unidade de conta serve para

mensurar débitos e créditos, bem como o valor de mercadorias e serviços (METRI, 2007).

Assim, toda dívida (moeda), por ser expressa em uma unidade de medida monetária que é

abstrata e arbitrária, é de fato nominal; não está vinculada a nenhum metal.

Qualquer unidade de conta, monetária ou não, por ser uma abstração, não pode ser

algo palpável. Um “metro”, um “quilo”, bem como as unidades monetárias “dólar”, “real”,

“iuane” etc, não são concretas, sendo construídas em um dado período da história e

reescritas e um outro momento: “[u]ma nota de 01 real [...], nada mais é do que uma

evidência de dívida do governo brasileiro no valor de uma unidade monetária de real; ou

seja, é uma dívida emitida pelo governo brasileiro de valor unitário, medido com base no

padrão monetário deste país, o real” (Idem, p.17).

As dívidas, por sua vez, precisam ser saldadas com meios de pagamento, uma

“coisa” ou “objeto”, que detém a propriedade legal de ser portador da unidade de valor (de

conta) (KNAPP, 2003).

o próprio dinheiro [meio de pagamento], principalmente aquele com o qual são liquidados os contratos de dívida e os contratos de preço, no qual é mantido um estoque de poder de compra geral, deriva sua natureza das suas relações com a moeda-de-conta [unidade de conta], desde que dívidas e preços tenham sido primeiro expressos em termos desta última (KEYNES, 1930:3, apud WRAY,2003: 49).

Em sua teoria monetária, Keynes (1930) aponta a diferença e relação entre unidade

de conta e meio de pagamento, dando destaque à unidade de conta (que ele denomina

“moeda de conta”) como o principal conceito de uma teoria monetária. O autor explica como

a moeda de conta corresponde “a descrição ou denominação [unidade de conta] e o

dinheiro é aquilo que corresponde à descrição [o meio de pagamento]” (KEYNES, 1930:3-4,

apud WRAY, 2003: 49).

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Os cartalistas reconhecem que a criação e uso da moeda ocorre por meio de um ato

de poder do Estado quando este institui a unidade de conta/valor8, por intermédio da

cobrança de tributos, para a economia e estabelece o meio de pagamento, que está

referenciado nesta unidade de conta. Por isso que se afirma ter a moeda uma natureza

política.

Weber (2001), discorrendo a respeito da organização do sistema monetário na

economia moderna, aponta a centralidade do papel do Estado em sua composição:

Sem dúvida, a ordem jurídica e administração de um Estado, dentro do âmbito de seu poder, podem conseguir a validade formal legal e também a forma regimental de determinada espécie de dinheiro como padrão monetário, desde que o próprio Estado mantenha sua solvência nessa espécie de dinheiro (WEBER, 2001:120).

Hyman Minsky9 (1986, apud WRAY, 2003), influenciado pela abordagem cartalista,

afirma que são os tributos que dão valor à moeda emitida pelo Estado:

Numa economia onde a dívida do governo é um ativo importante nos registros contábeis dos bancos de depósitos e emissão, o fato de que tributos devem ser pagos dá valor à moeda da economia (...). A necessidade de pagar tributos significa que as pessoas trabalham e produzem para obter aquilo com que podem pagar os tributos” (Minsky, 1986:231, apud Wray, 2003: 56).

O meio de pagamento aceito pelo Estado será utilizado para liquidar todos os débitos

da economia e “será aceito por todos os agentes da economia em posição de credor”

(AGGIO, ROCHA, 2009: 155). Em outras palavras, o Estado, ao determinar a unidade de

conta, por meio da cobrança de impostos, acaba por impor o meio de pagamento nacional.

Isso porque inevitavelmente os agentes econômicos terão de pagar o poder soberano com a

moeda aceita por ele. Dessa maneira, não é necessariamente o conteúdo intrínseco da

moeda que confere valor a ela (isto é, não importa o material de que são feitas, como ouro,

prata, papel etc.), mas sim o fato de ela ser universalmente aceita (BELL, 2001). Por isso

que a toda dívida é nominal.

É desta forma que Keynes (1930) afirma que a “era da moeda cartalista” ou moeda

estatal se iniciou quando o Estado “invocou o direito não apenas de impor o dicionário [o

meio de pagamento], mas também de escrever o dicionário [determinar a unidade de conta]”

(KEYNES, 1930:5, apud WRAY, 2003: 49-50). Keynes (1930) argumenta que é o Estado

que determina tanto o que serve como moeda-de-conta (unidade de conta) quanto

8 Knapp (2003) utiliza o termo “unidade de valor”. Neste trabalho, privilegia-se o uso do termo “unidade de conta”. 9 Considerado um dos maiores especialistas em teoria monetária e financeira da segunda metade do século XX (LOURENÇO, 2006).

11

estabelece “a coisa” que será aceita como dinheiro (o meio de pagamento). Para Keynes,

como para Knapp, o poder soberano, ao determinar o valor nominal da moeda, garante sua

validação e aceitação.

Segundo Knapp (2003), em um processo de transação, a garantia da troca (o

encerramento do débito) fica condicionada à existência de alguma unidade de conta

invariável e contínua no tempo. Caso a unidade de conta seja substituída por outra, é

preciso que haja uma regra de conversão para a nova unidade, pois é necessário que a

relação de valor se mantenha inalterável. “É a relação de estabilidade temporal entre a

unidade de conta e meio de pagamento que determinará qual dentre vários possíveis será

ou não moeda” (AGGIO, ROCHA, 2009:157). A moeda deve ser um meio de pagamento

“que preserva a condição de valor observada no momento da troca” (Idem). Porém,

nenhuma moeda em si mesma representa uma unidade fixa de valor, já que os preços

podem variar, na unidade de conta estabelecida, modificando as condições de pagamento.

Assim, a moeda corresponde a uma criatura do Estado porque somente ele é capaz de

manter esta relação estável e contínua entre unidade de conta e meio de pagamento ao

justamente estabelecer a unidade de conta. Mesmo uma moeda de ouro, por exemplo, não

tem necessariamente o valor igual ao preço de mercado da quantidade de ouro que a

compõe. Cabe ao Estado estabelecer uma condição de conversibilidade caso exista

modificação dos meios de pagamento.

A atuação do Estado permite a composição de um sistema de pagamentos confiável

e durável. Keynes (1930) se atenta a esse caráter regulador do Estado ao observar a

existência de um sistema bancário já desenvolvido e regulado por um banco central.

Destarte, por meio de seu poder jurídico e legislativo, o Estado regulamenta e supervisiona

o estabelecimento de contratos constituídos em termos nominais (AGGIO, 2008).

O Estado, portanto, atua, em primeiro lugar, como a autoridade legal que obriga ao pagamento da coisa que corresponde ao nome ou descrição nos contratos. Mas atua uma segunda vez quando, além disso, invoca o direito de determinar e declarar que coisa corresponde ao nome, e mudar sua declaração de tempos em tempos – quando, por assim dizer, ele invoca o direito de reeditar o dicionário. Este direito é invocado por todos os Estados modernos e vem sendo invocado há quatro mil anos pelo menos (KEYNES, 1930:4, apud WRAY, 2003: 49).

Dessa forma, podemos perceber a relação fundamental que existe entre moeda

como unidade de conta e a necessidade da regulação estatal. Isto é, havendo sempre

posições futuras (contratos) estabelecidas na economia na unidade de conta representada

pela moeda, faz-se necessária alguma percepção de garantia sobre a manutenção, contínua

no tempo, desta unidade, mesmo no caso em que a forma da moeda que representa tal

12

unidade de conta seja alterada (AGGIO,ROCHA, 2009). Keynes (1930) demonstra o papel

do Estado nesse processo ao ser responsável pela manutenção da unidade de conta e da

sua relação com o meio de pagamento.

A “alma da moeda”, afirma Knapp (2003:2), não está no material de que são feitas,

mas sim “nas ordenações legais que regulam seu uso”. Dessa maneira, a unidade de conta

não precisa ter nenhuma relação com algum metal pois, “dado que a moeda é uma relação

social que depende das relações de poder, não existe nenhuma característica natural que

converta qualquer objeto particular em moeda” (CRESPO,CARDOSO, 2010: 4). Dessa

maneira, pelo fato de o Estado instituir a unidade de conta, faz desta uma legítima criatura

do Estado (LERNER, 1947). O conteúdo da moeda não é determinante para sua ampla

aceitação.

A moeda, portanto, sempre significa um meio de pagamento cartal. A palavra Cartal

advém do latim “Charta”, e detém o sentido de símbolo ou bilhete. Knapp (2003) define

dinheiro como um meio de pagamento cartal. Ela somente necessita de sua validação

social. Para isso é imprescindível a participação do Estado. Logo, o poder político exerce um

papel central no desenvolvimento e estabelecimento do dinheiro, legitimando-o enquanto

símbolo, um meio de pagamento cartal, sem necessidade de vinculá-lo com alguma

substância metálica.

O conceito de moeda estatal não está relacionado somente à moeda emitida pelo

Estado, e não se deve aceitar a ideia de que as leis de curso forçado determinam o que

deve ser aceito como meio de pagamento. O cartalismo vai além disso:

O que faz parte do sistema monetário do Estado e o que não faz? Não devemos tornar nossa definição muito estreita. O critério não pode ser que a moeda é emitida pelo Estado, porque isso excluiria modalidades de moeda que são da mais alta importância; eu me refiro às notas bancárias: elas não são emitidas pelo Estado, mas fazem parte do seu sistema monetário. Nem pode a moeda de curso legal ser tomada como critério, porque em sistemas monetários há frequentes modalidades de dinheiro que não são de curso legal (...). Ficamos mais perto dos fatos se tomamos como nosso critério que o dinheiro seja aceito nos pagamentos feitos aos guichês do Estado. Então todos os meios pelos quais um pagamento pode ser feito ao Estado fazem parte do sistema monetário. Nessa base não é a emissão, mas a aceitação, como a chamamos, que é decisiva. A aceitação estatal delimita o sistema monetário. Pela expressão “aceitação estatal” entenda-se somente a aceitação nos guichês de pagamento do Estado onde o Estado é o recebedor (KNAPP, 2003:95, apud WRAY, 2003:45, grifo nosso).

Destarte, “no tempo atual, em uma economia que funciona normalmente, dinheiro é

uma criatura do Estado. Sua aceitabilidade geral, que é o seu principal atributo, mantém-se

ou se reduz segundo sua aceitabilidade pelo Estado” (LERNER, 1947:313, apud WRAY,

13

2003: 56). Pelo fato de a moeda do Estado ser o único meio de liquidação de obrigações

fiscais e porque essas taxas se repetem período a período, o setor privado continuamente

precisará de moeda estatal (BELL, 2001). Mas como observamos, não somente a moeda

emitida pelo Estado, mas diferentes moedas privadas também podem ser moedas estatais,

desde que sejam aceitas pela autoridade soberana, contribuindo para a composição de um

dado sistema monetário.

1.4 Moedas privadas e a hierarquia monetária

Como toda moeda é uma evidência de dívida, o Estado não é o único capaz de

emitir moeda. Dinheiro representa uma promessa de pagamento futuro e esta promessa

pode ser criada por qualquer um. O “segredo” para tornar essa promessa em dinheiro é

fazer com que outros indivíduos ou instituições aceitem essa promessa. Portanto, não há

monopólio de emissão de dinheiro: “a emissão de moeda não é um privilégio do poder

soberano, mas uma prática comum aos mercadores, banqueiros e agentes econômicos de

um modo geral que conseguem emitir dívidas com base na unidade de conta estabelecida”

(METRI, 2007:17).

Assim sendo, embora o Estado seja o emissor da unidade de conta, isso não impede

que outros agentes da economia (bancos, por exemplo) criem moeda enquanto meio de

pagamento e reserva de valor – sempre pautada na unidade de conta estabelecida pelo

Estado.

Como discorremos, a aceitação de uma “dívida” é um elemento-chave para sua

transformação em moeda. Contudo, existem diversos graus de aceitação de uma moeda na

economia. Dessa forma, uma hierarquia entre as diversas moedas se consolida.

A hierarquia monetária pode ser pensada como uma pirâmide multicamadas onde

cada nível representa promessas com diferentes graus de aceitação (FOLEY, 1987, apud

BELL, 2001: 158). Mas, se todas as promessas são denominadas na mesma unidade de

conta, por que algumas são consideradas mais aceitáveis socialmente que outras? A

resposta encontra-se na “qualidade” do emissor da moeda.

As moedas da base da pirâmide, para serem aceitas, devem ser conversíveis na

dívida (moeda) de alguém em uma posição mais alta da hierarquia. Por exemplo, títulos

vendidos por uma empresa (a fim de financiar a compra de uma nova planta, por exemplo)

tem menos liquidez porque eles não necessariamente são convertidos rapidamente no meio

de troca com menos perda de valor (moeda com maior grau de aceitação). Pode-se

inclusive requerer o pagamento de juros para compensar o risco associado à manutenção

de ativos com menor liquidez (WRAY, 1990:16, apud BELL, 2001:159).

14

A dívida (moeda) emitida privadamente, como a moeda bancária, pode ser aceita

para se liquidar transações mesmo se não é declarada como moeda pelo governo. Em

outras palavras, ela circula lado a lado com a moeda estatal, mesmo sem ser reconhecida

pela autoridade soberana (KEYNES, 1930). Dessa forma, observa-se como o Estado,

conquanto defina a moeda, não consegue controlar sua quantidade.

A dívida do Estado é a moeda mais aceita na pirâmide e, portanto, ocupa seu topo.

Somente a moeda emitida pelo governo (moeda valuta) é “decisiva”, pois encerra as

obrigações tributárias em última instância. As moedas bancárias podem até ser

contabilizadas na unidade de conta da economia, mas elas não representam e nem definem

essa medida de valor. Dessa forma, para Keynes, as moedas bancárias não seriam dinheiro

propriamente dito (money proper), já que não haveria uma relação determinante entre elas e

a unidade de conta (PAIVA, 1994). “Para Keynes, estava claro que a natureza principal da

moeda decorre de sua relação com a unidade de conta, uma vez que os próprios contratos

de dívidas e de preços expressam-se primeiramente em termos desta, antes que possam

ser de fato liquidados” (METRI, 2007:44). Mas Keynes não deixa de reconhecer que elas

também podem ser usadas para liquidar transações.

2. TEORIA DA MOEDA COMO CONVENÇÃO E O CONCEITO DE PODER SIMBÓLICO:

OUTRAS CONTRIBUIÇÕES À COMPREENSÃO DA MOEDA E SUA ACEITABILIDADE10

Outras abordagens sobre moeda convergem com a teoria cartalista e somam à

percepção da moeda e sua aceitabilidade na economia.Dentre elas está a teoria

convencionalista da moeda de Aglietta e Orléan (2002).

De acordo com Aggio (2008), a teoria da moeda como convenção compartilhada

entre Aglietta e Orléan e a abordagem cartalista não se excluem mutuamente.

Conjuntamente, estes dois instrumentais teóricos complementam a análise da moeda,

contribuindo para entender sua aceitação na economia capitalista pelos agentes

econômicos.

Para estes autores, a aceitabilidade de uma moeda em um dado ambiente

econômico é resultado de uma convenção social. A moeda, para eles, se configura ela

mesma em uma instituição social, correspondendo a “uma reserva de riqueza de liquidez

absoluta” (AGGIO, 2008:38). Ela se torna representante da riqueza absoluta por possuir

uma aceitação generalizada, sem qualquer acordo explícito entre os indivíduos e sem a

10 Parte importante dessa seção foi baseada em Aggio (2008).

15

participação do Estado. Neste caso, percebe-se aqui uma clara divergência em relação à

abordagem cartalista.

Os indivíduos vivem, de acordo com Aglietta e Orléan (2002), em um ambiente de

incerteza e insegurança inerente em função da ausência de laços sociais entre eles. A

busca de subsistência entre os agentes não está garantida. Desse modo, a fim de

minimizarem os efeitos dessa realidade, os indivíduos buscam uma forma de proteção. A

“riqueza de liquidez absoluta” corresponde ao objeto de desejo de todos que cobiçam essa

proteção.

Os indivíduos buscarão pela forma líquida de riqueza, não importa qual seja esta

forma. Na gênese desse processo, cada agente preferirá que a forma geral de riqueza

socialmente aceita seja o bem que ele produz ou tenha fácil acesso, a fim de obter

vantagens. Porém, esse processo de seleção da riqueza líquida geral ocorre dentro de uma

dinâmica própria, não relacionada com a vontade individual de cada agente. Isso acontece,

de acordo com Aglietta e Orléan (2002), porque nenhum indivíduo possui mais relevância

que outro isoladamente. Necessariamente se engendra um ambiente de unanimidade em

relação à eleição da forma da riqueza líquida. A escolha da moeda se deve, portanto, a um

processo de unanimidade (convergência das crenças rumo à unanimidade) e não em

decorrência do poder do Estado, como defende a teoria cartalista.

Inicialmente, nenhum agente sabe qual é a forma dessa riqueza de maior liquidez. A

moeda, por sua vez, surge como a forma concreta da “riqueza”. Contudo, a moeda só se

torna instituição social que adquire a forma de riqueza após o reconhecimento de todos os

agentes da economia. Por isso que a moeda é “aquilo que todo mundo considera que seja

moeda” (AGLIETTA, ORLÉAN, 2002: 85, apud AGGIO, 2008). Todavia, quando a moeda é

estabelecida pelos agentes, estes tendem a vê-la como possuidora de uma “(...) uma

natureza radicalmente diferente das outras mercadorias profanas” (Idem). Isso ocorre pelo

fato de a moeda possuir legitimidade. É sobre a legitimidade que se constrói a confiança na

moeda, se garante sua durabilidade e a continuidade de seu uso no decorrer do tempo.

Da mesma forma que a abordagem cartalista, Aglietta e Orléan (1990) questionam a

abordagem da ciência econômica ortodoxa, pois esta desconsidera a natureza dos

fenômenos monetários e seu caráter inerentemente social: “Trata-se de uma tarefa de

purificação de tudo o que a moeda traz de desordem, de arbitrário, de luta, de poder, de

compromisso convencional, de fé cega; em resumo, de toda vivência social, para elevar-se

ao céu resplandecente da teoria” (Idem, p. 27). As relações econômicas não são relações

naturais. Como a linguagem é um sistema estruturado, a moeda também é um sistema

estruturado, tão pouco natural quanto o é a fala. A moeda possui “um modo de socialização

16

particular, determinado historicamente, e não a forma absoluta das relações entre

produtores privados” (Idem, p.37).

Desse modo, a moeda aceita de forma generalizada em uma economia capitalista

mantém seu caráter social de convenção (abordada por Aglietta e Orléan) e é a moeda do

Estado. Ou seja, um indivíduo aceita a moeda porque espera que os outros também a

aceitem e ela é em algum grau arbitrária. Nesse sentido, o Estado é a instituição mais apta

para gerar um contexto de confiança (dado seu poder de impor a unidade de conta)

suficiente para que demais agentes privados essa moeda e pautem suas relações

econômicas nela. A “moeda aceita de forma generalizada em uma economia capitalista

deve ser a moeda do Estado” (AGGIO, 2008). Destarte, a moeda estatal tem menos

propensão a deixar de ser aceita pelos agentes econômicos.

Mas a moeda estatal não perde sua característica de convenção, pois pode deixar

de ser aceita quando o Estado não consegue manter um contexto de confiança suficiente

para que os indivíduos aceitem manter relações econômicas pautadas nessa moeda. A

Argentina, por exemplo, para tentar sustentar a estabilidade, e consequentemente, a

aceitabilidade de sua moeda nacionalmente, manteve a paridade do peso argentino, de

1991 até o começo dos anos 2000, com a moeda mais importante da economia global (o

dólar).

Assim sendo, a ideia de que os agentes em uma dada comunidade de pagamento

aceitarão uma moeda porque eles esperam que os outros também a aceite (conceito de

moeda convenção) é totalmente compatível com a ideia de que a moeda mais aceita no

campo econômico seja a moeda que o Estado recebe como pagamento de tributos (moeda

estatal) – ideia defendida pela abordagem cartalista. Os agentes possuem uma participação

mais ativa na legitimação da moeda estatal na economia do que inicialmente defendem os

cartalistas.

Entretanto, não é qualquer moeda que é eleita por um processo de construção de

uma unanimidade, diferentemente do que afirmam Aglietta e Orléan (1990). A moeda que

está pautada em um poderio estatal forte, ou seja, a moeda estatal terá o contexto favorável

para se tornar legítima e ter uma aceitabilidade generalizada por parte dos demais agentes.

É o Estado que cria uma unidade de conta que se torna âncora para as demais moedas,

instituindo a cobrança de impostos, ao deter o monopólio legítimo da força, e poder declarar

qual moeda aceitará como pagamento desses tributos. Além do mais, é o Estado que pode

regulamentar os contratos, ao ser responsável por manter uma relação estável e contínua

entre unidade de conta e meio de pagamento, criando um contexto de confiabilidade nestes.

Assim, ampliando o conceito de moeda pela abordagem cartalista, a moeda estatal

não é somente aquela que o Estado aceita em seus guichês de pagamento, mas também a

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que os agentes privados aceitam amplamente. A aceitabilidade de uma moeda não está

somente vinculada ao fato de o Estado a requerer para pagamento de tributos, mas também

se deve ao fato de os agentes a demandarem por considerarem que outros a aceitarão. A

moeda é demandada na economia em quantidade superior à necessária para pagamento de

impostos. Esta situação ressalta o caráter da moeda como convenção. Outro fator que

destaca esse caráter, e que está relacionada com a abordagem cartalista, diz respeito em

como a aceitação por parte do Estado de uma dada moeda (tornando-a moeda estatal) a

tornará mais apta a se tornar a moeda-convenção. Igualmente, a recusa do Estado em

aceitar uma certa moeda em pagamento de tributos a tornará menos apta a se tornar uma

moeda vastamente aceita (ou com menor liquidez).

Essa aceitação está altamente condicionada pelo poder do Estado de estabelecer a

unidade de conta de sua comunidade de pagamento por meio da cobrança de tributos a

todos os membros dessa comunidade, impondo a condição de devedor a eles. Dessa forma,

os “súditos” do poder soberano, a fim de pagar os impostos, deverão de algum modo ter

acesso à moeda aceita pelo Estado para liquidar esses impostos. Essa aceitação inicial pela

moeda estatal pode se tornar uma aceitação generalizada.

A moeda estatal, enquanto manifestação de poder, exerce hegemonia em sua

respectiva comunidade de pagamento. E essa hegemonia está pautada tanto na capacidade

de o Estado impor a unidade de conta geral (abordagem cartalista) quanto na aceitação

geral da moeda na economia respaldada pelo poder simbólico que exerce.

A aceitação pelos agentes é importante para a legitimidade de uma moeda. Todavia,

essa aceitação não é fruto da espontaneidade. Ela é engendrada pelo poder simbólico que a

moeda amplamente aceita exerce em uma dada comunidade de pagamento e que esconde

sua natureza estatal e arbitrária.

De acordo com Bourdieu (1989: 14-15), o poder simbólico é o:

poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos ‘sistemas simbólicos’ em forma de uma ‘illocutionary force’ mas que se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença.

Os agentes, ao estarem inseridos na comunidade de pagamento do Estado, não

percebem a moeda como um instrumento de poder estatal, não se sentem coagidos face à

sua hegemonia. A aceitação dessa moeda pelos indivíduos é percebida como “natural”, não

18

conformada por uma estrutura de poder estatal que consegue impor o domínio de sua

moeda a todos os agentes econômicos que fazem parte de sua comunidade de

pagamento.Porém, a moeda de ampla aceitação na economia está sim calcada no poderio

estatal (ao aceitá-la no pagamento de tributos), mas cria-se um ambiente de “aceitabilidade”

face a essa moeda, por meio do poder simbólico que exerce, o que obscurece o caráter

impositivo da moeda.

Sua aceitação generalizada, seja no plano nacional ou internacional, adquire um

grau de abstração tal em relação ao poder estatal que configura a unidade de conta principal

da economia, que a moeda se torna uma espécie de “poder invisível”. Neste sentido, pode

haver um diálogo com o conceito de poder simbólico, já que “o poder simbólico é, com

efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que

não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (Idem, p. 7-8). “[A

moeda] implica, ao contrário, um desconhecimento desses agentes, face ao fenômeno que

eles provocam’” (AGLIETTA, ORLÉAN, 1990:19-20). Dessa forma, a abordagem da moeda

como convenção ganha destaque, já que ressalta o caráter social da moeda, a necessidade

de sua aceitação generalizada pelos agentes econômicos para que a moeda ganhe

proeminência. Porém, essa abordagem ofusca o caráter estatal e arbitrário da moeda.

Poder simbólico corresponde a “uma espécie de ‘circulo cujo centro está em toda

parte e em parte alguma’ [...]” um poder que “se deixa ver menos, onde ele é mais

completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico” (BOURDIEU, 1989:7). O

poder simbólico que a moeda estatal exerce no campo econômico cria uma lógica social que

corrobora sua proeminência na economia.

A moeda estatal funciona como uma forma simbólica que exerce um poder

estruturante. O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a

estabelecer uma ordem, um sentido de mundo. “[O]s símbolos são os instrumentos por

excelência da ‘integração social’”. “Eles tornam possível o consensus acerca do sentido do

mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social” (Idem, p.

10). O poder simbólico da moeda estatal é traduzido na confiança (crença) na sua

legitimidade e naquele que acredita nesta crença.

Portanto, essa confiança, essa preferência pela moeda estatal no sistema monetário

(nacional e internacional) está pautada não somente no poderio do Estado ao estabelecer a

unidade de conta da economia, mas também em um “poder subordinado, [...] uma forma

transformada, quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de

poder...”, o poder simbólico (Idem, p. 15).

19

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo apresentamos concepções teóricas que nos auxiliam no entendimento

das correlações existentes entre moeda e poder estatal.

Para a teoria cartalista, a moeda está inerentemente vinculada ao poder soberano. É

este que determina o dinheiro da economia ao declarar qual moeda aceitará como

pagamento a ele mesmo. O Estado é central no desenvolvimento de um sistema monetário

já que tem o poder de determinar que qualquer coisa funcione como moeda. O importante,

destarte, para uma moeda é a sua aceitação ou não pela autoridade soberana. Nesse

sentido, na relação fundamental entre política e sistema monetário, a moeda torna-se

essencialmente um instrumento político que auxilia o processo de acumulação de poder

pela autoridade soberana.

Discorremos como uma hierarquia monetária existe não somente entre as moedas

privadas e a moeda estatal, mas entre as diferentes moedas nacionais. Logo, as relações

monetárias internacionais são altamente assimétricas e competitivas. Diferentemente do que

ocorre no contexto nacional, vimos como no ambiente internacional a habilidade de os

Estados de tornarem suas moedas amplamente aceitas não se relaciona com sua

capacidade de cobrar tributos. A expansão de seu sistema financeiro, além de seu poder

político e militar, o que o torna apto a exercer influência em territórios alhures, são

elementos fundamentais para essa finalidade.

Além da teoria cartalista, apresentamos outras abordagens que convergem com a

ela e que contribuem para o entendimento da natureza da moeda e de sua aceitabilidade na

economia. A teoria convencionalista da moeda de Aglietta e Orléan (2002) afirma que a

aceitação de uma moeda em um dado ambiente econômico é resultado de uma convenção

social. Ou seja, moeda é aquilo que os agentes econômicos consideram moeda, é a riqueza

socialmente reconhecida e legítima. A escolha da moeda se deve a um processo de

unanimidade e corresponde a uma proteção reconhecida socialmente contra a incerteza na

economia. Portanto, a moeda mantém seu caráter social de convenção, e

concomitantemente, é a moeda do Estado, o que mantém seu caráter arbitrário. A

autoridade nacional é a mais apta a criar um contexto de confiança, ao impor a unidade de

conta, para os demais agentes aceitarem essa moeda.

Entretanto, complementamos o nosso entendimento de moeda com o conceito de

poder simbólico, desenvolvido por Pierre Bourdieu (1989). Argumentamos que a aceitação é

importante para a legitimidade de uma moeda, mas ela não é resultado da espontaneidade.

Ela é produto do poder simbólico que a moeda amplamente utilizada exerce nos agentes

que a aceitam. O poder simbólico mascara a natureza estatal e arbitrária da moeda. Sua

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aceitação pelos indivíduos é percebida como natural, o que obscurece seu caráter

impositivo.

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