iv simpÓsio gÊnero e polÍticas - uel.br gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as...

14
1 IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA 08 a 10 de junho de 2016 GT Gênero e religiosidades Igreja da Comunidade Metropolitana de Maringá, Paraná: identidade cristã e LGBT é possível? Adriana Gelinski (Universidade Estadual de Ponta Grossa, PR Mestranda em Gestão em Território

Upload: buicong

Post on 07-Dec-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

1

IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA

08 a 10 de junho de 2016

GT Gênero e religiosidades

Igreja da Comunidade Metropolitana de Maringá, Paraná: identidade cristã e LGBT é

possível?

Adriana Gelinski (Universidade Estadual de Ponta Grossa, PR

Mestranda em Gestão em Território

Page 2: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

2

IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS GT Gênero e religiosidades

Igreja da Comunidade Metropolitana de Maringá, Paraná: identidade cristã e LGBT é

possível?

Adriana Gelinski1

Resumo: O presente trabalho concentra-se no seguinte objetivo: compreender como se

elabora uma identidade cristã de grupos LGBT, através do cotidiano da Igreja da Comunidade

Metropolitana (ICM) em Maringá, Paraná. Esta ICM, como outras, intitula-se radicalmente

inclusiva, ao realizar uma leitura alternativa dos textos bíblicos, em que reflete e articula

sobre as identidades sexuais e de gênero de modo flexível: entendendo a mobilidade e

multiplicidade das pessoas. Foram realizadas dez entrevistas a partir de um roteiro

semiestruturado e das vivências com a comunidade, o que resultou em um diário de campo.

Como resultado, evidenciamos que a ICM é um espaço de acolhimento, práticas e discursos, e

que a mesma elabora trocas de vivências e experiências nas relações sociais, tecendo uma

identidade cristã e LGBT.

Palavras-chaves: ICM; Identidade; Teologia inclusiva.

1 Universidade Estadual de Ponta Grossa, PR; mestranda em Gestão em Território;[email protected].

Page 3: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

3

Introdução

A presente reflexão tem como objetivo compreender como se elabora uma identidade

cristã de grupos LGBT da cidade de Maringá, através do cotidiano da Igreja da Comunidade

Metropolitana em Maringá, Paraná. A partir dos caminhos de reflexão traçados nessa

pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas

nas espacialidades e como se elabora uma identidade cristã através do cotidiano da ICM-

Maringá. As imaginações geográficas que foram proporcionadas ao acesso à ICM-Maringá,

levaram-nos à construção do recorte do grupo de pessoas LGBT e frequentadoras da ICM-

Maringá. Segundo o mesmo campo e as entrevistas, a ICM-Maringá constitui-se enquanto

uma possibilidade de vivências e práticas inclusivas. A ICM-Maringá pode ser compreendida

como um espaço que é vivenciado no cotidiano de pessoas que comungam uma determinada

forma de ver, significar e entender o mundo, essas buscam se reunir em espaços como igrejas,

casas de amigos e familiares, bares, boates, praças e ruas. Espaços estes que proporcionam

inúmeros sentimentos, experiências e vivências, as quais podem contribuir para a constituição

de identidades como é o caso da ICM-Maringá, a qual não segue o discurso heteronormativo

ou a linearidade de corpos, sexo, gênero, prática sexual e desejo. A construção da identidade

“é um processo que não tem fim ou destino, e no qual os objetivos se transformam antes

mesmo de serem alcançados”, (...) “o corpo do construtor de identidade deve ser flexível, e

suas atitudes sempre mutáveis e readaptáveis” (BAUMAN, 2005, p. 50).

Desta forma, a identidade pode ser entendida como uma busca individual, mas

também uma forma de entender, vivenciar costumes do grupo, no caso desta pesquisa da

ICM-Maringá. Evidenciou-se a partir das falas das pessoas, foco desta pesquisa, intersecções

entre os elementos identitários: a faixa etária, etnias, escolaridade, classe social, religião. As

vivências, as representações e as experiências contribuem para a constituição das identidades

das pessoas. Assim, as intersecções não podem ser olhadas meramente de forma somatória,

mas de modo a entender que as “identidades são ações sem fim” (ORNAT, 2012, p. 57). E as

combinações de diferentes identidades possibilitam diferentes experiências. Pois como afirma

Ornat (2012, p. 58), “o entrecruzamento das várias facetas identitárias dos sujeitos demandam

formas de se pensar a interseccionalidade a partir de encontros fluídos e instáveis”.

Vale lembrar que a maioria das pessoas frequentadoras da ICM-Maringá participavam

de outras denominações religiosas. Em sua maioria, apresentavam um discurso religioso

fundamentalista, utilizando trechos bíblicos como Levítico 18.21 e 22.13: “Com homem não

te deitarás, como se fosse mulher; abominação é [...]”. Passagens como essa, normalmente,

Page 4: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

4

são exploradas em igrejas como a Assembleia de Deus, Universal do Reino de Deus, Igreja do

Evangelho Quadrangular e a Igreja Católica.

O paradoxo desta configuração espacial está relacionado a dois elementos: as igrejas

evangélicas ou católicas, convencionalmente são tidas como um local de alívio frente às

mazelas da vida. Todavia, segundo entrevistas com pessoas da ICM-Maringá, as quais foram

frequentadoras de igrejas evangélicas ou católicas da mesma cidade, relatam que essas igrejas

configuram-se enquanto espaços de desconforto para grupos sociais que não se enquadram no

discurso e prática religiosa tradicional. “Quando eu ia na igreja da minha família era difícil,

eles me olhavam, falavam, me colocavam no banco pra orar, pra eles era pecadora, transexual

vai pro inferno pra eles. (Entrevista realizada com Ballatrix, em Maringá, PR no dia 04 de

abril de 2014); mesmo que o cristianismo institucional hegemônico (igrejas evangélicas ou/e

católicas) apregoem a compreensão do mundo a partir de dois polos, masculino e feminino, e

que compreenda a existência de pessoas com sexualidades e gêneros dissidentes relacionando

a algo pecaminoso, doença, manifestação do mal ou heresia, a ICM realiza uma teologia da

inclusão, a qual compreende e respeita cada pessoa como ela é, bem faz uma leitura

alternativa dos textos bíblicos com o objetivo de incluir a todos/as. De acordo com o manual

de introdução a teologia bíblica da ICM.

Fazer teologia para curar, e não ferir; pacificar, e não guerrear; encorajar, e não

desanimar; libertar, e não aprisionar; incentivar a liberdade e criatividade de

pensamento. Para nós teologia, é e sempre foi instrumento de libertação. Assim, que

em nosso labor como clérigos e leigos possamos comunicar eficazmente o

Evangelho da Radical Inclusão.

Desta forma, a ICM-Maringá faz uma releitura das tradições e dos textos bíblicos, bem

como pratica uma teologia baseada nas experiências das pessoas. Além de buscar

compreender o que cada autor bíblico quis dizer, para isso a Teologia bíblica conta com o

auxílio de técnicas e disciplinas como a exegese, hermenêutica e da história. Outro ponto que

vale ser ressaltado é a tentativa de rompimento com a “noção de pecado como o exercício da

sexualidade, o qual no sistema heterossexista e homofóbico culpabiliza as sexualidades

desviantes”. (MUSSKOPF, 2002, p. 134). Há grupos que tencionam tais discursos e

estratégias políticas, um deles é a ICM, a qual surgiu no ano de 1968 em Los Angeles, por

iniciativa de Troy Perry, ativista pelos direitos humanos. E o que começou com uma reunião

de 12 pessoas em 1968, dispersou-se ao redor do mundo com aproximadamente 172 igrejas,

como é possível ver no cartograma de dispersão espacial da ICM (FIGURA 1).

De acordo com Musskopf (2008), a “presença mais organizada da ICM” ocorre em

2003, quando aconteceu a I Conferência das Igrejas da Comunidade Metropolitana no Brasil.

Page 5: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

5

Mas foi em 2004 que a inauguração oficial do primeiro templo no Brasil ocorreu. Localizado

no Rio de Janeiro, a estreia da ICM contou com a visita do Rev. Troy Perry, fundador da

UFMCC.

Na cidade de Maringá a ICM teve início no ano de 2010. “Em Maringá ela surgiu em

2010, quando eu recebi o convite de Ballatrix que é transexual, e ela dizia assim eu preciso de

uma igreja que me acolha sendo quem eu sou”. (Entrevista realizada com Aldebaran, ICM em

Maringá-PR, no dia 04 de abril de 2014).

Figura 1 – Dispersão espacial da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM)

Fonte: João Paulo Leandro Almeida

Portanto, este trabalho propõe compreender como as experiências e relações sociais

vivenciadas na espacialidade ICM-Maringá elabora uma identidade cristã para grupos LGBT

da cidade de Maringá. Busca-se então, um diálogo entre conceitos trabalhados na ciência

geográfica como o espaço, por intermédio das reflexões de Massey (2008); e o gênero

pensado por Butler (2003) e Silva e Ornat (2011). Outros conceitos utilizados neste trabalho

são o fundamentalismo e o neofundamentalismo, pensado por Panasiewicz (2008) e a teologia

de MUSSKOPF (2008).

Reflexões sobre espaço, identidade e gênero

A ICM-Maringá pode ser compreendida como um espaço que é vivenciado no

cotidiano de pessoas que comungam uma determinada forma de ver, significar e entender o

Page 6: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

6

mundo. Essas pessoas buscam se reunir em espaços como igrejas, casas de amigos e

familiares, bares, boates, praças e ruas. Para Soja (1993), cada pessoa pode conceber e

perceber o espaço no seu dia a dia, de modo a fazer uma representação espacial dos espaços.

Espaços estes que proporcionam inúmeros sentimentos, experiências e vivências, as quais

podem contribuir para a constituição de identidades como é o caso da ICM, a qual não segue

o discurso heteronormativo ou segundo Butler (2003) a linearidade de corpos, sexo, gênero,

prática sexual e desejo.

Massey (2008, p. 29) conceitua espaço a partir de três elementos: o primeiro, “produto

de inter-relações”; o segundo o “espaço é entendido como a esfera da possibilidade da

existência da multiplicidade”; e o terceiro, o espaço é entendido como “estando sempre em

construção” (p. 29). Pensando o espaço como algo político, em que podemos entrelaçar com

as teorias feministas e queer, a autora comenta que o espaço é algo em constante construção,

“tudo está relacionado com tudo” (p.10), visto que o espaço esta permeado por interligações e

atua também nas construções das identidades, ou seja, as relações entre as práticas sociais, as

identidades e a espacialidade são todas co-constitutivas (MASSEY, 1995).

O espaço pode atuar assim como um articulador dos discursos, das fantasias e das

corporeidades, bem como contribui para “dar forma nas alianças, inscrições e conquistas”

(ROSE, 1999, p. 248). Tais articulações, Rose (1999) denomina de performances relacionais, as

quais contribuem para formação de espaços: “um espaço específico. Outras performances de

outros tipos de relacionalidade produzem outros espaços” (ROSE, 1999, p. 250). Pensando

assim, o espaço não é algo fixo e sem aberturas, mas está em constante movimento de ser feito,

ativo e é produzido de acordo com as “performances situacionais de relação entre eu e outro”

(Rose, 1999, p. 250).

De forma semelhante, Rose (1993, p. 138) disserta que o “espaço é multidimensional e

contingente”. Podendo ser cartografado entre centro e margem e vivenciado ao mesmo tempo,

pois dois espaços existem simultaneamente, os quais não estão em oposição. De tal forma, as

pessoas que frequentam o espaço ICM-Maringá também frequentam outros espaços como as

ruas e as praças, locais de trabalho de algumas pessoas participantes deste trabalho, boates nas

quais fazem/faziam shows e bares da cidade de Maringá. São pessoas que se colocam “contra a

normalização, venha ela de onde vier” (Louro, 2001, p. 104). Não são somente pessoas com

práticas cristãs, mas fazem parte de outras práticas e grupos como, por exemplo, o grupo LGBT

de Maringá. Pensando que as relações sociais e de poder contribuem para as construções

identitárias, de gênero e sexualidade (Silva, 2009; Scott, 1990; Butler, 2003), entendo que a

religião também pode contribuir para representações sobre masculino e feminino, bem como

Page 7: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

7

legitima as concepções heteronormativas. Tais concepções segundo Jesus (2010) beneficiam ou

não a participação e as vivencias de pessoas não heterossexuais nas práticas e espaços

religiosos, “e mesmo entre as igrejas inclusivas, estas diferentes concepções torna-se favoráveis

ou impeditivas ao protagonismo de diferentes sujeit@s LGBTs” (p.141).

Se de um lado segundo Jesus (2010) vemos a religião tradicional legitimando a partir de

discursos e textos bíblicos “a “heterossexualidade compulsória” estabelecendo fronteiras entre o

natural (correto, bom, virtuoso) e o pecado (anormal, ruim, perversivo)” (p.141). Por outro, as

“igrejas inclusivas” como a ICM-Maringá “se inserem no quadro de disputas pela legitimação e

autoridade religiosas na medida em que têm se dedicado a legitimar práticas e modos de vida

não heterossexuais re-signifcando o texto bíblico” (JESUS, 2010, p.141).

Desta forma, a ICM-Maringá tenciona a sexualidade hegemônica, a qual produz

discursos e significados que são característicos e representam este grupo. De tal forma, tais

grupos não correspondem “às configurações de poder, onde a ordem heterossexual é excludente

e interditada” (CARNEIRO, 2013, p. 4).

Como evidenciado na fala de Sirius2, quando relata sobre o isolamento e a „punição‟,

durante o tempo em que frequentava outra instituição religiosa devido a sua sexualidade:

Então eu procurei a diretoria da igreja, falei pra eles dos sentimentos que eu tinha

por pessoas do mesmo sexo e eles me colocaram no que eles chamam de disciplina,

que são dois meses no banco, não podia participar de nada (...) eles tiraram tudo que

era precioso pra mim. Aí eu fiquei vazio porque as pessoas não me

cumprimentavam, não falavam comigo, me demonizavam. (Entrevista realizada com

Sirius em Maringá, PR no dia 04 de abril de 2014).

A partir dessas proposições, nossa concepção de espaço está atrelada a visão de que o

espaço é produto das inter-relações e dos reflexos da sociedade, fruto das vivências

cotidianas, bem como pode ser produzido através das performances relacionais, as quais tem

relação com o espaço vivenciado. Logo, espaços como a ICM podem ser entendidos como

uma alternativa de tencionamento, onde é constituída por linguagens, práticas, vivências

cotidianas distintas da cultura dominante heteronormativa.

2 Os nomes das entrevistadas são fictícios. Esses nomes são nomes de estrelas, os quais foram escolhidos de

acordo com as características das pessoas.

Page 8: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

8

Identidades e interseccionalidade: reflexões para uma identidade cristã para grupo

LGBT

A identidade não pode ser considerada fixa, completa e imutável, pois está em constante

construção. De acordo com Hall (2006), uma única identidade, segura e imutável é uma ilusão,

pois “se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas

porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora narrativa do

eu” (Hall, 2006, p. 13). Assim, a identidade não é algo estático e irrevogável, a qual deve seguir

uma ordem social heteronormativa, vivenciando apenas uma categoria identitária, por exemplo,

ser uma pessoa cristã somente. Mas pode ser vivenciada de forma ambivalente/mútua, podendo

ter práticas que não correspondem à norma heterossexual e se identificar como cristão,

rompendo assim com a tradição bíblica e dogmática da maioria das igrejas.

Pensando assim, a identidade, segundo Hall (2006), não pode ser considerada algo

estático ou biológico, mas é maleável, aberta e está em construção e transformação

constantemente. Pode ser construída social e historicamente, tais processos sociais e históricos

podem contribuir para o surgimento de novas formas de exercer identidades.

A construção da identidade “é um processo que não tem fim ou destino, e no qual os

objetivos se transformam antes mesmo de serem alcançados”, (...) “o corpo do construtor de

identidade deve ser flexível, e suas atitudes sempre mutáveis e readaptáveis” (Bauman, 2005, p.

50). Desta forma, a identidade pode ser entendida como uma busca individual, mas também

uma forma de entender, vivenciar costumes do grupo, no caso desta pesquisa da ICM.

Tal pensamento assemelha-se as tribos de Maffesoli (1998), pois o sentimento de

pertencimento a um grupo está relacionado à autodefinição pessoal e individual de cada pessoa,

bem como sentir-se participante de uma comunidade faz parte da autoidentificação de cada

pessoa. Assim:

O fato de partilhar um hábito, um ideal determina o estar junto, e permite que este

seja uma proteção contra a imposição, venha ela do lado que vier. (...) A confiança

que se estabelece entre os membros do grupo se exprime por meios de rituais, de

signos de reconhecimento específicos, que não tem outro fim senão o de fortalecer o

pequeno grupo contra o grande grupo. (...) A partilha secreta do afeto, ao mesmo

tempo em que confirma os laços próximos, permite resistir as tentativas de

uniformização. (MAFFESOLI, 1998, p. 159).

Deste modo, através das suas práticas e do feixe de relações vivenciados na/com a

comunidade religiosa ICM-Maringá, percebe-se contribuição para as formas de interpretar o

Page 9: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

9

mundo, vivenciar sua rotina, linguagem e práticas cotidianas. Essa comunidade/grupo desafia os

pensamentos tradicionais e fundamentalistas, que em seus discursos pregam a homofobia e o

heterossexismo. Afirmando assim, que práticas que não seguem a norma heterossexual estão

fadadas ao pecado, ou seja, algo negativo. Logo, igrejas como a ICM-Maringá, são mais uma

opção para trabalhar o respeito e as diferenças, bem como mais um braço para lutar contra

estruturas heterossexistas e homofóbicas, buscando assim, o respeito, o direito e a justiça para

todas as pessoas.

A ICM também propõe uma forma diferenciada de ética de relacionamentos sem o

objetivo central da procriação, distinta da compreensão heterossexual de matrimonio pregada e

valorizada pela maioria das igrejas cristãs. Além disso, buscam romper com a tradição

equivocada em relação à sexualidade vinculando o sexo ao pecado.

Então, a ICM entende que o pecado é quando a gente sai do foco que é Deus, você

perde o foco que é Deus. Mas a questão da homossexualidade a gente não vê pecado

em nada disso, tanto que para nós o sexo não é pecado, né. A gente até entende o

sexo como uma benção na vida do ser humano que foi criado por Deus. (Entrevista

realizada com Reverendo da ICM, Maringá em Maringá, PR no dia 04 de abril de

2014).

Deste modo, “o ponto de vista de teológ@s, apontam para “a necessidade de uma

interpretação contextual e não homofóbica/sexista da Bíblia” (JESUS, 2010, p.133). Assim, de

acordo com Jesus (2010) há um aumento nas discussões e reflexões em torno de uma teologia

inclusiva, a qual inclua homossexuais e não somente homossexuais, mas pessoas que não

seguem a norma. Transexuais, Travestis e gays encontram espaço no “grupo de louvor” e

assumem outras funções na ICM-Maringá.

Podemos assim, notar que a ICM contribui para formação de costumes, representações e

identidades que destoam da norma heterossexual, bem como da linearidade sexo, gênero, desejo

e sexualidade (BUTLER, 2003). Como é o caso da reflexão nesse trabalho, cujo foco é gênero,

sexualidade, religião e identidade, ou seja, pessoas que não seguem a heteronormatividade.

Desta forma, refletir sobre questões relacionadas à sexualidade implica em explorar e

aprofundar as questões sobre a heteronormatividade. Pensando desde a sexualidade como um

dispositivo de poder, homofobia de forma materializada e enraizada por mecanismos de

interdição e controle das relações sociais homoafetivas, até a padronização heterossexual

(MISKOLCI, 2009).

De modo semelhante, podemos pensar as identidades como o reflexo de discursos, de modo que

às identidades que não estão inseridas na norma heterossexual podem ser “estereotipadas, estigmatizadas

e até humilhadas” (BAUMAN, 2005, p. 44), como é evidenciado na fala de Canopus: “Eu falei já que tá

Page 10: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

10

todo mundo aqui mesmo, eu sou gay mesmo, gosto de meninos e pronto. Meu pai levanto pra me bate,

meu irmão, foi aquela correria. Então ele me humilhou de uma tal maneira que eu não desejo a

ninguém” (Entrevista realizada com Canopus em Maringá, PR em 21/07/2014).

O gênero é mais do que um conjunto de ideias construídas por uma dada cultura. Várias são as

identidades possíveis existentes nas pessoas, foco desta pesquisa. Afirmo isto, embasada nas

vivências, conversas em campo e entrevistas com as pessoas, foco desta pesquisa. Arcturus comenta

que faz um ano que não é travesti, bem como enfatiza a variação de preconceito sofrido devido as

diferentes identidades de gênero. Em alguns momentos, apenas gay cristão e, em outros momentos,

homossexual, travesti e prostituta.

“Quando eu era travesti o preconceito era muito maior entendeu. Hoje não mais,

mas se eu quiser ser travesti eu tenho liberdade de ser. Mais só que isso tem que vim

do meu eu, hoje eu não quero, hoje, eu não sei amanhã”. Mesma coisa quando eu era

da Universal e gay, depois fui pra rua me prostituir e agora estou aqui. (Entrevista

realizada com Arcturus, em Maringá, em 21/07/2014).

Percebemos o feixe de categorias identitárias, bem como o movimento de construção e

reconstrução da identidade. Desta forma, a identidade pode modificar-se ao longo do tempo e do

espaço, isso ocorre de acordo com as vivências e experiências de cada pessoa. Logo,

A identidade torna-se uma "celebração móvel": formada e transformada

continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou

interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam [...]. É definida historicamente,

e não biologicamente. (HALL, 2006, p. 12).

Pensando assim, em cada pessoa está presente um feixe de categorias identitárias ou uma

intersecção a qual pode ser entendida, de acordo com Silva (2009), como um conjunto complexo de

elementos que compõem os seres humanos. Assim, uma mesma pessoa possui várias categorias que

compõe sua identidade: a renda, a escolaridade, a idade, o gênero e a religiosidade como é o caso das

pessoas frequentadoras da ICM-Maringá. Logo, a complexidade de categorias identitárias posiciona os

sujeitos e cria diferentes laços identitários, podendo ser construída e reconstruída de forma ativa e

flexível, pois conforme Butler (2003, p. 200), “o gênero é uma identidade tenuemente constituída no

tempo”.

A interseccionalidade surge como uma proposta metodológica, a qual colabora nas análises

geográficas e entende que os conjuntos de elementos permeiam os seres humanos e também derivam

em diversas experiências ao longo de suas vidas. Assim, a noção de mulher em sua essência é

superada. Por meio de suas escolhas e experiências, qualquer corpo pode ser classificado como/por

feminino ou masculino, o que se dá através de representações (SILVA, 2009). Tal visão é ampliada na

leitura de Valentine (2007), que entende as identidades como algo fluído, em movimento, isto é, a

identidade passa por fases de construção e reconstrução. E mais, a autora concebe a questão da

Page 11: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

11

intersecção como uma forma de análise, fazendo ligação da interseccionalidade com o espaço e com o

tempo.

Evidenciou-se a partir das falas das pessoas, focos desta pesquisa, intersecções entre os

elementos identitários como a faixa etária, etnias, escolaridade, classe social, religião. Assim, as

vivências, as representações e as experiências contribuem para a constituição das identidades das

pessoas, foco desta pesquisa. Assim, as intersecções não podem ser olhadas meramente de forma

somatória, mas de modo a entender que as “identidades são ações sem fim” (Ornat, 2012, p. 57). E as

combinações de diferentes identidades possibilitam diferentes experiências. Pois como afirma Ornat

(2012, p.58), “o entrecruzamento das várias facetas identitárias dos sujeitos demandam formas de se

pensar a interseccionalidade a partir de encontros fluídos e instáveis”.

Portanto, a presente pesquisa busca identificar de que forma o discurso, as experiências e vivências

no espaço ICM-Maringá contribui para a elaboração de uma identidade cristã para grupos LGBT da

cidade de Maringá. Além disso, buscou-se compreender as conexões entre os discursos, as

experiências vividas e os espaços.

Conclusões ou considerações finais.

Igrejas inclusivas como a ICM-Maringá buscam legitimar discursos e práticas não

heteronormativas, buscando re-significar discursos, meditações e textos bíblicos de acordo

com as vivencias e experiências de pessoas não heterossexuais (Musskopf, 2008), portanto,

atuando de maneira inclusiva no campo religioso. Resistindo aos discursos fundamentalistas

focados normalmente em apenas alguns trechos bíblicos. Segundo a fala do reverendo da ICM

Maringá, o cristianismo institucional hegemônico e mais especificamente alguns segmentos

fundamentalistas utiliza-se de perícope da bíblia, trechos, recortes isolados do texto. Segundo

esta fala, a reflexão sobre esta perícope é descontextualizada. Não existe uma exegese, uma

hermenêutica, buscando compreender o sentido interpretativo profundo da perícope.

Desta forma, buscou-se evidenciar como as relações entre espaço, gênero, sexualidade,

bem como as vivências, experiências e práticas das pessoas frequentadoras da ICM elaboram

uma identidade queer cristã. Visto que a identidade não é algo fixo e imutável, mas sim, pode

ser entendida como readaptável, constituída por um feixe de categorias identitárias em

movimento no tempo e espaço. Logo, determinadas categorias identitárias podem ou não

contribuir para o sentimento de pertencimento e autodefinição, bem como uma categoria

identitária, como o gênero ou a sexualidade, não a exclui de ter uma vivência e experiência

religiosa ou o sentimento de pertença a uma comunidade religiosa como a ICM Maringá.

Portanto, as entrevistas e vivências com a comunidade ICM Maringá nos possibilita

pensar a relação destes fatos/exemplos com os conceitos até aqui abordados. Corrobora para a

Page 12: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

12

conclusão de que práticas sociais não se desprendem de espacialidades, ou seja, são

carregadas de culturalidades e de valores tangentes a determinados grupos. É assim que

podemos estabelecer uma conclusão através da hipótese de que a exclusão de discussões

tangentes a particularidades representacionais/identitárias, em torno de espaços como a

Igreja, apenas corrobora para a marginalização de pessoas que culturalmente são

enquadrados enquanto corpos abjetos (BUTLER, 2006).

Referências

BALDIN, Nelma; MUNHOZ, Elzira Maria Bagatin. Snowball (Bola de Neve): Uma Técnica

Metodológica Ppara Pesquisa em Educação Ambiental Comunitária. X Congresso Nacional

de Educação – EDUCERE, Seminário Internacional de Representações Sociais,

Subjetividades e Educação – SIRSSE, 2011. Disponível em:

<http://educere.bruc.com.br/CD2011/pdf/4398_ 2342.pdf> Acesso em: 31 de agosto de 2014.

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: J. Zahar

Editor, 2005.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia

do Livro, 1967.

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual.

Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

______. Cuerpos que Importan – Sobre los Límites Materiales y Discursivos Del ‘Sexo’.

Buenos Aires Aires: Paidós, 2008.

CORRÊA, Roberto Lobato. Espaço, Um Conceito-Chave da Geografia. In: Castro, Iná Elias

de; GOMES, Paulo Cesar da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs.). Geografia:

Conceitos e Temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 15 – 47.

CARNEIRO, Márcia Tobias. Geografia do atendimento de saúde e vivência trans:

considerações a partir da vivência interdita em Ponta Grossa – Paraná. Anais do Seminário

Internacional Fazendo Gênero 10. Disponível em:

http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1386003554_ARQUIVO_MarciaTo

biasCarneiro.pdf

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo, Perspectiva, 2004.

DUARTE. Tatiane dos Santos. A participação da frente parlamentar evangélica no legislativo

brasileiro: ação política e (in) vocação religiosa. Ciencias Sociales y Religión/Ciências

Sociais e Religião, Porto Alegre. p. 53-76, 2012.

Page 13: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

13

HALL, Stuart. A identidade na Pós-Modernidade. 11º Edição. Rio de Janeiro: DP&A,

2006.

JESUS, Fátima Weiss de. A cruz e o arco-íris: refletindo sobre gênero e sexualidade a partir

de uma “igreja inclusiva” no Brasil. In. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e

Religião, Porto Alegre, p. 131-146, 2010.

LOURO, Guacira Lopes. Teoria Queer: Uma Política Pós-Identitária para a Educação. In:

Revista Estudos Feministas. Florianópolis: IFCH, 2001.

LOURO, Guacira Lopes. Pedagogia da Sexualidade. In: Louro, Guacira Lopes (Orgs). O

Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade. Autêntica, p. 7 – 34

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1998.

MASSEY, Doreen B. Pelo Espaço: uma nova política do espaço, Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 2008.

MIRANDA, Olinson Coutinho; GARCIA, Paulo César. A Teoria Queer como representação

da cultura de uma minoria. In: III CBE Cult e III Encontro Baiano de Estudos em

Cultura. Cachoeira. Anais: III CBE Cult e III Encontro Baiano de Estudos em Cultura. 2012

MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Questão das Diferenças: por uma analítica da

normalização. 2004.

MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da

normalização. In: Sociologias. Porto Alegre. 2009.

MUSSKOPF, André Sidnei. Via(da)gens teológicas: itinerários para uma teologia queer no

Brasil. São Leopoldo: EST/PPG, 2008.

______. Uma brecha no armário: Propostas para uma Teologia Gay. São Leopoldo: EST,

2002

ORNAT, Marcio José. Território descontínuo e multiterritorialidade na prostituição travesti

através do Sul do Brasil. 279 f. Dissertação (Doutorado em Geografia), Universidade Federal

do Rio de Janeiro. UFRJ, Rio de Janeiro, 2011.

______. Espaços Interditos e a Constituição das Identidades Travestis através da Prostituição

no Sul do Brasil. Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, Ponta Grossa, v.3,

n.1,p.54-73, 2012.

ROSE, Gillian. Feminism & Geography. The limits of Geographical Knowledge.

Cambridge: Polity Press, 1993.

______. Performing Space. In: MASSEY, Doreen; ALLEN, John; SARRE, Philip. Human

Geography Today. Cambridge: Polity Press, 1999, p. 247 – 259.

Page 14: IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Gelinski_2.pdf · pesquisa, buscou-se compreender as características identitárias, as relações sociais cotidianas nas espacialidades

14

SÁ, Celso Pereira de. A construção do objeto de pesquisa em representações sociais. Rio

de Janeiro: EdUERJ, 1998.

SILVA, Joseli Maria. Fazendo geografias: pluriversalidades sobre gênero e sexualidades. In:

SILVA, Joseli. Maria (Orgs.). Geografias Subversivas: discursos sobre espaço, gênero e

sexualidades. Ponta Grossa: Toda Palavra. 2009a. p. 25-50.

________. Geografias feministas, sexualidades e corporalidades: desafios às práticas

investigativas da ciência geográfica. In: SILVA, Joseli. Maria (Orgs.). Geografias

Subversivas: discursos sobre espaço, gênero e sexualidades. Toda Palavra. 2009b. p.93 –

112.

______. Espaço Interdito e a experiência urbana travesti. In: SILVA et al, Joseli Maria.

Geografias Malditas: corpos, sexualidades e espaços. Ponta Grossa: Editora Toda Palavra, p.

143 – 182, 2013.

SOJA, Edward W. Geografia Pós-Modernas. A reafirmação do espaço na teoria social

crítica. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1993.

PANASIEWICZ, Roberlei. Fundamentalismo religioso: história e presencia no cristianismo.

In. ALBUQUERQUE, Eduardo Bastos (Org.) Anais do X Simpósio da Associação Brasileira

de História das Religiões – “Migrações e Imigrações das Religiões”. Assis: ABHR, 2008.

VALENTINE, Gill. Theorizing and researching intersectionality: a challenge for feminist

geography. The Professional Geographer, p. 10-21, 2007.