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iv

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA

DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO/UNICAMP

ROSEMARY PASSOS – CRB-8ª/5751

12-300/BFE

Informações para a Biblioteca Digital Título em inglês: The garden of silence: poetics Palavras-chave em inglês: Corbin, Henry, 1903-1978 Cinema Persian poetry Cinematographic film Knowledge Área de concentração: Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte Titulação: Doutora em Educação Banca examinadora: Milton José de Almeida (Orientador) Wencesláo Machado de Oliveira Júnior (Coorientador) Martha Cecília Herrera Cortés Acir Dias da Silva Agueda Bernardete Bittencourt Adilson Nascimento de Jesus Laura Maria Coutinho Data da defesa: 17/10/2012 Programa de pós-graduação: Educação e-mail: [email protected]

Silva, Josirley Maria Menezes da, 1977-Si38j O jardim do silêncio: poéticas / Josirley Maria Menezes da Silva. – Campinas, SP: [s.n.], 2013.

Orientador: Milton José de Almeida. Coorientador: Wencesláu Machado de Oliveira Júnior. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

1. Corbin, Henry, 1903-1978. 2. Cinema. 3. Poesia persa. 4. Filmes cinematográficos. 5. Conhecimento. I. Almeida, Milton José de, 1943-2012 II. Oliveira Júnior, Wencesláo Machado de, 1965- III. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. IV. Título.

12-300/BFE

v

O jardim do silêncio

vi

Hamlet – ... O resto é silêncio. Horácio – Boa noite, doce príncipe.

E legiões de anjos cantarão para seu descanso.

Onde antes havia sempre espaços para reticências, quis o destino que houvesse um ponto final.

vii

Agradecimentos A minha família, que inclui neste ano meu marido, Marcos. Obrigada pelo estímulo, presença

e paciência.

Aos amigos, também agradeço os estímulos, a paciência; também as leituras,

conversas, cafés, a amizade acadêmica, sim; mas também a amizade de piscina, de sol, de chuva, de

almoços, jantares, vinhos, de reticências, de vírgulas, às vezes, ponto-e-vírgula, mas sem ponto -final.

Não é ótimo?

À banca, paciente e generosa, a melhor parte de ter defendido este trabalho

foi o fato de vocês aceitarem o convite institucional e intelectual de aventurar-se pelo mundo persa

de imagens poéticas. Obrigada pela leitura.

Ao querido Wences: obrigada pela força, pelo ombro para chorar a

perda do Milton, pelo olhar cheio de significação quando você diz e espera. Ah, esse seu olhar, nem

todos os deuses do Olimpo, nem todos os Anjos do mazdeísmo conseguiriam decifrar..., obrigada a

você, querido.

Obrigada à Instituição, UNICAMP, na pessoa dos seus mais

diferentes funcionários, que ajudam, arrumam, funcionam. Obrigada ao pessoal da secretaria da Pós,

em especial, todos.

Obrigada, Milton, pelo convite; você que foi o

primeiro a andar pelos desertos das palavras...

ix

RESUMO

Palavras despertadas a partir da pulsação das imagens poéticas dos filmes Bab'Aziz, de Nacer

Khemir, e Shirin, de Abbas Kiarostami, conversando com os poemas Khosrow e Shirin e As sete

princesas, ambos de Nezâmî. Encontros, caminhos, desertos em palavras, tendo como guia de

travessia os estudos de Henry Corbin a partir dos relatos e da Teosofia de Sohravardî: busca pelas

belezas do mundo árabe persa do século XII na perspectiva da Luz do Conhecimento.

ABSTRACT

Words awakened from the pulse of poetic images of the films Bab'Aziz by Nacer Khemir, and Shirin

by Abbas Kiarostami, talking to the poems Khosrow and Shirin and The Seven Princesses, both of

Nezami. Dating, roads, deserts in words, guided crossing studies from Henry Corbin reports and

Theosophy Sohravardi: search for beauty in the Arab world in the twelfth century Persian

perspective of the Light of Knowledge

xi

sumário

o convite ........................................................................................................................ xiii prefácio ......................................................................................................................... xix imagens I, As sete efígies ............................................................................................ xxi As imagens persas ........................................................................................................ xxxvii Introdução .................................................................................................................... 1 Um conto ...................................................................................................................... 2 I. o poema, ou as sete efígies, Haft Peykar ..................................................................... 3 um caminho ............................................................................................................... 5 no pavilhão negro ....................................................................................................... 7 imagens II, Khosrow e Shirin ....................................................................................... 13 II. as vozes e os silêncios: o filme Shirin, de Abbas Kiarostami ................................ 35

os olhares ................................................................................................................... 45

Imagens III, Shirin .................................................................................................... 47

Descaminho ............................................................................................................... 64

O filme como um espaço imaginal .............................................................................. 59

imagens IV, Bab'Aziz .................................................................................................. 63

III. No deserto ............................................................................................................. 69

uma tempestade ........................................................................................................ 70

um conto do encontro com Sohravardî ..................................................................... 89

IV. A cada um o seu espelho ....................................................................................... 91

Uma história para o manuscrito .................................................................................. 99

Entrevista ABBAS KIAROSTAMI .............................................................................. 101

algumas palavras a Milton José de Almeida ............................................................... 107

Referências .................................................................................................................. 109

xiii

o convite

Para propor um caminho, resgato Virgínia Wolf e Clarice Lispector: a primeira escreveu que

é preciso ter um canto todo seu: um espaço, um tempo e condições de estudo para que a ideia seja

colocada no papel. A segunda escreveu que tudo na vida começa com um sim, uma molécula

dizendo sim a outra, uma ideia dizendo sim a outra. Por isso, para escrever sobre o caminho deste

trabalho, primeiro foi preciso dizer sim ao trabalho de leitura realizado por Henry Corbin a partir das

leituras que ele realizou dos textos de Sohravardî.

Henry Corbin escreve que encontrou o material dos relatos de Sohravardî ao acaso, em uma

biblioteca em Teerã, quando pesquisava sobre Avicena1. Para Corbin, compreender seria um

processo de interpretação contínuo, no qual o conhecimento seria desdobrado a cada

encontro/reencontro. Ele utilizou esse processo para entrar no trabalho feito por Sohravardî,

principalmente no estudo intitulado Os Relatos do encontro com o Anjo. Henry Corbin

aproximou-se de Sohravardî e compreendeu os aspectos relacionados à busca do conhecimento,

proposta pela teosofia de Sohravardî, autor que é influenciado pelo hermetismo, pelo platonismo,

pelo mazdeísmo: a busca pelo bem através do caminho da descoberta do conhecimento. Corbin e

Sohravardî serão esses lugares, tempos, sins e nãos para que um jardim, lugar poético, de poéticas,

exista. A leitura do texto é um convite a você, leitor que, como peregrino, irá me acompanhar. Mas o

meu caminho é construído pelo meu olhar. O seu?

o caminho

Nos textos-relatos de Sohravardî, há uma personagem peregrina que está em um caminho e,

em sua busca, é acompanhado por alguém mais experiente que ele – um guia –, alguém que já

conhece o percurso pelo qual o viajante está passando; é esse guia quem responde às perguntas que

surgem ao longo da jornada. O guia traz a compreensão das coisas que o peregrino desconhece

através de observações, perguntas, descaminhos, desertos, noites, jardins, sons, imagens: palavras.

Quando obtém todas as respostas, o peregrino percebe que chegou ao final de seu caminho; chegou

a um lugar repleto de luz, encontra-se livre. Quando se dá conta dessa liberdade, o viajante vê que

trilhou todo o caminho, do conhecimento, sozinho, o tempo todo, ele buscou e esteve na companhia

1 CORBIN, Henry. O Islam Iraniano, volume II.

xiv

de si mesmo: está só, é seu próprio guia, e que, na verdade, ele não se deslocou fisicamente: seu

deslocamento foi interior, sua descoberta foi chegar até o conhecimento das palavras que ele buscava

para compreender seu caminho; o peregrino julgava-se um estrangeiro, desconhecedor; mas, ao final

da jornada, ele se descobre um exilado, alguém que já estivera muito próximo de saber, mas que

desconhecia como chegar à compreensão do que era sabido, estava oculto, velado.

um peregrino

Henry Corbin teria lido os textos de Sohravardî e compreendido essa trajetória: interpretar

exige busca constante; ler e compreender seriam caminhos a serem percorridos, constantemente.

Não há necessidade de deslocamento espacial, há necessidade de deslocamento interior: interpretar.

Por isso, para mim, foi preciso dizer “sim” para que o caminho começasse. E foi dizendo sim

que se iniciaram as leituras do trabalho de Henry Corbin sobre o Islam Iraniano, sobre Avicena,

sobre Sohravardî.

Os relatos da passagem do peregrino por diferentes fases de uma gesta, dado o seu caráter

literário de narrativa iniciática, levaram-me a outras narrativas dentro do mundo iraniano, próximas

temporalmente de Sohravardî, especificamente três poemas de Nezamî, Majnum e Layla, As sete

princesas e Khosrow e Shirin. Todo o material estudado está compreendido no século XII, período em

que viveram Avicena, Sohravardî e Nezamî.

Os poemas, de forma narrativa, mostram um universo semelhante a algumas histórias

ocidentais da Idade Média nas quais um herói descobre o amor ao mesmo tempo em que deve passar

por diferentes tipos de conflitos, confrontos, guerras, buscas, para conseguir sagrar-se rei e digno do

amor. Nos poemas iranianos, o herói, quando se desloca e conquista tudo que busca, mas, quando

regressa, morre. Por quê? Esse aspecto causou a minha inquietação. Reli os poemas, pesquisei fontes,

mas ainda não encontrava respostas.

Então busquei filmes. Assisti a vários filmes de Abbas Kiarostami e de Nacer Khemir, mas

dois pulsaram com o que eu vinha pesquisando: os filmes Shirin e Bab’Aziz. No primeiro filme,

Shirin, Kiarostami apresenta uma história sobre a história narrada no poema de Nezamî, Khosrow e

Shirin; no segundo, Nacer Khemir conta a história da peregrinação de uma menina e de seu avô: eles

xv

andam pelo deserto para encontrar derviches, sábios que vivem no deserto. No final de ambos os

filmes, a morte. Ou a vida, através de outros caminhos...? Essa foi a resposta a que eu cheguei: para

cada caminho, sou um. Quando chego ao destino que procuro, sou outro.

A busca... caminhos... a morte; eram as ideias mais presentes em todo o material visto e

pesquisado; a partir disso, iniciou-se a pesquisa toda que deu origem a este trabalho. Por quê?

No cinema, assim como na literatura, tudo que está sendo assistido ou lido, nasce e morre, no

momento em que estamos assistindo/lendo, até o momento em que o filme acaba ou que o livro

acaba.

Quando assistimos a um filme, no cinema, assistimos a uma narração em

aparição luminosa. O filme vai contar uma história nunca vista-ouvida e cada filme é a

gênese de um mundo que se inicia e termina ali narrada pelo tempo. Nenhuma

daquelas pessoas e daqueles lugares existiam antes que os víssemos no filme. Suas

vidas começam e terminam ali, durante aquele tempo da projeção. Já há um século o

cinema produz uma galeria de histórias de todo gênero que compõem o conjunto de

narrações da mitologia da sociedade contemporânea.

No tempo iniciado com e pela aparição do filme na tela, os espectadores estão

envolvidos numa cerimônia em que a memória e a história coletiva são trazidas em

pedaços de filme para o drama dos corpos de personagens que vão simular a narração

de suas vidas. Uma representação do tempo e da história num ritual de uns tantos

minutos.

O poder do cinema como educação política e visual vem do muito que assistir

a uma sessão de cinema tem a ver com uma participação ritual ou mística. A distância

física e racional que separa o espectador do que está vendo e ouvindo é anulada e tal

fato provoca a imersão em imagens que reforçam vínculos irracionais com a

sociedade e o tempo vivido. O espectador é convidado a participar de uma liturgia da

luz e do tempo, da liturgia da memória.

(Este texto, O Tempo no Cinema, Imagem em Perspectiva. foi publicado no livro “Quanto Tempo o Tempo Tem!”, organizado por Vera Lucia De Rossi, publicado pela Editora Alínea-Átomo, Campinas SP, Brasil', 2003, cap. III.)

xvi

A história mostrada no filme acaba, mas a história continua, ou porque é possível reassistir,

reler, rever; ou porque estaremos outros, com um novo olhar, uma liturgia. A cada momento em que

se assiste ou se relê, algo pode ser descoberto, ou não (afinal, é preciso dizer “sim”). Há a

possibilidade de descobertas: essa é a proposta do caminho: ele é uma proposta, é uma possibilidade.

Esse foi o ponto de contato que busquei: movimentar a ideia: reli todos os textos poéticos, literários,

filosóficos, estudos, ensaios; assisti aos filmes, reassisti aos filmes e, ao final, uma espécie de morte:

ter que fixar em palavras ao leitor a minha compreensão sobre o universo da busca pelo

conhecimento: o convite para o peregrino – você – caminhar com esse texto, pelo jardim das

palavras plantadas nos poemas, nos filmes. O texto estará com você; as palavras pulsarão através da

sua leitura, eu o acompanharei... mas você estará sozinho, no final. Para cada um, há um caminho.

um jardim

Procurei imagens para poder falar sobre palavras difíceis como a morte, a beleza e o

conhecimento. A tese que aqui se encontra reproduz o meu caminho para escrever sobre algo que

não morreu, porque ao ser lido, vai ser percorrido, buscado, encontrado, nas vezes em que os

diferentes leitores, encarados aqui como peregrinos, fizerem suas diferentes leituras. Por isso, não há

um caminho; há interpretações. Não há uma história: há aqui várias histórias. Para cada uma delas, eu

interpretei um porquê da morte nos textos de Sohravardî, da beleza contida nessa aparente morte e

da palavra, que é muitas vezes... insuficiente, e morre, cada vez que tenta fixar uma ideia.

A insuficiência da palavra, a multiplicidade ao expressar sentidos e pensamentos, obriga o

leitor, eu e você, o peregrino, a interpretar o texto sempre, porque, embora a palavra tente encarcerar

o pensamento, a possibilidade criativa libera sentidos e significados outros. O encontro da

experiência concreta, real, da leitura com a experiência abstrata, intelectiva e criativa, é chamado por

Henry Corbin de mundus imaginalis: o lugar em que o conhecimento se realiza como possibilidade de

interpretação do mundo, tentativa de libertar-se dos conceitos que aprisionam o pensamento

(conceitos esses que levam à morte: ao vazio das certezas).

Mas, ao invés de um deserto de certezas, proponho uma noite de passeio por um lugar de

possibilidades, leituras. Chamo a esse lugar jardim, um jardim de silêncios... espaço para poéticas,

criações. Mundus imaginalis. É um jardim porque as palavras propõem um movimento do

pensamento, como aromas que se misturassem ao ar, através das palavras lidas. A minha voz ecoa no

xvii

texto, porque as palavras/flores/ideias foram escolhidas por minha interpretação, mas o jardim foi

organizado para ser visto, visitado, percorrido, como um caminho. Para isso, no início, faço a

pergunta: trazes a chave? Com essa pergunta proponho ao leitor – você: o desembaraçamento das

amarras, o desafio de desvelar, de buscar. Há a espera... por isso o silêncio do texto até o momento

em que o leitor –você – entrar no texto. O jardim-tese, fechado e vazio, permanece silencioso. É a

sua leitura que movimentará as ideias-pensamentos-palavras: poética.

xix

prefácio

Criei, dentro do texto que expõe o material pesquisado, uma narrativa em que uma

personagem, eu, conversa com um interlocutor, a quem chamo Alif, e a escolha do nome se deve ao

alfabeto islâmico, à mística: transformação do pensamento-pesquisa em palavras. Esse que é o ponto

de possibilidade de leitura desse material: será o início de tudo, a letra Alif: a busca inicia-se pela

pergunta sobre onde está a porta, pois é preciso atravessá-la para poder chegar. Estar aqui, em frente a

esse mundo-deserto, futuro jardim, já é ter nos olhos uma chave para entrar: a chave que eu ofereço

é o texto O conto. Nele, proponho que você olhe na mesma direção que eu: primeiro, as imagens.

Nessas imagens, escolhidas a partir das iluminuras que ilustram os poemas de Nezamî, numa

edição do século XVII, você encontra, primeiro, um frontispício onde, além de cores e formas, há

palavras, o poema propriamente dito. Nesse momento, encontrará a primeira porta: trazes a chave? As

palavras estão em árabe-persa e não foram escritas para serem lidas como palavras, mas serem vistas

como parte do desenho que são chamados arabescos, as palavras do calígrafo Abd ol-Djabbar, foram

desenhadas para inspirar beleza, assim como as cores e a disposição do texto, e as flores, que

ornamentam a iluminura: são imagens. O leitor tem a liberdade de entrar por elas depois de lido o

texto, para encontrar os elementos que buscar, pois o artista que criou as imagens, Haydar-Qoli

Naqqach, teve a beleza e a arte de não traduzir o poema: há as imagens, elas iluminam, não ilustram.

Você tem, assim, a possibilidade de percorrer as imagens com o texto que as segue, sem eliminar a

possibilidade de encantar-se. Você pode exercitar seu olhar.

Trazes a chave?

xxi

xxii

Frontispício do livro As sete efígies

xxiii

xxiv

Bahrâm Goûr passa o sábado sob a cúpula negra com a filha do rei da Índia

Logo que Bahrâm ficou apaixonado de prazer, seus olhos não puderam mais se desligar da visão desses sete retratos.

Deixando, no sábado, o convento de Chammâs, ele instalou sua tenda num lugar sombreado.

Pediu à direção do palácio de cúpula cor de almíscar para saudar a princesa indiana.

Até a noite ele ficou entre brincadeiras e alegria, fez queimar aloés, preparar perfumes.

Quando a noite, imitando a negra roupa do rei, pousou sobre a sua seda branca um manto de almíscar obscuro,

O soberano quis que esta bela divindade vinda da Caxemira derramasse o perfume da brisa noturna,

E que fazendo brilhar as pérolas da sua boca, proferisse algumas palavras femininas.

O homem embriagado por esse conto de tema tentador sentirá o sono lhe dominar subitamente.

(Tradução Milton José de Almeida a partir do texto original em Les cinq poèms de Nezâmî, 2001)

xxv

xxvii

xxix

xxxi

xxxii

Bahrâm ficou na quarta-feira no pavilhão de cúpula turquesa e escuta a história da filha do

rei do Magreb

Era quarta feira: logo que a floração do grande astro solar entintou de turquesa o firmamento muito negro,

O rei, pois que ele mesmo iluminava o mundo, representando suas vitórias, vestiu hábitos turquesa.

Elegantemente, foi em direção à cúpula azul, pois o dia seria curto, e a história longa,

E, logo que a trança da lua estendeu seu longo véu de almíscar, o rei livrou-se da turba importuna de seus camareiros.

Ele implorou à princesa – ela era muito hábil em contar as fábulas – que cumprisse esse ofício que é das mulheres.

E gracejando, de lhe contar uma história que pudesse lhe enfeitiçar...

“Era uma vez na cidade do Cairo um homem chamado Mâhân: seu aspecto sobrepujava aquele da lua cheia...”

(Tradução Milton José de Almeida a partir do texto original em Les cinq poèms de Nezâmî, 2001)

xxxiii

xxxv

xxxvii

as imagens persas

Uma das características da iluminura persa é a utilização de múltiplas perspectivas, o que

causa aos olhares, acostumados à perspectiva ocidental (com ponto de fuga), o incômodo do plano

bidimensional. Esse acúmulo serve ao propósito de condensar os tempos narrativos, ou seja, tudo

está acontecendo em tempos diferentes, embora no mesmo plano visual; os principais personagens

interagem com personagens secundários. O tamanho de cada elemento em cena, as sombras –

através das nuances de cores e traços, mais fortes/fracos ou mais escuros/claros – sugerem o

volume, sem a utilização do ponto fixo. A indicação de tempo e espaço diferentes é sugerida pelas

cores das roupas, das folhas das árvores; das cores do fundo de cena, pelos enquadramentos, ou seja,

pelo cenário, em que tem destaque a vegetação.

Por exemplo, nas imagens, que acompanham o poema de Nezâmî, As sete efígies, o

iluminista, para ficarmos atentos ao espaço diferente, coloca uma árvore, sempre a direita; essa árvore

muda de folhagem a cada espaço/tempo distintos. Quanto tempo teria se passado? Quantos espaços

diferentes? É possível interpretar que os espaços poderiam ser os mesmos, assim como o tempo

poderia ser o mesmo, mudando, apenas, a forma como cada personagem estaria interagindo com

aquele momento. Essa pode ser uma porta, uma possibilidade.

Criei espaços narrativos e de estudo com essa multiplicidade de

olhares/narrativas/perspectivas. Para onde olhar? Para o caminho que você escolher percorrer.

No texto Um caminho retomo a narrativa em que converso com Alif. É ele quem fala: Para

começar o caminho é preciso que o viajante inicie a busca, explicando-narrando uma parte da história de

Bahrâm, o que inclui um episódio mais detalhado, a partir da tradução do poema, no texto No

pavilhão negro.

Uma vez sugerido o caminho da observação e da imaginação, através das imagens, proponho

outra passagem através das iluminuras do poema Khosrow e Shirin: um novo frontispício, novos

personagens. Essas imagens são seguidas pelo texto As vozes e os silêncios, sobre o filme Shirin, de

Abbas Kiarostami, em que o diretor, no início do filme, também apresenta iluminuras. Aqui, mostro

pinturas realizadas por outro artista, diferente daquele escolhido pelo diretor, outras possibilidades

para o leitor, outras portas.

xxxviii

Para introduzir o segundo filme, Bab’Aziz, de Nacer Khemir, o texto O filme como um espaço

imaginal começa com um poema de Rumî, chamado A evolução da forma. Esse poema pode ser lido

como porta de entrada para o filme, pois Bab’Aziz mostra a Ishtar que o caminhar leva ao desapego

da forma, das coisas, do mundo sensível e material. Uma descrição/interpretação do filme é dada nos

textos No deserto e Uma tempestade, onde inseri trechos do relato de Sohravardî O encontro com o anjo,

sugerindo ao leitor os momentos em que o filme poderia conversar com o texto, entrar por ele,

como eu o havia assistido/lido/visto. O texto é interrompido por Alif quando diz que Cada um tem o

seu jardim, como se tudo, o poema de Nezamî, os dois filmes, as imagens: tudo fosse evocado no

momento em que Alif me convidou a olhar.

Os dois últimos textos, Um conto do encontro com Sohravardî e A cada um o seu espelho encerram

meu caminho nessa pesquisa. No primeiro, é feita uma breve apresentação sobre os três relatos

escritos por Sohravardî, explicando alguns conceitos apresentados ao longo da tese, como a ideia de

exílio e a busca pela Luz da Glória. No último, conto uma história para você e abro esta porta literária

como tentativa de aproximar as possibilidades apresentadas ao longo do caminho da pesquisa: um

caminho de busca pelo conhecimento, através do conhecimento, até o conhecimento: a criação de

um lugar imaginal, onde me coloco como o peregrino, que conta a sua história: um encontro com um

estranho que irá guiá-lo e, ao chegar ao final do seu caminho, esse peregrino precisa voltar. Aquele

peregrino do conto fala sobre a sua experiência, mas ninguém que o ouve o entende: ninguém pode

ver o que ele viu, as palavras ditas por ele não seriam suficientes, por isso a cada um o seu espelho.

Alif,

Alif, onde está a porta?

Ele não responde.

Ela, então, olha o jardim que está à sua frente.

Cada palavra sua seria ali uma flor.

1

Introdução

Este texto é um lugar de palavras, mas também está sendo construído de silêncios, porque

nesta passagem podem-se encontrar momentos para os quais as palavras ainda não foram ditas: será

preciso vivenciá-las, criá-las, mexê-las para que elas mostrem: um aqui por onde se poderá caminhar.

Imagine-se um jardim por onde os olhos passeariam, em que as flores sejam histórias

entrelaçadas, sendo vistas como talismãs: “trazes a chave?”. Falar DE é falar de um modo de pensar,

é olhar através de outras lentes e, muitas vezes, deparar-se com a multiplicidade para descrever, por

isso não é um lugar feito por um, embora imaginado por um. Cada olhar traz novas interpretações. E

cada interpretação é um caminho que se pode percorrer.

E nesse lugar, é preciso escolher as palavras: elas são colocadas aqui como imagens e são

colhidas por sua potência como imagem para aquilo que se pretende desvelar. Note-se que a palavra

véu (lat. velu), presente nos verbos utilizados aqui: desvelar, revelar, velar: refere-se àquilo que, ao

mesmo tempo em que deixa passar a luz, não a mostra na totalidade; ao mesmo tempo em que

esconde, permite a sugestão da presença. Oculta-se para melhor mostrar, para o desejo, para a busca:

como nas antigas histórias persas, cada um que levanta o véu encontra uma beleza. Cada um que

percorre o caminho encontra o seu caminho. Essa é a potência do mundus arquetypus, ou mundo

imaginal, como o chama Henry Corbin, deixando claro que nada tem a ver com imaginário, mas com

a formação de imagens que ativam o mundo das ideias (conhecimento): um conto, um poema, um

texto teórico, um filme, são potencialmente um mundus imaginalis:

“Essa metamorfose do mundo em sua imagem, eternizando sua beleza revelada na

contemplação, transforma o aqui em um alhures que não é o além de um outro mundo, mas o

aqui mesmo na luminosidade de sua aparição, em uma abstração material.”2

Assim, o mundus imaginalis, ou mundo imaginal, seria o lugar da criação, da arte, da

beleza.

2 Ishaghpour, Youssef. O real cara e coroa, o cinema de Abbas Kiarostami. Página 94

2

Um conto Agora os dois se encontravam ali, em frente ao jardim.

Ela não sabia dizer como tinham chegado, mas o encontro acontecera entre eles e ela

admirava-se de vê-lo tão quieto, observando a mesma linha, olhando para o mesmo lugar, onde

haviam chegado. Nenhuma palavra era dita, nem mesmo ela compreendia por que os dois

guardavam silêncio: eles haviam caminhado juntos durante tanto tempo, haviam percorrido aquele

deserto que eram ambos, tantas vezes seus olhos haviam visto as mesmas coisas, percorrido os

mesmos lugares. Ali onde estava, ela era incerteza. Precisava que aquele momento fosse; por isso

perguntou novamente:

– Alif, você me ouve?

Olhando para ele, ela ainda se perguntava quem ele seria: lembrava-se que ao abraçá-lo havia

sentido a quentura da brisa do fim da tarde e tinha a memória do seu cheiro, um cheiro de lugar

antigo, de passagens tantas vezes percorridas: era como encontrar a si mesma. Ela se lembrava da

primeira vez que havia encontrado seu olhar: os dois temeram esse encontro, porque se

reconheceram um no outro, e desde esse momento não conseguiram mais se separar. Ela não se

lembrava por que tinham vindo. Durante todo o caminho, para ela o mais importante era que ele

estava ao seu lado, isso bastava, porque podia sentir em sua presença que estava sempre em casa.

Mas agora precisava de uma palavra.

– Alif...

Era o começo. Sem que ela se lembrasse quanto tempo havia passado, ele se aproximou e, no

encantamento dos seus olhos, ela se perdeu. A primeira coisa que conseguiu fazer foi perguntar seu

nome. Ele respondeu simplesmente: Alif. E, brincando, disse: a primeira letra do alfabeto árabe, dela

derivam as outras letras com que se podem fazer as palavras, já que você precisa de palavras. Por

enquanto, apenas olhe.

Ela aceitou o convite. Foi assim que eles iniciaram esse caminho e, percorrendo o deserto de

ambos, apenas seu nome lhe bastava.

Diante do jardim, porém, ela insistia na pergunta:

– Onde está a porta?

Ele ouve, mas seus olhos continuam fixos nas flores do jardim...

Ela olha na mesma direção e vê o poema...

3

I. o poema, ou as sete efígies Haft Peykar

Ao centro do romance, os sete relatos noturnos contados ao príncipe Bahrâm pelas

sete princesas são as etapas de uma possessão ascendente na aprendizagem do amor.

O enigma do amor, a realidade que se mostra entre o homem e a mulher no instante

de sua união, no instante de sua separação, sua conjunção impossível, até então,

desenvolve-se progressivamente até concretizar-se. O amor é assim o cerne dos sete

climas, das sete regiões, onde se representa o Universo. Cada princesa manifesta em

sua história, sua genealogia, e em seu discurso o poder característico de cada um dos

climas. Ela representa, assim, a pulsação de um astro, de modo que as sete noites

passadas entre elas, todas resumem a arquitetura dos sete céus, através desta curiosa

alquimia, o macrocosmo se converte em microcosmo. O romance de Nezâmî pode

ser lido como uma aritmética das esferas e suas relações e destinos dos astros. O

amor viaja nesses segredos, a astrologia sabe e guarda os segredos da Fortuna. Mas os

poderes femininos estão a serviço do Rei do Mundo, quando o príncipe, que passa

submissamente pelas sete princesas, ao término de uma epopeia heroica que começa

com a reconquista do Irã e culmina com a vitória sobre o imperador da China. Poder

paradoxal da mulher: dizer que o amor submisso e atento à vontade do Príncipe

Universal e dependência esta que domina tudo à sua volta.

A felicidade é o tema único do romance, a felicidade sem confrontos, o

“ponto de felicidade”, onde a salvação ética se converte ela mesma em joia. Nezâmi

dá ao poema uma noção muito precisa, já enunciada no início: o livro é o universo ele

mesmo, homólogo ao livro santo do Avesta, do antigo Irã. Ler os sete retratos é

deixar transparecer em si mesmo os sete ídolos, ou melhor, os sete ícones, onde a

unidade da Luz Divina (Xvarnah) se dá a conhecer, e esta aparição, qualquer que seja

dentre elas, faz da sua substância uma lição e uma aparição perfeitas. O leitor entraria

em harmonia com os sete pontos de fulguração para entender o símbolo da União.

Vê-se numa última etapa, a mais importante, que o leitor será convidado a

ultrapassar ainda esta epifania múltipla para entender a substância das noites de união

com o outro mundo, a exemplo de Bahrâm, que desaparece na gruta. Assim, o livro é

o conjunto da verdade intimamente vivida, a experiência de Nezâmî, é isso a que ele

convida:

4

“Procure-me neste livro, ele é a minha substância.”

(Jambet, C. Postface. In: Nezami, Les sept portraits.Fayard, páginas 341 a 360.)

A palavra relato, ao invés de história, será usada para se referir às narrativas do poema de

Nezâmî ou àquelas contadas pelas sete princesas, isso porque o prefixo re- aproxima-se do

movimento de releitura: os relatos do poema abrem-se em imagens que podem ser relidas e realizar

releituras, como propõe Henry Corbin em seus estudos sobre os relatos persas de Sohravardî, Ibn

Arabî, Attar e Avicena: uma leitura das palavras e, através delas, chegar às imagens, ou ainda, um

processo – hermenêutica, interpretação – do ocidente para o oriente3, através do mundus

imaginalis4.

A primeira parte do poema aproxima-se muito do Shahnameh de Ferdowsî5, como histórias

de cavalaria e ações do príncipe; mas é na segunda parte que o poema As sete efígies torna-se uma

epopeia mística: um relato visionário como A linguagem dos pássaros (Attar)) e O encontro com o

anjo (Sohravardî): narrativas dentro de narrativas propondo múltiplas perspectivas para se olhar:

uma linguagem gnóstica, um processo alquímico – um caminho para o conhecimento passando pela

transformação: em que o ouro, ou a pérola, é o encontro consigo mesmo:

“Há tantos caminhos para Deus quantas almas existem na terra”6

“Aquele que se saciar em minha boca tornar-se-á como eu. Eu também me tornarei como ele e as

coisas ocultas lhe serão reveladas”7.

3 “Esta hermenêutica tem por ponto de partida o zâhir, o exotérico. Em cada nível hermenêutico teremos, por sua vez,

um sentido esotérico (bâtin) que descobrir e um ta’wîl [interpretação, hermenêutica] que realizar. Assim, pois, haverá

um ta’wîl tanto do esotérico [sentido interior, oculto] como do exotérico [sentido externo, aparente] e esse ta’wîl

implica, por sua vez, um esotérico.” (Realismo y simbolismo de los colores em la cosmología chiíta. In: Corbin, Henry.

Templo y Contemplación, página 46).

4 Hûrqalyâ: Mundus imaginalis ou o mundo das formas imaginais e da percepção imaginativa. Mundus Imaginalis e

Um mapa do imaginal. In: Corbin, H.. Cuerpo espiritual y tierra celeste, páginas 19 a 32.

5 The reign of Yazdegerd the unjust e Reign of Bahram Gur. In: Ferdowsi. Shahnameh: The persian book of Kings,

páginas 600 a 678. 6 Epígrafe no filme Bab’Aziz, o príncipe que contemplou sua alma, Nacer Khemir, 2005.

5

Ao ler esses relatos é preciso lembrar a orientação: ele deve ser lido como se tivesse sido

escrito para você.

Para caminhar pelos relatos os companheiros de viagem do leitor serão os estudos a partir

dos livros Corpo espiritual e terra celeste, O homem de luz no sufismo iraniano e,

principalmente, Alquimia como arte hierática, estudos realizados por Henry Corbin.

Voltando ao poema As sete efígies, nas noites entre os sete pavilhões, e percorrendo os outros

relatos apresentados neste trabalho, o encontro com toda a bibliografia8, principalmente, O homem e

seu anjo: iniciação e cavalaria espiritual, também de Henry Corbin; além de um jardim, uma

janela, um portal: por onde nos deixamos levar. Trazes a chave?

um caminho

Para começar o caminho é preciso que o viajante inicie a busca9: os relatos são escritos na

forma de diálogo, em que o peregrino encontra-se com o sábio: Gabriel é o anjo e será o guia do

exilado na busca pela pátria perdida. O lugar em que o encontro ocorre não é topográfico, é no

templo interior, no homem interior: no oitavo clima10, no continente desconhecido da busca; e o

final do caminho é o vislumbre da Luz de Glória (Xvarnah), em que o viajante compreende que ele é

o próprio guia, quando o peregrino não se vê mais como exilado, ele deixa de ser um estrangeiro.

7 Evangelho de Tomé, v.108. In: Nag Hammadi. Dubois, D. & Kuntzmann, R., página 61.

8 Corbin, Henry. Tempo cíclico e gnose ismaelita, Templo y Contemplación; Sohravardî: El encuentro con el ángel:

tres relatos visionarios comentados y anotados por Henry Corbin; de Shayegan, Daryush: Henry Corbin, La

topographie Spirituelle de l’Islam Iranien; Attar. A linguagem dos Pássaros; de Ibn ‘Arabi. Alquimia da felicidade

perfeita; Ferdowsi, Shahnameh; e Alcorão.

9 O processo iniciático, ou “discurso de iniciação” é analisado por Henry Corbin em El encuentro con el ángel, El

rumor de las alas de Gabriel, página 70.

10 A terra mística de Hûrqalyâ: o oitavo clima. In: Corbin, H.. Cuerpo espiritual y tierra celeste e Orientamento. In:

Corbin, H.. El hombre de luz en el sufismo iranio.

6

Ela então pensa:

Havia vozes no vento,

a própria brisa rumorejava.

Ninguém conseguia entender o que se dizia

porque aqueles sons falavam de lugares esquecidos.

Foram perdidas as letras: elas rolaram pelo ar.

Ele, então, conta-lhe o que sabe...

Houve um tempo, há muito tempo, um príncipe. Sua história foi contada pelos poetas, que

usaram as palavras como ouro, e nelas ocultaram o âmbar e o almíscar. A história é a pérola que está

no fundo de um poço.

Olhando no fundo do poço, vi o branco daquela pérola. Cresceu o desejo de pegá-la. Levei

minha mão até o lugar em que eu pudesse alcançá-la. Eu a senti entre meus dedos. Porém estava

num lugar escuro: em frente havia uma caverna e eu olhava para ela. Lá de dentro saíam rajadas de

vento, como se asas estivessem em movimento; meus cabelos e minhas roupas eram levados como

numa tempestade. Mas eu estava firme, porque um menino muito branco, com os cabelos também

brancos, segurava minha mão11. Ele olhava para mim enquanto o vento entrava pelos meus ouvidos:

eram trovoadas. Tudo se fez muito escuro e ali, silêncio. Aquele menino pegou a pérola com as duas

mãos e me disse: olha.

Um anjo me arremessou para um imenso jardim. Lá estava o menino ainda segurando a

pérola. Então ele a esmagou e a areia que ficou nas suas mãos foi espalhada pelas sete direções12. Eu

me sentei ao seu lado e ouvi. 11“Em Sohravardî o estilo das epifanias do anjo é muitas vezes sombrio, inclusive austero. Nos três relatos do “Encontro com o anjo” este

aparece com as feições de um sábio de eterna juventude, cujos cabelos brancos anunciam seu pertencimento ao mundo da Luz.” (Corbin, H.

Presentación. In: Sohravardî, El rumor de las alas de Gabriel, página 69).Também aqui se faz referência a Zâl, “Quando, desde o

ventre de sua mãe, Zâl deu início à sua existência, a cor de seus cabelos era completamente branca e também seu rosto era branco por inteiro.

Seu pai ordenou que a criança fosse abandonada no deserto. Era inverno e ninguém acreditava que de poderia sobreviver àquele abandono.

Mas Simorg protegeu Zâl sob suas asas. Que significado se tira disso? Que Zâl, embora enviado ao mundo sensível, voltou a pertencer ao

mundo de Luz, resgatado por Simorg”. (Sohravardî, El arcángel temido de púrpura, página 59).

12“As sete direções são os extremos de cada uma das três dimensões do espaço segundo a geometria da época, isto é, acima, abaixo, à frente,

atrás, à direita, à esquerda e ao centro”. (Nota 4, La ascensión del Profeta. In: Nezâmi. Las siete princesas, página 85) No momento

em que o viajante se encontra na confluência dessas sete direções, ele está no oitavo clima, ou seja, no mundus imaginalis.

7

– Você está vendo aquela colina? Lá está o palácio das sete princesas. Nele Bahrâm mandou

construir os sete domos e neles guardou as sete efígies. Durante os sete dias da semana, o rei passou

pelos sete continentes, ouvindo a história que cada princesa contava. Você irá até lá, percorrerá os

sete planetas, provará os sete elixires, então você me verá.

Ele colocou na minha mão uma gota de bálsamo e eu entrei no palácio.

no pavilhão negro

Naquela noite entrei no pavilhão do continente da Índia. Ali meus olhos se encheram de

lágrimas: minhas vestes estavam negras.

No lugar em que me encontrei, havia uma princesa: era o castelo do Paraíso e aquela princesa

se diferenciava das outras princesas, não por ser mais bela ou pura, mas porque suas roupas eram

negras. Talvez aquela cor representasse alguma penitência por algo errado em seu passado, e pedi

para que ela contasse o que teria havido: contar seria uma forma de diminuir o tamanho do mal,

pensei. E tantas eram as insistências que ela contou:

– Fui companheira de um rei e com ele fui feliz, ainda que esteja morto hoje. Ele foi

conhecido como “o rei dos que vestem negro” e isso porque ele sofreu e lutou contra a injustiça.

Quando jovem, vestia-se de cores diversas, possuía muitos bens e recebia muitos hóspedes em seu

palácio. Mas um dia desapareceu e durante muito tempo todos ficamos preocupados. Quando ele

voltou, passou a vestir-se apenas de negro; aquilo incomodava todos nós. Uma noite, ele olhava com

muita tristeza as estrelas do céu e disse:

– Como eu estou angustiado. A sorte foi cruel e brincou comigo: me mostrou o jardim do

Paraíso e depois escondeu tudo. Agora eu vivo na escuridão da lembrança. Esse é um segredo que

somente eu conheço.

– Mas quem faria esse mal?

– Lembra-se de como eu recebia meus hóspedes e como me interessava por conhecer suas

histórias. Um dia apareceu um estrangeiro que se vestia de negro, dos pés à cabeça; isso me deixou

imensamente curioso. Eu insisti para conhecer sua história e ele me disse que era impossível

8

satisfazer meu desejo com palavras porque aquelas roupas negras somente quem as usava poderia

compreender o relato, mais ninguém. Mas eu insisti, e insisti tanto até ele me dizer: existia uma

cidade no país da China, bela como o jardim do paraíso, chamada “a cidade dos que sofrem de

estupor, a casa de luto dos que se vestem de negro”. Esse era o destino dos que bebiam o vinho

daquela cidade: passavam a vestir-se de negro, como a lua, que se cobre com o véu da noite. Essa era

a história daquelas roupas negras do estrangeiro e ele disse que a história era estranha, mas não me

diria mais nada, mesmo que eu o ameaçasse de morte.

No dia seguinte ele foi embora, mas eu não consegui ficar tranquilo: aquela história

atormentava meu sono e eu sonhava com aquela cidade. Um dia parti, levei o necessário; depois de

muito caminhar, encontrei a cidade: era realmente maravilhosa, mas todos ali se vestiam de negro.

Durante um ano tentei saber a história daquela cidade, mas ninguém me dizia nada. Nesse período

fiz-me amigo deles. Um se aproximou mais de mim e foi para ele que dei muitas joias, ouro e

gentilezas, até que ele disse que eu poderia pedir qualquer coisa em troca. Então eu perguntei:

– Por que todos aqui se vestem de negro?

– Já é tempo de você ver o que deseja ver.

Ele saiu e eu o segui: ele ia à frente e eu, como estrangeiro, ia atrás. Estávamos sozinhos em

um lugar deserto. Então eu vi um cesto amarrado. Ele me disse para sentar ali e olhar bem para o céu

e para a terra, porque assim eu entenderia a razão porque os silenciosos vestem luto, porque somente

aquele lugar me mostraria o bem e o mal que eu ignorava. Quando me garantiu que não havia

nenhum perigo, sentei-me, mas não tive tempo de me acomodar, porque a cesta se transformou em

um pássaro e, com um talismã giratório, Simorg me elevou até os círculos do firmamento: ele [o

pássaro] arrebatado por cordas alquímicas, eu, mísero de mim”, permaneci preso ao cesto, cercado

por pássaros e bestas selvagens e durante toda a manhã continuei naquela viagem, vi girar sobre a

minha cabeça a esfera celeste e Sîmorg foi aos poucos descendo e pude entrar num jardim

maravilhoso, pleno. À noite, o jardim foi tomado por mulheres fabulosas e havia entre elas uma que

se sentou no trono e disse a uma confidente:

– Parece que há aqui um não iniciado, adorador das coisas materiais.

Então ela me chamou e mandou-me sentar ao seu lado no trono e mandou que me

servissem. Eu bebi e comi, embriaguei-me de vinho e de todas aquelas belezas; mas eu desejava

aquela rainha mais do que tudo. Ela, percebendo meu desejo, ofereceu uma das dançarinas; aceitei,

mas ainda tentei conquistá-la com todas as forças. Então tudo desapareceu e eu adormeci. Quando

9

acordei estava sozinho no jardim: sem as comidas, sem os prazeres. Quando a noite chegou, as

mulheres retornaram, entre elas a rainha. Ela me colocou aos seus pés e novamente eu fui servido.

Mas ainda o vinho me fez perder o controle e ela me disse:

– Feche a porta na cara de um só desejo, porque assim poderá realizar todos os outros o

ano inteiro.

Mas logo me assaltaram novos ardores de febre e o vinho renovou o desejo, então ela

convidou uma das companheiras para me acalmar, mas aquele prazer não satisfazia meu desejo: eu

continuava querendo aquela rainha. Eu era o rei do país da alegria: durante o dia ficava no jardim,

descansando; durante as noites participava daquelas festas; mas fazia trinta dias que a rainha atrasava

sua promessa de entregar-se. Nesta noite, então, cobrei dela o cumprimento da promessa. Ela

concordou e pediu que eu fechasse os olhos para que pudesse abrir a porta do tesouro. Quando ela

me mandou abrir os olhos, eu estava sozinho, no cesto, não havia nenhuma daquelas belezas perto

de mim. Fiquei aterrorizado e me assustei quando revi o companheiro que tinha me levado até ali e

que agora me desamarrava do cesto. Então ele me disse que mesmo se tivesse repetido cem vezes a

história que eu tinha acabado de ver, ela não seria acreditável: ele também tinha abraçado aquela

rainha com ardor e também se achava injustamente tratado, por isso vestia-se de negro. Depois

disso, passei a vestir-me de trevas noturnas. Parti daquela cidade e regressei para minha cidade com

o coração angustiado, todo vestido de negro; eu, o Rei dos que se Vestem de Negro, como nuvem

negra, derramo minhas lágrimas porque quando tive em minhas mãos semelhante objeto

maduro, meus desejos imaturos me afastaram dele13.

A minha companheira disse: o rei estava agora na presença dos sábios, que se encontram com

o Anjo que usa as vestes imortais da sabedoria. Também eu, sua companheira, me vesti de negro,

para estar com ele, na Luz Negra. A princesa do primeiro continente também vestia negro; ela

colocou o véu de Saturno nos olhos.

A quem pergunta qual foi o caminho percorrido para chegar ao palácio basta dizer que

quando vi a pérola, eu caí no poço. Mas talvez não se entendam as minhas palavras, porque a pérola

é mais que a pérola e, para você, o poço é ainda um poço. Para mim, a pérola é a palavra e eu a

13 História a partir do relato Bahrâm reside el sábado em el pabellón negro, donde escucha la historia de la princesa

del primer continente (Índia) In: Nezâmi. Las siete princesas. Páginas 113 a 134.

10

alcancei quando caí no poço. E o poço sou eu. Mas você ainda não me entende porque as palavras

são letras e para você elas estão perdidas: Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!14

Durante aquela noite, permaneci no continente da Índia. A princesa era Saturno e seus olhos

eram negros. Por eles eu olhei, porque somente com eles eu poderia entrar no reino do silêncio e

abrir o véu: o pavilhão era negro e quem o regia era Saturno e ali o desejo é a ânsia que escurece o

olhar da alma: Feche a porta na cara de um só desejo, porque assim poderá realizar todos os

outros o ano inteiro, como foi dito; mas talvez eu não ouvisse e cada um tem seus próprios ouvidos,

por isso não é possível que um enxergue pelo outro: cada um precisa contemplar sua alma. Para o

que se deseja saber a chave é Sîmorg, o mensageiro, ele já apareceu n’A Linguagem dos pássaros;

era o cesto e o guia; eu, o estrangeiro ao conhecimento, fui guiado através das sete esferas celestes,

ou das montanhas até Qâf15, ali é possível avistar o jardim do Paraíso.

– Onde ficaria esse lugar?

Esse lugar não tem onde, nem tem um nome. É um movimento, uma busca, um outro

caminho, além das seis direções: não está nem à frente, nem atrás; à direita ou à esquerda não há

nada; acima ou abaixo não é possível ainda ver o caminho. O centro e voce. Olhando para dentro, lá

está o oitavo clima. É nesse lugar que se conseguirá sair do Ocidente e entrar no Oriente, onde

nasce a Luz que é o conhecimento, caminho proposto por Sohravardî. O negro é a matéria inicial, a

Luz Negra, e é noite quando se avista aquilo que se deseja, na noite encontra-se o espelho em que é

possível mirar-se a imagem do si-mesmo. Ela estava ali, em você e lhe disse: Parece que há aqui um

não iniciado, adorador das coisas materiais, mas você não percebeu, por isso a pergunta. Todas as

noites ela lhe oferecia os prazeres e ele ainda queria mais, porque não a via, via apenas o seu desejo.

Então a forçou. Ela concordou e pediu que eu fechasse os olhos para que pudesse abrir a porta

do tesouro. E nessa escuridão ele se viu sozinho e de volta; ele tinha ouvido e não tinha escutado, ele

viu aquilo que os outros haviam falado. Já é tempo, como disse o guia. Era sua alma; ele precisava

14 Evangelho de Tomé, Nag Hammadi, versículo 65, página 57.

15 Qâf: uma região que, como o paraíso terrestre, tornou-se inacessível à humanidade comum. Simbolicamente é ao

mesmo tempo o centro do mundo e os seus limites; é, portanto, ao mesmo tempo um monte e uma cadeia de montanhas

que circunda o mundo e limita os dois horizontes. Conforme a tradição, para chegar-se a Qâf é necessário atravessar sete

oceanos, isto é, o mundo inteiro. Representa essencialmente, o eixo fixo em torno do qual realiza-se a revolução de todas

as coisas. (Nota 84, Discurso da Pupa aos pássaros. In: Attar. A linguagem dos pássaros, página 44). Também em

Sohravardî, El arcángel teñido de púrpura. Nota 27, página 52.

11

voltar ao mundo sensível, de onde se traz a nostalgia do conhecimento perdido. E disse: como

nuvem negra derramo minhas lágrimas porque quando tive em minhas mãos semelhante objeto

maduro, meus desejos imaturos me afastaram dele.

Ouça: naquele lugar a princesa com os véus negros contou sua história, esse foi o primeiro

encontro. Entre e olhe, porque as palavras são as imagens e quando você puder vê-las encontrará a

pérola e terá compreendido que o poço é você.

Quando voltei para perto do meu amigo, ele recolhia os grãos da pérola espalhados pelo

vento. Ele me viu e pediu para olhar minha mão, eu mostrei para ele a gota do bálsamo16: ela estava

do mesmo jeito como ele tinha deixado. Então ele observou os meus olhos e percebeu o véu. Voltou

a soltar os grãos da pérola no ar e me levou até o pavilhão amarelo; pediu para que eu olhasse o

bálsamo na palma da minha mão e eu entrei.

16 “Aquele que procura a Fonte da Vida nas trevas passa por todos os tipos de estupor e angústias. Mas se é digno

de encontrar a Fonte, finalmente, depois das Trevas, contemplará a Luz. Aquele que se banha na Fonte não se

esquecerá nunca. Quem encontra o sentido da verdadeira realidade, chegou à Fonte. Quando sai dela, finalmente

alcançou o estado que o faz semelhante ao bálsamo, uma de cujas gotas, colocada na palma da mão posta ao Sol, a

transpassa. Se tu fores Khezr [ o sábio, aquele que alcança por si mesmo a Fonte], poderás passar sem dificuldade

através da montanha de Qâf” (El arcángel temido de púrpura. In: Sohravardî. El encuentro com el angel. Página 65).

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Frontispício do livro Khosrow e Shirin

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Chîrin vem ver Farhâd

Vieram dizer a Chîrin que Farhâd fez um tanque e abriu um canal.

Manhã e noite, este tanque se enchia do leite de suas ovelhas.

Beleza do Paraíso, ela veio pela planície, rodeou o tanque, contemplou o canal.

Ela refletiu: “isto não é obra humana, é obra de Deus!”

Ela se extasiou com a destreza desse mestre Farhâd: “Que Deus tenha piedade de tão hábil pessoa!”

Uma vez descansada, ela chamou Farhâd e o fez acomodar-se mais próximo que seus seguidores.

(Tradução Milton José de Almeida a partir do texto original em Les cinq poèms de Nezâmî, 2001)

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II. As vozes e os silêncios: o filme Shirin, de Abbas Kiarostami.

Se entrarmos no filme através do som, seria assim:

Silêncio. (durante um minuto.)

Surge a música dos metais. Tímpano. Então, as cordas: acompanhamos a orquestra por quase um

minuto e meio.

(Depois disso, a história entra na tela através de iluminuras.)

Primeiro, ouve-se uma porta, sendo trancada (ou destrancada).

Ruído de passos.

Uma gota... tempo... tempo... outra gota... tempo... tempo...

Agora, os passos parecem descer uma escada (ou subi-la). Sussurros...

O som de murmúrios indistintos torna-se lamentos...

Ela diz:

Ouçam, minhas irmãs! É tempo para a minha história agora, bem aqui, pelo corpo sem

vida de Khosrow.

... tempo... gota... Lamentos...

Um homem que foi seu rei e meu marido até ontem. Hoje ele encontrou refúgio na morte.

Vejam, minhas irmãs, como ele parece sereno. Tão calmo como da primeira vez em que o vi.

Eu tinha dezessete anos e o mundo ainda era jovem. Quantos crepúsculos se passaram

desde então? Quantas primaveras se transformaram em outonos para nos trazer aqui, a esta

visão de sangue, meu Khosrow? Vê como sua doce Shirin tornou-se amarga? Ah, meu marido,

não é culpa de Shirin se o mundo tornou-se amargo.

(violinos silenciam a narradora...)

Risos

Elas convidam:

Venha conosco, Shirin! Por aqui!

Seus olhos estão vendados, abra os ouvidos. Basta seguir nossas vozes!

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Seguiremos o convite: de olhos vendados, apenas ouvindo a história de Khosrow e Shirin, o

caminho para o amor é sempre incerto...

Um retrato

Há o retrato de um rosto de homem muito bonito; moças o encontram enquanto brincam nos

jardins. Uma dessas moças é Shirin, princesa herdeira do trono da Armênia. Na brincadeira, Shirin

está com os olhos vendados e ouve os suspiros de suas amigas. Ela pede para que retirem de seus

olhos a venda. Uma delas responde que Shirin perderia o jogo se retirasse a venda dos olhos. Ela vê

o retrato: Esta derrota vale mais do que centenas de vitórias. O retrato passa então a persegui-la:

nas águas em que brincam ela e as amigas, em seu quarto, enquanto tenta repousar... em seus sonhos.

Atormentada, ela desperta de um pesadelo em que surge o retrato.

O mago

A ama de Shirin sugere que ela procure um mago que vive nas montanhas para descobrir de quem é

o rosto do retrato. Durante a madrugada, Shirin monta Shabdiz, o cavalo mais veloz do reino, e parte

em direção às montanhas. Lá, o mago lhe diz que o retrato é do rei Khosrow, príncipe de Pérsia, que

se apaixonou por ela. A princesa duvida, quer saber como Khosrow teria se apaixonado por ela. O

mago apenas lhe diz que o príncipe Apaixonou-se. Não há ‘se’ ou ‘mas’, jovem senhorita. Como

ele a teria visto? Da mesma forma que você o conhece. Ele viu um belo retrato que não era a

imagem do amor, mas o amor personificado.

No caminho

Shirin parte rumo a Madaen, seguindo as orientações do mago: Eu preciso cavalgar leve como o

vento. Adeus, espelho e pente. Adeus, pingentes e brincos. Adeus adornos pomposos. Mais

rápido, Shabdiz, mais rápido. O mago disse que meu destino me aguarda. Se ao menos eu

pudesse encontrar uma fonte para lavar o rosto dessa difícil viagem. Ela encontra uma fonte e lá,

Shirin se entrega à água. Percebe que entre os arbustos alguém a observa em seu banho: Quem é

você? Um desconhecido que como um ladrão, espiona-me durante a noite? Foi ele? Khosrow?

Príncipe da Pérsia?

Primeiro desencontro

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Enquanto Shirin dirige-se a Tisfun, no Irã, Khosrow partiu para encontrá-la na Armênia. No meio

do caminho, ele a vê banhando-se e fica apaixonado pela bela mulher que não percebe ser Shirin.

Chegando a Mahin Banoo, a tia de Shirin recebe o príncipe persa com honrarias de nobre, mas a

rainha está enfurecida pela fuga de Shirin: Um coração jovem não está familiarizado com o amor.

É apenas um capricho que vem e vai. Vocês estavam todos dormindo enquanto ela estava

planejando sua sinistra partida.

Desvio17: Shirin lamenta: Aqui está frio, Tão frio que minhas mãos e meu rosto estão se tornando

insensíveis. Mas o corpo do meu homem ainda está quente. O homem por quem deixei meu país e

adotei esta terra quente. Você me ouve, meu Khosrow? Por você, que antecipou a minha

chegada, que construiu este palácio para mim e reuniu todos estes serventes a meu serviço. Mas

eu era uma menina da montanha. Pedi a seus homens que construíssem um palácio ao lado da

montanha.

Segundo desencontro

Em Madaen, Shirin pergunta a Shapoor por que o príncipe encarregou-o de buscá-la, enquanto

Khosrow parte para a Armênia Qual seria a razão para esse comportamento do amante? Shapoor, o

calígrafo do então príncipe Krosrow, responde: o Estado tem as suas razões que mesmo a razão

ignora. Shirin parte para encontrar-se com Khosrow na Armênia. Chegando a Mahin Banoo, sua tia

lhe conta que Khosrow precisou partir e voltar ao Irã porque o reino corria perigo, uma vez que o rei

havia sido traído por seus ministros, Khosrow precisava socorrer seu pai e seu reino. A jovem

princesa da Armênia lamenta mais esse desencontro: Khosrow deve lutar por seu pai, por seu

trono, por seu reino, mas não por seu amor. Sua tia lhe pergunta o que ela, Shirin, faria no lugar de

Khosrow?

17 O texto é construído a partir das falas do filme Shirin (Irã, 2008, 94 min., Midas Filmes). O texto falado pela

personagem Shirin, no que considerei o momento presente da história (os encontros entre Shirin e Khosrow seriam

passado, já que, no início do filme, ela diz que Khosrow está morto), quando ela está no mausoléu, com o corpo de

Khosrow, e podem ser lidos como digressões. A história seria contada em flashback, entremeada das digressões de

Shirin. A essas digressões, chamei “Desvios”.

38

A guerra

Os homens ao lado de Bahrâm, o usurpador do trono do Irã, lutam e vencem a batalha. Admirado,

Khosrow pergunta a Shapoor quem são aqueles que têm a coragem que falta ao seu exército. O

calígrafo responde que naquele jogo de xadrez conviria recuar, pois os peões aspiram à nobreza e a

decepção é a jogada da vez. A única forma de ganhar aquela guerra seria com a decepção: Nunca é

tarde demais para lutar. Juntam 40 homens e partem para as fronteiras de Mahin Banoo. Khosrow

suspira: Próximo a Shirin? Oh, destino!.

Talvez um desvio: Shirin se recorda: Eu o vi. Finalmente eu o vi. Na noite passada, sonhei com um

cavaleiro que tinha um galho em vez de uma cabeça, onde uma pomba fez seu ninho. Foi um

sonho ou um pesadelo? Eu não sei dizer. Eu não sei dizer.

Primeiro encontro: Shirin e Khosrow antes da batalha:

– Eu pensei que você estivesse na batalha, combatendo o inimigo feroz.

– Suas flechas não foram tão penetrantes quanto o seu olhar.

– Então você virou as costas para a guerra, desafiando os inimigos em frente e ignorando

os que estavam atrás de você.

– Shirin, eu tinha medo...

– Então você está aqui para exercitar sua ira sobre as jovens gazelas desta terra.

– Eu temia que nunca nos conhecêssemos.

– O gravador do retrato devia ser punido por sua falta de habilidade.

– Isso é um elogio ou um insulto?

– Você está cansado. Eu não deveria mantê-los por mais tempo. Vamos.

– Onde?

– Não tenha medo, meu senhor. É um longo caminho, mas vamos encurtá-lo com algumas

histórias de amor.

Contaram a um príncipe árabe a história de Layla e Majnun e descreveram o estado

de loucura do amante, dizendo: “Apesar de sua grande sabedoria e eloquência, perdeu

todo o controle de si mesmo e foi morar na floresta, onde tornou-se amigo das feras”.

Majnun foi trazido sob ordens do príncipe, que o repreendeu, dizendo: “Que

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imperfeição descobriste, afinal, na humanidade, para preferir a companhia dos

animais e abandonar a sociedade dos homens?”

Majnun suspirou e respondeu:

“Verdadeiros amigos criticam-me por causa de meu amor.

Ah! Se ao menos pudessem ver-te, compreenderiam!

Se os que criticam minhas maneiras pudessem ver teu rosto,

Ó tu que cativas os corações,

Que à tua simples visão

Possam eles cortar as mãos em vez da laranja!

Sua parição confirmaria minhas palavras e eu poderia dizer: ‘Eis aquela por quem

me repreendeis’.”

O príncipe desejou ver a grande beleza de Layla e maravilhar-se, ele também, ante a

causa da alienação de Majnun. Por ordens suas, ela foi conduzida à sua presença. Ele

viu uma mulher esguia, de pele negra, que a seus olhos, porém, não tinha qualquer

interesse, se comparada às suas próprias escravas, todas mais belas e mais graciosas.

Majnun viu o espanto do príncipe e disse-lhe:

“Ó príncipe, deverias olhar para Layla

Apenas com os olhos de Majnun!

Não podes aliviar minha pena.

Meu amigo deve ser um companheiro de dor,

Para poder contar minha história, noite e dia;

Dois pedaços de madeira, juntos,

Ardem com maior claridade.

Os pombos do crepúsculo lamentariam

Se soubessem de minha triste sorte.

Ó amigo, aquele que não sentiu

As feridas do amor,

Que conheça o sofrimento dos aflitos!

Aqueles que têm o coração livre

Não conhecem as dores de um coração cativo,

Só os que sofrem do mesmo mal.

De nada serve descrever um zangão

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A quem nunca foi picado.

Até que teu estado seja semelhante ao meu,

Tu me considerarás um estranho.

Não compares a chama que me consome

Àquela que consome um outro qualquer.

Se ele tem sal em suas mãos,

Eu o tenho em minhas feridas”.18

Desvio: o outro caminho do desejo

Mulher – Corra!

Shirin – Correr do quê?

Mulher – Dele, da sua presença, da sua intimidade, das suas súplicas constantes. Do olhar em

seus olhos, onde se situa o demônio chamado desejo. Do caminho para a desgraça. Do mais

escuro destino.

No jardim

Khosrow está no acampamento e vê com maus olhos as festas, risos e aplausos dos soldados,

homens que se deixam entorpecer pelo vinho e pelas mulheres. Do encontro desses dois elementos,

segundo Shapoor, advém o desejo. Para o príncipe, o desejo somente arde o coração daquele que

não é amante. Para ele, apenas o rosto de Shirin seria a lua naquela escura noite. Onde estaria ela

agora? O calígrafo lhe diz que Shirin se encontra do ouro lado do jardim. Khosrow segue até a porta

que lhe aponta Shapoor e pede para que o calígrafo aguarde ali.

Segundo encontro, Shirin e Khosrow no jardim:

– Eu estou queimando de amor e você foge de mim?

– Seu reino conquistado por Bahrâm e você definha de amor na Armênia?

– O que eu posso fazer? Seu amor me fez esquecer meu trono.

– E seus herdeiros? Como você responderia a eles? Que seu desejo por Shirin privou-os

do trono?

(trovões)

18 Conto 18, In: Saadi, Gulistan. páginas 184 a 186.

41

– Amor, não desejo!

(chuva)

– É uma boa desculpa para obter satisfação. Mas Shirin é uma barragem que nenhum

dilúvio pode submergir.

Desvio: Shirin relembra: Os homens são tão infantis. Eles quebram os brinquedos que não entram

em seus jogos. Naquela noite, Khosrow partiu para Roma. Com a ajuda do exército romano, ele

derrotou Bahrâm e se casou com Maryam, a filha do imperador romano. Ele ganhou de volta seu

trono e Shirin, já sozinha, tornou-se ainda mais solitária.

Shirin

A princesa volta à Armênia e encontra sua tia morrendo e pede a Shirin que ofereça ao povo uma

vida pacífica. Shirin torna-se rainha da Armênia. Os anos se passam e Shirin não tem outros

pensamentos que não estejam com Khosrow. Ela chama Shapoor e diz a ele: Vamos ao Irã. Deixo

Armênia aos meus herdeiros. O amor me faz perder a paciência e isso me enche de força e de

coragem. Partiremos hoje à noite. Guiados pela lua cheia, vamos a galope, não em linha reta

para o amor, mas para sua vizinhança onde o mesmo sol possa brilhar sobre mim e Khosrow.

Khosrow

O rei é informado que Shirin está no Irã; o rei pergunta se ela sabe sobre seu casamento; Shapoor diz

a Khosrow que ela sabe do casamento do rei com Maryam, e lhe diz ainda que: Os homens são

aquecidos pelo amor. As mulheres queimam. Elas são as primeiras vítimas desse fogo. Então o

rei pede a Shapoor que traga Shirin para vê-lo: Este amor não se satisfaz com uma única vítima.

Traga-a para mim, para que queimemos juntos, mas Khosrow adverte que Maryam nada deve

saber19 porque o ciúme da mulher era mais perigoso que o amor.

19 Segundo o poema de Nezâmi, o casamento com Maryam teria imposto a condição de que o rei não contraísse outro

matrimônio. No filme, há uma fala em que Maryam surpreende Khosrow que sonhava com Shirin: Por anos perdemos o

sono sob o pesadelo de Bahrâm. Agora que ele está queimando no inferno, temos de suportar seus doces sonhos de

[sic] Shirin. Esse é o nome dela, não é? Deitando-se com sua esposa, o rei sonha com seu amor perdido.

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Terceiro desencontro: a carta

Quando Shapoor transmite a mensagem do rei, Shirin pede-lhe que escreva uma carta a Khosrow

dizendo: Não! Shapoor sugere que a carta é muito pequena. Ela diz: Hoje descobri meu primeiro fio

de cabelo grisalho. Levei uma vida para compreender que o amor não é um trapo velho com o

qual se deve polir as botas dos homens. Khosrow escolheu Maryam para fazer uma aliança

política. Ele procura sua amada para escapar da solidão. Escreva que Shirin é alguém que ama,

não apenas uma doce presença para salvá-lo de suas noites solitárias. Não, não escreva isso.

Shapoor lhe pergunta o que deveria escrever, então. Ela lhe diz para escrever apenas Não. Isso seria

suficiente.

O encontro com Farhâd

Shirin manda um cavaleiro procurar Farhâd, o grande arquiteto e escultor de pedras para que este lhe

faça um canal através do qual seria possível fazer chegar o leite dos prados ao palácio. Quando

Farhâd vê Shirin, todo ele é tomado por amor e acaba desfalecendo, repetindo o nome da amada:

Shirin...Shirin...

Desvio: a lembrança de Farhâd: Como esquecer aquele olhar, virtuoso, terno e suave? Não me

culpem se, ao lado do corpo de Khosrow, estou lembrando o olhar amoroso de Farhâd. Não é

minha culpa, mas a culpa é deste mundo, cruel para os amantes, e que dotou Farhâd com aquele

olhar, e não outra pessoa, nem mesmo Khosrow.

Farhâd

Khosrow soube do amor do escultor de pedras por Shirin. Como Shapoor era amigo e fora colega

do arquiteto desde a escola, pediu-lhe o rei para que trouxesse Farhâd à sua presença. Quando

Khosrow se surpreende ao imaginar um escultor apaixonado, Shapoor sugere ao rei que o amor seria

uma outra face da rebeldia. Os dois homens se encontram: o rei tenta dissuadir Farhâd de seu amor

por Shirin, mas ele mantém-se fiel, dizendo que seu coração não lhe pertence, mas à Shirin. O rei

tenta repreendê-lo por sua impertinência, lembrando-lhe que também é apaixonado por Shirin, ao

43

que Farhâd responde: O amor do rei não me surpreende. Surpreende-me que não seja o mundo

todo apaixonado por ela.20

A montanha Bistum

Trabalhando na montanha, Farhâd entoa poemas onde canta seu amor por Shirin. Um dia, a dama da

Armênia vai visitá-lo e leva-lhe leite para aplacar as chamas de seu amor. Como o sol está muito

forte, ela se admira ao vê-lo trabalhar sob tais condições. O cavalo de Shirin começa a ficar inquieto,

além dela sentir-se mal, devido ao calor. Então Farhâd carrega o cavalo nas costas e, sobre o cavalo,

Shirin está montada: Não tenha medo, Shirin. Você fica no seu cavalo, sobre os meus ombros e eu

vou levá-la para sua residência. Fique na sua sela, pois sem a força de seu nome, Bistum nada

mais seria do que uma ruína digna de corujas.

O monólogo de Khosrow

Seu nome põe em perigo a nossa glória, Farhâd. Você fez da geometria uma arte

admirada por todos, e eu não disse nada. Você se apaixonou pelo amor da minha vida, a sua

música foi cantada por todos e eu não disse nada. Você estava vagando, cantando o seu amor

por Shirin, sua voz encheu a planície e as montanhas e eu não disse nada. Você ficou de joelhos

diante de mim, rei da Pérsia, Khosrow Parviz, mas a elogiou, e eu não disse nada.

Mas o que é esse novo feito? Tomando Shirin e seu cavalo em seus ombros, vagando pela

cidade e deixando os transeuntes espantados? Eu tenho que limpar essa desgraça. Khosrow

salvará a sua honra da forma mais justa. É uma batalha entre o meu coração e o seu cinzel.

Jogue seu cinzel, pois meu coração é duro o suficiente para dobrá-lo da forma mais justa. Não é

uma batalha entre um rei e seu vassalo, mas entre amantes. Um vai viver e um perecerá. Aquele

20 De acordo com uma versão do poema de Nezâmi, o Rei Khosrow teria proposto um desafio a Farhâd: ele deveria abrir

uma passagem através da montanha Bistum, uma montanha composta de ferro e pedras. Em troca, o rei deixaria o

escultor casar-se com Shirin. Seria uma tarefa impossível porque a montanha, por sua constituição, seria impenetrável.

Com o calor de seu amor, Farhâd consegue abrir a passagem, esculpindo, na entrada, um retrato de sua amada. De

acordo com outra versão, Farhâd não teria conseguido cumprir o desafio e, frustrado, teria se atirado do monte Bistum.

Em qualquer uma das versões, a figura de Farhâd é associada, na literatura persa, à determinação, aos extremos

amorosos, à destreza na realização de uma tarefa e, principalmente, ao amor infeliz. No filme, o diretor opta pela versão

do sucesso do arquiteto.

44

que vencer é aquele de coração cruel, que usa a armadura resistente do rancor e empunha a

espada amarga da vingança! Farhâd!

Poema

Farhâd canta: Estou perdido por dentro

E de seus próprios olhos

Eu desapareci

Como um rodamoinho

Eu derreti no mar

Eu era uma sombra

No início

Deitado no chão

Assim que o sol

Apareceu

Eu desapareci

Cavaleiro: É uma bela canção.

Farhâd: Eu não sei se é bela, mas se este suspiro não pudesse se transformar em um canto, teria

me consumido.

A vingança

Khosrow manda um jovem cavaleiro até o monte Bistum, onde está Farhâd. Quando os dois se

encontram, o jovem diz ao escultor que é da Armênia e que veio para os funerais da grande dama

Shirin. Em desespero, Farhâd pede que Shirin o leve para as trevas consigo, e se mata. Shirin, ao

saber da morte do escultor, amaldiçoa o amor, este jogo dos homens e diz que com Farhâd todos os

amantes morreram.

Desvio: sobre o tempo, Shirin diz: Anos se passaram, nós ficamos velhos, as crianças cresceram,

nossos íntimos morreram um após o outro. Farhâd está morto, Maryam está morta, Shirouyeh,

filho de Khosrow, cresceu. E Shirin que havia esperado por tantos anos, sozinha, finalmente

tomou as mãos quentes de Khosrow em suas mãos. Depois de esperar tanto tempo, finalmente os

dias de saudades haviam terminado.

45

Quarto desencontro

Embora os amantes tenham conseguido unir-se, Shirin está atormentada pelo medo e pela ansiedade:

medo dos olhos cheios de rancor e ódio de Shirouyeh; ansiedade pela felicidade enfim conquistada,

mas medo da efemeridade. Khosrow pede para que ela se acalme e que eles possam finalmente

aproveitar a noite amorosa. Shirouyeh era apenas uma criança: Shirin! Juro por Deus que seu medo

é apenas fruto de sua imaginação. O rei Khosrow é assassinado por seu filho.

Desvio: epílogo: Shirin fala que Uma noite, esta criança, este jovem, trocou sua infância pelo

poder. Ele cortou as mãos e os pés de seus irmãos e aprisionou seu pai. Mas vocês, minhas

irmãs, vocês conhecem a história melhor do que eu. Aqui está outro jogo dos homens.

No mausoléu, desvio do tempo, ela diz:

Aqui estamos nós, Khosrow e eu e vocês, minhas irmãs em luto. Vocês olham para seu

corpo morto e vocês choram. Através dessas lágrimas eu vejo seus olhos. Vocês estão

derramando essas lágrimas por mim, Shirin? Ou para a Shirin que se esconde em cada uma de

vocês?

Se entrarmos através do olhar, retirando a venda, encontraremos o retrato, e também nos

encantaremos com ele: não é o belo rosto de um homem. São os rostos de mulheres em uma sala,

talvez de cinema, talvez esperando para assistir a um filme, um filme que contaria a história do amor

entre a princesa da Armênia, Shirin, e o rei persa, Khosrow. O retrato que nos acompanhará é

múltiplo. Com ele/eles percorreremos os descaminhos.

Os olhares

Através dessas lágrimas eu vejo seus olhos.

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Cenas do filme Shirin, Abbas Kiarostami

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Cenas do filme Shirin, Abbas Kiarostami

51

Há os olhares que esperam, há os olhares que se envolvem: eles sorriem; eles choram: O que

interessa é que as emoções mais íntimas destas mulheres são exibidas nos seus rostos. E essas

emoções vêm do amor21.

Então, se voltarmos ao início, agora através do olhar, a história poderia ser assim:

Durante o silêncio, em fusão, são apresentadas dez iluminuras persas sobre a história de Khosrow e

Shirin; outras quatro surgem, em fusão, enquanto a música surge. Corte. Olhamos uma sala de

projeção: há em primeiro plano uma mulher iraniana que parece aguardar algo: está sentada, olhando

para frente. Em segundo plano, outra mulher também observa. Nenhuma delas olha para a câmera,

logo, nenhuma delas olha para nós. Elas olham para um lugar mais acima da câmera, sugerindo que

seus olhares estão sendo filmados enquanto elas assistem. Primeiro sugerem-se os créditos iniciais do

filme:

SHIRIN

um filme de Abbas Kiarostami

baseado em: Khosrow e Shirin por Farrideh Golbou

inspirado pelo trabalho de Hakin Nezâmi Ganjavi

roteiro M. Rahmanian

depois, tem início o filme que ouvimos – apenas ouvimos.

Depois de apresentadas as iluminuras, não veremos outra imagem que não sejam esses espectadores,

mulheres e homens olhando para a tela. Os homens aparecem em segundo plano e, para o diretor, A

única razão pela qual os coloquei lá é para mostrar que no Irã as mulheres não têm de ir ao

cinema separadas dos homens. Podem sentar-se na mesma sala com eles.22. Ouvimos a história de

Shirin. Mas vemos outra história. Proponho que o convite feito no início poderia ser para nós, que

assistimos aos rostos:

21 Entrevista de Abbas Kiarostami, As mulheres são mais emocionais, complexas e belas, por Pedro Rosa Mendes,

página 6.

22 Idem, página 5.

52

Venha conosco, Shirin! Por aqui! Seus olhos estão vendados, abra os ouvidos. Basta

seguir nossas vozes!

É o que faríamos (nós, espectadores das espectadoras), seguiríamos as vozes, olhando os olhares

delas, das 115 atrizes. Quando assisti pela primeira vez, “seguindo as vozes”, ou seja, “colando” as

falas às imagens, o filme Shirin, de Abbas Kiarostami, compôs-se da seguinte forma: o diretor, em

uma sala de projeção, apresentou uma versão já filmada sobre a história de Khosrow e Shirin

(existem várias versões cinematográficas para a história) – que seria a banda sonora que nós ouvimos

e elas também estariam ouvindo – porque há luzes e sombras que nos fazem pressupor que há

imagens sendo passadas em uma tela e que o posicionamento da câmera do diretor nos coloca onde

o filme estaria sendo passado para aquelas atrizes. Imaginei, portanto, que as expressões estavam

vinculadas àquilo que a música, as imagens e as falas das personagens, portanto, à história,

sugeririam. Quando elas riem, conjuga-se que seria reação àquilo que nós também estamos ouvindo;

mesma relação quando se assustam ou choram. Portanto, um filme sobre a reação de espectadores

sobre um filme a que estão assistindo. Isso já seria interessante para uma conversa sobre cinema: É

apenas um ciclo. São alguns espectadores silenciosos sendo vistos por outros espectadores. E,

afinal, se houvesse um sistema de filmar os espectadores vendo os primeiros espectadores e

projetá-los noutra tela, isso continuaria sem fim. Não é nada mais do que a representação da

inocência dos espectadores que estão completamente indefesos diante da magia desta luz e desta

imagem, e que entregam completamente as suas emoções e sentimentos nas mãos do que está

acontecendo na tela. Acredito que esta forma de arte que é o cinema é a que de uma maneira

mais poderosa mexe com os espectadores e incorpora as suas emoções. Este filme é um tributo a

esse poder do cinema. Caminho proposto pelo diretor, Abbas Kiarostami23.

Pesquisando sobre o filme, deparei-me com a entrevista dada pelo diretor. Com ela, pude perceber

que, se a conversa já seria vasta com aquele material, os descaminhos poderiam levar a outros

caminhos. Por que “descaminhos”? Porque a sala onde os atores estão não é uma sala de cinema;

eles não estão assistindo a uma versão de um filme sobre o poema Khosrow e Shirin, e, não há som.

Assim, de acordo com a entrevista, o diretor:

23 Idem, página 6.

53

Tinha uma câmara pequena, três cadeiras numa sala vazia e uma folha de papel

pendurada sob a objetiva. As mulheres estavam sentadas em silêncio total, fixando um

ponto imaginário no papel. Apenas pusemos alguns efeitos de luz reproduzindo o que

seria o reflexo de uma projeção de um filme diante delas. E pedi-lhes que pensassem num

episódio amoroso, ou de um filme ou de uma história que fosse muito especial para elas e

fizesse apelo a emoções profundas. Temos tantas histórias diferentes projetadas neste

filme quantas as atrizes que são filmadas, cada uma projetando o seu próprio filme e

cada uma delas reagindo a uma história mental que elas são as únicas a conhecer.24

O filme Shirin abre a possibilidade de outras formas de olhar o filme, vários filmes. Uma

possibilidade seria olhar para o público, constituído de mulheres e, como a câmera focaliza-as em

primeiríssimo plano, não poderiam ser elas também as minhas irmãs a quem Shirin se refere? Neste

caso, a fala final da personagem ganharia uma dimensão múltipla: Através dessas lágrimas eu

[Shirin] vejo seus olhos. Vocês estão derramando essas lágrimas por mim, Shirin? Ou para a

Shirin que se esconde em cada uma de vocês?, porque no momento em que ouvimos esta fala, as

atrizes estão chorando muito. Há uma comunhão: irmãs, no sentimento sugerido pelo diretor, que

afirma ser Shirin o filme mais verdadeiro que já fez25, pois cada uma das atrizes entrou em contato

com a sua experiência. Para nós, que assistimos ao filme, a sugestão é a de que a experiência seria a

mesma partilhada por Shirin.

24 Idem, página 5 25 “O que aconteceu foi que, quando os seis minutos estavam feitos e nós dissemos "corta!", não paravam de chorar

só porque nós dizíamos para pararem. Continuavam a chorar, o que para mim é a prova de que o filme não é um

filme artificial. Não são lágrimas por encomenda. Um filme artificial é o que se interrompe quando nós pedimos,

que para quando se para a representação. Aquelas mulheres não estavam representando. Só lhes demos uma pista,

abrimos-lhes uma porta e com isso elas regressaram à sua própria verdade. É por isso que há tanta verdade em

"Shirin". (Idem, página 4.)

Diria que este filme é o mais artificial que já fiz, mas também o mais autêntico que já fiz. É o filme que tem

mais verdade. Consegui vê-lo pelo menos 150 vezes, o que não aconteceu com nenhum dos meus outros filmes. A

verdade resulta de estas mulheres mostrarem reações verdadeiras a emoções verdadeiras. Dão a sua própria

verdade ao filme. Foi isso que aconteceu. As imagens que tínhamos funcionavam como peças de um puzzle. Tivemos

de ver peça a peça qual é que servia para completar o puzzle. Foi através deste processo muito artificial que

pudemos atingir um nível de verdade que eu nunca tinha visto antes. (Idem, página 6.)

54

O mais importante é alinhar uma série de mentiras de modo a alcançar

uma verdade maior. Mentiras irreais, mas de algum modo verdadeiras. É

isso que importa [...] Tudo é inteiramente mentira, nada é real, mas o todo

sugere a verdade.26

Descaminho

Olho para o filme de Kiarostami e não posso negar-lhe a perspectiva de que ele é um diretor

iraniano, hoje morando fora de seu país, exilado: Abbas Kiarostami faz parte de um grupo de artistas

indigestos para o atual governo iraniano: se voltasse, seria preso, como alguns de seus amigos foram.

Este fato torna-se uma possibilidade de leitura se o olhar sobre o poema de Nezâmî se deslocar

apenas para o lirismo amoroso. A história de amor entre Shirin e Khosrow está no poema de

Nezâmî, mas não está retratada com a mesma essência no Shahnameh, o Livro dos Reis, escrito por

Ferdowsî. Foi uma escolha de cada um dos poetas. Na versão de Ferdowsî, a Shirin é uma tentação

que põe o rei e o reino em risco: Khosrow fica perdidamente apaixonado por uma concubina que

não tem qualificações para ser rainha. Seus ministros chamam-lhe a atenção: o reino e o povo são

mais importantes do que os impulsos da paixão e do desejo. O rei repensa suas ações, mas não

consegue se livrar das chamas do amor. Como se tornou enfraquecido pelo desejo, é assassinado

pelo filho, Shirou, que depois mata Shirin, explicando que ela era uma mulher perigosa para o reino e

poderia levar outros homens à perdição.

A literatura persa tem outros exemplos de homens que não governam suas paixões e acabam

arruinados por elas. De Nezâmî, há ainda o poema Layla e Majnun: o jovem Qays era estudioso e

lindo. Ao apaixonar-se por Layla, torna-se um “louco de amor”, um majnun. Seu comportamento de

andar sozinho dias e noites, mal vestido, conversando com feras, vagando pelo deserto, recitando

poemas amorosos, causam escândalo nas tribos e, por essa conduta louca, o pai de Layla não aceita o

pedido de casamento. Os dois amantes, Layla e Majnun, sofrem e acabam morrendo: primeiro ela,

depois, ele. A paixão desenfreada seria a causa de Majnun perder sua razão e sua amada.

26 Kiarostami, Abbas. Epígrafe a Fotografias. página 87

55

Em relação ao poema, também de Nezâmî, Khosrow e Shirin, temos um encaminhamento

semelhante ao Layla e Majnun: até o momento do primeiro encontro dos amantes, no jardim, a

paixão é o centro do interesse de ambos. Então uma voz diz a Shirin que ela precisa correr da

desgraça, da intimidade, do desejo. A partir desse ponto, a conduta dela muda: ela chama a atenção

do amado para suas obrigações como soberano: E seus herdeiros? Como você responderia a eles?

Que seu desejo por Shirin privou-os do trono? Khosrow sente-se rejeitado e parte. Realiza então

uma aliança sem paixão, por razões políticas, e é graças ao relacionamento com Maryam que o rei

consegue vencer seu oponente, Bahrâm.

Aqui há uma referência a outro texto de Nezâmî: As sete efígies. Bahrâm, rei da Pérsia, casa-

se com sete princesas de sete continentes, para quem manda construir sete pavilhões, um para cada

princesa e, durante os sete dias da semana, o monarca passa uma noite em cada pavilhão. Cada noite,

ele entra desejoso do abraço e do amor das princesas; elas, porém, antes do abraço amoroso, contam

histórias ao monarca e, ao final da noite (e da história), a paixão do monarca está governada,

transformada. As histórias compõem uma gesta: em cada narrativa há um personagem que percorre

um caminho para alcançar um objetivo, algo muito desejado: uma mulher, um conhecimento, enfim,

uma satisfação pessoal. Durante os perigos enfrentados por cada personagem, vão sendo

apresentadas outras personagens, algumas boas, que lhes ensinam, lhes conduzem, curam suas

feridas; algumas más, que lhes desviam do caminho, lhes furam os olhos, lhes fazem perder o

caminho. Quando o personagem alcança o prêmio, vê-se mudado na forma de ver seu objetivo, sua

conduta muda, transfigurando-se. Ao ouvir cada uma das histórias, o rei Bahrâm passa por uma

gesta, uma viagem sem sair do lugar, em que amadurece como soberano: controla suas paixões e

ganha sabedoria para tomar decisões acertadas para seu reino.

Khosrow passa por processo semelhante: somente quando a paixão está mais calma, depois

de passados anos, ele e Shirin, velhos, é que finalmente ficam juntos. Porém, por sua atitude leviana

de ciúme, rancor e vingança, planejando a morte de Farhâd (que usava o amor para produzir arte

através do uso habilidoso da razão), faz com que Khosrow acabe sendo assassinado pelo próprio

filho, depois de ter seus olhos furados. Olhando para o corpo de Khosrow, assassinado, penso que

Shirin pede para que se veja: como deve ser um soberano? O que ele deve e pode, ou não, fazer? É

ela, na versa de Nezâmî quem chama a atenção de Khosrow para seus deveres. Ela acaba, neste

56

poema, sendo objeto de desejo de Shirouyeh que, por isso e pelo trono, mata o pai27. Mas, em

Ferdowsî, Shirou também não seria um bom governante: o filho de Khosrow é assassinado pelos

ministros conselheiros: Shirou também não seria um soberano digno. O Irã passa, depois, por um

período de instabilidade política, até ser invadido pelos turcos:

Shirou é sucedido no trono por seu filho, Ardeshir, que reinou durante seis meses

e depois foi assassinado. Goraz sucedeu-o ao trono, mas ele também foi

assassinado após reinar por aproximadamente dois meses. Duas princesas reais,

Puran-Dokht e Azarm-Dokht, governaram brevemente: a primeira, por seis

meses; a segunda, por quatro meses. Elas foram sucedidas por Farrokhzad, que

foi envenenado após um mês de governo. O neto de Khosrow Parviz, Yazdegerd

III, tornou-se, então, o último rei sassânida do Irã.28

Nezâmî propõe mais lirismo em seu poema: a história acaba com Shirin se juntando ao

amado: ela se mata porque não haveria vida sem Khosrow. No poema Os sete pavilhões também há

lirismo: o caminho para o conhecimento através de narrativas amorosas: o encontro do soberano

com amor e, através dele, a nobreza para governar. Mas, ao assistirmos ao filme e/ou lermos os

poemas, não precisamos abrir os olhos para as belezas dos retratos29 fechando os olhos para quem o

fez, o diretor de Shirin: elas/eles (imagens/retratos) podem atormentar-nos, como o retrato de

Khosrow fez a Shirin: Kiarostami30 e Nezâmî não estão escrevendo/mostrando somente amor em

seus poemas. Eles, através da literatura, demonstram valores, principalmente sobre nobreza.

27 Shirouyeh é filho de Maryam.

28 The story of Khosrow and Shirin, In: Ferdowsi, Abolqasem. Shahnameh, traduzido por Dick Davis, Penguin Group

(USA), 2006, página 831.

29 O poema As sete efígies (Haft Peykar) faz referência às imagens das sete princesas, que seriam portais, passagens do

mundo real (sensível) através do mundo imaginal, mundus arquetypus. 30 De onde surgiu a história? Pensei estender a ideia dos três minutos com a mesma história [Romeu e Julieta]. Mas

os direitos de adaptação de "Romeu e Julieta" eram tão caros que eu nunca poderia comprá-los. Percebi que tinha

de fazer a minha própria banda sonora - a história sem imagens contada em som que acompanha as atrizes. Então

decidi olhar para toda a literatura iraniana e para o nosso imaginário literário. E escolhi Shirin, entre outras

heroínas e histórias, pela sua grande modernidade. Remonta ao século XII, mas é a primeira história de um

triângulo amoroso cujo centro é uma mulher. Eu queria que a personagem de Shirin, na sua coragem e ternura,

fosse contada por uma mulher. Isto é, a personagem principal e o narrador ficaram então sendo mulheres.

57

Acredito que os espaços deixados pela banda sonora, em que a voz que conduz a narrativa é

suprimida, ficando apenas a música – ou os sons de espadas, guerras e pesadelos – abrem

possibilidades: os conflitos que aparecem na história, de ontem e de hoje, que pulsam, sobressaltam,

porque ficamos apenas com as expressões daquelas mulheres, hoje, e sem o texto, de ontem, para

nos distrair.

Esse paralelismo [ que separa o aqui do espectador do alhures da imagem]

confere um aspecto frontal à imagem. E a frontalidade da composição das

imagens, como se sabe, sempre tem alguma relação com o sagrado,

contrariamente à profundidade, ligada à temporalidade da história e da ação.31

Outro aspecto também interessante, este já com a presença da narração, é a possibilidade de

colar o rosto das atrizes na Shirin que vai vivendo e contando a história: qualquer uma delas pode ser

a Shirin que sofre, que chora, sobre um corpo morto.

Um filme iraniano, como uma poesia persa, é uma forma de contar. Essa forma está para o

que se conte. É com ela que atravessamos o campo de significados dados, conhecidos, para um outro

campo, de construções possíveis.

Sim, eu sou esse falcão que os caçadores do mundo

em todo instante necessitam.

Minha caça são as gazelas de olhos negros,

pois a sabedoria é semelhante às lágrimas que se filtram

entre as pálpebras.

Diante de mim, fogem as letras das palavras.

Junto a mim, se desvenda o sentido oculto.32

(Entrevista de Abbas Kiarostami, “As mulheres são mais emocionais, complexas e belas”, por Pedro Rosa Mendes, em

Paris (exclusivo para a revista Ípsilon/Lusa), 24 de junho de 2010, página 5.)

31 Kiarostami, Abbas. Fotografias. Página 95.

32 El arcángel teñido de púrpura. In: Sohravardî, El encuentro con el ángel, página 66.

58

Mesmo que se considere que as 115 atrizes, e os homens no plano de fundo da cena, não

saiam de seus lugares, que a câmera não saia do plano americano para filmar seus rostos, e corpos ao

fundo, e que não haja outro cenário que não seja a sugestão de uma sala de cinema, pode-se assistir

ao filme Shirin como uma sucessão de imagens em movimento – imagens de rostos de mulheres

que, mesmo sentadas diante de uma câmera estática, mostram suas emoções, se transfiguram. Seus

olhares e suas expressões faciais não são as mesmas, a imagem está ativa, é a nossa imaginação que se

movimenta, compondo o filme: somos convidados ao exercício da criação do filme: o filme que eu

vejo, o filme que outros verão, para cada um, o seu filme. Essa proposta vai ao encontro dos relatos

de iniciação escritos por Sohravardî, por Attar, por Ibn Arabî, ou os poemas de Nezâmî: cada leitor,

com a sua chave, suas ideias a partir de seu conhecimento, pode encontrar aspectos diferentes no que

lhe é apresentado: um mesmo conjunto de símbolos, lidos e compreendidos por diferentes olhares.

Minha leitura sobre o filme trouxe uma possibilidade de caminho de leitura como proposta

de encontro com o conhecimento: através do amor, o Rei Khosrow precisava do controle sobre seus

sentimentos, para poder governar com sabedoria. No início do poema, ele sai em busca de Shirin, e

ela dele, mas os dois não podem ficar juntos, outros movimentos os obrigam a novas buscas, outros

encontros. Como sugere Kiarostami33, a procura exterior deve fracassar para que se possa descobrir

que o que se buscava era a si mesmo. Quando finalmente se encontram, Khosrow e Shirin

abandonam o mundo sensível.

33 O diretor sobre o filme Onde fica a casa do meu amigo. In: Kiarostami, Abbas. O aquém da história: a infância e a

natureza. Página 131.

59

O filme como um espaço imaginal

Toda forma que vês

tem seu arquétipo no mundo sem-lugar.

Se a forma esvanece, não importa,

permanece o original.

As belas figuras que viste,

as sábias palavras que escutaste,

não se entristeça se pereceram.

Enquanto a fonte é abundante,

o rio dá água sem cessar.

Por que te lamentas se nenhum dos dois se detém?

A alma é a fonte,

e as coisas criadas, os rios.

Enquanto a fonte jorra, correm os rios.

Tira da cabeça todo o pesar

e sorve aos borbotões a água deste rio.

Que a água não seca, ela não tem fim.

Desde que chegaste ao mundo do ser,

uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.

Primeiro foste mineral;

depois, te tornaste planta,

e mais tarde, animal.

Como pode ser isso segredo para ti?

Finalmente foste feito homem,

com conhecimento, razão e fé.

Contempla teu corpo – um punhado de pó –

60

vê quão perfeito se tornou!

Quando tiveres cumprido tua jornada,

decerto hás de regressar como anjo;

depois disso, terás terminado de vez com a terra,

e tua estação há de ser o céu.

Passa de novo pela vida angelical,

entra naquele oceano,

em que tua gota se torne mar,

cem vezes maior que o Mar de Oman.

Abandona este filho que chamas corpo

e diz sempre “Um” com toda alma.

Se teu corpo envelhece, que importa?

Ainda é fresca a tua alma.”34

Para os persas estudados aqui, a busca pelo conhecimento é a busca pelo amor em cada um

de nós (os amantes do conhecimento): somos peregrinos indo ao encontro do amado, em um lugar a

que havíamos pertencido e de que fomos expulsos para o mundo sensível, o mundo cotidiano.

Quando encontramos nossa Imaginação ativa, representada pelo Anjo Gabriel, nos relatos de

Sohravardî, ou com a Simorg, em Attar, ou mesmo, quando encontramos o amor, em Nezâmî,

entramos em contato com o lugar das formas perfeitas, o mundo platônico das ideias, e desejamos

retornar a ele. Vamos buscá-lo, mesmo encontrando desvios para o intuito de atingir o

conhecimento, a felicidade. Durante o caminho, outros encontros nos fazem ver que chegar não é o

momento final, somente se chega a esse lugar do amor completo, do conhecimento que se havia

esquecido, quando se abandona totalmente o mundo material. Por isso voltamos ao mundo sensível:

à vida cotidiana; mas nosso modo de vê-la muda, se transforma: em outras formas, em novas buscas.

34 A evolução da forma. In: Rumi, Jalal ud-Din. Poemas místicos, páginas 66 a 67.

61

Esse incessante movimento torna mais belo o trajeto, há sempre flores diferentes no jardim

das palavras que lemos, há sempre novas paisagens nos lugares por onde passamos, porque nos

transformamos durante a passagem. Nos transformamos em quê? Em buscadores de conhecimento.

Quando se compreende que, para trilhar o caminho rumo ao encontro, estávamos

acompanhados por alguém que conhecia mais do que nós, vemos que, na verdade, quem nos levou

até o lugar em que queríamos chegar fomos nós mesmos, passamos através das palavras, das imagens

– do filme, da poesia – e descobrimos nós mesmos. A imagem que Sohravardî cria para esse

momento é a da gota de bálsamo que, estando na mão do viajante, no momento em que ele atinge a

montanha de Esmeralda, o mundo das ideias, a gota transpõe a palma da mão, atravessando-a: uma

metáfora pra a mudança de perspectiva: nós não saímos do lugar para empreendermos o caminho,

não é um deslocamento físico o que se faz, mas um deslocamento intelectual. Não precisamos

esperar que alguém nos leve: é o encontro com a imagem potente, arquetypus, que ativa a busca por

nós mesmos: autonomia.

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Cenas do filme Bab’Aziz, Nacer Khemir

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Cenas do filme Bab’Aziz, Nacer Khemir

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Cenas do filme Bab’Aziz, Nacer Khemir

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III. No deserto

Um outro filme em que essa caminhada também pode ser observada é o filme Bab’Aziz, um Pîr,

sábio, está no deserto caminhando com sua neta, Ishtar. O deserto é sempre o mesmo, o cenário não

muda, mas eles se deslocam sempre, encontram pessoas, e Ishtar, ao caminhar, vai compreendendo

aquilo que Bab’Aziz mostra, diz, poucas vezes com palavras.

Bab’Aziz, príncipe que contemplou sua alma, é um filme escrito e dirigido por Nacer Khemir,

diretor de outros dois filmes cujas cenas passam-se no deserto, filmes que ele intitula de “Trilogia do

deserto”: Os andarilhos do deserto (1984) e O colar perdido da pomba (1991). Caminhos,

desencontros, encontros, palavras e buscas são acontecimentos que se podem ver nos três filmes.

Bab’Aziz (2005) é último. Nele, um dervixe, acompanhado por sua neta, andam pelo deserto à

procura de um encontro de dervixes que acontece a cada 30 anos. Enquanto caminham, eles

encontram Zaïd, Hassan e Osman, três personagens que também empreendem, cada um, a sua

busca: Zaïd procura Noor, moça por quem está apaixonado; Hassan procura um dervixe ruivo para

vingar-se; Osman procura seu palácio no fundo de um poço para reencontrar Zahra. Os três

empreendem seus caminhos, sozinhos, movidos pela paixão, quando encontram Bab’Aziz e Ishtar.

Todos mudam com esse encontro, mesmo não sendo ele o ponto de chegada de cada um. Ou seria?

Na origem de todas as coisas, quando o ser que é o grande Formador, no sentido

verdadeiro, quis manifestar meu ser, que ainda não era, criou-me na forma de um falcão. No

lugar onde me encontrava havia outros falcões; falávamos uns com os outros, escutávamos uns

as palavras dos outros e nos compreendíamos mutuamente.

Um dia, fui feito prisioneiro pelo Destino, que me prendeu nas redes da Predestinação,

dando-me uma forma humana e sem asas. Permaneci tão envolto nessa prisão, que acreditava

sempre ter estado nela.

Quando certo tempo havia passado, meus olhos abriram-se ligeiramente e, na medida em

que eu podia ver, enxergava mais a minha prisão. De novo começava a ver as coisas como eu as

vira antes, e me sentia pleno de admiração. A cada dia, meus olhos se abriam mais e mais, e eu

contemplava coisas que me deixavam perturbado e surpreso. Finalmente, meus olhos se abriram

70

por completo: o mundo se mostrou tal como era e eu me vi completamente preso. Então me

disse: ‘Aparentemente nunca me libertaram dessa forma para que eu pudesse abrir minhas asas

e pudesse empreender o voo, livre e sem coerção’.

Mais tempo se passou e um dia me dei conta de que poderia libertar-me. Livrei-me das

ataduras e ganhei o caminho do deserto. Foi ali, no deserto, que vi uma pessoa que caminhava

próxima a mim. Fui ao seu encontro e a abordei com uma saudação. Com graça e delicadeza,

devolveu-me a saudação. Observei a cor vermelha cujo resplendor tingia de púrpura seu rosto e

seus cabelos.35

A câmera inicia a narrativa do filme em contra-plongé e, dentro de uma cripta vemos os cabelos

vermelhos de um homem, que gira. Gira enquanto um poema é cantado. O poema fala sobre o

início, a criação de todas as coisas: através da música Maryam. A câmera mostra os traços da cúpula:

eles são compostos por pontos que formam linhas; as linhas compõem uma espiral que adorna o

domo. O movimento de câmera que é realizado, em plongé, realiza a circularidade da espiral, nós

giramos com a câmera, em sentido anti-horário: para dentro.

Uma tempestade

Em determinado momento, esforcei-me para sair do pequeno espaço circundado por

desejos e liberar-me das travas e cinturões próprios da imaturidade. Era uma noite em que a

escuridão, negra como o medo, cobria a abóbada celeste. As trevas, que são irmãs da

ignorância, se estendiam até os confins do mundo inferior. A sonolência, em que me encontrava

antes, fora substituída pela desesperação. Inquieto, saí em busca daqueles que se encontrassem

no mesmo estado que eu. Naquela noite, girei, girei ritualmente até encontrar a Luz. De repente,

me invadiu o desejo de encontrar o templo interior. Esse templo teria duas portas: uma dava

para a cidade; a outra, para o jardim e a imensa claridade. Fui até lá e fechei a porta que dava

pra a cidade e, uma vez fechada, dispus-me a abrir a porta que levava à imensa claridade. Abri-

a e olhei atentamente. Então vi dez sábios, de fisionomia bela e amável, cujos respectivos lugares

formavam uma hierarquia ascendente. Seu aspecto, sua magnificência, sua majestade, sua

nobreza, seu esplendor, me deixaram completamente maravilhado. Diante de sua graça, sua

35 El arcángel temido de púrpura. In: Sohravardî, El encuentro con el ángel, páginas 48 a 50.

71

beleza, seus cabelos brancos e seu comportamento, apoderou-se de mim tal surpresa que

permaneci em silêncio. Tomado de temor e tremendo dos pés à cabeça, fiquei amedrontado.

Disse a mim mesmo: “Coragem! Dirija-se a eles e seja o que Deus quiser.” Passo a passo,

comecei a avançar.

Quando me dispunha a saudar o sábio que se encontrava diante de mim, sua extrema

bondade natural fez com que ele se adiantasse e me mostrasse um sorriso cheio de graça. Mesmo

sem cessar meu temor cheio de reverência, perguntei-lhe de forma direta:

– Diga-me: de onde vem?

– Viemos do lugar além-do-onde, cujo caminho não se pode indicar com o dedo.

Então eu compreendi que era um sábio cujo elevado conhecimento penetrava na

profundidade das coisas.

– Por misericórdia, guie-me.36

No filme, agora, nós estamos no deserto; há uma tempestade. Entramos no filme por essa

tempestade e estamos com a areia nos olhos: ela não nos deixa ver as imagens com clareza. Quando

as areias se acalmam e o som dos ventos silencia, Ishtar surge de dentro da areia; procura por algo

que ainda não sabemos o que é. Ela grita: Bab’Aziz,! Bab’Aziz! Um velho surge de dentro da areia

que o cobria: Que tempestade! ele diz. Ishtar lhe diz que perdeu sua bolsa e ele responde que isso

não tem importância, porque até mesmo as dunas mudaram. Uma vez no deserto, no mundus

arquetypus, tudo muda. Entramos em uma história persa: vamos percorrer um caminho em busca

do encontro.

A tempestade e o deserto são arquétipos no mundo oriental, eles são imagens que se movem na

direção do conhecimento de si mesmo, da busca interior: o deserto, de aparência infinita, é composto

por minúsculos grãos de areia; e, de repente, todo esse universo de grãos se move, compondo um

caos que dá origem a outra organização. Procurar a bolsa não é o mais importante, uma vez que até

as dunas mudaram de lugar, e Bab’Aziz diz à menina que De qualquer forma, tenho o que preciso.

Desprender-se do mundo sensível: ficar livre de coisas, como a bolsa, por exemplo.

Enquanto Ishtar limpa Bab’Aziz, ela lhe diz que não quer ir ao encontro para o qual eles estariam

indo quando a tempestade os alcançou, e pede para retornar: Eu não quero ir.

36 El rumor de las alas de Gabriel. In: Sohravardî, El encuentro con el ángel, páginas 73 a 75.

72

Vamos, ele diz.

Eu quero voltar, ela insiste.

Nós vamos voltar. Vamos.

Bab’Aziz, você não quer ir ao encontro?

Meu pequeno anjo, eu vou.

Você vai sozinho?

Eu vou encontrar o meu caminho.

Mas você vai se perder!

Aquele que tem fé nunca se perde, meu pequeno anjo. Quem está em paz não se perde no

caminho.

Eles vão até a estrada e lá, à margem da estrada, encontram um rapaz deitado sob uma árvore. Este

rapaz ataca Bab’Aziz porque está procurando um dervixe ruivo que teria matado seu irmão; após

perceber o engano, o rapaz sai correndo pela estrada. Bab’Aziz diz a Ishtar: Este não poderia te

levar pra casa!

Anoitece.

Quando você fala faz menos frio, ela diz.

Você quer que lhe conte uma história?

O conto da gazela, Bab’Aziz.

Era uma vez, há muito, muito tempo, em tempos mais antigos que os nossos, num deserto

como este...

Os músicos estão sentados à volta do príncipe e todos estão em uma tenda: a dançarina, ao centro,

gira; ao som da música, ela leva consigo o olhar do príncipe, que contempla seus movimentos

circulares: ele olha as mãos, os pés, o corpo da dançarina que gira, gira. Ele vê seu camareiro

entrando, trazendo algo para beber, Está muito amargo, experimenta o príncipe, enquanto

acompanha os movimentos dela: os pés, as mãos. O príncipe ouve seu cavalo e sai da tenda. Do lado

de fora, enquanto acalma seu cavalo, o príncipe se depara com uma gazela: os olhares dos dois são

mostrados pela câmera; através do deserto o príncipe persegue a gazela. Dentro da tenda continuam

73

os músicos, o camareiro, a dançarina: a dança continua. O camareiro ouve o relincho do cavalo e

então a música para, a dançarina para. Todos saem para ver: o cavalo voltou sozinho. O camareiro

está desconsolado: Algo terrível deve ter acontecido ao nosso príncipe. Todos na cidade são

alertados de que o príncipe se perdeu e muitos saem pelo deserto em sua busca.

Ishtar, você está ouvindo?

Estou ouvindo Bab’Aziz.

Um dos cavaleiros retorna com a notícia de que o príncipe foi encontrado, mas está muito diferente,

ele não sabe explicar se o príncipe está ferido e pede que o camareiro o acompanhe. Seguem até o

lugar em que o príncipe contempla uma pequena mina de água: Ele parece contemplar sua imagem

no fundo da água... O camareiro é interrompido pelo velho dervixe que observa o príncipe: Talvez

não seja a sua imagem. Somente os que não estão enamorados veem seu próprio reflexo, diz o

dervixe. Então o que ele vê?, quer saber o camareiro. Ele está contemplando a sua alma. Não o

acorde. Ele poderia perder a sua alma.

Ishtar... Ishtar... Ishtar...

Ela adormece.

A história do príncipe não é o início do filme. É o início da história que Ishtar quer conhecer: ela

seguirá o caminho, com Bab’Aziz, sabendo cada vez mais sobre o caminho do príncipe que

contempla sua alma. Para nós, na história que vamos acompanhar através do filme, no início, havia o

dervixe que estava girando na cripta; havia areia. Olhamos para o alto, giramos com a câmera,

contemplamos a imagem do domo da cripta que forma a espiral para dentro. Depois a tempestade.

Entramos por ela. Estamos na estória antes, antes da tempestade, girando com o dervixe na mesquita

submersa na areia... Ishtar sai da areia, o mundo onde o filme acontecerá é criado pelo movimento

dos grãos de areia. Ishtar olha à sua volta procurando algo que não encontra. Dois pássaros

aparecem. Tudo está no deserto. Bab’Aziz! Bab’Aziz! Bab’Aziz. Que tempestade! ele diz enquanto

é tirado da areia por ela. Depois da tempestade, Ishtar não quer mais ir ao encontro.

74

Mas onde será o encontro? ela pergunta.

Eu não sei, meu anjo.

Será que os outros sabem?

Não, também não sabem.

Como você pode ir a um encontro sem saber onde é?

Basta andar, basta caminhar. Aqueles que são convidados encontrarão o caminho.

Eles andam. Ao chegarem à margem da estrada, encontram o rapaz; ele tenta agredir Bab’Aziz: Você

não vai escapar. O que você fez ao meu irmão? Hassan está procurando o dervixe ruivo para matá-

lo, mas confunde-se; desculpa-se e vai embora correndo. Este não poderia te levar para casa, diz

Bab’Aziz. Começa a anoitecer. Enquanto Ishtar pega gravetos, vemos que ele conversa com uma

gazela em seu colo; não sabemos o que está falando. Quando ela se aproxima, o avô a apresenta para

o animal: Será que ela entende, Bab’Aziz? Ela me conhece há muito tempo...

É noite.

Bab’Aziz, estou com frio, ela disse. E as palavras dele a aquecem. O mundo criado pela narrativa de

Bab’Aziz, sobre o príncipe que contemplava sua alma transportam Ishtar do deserto frio para o calor

do deserto da narrativa. Durante a noite, como inconsciente, as imagens da história, tornam-se

agente, arquétipos. É esse trajeto a que os orientais chamam mundo imaginal.

Amanhece, e encontramos Ishtar adormecida, sozinha, sob uma árvore (a mesma árvore sob a qual

Bab’Aziz contou a Ishtar a história do príncipe). Ouvimos o barulho de um carro. Na estrada, o

ônibus está indo embora. Ela acorda ouvindo o barulho: sai correndo pedindo que o ônibus a espere,

mas isso não adianta. Ela volta com sua cabeça baixa: nós a vemos sozinha e atrás dela a estrada. Nós

vemos que não há mais ninguém ali, apenas Ishtar e a estrada. Olhamos o retorno dela e procuramos

Bab’Aziz. Ela o vê, corre: Bab’Aziz, eu pensei que você ia embora sem mim. Eu também. Eu

pensei que você tinha ido sem mim, meu pequeno anjo. Você não ouviu o ônibus? Ele me

acordou. Ishtar estava no mundo sensível, no mundo real. Bab’Aziz diz: Eu estava rezando. Por

isso nós e ela não o vimos: Bab’Aziz estava no intermundo: no mundo imaginal, demonstrado na

história, como sendo o mundo em que se olha para dentro. Bab’Aziz continua: Ishtar, parece que

75

não estamos sozinhos. O ônibus se afasta; pela estrada, agora, vem o jovem Zaïd, cantando. Sua voz

aparece antes dele.

Vem,

Te direi em segredo

aonde leva esta dança.

Vê como as partículas do ar

E os grãos de areia do deserto

Giram desnorteados.

Cada átomo

Feliz ou miserável,

Gira apaixonado

Em torno do sol.”37

Ele pergunta aos dois se estão indo ao encontro. Ela responde que vão.

Pensei que você não queria ir, Ishtar., surpreende-se Bab’Aziz.

Eu vou porque eu quero saber como a história do príncipe continua.

Vai levar um longo tempo, a estrada é longa, meu pequeno anjo.

Onde será o encontro?, quer saber Zaïd.

Eu não sei. Até o avô não sabe. Além disso, ninguém precisa saber, diz Ishtar.

E como você vai chegar lá?, pergunta Zaïd

Basta andar... responde Bab’Aziz.

Mas, e se nos perdermos? diz Zaïd.

Aquele que tem confiança, nunca vai se perder. diz Ishtar.

Cada um usa o seu dom mais precioso para encontrar o caminho. No seu caso é a sua

voz. Cante, meu filho, e sua voz te mostrará o caminho, diz Bab’Aziz.

Zaïd olha os dois e se afasta, cantando os versos de Rumi:

Oh dia, levanta-te. Os átomos estão dançando 37 Poema do átomo. In: Rumi, Poemas místicos.

76

As almas dançam possuídas pelo êxtase

Eu vou sussurrar no seu ouvido onde leva a sua dança...

Seguimos. Ela pergunta: O que é um dervixe?38, Bab’Aziz não responde, eles andam; então ela

pergunta: Todos são velhos como você? Não, há dervixes homens e mulheres. Mesmo crianças?

ela quer saber. Sim. Ouvimos a voz de Zaïd, cantando.

Bab’Aziz, ele ainda está nos seguindo!

Eu sei, anjinho. Eu sei.

Ela ouve outro canto e sai correndo. Ishtar, eles são dervixes, mas nós ainda não chegamos. A

pressa faz com que ela caia e todo o rosto se suja de areia. Enquanto limpa o rosto dela, Bab’Aziz diz

que ela carrega a marca do anjo.

Bab’Aziz, o que é a marca do anjo?

Bebês no ventre de sua mãe conhecem todos os segredos do universo. Mas pouco antes de

nascer, um anjo vem e coloca o dedo sobre sua boca de modo que eles esquecem tudo. Como

uma lembrança deste conhecimento perdido, alguns deles, como você, têm uma marca no queixo.

Esta é a marca do anjo.

Então eu vou lembrar um dia tudo o que sabia?

Quem sabe? Talvez.

Eles sobem a duna. De cima, avistamos os dervixes, lá embaixo, cantando. Ishtar e Bab’Aziz

descem. Ela aceita a água oferecida. Os dois dançam. Outros aparecem. Zaïd também aparece. Corte.

Todos se deslocam para um lugar, descem em direção a ruínas, semelhantes àquelas do palácio que

estava sendo construído na cidade quando o príncipe se perdeu. Seria o mesmo lugar? Mais dervixes

chegam; alguns andam, outros se sentam; comem. Quando Ishtar e Bab’Aziz passam, um dervixe

olha: ele é ruivo. É o mesmo dervixe do início do filme, que estava girando na cripta; ele olha para a

passagem de Bab’Aziz e Ishtar. Ele pode ser a referência de que estamos no mesmo lugar: dentro do

movimento circular inicial, quando os átomos estão dançando, criando o dia.

38 O que é um dervixe? do persa daroês (pobre): palavra usada para designar os buscadores da Verdade. O mesmo que faquir, nome este derivado de fakr (pobreza). In: Attar. A linguagem dos pássaros. Glossário, página 227.

77

Há tantos dervixes! Nós chegamos? ela quer saber.

Bab’Aziz responde que ainda não. Ela olha para algum lugar e sorri. Zaïd também chega: ela teria

olhado para ele e sorrido? Mais dervixes chegam: nós os vemos descerem as dunas. O movimento de

descida será uma constante no filme: para dentro, mais profundo no deserto. Ishtar, que estava

sentada ao lado de Bab’Aziz, se levanta, vai conseguir alguma coisa para comer. Na fila, entra em

diferentes lugares com o seu prato, se aproximando de um grande caldeirão. Ali uma mulher distribui

a comida.

Mais! Os velhos contam por dois. pede Ishtar.

Se ainda estiver com fome pode voltar. diz a mulher.

Ela recebe os pães e leva a refeição até o avô. Ele divide os pedaços de pão e começam a comer.

Ishtar, por que você está comendo tão rapidamente?

Para que você acabe de contar a história do príncipe.

Ele retoma a história. Nós vemos que o príncipe ainda está absorto olhando a água: Todos o tinham

deixado, até o camareiro. Apenas o velho dervixe continuou olhando por ele, por muitos dias e

noites. O barulho de algo mergulhando na água interrompe a narrativa de Bab’Aziz.

Ajudem! Ajudem! Um homem se atirou no poço.”, muitos gritam.“Ele está vivo! Abram

caminho!”

Como é seu nome, meu filho? uma mulher pergunta ao rapaz que foi tirado do poço.

Osman, ele responde, apoiado ao colo da mulher.

O poço que aparece no centro seria aquele em torno do qual as pessoas se reuniram para ouvir o

camareiro dizer que o príncipe estava perdido. Por que voltamos para o lugar onde percebemos ter

se passado a história do príncipe? Porque a narrativa se desdobra no mesmo espaço, são as pessoas e

as experiências que vivem naquele espaço que mudam. Ishtar se levanta e diz: Eu vou ver!

78

Aguarde, Ishtar! Bab’Aziz tenta retê-la.

Tiraram o homem do poço. Ele é diferente de todos ali: seu rosto tem outro desenho, sua pele e seu

cabelo têm outra cor, seus olhos têm outro risco: ele é branco, seus cabelos são avermelhados. Não é

o dervixe ruivo do início. Ele é diferente: a aparência de Osman diz muito a seu respeito: seus

cabelos vermelhos, sua pele clara mostram que ele não é dali, vem de um lugar onde a luz o queimou:

ele está apaixonado, são as chamas do amor que o fazem diferente.

Por que você se atirou no poço? alguém pergunta a Osman.

Eu procuro meu palácio no fundo do poço. Eu quero o meu palácio. ele responde.

Pobre diabo. Majnun39! alguns respondem.

Bab’Aziz aproxima-se do grupo, estende a mão sobre a cabeça de Osman: Conte-nos sua história,

meu filho, aliviará seu coração.

A primeira vez que caí em um poço, acordei em um palácio. Mas onde está o palácio

agora?

Uma moto de aproxima. Mudamos de espaço: estamos na história de Osman e ele chega a um

cemitério, há várias sepulturas no chão, em frente a um mausoléu. Osman desce da moto com uma

garrafa com água. Molha a cabeceira da sepultura de seu pai; depois bebe um pouco de água e diz:

Desta vez eu vou. Vou deixar você no seu deserto e na sua poeira.

Voz off, Osman conta: Depois que meu pai morreu, eu me tornei um vendedor de areia, como ele

tinha sido. Meu melhor cliente era o escriba. Na sua casa, encontrei o seu aluno, Hussein, meu

único amigo. Eu queria deixar o país, eu queria que ele fosse comigo. Mas ele não queria ir.

Algo o retinha. Um segredo...

39 “Ele é louco!” Majnun. Na poesia mística, essa palavra é usada para designar aquele que está louco de amor a Deus, e,

por sua sabedoria e desenvolvimento espiritual, e por não se basear em padrões pré-estabelecidos de comportamento,

não é compreendido pelos outros homens, sendo, portanto, tomado como insano. In: Attar. A linguagem dos pássaros.

Glossário, página 258.

79

Osman leva para o escriba uma areia tão suave como a seda, é o elogio que recebe do mestre. Eu

trouxe de longe para você, mas esta é a última vez. Estou indo embora. Por que, Osman? Era a

profissão de seus antepassados, lhe diz o escriba. Precisamente. Eu não desejo isso a ninguém.,

diz Osman. O escriba olha com reprova, ele repõe os óculos no rosto e entrega a Osman uma

mensagem: Leve esta mensagem. Entregue-a. Não se esqueça. Estou confiando em você. Osman

vai até um pátio onde encontra Hussein escrevendo.

Venha comigo. convida Osman.

É impossível. responde Hussein, enquanto olha para um espelho40 d’água que reflete um

domo octogonal... No fundo desse espelho ouvimos uma voz, longínqua de mulher que canta: Feliz

era o tempo quando nós dois estávamos juntos. Você e eu, duas formas distintas, mas uma única

alma, você e eu.

Osman está preocupado porque a viagem é cara, mesmo vendendo sua moto, o dinheiro não seria

suficiente. Hussein pede que eles se encontrem na mesquita depois da venda da moto. Cada um deles

toma uma direção. Seguimos Osman e ele passa pelo dervixe ruivo, que está varrendo o pátio e

recitando:

Varra com toda a sua alma, ante a porta de sua amada.

Só então você será seu amante.

Varra com toda a sua alma ante a porta de sua amada.

Só então você vai se tornar seu amante.

O dervixe ruivo é um majnun: seus cabelos ruivos mostram que ele já foi queimado pelas chamas do

amor; sua atitude não faz sentido no mundo sensível: ele é um louco. Depois não o vemos mais.

Corte. Nós olhamos uma sombra feminina; a voz feminina recita o poema de Rumi41:

Feliz era o tempo

quando nós dois estávamos juntos.

40 O espelho seria uma representação, o mundo sensível visto através do mundo imaginal. 41 Tu e eu. In: Rumi, Poemas místicos. página 59.

80

Você e eu,

duas formas distintas,

mas uma única alma,

você e eu.

Ela encosta-se, através de sua sombra, à cabeça coberta por um manto, ambas se inclinam, e isso faz

com que suas faces, a sombra e a cabeça coberta, se encontrem. Hussein!, alguém chama. A cabeça

coberta olha para nós, surpreendida em sua meditação: era Hussein. Mas de quem era a sombra e a

voz? Corte. Revemos o majnun varrendo o mezanino do pátio, enquanto Hussein e Osman passam

pelo pátio. Hussein olha, parecendo compreender o dervixe, que varre, enquanto recita:

Só então você se tornará seu amante.

O dervixe interrompe o que estava fazendo para ver três borboletas42: As borboletas, as borboletas.

Osman e Hussein continuam seu caminho. Entram em um mercado: é ali que Hussein tentará

vender seu relógio para ajudar Osman. Enquanto andam, Hussein pergunta a Osman:

Já se decidiu?

Sim.

Tem certeza?

Sim.

Você tem certeza que será melhor?

Sim. Eu vou para um lugar onde não exista areia.

O dono da loja de relógios não aceita a oferta de Hussein. Como a venda fracassa, Hussein entrega o

relógio ao amigo, o contrabandista poderia oferecer mais. Corte.

42 As borboletas podem ser uma antecipação do encontro entre o dervixe ruivo e Hassan, que acontece no final do filme.

Naquele momento o dervixe ruivo, numa atitude racional, conta a Hassan porque realizou o desejo de seu irmão,

Hussein. Ouvimos um poema sendo cantado, em off: As pessoas deste mundo são como as três borboletas na frente

da chama de uma vela./A primeira foi mais perto e disse: Eu sei sobre o amor./A segunda tocou as chamas

levemente com suas asas e disse: Eu sei como o fogo do amor pode queimar./A terceira jogou-se no coração da

chama e foi consumida./Só ela sabe o que é o amor verdadeiro.

81

Osman está sentado no beiral de um espelho d’água octogonal. Pelo reflexo do espelho nós vemos o

domo, pelo qual penetra a claridade. Ele não olha para esse reflexo, sua atenção está voltada para o

dinheiro da venda da moto, que ele arruma em um lenço. Ele se levanta e olha para a moto. Osman é

olhado por um senhor, que olha para a câmera e, portanto, nos olha. Osman olha para cima e vemos

um afresco: um cavalo alado se aproxima de alguém prestes a matar alguém de joelhos na sua frente;

vê-se a adaga43. A câmera volta para Osman. Ele está numa taverna conversando com o

contrabandista; enquanto este conta o dinheiro, Osman olha o afresco no teto da taverna: seria uma

representação de um sacrifício? Para o contrabandista ainda falta muito dinheiro:

Você percebe o risco que estou correndo passando você na fronteira? Estou arriscando

minha vida.

Isso é tudo que tenho, responde Osman.

Isso é problema seu. Eu vou sair esta noite. Você pode esperar a próxima viagem.

Osman entrega o relógio para complementar o valor. O contrabandista aceita: Certo. Te vejo esta

noite. Osman está saindo, mas ouve música e se dirige a uma saleta da taverna. Abre a cortina: vê um

cantor e reconhece alguém que está num dos cantos, fumando.

Hipócrita! Eu procuro por você na mesquita, e eu te encontro na taverna! Osman grita.

Você está falando comigo? O que você está falando? Na mesquita? Eu nunca pus os pés

em uma mesquita. O homem ri.

O homem, parecendo embriagado, ignora-o então. Osman passa correndo por todas as portas da

taverna, sem entender o que está acontecendo. Na mesquita ele encontra Hussein e pergunta porque

o amigo estava em uma taverna.

Eu? Na taverna? Você está bêbado? responde Hussein.

43 Esse jogo de olhares, sugeridos pelos ângulos da câmera, constroem uma possível narrativa: Osman está preso ao

mundo sensível e é, por isso, incapaz de perceber o reflexo deste mundo material no mundo imaterial, das formas

perfeitas – sugeridas pelas formas octogonais, símbolo árabe da perfeição, do Divino – através do reflexo, do mundo

imaginal, ou seja, do espelho d’água.

82

Juro que vi você! confirma Osman.

Ah, entendi. Você deve ter me confundido com meu irmão Hassan. Nós somos gêmeos,

mas tão diferentes como duas faces em um espelho44.

O dervixe ruivo observa os dois, do fundo de cena; eles não o veem, nós os vemos porque estamos

aqui; quando os dois amigos saem de cena compreendendo o mal-entendido, o dervixe ruivo se

aproxima, curioso. Corte.

Continue sua história, alguém diz. Nós voltamos ao deserto, muitos estão caminhando pelas

dunas. Osman continua contando: Eu devia sair imediatamente. Sabia que... Alguém interrompe:

Você foi ou não? Osman continua, sua voz off, corte: Primeiro, devia entregar a mensagem do

escrivão.

Próximo a muros, vemos um homem correndo. No seu ombro está a sacola de viagem; ele passa por

algumas portas e detém-se frente a uma: há um ramo de flores amarelas, desenhado na lateral dessa

porta. Ele bate. A porta é aberta e Osman cumprimenta, entregando a mensagem. Uma voz de

mulher lhe diz: Entre. Ele olha atrás de si, desconfiado. Entra.

Beba. Deve ter sede, ela diz. Ele olha e aceita a água oferecida. Sente-se. Sente-se aqui, ela

indica um lugar próximo a ela. Ele se senta um pouco mais afastado do lugar que ela indicou. Ele

olha enquanto ela abre a mensagem do escriba.

Leia para mim, ela pede. Ele aceita a mensagem em suas mãos e começa a ler, olhando para

a seda em que a mensagem foi escrita, olhando para ela, entre as sedas que a vestem – seu rosto não

está velado. Ele lê:

Eu a abraço e continuo cheio de desejo. Há mais proximidade que um

abraço?

44 Hussein, o amigo de Osman, é um Khezr, embora ele ainda esteja no mundo sensível, ele já enxerga através do espelho

as formas perfeitas, já se encontrou com a Imaginação Criativa; Seu irmão, Hassan, “tão diferente”, encontra-se preso ao

mundo sensível. Daí a importância dessa personagem ter um irmão gêmeo e novamente aqui a referência ao espelho.

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Eu beijo seus lábios para acalmar o meu desejo, mas assim mesmo cresce

minha paixão.

Meu marido! ela diz, surpresa, levantando-se.

Com a porta aberta, vemos que um homem arremessa-se na direção daquela porta por onde Osman

entrou. Osman, correndo, sobe uma escada, atravessa por uma porta, fugindo, chega ao fundo da

casa, onde há ruínas. Ali que ele cai num poço: ele entra em Khavarnaq45, e lá, Osman passa por

entre suas portas, procurando as húris, mulheres belíssimas. Elas correm dele, se escondendo. Ele as

persegue. Corte. (Osman passa pelo mundo imaginal através da poesia; através da busca pelo amor.)

O desgraçado foi joguete do diabo, alguém diz. Voltamos às dunas do deserto. Todos estão

sentados ouvindo a narração de Osman. Ele parece desolado. Alguém diz:

Não. Deus deixou que ele tivesse uma antevisão do paraíso. O paraíso está nos olhos de

quem vê... Osman continua, sua voz em off, corte:

Quando caí no poço me encontrei novamente no meu palácio cheio de moças lindas.

Todas elas me amavam. Mas eu só amei Zahra, e queria fugir com ela. Zahra46. Ele está deitado

no colo dela, toda vestida com sedas amarelas47; ele a convida:

Venha comigo.

Ela lhe diz: Olhe: há fogo48 lá longe. Olha. Eles estão aqui! Deve ser um acampamento. Vá e

confira, em seguida, volte para me pegar.

45 Khavarnaq é o nome do famoso palácio construído por Simnâr. De acordo com a literatura persa, esse palácio, por

sua perfeição e beleza, seria a representação do paraíso.

46 A palavra Zahra, em persa, significa flor. Existem referências a um livro de poemas místicos, O livro da Flor, em que se

descrevem os caminhos para o encontro com o amor, personificado na flor, Zahra.

47 A cor amarela faz referência ao bálsamo, elixir com poder de recuperação. 48 As chamas do fogo avistado por Osman e por Zahra podem ser relacionadas ao fogo do desejo. Reveja-se a história de

Bahrâm no pavilhão negro.

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Ele continua a narração, voz off: Saí do palácio. Eu corri e corri... Mas no deserto não havia

nada, exceto uma palmeira em chamas. Virei-me, mas já não havia nenhum palácio mais, nem

Zahra. Ele grita e seu grito perde-se no deserto. É noite e ele corre, refazendo o caminho:

Zahra...

Corte. É fim de tarde.

Voltamos às dunas. No deserto, todos que ouviram a história de Osman estão seguindo. No grupo

estão Bab’Aziz e Ishtar. Osman continua: Antes de eu vir aqui, vaguei em busca do palácio.

Meu filho, não se satisfaça com uma gota de água. Você tem que se jogar no seu rio.

Continue a viagem conosco, um dervixe convida.

Ele é louco, ele é apenas um louco!

Quem é louco? pergunta Osman.

Louco não é sempre aquele que nós acreditamos que é louco. E se ele realmente viu o

palácio? responde outro dervixe.

Então é verdade? Você sabe onde fica o meu palácio? quer saber Osman.

Venha para o encontro com a gente. Talvez você encontre o seu palácio.

Osman segue com eles. O grupo distancia-se... Ishtar e Bab’Aziz separam-se do grupo. Ela diz:

Bab’Aziz! Este não é o caminho!

Você sabe o caminho, pequeno anjo?

Mas os outros estão indo para o outro lado!

Cada um tem seu próprio caminho, Ishtar.

Eles andam... Está anoitecendo.

Bab’Aziz, nós perdemos o caminho.

Eu sei, meu anjo.

Ainda está muito longe?

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Não está muito longe agora, diz Bab’Aziz.

É verdade que eles vêm de todos os lugares? ela quer saber.

Sim, de todos os lugares.

De mais longe do que nós?

Muito mais longe. Alguns atravessam montanhas, outros o mar, ele responde.

E nós, pelo deserto.

Mantenha seu fôlego para caminhar, você vai precisar dele, anjinho.

Eles andam e é noite. O dervixe ruivo recita enquanto desce e sobe uma escada, esvaziando em cima,

nas areias do deserto, o cesto com a areia que pega do pátio de uma mesquita, submersa.

Varra com toda a sua alma, ante a porta de sua amada

Só então você será seu amante.

Varra com toda a sua alma ante a porta de sua amada.

Só então você vai se tornar seu amante.

Bab’Aziz apoia-se em seu bastão até localizar a escada que leva à mesquita, desce seus degraus e

Ishtar o segue. Lá embaixo, o dervixe ruivo apanha a areia que é jogada pela brisa noturna,

incessante. O pátio da mesquita em que eles estão é quadrado e não é possível vê-lo da superfície do

deserto, a mesquita está imersa na areia. É um espaço sagrado de reunião de súfis, uma Khângâh49, o

lugar especial de encontro com o sábio que guia o iniciado em seu caminho. É a entrada no mundo

interior. O dervixe tira a areia daquele pátio, leva-a para cima, e a brisa trazendo-a de volta, aos

poucos, lentamente, ambos trabalhando aos poucos, mas incessantemente. Ishtar tira a areia de seu

sapato. O deserto está em tudo. Bab’Aziz entra na mesquita: os dervixes estão orando, há o transe.

49 Khângâh é o santuário interior do homem. “A saída durante a noite é simultaneamente uma entrada na Khângâh. Esta

palavra designa correntemente o lugar em que se reúnem os súfis. Designa aqui o homem interior, o “templo” interior

onde se produz o encontro com o anjo que ali reside. Esta Khângâh interior teria duas portas: uma que abre para o mundo

espiritual (a vasta imensidão, o deserto), e a outra que abre para o mundo das coisas sensíveis. O abrir e fechar da porta

faz referência à metafísica da Imaginação Ativa.” Presentación, El rumor de las alas de Gabriel. In: Sohravardî, El encuentro con

el ángel. Página 70. é um ascensão de grau em grau dos céus espeirituais ou interiores que são tipificados, certamente,

pelos céus astronônicos, pois a interiorização destes no Khângâh (ou microcosmo) do visionário é a condição prévia de

toda ascensão celestial. [...] o termo Khângâh designa o ‘homem interior’ como habitação do Anjo de que emana a própria

existência da alma. (Idem, página 97)

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Ishtar entra em seguida; ela atravessa a mesquita. Entra através da cortina com escritos e, pelas

paredes ela encontra palavras. Ishtar maravilha-se com elas, espanta-se com elas.

Ele então lhe diz:

– Cada um tem o seu jardim,

e com seus olhos aprecia as flores

que brilham com o brilho desse olhar.

A porta para o jardim será aberta para o que tem a chave.

Pois cada porta tem a sua chave, como cada jardim tem o seu dono.

Ela ainda não compreende as palavras de Alif.

Embora seus ouvidos ouçam, seus olhos talvez não estejam prontos.

No deserto, durante a noite, Bab’Aziz contou a história do príncipe que abandonou seu reino, seus

servos e desapareceu no deserto. Muitos saíram para procurá-lo, mas apenas um cavaleiro retornou e

levou o camareiro até o lugar onde o príncipe se encontra contemplando uma fonte. Ishtar

adormeceu ouvindo aquela história e, na manhã seguinte, ela acordou assustada com o barulho do

ônibus passando pela estrada. Viu-se sozinha. Então ela vê o avô e os dois ouvem uma voz que

chega através da estrada: era Zaïd, ele quer ir ao encontro. Os três caminham pelo deserto.

Encontram dervixes que cantam; encontram um outro grupo de dervixes onde se distribui comida.

Enquanto comem, Ishtar pede para que Bab’Aziz continue a história do príncipe: todos tinham

abandonado o príncipe, até mesmo seu camareiro. Apenas o dervixe havia ficado para olhá-lo. Neste

momento, um homem cai no poço. Água. Ishtar levanta-se correndo para ver. Todos querem saber

quem ele é, qual o seu nome, Bab’Aziz pede-lhe que conte sua história.

Osman conta que era vendedor de areia. Ele estava cansado daquela vida e pensava em sair do país

com seu amigo Hussein. Vendeu a moto que tinha para conseguir atravessar a fronteira, mas Hussein

não o acompanharia. Quando Osman vai entregar a mensagem que lhe confiara o escriba, é

surpreendido pelo marido da mulher para quem ele lia uma poesia. Ao fugir, Osman caiu no poço

pela primeira vez e chegou ao seu maravilhoso palácio, lá havia várias mulheres. Ele se apaixona por

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Zahra e quer fugir com ela, mas quando ela lhe pede que vá ver se a fogueira ao longe é um

acampamento, ele sai do palácio e não consegue mais voltar. Desde então ele cai no poço, à procura

de Zahra.

Muitos estão caminhando pelo deserto, ouvindo a história de Osman. Bab’Aziz e Ishtar se separam

do grupo e seguem outro caminho até chegarem, à noite, a uma mesquita imersa no deserto. Ali,

encontram um dervixe ruivo e um outro grupo de dervixes.

Quando Bab’Aziz adormece, Ishtar sai da mesquita e segue uma gazela pelo deserto: a menina não

volta durante aquela noite. Amanhece e o avô a chama, mas quem aparece é um motoqueiro que se

prontifica a procurá-la pelo deserto. Ele encontra Hussein e lhe oferece uma carona. Hussein é

roubado, ficando sem roupas e sem sapatos. Revoltado, Hussein desmaia no deserto. Ishtar é

encontrada por Zaïd que a traz de volta para a mesquita onde seu avô a espera. O dervixe ruivo

encontra Hussein caído na areia e lhe dá água. Sem forças, Hussein pergunta por que o dervixe

matou seu irmão. O dervixe lhe conta que o próprio Hassan fez esse pedido e, por amá-lo, ele

cumpriu. O dervixe apoia Hussein, que não consegue andar sozinho. Ishtar está com febre e

Bab’Aziz passa a noite rezando, enquanto Zaïd conta a ela sua história: ele participava de um

concurso de recitação de salmos quando conhece Noor. Os dois se apaixonam, mas ela foge,

roubando as coisas de Zaïd e seu passaporte para poder procurar pelo pai, um sufi, que estaria no

encontro. Por isso Zaïd quer ir ao encontro: para rever Noor.

Bab’Aziz, Ishtar e Zaïd andam juntos pelo deserto até que, à noite, chegam a um local com várias

sepulturas. Ali, Bab’Aziz se despede de Ishtar: ele chegou ao seu encontro e os dois devem se

separar. Ela diz que não irá embora, pelo menos até ele terminar de contar a história: o príncipe

ficou olhando a água até que mais ninguém estava ao seu lado. Então ele se levantou, vestiu as

roupas que o velho dervixe havia deixado ali para ele e saiu andando pelo deserto. Então o avô

lhe entrega um talismã e os dois se despedem. Ela continuará com Zaïd: eles devem ir ao encontro,

procurar Noor. Bab’Aziz fica só, diante de sua sepultura esperando. No encontro, muitos grupos de

dervixes, muitos cantos em vários cantos. Ishtar chama o nome de Noor. Finalmente Zaïd a vê. No

deserto, Hussein encontra-se com Bab’Aziz: estava ali ainda esperando por ele. Hussein se

surpreende, logo ele, que tinha medo da morte. Bab’Aziz lhe diz que a morte não pode ser o fim, já

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que não tem começo. Em seguida, pede para que Hussein se afaste e que depois venha cobrir seu

corpo. Hussein realiza o desejo; vestiu as roupas de Bab’Aziz e saiu andando pelo deserto.

E o filme continua, tudo começando novamente. Para alguns, algumas coisas ainda carecem de

nome. É um jardim, ou um palácio, você vai ver que será preciso mergulhar no poço para poder

encontrar seu próprio rio.

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um conto do encontro com Sohravardî

Henry Corbin pesquisava sobre Avicena (Ibn Sina) quando se encontrou com os textos do jovem

autor persa Sohravardî, provavelmente morto aos 36 anos. Os Relatos do encontro com o anjo

traziam algo mais do que os relatos de Avicena: eram tratados que recuperavam uma tradição persa

pré-islâmica, em que hierarquias de anjos do conhecimento tornariam possível ao viajante, perdido,

nostálgico, exilado, reencontrar o mundo das ideias. O caminho mostrado pelos escritos de

Sohravardî abriria múltiplos caminhos, bastaria o viajante estar pronto, buscando encontrar-se,

reencontrar-se. Há o caminho proposto no relato O anjo tingido de púrpura, em que o viajante se

reconhece preso a sua forma humana e deseja libertar-se. Quando nasce o desejo de ver-se livre de

suas amarras, ele se encontra com um sábio, que possui a aparência de um adolescente, e é este sábio

– Khezr – quem lhe apresenta as sete maravilhas, ou sete caminhos, que o iniciado deverá percorrer,

para chegar à Fonte da Vida e tornar-se um Khezr. Há neste relato a explicação das sete maravilhas e

como, através delas, o iniciado poderá alcançar a Fonte da Vida, ou Luz da Glória.

No relato O rumor das asas de Gabriel, o iniciado já pode abrir suas asas e libertar-se do mundo

sensível, e vê a si mesmo no fundo de um poço, de onde só pode escapar de seus carcereiros – os

cinco sentidos do mundo sensível – durante a noite. Quando sai do poço, o viajante adentra na

Khângâh e fecha atrás de si a porta para o mundo sensível. Neste momento ele encontra o Anjo

Gabriel – o anjo da humanidade, da Anunciação – e vislumbra-se com a criação de todas as coisas:

cada uma das asas de Gabriel seria tingida: uma de Trevas, formando todas as coisas do mundo

sensível;, outra de Luz, formando todos os caminhos – ta’wîl – para o mundo das ideias, a Luz de

Glória, Xvarnah. O encontro dessas duas luzes, o crepúsculo, gera a luz vermelha, ou púrpura, de

que se tingem as asas de Gabriel, que o iniciado enxerga. O exilado vê-se obrigado a retornar ao

poço, para que seus carcereiros não percebam sua ausência, mas pretende retornar a Khângâh para

maravilhar-se com a visão de todas as coisas.

No Relato do Exílio Ocidental o exilado refere-se ao caminho por ele percorrido como um NÓS, e

com essa pessoa gramatical ele aponta que tomou conhecimento da mensagem, percorrendo uma

gesta, uma transfiguração do seu ser, até reconhecer-se na figura de Gabriel, o viajante e Gabriel

seriam um só, no caminho até o Sinai Místico. Quando atravessa as cavernas e as grutas em que se

encontrava, chega o iniciado à Fonte da Vida e lá, uma vez banhado em suas águas e se

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reconhecendo um Khezr, ele deve retornar ao mundo sensível, porque somente abandonando toda a

forma material poderá o exilado voltar ao Oriente, à Luz da Glória. Porém o retorno ao exílio

Ocidental não é mais negro, pois “continuo experimentando certa doçura que sou incapaz de

descrever”50.

Para os místicos, os súfis, para chegar a este lugar, o Anjo Gabriel, o anjo da Sabedoria, da

Humanidade, acompanha o viajante: Sîmorg no livro A linguagem dos pássaros de Attar, o Amor,

nos poemas de Rumî, os diferentes viajantes, nos poemas que compõem As sete efígies de Nezâmi,

o Imam oculto; mas é o próprio viajante, buscando o seu caminho. Durante a viagem, em cada

momento, torna-se mais claro que a única forma de chegar ao encontro é perdendo-se, estar sozinho,

cada um no seu deserto, na sua noite.

Chegar a esse lugar é como mirar-se no espelho: a imagem aparece dupla, é possível acreditar que

haja dois, que se olhariam nos olhos um do outro, mas que na verdade seriam um só, um no mundo

sensível que olha para dentro do espelho; um do mundo do espelho, a que Henry Corbin chama de

mundo imaginal, o mundo intermediário através do qual é possível encontrar-se com as imagens,

Xvarnah.

50 Sohravardî. Posludio. In: Relato del exílio Occidental, página 134.

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IV. A cada um o seu espelho.

Era uma velha estrada que seguia na direção de uma cidade, que nos passados anos tanto tinha brilhado

para os que nela chegaram e por ali passaram. Era nos tempos em que a estrada tinha um nome e a

cidade tinha gentes. Hoje a estrada ainda leva para algum lugar, mesmo que às vezes fosse um outro

lugar. Talvez tenha sido por isso mesmo que aquela cidade estava esquecida. Certeza ninguém tinha, mas

era assim que diziam alguns que viviam no outro povoado ali adiante, seguindo pela mesma estrada. As

pessoas, que viviam naquela cidade, partiram, porque pessoas não têm raízes, e murchou então aquilo

que antes formava o que se havia chamado, uma dia, um lugar, mas que ninguém mais lembrava o nome

que tivesse, nem dos nomes das gentes que lá moraram, nem das caras que teriam, nem das casas em que

moravam. Sabiam que ficava ali porque às vezes se davam notícias, haviam os acontecidos, ou as histórias

inventadas, que de tão contadas, viraram a história do lugar. No começo, muita estranheza tudo isso de

histórias e assombros provocou. Depois, não mais. E então, ida a gente e finda a cidade, o que sobrava

era só o vento, que ninguém via, embora se dissesse que alguns ouviam vozes no vento.

E restava ainda a estrada, que passava dentro da cidade. Talvez tivessem passado por ela grandes

homens, talvez tivessem sido pequenos em seus espíritos, desde que o sol os fizera, todos eram. Não se

sabe se teria havido crianças, possível que as houvesse, pois a terra não mais prometeria, se assim fosse, e

seria desventurada demais para que nela crescessem os filhos dos homens e das mulheres, que então a

abandonaram. Mas os outros, que ali sabiam ter existido uma cidade com gentes, e que tinha sido vistosa,

e boa, e alegre, diziam que tudo assim se findara porque teria partido dela aquele que a criara. Ninguém

talvez lembrasse porquê, nem se assim teria sido, mas quando as estórias viram histórias, por si só se

contam e, muitas das vezes, somente precisam de um caso, e o caso teria havido, que uma certa vez, sem

que ninguém esperasse, a cidade foi se esvaziando. Havia tanto tempo já passado, que alguns juntaram

um pedaço desta e daquela e da outra estória, e, para cada um que se perguntasse, havia uma versão, e

todas eram verdades, porque eram a história de cada um. Tudo ali era de passagem. Mesmo os que

moravam, não moravam muito: ficavam, mas depois se iam. Quem sempre estava eram os viajantes:

sempre se indo para algum lugar. Ninguém nunca se perguntava para onde, nem de onde. Nem

estranhavam que todos sempre fossem, e que nunca ninguém viesse e ficasse. Era aquele um lugar de

passagem, no meio do caminho de quem sempre ia. E se alguém sentia sede ou cansaço, parava ali e

pedia o que beber para se refrescar. Se também sentia fome, comia. Se sentia sono, às vezes dormia ali,

numa paragem, pois que sempre se tinha para oferecer um pouso. E o viajante ficava, ia ficando, mas

todos sabiam que um dia se ia também.

92

Assim, se percebeu que a cidade não tinha mais quem dela fosse, era sem memória. O que fazia dela

talvez uma cidade era o fato. E o fato era o motivo de estar no caminho, no entre: entre aquela cidade de

onde as pessoas tinham ido embora e o lugar, que era sempre para onde todos se iam, mais dia, menos

dia, era certo. E se a cidade-de-lá um dia se acabasse, esta aqui não teria mais existência? Às vezes se

perguntavam. Talvez por isso tenham feito da história um fato, porque era do assombro que os mais

curiosos queriam o sabido, então ficavam para ouvir. Mas depois, aqueles, mesmo que curiosos, também

se iam embora e ninguém se preocupava. Era, enfim, o lugar em que os longínquos viajantes paravam

para perguntar daquele outro lugar. Às vezes, os viajantes contavam uns ocorridos, que ninguém

acreditava mesmo que fossem fatos, mas na verdade visagens dos viajantes, já cansados da estrada, que

era longa mesmo, e eram aqueles ditos que no começo todos achavam muita estranheza de ouvir falar. E

era talvez por isso que quase nenhum viajante dormia ali. Alguns diziam ainda que era por causa dos

ventos: os daqui e os de outros lugares, ventos que vinham de lá pr’aqui, e que sussurravam velhas

histórias porque, nesses lugares, o vento guarda a lembrança dos que ficaram, passaram, foram. E alguns

não queriam ouvir o que teria sido; nem deixar ali um pouco de seu, porque nem sempre eram bons os

tipos que por ali apareciam, nem bonitas ou boas as histórias das vidas que levavam ou levaram; melhor

era mesmo que ninguém soubesse disso, ou daquilo, ou de nada. Esta cidade aqui, que é conhecida hoje

como um lugar depois que passa-os-montes, porque ninguém não sabia se tinha outro nome e era por

esse mesmo jeito que ela era pouco, mas ainda sabida. E quando por ali ficava um alguém, como que

perdido, sempre trazia de lá a pena de ter deixado de ter sido cidade. Era uma tristeza sem tamanho

talvez.

E o lugar tinha sido assim, feliz e cheio. E nenhum deles teve coragem de lá voltar. E dizem que foi

desde esse fato que o vento que vinha daquele lugar, e dizem que vem mesmo do fundo de uma caverna,

da única de lá, que se parece, quem já viu, a garganta do fim-de-mundo, e que então é esse vento que traz

os barulhos que contam as histórias, e que essa caverna é aquela mesma onde tudo se sumiu. Mas o

assombro é que nem todos conseguem ouvir o que o vento conta, porque nem todos acreditam, pelo que

parece, nem todos os ouvidos conseguem compreender o que aquele vento traz; dizem que são uns

rumores, rumores... mas tem quem jure que ouve sim, uma voz velha e rouca, ou murmúrio, quando é

brisa, de dia e de noite. E dizem que o vento costuma contar que a cidade havia sido mesmo próspera e

que eram verdes os campos daquele que já tinha sido um lugar com nome e gente. E era isso tudo que

contava aquele que tinha se levantado e que agora, parece que cansado de todos esses fatos, se sentava de

novo na cadeira e bebia o espanto de todos. O outro, vendo o campo livre, reatava a contar que, tinha

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ficado então o lugar sem nome, sem gente, com casas ocas e ruas mortas, e que, pelo que se dizia, só se

perdendo mesmo é que se entrava naquela cidade, e quem se perdesse e chegasse lá, avistava logo um

poço que tinha uma água muito boa para matar a sede. Acreditava-se que quem bebia daquela água

pensava depois ouvir os rumores dos tempos remotos trazidos e sacudidos pelo vento.

Muitas coisas diziam as pessoas e o vento, mas para todos que naquele poço paravam para matar a sede

não era interessante saber dessas estórias não, porque seus sonos depois não eram mais tranqüilos, se

dizia. Depois de beber daquela água, eles sabiam o que tinha passado naquele vazio e seus ouvidos

ficavam então ouvindo os rumores longínquos, como que de asas, e havia quem dissesse serem mesmo

dos anjos esquecidos daqueles tempos, assim como seus olhos agora viam as maravilhas que se

dissipavam, porque as coisas mudam sempre. E o movimento que continua é a única certeza que tem

quem ouviu e viu o que aqueles viajantes experimentavam. Bem, era o que diziam. E diziam ainda que o

que restava agora de tudo aquilo era um velho. Tão velho quanto o pó que restava daquelas casas, elas,

que nem tinham mais os seus telhados, que não se puderam ir junto com as gentes que tudo deixam,

indo-se. Ficaram as casas e o velho que conta, a quem lhe pede, as coisas que o viajante deseje saber: o

rosto dele desbotado pelos anos ali inscritos. Os viajantes, então, depois que ouviam a história assim

contada e depois de satisfeita a sede ou a fome, ou as duas, iam-se, sempre cansados de viagens e estradas

ruins, e achavam interessante toda aquela história que servia, eles pensavam, para que o ânimo não os

abandonasse, porque sempre é longa a viagem que chega, e todos saíam sempre satisfeitos de terem

ouvido falar daquela que pode ter sido uma forma bonita de contar a morte de alguém que um dia foi. E

cada um ia, pelos caminhos traçados por, ninguém sabia quem.

Mas só vez ou outra aparecia ali um ou outro viajante, dizendo ter encontrado lá o tal velho de que se

falava, e que estava ele sentado em frente ao que, parecia, já tinha sido uma casa. E esse velho, diziam,

olhava sempre para os lados da estrada, e que estava sempre perto do poço que tinha a água fresca que

aplacava a sede da secura de quem vem pela estrada, sempre de terra e cascalho, e que se perdia por

aquelas bandas, e acabava, sem querer, entrando na cidade, e são esses mesmos admirados que contam

terem visto o velho, são esses os perdidos, que antes nada sabiam dos rumores dos ventos que vinham

daquelas paragens, e que depois que vinham de lá, e não suportavam mais a brisa leve, porque, mesmo

ela, que sussurrava, sussurra os longínquos idos, que falam de princesas, e guerras, e casamentos, e

palácios, e animais fantásticos, jamais vistos. E esses sussurros, ou rumores, aqueles viajantes que não

veem o velho, porque não se perdem e nem entram na cidade que fica no meio do caminho, não o

sabem, não o ouvem. Nada os incomodava. Mas para aqueles que se perdem no caminho dos que

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escutam, e que entram na cidade e avistam o ali esquecido, principalmente se bebem da água cristalina

que ele, o velho, lhes oferece, seus ouvidos são então povoados pela grandeza do vazio de todas as vozes,

de todo o tempo que ficam ali, antes e depois, de tudo que só pode ser porque é. Então seus olhos

enxergam as casas novamente com as cores e as flores e os telhados, e o velho é um menino que pega

pela mão o viajante e que o leva até aquela caverna e aponta para ela, dizendo: E de lá vem um vento,

rumorejando como asas, e o viajante fecha sempre os olhos por causa da força do vento, e que, quando

abre os olhos, o menino sumiu. O vento vai varrendo então as cores e as flores e os telhados das casas;

até que nada mais fica, apenas o poço, com a caneca para quem quer matar a sua sede. E nem velho, nem

o mato verde, nem menino, nem ninguém, apenas o vento rugindo, e o poço, com sua caneca. Então o

viajante dispara pela estrada, assustado pela fantástica visão das coisas que se sumiram, mas que, isso

juram todos, estavam lá.

E foi assim, sem ninguém esperar por muita coisa, que um dia apareceu naquele lugar um moço, que

não era mais menino, nem era homem, porque não trazia no olhar a desesperança que trazem aqueles

que já conheceram o sofrimento e que se viram abandonados pela sorte e pelo amor, que se jurava

ser eterno. Não. Aquele moço trazia os olhos dos venturosos, e talvez tenha sido isso que assustou a

todos: ver aquele moço, admirável como nenhum outro, como nem mesmo se poderia assim

encontrar, mesmo quem também já tinha sido moço; todos os olhos de todos eram para o moço que

tinha chegado, tão grande e fantástico, como aquilo que nunca se viu antes e que se assusta de assim

ver chegar. Com o olhar de alegria e um sorriso nos lábios que eles não tinham visto ainda nenhum,

desceu o moço do cavalo, que o tinha trazido a galope, e aquele moço chegou e pediu água. E

ninguém sabia, mas era preciso água para ele poder falar das coisas maravilhosas, que tinha visto e

sabido, e que tinha que contar para todos, porque se fosse um sonho, teria sido então o sonho mais

bonito que se poderia ter sonhado. E lhe deram a água pedida e ficaram aguardando que, depois de

matar sua sede, ele lhes dissesse de onde vinha e quem era.

O moço então olhou para eles, percebendo aqueles olhos que o tocavam com muita curiosidade, e

ele perguntou se alguém sabia quem era o velho sentado em uma porta, como que guardando um

poço, de onde tinha o moço bebido água. Todos souberam então, mesmo com tristeza, que o moço

dali partiria, por causa do assombro que começaria assim que viesse o primeiro vento ou a primeira

brisa, logo que o sol fizesse a curva no alto do mundo e que a tarde começasse a cair. E ficaram

tristes as mulheres, e os homens; todos sabiam o que aquilo de ter visto o velho significava. Ficaram

tristes todos por perder aquela felicidade tão sem-esperar e que tinha vindo assim, montada em um

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cavalo, e que tinha o olhar de nunca-se-viu. Nenhum deles ali, nem os homens, nem as mulheres,

nunca que tinham sentido aquela coisa que fazia com que sorrissem bestamente, porque não tinham

tido um motivo para sorrirem até ali. E agora que o moço tinha dito que encontrara o velho,

chegaram todos a odiar aquele velho, que ninguém via, e odiavam-no porque sabiam que aquele

moço iria embora, e nunca eles tinham sentido tanto a falta de alguém, porque os que passavam,

passavam, quando mais assim, sentir a falta de um viajante, tão chegado de repente? E o moço

percebeu a tristeza de alguns daqueles, mas perguntou ainda se havia acontecido alguma coisa com

aquela cidade que ficava antes desta. Alguém então disse o aquilo que todos já sabiam: O vento

somente dizia aquilo que os ouvidos que pudessem, soubesse como, ouviria. E o alguém que contou

tudo ao moço ficou com medo, ou com a esperança de não assustar o moço, ao que todos ficaram

agradecidos por ele nada contar, e o não-dizer era uma forma do não-existir? Talvez nem soubessem

se era mesmo assim, talvez nem tenham pensado, e se o moço não ouvisse os barulhos do vento,

nem os sussurros da brisa, talvez não quisesse ir embora dali, porque era tão bom que ele ficasse e se

fosse ficando, ficando com eles aquela sensação da casa que é limpa com água recente; do limpo e do

novo, porque a casa limpa e a frescura que nela fica, assim como aquela sensação que entra pelos pés

molhados pela água passageira, são o que mais perto eles tinham sentido daquela felicidade que

sentiam de quando viram o moço que ali chegou, e eles sabiam que depois dele talvez as sensações

não fossem as mesmas, porque o aperto nos seus corações, do medo que esse outro desaparecesse, já

anunciava que aquilo que sentiam, com o moço ali, era bom, mas de-passagem. Estavam todos assim

perdidos e soltos nos pensamentos e nas tristezas dos desconhecidos, quando a voz do moço

interrompeu todos: ele queria era saber sobre o velho: quem era? Porque vivia ali? Como vivia ali

sozinho no desolado daquela cidade... Sabiam então o que ele tinha visto. Tudo perdido.

O moço disse que tinha visto apenas o velho, tomando seu chá escuro, no que era a caneca, e que ele

tinha oferecido um pouco daquele chá, em outra caneca, tão velha e esquecida quanto a primeira, e o

moço bebeu então aquele chá negro e espesso, tão bom e forte que parecia não ter mais sede depois,

muito tempo depois, e que enquanto bebia, o velho o olhava, e seu olhar era tão profundo que

parecia olhar a alma do moço. O velho então perguntou se o moço queria entrar, porque o sol estava

alto e quente. E todos se admiraram porque nunca ninguém tinha dito que no velho havia voz, e

olharam para o moço com um olhar que de repente meio que adivinhava que um moço tão bonito

pudesse ter assim perdido o juízo e ficaram com pena, porque aquela história que ele contava em

nada era parecida com a história de tantos outros que tinham, sim, encontrado o mesmo velho. Mas

o moço não viu aquele olhar, continuou contando que o velho pegou na sua mão e que eles entraram

96

na casa e que a casa agora parecia ter um telhado, que ficou mais fresca do que estava o sol lá fora, e

que o cheiro ali era tão bom que o moço se sentiu de novo em casa e a sensação toda tinha sido

mesmo tão boa que ele sentiu, de leve, quando uma brisa entrou, levantando a cortina, que ficava

numa janela que dava para o nascer do sol, e era branca e fina, e que varreu no ar como que alguma

suspeita do moço e que ele se lembrava de ter ouvido então uma voz também suave como a brisa e

que contava que um dia tudo tinha existido. E ele contou a sua história. E cada ouvido ouviu a sua

história: pra cada um ela era de um jeito, porque os ouvidos não são os mesmos em cada um.

97

E a palavra, nestes olhos, foi posta, pois, como selo: porta a que é preciso descobrir a chave.

Não tente rompê-la, isso só a acorrentará na distância dos séculos.

Encanta-te com ela.

Desvenda-te com ela, descobre-lhe os palácios.

Com ela chegarás até Qâf: de lá vislumbrarás maravilhas.

Prepara-te para a jornada que ela abrirá para ti.

Pois nem teus olhos nem teus ouvidos jamais viram ou ouviram palavra.

Ela é Sîmorg: de rara beleza. E seu som imita o rumor das asas do Anjo.

99

Uma história para o manuscrito

Os Cinco Tesouros (Khamseh), escritos por Nezâmî, provavelmente no século XII, teriam sido

dedicados ao príncipe turco selêucida, do Azerbaijão, Körp Arslan. No poema o autor fez referência

a Ferdowsî, Tabarî e Bujârî, por isso acredita-se que tenham sido usados como fontes o Livro dos

Reis (Shahnameh), histórias da Pérsia pré-islâmica, textos muçulmanos, lendas do folclore turco e

hindu; é possível ainda encontrar semelhanças entre algumas narrativas dos cinco poemas e as

narrativas contidas n’As mil e uma noites.

O manuscrito, feito sobre os poemas de Nezâmî, foi datado a partir de uma encomenda do Shâh

Abbas I, que teria vivido no século XVII na Pérsia (1588-1629), sendo o grande soberano da dinastia

Safávida, responsável pela introdução do xiismo como religião oficial; aquele período teria

representado reformas judiciárias, vitórias em batalhas que consolidariam o reino persa e garantiriam

estabilidade econômica, e que podem ter influenciado a confecção do manuscrito, já que o reinado

de Abbas teria sido responsável por um largo período de estabilidade e paz, para a Pérsia.

O poema teve como calígrafo Abd ol-Djjabâr Esfahânî (que viveu em Esfahan), utilizando o

nastaliq, e teria sido miniaturizado pelo artista Haydar-Qolî Naqqach, também de Esfahan, seguindo

o estilo timúrida, desenvolvido na cidade de Herat, chamado “escola de Herat” (kitab-khane –

academia de bibliógrafos), tendo como kitabdar (diretor-geral) Bihzad, grande mestre de Herat, no

século XVI, e que influenciaria a pintura persa nos séculos seguintes. O manuscrito original

encontra-se como Suplemento Persa 1029, da Biblioteca Nacional da França, copiado em papel, com

386 fólios; cada página com o formato de 23cmx36,2cm. As páginas escritas comportam imagens e

quatro colunas de textos.

Sobre as imagens trabalhadas nos manuscritos no espaço da folha, é interessante notar que foi dada

ênfase ao conceito de espaço (e esse espaço, em relação à narrativa, estaria relacionado ao tempo:

perspectivas paralelas; tempo paralelo). Toda a área era usada mostrando numerosas figuras, sós ou

em grupos, em vários planos, e isso se tornava possível graças ao recurso de utilizar o horizonte alto

na página. Esse processo de transformar a maior parte pictórica num cenário paisagístico fez com

que diferentes níveis de perspectivas fossem apresentados uns sobre os outros na página. Toda a

superfície da imagem podia tornar-se um relvado ou um jardim florido, nos quais árvores e arbustos

100

apareciam em diferentes posições, levando ao horizonte elevado. Cadeias de montanhas foram

introduzidas nas paisagens, atrás das quais outras extensões de espaço físico podiam ser imaginadas,

sugeridas muitas vezes pela aparição de elementos por trás dos morros.

Sobre as histórias que compõem o Khamseh (quinteto) são cinco poemas: O tesouro dos segredos

(Makhzan ol-Asrâr): livro filosófico e ético contendo histórias, alegorias, pensamentos, parábolas a

partir de diferentes fontes, algumas delas perdidas. Khosrow e Chîrîn (Krosrow va Chîrîn) é a

história dos sacrifícios de amor entre Chîrîn e Khosrow: com a morte do pai de Khosrow, o príncipe

da Pérsia deve casar-se com a princesa Maryam de Bizâncio (Rûm) para conseguir a ajuda dos

romanos e poder recuperar o reino usurpado por Bahrâm V, mas ele é surpreendido pela beleza da

princesa Chîrîn quando a vê banhando-se em uma fonte; eles se apaixonam. Mas Khosrow deve

cumprir seu dever e dirige-se à Bizâncio. Chîrîn refugia-se nas montanhas; lá, conhece Farhâd, o

arquiteto que constrói maravilhas e que se apaixona por ela; constrói um castelo para sua amada; mas

ela lhe diz que o amor entre eles é impossível, Farhâd, então, se mata. Finalmente, Khosrow e

Chîrîn casam-se. A conclusão do poema é o assassinato misterioso de Khosrow.

Layla e Majnun (Leylî va Madjnôun): epopeia romântica em que é contada a história de dois jovens

que se apaixonam quando crianças: Layla (a noite) é uma criança encantadora e possui a voz suave;

Qays está a caminho da escola quando a vê pela primeira vez; a partir de então todos os seus

pensamentos voltam-se para ela; ela também fica enamorada pela beleza e inteligência de Qays; mas

os pais são de tribos inimigas, por isso os jovens não podem ficar juntos; Qays torna-se um louco de

amor (Majnun): deixa os estudos, rasga suas roupas, refugia-se no deserto, recita poemas e fala

sozinho; Layla é obrigada por seu pai a casar-se com um bravo cavaleiro que defendeu os interesses

de sua tribo. Ela morre para não sacrificar seu amor. Ao ver-se sem Layla, Majnun entrega-se à

morte no túmulo de Layla.

Os sete retratos (Haft Peykar): epopeia em que se contam as histórias envolvendo o jovem príncipe

Bahrâm, desde seu nascimento e educação no Yêmen, até o momento em que assume o trono de

seu pai, rei da Pérsia, e casa-se com sete princesas de sete continentes, tornando-se Bahrâm Goûr.

O Livro de Alexandre (Eskandar-Nâmeh), último poema que compõe o Khamseh, narra a história

das batalhas e conquistas de Alexandre Magno.

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Entrevista ABBAS KIAROSTAMI "As mulheres são mais emocionais, complexas e belas" Por: Pedro Rosa Mendes, em Paris (exclusivo Ípsilon/Lusa), 24 de Junho de 2010

Elas choram, sorriem, desviam o olhar... É para os rostos de uma centena de mulheres

iranianas (e uma francesa, Juliette Binoche) que vamos olhar durante a hora e meia de "Shirin", que

estreou em Lisboa e no Porto. Como sempre no cinema de Abbas Kiarostami, o processo para

chegar à verdade é puramente artificial. Numa entrevista ao Ípsilon, o cineasta iraniano diz que este é

o seu filme "mais artificial, mas também o mais autêntico". Nestas páginas, o crítico iraniano

Boumchade Pourvali explica por que é que as mulheres de "Shirin" são o verdadeiro rosto do Irã Em

"Shirin", de Abbas Kiarostami, 114 mulheres, todas iranianas exceto uma francesa (Juliette Binoche),

olham para algo que supostamente se passa num filme que não vemos, apenas ouvimos como uma

narrativa reduzida à sua banda sonora. As mulheres assistem a uma representação de um poema

persa do século XII, "A História de Khosrow e Shirin". Quanto a nós, espectadores de espectadoras,

nada mais temos em campo para além dos rostos - muito diversos e todos magníficos - dessas

mulheres. Primeiro choque de "Shirin", por vir de onde vem: a silenciosa partilha de uma dupla

intimidade, a dos olhos e a das emoções, isto é, a partilha longa de um olhar feito da acumulação de

olhares. O primeiro fotograma de "Shirin" já fica para lá da primeira fronteira do interdito feminino

na república islâmica do Irã (pois "é através dos olhos que o diabo dispara", ensina a cartilha dos

Guardas da Revolução).

As mulheres riem, choram, reagem, instalando uma segunda narrativa, contracampo tão

invisível para nós como a tragédia de Khosrow e Shirin, um contracampo afinal "realizado" pelo

espectador, na medida em que é escrito em nós por 114 atrizes de um filme sem argumento. O

centro de "Shirin" não é a representação de um poema mas a sugestão, profundamente poética, de

paixões, de recordações e de dor.

Este nível de exposição é sacrílego para a ortodoxia xiita no poder em Teerã. Kiarostami, no entanto,

não abre mão de qualquer leitura política. "Garanto que não é um filme feminista em nada", afirmou

numa entrevista recente ao Ípsilon em Paris, feita nos escritórios da distribuidora francesa dos seus

filmes, a MK2.

Estranha presença de um realizador fugidio: Kiarostami, sempre de óculos escuros, insiste em

responder em farsi, através de uma intérprete, às perguntas feitas em francês e em inglês. A sua voz

ocupa, então, o campo todo de uma entrevista onde ele não mostra nunca os olhos, como a

representação "cega" de "Shirin"; e a voz dele apenas ganha sentido - argumento, emoção - na fala da

intérprete. Uma voz de mulher.

102

Qual foi o critério de escolha das atrizes de "Shirin"?

Não houve critério nem seleção. Apenas disse ao meu produtor que escolhesse as atrizes que

quisesse.

E como apareceu Juliette Binoche, única estrangeira do filme?

Exatamente da mesma maneira. Juliette não estava lá [no Irã] para filmar, estava lá apenas

para me visitar. Tinha chegado na véspera e estava exausta. Quando acordou, eu disse-lhe que havia

uma filmagem a decorrer na cave de minha casa e ela desceu só para dar uma olhadela. E o que era a

filmagem? Apenas três cadeiras numa divisão vazia, uma folha de papel pendurada (sob a lente da

câmara) e eu a dar algumas instruções às atrizes. A Juliette ficou tão desconcertada que disse que

queria também ser filmada. E teve uma reação incrível: sentou-se e começou a chorar, chorar, chorar.

O que aconteceu foi que, quando os seus seis minutos estavam feitos e nós dissemos "corta!",

a Juliette Binoche apenas mudou de cadeira e continuou a chorar. Foi esta também a reação de

muitas outras mulheres. Não paravam de chorar só porque nós dizíamos para pararem. Continuavam

a chorar, o que para mim é a prova de que o filme não é um filme artificial. Não são lágrimas por

encomenda. Um filme artificial é o que se interrompe quando nós pedimos, que pára quando se pára

a representação. Aquelas mulheres não estavam a representar. Só lhes demos uma pista, abrimos-lhes

uma porta e com isso elas regressaram à sua própria verdade.

É por isso que há tanta verdade em "Shirin". Quanto a Juliette Binoche, eu disse-lhe que

estava muito contente por ela participar no filme mas que não podia pagar-lhe, como não pago a

nenhuma das atrizes, mas que não usaria o seu nome. Ela seria apenas mais uma mulher no meio das

outras. É isso que acontece. Este filme mostra a universalidade da feminilidade. Dei a Juliette

Binoche as mesmas instruções que dei às atrizes muçulmanas e vemos que as reações pessoais em

relação ao amor são as mesmas.

Por que a presença dos homens em segundo plano, algo assustadores?

Parecem-lhe assustadores? Tenho que ver outra vez o filme. A única razão pela qual os

coloquei lá é para mostrar que no Irã as mulheres não têm de ir ao cinema separadas dos homens.

Podem sentar-se na mesma sala com eles. Mas todos os atores tiveram as mesmas instruções,

incluindo os homens. Se eles parecem ameaçadores, é porque se sentem ameaçados pelas suas

próprias emoções. Seria interessante verificar isso. Geralmente, os realizadores dizem que o seu

melhor filme é o que acabaram de fazer. Não é esse o meu caso. Eu fiz um filme posterior a "Shirin"

103

e não quero julgá-lo nesses termos. O que posso dizer é que nunca antes nem nunca depois de

"Shirin" tive oportunidade de captar com a minha câmara momentos de tanta verdade e

autenticidade. Foi uma oportunidade que me foi dada uma única vez na minha carreira e não

acontecerá nunca mais.

De onde surgiu a ideia de "Shirin"? Resultou do seu episódio de três minutos para o "Romeu e

Julieta" coletivo?

A ideia é a mesma. Tinha uma ideia para a curta-metragem e a matéria que me

foi dada era de tal maneira complexa e rica que me dei conta de que não cabia lá. A reação do

público foi tão intensa que exigia, pelo menos, uma metragem que pudesse abarcar essa substância.

O que é essa "matéria" em "Shirin"? Os atores ou o impacto no espectador?

É a reação dos atores. Com o filme de três minutos, senti uma grande frustração, desejava ter

pelo menos dez minutos. E quis fazer uma longa-metragem.

De onde surgiu a história?

Pensei estender a ideia dos três minutos com a mesma história. Mas os direitos de adaptação

de "Romeu e Julieta" eram tão caros que eu nunca poderia comprá-los. Percebi que tinha de fazer a

minha própria banda sonora - a história sem imagens contada em som que acompanha as atrizes.

Então decidi olhar para toda a literatura iraniana e para o nosso imaginário literário. E escolhi

Shirin, entre outras heroínas e histórias, pela sua grande modernidade. Remonta ao século XII mas é

a primeira história de um triângulo amoroso cujo centro é uma mulher. Eu queria que a personagem

de Shirin, na sua coragem e ternura, fosse contada por uma mulher. Isto é, a personagem principal e

o narrador ficaram então sendo mulheres. O primeiro público do filme seria por isso feminino. Era

isso que importava para mim. Notei, no início, que os espectadores masculinos tinham reações mais

simples. Apenas olhavam calmamente para o filme, não tinham esta variedade de reações das

mulheres, mesmo na versão de três minutos. E por isso queria principalmente atingir um público

feminino.

Pensou nas mulheres iranianas? De onde vem essa diferença de reações entre mulheres e

homens?

Não tive nenhuma oportunidade de observar outras pessoas no mundo como espectador

como tive para observar pessoas no Irã. Mas a minha impressão é que as mulheres são em geral, não

104

apenas no Irã, mais emocionais, mais complexas e mais belas. São três razões para ter o seu olhar.

Quando o assunto é emocional, relacionado com amor, devoção e afeto, as mulheres reagem mais

intensamente e são mais expressivas do que os homens.

Que emoções procurou em "Shirin"?

Tinha uma câmara pequena, três cadeiras numa sala vazia e uma folha de papel pendurada

sob a objetiva.

As mulheres estavam sentadas em silêncio total, fixando um ponto imaginário no papel.

Apenas pusemos alguns efeitos de luz reproduzindo o que seria o reflexo de uma projeção de um

filme diante delas. E pedi-lhes que pensassem num episódio amoroso, ou de um filme ou de uma

história que fosse muito especial para elas e fizesse apelo a emoções profundas. Temos tantas

histórias diferentes projetadas neste filme quantas as atrizes que são filmadas, cada uma projetando o

seu próprio filme e cada uma delas reagindo a uma história mental que elas são as únicas a conhecer.

A narrativa não existe para lá de cada uma das atrizes?

Diria que este filme é o mais artificial que já fiz, mas também o mais autêntico que já fiz. É o

filme que tem mais verdade. Consegui vê-lo pelo menos 150 vezes, o que não aconteceu com

nenhum dos meus outros filmes. Tenho a impressão de que foi feito por outros e não por mim. A

verdade resulta de estas mulheres mostrarem reações verdadeiras a emoções verdadeiras. Dão a sua

própria verdade ao filme. Foi isso que aconteceu. Em primeiro lugar, colecionei todas estas emoções

verdadeiras de todas estas mulheres e depois decidi fazer todo o processo de uma banda sonora de

filme clássico, com as gravações dos atores, uma banda sonora, os efeitos sonoros, a mistura, tudo o

que é normal. Depois usamos esta banda sonora como modelo. As imagens que tínhamos

funcionavam como peças de um puzzle. Tivemos de ver peça a peça qual é que servia para completar

o puzzle. Foi através deste processo muito artificial que pudemos atingir um nível de verdade que eu

nunca tinha visto antes.

Antes de filmar tinha um argumento para "Shirin"?

Não havia argumento nenhum. Na altura em que filmei as atrizes, ainda não sabia que ia ter

que fazer a minha própria banda sonora. Pensava que ia fazer a história do Romeu e Julieta. Não é

isto que interessa, nem o som que veio depois, que é a narrativa que vem depois. O que interessa é

que as emoções mais íntimas destas mulheres são exibidas nos seus rostos. E essas emoções vêm do

amor. Lembra-me um poema de Hafiz que diz que não há história nenhuma para além da história

105

única que é o amor, que, apesar de ser repetida, não é nunca a mesma. Adorava ter sido corajoso o

suficiente para não pôr som nenhum em "Shirin". Ficaria um filme sem som, apenas com as

emoções dos rostos, porque isso é a verdade da obra.

A verdade do filme é também "Shirin" ser constituído pelo seu próprio público?

É apenas um ciclo. São alguns espectadores silenciosos sendo vistos por outros espectadores.

E, afinal, se houvesse um sistema de filmar os espectadores vendo os primeiros espectadores e

projetá-los noutro filme, isso continuaria sem fim. Não é nada mais do que a representação da

inocência dos espectadores que estão completamente indefesos diante da magia desta luz e desta

imagem, e que entregam completamente as suas emoções e sentimentos nas mãos do que está a

acontecer no filme. Acredito que esta forma de arte que é o cinema é a que de uma maneira mais

poderosa mexe com os espectadores e incorpora as suas emoções. Este filme é um tributo a esse

poder do cinema.

É também um tributo às mulheres? É uma declaração com mais de cem rostos femininos saídos

de um país como o Irã?

Talvez. É uma homenagem. Eu próprio fiquei sensibilizado e surpreendido quando notei a

força enorme da soma destes rostos em sequência e da expressão das suas emoções amorosas. Penso

que o fato de as pôr todas juntas produz o impacto da forma como as mulheres lidam com as suas

dores e alegrias amorosas e as esquecem com menos facilidade do que os homens. É uma lição e um

aviso também aos homens para lembrá-los da forma como as mulheres reagem e conseguem ainda

mergulhar na memória do seu sofrimento e sentimentos. Secretamente, adorava que houvesse uma

indicação de prazo de validade em subtítulo de cada uma destas mulheres para nos dar um sinal:

quão atrás elas vão na sua memória enquanto pensam na sua própria história? Qual é o prazo de

validade do amor? Durante quanto tempo se pode lembrar? O filme é um sinal para os homens, para

que vejam as mulheres ou a sua história amorosa com mais detalhe e cuidado. É um filme de apoio

às mulheres.

Um filme feminista?

De forma alguma. Posso mesmo dizer que não é feminista em nada. Se fosse feminista, não o

teria feito.

Não concordo com nenhum "ismo". A forma como as coisas são mostradas e sugeridas em

"Shirin" seria impossível com qualquer "ismo", incluindo o feminismo. Isto é um alerta mas feito da

106

forma correta, artística e muito indireta. Os "ismos" não funcionam assim, colocam a culpa e a

responsabilidade apenas num lado.

Eu nunca digo neste filme que as mulheres não são responsáveis. É um alerta aos homens

mas também às mulheres. É essa a minha atitude na vida. As pessoas são responsáveis por elas

próprias. Quando não se vê as coisas na sua complexidade, apenas se coloca a culpa nos outros. Essa

não é a minha postura. A minha opinião é que cada um é responsável pelas suas emoções e pela sua

vida.

____________________________________________________________

...

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Sei que as dedicatórias e as

homenagens devem vir à frente do texto acadêmico, também porque este seria o lugar de honra; mas

quis colocar este momento entre mim e você aqui, ao final do trabalho, porque foi onde ele

aconteceu: no final do nosso caminho de trabalho e pesquisa, no final do texto escrito, pois nos

reunimos no dia 17 de outubro de 2011 para fecharmos essa versão, no final da minha caminhada

com você ao meu lado, como amigo, como orientador, como pesquisador, como professor.

Hoje eu revi seus e-mails para finalmente mandá-los para o arquivo, e relê-los foi doloroso, porque o

caminho dessa pesquisa foi belo e sempre discutíamos sobre a importância do guia para o peregrino

e como eu via você no Bab’Aziz. E você se retirou no momento em que tudo estava encaminhado e

como eu me sinto a Ishtar: há alguma relutância em mim de deixar essa morte chegar...

Relutei em entregar esse material porque ele era o laço que me prendeu a você durante tantos anos e

eu sinto tanto a sua falta: com quem agora conversar sobre descobertas tão bonitas? Sobre noites

árabes, poesias persas, desertos cinematográficos em Nacer Khemir, salas de projeção em

Kiarostami; sobre possibilidades de trabalhos e escrita?

O texto ficou como conversamos: cheio de entradas, com desvios e caminhos, porque era assim que

você via o trabalho acadêmico: um espaço para possibilidades, em que o leitor pudesse entrar – e não

como uma vitrine que exclui quem vê de participar da sensação: o ver, o ouvir, o cheirar, o saborear,

o tocar... e as reticências, como as sombras para que seja buscada a luz. E sempre me estimulou a

deixar as entradas, seja com dois-pontos, seja com reticências... e por isso, agora é possível conversar

com muitos sobre as ideias pesquisadas: o caminho da pesquisa na pesquisa.

Milton, querido, despeço-me de você e agradeço pelo convite de pesquisarmos juntos sobre jardins

tão belos, como foram esses jardins cheios de encantamentos por onde passeamos pelo

conhecimento. Como orientanda sinto um imenso orgulho de ter crescido, aprendido e trabalhado

com você.

Obrigada por esse universo maravilhoso que foi conhecer a pesquisa com você. Muita

saudade, querido amigo e companheiro de letras.

108

109

REFERÊNCIAS

Bibliografia

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