“isto faz um bem” os alimentos industrializados e o ... · novidade de um alimento moderno,...

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1 “Isto faz um bem”... os alimentos industrializados e o american way of life no Brasil de 1950 Júlia Pedrollo Albertoni A pesquisa a ser apresentada investiga em propagandas de alimentos industriais no Brasil durante a década de 1950 aspectos da cultura alimentar que constitui o estilo de vida denominado american way. Utiliza-se como fonte principal propagandas da versão brasileira da revista Reader’s Digest cuja trajetória está relacionada com a política externa dos Estados Unidos no Brasil e no mundo, além de ser uma das revistas mais consumidas pelos brasileiros no período. Portanto, a análise é feita na perspectiva de relações culturais internacionais entre os países. Nas propagandas, o american way of life é representado por elementos que constituem uma cultura alimentar engendrada na modernidade e seus desdobramentos no contexto pós- guerra. Amparando-se em discursos cientificistas, paradigmas nutricionais e hábitos ditos “modernos”, reforça o potencial dos alimentos industriais para a saúde do s leitores. As estratégias publicitárias buscavam mostrar alimentos processados, muitas vezes sintéticos, como “verdadeiros” e com amplo “valor nutricional”. Percebe-se, portanto, nesse tipo de retórica a difusão de um novo paradigma de alimentação, baseado na confiança na indústria alimentícia e farmacêutica o cuidado com os corpos. O total de revistas Seleções do Reader’s Digest que fizeram parte da pesquisa foram 108, de janeiro de 1950 a dezembro de 1959, e as propagandas de alimentos somaram 550 anúncios, divididos entre latas, garrafas e caixas. Palavras-chave: american way of life; cultura alimentar industrial; nutricionismo; relações culturas internacionais; história da ciência; Financiamento: CAPES O esforço dessa investigação foi no sentido de encontrar vestígios que pudessem ajudar na reflexão e historicidade sobre a transformação dos hábitos alimentares na escala da industrialização. A procura dos indícios para elaboração das hipóteses se deu no contexto brasileiro, dada a escassez de historiografia sobre o tema 1 . Para tanto, os anos de 1950 foram escolhidos como pano de fundo, não por 1 O historiador Henrique Carneiro ao elaborar um panorâma das balizas historiográficas nacionais e internacionais sobre alimentação aponta sobre a limitação da bibliografia disponível para os latinos

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Page 1: “Isto faz um bem” os alimentos industrializados e o ... · novidade de um alimento moderno, como nos esclarece Antonio Pedro Tota ao propor que o imperialismo dos Estados Unidos,

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“Isto faz um bem”... os alimentos industrializados e o american way of life no Brasil

de 1950

Júlia Pedrollo Albertoni

A pesquisa a ser apresentada investiga em propagandas de alimentos industriais no

Brasil durante a década de 1950 aspectos da cultura alimentar que constitui o estilo

de vida denominado american way. Utiliza-se como fonte principal propagandas da

versão brasileira da revista Reader’s Digest cuja trajetória está relacionada com a

política externa dos Estados Unidos no Brasil e no mundo, além de ser uma das

revistas mais consumidas pelos brasileiros no período. Portanto, a análise é feita na

perspectiva de relações culturais internacionais entre os países. Nas propagandas, o

american way of life é representado por elementos que constituem uma cultura

alimentar engendrada na modernidade e seus desdobramentos no contexto pós-

guerra. Amparando-se em discursos cientificistas, paradigmas nutricionais e hábitos

ditos “modernos”, reforça o potencial dos alimentos industriais para a saúde dos

leitores. As estratégias publicitárias buscavam mostrar alimentos processados,

muitas vezes sintéticos, como “verdadeiros” e com amplo “valor nutricional”.

Percebe-se, portanto, nesse tipo de retórica a difusão de um novo paradigma de

alimentação, baseado na confiança na indústria alimentícia e farmacêutica o cuidado

com os corpos. O total de revistas Seleções do Reader’s Digest que fizeram parte da

pesquisa foram 108, de janeiro de 1950 a dezembro de 1959, e as propagandas de

alimentos somaram 550 anúncios, divididos entre latas, garrafas e caixas.

Palavras-chave: american way of life; cultura alimentar industrial; nutricionismo;

relações culturas internacionais; história da ciência; Financiamento: CAPES

O esforço dessa investigação foi no sentido de encontrar vestígios que

pudessem ajudar na reflexão e historicidade sobre a transformação dos hábitos

alimentares na escala da industrialização. A procura dos indícios para elaboração

das hipóteses se deu no contexto brasileiro, dada a escassez de historiografia sobre

o tema1. Para tanto, os anos de 1950 foram escolhidos como pano de fundo, não por

1 O historiador Henrique Carneiro ao elaborar um panorâma das balizas historiográficas nacionais e

internacionais sobre alimentação aponta sobre a limitação da bibliografia disponível para os latinos

Page 2: “Isto faz um bem” os alimentos industrializados e o ... · novidade de um alimento moderno, como nos esclarece Antonio Pedro Tota ao propor que o imperialismo dos Estados Unidos,

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apontarem período de maior industrialização do país, mas por parecer ser um dos

estágios expressivos para o processo de difusão de um estilo de vida moderno que

incluía a cultura alimentar industrial como um de seus sustentáculos e que emergia

após inovações tecnológicas da Segunda Guerra Mundial.

O estilo de vida que chega no Brasil como referência de modernidade,

sofisticação e progresso ficou conhecido como american way of life2. Suas

influências criaram um terreno fértil no país desde o começo do século XX,

envolvendo o cinema de Hollywood, como criações da Disney, os utensílios

domésticos, fabricados por empresas como a geladeira da General Eletrics, as

revistas, como Seleções do Reader’s Digest, os refrigerantes, como Coca-Cola,

entre uma série de produtos culturais e bens de consumo.

É esse estilo de vida que esta pesquisa enfoca, buscando as particularidades

da cultura alimentar industrial do mesmo ao ser divulgada no contexto brasileiro. A

fonte de análise escolhida foi a versão brasileira da revista norte-americana

Reader’s Digest3, publicada no Brasil pela primeira vez em 1942 a pedidos do

governo norteamericano4, fato que trouxe uma primeira reflexão metodológica para a

pesquisa. Historiadores como Gerson Moura, Antonio Niño, Mary Anne Junqueira,

nesta área, a carência de estudos sobre alimentação regional brasileira e sobre os processos

contemporâneos de globalização e industrialização. Ver em: CARNEIRO, Henrique. Comida e

Sociedade, uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003, pág. 156 e 164. 2 Aborda-se o american way of life no contexto pós-guerra, quando a narrativa da vitória dos Estados

Unidos na Segunda Guerra Mundial e as tecnologias proporcionadas pela indústria de guerra

proporcionaram novos paradigmas de consumo e expectativas de modernidade. Acredita-se que os

estilos de vida que surgem da nova dinâmica das instituições da modernidade ocidentais se

referenciavam fundamentalmente pelo estilo de vida americano, visto a expansão da zona de

influência norteamericana no jogo de poderes mundial, turning point do século XX. 3 Criada em 1922 no oeste dos Estados Unidos, tornou-se um sucesso pois possibilitava a leitura de

diversos artigos originais condensados com uma linha editorial feita de pautas de um mundo

moderno, civilizado, tecnológico e científico. No final da década de 1930 foi publicado em dezenas de

países. Ver em: JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao Sul do Rio Grande. Imaginando a América Latina em

Seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista: EDUSF, 2000. 4 Na onda da política de boa vizinhança em 16 de agosto de 1940 o governo estadunidense criou o

Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), chefiado por Nelson Rockefeller, órgão

com objetivo de mobilizar as relações culturais entre os países latinos e os Estados Unidos. Os

escritórios do sistema da OCIAA foram distribuidos por várias cidades do Brasil e trabalharam com

três dimensões interligadas: informação, saúde e alimentação. Ver em: MOURA, Gerson. Tio Sam

chega ao Brasil. A penetração cultural americana. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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Antonio Pedro Tota, entre outros, nos mostram que a difusão do american way of life

não foi espontânea. Nas décadas de 1930, 1940 e 1950 em um contexto de

ideologias fascistas, comunistas e liberais, a dimensão cultural foi concebida como

elemento essencial para o triunfo de projetos políticos. Através do cinema, rádio,

televisão, revistas, jornais, entre outros meios de comunicação e também bens de

consumo, perspectivas de mundo, estilos de vida e ideias circularam entre os países

no que foi cunhado como diplomacia cultural5. Os produtos alimentícios fizeram parte

da dimensão material dessas circulações, com o objetivo político de abertura de

mercados e o ideológico de triunfo do capital6.

A cultura alimentar é entendida nesse contexto como agente comunicador

nas relações interculturais entre os países. Compartilhando do pensamento do

historiador Massimo Montanari, o alimento constitui “um extraordinário veículo de

autorepresentação e de comunicação: não é apenas um instrumento de identidade

cultural, mas talvez seja o primeiro modo de entrar em contato com culturas

diversas”7. Foi necessário para a análise perceber os produtos alimentícios, na

materialidade de seus rótulos e embalagens, condutores de um universo simbólico

que atravessou continentes. Transportaram consigo a dimensão sedutora da

novidade de um alimento moderno, como nos esclarece Antonio Pedro Tota ao

propor que o imperialismo dos Estados Unidos, demasiadamente cultural ao longo

do século XX, tratava-se de um imperialismo sedutor8, pois deu fôlego para

5 No contexto do século XX o intercâmbio cultural passou a habitar o arcabouço das cooperações de paz, facilitando o entendimento subjetivo das nações. O país pioneiro em institucionalizar as políticas culturais nas políticas estatais foi a França, seguida, na primeira metade do século XX, pela URSS, Grã-Bretanha, Alemanha, Itália, Estados Unidos e Canadá. Estes estados criaram diferentes órgãos e estratégias de políticas culturais. Ver em: RIBEIRO, Edgar Telles. Diplomacia Cultural. O seu papel na política externa brasileira. Brasília: Fund Alexandre de Guzmão, 2011, pág. 67-106. 6 Um exemplo claro do objetivo de ampliação de mercados é o fato de que as versões de Reader's

Digest em português e espanhol desde a origem imprimem propagandas em suas tiragens, o que não

acontece na versão estadunidense. Ver em: JUNQUEIRA, Mary Anne. Op. cit, pág. 35. 7 MONTANARI, Massimo. O Mundo na Cozinha. História, identidade, trocas. São Paulo: Senac, 2009,

pág. 11. 8 TOTA, Antonio Pedro. O Imperialismo Sedutor A americanização do Brasil na época da Segunda

Guerra. Companhia das Letras: São Paulo, 2000.

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assimilações e modificações por parte dos receptores dos produtos culturais

envolvidos9.

Além disso, o arcabouço de políticas culturais da primeira metade do século

XX encontrou em seu próprio curso histórico um poderoso aliado, a mídia de

massas. A publicidade realizou um papel significativo como mediadora entre os

gostos, hábitos e costumes dos indivíduos e a realidade industrial que se instaurava.

O efeito das propagandas na criação dos significados sociais, enquanto

representações, criou o elo entre o produto e os gostos humanos, que só os modos

de produção talvez não dessem conta10. O objetivo da pesquisa se debruça então

sobre propagandas de Seleções do Reader’s Digest, a fim de encontrar elementos

simbólicos que esclareçam as estratégias de difusão da cultura alimentar moderna

tendo como referência o american way of life11. Vale destacar que o Instituto

Brasileiro de Opinião e Estatística (IPOBE) constatou em 1950 que a revista era

considerada a mais útil e confiável do país: “(...) a estimativa era de que cada

exemplar de Seleções fosse lido por quatro pessoas em média. A revista foi, durante

os anos 50, a revista mais lida do Brasil, logo atrás de O Cruzeiro (...)” 12.

O total de revistas que fizeram parte da pesquisa foram 108, de janeiro de

1950 a dezembro de 1959, e as propagandas de alimentos analisados somaram 550

9 Compartilhamos também da perspectiva imperialismo informal e imperialismo de mercado nas

relações estabelecidas entre Brasil e Estados Unidos. O business americano buscava domínio

pacífico através do livre mercado e integração econômica, conjurando uma “democracia” dos

negócios. Com ajuda do governo, zonas de contato eram criadas a fim de estabelecer brandings

conhecidos em “íntima familiaridade com o estilo de vida americano”. Ver em: PURCELL, Fernando.

Una Mercancia Irresistible. El cine norteamericano y su impacto en Chile, 1910-1930. Historia Critica

38, Bogotá, maio -ago, 2009, pp. 46-68. 10 “Lévi-Strauss defende que a comida é “boa para pensar” e, consequentemente, “boa para comer”

na medida em que os alimentos devem ser primeiro considerados comestíveis por nossa mente,

aceito pelos significados sociais e depois digeridos por nosso organismo. Primeiro pensamos e, se

aptos para nosso espírito, comemos.” Ver em: CONTRERAS, Jesús & GRACIA, Mabel. Alimentação,

Sociedade e Cultura. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011, pág. 56. 11 O estilo de vida moderno foi uma ideia que os publicitários ajudaram a inventar e a promover em

todas as áreas da cultura material, quando o consumo de massa passou a ser considerado a grande

força democrática. Ver em: DRUCKER, Johanna; MCVARISH, Emily. Graphic design history: a critical

guide. New Jersey: Pearson Education, 2009, pág. 215. 12 JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao Sul do Rio Grande. Imaginando a América Latina em Seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista: EDUSF, 2000, pág. 49.

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anúncios13. Traremos aqui apenas nove destes, e citaremos diversos slogans,

ambos escolhidos por serem aspectos relevantes para a pesquisa e resumirem

padrões repetidos nas revistas. Os discursos dos anúncios, elaborados por imagens

ou textos escritos, foram considerados sob a ótica de que não são em si verdadeiros

nem falsos, mas produtores de efeitos14. Possibilitam, se analisados de dentro para

fora, o acesso às visões e verdades que a sociedade incorporava e aceitava como

verdadeiro em suas experiências.

Assim, o ponto de inflexão que grande parte das estratégias publicitárias

ilumina sobre a cultura alimentar industrial é aquele relacionado à saúde. Sabemos

que ao estudar história da alimentação, estamos lado a lado com a história dos

corpos, da saúde, das práticas médicas e da nutrição. O marketing da indústria

alimentícia se tornou ao longo do século passado uma das potentes influências nas

escolhas dos comedores-consumidores15 sobre aquilo que colocam dentro de seus

corpos. No geral, a orientação de que os alimentos industriais fariam um bem para

os comedores é ativa nos discursos publicitários. Breves exemplos são: “Isso Faz

um Bem” (Figura 1, Dezembro de 1954), “Os Bebes que tomam Leite Golden State

transpiram saúde!” (Figura 3, Janeiro de 1951), “Ovomaltine, é tão saboroso quanto

nutritivo” (Figura 8, Agosto de 1955), “Toddy é uma fonte de saúde” (Figura 2, Abril

de 1955). No entanto, em que limite isso se desdobra?

A marca Toddy, produtora de achocolatados, soma um total de 59 anúncios

estampados em Seleções que, no decorrer da década de 1950, recorria à slogans

como: “Uma lata de Toddy em casa é uma fonte permanente de saúde e prazer”

(Agosto de 1954), “as mães modernas fazem de Toddy o complemento da

alimentação infantil” (Dezembro de 1954), “tudo o que as crianças precisam para

purificar o sangue, aumentar o pêso, fortalecer o cérebro, os nervos, os dentes e

13 Todas as revistas Seleções do Reader's Digest utilizadas para a pesquisa estão localizadas no

Museu Regional do Livro da Biblioteca, Acervo UNIVATES, em Lajeado no Rio Grande do Sul. 14 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996, pág. 08. 15Expressão utilizada para denominar o fenômeno dos comedores enquanto consumidores no

Ocidente, que, nunca na história, tiveram acesso a tamanha diversidade alimentar. Ver em:

POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da Alimentação.: os comedores e o espaço social alimentar.

Florianópolis: Edufsc, 2013, pág. 48.

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aumentar a resistência física contra as doenças” (Fevereiro de 1957), e, o mais

reproduzido de suas campanhas: “Toddy é o protetor e amigo das crianças em todo

o mundo, durante gerações”. Vemos na Figura 2 um dos anúncios que compõem

uma campanha da marca baseada em estórias comoventes sobre jovens que

consumiam Toddy. A narrativa “Esta é minha filha” da propaganda, fala sobre o

momento “emocionante” que a personagem, uma menina ilustrada com feições

felizes, recebe seu “diploma”, devido ao “cuidado com a alimentação – diáriamente

complementada com Toddy”, o “fator decisivo” que fez a “filha” manter “a boa

disposição para os estudos”.

Parece-nos, com esse exemplo, que há um esforço em transferir para a

mercadoria – achocolatado Toddy - a capacidade de transformar não somente o

corpo das crianças, “purificar o sangue, aumentar o pêso…”, mas modificar a vida

das mesmas. Sem o achocolatado Toddy, não há “proteção”, “cuidado”, “disposição”

nem mesmo a habilidade para conquistar um diploma educacional. Todas essas

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qualidades seriam encontradas no bem de consumo, e não necessariamente nas

pessoas ou nas relações entre pais e filhos. Transpõem-se para o produto a

possibilidade de prazer, saúde, proteção e confiança. Com esse discurso as

mercadorias poderiam se tornar agentes necessários, se não fundamentais, para a

existência dos consumidores - a pedra filosofal do american way of life.

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Mas iremos além. Retomemos a ideia de “purificar o sangue”. Parece

estranho que um achocolatado, elaborado basicamente na época com cacau,

açúcar, leite em pó, farinhas maltadas e/ou cereais e estabilizantes, pudesse ter a

capacidade de “purificar” corpos. Talvez nos informe sobre a relação entre alimento,

saúde e doença. Contudo, o elemento “pureza” surge recorrentemente nas

propagandas analisadas, além do achocolatado. A marca Coca-Cola repetidamente

imprimia: “Coca-Cola Pura e Saudável a Qualquer Hora” (Agosto de 1956), “Coca-

Cola uma fonte cristalina de pureza” (Julho de 1953), “Seu Esporte Favorito e a

pureza de Coca-Cola” (Outubro de 1956). Outras propagandas igualmente insistiam:

“Prefira na alimentação do seu garoto açúcar União que é duplamente filtrado,

alvíssimo (...)” (Figura 4, Novembro de 1954) “Ninho é leite puro e integral” (Figura 3,

Abril de 1959), “Margarina Saúde preparada com leite pasteurizado e matéria-prima

vegetal puríssima (...)” (Agosto de 1955), “É com o puríssimo leite Moça que se faz o

mais gostoso sorvete” (Figura 5, Maio de 1956), “Nescafé é café 100% puro” (Abril

de 1954), entre outros. Diferentes gêneros de produtos alimentícios - leite,

margarina, café, refrigerante e achocolatado - alegavam ser puros para consumo. O

que isso significaria? Pode-se pensar que se cria uma imagem de confiança entre os

corpos que mastigariam ou beberiam a comida e os complexos fabris nos quais esta

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passou. Conseguimos ver “pureza”, então, emergindo como valor que convence ou

reforça aos leitores sobre a eficiência higiênica da indústria.

Ainda, o ideal de pureza nos leva a outra dimensão de significado. Remete

também ao estado natural, original, “verdadeiro”, dos ingredientes que constituem o

alimento processado. Muitas das propagandas esboçam a ligação entre a comida já

industrializada e seus ingredientes in natura. Para citar apenas dois exemplos:

“Goiabada marca peixe, o mesmo gostinho da goiaba madura!” (Agosto de 1952) e

“Ninho é leite sempre fresco” pois “é como se fôsse diretamente da ordenha para à

sua casa” (Figura 3, Abril de 1959). Talvez esse convencimento fosse necessário no

contexto em que a maior parte da população brasileira era rural, e logo, alimentava-

se diretamente do que colhia da terra. Se pureza poderia significar um alimento

engenhosamente higiênico pela ciência industrial, o paradoxo é que também poderia

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significar natural16. E o elemento chave que faz entendermos melhor este paradoxo é

encontrado nos nutrientes e onde eles nos levam.

Uma grande quantidade de propagandas de Seleções aponta: “Ninho é mais

indicado para toda a família porque contêm todas as vitaminas, gorduras, cálcio e

sais minerais (...) (Figura 3, Abril de 1959), “Milo contém: leite, açúcar, cereais

maltados, vitaminas A, B2 e D, fósforo, magnésio e ferro em forma orgânica (...)”

(Julho de 1954), “Extrato de Tomate Marca Peixe fonte de vitaminas A, B, C e G”

(Novembro de 1952), “As crianças adoram aveia Quaker, é tão nutritiva...cheinha de

vitaminas”, (Abril de 1955), “Preparado Instantâneo VitAvena, contém vitamina b12”

(Junho de 1959), “Gelatina Royal - o único que contém Vitamina C” (Abril de 1959).

A ênfase nos nutrientes como compostos adicionados aos alimentos industriais no

discurso publicitário nos leva a compreender que há uma realidade oculta dos

alimentos que apenas termos científicos poderiam desvendar. A ligação entre

ciência, alimentação e indústria fica evidente, parecendo que a comida, para ser

confiável, precisa ser, além de pura e saudável, científica. Esse é um ponto chave

pois indica ser um novo conhecimento emergente para os comedores-consumidores.

Talvez não seria mais necessário se orientar em relação ao que comer pela cultura,

pela história ou pela natureza, mas pela soma dos nutrientes que constituíam o

alimento. Este reducionismo científico foi cunhado por historiadores, nutricionistas e

sociólogos como fenômeno do nutricionismo17.

A ideia de que comer carboidratos, sais minerais, vitaminas, proteínas e

gorduras seria mais importante do que comer simplesmente comida não parece uma

abstração científica no imaginário do leitor brasileiro nos anos de 1950? Veremos. O

produto Ovomaltine, anúncio da Figura 8, é representado como a solução para mães

preocupadas, através de uma narrativa na qual a criança está irritada ao dormir pois

16 MINTZ, Sidney. Tasting food, tasting freedom. Boston: Beacon Press, 1996, pág 87. 17 O termo foi cunhado pelo sociólogo Gyorgy Scrins, debatido pelo historiador Harvey Levenstein e pela nutricionista Marion Nestle, todos citados e aprofundados pelo jornalista investigativo Michael Pollan no livro “Em Defesa da Comida”. Ver em: POLLAN, Michael. Em Defesa da Comida: um manifesto. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008; LEVEINSTIEN, Harvey. Paradox of Plenty. A Social History of Eating in Modern America. NY: Oxford University Press, 1993. SCRINS, Gyorgy. Nutritionism, the science and politics of dietary advice. NY: Columbia University Press, 2013. NESTLE, Marion. Food Politics. LA: University of California Press, 2013.

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a falta “no organismo proteínas ou vitaminas, cálcio ou ferro, fosfatos ou

carboidratos – substâncias que todas as crianças necessitam várias vezes mais do

que um adulto”, assim “todos esses ricos elementos nutritivos naturais podem ser

ministrados, em forma concentrado, ao seu filho associando a saborosa Ovomaltine

ao trivial de suas refeições”. O consumo de Ovomaltine, no entanto, era legitimado

no anúncio pelo “Dr. Francisco Bendetti” desenhado no canto da página com sua

recomendação: utiliza o produto na sua clínica e nos sanatórios Correas “como

preciosa coadjuvante na recuperação dos nossos pacientes”. Assim como outros

alimentos, a exemplo Milo da marca Nestlé, um “alimento concentrado” com

vitaminas, cereais, sais minerais, alguns produtos estavam no mesmo curso

daqueles da indústria farmacêutica.

E não apenas médicos aconselhavam alimentos industrializados para a saúde

dos consumidores, mas igualmente nutricionistas, como é o caso das propagandas

das salsichas, presuntos e carnes enlatadas da Companhia Swift do Brasil. Na

Figura 5 a nutricionista chef da Companhia, Regina de Moraes, complementa o

slogan do anúncio “A Garotada Adora” com a frase “- E são ótimas para eles”. Dessa

forma, os leitores não precisariam necessariamente compreender os termos

abstratos científicos das comidas industrializadas, a existência dos mesmos ali,

muitas vezes acompanhados de orientações profissionais, seriam o bastante para

legitimar que a ciência era mais inteligente sobre o que comer.

Além disso, o próprio marketing publicitário era um meio legitimador. A

propaganda da Margarina Saúde (Figura 7) é um exemplo muito claro da agência

que a linguagem publicitária realizava para a ideia de que fazia bem comer

cientificamente. A ilustração do anúncio representa de forma lúdica e educativa o

conteúdo do produto como a soma dos ingredientes “leite pasteurizado – para sua

proteção”, “gordura vegetal para tornar mais saudável e facilitar a sua digestão” e

“vitamina A - para maior riqueza alimentícia”. Ainda, os recipientes que despejam o

conteúdo da margarina “incomparávelmente mais nutritiva” se assemelham a frascos

químicos, representando o processo engenhoso e científico da indústria alimentícia

em ascensão.

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Mas será que tudo isso – a pureza, a higiene, o ideal de saúde através do

industrial e o alimento científico – são valores inventados e difundidos

exclusivamente pelo american way of life? É importante entender o problema para a

administração federal estadunidense desenvolver a noção de uma cultura oficial

nacional que pudesse ser exportada para outros países. O american way emergiu

como contraponto às exportações culturais “de prestígio” francesas, inglesas e

alemães18, uma solução que promoveria não um só produto cultural, mas um modo

de vida, baseado nas conquistas tecnológicas, bem estar e valores democráticos.

Ou seja, uma invenção estatal sobre a própria nação estadunidense, não sendo, nos

anos de 1950, homogênea lá, tampouco aqui.

Há alguns elementos que historiadores norteamericanos como Laura Shapiro

e Heaven Leveinsetein nos mostram como característicos do seu país, como a

ênfase na higiene e na boa saúde enquanto valores mais nobres do que o prazer da

comida e que remontam as raízes puritanas da população19, que devemos

considerar. Contudo, a chave de leitura do nutricionismo nos sugere que, para além

18 NIÑO, Antônio. Op. cit, pág. 42. 19 POLLAN, Michael. Op. Cit, pág. 66 e 67.

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do american way of life, existia um paradigma científico como pano de fundo que

proporcionou seu desenvolvimento e sua aceitação em outros territórios. A medicina

moderna, análoga a da nutrição, nos insinua a existência de um paradigma

mecanicista, que, em especial no início do século XX, buscava nos “agentes

microbiológicos, distúrbios metabólicos, deficiência ou aumento de hormônios,

enzimas e vitaminas”20 causas específicas de uma interpretação mecânica do mundo

físico.

O corpo humano emergiu nesse paradigma como uma máquina possível de

ser reparada pela intervenção de uma medicina que detinha “o conhecimento das

leis que operam a máquina”, ou, no limite, pelos alimentos processados por

máquinas e enriquecidos com tecnologias científicas (como as vitaminas) e

legitimados por esse conhecimento. O que nos lança luz sobre a relação entre os

alimentos, a saúde e a doença: a interpretação mecânica dos corpos diz respeito a

produção mecânica da comida processada. Os debates sobre biopolítica do poder21

podem colaborar para ampliar essa perspectiva, já que, como visto, os comedores-

consumidores eram estimulados nos anúncios a “entregar” o cuidado de seus corpos

para agentes externos (marketing, médicos, nutricionistas, indústria e mercado). Os

alimentos industrializados estariam, assim, na “pele simbólica” dos corpos, no

sentido de que o senso de identidade pessoal vai muito além dos limites da pele22.

Podemos considerar o paradigma mecanicista um dos discursos que

compõem o “regime de verdade” em curso do ocidente, ou seja, um tipo de discurso

acolhido e que funciona como política para desvendar o que é verdadeiro do que é

falso23. O ideal de pureza dos alimentos nos indica isso. Enquanto higiene, o puro

aproxima-se da racionalidade científica mecanicista no sentido de combater a

presença de agentes patológicos, como as bactérias24. Também considera que o

20 QUEIROZ, Marcos S. Saúde e doença: um enfoque antropológico. Bauru: EDUSC, 2003, pág. 54. 21 FOCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979). São

Paulo: Martins Fontes, 2008. 22 HELMAN, Cecil G. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artmed, 2009, pág 31. 23 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. 24 O processo de pasteurização é um bom exemplo da relação entre higiene, indústria e combate à

doenças. Em 1864 Louis Pasteur descobriu a contaminação bacteriana dos alimentos e inventou a

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universo mecânico é mais higiênico do que a lógica de produção caseira e manual.

Num segundo momento, a pureza, buscando manter o estatuto in natura de uma

comida que já não é mais, “uma fonte cristalina de pureza” como nos informa a

propaganda de Coca-Cola, expressa sobre o mundo natural, mas também comunica

sobre a mecanização deste. A ciência do nutricionismo, enquanto parte do regime

de verdade, produz o efeito de percepção do que é o alimento verdadeiro para

comer, no caso, o “purificado” pelas máquinas. Vale destacar que não estamos

falando apenas de máquinas, mas de uma interpretação mecânica do mundo que

modifica a percepção biológica da vida. Para a comida, falar de uma cultura

mecânica afeta completamente sua produção, distribuição e consumo, já que a

mesma em sua essência segue uma lógica natural: numa ponta a vida da terra e na

outra o organismo humano.

O elo da alimentação industrializada com o american way of life, parece-nos

importante dada a necessidade de ampliar mercados e fortalecer as relações do

capital, sugerindo que comida era um negócio lucrativo demais e o uso do saber

científico enquanto paradigma mecanicista se encaixava, portanto, perfeitamente

nesse processo. Por fim, não estamos concluindo que as propagandas de Seleções

proporcionaram a difusão da comida industrializada para a cultura alimentar de toda

a população brasileira da década de 1950. Sabemos que o acesso a leitura, e à

própria revista deveria ser limitado num contexto brasileiro agrário e ainda

analfabeto. Há também muitas apropriações, resistências e cruzamentos em relação

a cultura industrial que se ramificava e as diversas culturas regionais brasileiras.

Mas, considerando a importância da revista - a segunda mais lida no período - e a

circulação de ideias entre as camadas sociais, podemos dar relevância a essas

propagandas como agentes que colaboraram para formação de imaginários. Estes

técnica, que consiste na esterilização de micro-organismos, mudando a estrutura física e bioquímica

do alimento. As medidas higiênicas da pasteurização, especialmente das bebidas lácteas, tornaram-

se obrigatórias dadas as técnicas de manejo dos animais e armazenamento dos produtos nas

metrópoles do século XIX. Nesses ambientes a transmissão de doenças como a tuberculose e a

febre tifoide era comum. No entanto, o processo de pasteurização desconsidera a existência de

culturas vivas e da relação saudável do universo microbiano e acaba matando vários micróbios

necessários para um bom funcionamento do organismo humano. Ver em: POLLAN, Michael.

Cozinhar - Uma História Natural da Transformação. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, pág. 320-321-

322-323.

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materializados, então, na transformação das experiências alimentares e no

significado individual e coletivo do que faz um bem.

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