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“Isto faz um bem”... os alimentos industrializados e o american way of life no Brasil
de 1950
Júlia Pedrollo Albertoni
A pesquisa a ser apresentada investiga em propagandas de alimentos industriais no
Brasil durante a década de 1950 aspectos da cultura alimentar que constitui o estilo
de vida denominado american way. Utiliza-se como fonte principal propagandas da
versão brasileira da revista Reader’s Digest cuja trajetória está relacionada com a
política externa dos Estados Unidos no Brasil e no mundo, além de ser uma das
revistas mais consumidas pelos brasileiros no período. Portanto, a análise é feita na
perspectiva de relações culturais internacionais entre os países. Nas propagandas, o
american way of life é representado por elementos que constituem uma cultura
alimentar engendrada na modernidade e seus desdobramentos no contexto pós-
guerra. Amparando-se em discursos cientificistas, paradigmas nutricionais e hábitos
ditos “modernos”, reforça o potencial dos alimentos industriais para a saúde dos
leitores. As estratégias publicitárias buscavam mostrar alimentos processados,
muitas vezes sintéticos, como “verdadeiros” e com amplo “valor nutricional”.
Percebe-se, portanto, nesse tipo de retórica a difusão de um novo paradigma de
alimentação, baseado na confiança na indústria alimentícia e farmacêutica o cuidado
com os corpos. O total de revistas Seleções do Reader’s Digest que fizeram parte da
pesquisa foram 108, de janeiro de 1950 a dezembro de 1959, e as propagandas de
alimentos somaram 550 anúncios, divididos entre latas, garrafas e caixas.
Palavras-chave: american way of life; cultura alimentar industrial; nutricionismo;
relações culturas internacionais; história da ciência; Financiamento: CAPES
O esforço dessa investigação foi no sentido de encontrar vestígios que
pudessem ajudar na reflexão e historicidade sobre a transformação dos hábitos
alimentares na escala da industrialização. A procura dos indícios para elaboração
das hipóteses se deu no contexto brasileiro, dada a escassez de historiografia sobre
o tema1. Para tanto, os anos de 1950 foram escolhidos como pano de fundo, não por
1 O historiador Henrique Carneiro ao elaborar um panorâma das balizas historiográficas nacionais e
internacionais sobre alimentação aponta sobre a limitação da bibliografia disponível para os latinos
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apontarem período de maior industrialização do país, mas por parecer ser um dos
estágios expressivos para o processo de difusão de um estilo de vida moderno que
incluía a cultura alimentar industrial como um de seus sustentáculos e que emergia
após inovações tecnológicas da Segunda Guerra Mundial.
O estilo de vida que chega no Brasil como referência de modernidade,
sofisticação e progresso ficou conhecido como american way of life2. Suas
influências criaram um terreno fértil no país desde o começo do século XX,
envolvendo o cinema de Hollywood, como criações da Disney, os utensílios
domésticos, fabricados por empresas como a geladeira da General Eletrics, as
revistas, como Seleções do Reader’s Digest, os refrigerantes, como Coca-Cola,
entre uma série de produtos culturais e bens de consumo.
É esse estilo de vida que esta pesquisa enfoca, buscando as particularidades
da cultura alimentar industrial do mesmo ao ser divulgada no contexto brasileiro. A
fonte de análise escolhida foi a versão brasileira da revista norte-americana
Reader’s Digest3, publicada no Brasil pela primeira vez em 1942 a pedidos do
governo norteamericano4, fato que trouxe uma primeira reflexão metodológica para a
pesquisa. Historiadores como Gerson Moura, Antonio Niño, Mary Anne Junqueira,
nesta área, a carência de estudos sobre alimentação regional brasileira e sobre os processos
contemporâneos de globalização e industrialização. Ver em: CARNEIRO, Henrique. Comida e
Sociedade, uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003, pág. 156 e 164. 2 Aborda-se o american way of life no contexto pós-guerra, quando a narrativa da vitória dos Estados
Unidos na Segunda Guerra Mundial e as tecnologias proporcionadas pela indústria de guerra
proporcionaram novos paradigmas de consumo e expectativas de modernidade. Acredita-se que os
estilos de vida que surgem da nova dinâmica das instituições da modernidade ocidentais se
referenciavam fundamentalmente pelo estilo de vida americano, visto a expansão da zona de
influência norteamericana no jogo de poderes mundial, turning point do século XX. 3 Criada em 1922 no oeste dos Estados Unidos, tornou-se um sucesso pois possibilitava a leitura de
diversos artigos originais condensados com uma linha editorial feita de pautas de um mundo
moderno, civilizado, tecnológico e científico. No final da década de 1930 foi publicado em dezenas de
países. Ver em: JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao Sul do Rio Grande. Imaginando a América Latina em
Seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista: EDUSF, 2000. 4 Na onda da política de boa vizinhança em 16 de agosto de 1940 o governo estadunidense criou o
Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), chefiado por Nelson Rockefeller, órgão
com objetivo de mobilizar as relações culturais entre os países latinos e os Estados Unidos. Os
escritórios do sistema da OCIAA foram distribuidos por várias cidades do Brasil e trabalharam com
três dimensões interligadas: informação, saúde e alimentação. Ver em: MOURA, Gerson. Tio Sam
chega ao Brasil. A penetração cultural americana. São Paulo: Brasiliense, 1984.
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Antonio Pedro Tota, entre outros, nos mostram que a difusão do american way of life
não foi espontânea. Nas décadas de 1930, 1940 e 1950 em um contexto de
ideologias fascistas, comunistas e liberais, a dimensão cultural foi concebida como
elemento essencial para o triunfo de projetos políticos. Através do cinema, rádio,
televisão, revistas, jornais, entre outros meios de comunicação e também bens de
consumo, perspectivas de mundo, estilos de vida e ideias circularam entre os países
no que foi cunhado como diplomacia cultural5. Os produtos alimentícios fizeram parte
da dimensão material dessas circulações, com o objetivo político de abertura de
mercados e o ideológico de triunfo do capital6.
A cultura alimentar é entendida nesse contexto como agente comunicador
nas relações interculturais entre os países. Compartilhando do pensamento do
historiador Massimo Montanari, o alimento constitui “um extraordinário veículo de
autorepresentação e de comunicação: não é apenas um instrumento de identidade
cultural, mas talvez seja o primeiro modo de entrar em contato com culturas
diversas”7. Foi necessário para a análise perceber os produtos alimentícios, na
materialidade de seus rótulos e embalagens, condutores de um universo simbólico
que atravessou continentes. Transportaram consigo a dimensão sedutora da
novidade de um alimento moderno, como nos esclarece Antonio Pedro Tota ao
propor que o imperialismo dos Estados Unidos, demasiadamente cultural ao longo
do século XX, tratava-se de um imperialismo sedutor8, pois deu fôlego para
5 No contexto do século XX o intercâmbio cultural passou a habitar o arcabouço das cooperações de paz, facilitando o entendimento subjetivo das nações. O país pioneiro em institucionalizar as políticas culturais nas políticas estatais foi a França, seguida, na primeira metade do século XX, pela URSS, Grã-Bretanha, Alemanha, Itália, Estados Unidos e Canadá. Estes estados criaram diferentes órgãos e estratégias de políticas culturais. Ver em: RIBEIRO, Edgar Telles. Diplomacia Cultural. O seu papel na política externa brasileira. Brasília: Fund Alexandre de Guzmão, 2011, pág. 67-106. 6 Um exemplo claro do objetivo de ampliação de mercados é o fato de que as versões de Reader's
Digest em português e espanhol desde a origem imprimem propagandas em suas tiragens, o que não
acontece na versão estadunidense. Ver em: JUNQUEIRA, Mary Anne. Op. cit, pág. 35. 7 MONTANARI, Massimo. O Mundo na Cozinha. História, identidade, trocas. São Paulo: Senac, 2009,
pág. 11. 8 TOTA, Antonio Pedro. O Imperialismo Sedutor A americanização do Brasil na época da Segunda
Guerra. Companhia das Letras: São Paulo, 2000.
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assimilações e modificações por parte dos receptores dos produtos culturais
envolvidos9.
Além disso, o arcabouço de políticas culturais da primeira metade do século
XX encontrou em seu próprio curso histórico um poderoso aliado, a mídia de
massas. A publicidade realizou um papel significativo como mediadora entre os
gostos, hábitos e costumes dos indivíduos e a realidade industrial que se instaurava.
O efeito das propagandas na criação dos significados sociais, enquanto
representações, criou o elo entre o produto e os gostos humanos, que só os modos
de produção talvez não dessem conta10. O objetivo da pesquisa se debruça então
sobre propagandas de Seleções do Reader’s Digest, a fim de encontrar elementos
simbólicos que esclareçam as estratégias de difusão da cultura alimentar moderna
tendo como referência o american way of life11. Vale destacar que o Instituto
Brasileiro de Opinião e Estatística (IPOBE) constatou em 1950 que a revista era
considerada a mais útil e confiável do país: “(...) a estimativa era de que cada
exemplar de Seleções fosse lido por quatro pessoas em média. A revista foi, durante
os anos 50, a revista mais lida do Brasil, logo atrás de O Cruzeiro (...)” 12.
O total de revistas que fizeram parte da pesquisa foram 108, de janeiro de
1950 a dezembro de 1959, e as propagandas de alimentos analisados somaram 550
9 Compartilhamos também da perspectiva imperialismo informal e imperialismo de mercado nas
relações estabelecidas entre Brasil e Estados Unidos. O business americano buscava domínio
pacífico através do livre mercado e integração econômica, conjurando uma “democracia” dos
negócios. Com ajuda do governo, zonas de contato eram criadas a fim de estabelecer brandings
conhecidos em “íntima familiaridade com o estilo de vida americano”. Ver em: PURCELL, Fernando.
Una Mercancia Irresistible. El cine norteamericano y su impacto en Chile, 1910-1930. Historia Critica
38, Bogotá, maio -ago, 2009, pp. 46-68. 10 “Lévi-Strauss defende que a comida é “boa para pensar” e, consequentemente, “boa para comer”
na medida em que os alimentos devem ser primeiro considerados comestíveis por nossa mente,
aceito pelos significados sociais e depois digeridos por nosso organismo. Primeiro pensamos e, se
aptos para nosso espírito, comemos.” Ver em: CONTRERAS, Jesús & GRACIA, Mabel. Alimentação,
Sociedade e Cultura. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011, pág. 56. 11 O estilo de vida moderno foi uma ideia que os publicitários ajudaram a inventar e a promover em
todas as áreas da cultura material, quando o consumo de massa passou a ser considerado a grande
força democrática. Ver em: DRUCKER, Johanna; MCVARISH, Emily. Graphic design history: a critical
guide. New Jersey: Pearson Education, 2009, pág. 215. 12 JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao Sul do Rio Grande. Imaginando a América Latina em Seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista: EDUSF, 2000, pág. 49.
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anúncios13. Traremos aqui apenas nove destes, e citaremos diversos slogans,
ambos escolhidos por serem aspectos relevantes para a pesquisa e resumirem
padrões repetidos nas revistas. Os discursos dos anúncios, elaborados por imagens
ou textos escritos, foram considerados sob a ótica de que não são em si verdadeiros
nem falsos, mas produtores de efeitos14. Possibilitam, se analisados de dentro para
fora, o acesso às visões e verdades que a sociedade incorporava e aceitava como
verdadeiro em suas experiências.
Assim, o ponto de inflexão que grande parte das estratégias publicitárias
ilumina sobre a cultura alimentar industrial é aquele relacionado à saúde. Sabemos
que ao estudar história da alimentação, estamos lado a lado com a história dos
corpos, da saúde, das práticas médicas e da nutrição. O marketing da indústria
alimentícia se tornou ao longo do século passado uma das potentes influências nas
escolhas dos comedores-consumidores15 sobre aquilo que colocam dentro de seus
corpos. No geral, a orientação de que os alimentos industriais fariam um bem para
os comedores é ativa nos discursos publicitários. Breves exemplos são: “Isso Faz
um Bem” (Figura 1, Dezembro de 1954), “Os Bebes que tomam Leite Golden State
transpiram saúde!” (Figura 3, Janeiro de 1951), “Ovomaltine, é tão saboroso quanto
nutritivo” (Figura 8, Agosto de 1955), “Toddy é uma fonte de saúde” (Figura 2, Abril
de 1955). No entanto, em que limite isso se desdobra?
A marca Toddy, produtora de achocolatados, soma um total de 59 anúncios
estampados em Seleções que, no decorrer da década de 1950, recorria à slogans
como: “Uma lata de Toddy em casa é uma fonte permanente de saúde e prazer”
(Agosto de 1954), “as mães modernas fazem de Toddy o complemento da
alimentação infantil” (Dezembro de 1954), “tudo o que as crianças precisam para
purificar o sangue, aumentar o pêso, fortalecer o cérebro, os nervos, os dentes e
13 Todas as revistas Seleções do Reader's Digest utilizadas para a pesquisa estão localizadas no
Museu Regional do Livro da Biblioteca, Acervo UNIVATES, em Lajeado no Rio Grande do Sul. 14 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996, pág. 08. 15Expressão utilizada para denominar o fenômeno dos comedores enquanto consumidores no
Ocidente, que, nunca na história, tiveram acesso a tamanha diversidade alimentar. Ver em:
POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da Alimentação.: os comedores e o espaço social alimentar.
Florianópolis: Edufsc, 2013, pág. 48.
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aumentar a resistência física contra as doenças” (Fevereiro de 1957), e, o mais
reproduzido de suas campanhas: “Toddy é o protetor e amigo das crianças em todo
o mundo, durante gerações”. Vemos na Figura 2 um dos anúncios que compõem
uma campanha da marca baseada em estórias comoventes sobre jovens que
consumiam Toddy. A narrativa “Esta é minha filha” da propaganda, fala sobre o
momento “emocionante” que a personagem, uma menina ilustrada com feições
felizes, recebe seu “diploma”, devido ao “cuidado com a alimentação – diáriamente
complementada com Toddy”, o “fator decisivo” que fez a “filha” manter “a boa
disposição para os estudos”.
Parece-nos, com esse exemplo, que há um esforço em transferir para a
mercadoria – achocolatado Toddy - a capacidade de transformar não somente o
corpo das crianças, “purificar o sangue, aumentar o pêso…”, mas modificar a vida
das mesmas. Sem o achocolatado Toddy, não há “proteção”, “cuidado”, “disposição”
nem mesmo a habilidade para conquistar um diploma educacional. Todas essas
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qualidades seriam encontradas no bem de consumo, e não necessariamente nas
pessoas ou nas relações entre pais e filhos. Transpõem-se para o produto a
possibilidade de prazer, saúde, proteção e confiança. Com esse discurso as
mercadorias poderiam se tornar agentes necessários, se não fundamentais, para a
existência dos consumidores - a pedra filosofal do american way of life.
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Mas iremos além. Retomemos a ideia de “purificar o sangue”. Parece
estranho que um achocolatado, elaborado basicamente na época com cacau,
açúcar, leite em pó, farinhas maltadas e/ou cereais e estabilizantes, pudesse ter a
capacidade de “purificar” corpos. Talvez nos informe sobre a relação entre alimento,
saúde e doença. Contudo, o elemento “pureza” surge recorrentemente nas
propagandas analisadas, além do achocolatado. A marca Coca-Cola repetidamente
imprimia: “Coca-Cola Pura e Saudável a Qualquer Hora” (Agosto de 1956), “Coca-
Cola uma fonte cristalina de pureza” (Julho de 1953), “Seu Esporte Favorito e a
pureza de Coca-Cola” (Outubro de 1956). Outras propagandas igualmente insistiam:
“Prefira na alimentação do seu garoto açúcar União que é duplamente filtrado,
alvíssimo (...)” (Figura 4, Novembro de 1954) “Ninho é leite puro e integral” (Figura 3,
Abril de 1959), “Margarina Saúde preparada com leite pasteurizado e matéria-prima
vegetal puríssima (...)” (Agosto de 1955), “É com o puríssimo leite Moça que se faz o
mais gostoso sorvete” (Figura 5, Maio de 1956), “Nescafé é café 100% puro” (Abril
de 1954), entre outros. Diferentes gêneros de produtos alimentícios - leite,
margarina, café, refrigerante e achocolatado - alegavam ser puros para consumo. O
que isso significaria? Pode-se pensar que se cria uma imagem de confiança entre os
corpos que mastigariam ou beberiam a comida e os complexos fabris nos quais esta
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passou. Conseguimos ver “pureza”, então, emergindo como valor que convence ou
reforça aos leitores sobre a eficiência higiênica da indústria.
Ainda, o ideal de pureza nos leva a outra dimensão de significado. Remete
também ao estado natural, original, “verdadeiro”, dos ingredientes que constituem o
alimento processado. Muitas das propagandas esboçam a ligação entre a comida já
industrializada e seus ingredientes in natura. Para citar apenas dois exemplos:
“Goiabada marca peixe, o mesmo gostinho da goiaba madura!” (Agosto de 1952) e
“Ninho é leite sempre fresco” pois “é como se fôsse diretamente da ordenha para à
sua casa” (Figura 3, Abril de 1959). Talvez esse convencimento fosse necessário no
contexto em que a maior parte da população brasileira era rural, e logo, alimentava-
se diretamente do que colhia da terra. Se pureza poderia significar um alimento
engenhosamente higiênico pela ciência industrial, o paradoxo é que também poderia
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significar natural16. E o elemento chave que faz entendermos melhor este paradoxo é
encontrado nos nutrientes e onde eles nos levam.
Uma grande quantidade de propagandas de Seleções aponta: “Ninho é mais
indicado para toda a família porque contêm todas as vitaminas, gorduras, cálcio e
sais minerais (...) (Figura 3, Abril de 1959), “Milo contém: leite, açúcar, cereais
maltados, vitaminas A, B2 e D, fósforo, magnésio e ferro em forma orgânica (...)”
(Julho de 1954), “Extrato de Tomate Marca Peixe fonte de vitaminas A, B, C e G”
(Novembro de 1952), “As crianças adoram aveia Quaker, é tão nutritiva...cheinha de
vitaminas”, (Abril de 1955), “Preparado Instantâneo VitAvena, contém vitamina b12”
(Junho de 1959), “Gelatina Royal - o único que contém Vitamina C” (Abril de 1959).
A ênfase nos nutrientes como compostos adicionados aos alimentos industriais no
discurso publicitário nos leva a compreender que há uma realidade oculta dos
alimentos que apenas termos científicos poderiam desvendar. A ligação entre
ciência, alimentação e indústria fica evidente, parecendo que a comida, para ser
confiável, precisa ser, além de pura e saudável, científica. Esse é um ponto chave
pois indica ser um novo conhecimento emergente para os comedores-consumidores.
Talvez não seria mais necessário se orientar em relação ao que comer pela cultura,
pela história ou pela natureza, mas pela soma dos nutrientes que constituíam o
alimento. Este reducionismo científico foi cunhado por historiadores, nutricionistas e
sociólogos como fenômeno do nutricionismo17.
A ideia de que comer carboidratos, sais minerais, vitaminas, proteínas e
gorduras seria mais importante do que comer simplesmente comida não parece uma
abstração científica no imaginário do leitor brasileiro nos anos de 1950? Veremos. O
produto Ovomaltine, anúncio da Figura 8, é representado como a solução para mães
preocupadas, através de uma narrativa na qual a criança está irritada ao dormir pois
16 MINTZ, Sidney. Tasting food, tasting freedom. Boston: Beacon Press, 1996, pág 87. 17 O termo foi cunhado pelo sociólogo Gyorgy Scrins, debatido pelo historiador Harvey Levenstein e pela nutricionista Marion Nestle, todos citados e aprofundados pelo jornalista investigativo Michael Pollan no livro “Em Defesa da Comida”. Ver em: POLLAN, Michael. Em Defesa da Comida: um manifesto. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008; LEVEINSTIEN, Harvey. Paradox of Plenty. A Social History of Eating in Modern America. NY: Oxford University Press, 1993. SCRINS, Gyorgy. Nutritionism, the science and politics of dietary advice. NY: Columbia University Press, 2013. NESTLE, Marion. Food Politics. LA: University of California Press, 2013.
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a falta “no organismo proteínas ou vitaminas, cálcio ou ferro, fosfatos ou
carboidratos – substâncias que todas as crianças necessitam várias vezes mais do
que um adulto”, assim “todos esses ricos elementos nutritivos naturais podem ser
ministrados, em forma concentrado, ao seu filho associando a saborosa Ovomaltine
ao trivial de suas refeições”. O consumo de Ovomaltine, no entanto, era legitimado
no anúncio pelo “Dr. Francisco Bendetti” desenhado no canto da página com sua
recomendação: utiliza o produto na sua clínica e nos sanatórios Correas “como
preciosa coadjuvante na recuperação dos nossos pacientes”. Assim como outros
alimentos, a exemplo Milo da marca Nestlé, um “alimento concentrado” com
vitaminas, cereais, sais minerais, alguns produtos estavam no mesmo curso
daqueles da indústria farmacêutica.
E não apenas médicos aconselhavam alimentos industrializados para a saúde
dos consumidores, mas igualmente nutricionistas, como é o caso das propagandas
das salsichas, presuntos e carnes enlatadas da Companhia Swift do Brasil. Na
Figura 5 a nutricionista chef da Companhia, Regina de Moraes, complementa o
slogan do anúncio “A Garotada Adora” com a frase “- E são ótimas para eles”. Dessa
forma, os leitores não precisariam necessariamente compreender os termos
abstratos científicos das comidas industrializadas, a existência dos mesmos ali,
muitas vezes acompanhados de orientações profissionais, seriam o bastante para
legitimar que a ciência era mais inteligente sobre o que comer.
Além disso, o próprio marketing publicitário era um meio legitimador. A
propaganda da Margarina Saúde (Figura 7) é um exemplo muito claro da agência
que a linguagem publicitária realizava para a ideia de que fazia bem comer
cientificamente. A ilustração do anúncio representa de forma lúdica e educativa o
conteúdo do produto como a soma dos ingredientes “leite pasteurizado – para sua
proteção”, “gordura vegetal para tornar mais saudável e facilitar a sua digestão” e
“vitamina A - para maior riqueza alimentícia”. Ainda, os recipientes que despejam o
conteúdo da margarina “incomparávelmente mais nutritiva” se assemelham a frascos
químicos, representando o processo engenhoso e científico da indústria alimentícia
em ascensão.
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Mas será que tudo isso – a pureza, a higiene, o ideal de saúde através do
industrial e o alimento científico – são valores inventados e difundidos
exclusivamente pelo american way of life? É importante entender o problema para a
administração federal estadunidense desenvolver a noção de uma cultura oficial
nacional que pudesse ser exportada para outros países. O american way emergiu
como contraponto às exportações culturais “de prestígio” francesas, inglesas e
alemães18, uma solução que promoveria não um só produto cultural, mas um modo
de vida, baseado nas conquistas tecnológicas, bem estar e valores democráticos.
Ou seja, uma invenção estatal sobre a própria nação estadunidense, não sendo, nos
anos de 1950, homogênea lá, tampouco aqui.
Há alguns elementos que historiadores norteamericanos como Laura Shapiro
e Heaven Leveinsetein nos mostram como característicos do seu país, como a
ênfase na higiene e na boa saúde enquanto valores mais nobres do que o prazer da
comida e que remontam as raízes puritanas da população19, que devemos
considerar. Contudo, a chave de leitura do nutricionismo nos sugere que, para além
18 NIÑO, Antônio. Op. cit, pág. 42. 19 POLLAN, Michael. Op. Cit, pág. 66 e 67.
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do american way of life, existia um paradigma científico como pano de fundo que
proporcionou seu desenvolvimento e sua aceitação em outros territórios. A medicina
moderna, análoga a da nutrição, nos insinua a existência de um paradigma
mecanicista, que, em especial no início do século XX, buscava nos “agentes
microbiológicos, distúrbios metabólicos, deficiência ou aumento de hormônios,
enzimas e vitaminas”20 causas específicas de uma interpretação mecânica do mundo
físico.
O corpo humano emergiu nesse paradigma como uma máquina possível de
ser reparada pela intervenção de uma medicina que detinha “o conhecimento das
leis que operam a máquina”, ou, no limite, pelos alimentos processados por
máquinas e enriquecidos com tecnologias científicas (como as vitaminas) e
legitimados por esse conhecimento. O que nos lança luz sobre a relação entre os
alimentos, a saúde e a doença: a interpretação mecânica dos corpos diz respeito a
produção mecânica da comida processada. Os debates sobre biopolítica do poder21
podem colaborar para ampliar essa perspectiva, já que, como visto, os comedores-
consumidores eram estimulados nos anúncios a “entregar” o cuidado de seus corpos
para agentes externos (marketing, médicos, nutricionistas, indústria e mercado). Os
alimentos industrializados estariam, assim, na “pele simbólica” dos corpos, no
sentido de que o senso de identidade pessoal vai muito além dos limites da pele22.
Podemos considerar o paradigma mecanicista um dos discursos que
compõem o “regime de verdade” em curso do ocidente, ou seja, um tipo de discurso
acolhido e que funciona como política para desvendar o que é verdadeiro do que é
falso23. O ideal de pureza dos alimentos nos indica isso. Enquanto higiene, o puro
aproxima-se da racionalidade científica mecanicista no sentido de combater a
presença de agentes patológicos, como as bactérias24. Também considera que o
20 QUEIROZ, Marcos S. Saúde e doença: um enfoque antropológico. Bauru: EDUSC, 2003, pág. 54. 21 FOCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979). São
Paulo: Martins Fontes, 2008. 22 HELMAN, Cecil G. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artmed, 2009, pág 31. 23 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. 24 O processo de pasteurização é um bom exemplo da relação entre higiene, indústria e combate à
doenças. Em 1864 Louis Pasteur descobriu a contaminação bacteriana dos alimentos e inventou a
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universo mecânico é mais higiênico do que a lógica de produção caseira e manual.
Num segundo momento, a pureza, buscando manter o estatuto in natura de uma
comida que já não é mais, “uma fonte cristalina de pureza” como nos informa a
propaganda de Coca-Cola, expressa sobre o mundo natural, mas também comunica
sobre a mecanização deste. A ciência do nutricionismo, enquanto parte do regime
de verdade, produz o efeito de percepção do que é o alimento verdadeiro para
comer, no caso, o “purificado” pelas máquinas. Vale destacar que não estamos
falando apenas de máquinas, mas de uma interpretação mecânica do mundo que
modifica a percepção biológica da vida. Para a comida, falar de uma cultura
mecânica afeta completamente sua produção, distribuição e consumo, já que a
mesma em sua essência segue uma lógica natural: numa ponta a vida da terra e na
outra o organismo humano.
O elo da alimentação industrializada com o american way of life, parece-nos
importante dada a necessidade de ampliar mercados e fortalecer as relações do
capital, sugerindo que comida era um negócio lucrativo demais e o uso do saber
científico enquanto paradigma mecanicista se encaixava, portanto, perfeitamente
nesse processo. Por fim, não estamos concluindo que as propagandas de Seleções
proporcionaram a difusão da comida industrializada para a cultura alimentar de toda
a população brasileira da década de 1950. Sabemos que o acesso a leitura, e à
própria revista deveria ser limitado num contexto brasileiro agrário e ainda
analfabeto. Há também muitas apropriações, resistências e cruzamentos em relação
a cultura industrial que se ramificava e as diversas culturas regionais brasileiras.
Mas, considerando a importância da revista - a segunda mais lida no período - e a
circulação de ideias entre as camadas sociais, podemos dar relevância a essas
propagandas como agentes que colaboraram para formação de imaginários. Estes
técnica, que consiste na esterilização de micro-organismos, mudando a estrutura física e bioquímica
do alimento. As medidas higiênicas da pasteurização, especialmente das bebidas lácteas, tornaram-
se obrigatórias dadas as técnicas de manejo dos animais e armazenamento dos produtos nas
metrópoles do século XIX. Nesses ambientes a transmissão de doenças como a tuberculose e a
febre tifoide era comum. No entanto, o processo de pasteurização desconsidera a existência de
culturas vivas e da relação saudável do universo microbiano e acaba matando vários micróbios
necessários para um bom funcionamento do organismo humano. Ver em: POLLAN, Michael.
Cozinhar - Uma História Natural da Transformação. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, pág. 320-321-
322-323.
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materializados, então, na transformação das experiências alimentares e no
significado individual e coletivo do que faz um bem.
Referências
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