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Governo do Estado da BahiaOtto Alencar

Secretaria do PlanejamentoCiência e Tecnologia

José Francisco de Carvalho Neto

Superintendência de EstudosEconômicos e Sociais da Bahia

Cesar Vaz de Carvalho Júnior

BAHIA ANÁLISE & DADOS é uma publi-cação trimestral da Superintendência deEstudos Econômicos e Sociais da BahiaSEI, autarquia vinculada à Secretaria doPlanejamento Ciência e Tecnologia da Ba-hia. Divulga a produção regular dos téc-nicos da SEI e de colaboradores externos.As opiniões emitidas nos textos assinadossão de total responsabilidade dos autores.

Conselho EditorialCesar Vaz de Carvalho Júnior

Paulo Hermida GonzalezEdmundo Figueroa

Ângela FrancoCarlota GottschallConceição CunhaRenata Proserpio

Coordenação EditorialMercejane Wanderley Santana

Cristina Maria Teixeira CampelloEcosol-Bahia

Djalma B. N. Ferreira

NormalizaçãoGerência de Documentação

e Biblioteca - GEBI

FotosAna Rosa Marques e Débora Nunes

Revisão de LinguagemRegina da Matta

Coordenação GráficaDadá Marques

CapaHumberto Farias

EditoraçãoDesigners Associados

Tiragem: 1.000 exemplaresAv. Luiz Viana Filho, 435, 4ª AvenidaCEP: 41.750-300 Salvador - BahiaFone: (0** 71) 370-4823/370-4704

Fax: (0** 71) 371-1853http://www.sei.ba.gov.br

e-mail: [email protected]

Bahia Análise e Dados, v.1 (1991- ) Salvador: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2001.

TrimestralISSN 0103 8117 CDD 338.91 CDU 338.984

CEPO: 0110

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Apresentação

SOCIOECONOMIA E SOLIDARIEDADE: ASPECTOS CONCEITUAIS E CONTEXTUAIS

Terceiro Setor, Economia Social, Economia Solidária e Economia Popular: traçando fronteiras conceituais .......................... 9Genauto Carvalho de França Filho

O combate à pobreza e suas vítimas ........................................................................................................................................ 21Paul Singer

Fato associativo e Economia Solidária ...................................................................................................................................... 25Jean-Louis Laville

Distintos conceitos para o entendimento da Economia Solidária ............................................................................................. 35Entrevista: José Luis Corragio

A importância do indivíduo e da diversidade nos caminhos da solidariedade ......................................................................... 47Entrevista: Marcos Arruda

AS PRÁTICAS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

A construção de uma experiência de Economia Solidária num bairro periférico de Salvador ................................................. 59Débora Nunes

Desafios da gestão de empreendimentos solidários ................................................................................................................. 77Maria Suzana Moura e Ludmila Meira

A produção de mercadorias por não-mercadoria ...................................................................................................................... 85Gabriel Kraychete

Florescendo solidariedade ......................................................................................................................................................... 93Laumar Neves de Souza, Joseanie Mendonça e Roberta Lourenço

A economia popular ganha vida no sudoeste baiano ............................................................................................................. 103Entrevista: Dora Sugimoto

De mão em mão a família vira Estado ..................................................................................................................................... 107Murilo Guimarães

APAEB – Associação dos Pequenos Agricultores do Município de Valente .......................................................................... 111APAEB

Redes de trocas e cadeias produtivas - limites e alternativas ................................................................................................ 121Euclides André Mance

Credibahia: o programa de microcrédito do estado da Bahia ................................................................................................. 127Caio Márcio Ferreira Greve

Bansol: uma nova experiência em finanças solidárias ............................................................................................................ 131Nilton Vasconcelos

Relembrando nossa história... ................................................................................................................................................. 141João Joaquim

Microcrédito não é crédito pequeno – vamos fortalecer a solidariedade? ............................................................................. 149Zélia Maria de Abreu Paim

El pacto territorial de empleo como herramienta del desarollo local: una aproximación entre Europa y Latinoamerica ...... 153Benito Muiños Juncal

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�m diferentes partes do mundo, nos últimos anos, assiste-se àproliferação de iniciativas autônomas de grupos organizados nasociedade civil, visando à produção de atividades econômicas com

características distintas daquelas que se pratica no mercado. Essas iniciativasse distinguem pelo fato de incorporarem a solidariedade no centro mesmo daelaboração das atividades econômicas e por considerá-las como um meiopara a realização de outros objetivos, de natureza social, política ou cultural.Tal característica faz lembrar um traço histórico da organização dos grupossociais em diferentes culturas, no passado e mesmo na atualidade, quando aesfera econômica encontra-se sempre articulada com as demais dimensõesda prática (como o social, o político, o cultural ou o estético etc.). Vale lembrarque é apenas no capitalismo que a esfera econômica se autonomiza emrelação às demais dimensões da vida em sociedade, com o advento daeconomia de mercado. Mas se é perceptível, aqui, alguma semelhança comcertas tendências históricas de organização dos grupos sociais em diferentesculturas no passado, o que vem então a marcar a emergência desse fenômenona contemporaneidade? Segundo alguns autores que se dedicam ao tema,como França e Laville, como apresentado nesta publicação, o que hoje distinguea solidariedade na economia é o fato de que esta se afirma como uma açãovoluntária das pessoas e se projeta sobre o espaço público. Ou seja, não setrata de uma solidariedade que se elabora de modo abstrato — estatal — nemtampouco de modo tradicional, como nos chamados grupos primários.

A essa tendência chamamos de Economia Solidária. Para alguns elareflete formas estratégicas de organização dos grupos populares, como meiode garantia da sua sobrevivência em sociedades marcadas por processos deexclusão social crescentes. Para outros, ela representa modos inéditos deação pública, participando de uma tendência atual de desenvolvimento denovas formas de solidariedade. Neste plano de um diagnóstico sobre as razõesdo surgimento e desenvolvimento do fenômeno, os argumentos mais comunssituam-no em relação ao contexto de crise econômica mais geral, que afetaas diferentes economias do planeta. Tal crise vem minar as bases domecanismo histórico de regulação das sociedades, marcado pela sinergiaentre Estado e mercado. Para muitos, é justamente quando estes doisprincipais agentes de regulação da sociedade começam a diminuir suacapacidade de satisfazer necessidades, que essas formas atuais deorganização começam a se desenvolver. Por outro lado, é importante salientarque se o aspecto econômico possui um grande peso na explicação destefenômeno, ele não é, entretanto, o único fator. Na maioria dos casos, a razão

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para o surgimento de empreendimentos solidários encontra-se numa relaçãoentre necessidade econômica e ação voluntária permeada por valoreshumanistas e, desse modo, uma compreensão adequada desse fenômenopassaria por um real entendimento das suas condições intrínsecas deexistência. A Economia Solidária, portanto, deve ser compreendida na suasingularidade, como fenômeno, em lugar de ser objeto de explicaçõesbaseadas em determinações gerais. Tal perspectiva exige sobretudo umesforço qualitativo de interpretação, capaz, por exemplo, de apreender adinâmica das experiências baseadas nessa forma de economia, a partir desuas lógicas específicas em interação. Realizar este esforço foi um dosobjetivos que nortearam a elaboração de alguns dos artigos desta publicação.

Aqui se encontram coligidas contribuições de estudiosos os maisdestacados sobre o assunto e de atores de campo que constróem a práticaquotidiana desse fenômeno nas suas mais variadas organizações. Algunstrabalhos abordam o tema de mais de um ponto de vista conceitual. Trata-sede resultados de pesquisas científicas importantes sobre o fenômeno daeconomia solidária, entendido como um objeto de estudos relevante no âmbitodas ciências sociais em geral. Tais textos fazem avançar o estado da arte dodebate sobre o tema e permitem situar com clareza os diferentes enfoquesde interpretação do fenômeno, situando as diferentes tendências desse estudonos distintos contextos societários. Merece destaque, o debate da relaçãoentre as noções de economia solidária e economia popular. Outros artigos,de caráter descritivo, etnográfico por vezes, aproximam-se de estudos decaso ao relatar experiências representativas do fenômeno, evidenciando aprática concreta dessas experiências e produzindo, assim, conhecimentosindispensáveis à elaboração teórica.

Enfim, é com grande satisfação que apresentamos ao leitor este númeroda Bahia Análise e Dados, esperando que a ampla perspectiva da abordagemaqui realizada, reunindo uma produção teórica e o relato de bem-sucedidasexperiências de novas formas de economia, contribua efetivamente paraintensificar e aprofundar o debate da questão em pauta.

Aos autores dos artigos ora apresentados e, mais precisamente, aosintegrantes do Ecosol-BA, que tornaram possível esta edição sobre a temáticada Economia Solidária, o nosso agradecimento.

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Resumo

Este texto propõe uma apreciação conceitual dos termos ter-ceiro setor, Economia Social, Economia Solidária e EconomiaPopular, tendo como objetivo estabelecer a fronteira, em termosde significado particular, entre essas várias noções. Parte-se dopressuposto de que a compreensão precisa de cada termo impli-ca reconhecer o discurso específico elaborado em torno deles.Dessa forma, a discussão proposta considera como relevante oconhecimento do próprio contexto ou lugar socio-histórico ondeforam formulados cada um desses conceitos.

Palavras-chave: Terceiro Setor, Economia Solidária, EconomiaPopular, Economia Social.

Abstract

This text proposes a conceptual appreciation of the terms thirdsector, social economy, solidary economy and popular economy,with the objective of establishing a borderline in terms of the par-ticular meaning of those several notions. We take from the un-derstanding that a precise comprehension of each term impliesthe recognition of the specific discourse which is built aroundthem. Thus, the proposed discussion considers as relevant therecognition of the context itself or the social-historical place inwhich each of these concepts have been formulated.

Key-words: Third Sector, Solidary Economy, Popular Economyand Social Economy.

Se levantássemos uma indagação acerca doque existe em comum entre as expressões ter-

ceiro setor, economia social, economia solidária eeconomia popular (e poderíamos acrescentar aindaaquela de economia informal), talvez a resposta maisevidente fosse sua referência a um espaço de vidasocial e de trabalho intermediário entre as esferas doEstado e do mercado. Esses vários termos fariamassim alusão a um espaço de sociedade recente-mente percebido também como lugar de produção edistribuição de riqueza, portanto, como mais um es-paço econômico, isto é, lugar de geração de empre-go e renda. Entretanto, quando nos perguntamossobre a distinção entre essas noções, dificilmente

alguma certeza aparece possível como resposta.De fato, as confusões terminológicas em torno

desses termos parecem abundantes nos modos co-muns pelos quais são percebidos, seja no debateacadêmico (que ainda se encontra incipiente, pelaausência de um número maior de pesquisas maisexaustivas sobre esse assunto), ou mesmo, e princi-palmente, fora dele. Em meio a tal confusão, o termoterceiro setor tem aparecido com mais destaque pu-blicamente, dada sua vulgarização tanto na mídiaquanto nos mais diversos fóruns institucionais, nãosó no plano nacional como também internacional-mente.1 Não sem razão, ao designar um vasto con-

1 No plano internacional, vale ressaltar que essa expressão, mais recente-mente, é a adotada também pela Comissão Européia, com o emprego dotermo troisième secteur, que se inspira em trabalhos italianos, particular-mente os de C. Borzaga, Il terzo sistema: una nuova dimensione dellacomplessità economica e sociale. Padoue: Padova Fondazione Zancan,1991; conforme nos lembram Eme e Laville (2000a).

* Genauto Carvalho de França Filho é doutor em Sociologia (Univ. ParisVII), mestre e graduado em Administração. Professor da Escola de Admi-nistração da UFBA e do seu Programa de Pós-Graduação (NPGA) e pes-quisador do Núcleo de Estudos sobre Poder e Organizações Locais(NEPOL). [email protected]

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junto de organizações que não dizem respeito nemao setor privado mercantil nem ao setor público es-tatal a expressão terceiro setor adquire um alcancetão amplo que tendemos a rebater sobre seu signifi-cado o sentido de alguns termos aparentementecorrelatos, tais como economia solidária ou econo-mia social. Um tal modo de percepção representasem dúvida um equívoco, pois não permite a apre-ensão precisa do significado específico que compor-ta cada uma dessas noções.

Com efeito, diferenças impor-tantes subjazem às noções de ter-ceiro setor, de economia solidária,de economia social e de economiapopular (e ainda àquela de econo-mia informal), ligadas não somenteaos diferentes contextos sociopolíti-cos em que emergiram esses ter-mos, mas também a interpretaçõesdistintas acerca do papel que de-sempenham essas práticas e/ouiniciativas na sociedade, especial-mente no que se refere ao lugar que elas devem ocu-par em relação às esferas do Estado e do mercado.Dito de outro modo, as diferenças entre esses termosestão relacionadas à construção de um discurso pró-prio (a cada um deles). Tais discursos vinculam-se,evidentemente, aos seus respectivos contextos espe-cíficos de realidade. Importa, assim, entender em quelugar socio-histórico se constróem essas categorias equal o significado particular que acompanha a origemdessas formulações/conceitos/noções. Essa é, a nos-so ver, uma condição indispensável, para o entendi-mento das diferenças entre esses termos. Examine-mos portanto, a seguir, cada uma dessas noções,buscando sublinhar o tipo de formulação discursivasugerida, que se encontra associado a contextos es-pecíficos de sociedade: respectivamente, aqueles daAmérica do Norte, da Europa e da América Latina.

O TERCEIRO SETOR – UMA NOÇÃO CARA AOCONTEXTO NORTE-AMERICANO

O termo terceiro setor, por exemplo, é herdeiro deuma tradição anglo-saxônica, particularmente im-pregnada pela idéia de filantropia. Essa abordagemidentifica o terceiro setor ao universo das organiza-

ções sem fins lucrativos (non-profit organizations). Noformato jurídico, o non-profit sector, também conheci-do como voluntary sector, é particularmente ligado aocontexto norte-americano, no qual a relação comuma tradição de Estado social não aparece como pri-mordial na sua história. Com o uso deste termo, a ên-fase fundamental é posta em certas característicasorganizacionais específicas, observadas sob um ân-gulo de visão funcionalista. Tal como consideram

Salomon e Anheier (1992), no inte-rior desse campo (non-profit sector)as organizações apresentam cincocaracterísticas essenciais: elas sãoformais, privadas, independentes,não devem distribuir lucros e de-vem comportar um certo nível departicipação voluntária.

Ao acrescentarmos a esses cin-co traços dois outros – as organiza-ções não devem ser políticas (nosentido restrito do termo, isto é, ex-cluem-se os partidos políticos) e

nem confessionais (ou seja, exclui-se qualquer gêne-ro de organização religiosa) – obtemos a nomenclatu-ra comum de classificação do terceiro setor conheci-da pela sigla International Classification of Non-ProfitOrganizations (ICNPO). Foi justamente essa nomen-clatura que serviu de base à pesquisa internacionalsobre o terceiro setor dirigida pela Fundação JohnHopkins, no início dos anos 90, que compreendeu 13países, entre os quais o Brasil. O trabalho deFernandes (1994) constitui a parte brasileira dessapesquisa. Esse autor revela os limites de uma tal defi-nição para pensar a realidade de um terceiro setor la-tino-americano, que aparece extremamente hetero-gêneo na sua configuração.2 Sua crítica reside, demodo específico, na desconsideração do critério dainformalidade (isto é, da não-institucionalização dasiniciativas). Com essa noção de terceiro setor, perde-se de vista um largo campo de iniciativas que desem-penham um papel fundamental para amplas fatias dapopulação de países como o nosso. O termo terceiro

O termo terceiro setoré herdeiro de uma

tradição anglo-saxônica,particularmente

impregnada pela idéiade filantropia.

Essa abordagemidentifica o terceirosetor ao universodas organizações

sem fins lucrativos.

2 Tanto é assim que pensar um terceiro setor latino-americano implica ul-trapassar a nomenclatura ICNPO. Pensando no caso brasileiro, Fernan-des (1994) sugere quatro segmentos principais constitutivos do terceirosetor no nosso país, reunindo organizações as mais diversas. São eles:as formas tradicionais de ajuda mútua; os movimentos sociais e associa-ções civis; as ONGs; e a filantropia empresarial.

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setor, portanto, nessa filiação anglo-saxônica, refleti-ria apenas a ponta do iceberg que representa este«mar» de iniciativas não-governamentais e não-mer-cantis na América Latina.

Portanto, a interpretação do terceiro setor via lite-ratura anglo-saxônica, que é dominante, funda umaverdadeira abordagem específica desse termo, emque sua existência é explicada principalmente “pelosfracassos do mercado quanto à redução dasassimetrias informacionais, como também pela falên-cia do Estado na sua capacidade de satisfazer as de-mandas minoritárias” (LAVILLE, 2000).3 Vale ressaltarainda que essa argumentação é desenvolvida sobre-tudo por economistas de inspiração neoclássica,4

cujos pressupostos representam o suporte funda-mental de uma visão liberal em economia. Nessaperspectiva, o terceiro setor aparece como uma esfe-ra compartimentada, suplementar, vis-à-vis do Esta-do e do mercado. Ele é portanto considerado comoum setor à parte, que viria se ajustar funcionalmenteàs duas formas históricas que constituem o Estado eo mercado. É, portanto, nessa perspectiva de inter-pretação que o termo terceiro setor aparece, em al-guns casos, como justificação ideológica do desenga-jamento do Estado em termos de ação pública.

O CONTEXTO EUROPEU – A ECONOMIASOLIDÁRIA VERSUS A ECONOMIA SOCIAL:UM PASSADO COMUM E UM PRESENTEDISTINTO

Já as noções de economia solidária e economiasocial, inscrevem-se num contexto europeu mais

geral, e francês, em particular. Em contraste, no quese refere à noção de terceiro setor (tipicamentenorte-americana), a relação com o Estado social, naEuropa, é constitutiva das experiências associati-vistas, conforme nos lembra Laville.5 Esta é a razãosegundo a qual, pondera esse autor, pensar a idéiade um terceiro setor na Europa implica ultrapassarsua compreensão como “compartimento suplemen-tar da economia”, para enxergá-lo como “um ele-mento que está em interação histórica constantecom os poderes públicos”. Reside aí o papel impor-tante que podem desempenhar essas iniciativassolidárias: na sua capacidade para contribuir com ageração de novos modos de regulação da socieda-de, pois elas são capazes de gerar formas inéditasde ação pública, tal como no passado.

Sobre esse aspecto, parece sempre oportunolembrar o fato de que foram exatamente as experiênci-as associativistas da primeira metade do séculoXIX, na Europa – em particular, as chamadas socie-dades de socorro mútuo – que primeiro concebe-ram a idéia de uma proteção social. Ou seja, oembrião, em termos de idéia, da concepção moder-na de solidariedade via a função redistributiva doEstado, conforme exprime o sistema previdenciárioestatal, encontra-se exatamente em algumas práti-cas de economia social iniciadas na primeira meta-de do século XIX na Europa, que foram, entretanto,mais tarde, apropriadas pelo Estado.

Um pouco de história...

De fato, contrastando com a noção de terceirosetor, as noções de economia social e economiasolidária são herdeiras de uma tradição históricacomum fundamental. Esta relaciona-se com o mo-vimento associativista operário da primeira metadedo século XIX na Europa, que foi traduzido numadinâmica de resistência popular, fazendo emergirum grande número de experiências solidárias lar-gamente influenciadas pelo ideário da ajuda mútua(o mutualismo), da cooperação e da associação.Isso, precisamente em razão do fato de que a afir-mação da utopia de um mercado auto-regulado

3 Estas são sobretudo as explicações de Hansmann, Economic theories ofnonprofit organizations, In: The nonprofit sector. A research handbook,w.w.Powell (éd.), New Haven, Yale University Press, 1987, e de Weisbrod,The nonprofit economy, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1988,resumidas por Eme et Laville (2000, op. cit., p.166), que se fundamentaramnos trabalhos de Lewis, Le secteur associatif dans l’économie mixte de laprotection sociale. In: Produire les solidarités. La part des associations, Actesdu séminaire organisé par la MIRE-Rencontres et Recherches – avec lacollaboration de la Fondation de France –, Paris, MIRE, 1997, e de Nyssens,Comment les théories économiques expliquent les raisons d’être des associ-ations: une synthèse, Séminaire de formation pour les dirigeants associatifs,Institut d’Etudes Politiques de Paris, 1998. Eme e Laville insistem na necessi-dade de ultrapassar a abordagem funcionalista do terceiro setor, discutindooutras abordagens que atribuem ênfase ao “caráter fundamentalmente aber-to, pluralista e intermediário do terceiro setor”. Essa preocupação com a fun-dação de uma nova abordagem do terceiro setor é retomada pelos mesmosautores em Eme e Laville (2000b).4 Ver a este respeito, Nyssens, Marthe, Les approches économiques dutiers secteur – Apports et limites des analyses anglo-saxonnes d’inspirationnéo-classique, In: Sociologie du Travail, n.4, vol.42, oct./ déc. 2000.

5 Rencontre débat avec J.-L.Laville - autour de l’économie solidaire etsociologie de l’association. Revue du GERFA (Groupe d’études etrecherche sur le fait associatif), n.1, Paris, printemps, 2000, p.113.

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nesse momento histórico gerou um debate políticosobre a economia ou as condições do agir econô-mico. Um debate que fora particularmente incitadopor essas iniciativas associativistas, que, ao recusa-rem a autonomia do aspecto econômico nas suaspráticas, em face dos demais aspectos – social, políti-co, cultural, etc. – ficaram mais conhecidas sob a ru-brica de economia social. Do mesmo modo, ao sim-bolizarem, na sua prática, um ideal de transforma-ção social que não passava pelatomada do poder político via apa-relho do Estado – mas pela possi-bilidade de multiplicação das expe-riências, com isso colocando o ho-rizonte de construção de umahegemonia no próprio modo comose operava a economia, isto é, nomodo como se reproduziam ascondições de produção – torna-ram-se também conhecidas sob aexpressão de socialismo utópico.Vale lembrar que essa expressãose vulgariza no discurso marxistapara fazer oposição a uma outra:socialismo científico. Ambas as expressões refle-tem assim dois modos distintos de conceber atransformação do sistema capitalista.

Importa precisar que a dimensão política (ou esseaspecto da luta política), própria das experiências deeconomia social na sua origem, diz respeito à ques-tão do direito ao trabalho. Isso porque as iniciativasgestadas no seio dessa economia social nascenteaparecem como alternativas, em termos de organi-zação do trabalho, àquela proposta pela forma do-minante de trabalho assalariado instituída peloprincípio econômico que começava a se tornar he-gemônico, imposto pela empresa capitalista nas-cente. As condições de pauperização que marcavama vida de amplas parcelas da população na Europanesse momento se deviam à superexploração dotrabalho, no contexto de nascimento do capitalis-mo, bem como ao desemprego que grassava.6

Compreendidas, portanto, como iniciativas oriun-das dos setores populares, combinando, ao mesmo

tempo, na sua ação organizacional, uma dimensãosocial e uma dimensão econômica sob um fundo deluta política, essas experiências modificam aos pou-cos o conteúdo de sua prática, ou seja, mudam defisionomia ao longo da história. Isso, precisamenteem razão de um forte movimento de especializaçãoe de profissionalização gestionária, que se fundasobre lógicas funcionais impostas pelos poderespúblicos ou que se tomam emprestadas à esfera

mercantil. As ações empreendi-das nessa dinâmica associativistaganharam progressivamente o re-conhecimento dos poderes públi-cos, o que resultou na elaboraçãode quadros jurídicos que tantoconferiram existência legal às ini-ciativas como contribuíram paraseparar o que o movimento asso-ciacionista original queria reunir(LAVILLE, 2000). É nessa dinâmi-ca que aparecem os estatutos deorganização cooperativa, mutua-lista e associativa. Essa fragmen-tação da economia social em es-

tatutos jurídicos específicos consolida-se aos pou-cos, durante a segunda metade do século XIX e napassagem para o século XX, refletindo, nesse mo-vimento, a tendência dessas organizações a seisolarem em função dos seus respectivos estatutosjurídicos e, ao mesmo tempo, a se integrarem aosistema econômico dominante. As cooperativas in-serem-se assim amplamente na economia mercan-til, ocupando principalmente aqueles “setores deatividade nos quais a intensidade capitalística per-manecia fraca” (LAVILLE, 2000:532), e as organi-zações mutualistas são quase que integralmenteincorporadas à economia não- mercantil praticadapelo Estado. Essa dinâmica organizacional reflete,portanto, do ponto de vista interno, a própria mu-dança no perfil dos quadros que a constituem: osmilitantes políticos, embalados pelos ideais de umvigoroso movimento operário, pouco a pouco sãosubstituídos por profissionais de forte caráter tec-noburocrático, cuja presença passa a ser hegemô-nica nessas organizações. A dimensão técnica oufuncional da organização passa então a primar so-bre seu projeto político.

As iniciativas gestadas noseio dessa economia

social nascente aparecemcomo alternativas, em

termos de organização dotrabalho, àquela propostapela forma dominante de

trabalho assalariadoinstituída pelo princípio

econômico que começavaa se tornar hegemônico,imposto pela empresacapitalista nascente.

6 Sobre essa temática da superexploração do trabalho e das condiçõesde vida da classe operária nos primórdios do capitalismo, existe uma am-pla historiografia sociológica disponível, sobretudo de autores marxistas.

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A perspectiva de uma economia solidária desa-parece assim num primeiro e longo momento, assis-tindo-se ao desenvolvimento, no seu lugar, de umaeconomia social que se torna altamente instituciona-lizada ao longo do século XX – seu papel pratica-mente se limita àquele de uma espécie de apêndicedo aparelho do Estado. As organizações da chama-da economia social hoje, na França, por exemplo,como alguns grandes bancos, hospitais, ditos coo-perativas ou organizações mutualistas, representamgrandes estruturas tecnoburocráticas que dificilmen-te se distinguem, na sua dinâmica de funcionamen-to, de uma empresa privada ou pública.

Economia solidária e economia social remetemhoje, portanto, como ilustra o caso francês, a doisuniversos distintos de experiências. O termo eco-nomia social serve, inclusive, para designar, de umponto de vista jurídico, o universo constituído porquatro tipos organizacionais fundamentais: as coo-perativas, as organizações mutualistas, as funda-ções e algumas formas de associação de grandeporte. É justamente em relação às característicasatuais assumidas pela economia social que vem sedemarcar a noção de economia solidária, pela afir-mação da dimensão política na sua ação. O que nosleva a defini-las como experiências que se apoiamsobre o desenvolvimento de atividades econômi-cas para a realização de objetivos sociais, concor-rendo ainda para a afirmação de ideais de cidada-nia. Para Laville (1999), isso implica um processode “democratização da economia a partir de enga-jamentos cidadãos”. A economia solidária pode servista assim como um movimento de renovação ede reatualização (histórica) da economia social.

A especificidade da idéia de economiasolidária

Assim, com a noção de economia solidária, aquestão que se coloca é aquela de um novo relacio-namento entre economia e sociedade. Se certas ca-racterísticas organizacionais particulares (notada-mente no que se refere ao aspecto democrático daorganização do trabalho) são sublinhadas na apre-ensão desse termo, trata-se aqui, entretanto, sobre-tudo da inscrição sociopolítica das experiências quefundam essa noção. Esta é a razão pela qual enten-

demos que, para além de um conceito servindo paraa identificação de um certo número de experiênciascom um estatuto diferente daquele da empresa capi-talista, a noção de economia solidária remete a umaperspectiva de regulação, colocada como umaquestão de escolha de um projeto político de socie-dade. Isso, em função precisamente da dimensãohistórica desse fenômeno e das suas característicasfundamentais. Portanto, admitir a possibilidade deuma outra forma de regulação da sociedade atravésda idéia de economia solidária, significa reconheceruma outra possibilidade de sustentação das formasde vida de indivíduos em sociedade, não-centradanas esferas do Estado e do mercado.

Esse aspecto merece um maior esclarecimentoaqui.7 Defendemos a tese de que se elabora umaoutra forma de regulação da sociedade atravésdesse fenômeno (mesmo que ainda de forma mo-desta hoje), pois ele articula diferentes racionalida-des e lógicas na sua ação, com suas múltiplas fon-tes de captação de recursos. Trata-se aqui de umdos traços característicos do fenômeno chamadode hibridação de economias, isto é, a possibilidadede combinação de uma economia mercantil, não-mercantil e não-monetária. Isso porque, nessas ini-ciativas de economia solidária, em geral existem,ao mesmo tempo: venda de um produto ou presta-ção de um serviço (recurso mercantil); subsídiospúblicos oriundos do reconhecimento da naturezade utilidade social da ação organizacional (recursonão-mercantil); e trabalho voluntário (recurso não-monetário). Essas experiências lidam portanto comuma pluralidade de princípios econômicos, umavez que os recursos são oriundos do mercado, doEstado e da sociedade, via uma lógica de dádiva8

(FRANÇA, DZIMIRA, 1999) Mas além desse as-pecto da hibridação de economias, um outro fortetraço característico vem marcar as iniciativas deeconomia solidária, contribuindo também com aafirmação de um outro modo de regulação da vidade grupos sociais em sociedade, que considera-mos inerente a esse fenômeno. Trata-se do que

7 Conforme já tratamos em outros trabalhos. Ver França (2001a) e(2001b).8 Tratamos da temática da dádiva a partir do seu conceito antropológico,tal como originalmente desenvolvido por Marcel Mauss, em outros traba-lhos. Ver França e Dzimira, 1999 e 2000.

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chamamos de construção conjunta da oferta e dademanda. Ou seja, diferentemente do que ocorrena lógica da economia de mercado, que funcionana base de uma separação abstrata entre oferta edemanda (que supostamente viriam a se harmoni-zar por obra e graça divina, da tão sonhada mão in-visível smithiana, o que, entretanto, nem sempreacontece na realidade), no caso da economia soli-dária a oferta ou os serviços prestados através dasiniciativas vinculam-se exclusiva-mente às necessidades ou de-mandas reais vividas localmentepelas populações. Portanto, o mo-tor da geração de atividades eco-nômicas ou da criação de ofertanão é a lógica de rentabilidade docapital investido na ação, mas odesejo de atendimento das reaisnecessidades/demandas exprimi-das pelos grupos locais. A idéiade economia solidária reflete as-sim a própria ação desses gruposlocais na sua tentativa de autoge-ração de riqueza, ou seja, de ten-tativa de resolução das suas pro-blemáticas sociais.

Na prática, pois, o termo eco-nomia solidária identifica hoje uma série de expe-riências organizacionais inscritas numa dinâmicaatual em torno das chamadas novas formas de so-lidariedade.9 O fato é que se vêm verificando aemergência e desenvolvimento de um fenômeno

de proliferação de iniciativas e práticas socioeco-nômicas diversas. São as chamadas iniciativas lo-cais na Europa. Elas assumem, na maioria doscasos, a forma associativa e buscam responder acertas problemáticas locais específicas. Essa ex-pressão, “economia solidária”, vem assim, numprimeiro momento, indicar a associação de duasnoções historicamente dissociadas, isto é, iniciati-va e solidariedade. E, ainda, sugerir, com essas

experiências, a inscrição da soli-dariedade no centro mesmo daelaboração coletiva de atividadeseconômicas.

Busca-se, portanto, neste tex-to, com base nessa noção deeconomia solidária, uma tentativade problematização dessas no-vas práticas organizativas, a par-tir de um quadro de referênciasbem preciso: o de uma reflexãosobre as relações entre democra-cia e economia, que se inspiraamplamente dos trabalhos deKarl Polanyi (1983).10 Com essanoção, abre-se uma perspectivadescritiva e compreensiva depesquisa, que remete à análise

de realizações que, em diferentes partes do mun-do, representam hoje milhares de experiências edezenas de milhares de assalariados e de volun-tários implicados (EME, LAVILLE, 1996).

Na prática, o termoeconomia solidária

identifica hoje uma sériede experiências

organizacionais inscritasnuma dinâmica atual em

torno das chamadas novasformas de solidariedade.

O fato é que se vêmverificando a emergência e

desenvolvimento deum fenômeno

de proliferação deiniciativas e práticas

socioeconômicasdiversas.

9 Essas novas formas de solidariedade fazem alusão à iniciativa cidadã,em oposição, ao mesmo tempo, às formas abstratas de solidariedadepraticadas historicamente pelo Estado, de um lado, e às formas tradicio-nais de solidariedade marcadas pelo caráter comunitário. Neste sentido,estamos diante de um fenômeno efetivamente inédito, segundo nossa hi-pótese, pois essas experiências não parecem se orientar segundo o re-gistro de uma socialidade típica da Gemeinschaft (comunidade), princípiocomunitário (Tönnies), ou seja, uma socialidade comunitária (Weber), ou,ainda, uma solidariedade mecânica característica das sociedades tradici-onais (Durkheim). De fato, se um tipo de dinâmica comunitária marca es-sas experiências, sua expressão não parece se identificar com o registrode um comunitarismo herdado (como consideram A.Caillé e J.-L.Laville) :“na medida em que ela emana de um comunitarismo muito mais escolhidocomo referência coletiva a um bem comum do que imposto pelo costume”(prefácio a Don et économie solidaire, França e Dzimira, 2000). Além dis-so, o caráter inédito dessas novas formas de solidariedade reside aindana afirmação de uma tal dinâmica comunitária no seio de uma sociedadeem que as relações se caracterizam primeiro por uma solidariedade orgâ-nica (Durkheim) ou pela Gesellschaft (sociedade), pelo princípio societá-rio (Tönnies), ou, ainda, pela socialidade societária (Weber). Dito de outromodo, se tais experiências se abrem sobre o espaço público ao elabora-

rem-se atividades econômicas que visam afrontar problemas públicos,mesmo comportando uma dinâmica comunitária, dificilmente tais iniciati-vas podem, portanto, serem associadas a formas tradicionais de organi-zação. Não estariam elas, assim, constituindo uma espécie de “espaçopúblico de proximidade”? Vale ressaltar ainda, e em todo caso, que estecampo da economia solidária circunscreve um universo específico de ex-periências no domínio das novas formas de solidariedade.10 Em especial, La grande transformation. Aux origines politiques et éco-nomiques de notre temps, Gallimard, Paris, 1983. Nessa obra notável, doinício da década de 50, Polanyi sustenta que a grande transformação queconhecem as economias ocidentais nos anos 30 reside na reimbricaçãoda economia no social, pela via da regulação da produção e da circulaçãode riquezas operada pelo Estado-providência, hoje em crise. A “grandetransformação” introduzida pela modernidade, nos parece residir muitomais no processo de autonomização do mercado em relação aos demaisprincípios do comportamento econômico, como a “administração domés-tica”, a “redistribuição” e a “reciprocidade”. Essa ruptura produzida pelamodernidade é acompanhada de um “desencantamento do mundo”, deuma objetificação das relações sociais ou, ainda, de uma despersonaliza-ção das relações econômicas, que o fenômeno da economia solidáriavisa justamente tornar mais humanas.

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Contexto e delineamentode um fenômeno

Como fenômeno, a emergência de uma econo-mia solidária está intimamente ligada à problemá-tica de uma exclusão social crescente – que sedefine cada vez mais como questão urbana –,num contexto atual, mas que remonta aos anos1980, de crise do Estado-providência.11 A realida-de de uma economia solidária vem assim se posi-cionar num contexto de falência dos mecanismosde regulação econômico-política da sociedade.Esses foram fundados, historicamente, em tornode duas esferas principais de organização das re-lações político-econômico-sociais – o Estado e omercado – encontrando no trabalho, no sentidomoderno do termo, ou seja, na relação salarial,sua estruturação fundamental. Poderíamos assimpropor a leitura do contexto atual de uma econo-mia solidária em termos de crise do trabalho, oumelhor, em termos dos limites da chamada socie-dade salarial, para retomar o diagnóstico de Castel(1995). Mas poderíamos ainda diagnosticar essasituação em termos de crise do equilíbrio fordista– se quisermos empregar uma expressão maisconhecida dos economistas. O fenômeno da eco-nomia solidária se apresenta, portanto, a nossover, numa perspectiva de busca de novas formasde regulação da sociedade.

Retornando à definição para afiná-la, diríamos,em resumo, que a emergência de uma economiasolidária (ou sua noção) traduz-se, na Europa, poruma florescência de práticas socioeconômicas vi-sando propor (a partir de iniciativas locais) servi-ços de um tipo novo, designado sob o termo “ser-viços de proximidade” ou “serviços solidários”.Para alguns, esse termo alude a um conjunto deserviços (outrora unicamente produzidos no seioda esfera doméstica) como ajuda em domicílio,jardinagem, consertos domésticos (bricolage),etc. e, para outros, a atividades recém-inventadas,como é o caso dos serviços que giram em torno

da questão da “mediação social” nos bairros, ge-ralmente vinculados à idéia de melhoria da quali-dade de vida e do meio ambiente local (LAVILLE,1992). Foi justamente nos trabalhos em que des-creveram essas práticas/experiências, articulandoum modo de compreendê-las e apreender a sin-gularidade desse fenômeno, que Laville e Emeforjaram a noção de economia solidária no iníciodos anos 1990.

Assistimos assim (do ponto de vista das implica-ções organizacionais) ao nascimento de iniciativaslocais portadoras de um caráter novo, relativo, aomesmo tempo, a seu modo de funcionamento esua finalidade. Pois, essas experiências reúnemusuários, profissionais e voluntários, preocupadosem articular criação de emprego, reforço da coesãosocial e geração de atividades econômicas comfins de produção do chamado liame social. As for-mas assumidas pelas experiências de economiasolidária na Europa são bastante diversas: de cre-ches parentais, passando por empresas sociais,sociedades de crédito, até os chamados clubes detroca ou organizações de autoprodução coletivas.12

Em síntese, portanto, se o termo economia soli-dária surge apenas recentemente, sua característi-ca fundamental – a articulação entre as dimensõeseconômica, social e política – já se encontrava pre-sente nos ideais e práticas da chamada economiasocial nos seus primórdios, sendo mais tarde es-quecida, conforme tratamos anteriormente. Issonos leva a concluir que o projeto atual de uma eco-nomia solidária parece refletir uma espécie de rea-tualização do ideário original da economia social.Ela é, talvez, uma nova economia social.

A IDÉIA DE ECONOMIA POPULAR ENTREFORMAS DE SOBREVIVÊNCIA E MODOS DEORGANIZAÇÃO COLETIVO-DEMOCRÁTICOS –UMA REFERÊNCIA LATINO-AMERICANA

Própria do contexto latino-americano, que nãopossui a mesma configuração de Estado social típi-

11 A problemática da economia solidária aparece amplamente articuladaà realidade da chamada nova questão social nos principais países euro-peus, como é o caso da França em especial. A esse respeito ver, entreoutros, os trabalhos de Jacques Donzelot (1991 e 1994) e Pierre Rosan-vallon (1995). Propomos ainda uma síntese desse debate nos dois pri-meiros capítulos do nosso trabalho de tese (ver FRANÇA, 2001a).

12 Dada a heterogeneidade de iniciativas nesse universo da economiasolidária na Europa e na França em particular, propusemos, em trabalhosanteriores, uma tipologia das formas de manifestação desse fenômeno,considerando quatro campos principais de iniciativas: o comércio justo, asfinanças solidárias, as empresas sociais e a economia sem dinheiro(FRANÇA, 2001b).

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ca da tradição européia, a noção de economia popu-lar é utilizada, na maioria das vezes, para identificaruma realidade heterogênea, um processo social quepode ser traduzido pela “aparição e expansão denumerosas pequenas atividades produtivas e co-merciais no interior de setores pobres e marginaisdas grandes cidades da América latina” (RAZETO,1991). Os biscates ou ocupações autônomas, asmicroempresas familiares, as empresas associati-vas ou, ainda, as organizaçõeseconômicas populares (OEP),constituem alguns dos exemplosde iniciativas desse universo.

Em se tratando de economiapopular, e essa é uma característi-ca fundamental que, a nosso ver,merece ser destacada, o registroda solidariedade permanece abase fundamental sobre a qual seerguem ou, melhor, se desenvol-vem as atividades econômicas.Essas iniciativas representam, deum certo modo, um prolongamento das solidarie-dades ordinárias (isto é, aquelas que se praticamno quotidiano mesmo da vida no interior dos gru-pos primários). Parece residir precisamente nesteaspecto o traço maior característico dessa econo-mia popular. Ou seja, ela encontra no tecido sociallocal ou comunitário, nas práticas de reciprocidade,os meios necessários para a criação de atividades.

Dito de outro modo, com o conceito de econo-mia popular trata-se, segundo nosso entendimen-to, da produção e desenvolvimento de atividadeseconômicas calcadas numa base comunitária, oque implica uma articulação específica entre ne-cessidades (demandas) e saberes (competências)no plano local. Tal dimensão comunitária na açãocomunitária, ou essa economia popular, articula-seem alguns casos com o plano institucional. Issoacontece, particularmente, nos casos em que o po-der público reconhece o saber popular e tentaapoiá-lo sob a forma de assessoria técnica, que, naprática, muitas vezes acaba funcionando comomodo de instrumentalização das experiências po-pulares. A tradição do recurso ao mutirão nas práti-cas de organização e de produção dos grupos po-pulares, muito comum na nossa realidade, pode

ser considerada como caso ilustrativo dessa articu-lação entre necessidades (demandas) e saberes(competências). O mutirão é um sistema de auto-organização popular e comunitária para a realiza-ção e a concretização de projetos, que consisteem associar o conjunto dos membros de uma co-munidade na execução dos seus próprios projetoscoletivos.

Economia popular e economiainformal como expressõesdistintas

Se a referência ao tecido sociallocal e a suas práticas de recipro-cidade como meio de elaboraçãode atividades econômicas é o quemarca ou define a própria idéia deeconomia popular, reside precisa-mente neste aspecto a possibili-dade de sua distinção em relaçãoà noção de economia informal.13

De fato, essa distinção deve ser sublinhada.14 Aeconomia informal assume, na maioria dos casos, aforma de microprojetos individuais, conformando umaespécie de simulacro precário das práticas mercan-tis oficiais e não apresentando, desse modo, umaarticulação com uma base social local precisa oucom um saber ancestral. Entretanto, uma tal distin-ção aparece, na maioria das vezes, de modo bas-tante sutil à primeira impressão, sendo a economiainformal e a economia popular comumente percebi-das como expressões sinônimas e, isso, em razão docaráter de movimento multiforme próprio à idéia deeconomia popular. Esta última compreende umamplo leque de iniciativas socioeconômicas, maisou menos autocentradas ou heterocentradas (vol-tada para fora dela própria como organização). Istoé, oscilando de simples formas de sobrevivênciados mais pobres (marcados por um alto grau de

O mutirão é um sistemade auto-organização

popular e comunitáriapara a realização e a

concretização de projetos,que consiste em associaro conjunto dos membrosde uma comunidade na

execução dos seuspróprios projetos

coletivos.

13 Para uma apreciação mais detida acerca dessa noção ver Lautier(1994) e Kraychete (2000).14 Do mesmo modo que aquela entre economia popular e economia subter-rânea ou oculta. Esta funciona na maioria dos casos sob o registro da violên-cia: trata-se em geral de formas de organização despóticas repousando sobmodos específicos de solidariedade. Esse esforço de distinção conceitual éparticularmente importante de desenvolver, pois alguns poderiam enxer-gar na organização do tráfico de drogas em certas favelas cariocas, porexemplo, os sinais de manifestação de uma economia popular.

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precariedade institucional) até a idéia de modos deorganização democráticos, ou seja, abertos sobreo espaço público – este é, particularmente, o casode um certo número de experiências de associaçãoe de “cooperativização” encontradas hoje.

Os desafios em torno desse universo da econo-mia popular tornam-se mais claros no debate emque se contrapõem, de um lado, uma visão que oassocia, ou melhor, o reduz à idéia de uma estraté-gia de sobrevivência – o que significa interpretá-lacomo amortecedor dos efeitos da crise – e, do ou-tro lado, sua compreensão como motor do desen-volvimento.

Neste sentido, é o próprio debate sobre a noçãode desenvolvimento que está em questão. A capa-cidade que terá essa economia popular para seconstituir como um setor ao mesmo tempo autôno-mo e interdependente relativamente às esferas do-minantes (Estado e mercado) está intimamenteligada, a nosso ver, à formulação de uma visão dedesenvolvimento que possa se assentar sobre umaconcepção plural da economia.15 Porém, não nosencontramos exatamente nesse quadro. As con-cepções dominantes do desenvolvimento, em quea ênfase é posta na centralidade do mercado, privi-legiando-se a idéia de crescimento econômico, atri-buem a essa economia popular um lugar bastantesubordinado na dinâmica socioeconômica mais ge-ral: sua representação é comumente associada àidéia de uma espécie de “economia dos centavos”ou de uma “economia dos pobres”, destituída, por-tanto, de um alcance transformador maior.

A esse respeito torna-se instrutivo observarmoscomo certos discursos se reelaboram, sobretudono seu sentido mais retórico, na busca de novospadrões de legitimidade em face das transforma-ções em curso. Esse é particularmente o caso davisão dos economistas mais convencionais, em ge-ral de inspiração neoclássica, que sempre desco-nheceram essa distinção entre economia informale economia popular, desprovidos, como habitual-mente o são, de uma visão sociopolítica dos fenô-

menos produtivos. Pensando economia informal eeconomia popular do mesmo modo, mas privilegi-ando a primeira rubrica, a perspectiva liberal temelaborado novas estratégias em relação a essaquestão, tal como aparece recentemente no discur-so de certas instituições internacionais. A esse res-peito, a observação lançada por Lautier (1995) pa-rece particularmente esclarecedora do jogo políticosubjacente a essa discussão. Para esse autor, de-pois que as grandes instituições financeiras inter-nacionais, tais como FMI e Banco Mundial, se de-ram conta dos limites do mercado na sua capacida-de de satisfazer necessidades, a imagem de umaeconomia informal, “que estava carregada de todosos vícios” (fraca produtividade, baixos níveis derendimento, evasão fiscal, condições de trabalhopenosas, ausência de proteção social, etc.), subita-mente ampara-se de todas as virtudes (motor degeração de emprego e de renda, substituto de umEstado à bancarrota, lugar de desenvolvimento dasolidariedade, etc.). “Ela está, para o Banco Mundi-al, no centro da luta contra a pobreza” (LAUTIER,1995:32).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos concluir, portanto, que as diferençasentre esses termos estão relacionadas ao própriocontexto ou lugar socio-histórico onde foram elabo-rados. A banalização do termo terceiro setor deve-se, desse modo, à própria influência política ecultural do contexto norte-americano, que hoje seimpõe ao resto do mundo.

Parece-nos instrutivo notar, assim, que cadatermo sugere uma abordagem específica sobre opapel dessas organizações que não são nem públi-cas nem privadas (ou são as duas coisas ao mes-mo tempo). O que então nos parece problemático noconceito de terceiro setor, muito largamente empre-gado? Em primeiro lugar, conforme visto, a pers-pectiva anglo-saxônica pensa a solidariedade so-bretudo nos termos da filantropia, que representaapenas uma forma específica de manifestação soli-dária, o que elimina qualquer possibilidade de com-preensão das mais diversas formas de auto-ajuda,de reciprocidade, assim como da própria lógica dadádiva, que são muito presentes na manifestação

15 Nossa discussão sobre a economia plural se coloca em termos de revi-são dos pressupostos habituais de explicação do caráter e natureza daatividade econômica, particularmente daquele que a reduz à idéia de (ouao princípio do) mercado auto-regulado. Nós nos posicionamos aquinuma perspectiva de antropologia econômica, especialmente inspiradanos trabalhos de Polanyi. Sobre esse ponto, ver França (2001a e 2001b).

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dos fenômenos de solidariedade em contextos osmais diversos.16

Em segundo lugar, o que nos parece tambémproblemático na definição habitual de terceiro setoré a ênfase atribuída ao suposto caráter funcionalque deve ocupar esse espaço de atividades e inici-ativas. Daí o fato mesmo de sua qualificação como“setor”. Um “setor” à parte, terceiro portanto, que viriarepresentar uma forma de ajuste do sistema capitalis-ta mais geral, que seria, nessa vi-são, constituído fundamentalmentepelo Estado e pelo mercado. Issosignifica esquecer-se do que seelabora fora dessas instâncias, ouseja, na própria esfera da socie-dade. Neste modo de visão funci-onalista, o papel do terceiro setoraparece subordinado às duas ou-tras esferas. Seu sentido é o depreenchimento das lacunas aber-tas deixadas pelo Estado e mer-cado na sua capacidade de satis-fazer necessidades, e seu papel ésuplementar na economia – existi-ria a reboque dessas duas instâncias principais.

Trata-se assim de um ângulo de visão que pri-vilegia largamente um enfoque econômico deanálise do terceiro setor, refletindo apenas umarealidade parcial desse âmbito de experiências.Isso implica dizer que, se a expressão terceiro se-tor não deve ser abolida, sua compreensão podeser complexificada. O termo terceiro setor convida,segundo nosso entendimento, à sua desconstru-ção, à elaboração de novos modos de interpretá-lo.Dito de outro modo, para além de uma abordagemfuncionalista ou economicista do terceiro setor,parece-nos bastante instrutiva a adoção de umaperspectiva ou de um enfoque sociopolítico. Nestecaso, devemos considerar esse espaço que não énem mercantil nem estatal como um componentedo espaço público, o que sugere uma idéia bas-tante inovadora: as atividades econômicas devemser pensadas também como um problema da soci-edade, como um problema de espaço público.Desse modo, pretende-se revisitar o sentido origi-

nal da própria idéia de economia. Ou seja, se aeconomia pode ser entendida como uma forma deprodução e distribuição de riqueza, esta não se es-gota na lógica mercantil. Ao contrário, o mercadoauto-regulado aparece como apenas uma formapossível de alocação de recursos ou de produção edistribuição de riqueza, isto é, apenas um princípioeconômico possível, ao lado de outros como a re-distribuição estatista e a própria reciprocidade. As-

sim, ao invés de reduzirmos oconceito de economia à idéia demercado, parece-nos mais ade-quado defini-la em termos de eco-nomia plural. Ou seja, uma defini-ção de economia que admite umapluralidade de princípios do com-portamento econômico. Dessemodo, torna-se possível reconhe-cer, avaliar e compreender demodo mais adequado, sobretudoem sociedades como a nossa, oque se produz fora do circuito doEstado e do mercado, muitas ve-zes de maneira não-monetarizada

e que, por isso mesmo, em geral é avaliado de mododepreciativo. Essa é particularmente uma das for-mas de colocar a questão da economia solidária eas novas tendências de desenvolvimento da econo-mia popular, ou seja, as formas de organização dotrabalho que tentam articular diferentes registros daação econômica ou três formas de economia: mer-cantil, não-mercantil e não-monetária. Nossa argu-mentação aqui pretende, desse modo, ultrapassara idéia de economia de mercado como fonte únicade riqueza, mas também condenar a redução dasdemais dimensões econômicas à condição de for-mas parasitárias desta última. Esta visão mais lar-ga da economia implica, pois, enxergar estes trêspólos na sua complementaridade, como, ao mes-mo tempo, criadores e consumidores de riqueza.Nesta maneira de olhar a economia, sua redução àidéia exclusiva de mercado tornando-se insusten-tável, é o mito do progresso, a crença no cresci-mento econômico como fonte exclusiva do desen-volvimento e da felicidade que são questionados.

Nesse novo enfoque, não se trata de conside-rar, portanto, o terceiro setor como um setor inde-

Devemos considerar esseespaço que não é nemmercantil nem estatal

como um componente doespaço público, o que

sugere uma idéia bastanteinovadora: as atividadeseconômicas devem ser

pensadas também comoum problema da

sociedade, como umproblema de espaço

público.

16 Para uma discussão específica sobre a lógica da dádiva articulada ànoção de economia solidária, ver França e Dzimira, 1999 e 2000.

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pendente, à parte, com uma função apenas deajuste social dentro do sistema, mas “um espaçointermediário na interseção do Estado, do mercadoe do setor informal. Religando esses diferentes es-paços, combinando diversos recursos e racionali-dades sociais, ele se caracteriza pela diversidadedos modos de hibridação implantados pelas asso-ciações que o constituem” (EVERS, 2000:567).Nesta outra perspectiva de compreensão do tercei-ro setor, tenta-se sublinhar a vocação de muitasdessas iniciativas a interagir com as esferas do Es-tado e do mercado (em lugar de constituírem umsetor independente, mais um), mas numa perspec-tiva de subordinação da lógica mercantil ou buro-crática ao projeto associativo.

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Resumo

Neste artigo, aborda-se a responsabilidade pela pobreza, aquiatribuída não às suas vítimas, mas à estrutura das sociedades ca-pitalistas, cujo sistema de incentivos torna cumulativos os efeitostanto dos êxitos como dos fracassos individuais, e destaca-se oconsenso que tal idéia vem alcançando. Menciona a ajuda mútuacomo uma arma poderosa que irá possibilitar às vítimas da pobre-za a conquista da autoconfiança e a consciência de seu própriovalor, e ressalta e que a reinserção social sob diversas formas deprodução associadas, exige um sistema de incentivos diferente doque prevalece no capitalismo e produz a exclusão. Considera tam-bém a necessidade de proporcionar à economia solidária ora emconstrução, condições objetivas para o seu financiamento e a cri-ação de mercados para sua produção.

Palavras-chave: pobreza, produção associada, cooperação, aju-da mútua, economia solidária.

Está se tornando consensual que a respon-sabilidade pela pobreza não é de suas vítimas

(a não ser em grau muito secundário), mas da es-trutura das sociedades capitalistas, cujo peculiarsistema de incentivos torna cumulativos os efeitostanto dos êxitos como dos fracassos individuais. Osperdedores, pelo desemprego, pelo avanço técni-co, por infortúnio pessoal ou familiar e inúmerasoutras causas têm chances cada vez maiores dese tornarem perdedores de novo, porque contamcom menos recursos materiais e psicológicos, por-que seus fracassos fazem com que percam a confi-ança dos outros e principalmente a própria. E osganhadores têm chances crescentes de voltar avencer nos mercados porque acumularam recur-sos, têm a confiança dos outros, etc. etc.

Se o Estado nada fizesse, a sociedade em pou-co tempo estaria dividida em ganhadores perpétu-os e perdedores perpétuos, o que seria intoleráveldo ponto de vista político tanto quanto do ético. Ocombate à pobreza, portanto, está na ordem do diapública. Ele pode ser travado de duas formas: ma-croeconômica e microeconômica. A primeira con-siste em acelerar o crescimento da economia, o quereduz o desemprego e aumenta o poder de barga-nha dos sindicatos, que tendem a usá-lo para con-quistar a elevação dos salários mais baixos. O com-bate macroeconômico à pobreza melhora a rendade todo mundo e, na ausência de políticas redistri-butivas fortes, beneficia mais os que já ganhavammais, por causa do sistema peculiar de incentivosdescrito acima.

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* Paul Singer é economista, ex-secretário municipal do Planejamento de SãoPaulo, professor titular na Universidade de São Paulo (USP), Coordenadoracadêmico da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP.

Abstract

This article covers the fact that the responsibility for povertyis not of its victims, but of the social structure of capitalist societi-es, whose system of incentive turns cumulative the effects bothof individual successes and failures, and stresses the consensusthat such idea has reached. It mentions mutual help as a powerfulweapon which will allow poverty victims self-confidence and theawareness of their own value, as well as the fact that socialinsertion under several forms of associated production requires asystem of incentives which is different from the one which prevailsin the capitalist system and generates exclusion. It also considersthe need to give solidarity economy, now under construction, ob-jective conditions for its financing and development of marketsfor its production.

Key-words: poverty, associated production, cooperation, mutualhelp, solidarity economy.

1 Este artigo apareceu originalmente em Valor Econômico de 19/03/01 e02/04/01, que gentilmente o cedeu à Análise e Dados para republicação.

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O crescimento econômico em geral reduz a po-breza, mas não chega a beneficiar os muito pobres,as vítimas da pobreza crônica, que se transmite depais a filhos e resulta em exclusão social. Por isso,o combate microeconômico à pobreza é imprescin-dível. Os que têm escolaridade nenhuma ou baixa,moram em bolsões de pobreza e sequer têm roupa‘apresentável’ e dinheiro para condução, não têmcomo procurar emprego e são registrados nas esta-tísticas como ‘ocupados’ (quandofazem biscates) ou, mais freqüen-temente, como ‘fora da força de tra-balho’. Quando a economia cresce,o desemprego cai mas eles conti-nuam tão pobres quanto antes.

O combate microeconômicoconsiste na ajuda direta às vítimasda pobreza. Mas uma parte dessecombate é inócuo, não elimina a pobreza, na melhordas hipóteses atenua seus efeitos. Distribuir pe-quenas quantias de dinheiro, alimentos, agasalhos,brinquedos, remédios etc. ajuda os pobres, mas nãomuda sua condição. Quando a distribuição cessa(e quase sempre cessa) a sua pobreza é ainda maiscruel. Também promover cursos profissionalizantesem massa, de curta duração, não resolve porquenão aumenta a demanda por trabalho. Se algunsdos que passam por tais cursos por acaso conse-guem emprego, em geral é porque tomam o lugar deoutros, que ganhavam mais. Treinamento em mas-sa aumenta a oferta de trabalho mais qualificado, oque favorece basicamente os empregadores.

A qualificação profissional só é efetiva no comba-te à pobreza se ela habilitar os alunos a gerar seupróprio trabalho e renda. O que exige muito mais doque ensinar algumas técnicas rudimentares, que se-rão esquecidas se não houver prática contínua emtrabalho regular. É necessário ressocializar as víti-mas crônicas da pobreza, o que implica, em primeirolugar, lhes dar atenção individual, porque cada pes-soa é única em suas circunstâncias. Alguns dos quesão pobres por gerações são desnutridos, outros sãoanalfabetos funcionais, outros sofrem de dependên-cia de intoxicantes, outros têm problemas de saúdefísica, outros de saúde mental, etc.

Mas seus potenciais também são variados: algunssão inteligentes e vivos, outros têm talento para com-

putação ou música, outros têm o dom da expres-são, etc.. Combater a pobreza é habilitar cada umade suas vítimas a entrar em algum mercado porconta própria, produzindo e vendendo e, com oganho, acumulando recursos materiais e psicológi-cos para se tornar ganhador. O que não é fácil delograr isoladamente. Inúmeras experiências mostramque vítimas crônicas da pobreza conseguem se ca-pacitar ao se unir a outros, num esforço coletivo de

criar novas empresas A ajuda mú-tua é uma arma poderosa que lhespermite conquistar autoconfiança,consciência do seu próprio valor,além de ser muito funcional para di-vidir o trabalho e promover o au-mento da produtividade.

A reinserção social das vítimasda pobreza sob diversas formas

de produção associada exige um sistema de incen-tivos diferente do que prevalece no capitalismo eque produz a exclusão.

O COMBATE À POBREZA E A ECONOMIASOLIDÁRIA

Do ponto de vista do combate à pobreza é preci-so distinguir dois tipos de pobres: os integrados àeconomia de mercado, ainda que de forma precá-ria (trabalhadores subcontratados, empregados deprédios, taxistas de frota, vendedores de porta aporta) e os que se encontram à margem dela. Entreos primeiros é preciso incluir os desempregados,pois quem se pode dedicar à procura de trabalhotem seu sustento garantido por algum familiar inte-grado à economia de mercado.

Para retirar da pobreza os que estão integradosé preciso elevar o nível de ocupação na economia,tornar mais efetivo o cumprimento da legislação dotrabalho e aumentar o salário mínimo. O que impli-ca acelerar o crescimento da economia brasileiramediante a redistribuição da renda, a baixa dos ju-ros e ampliação da disponibilidade de crédito e aexpansão do gasto social pela União, estados emunicípios.

Mas a aceleração do crescimento da economianão atingirá os pobres marginalizados a não serem décadas, o que é eticamente intolerável. A for-

É necessário ressocializaras vítimas crônicas da

pobreza, o que implica, emprimeiro lugar, lhes dar

atenção individual, porquecada pessoa é única em

suas circunstâncias.

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ma clássica de marginalização é a agricultura desubsistência nas regiões mais atrasadas, o queleva a crer que o grosso de suas vítimas viva nosbolsões rurais de pobreza. Mas isso não é verdade.Parte substancial dos pobres mora nas cidades(76%), inclusive nas metrópoles (46%).2 São pes-soas que ganham a vida vendendo bens ou servi-ços com ganhos insuficientes para que possamsatisfazer suas necessidades básicas. Sua sobre-vivência depende de encontrarquem lhes compre seu trabalhoou algo que produziram, dia a dia,quando não várias vezes ao dia.Nessas condições, pensar o futu-ro é impossível, o que torna a po-breza estrutural.

Para arrancar os marginaliza-dos dessa situação não basta lhestransferir renda, embora progra-mas de renda mínima e bolsa-es-cola dêem – pelo menos aos maisjovens – chance de quebrar essecírculo vicioso. É preciso lhes pro-porcionar meios de produção e os recursos culturaispara poder empregá-los bem. No campo isso signifi-ca distribuir terra, capital em dinheiro para adquirirferramentas, sementes etc., crédito e extensão agrí-cola. E a consciência de que a cooperação e ajudamútua são imprescindíveis para o êxito econômico.Nas cidades não é diferente. É preciso mobilizar ascomunidades marginalizadas, capacitá-las a se or-ganizar, cooperar e interagir solidariamente. E lhesdar recursos materiais e intelectuais (tecnologia deprodução, marketing, financeira, etc.) para podercompetir nos mercados.

O combate à marginalização já está sendo feitopor uma grande variedade de Organizações Não-

Governamentais, entre a quais se destacam aCáritas, o Movimento da Cidadania Contra a Misé-ria pela Vida, MST, Anteag, Agência de Desenvolvi-mento Solidário (CUT), Incubadoras Universitáriasde Cooperativas, Fase, Napes, etc. Elas já ajuda-ram a criar centenas de empreendimentos solidári-os em poucos anos e algumas estão começando areceber ajuda mediante convênios com governosestaduais e municipais. Como se trata dum proces-

so de mudança de mentalidades erelacionamentos sociais, ele nãopode ser acelerado de fora paradentro. Mas a carência de recur-sos impede que ele possa cresceraproveitando plenamente sua po-tencialidade. Nessa medida, umapoio da União, sobretudo a açõesde resgate das populações embolsões de pobreza nas regiõesatrasadas, é oportuno e necessá-rio.

É preciso proporcionar à eco-nomia solidária em construção

condições objetivas de se financiar e criar merca-dos para sua produção. Para tanto, o Banco Cen-tral tem de retirar as proibições e restrições àcriação e desenvolvimento de cooperativas de cré-dito e bancos do povo, que no mundo inteiro se tor-naram reconhecidamente as bases de reproduçãoda pequena produção de mercadorias e da econo-mia solidária. O Banco Central, em colaboraçãocom o BNDES e a Caixa Econômica Federal, deveajudar ativamente a construção duma rede de cré-dito solidário, que empreste aos pobres tanto paraajudá-los em seus apertos como para lhes permitirtrabalhar e ganhar a vida decentemente.

O Banco Central, emcolaboração com o BNDES

e a Caixa EconômicaFederal, deve ajudar

ativamente a construçãoduma rede de crédito

solidário, que empresteaos pobres tanto para

ajudá-los em seus apertoscomo para lhes permitirtrabalhar e ganhar a vida

decentemente.

2 Dados da PNAD de 1995, trabalhados por ROCHA, Sonia. Pobreza noBrasil: principais tendências da espacialização. Rio de Janeiro: IPEA/Dipes, 1997

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Resumo

Aborda-se, inicialmente, o paradoxo que seria a existência deuma crise do trabalho voluntário, motivada pela predominância doindividualismo e dos interesses hedonistas, e, por outro lado, ocrescimento e a boa imagem das associações. A questão é apro-fundada contrapondo-se às explicações da economia neoclássicapara o fato associativo as análises histórico-compreensivas. Nes-tas, empreendidas pela sociologia e ciências políticas, recusa-seo prisma utilitarista, referindo-se, entre outros elementos, umlaço societário que manifesta uma racionalidade em valor e nãoem finalidade, e atribui-se a originalidade da associação moder-na à sua relação com o espaço público, no qual se encontramcidadãos de uma mesma democracia. Enfatiza-se a referênciaàs relações de cooperação e solidariedade no fato associativo e,finalmente, conclui-se que a proposta atual não é a substituiçãodo Estado pela sociedade civil nem a dissolução desta no mer-cado, mas o reforço mútuo entre democratização da sociedadecivil e democratização das instituições públicas.

Palavras-chave: associação, trabalho voluntário, mercado, so-ciedade civil, práticas cooperativas.

Ao dizer, desde o século XIX, que numa demo-cracia a ciência da associação é a ciência-mãe,

Tocqueville mencionava a importância, na vida mo-derna, da associação como liame social voluntário.Esse autor considerava ainda que a explicitação dosfatores que impulsionam a propensão a se associaré uma das tarefas mais importantes das ciênciassociais. Ao iniciar-se o século XXI, quando se co-memora na França o centenário da lei que reconhe-ceu o direito de associação, a paisagem parece, pelomenos, apresentar contrastes.

Alguns observadores e atores associativos inqui-etam-se com a crise do trabalho voluntário. Segun-

do eles, trata-se do «fim dos militantes»2 e não seacharia mais quem tivesse a disponibilidade neces-sária para participar das numerosas reuniões quepontuam a vida associativa. Os associados infatigá-veis, devotados de corpo e alma à causa, estariamsendo substituídos por membros egoístas e consu-mistas que privilegiariam as associações de espor-tes e lazer. O individualismo teria invadido um setorassociativo, de agora em diante destinado à satis-fação de interesses hedonistas. Mas essas obser-vações, feitas com base na evolução de associa-ções antigas e confirmadas pelas estatísticas sobre

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* Jean-Louis Laville é sociólogo do CRIDA-LSCI, CNRS, Paris, coordenou apublicação Association, démocratie et société civile, Paris: La Découverte,2001, e é autor, com Renaud Sainsaulieu, de Sociologie de l’association,Paris: Desclée de Brouwer, 1997.

Abstract

We address initially the paradox of what would be the existen-ce of a volunteer work crisis motivated mainly by individualism andhedonist interests. On the other hand, we address the increasinggood image of the associations. The issue is deepened as a coun-terpoint to the explanations of the neo-classical economy for theassociative fact of comprehensive-historical analysis. In those ones,carried out by sociology and political sciences, the utilitarian prismis refused and we refer, among other elements, a society tie whichexpresses a rationality in value and not in aims, and attributesoriginality of the modern association to its relationship with publicspace in which citizens of a same democracy are found. We em-phasize the reference to the relations of cooperation andsolidarity in the associative fact and finally we conclude that thepresent proposal is not either a substitute to the State by societyor the dissolution of it in the market, but the mutual reinforcementbetween democratization of society and democratization of publicinstitutions.

Key-words: association, volunteer work, market, society, coope-rative practices.

1 Uma versão sintética deste artigo, sob o título “L’association comme liensocial”, foi publicada pela revista Sciences humaines, juin-juillet, 2001(hors série n° 33). Tradução Regina Martins da Matta.2 Retomando o título de um livro de Ion, J. La fin des militants. Paris:Éditions de l’Atelier, 1997.

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a estagnação da participação nessas entidades, nãosão suficientes para abarcar o conjunto das práticasassociativas. Se elas são globalmente estáveis, ain-da assim despertam o interesse de 40% dos fran-ceses adultos, um homem em dois e uma mulherem três, com um desvio entre os sexos que tende adiminuir. O número de associações cresceu de modoacelerado desde os meados dos anos 1970: de20.000 em 1975, passou a 60.000 por ano na déca-da de 1990. Oito franceses em dez interessam-sepela vida associativa e têm uma boa imagem dasassociações, centrada no trabalho voluntário e nasolidariedade. Para 80% dos franceses a associa-ção é uma idéia do futuro.3

Paradoxo: a asfixia convive com um impulso semprecedente. Essa velha senhora associativa, quemuitos pensam esgotada, exibe, para os seus cemanos, uma vitalidade inédita. Como abordar esseparadoxo? Talvez começando por retomar a questãode Tocqueville – «por que se associar ?» – e exami-nando o que as ciências sociais, ao tentar respondê-la, propõem como hipóteses explicativas. A esserespeito, tanto em economia quanto em sociologiae em ciências políticas não faltam reflexões sobreas razões para a existência das associações.

AS ANÁLISES DA ECONOMIA NEOCLÁSSICA

A corrente dominante na análise das associa-ções, no âmbito internacional, vincula-se à econo-mia neoclássica4 e as apreende pelo viés dos fra-cassos do mercado, relativamente ao fornecimentode serviços individuais, e do Estado, no que se refe-re ao fornecimento de serviços coletivos.

O teorema fundamental da economia neoclássicademonstra a eficácia da alocação dos recursos pelomercado composto de consumidores que maximi-zam a utilidade e de empresas que maximizam olucro. A eficácia é definida de acordo com Pareto,ou seja: encontra-se otimizada a alocação de recur-

sos se é impossível modificar essa alocação demaneira a aumentar o bem-estar de alguns indiví-duos sem deteriorar a vida de ao menos um outro.Mas esse resultado é válido se um conjunto de con-dições é atendido: homogeneidade dos produtos,atomicidade das ofertas e das demandas, transpa-rência do mercado, informação perfeita, liberdade emobilidade perfeita dos compradores e dos vende-dores. É suficiente que uma dessas condições, tãorigorosas, não seja cumprida para que a alocaçãodos recursos pelo mercado não seja ótima e, assim,leve à busca de outros mecanismos. No essencial,talvez o argumento possa ser assim resumido: emalguns casos de troca, existe, dada a natureza dobem ou das características das pessoas implicadas,obstáculos que emperram a transação. Formas or-ganizacionais, entre as quais as associações, po-dem então ser mobilizadas para corrigir as imper-feições do mercado.

A causa principal da precariedade do mercado éa existência de assimetrias de informação, ou seja,o usuário não tem acesso às informações de que oprestador do serviço dispõe. É o caso, por exemplo,de serviços como os de cuidar de pessoas idosasem domicílio ou de cuidar de crianças: o usuárioencontra-se fragilizado pela urgência da necessida-de e não pode avaliar adequadamente a qualidadedo que lhe é oferecido. A demanda excedendo aoferta, a escolha é limitada e, uma vez obtido o ser-viço, a troca é custosa em tempo e dinheiro. Essavulnerabilidade dos usuários abre a porta para com-portamentos oportunistas por parte de quem ofere-ce o serviço. Problemas de assimetria de informa-ções podem também ocorrer se o consumidor nãoestá presente durante a prestação do serviço, caso,por exemplo, de um pai que deixa seu filho numacreche.

Para solucionar esse fracasso do mercado, ateoria neoclássica preconiza o recurso a organiza-ções que podem suscitar a confiança dos usuáriospor apresentar características capazes de tranquili-zá-los. É nesse ponto que as associações se bene-ficiam de uma vantagem específica, a ausência defins lucrativos. O estatuto jurídico da associação,com sua exigência de não-redistribuição do lucro,pode constituir um signo para a confiança, uma vezque o serviço não será superfaturado para aumen-

3 Segundo a pesquisa do Centro de Pesquisa para o Estudo e a Observa-ção das Condições de Vida (Credoc) realizada em 1999 para as Assisesnationales de la vie associative.4 A apresentação mais sintética, em francês, dessas teorias, principal-mente anglo-saxônicas, é a de Marthe Nyssens: Les approches économi-ques du tiers secteur: apports et limites des analyses anglo-saxonnesd’inspiration néo-classique. In: Lallement, M. et Laville, J.L .(Coord.).Qu’est-ce que le tiers secteur? Associations, économie solidaire, écono-mie sociale. Sociologie du travail, n° 4, 2000.

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tar a remuneração dos acionários. Esse argumentoé central no seio da literatura anglo-saxônica sobre asassociações, na qual, bem logicamente, essas sãodefinidas como organizações não-lucrativas (non profitorganizations), encontrando-se o setor associativoidentificado ao setor sem fins lucrativos. A não-lucratividade é definida como o modo de organizaçãosuscetível de suscitar a confiança das partes interes-sadas e de diminuir a ocorrência de comportamentosoportunistas. As associações, comoestruturas sem fins lucrativos, pro-põem aos consumidores uma solu-ção diferente daquela própria dasempresas com fins lucrativos.

Os problemas de assimetria deinformação, que engendram riscos deoportunismo, concernem aos bensdivisíveis, ou seja, àqueles que sãoconsumidos individualmente. Masexistem outros bens que são cole-tivos, ditos indivisíveis. Essa é arazão pela qual justifica-se que os serviços coleti-vos sejam financiados pelos impostos. Um tal pro-cesso de alocação de recursos não garante de formanenhuma a eficácia do resultado. A solução esco-lhida pode privilegiar a satisfação das demandas doeleitor médio, deixando outras, específicas, sem res-postas. Verifica-se, nesse caso, o fracasso do Esta-do, uma vez que algumas demandas continuaminsatisfeitas. É dessa forma que Weisbrod5 explica apresença de organizações sem fins lucrativos que res-pondem a essa demanda insatisfeita, o que é aindamais importante considerando-se que a sociedade érelativamente heterogênea de um ponto de vista so-cial, cultural, religioso ou lingüístico. De fato, os agen-tes econômicos que não se encontram satisfeitos como nível e as formas de produção públicas financiam,por meio de doações, a produção de outros bens eserviços. Eles confiam suas doações a associações,levando em conta seu capital de confiança.

James acrescenta que se pode explicar a ofertade associações pela existência de grupos de inspi-ração ideológica concorrentes.6 Efetivamente, não

se trata de empreendedores individuais, mas de gru-pos impulsionados por motivações de ordem religi-osa ou ideológica que buscam maximizar lucrosnão-financeiros, tal como o número de participan-tes, ou que procuram ampliar seu poder de influên-cia. Essas associações tenderão a oferecer bens eserviços nas esferas em que nem o mercado nem oEstado se fazem presentes.

AS CONTRIBUIÇÕES DASOCIOLOGIA E DAS CIÊNCIASPOLÍTICAS

Contrastando com as aborda-gens hipotético-dedutivas que fo-ram apresentadas, um número sig-nificativo de pesquisas adotametodologias mais históricas ecompreensivas. Elas enfatizam asdimensões sociopolíticas da asso-ciação, criticando a explicação do

interesse como único elemento mobilizador. Segun-do essas abordagens, o foco no interesse individu-al, próprio da teoria econômica neoclássica, cria umproblema singular ao explicar a associação. Supõe-se que a ausência de interesse material entre ospromotores de associações, manifestada na não-lucratividade, engendre a satisfação do interessematerial dos usuários. Essa constatação paradoxalremete a um interesse não-material por parte doscriadores, mas a noção de interesse torna-se entãode tal modo polissêmica que dá lugar a que nosperguntemos sobre sua pertinência heurística.

O que economistas como Etzioni7 contestam naanálise neoclássica é a pretensão a explicar o con-junto dos comportamentos humanos por escolhasracionais da esfera dos comportamentos instrumen-tais, ou seja, por escolhas voltadas para o resultadoda ação. Os indivíduos são considerados apenascomo consumidores e suas decisões tendem a ma-ximizar suas vantagens. Dessa forma, o papel dasorganizações só é percebido através da sua funçãode produção de bens e serviços, ficando na sombraoutras dimensões. Integração social ou participaçãodemocrática são instâncias ignoradas. As aborda-

O estatuto jurídico daassociação, com sua

exigência de não-redistribuição do lucro,

pode constituir um signopara a confiança, uma vez

que o serviço não serásuperfaturado para

aumentar a remuneraçãodos acionários.

5 Weisbrod, B. The voluntary nonprofit sector. Lexington, MA: LexingtonBooks, 1977.6 James, E. Comment. In: The economics of nonprofit institutions: studiesin structure and policy, S. Rose-Ackerman (Ed.), New-York: Oxford Uni-versity Press, 1986, p. 21-30.

7 Etzioni, A. The moral dimension: toward a New Economics. New-York:The Free Press, Mac Millan, 1988.

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gens sociológicas e das ciências políticas buscamexplicar o laço associativo de modo diferente da-quele visualizado pelo prisma utilitarista.

Na linha de Weber, as asssociações estariam noâmbito do laço societário, manifestando uma racio-nalidade em valor e não em finalidade. A associaçãonão reúne apenas indivíduos ligados por interessescomuns, mas pode basear-se em convicções. A ade-são voluntária pode igualmente implicar um horizon-te de inteligibilidade e de significa-ção que é de ordem intersubjetiva,evocando a noção de agir comuni-cacional de Habermas.

Com esse autor, o que se iden-tifica é a relação entre associaçãoe acesso ao espaço público, ouseja, a instauração, na associação,de um diálogo orientado para a in-tercompreensão, graças ao exer-cício de uma liberdade «positiva», que repousa noengajamento livremente consentido nas práticascooperativas.

O que torna original a moderna associação ésua relação com o espaço público, esse espaçode confrontação possível entre os cidadãos de umamesma democracia, regido pelos princípios de li-berdade e igualdade, condição de um mundo co-mum e, ao mesmo tempo, prova da sua existên-cia. O compartilhar, que é próprio da associação,remete à comunidade política, ou seja, a «umacomunidade que nenhuma origem comum justificaou fundamenta enquanto ela recusa, por princípio,qualquer comunhão final».8 Em termos durkheimia-nos, a modernidade da associação liga-se ao fatode que ela faz parte «de uma sociedade que nadatranscende, mas que transcende todos os seusmembros».9

Ademais, essa inscrição no espaço público serealiza a partir de redes interpessoais. A associa-ção delimita um espaço que opera a passagem daesfera privada para a pública por um encontro inter-pessoal. Podendo pertencer, ao mesmo tempo, aoprincípio societário e ao princípio comunitário, o fatoassociativo se desdobra, segundo os termos de

Caillé,10 na interface da “primaridade”, na qual a per-sonalidade importa mais que as funções, «e da se-cundaridade», na qual as funções importam maisque a personalidade, e abre o que se poderia cha-mar «de espaços públicos primários baseados nointerconhecimento».

As gradações dessa «intermediaridade» entre asesferas privada e pública podem ser variáveis. Alógica da organização voltada para o outro ou da aju-

da social corresponde à iniciativa naqual os promotores geram umaação que supõem necessária oudesejável para um grupo de bene-ficiários do qual não fazem parte.A lógica da auto-organização ou daajuda mútua corresponde à inicia-tiva na qual os promotores imple-mentam uma ação para o grupo doqual eles acham que fazem parte.

Existem também tendências que «primarizam» oespaço associativo, concebendo-o como a reprodu-ção de um espaço privado já constituído – nesse caso,opera-se com lógicas domésticas. Existem, no outroextremo, opções que consistem em «secundarizar»o espaço associativo, considerando-o como um mo-vimento social em que as relações personalizadascontam menos que a capacidade coletiva de pres-sionar o sistema institucional para forçá-lo à mudan-ça – nesse caso, a lógica da ação é a do registrocívico. Não esqueçamos, além disso, que se as as-sociações se inscrevem no espaço público a partirde um encontro interpessoal, também estão ligadasa relações de poder porque, como diz Barthelémy,elas «mediatizam os conflitos ideológicos da socie-dade global, contribuem para a formação das elitese para a estruturação do poder local e participamda definição das políticas públicas, legitimando aesfera político-administrativa». As associações re-lacionam-se a duas dimensões do político: de umaparte, à dimensão política não-institucional, cujo eixolocaliza-se no potencial de ação dos cidadãos e quesupõe que esses, praticamente, usam a liberdadepositiva da qual dispõem formalmente e, de outraparte, à dimensão institucional, centrada no exercí-cio do poder.

As abordagenssociológicas e dasciências políticas

buscam explicar o laçoassociativo de modo

diferente daquelevisualizado pelo

prisma utilitarista.

8 Tassin, E. Espace commun ou espace public? Hermès, n°10, 1992, p. 54.9 Lazar, M. La République à l’épreuve du social. In : SADOUN, M. (Dir.). Ladémocratie en France. Paris: Gallimard, 2000, p. 406.

10 Caillé, A. Don et association. Une seule solution, l’association? Revuedu MAUSS, n° 11, 1er semestre, 1998, p. 79.

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A dimensão política da associação não poderia,contudo, fazer esquecer sua dimensão econômicade produção de bens e serviços e a de contribuiçãopara o laço social. A associação não dissocia oscampos do econômico, social e político, o que, poroutro lado, engendra dificuldades de análise, umavez que muitos estudos se concentram sobre umdesses campos, segmentando-os segundo suaconstrução ou procedendo a abordagens monodis-ciplinares. Ao mesmo tempo que aassociação é intermediária entre osespaços privado e público, é tam-bém intermediária entre político eeconômico: essas duas dimensõescoexistem no fato associativo, mes-mo se as associações concretaspodem ponderá-las de maneira di-versa e privilegiar uma ou outra. Aslógicas de ação doméstica eviden-ciam a socialização e a reprodução das relaçõeshierarquizadas entre seus membros por meio de umaatividade econômica que deve contribuir para suaestabilidade, enquanto as lógicas de ação cívica dãoprioridade à ação política; nesse caso, as ativida-des econômicas e as relações sociais são apenasum suporte para o plano político. Quanto às lógicasde ação social e de ajuda mútua, uma importânciaprimordial é concedida aos bens e serviços forne-cidos.

Essa imbricação de instâncias econômicas, so-ciais e políticas sugere que a iniciativa não tem aver somente com uma racionalidade formal ou ins-trumental, mas inclui a referência a valores ou cren-ças como uma vontade de intercompreensão. Aspessoas envolvidas são mais atores de mudançaou empreendedores, no sentido de Weber e Schum-peter, que indivíduos apenas racionais. Elas possu-em a capacidade de pensar a novidade, de ir alémdas críticas suscitadas pela novidade, misturandoassim elementos racionais e emocionais. Mais fun-damentalmente, os indivíduos não se comportamcomo atores unicamente econômicos, trata-se demembros de famílias ou de comunidades (local, étni-ca, profissional...). Trata-se igualmente de cidadãosna esfera política. E é precisamente a sobreposição,ao mesmo tempo aberta e indefinida, dessas dimen-sões da identidade no seio do espaço público de

nossas sociedades que constitui o espaço associa-tivo na esfera intermediária. Mistos complexos dedesinteresse e interesse, as motivações e as razõesde agir que aí se encontram são, ademais, um teste-munho de que a associação é particularmente per-meável às condições sociais nas quais ela se mode-la, sobretudo permeável aos contornos do sistemainstitucional. Daí uma conceitualização que insiste nadimensão intermediária do fenômeno associativo,

enfatizando seu caráter fundamen-talmente aberto e pluralista.

Essa concepção pode ser tra-duzida, de modo particular, com ouso de uma representação trian-gular para a análise do fato asso-ciativo, a qual integra «a grandevariedade de fatores» que o cons-titui e o influencia. Esse quadroanalítico serve de referência a duas

problemáticas próximas: uma, enfatiza os elementosconstitutivos da proteção social e do welfare; a outra,insiste nos componentes de uma economia abordadacomo plural.

O triângulo proposto por Evers situa a associa-ção entre famílias, mercado e Estado para dar con-ta da diversidade dos recursos que concorrem paraa proteção social. Ele evidencia «um elemento im-portante, mas ignorado pelas diversas correntes daescola americana, a saber, o papel das comunida-des informais e semi-informais, sobretudo da famí-lia, que é o coração dessas, como campo constitutivode uma economia mista da proteção social».11

Próxima e complementar é a abordagem da eco-nomia plural. Essa corrente insiste na pluralidade dosprincípios econômicos, que pode ser inferida dascontribuições convergentes de autores como Boul-ding, Mauss, Perroux, Polanyi ou Razeto Migliaro, osquais propõem uma definição extensiva da econo-mia, distinguindo três princípios. Ao lado do merca-do e da redistribuição pública, a ênfase é posta so-bre a reciprocidade, que corresponde à relaçãoestabelecida entre grupos ou pessoas graças à pres-tação de serviços que só ganham sentido pela von-tade das partes interessadas de estabelecer um laço

A dimensão política daassociação não poderia,contudo, fazer esquecer

sua dimensão econômicade produção de bens

e serviços e a decontribuição para

o laço social.

11 Evers, A. Le tiers secteur au regard d’une conception pluraliste de laprotection sociale. In: Produire les solidarités. La part des associations.Paris: Mire/ Fondation de France, 1997.

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social. O ciclo da reciprocidade se opõe à trocamercantil, porque ele é indissociável das relaçõeshumanas que põem em jogo desejos de reconheci-mento e de poder, e distingue-se da troca redistri-butiva na medida em que não é imposto por umpoder central.

Essas duas abordagens levam a relacionar açãoassociativa e ação pública, uma vez que as duastêm origem na resistência à utopia de uma socieda-de de mercado – promovida pelacorrente liberal desde o século XIX– e se encontram profundamenteimbricadas.

Enquanto as diferentes grada-ções da teoria neoclássica viam asassociações como organizaçõesque intervinham em caso de falhasdo mercado ou do Estado, a reali-dade histórica nega essa perspec-tiva. Na realidade, o desatrelamen-to12 do mercado desencadeoureações da sociedade, entre asquais a constituição de associa-ções e, depois, a construção de umEstado social protetor.

AS RAZÕES DA ATUALIDADE DASASSOCIAÇÕES

Aclarando a história, as concepções sociopolíti-cas também permitem apreender melhor os fatoresexplicativos, ao mesmo tempo políticos e socioeco-nômicos, para o fato de as associações voltarem aser atuais.

Fatores políticos

O primeiro fator não deve ser negligenciado.Existe hoje um apelo às associações para que so-lucionem as disfunções institucionais. Nem todasas associações que se pode qualificar de pára-ad-ministrativas são “testas-de-ferro” da administraçãodestinadas a escapar ao controle orçamentário pú-blico. Associações como as missões locais para o

emprego de jovens ou outras iniciativas no âmbitodas novas políticas sociais «transversais» buscamfacilitar a cooperação em determinado lugar pararesolver problemas que nenhuma instituição isola-da chega a solucionar. A multiplicação das com-partimentações no mundo administrativo, como adistância que separa as instâncias públicas das pri-vadas, tem engendrado uma tendência a utilizar aforma associativa para impulsionar novas formas

de governança que reúnem políti-cos, organizações privadas e pú-blicas, parceiros sociais. Essas co-ordenações interinstitucionais sãodestinadas a promover aborda-gens mais integradas, partindo deum diagnóstico ao menos parcial-mente partilhado, elaborado combase nas percepções dos diferen-tes participantes. Se essas parce-rias, inegavelmente, mudam oscomportamentos institucionais,não apresentam menos o risco deconfinar a tomada das decisõesàs redes de especialistas, osquais elaboram, entre quatro pa-redes, uma engenharia social,

sem que daí resulte um progresso da participa-ção cidadã.

É esse o motivo pelo qual, apesar da novidadede as instituições estimularem o associativismo, en-contrar-se em outro lugar a principal razão para adinâmica associacionista. Como os dados empíri-cos indicam, as razões para isso residem antes nocrescimento acelerado do número de associaçõesesportivas, culturais ou de lazer.13 A diminuição dotempo consagrado ao trabalho sustenta esse mo-vimento e assiste-se na França, depois de noutrospaíses, como na Itália, a emergência de uma refle-xão sobre a articulação dos diferentes tempos soci-ais.14 Descobre-se, nesse momento, que o tempodito «livre» não é necessariamente um tempo dedesenvolvimento pessoal e de relações gratifican-tes, uma vez que é condicionado pelas desigual-

12 Polanyi, K. La grande transformation. Aux origines politiques et écono-miques de notre temps. Paris: Gallimard, 1983. No Brasil, A grande trans-formação, lançado em 1980 (Editora Campus, São Paulo), teve a suasegunda edição em 2000. NT.

A multiplicação dascompartimentações nomundo administrativo,como a distância quesepara as instâncias

públicas das privadas,tem engendrado umatendência a utilizar a

forma associativa paraimpulsionar novas

formas de governançaque reúnem

políticos, organizaçõesprivadas e públicas,

parceiros sociais.

13 Juan, S. L’utilité sociale de l’activité associative face à la professionna-lisation et à la “marchandisation ”. Sociologie du travail, n° 2, vol. 41, avril-juin 1999, p. 195-207.14 Conferir, por exemplo, o número especial da Revue de la CFDT, Sur lestemps sociaux, n° 32, juin, 2000.

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dades sexuais15 e sociais.16

Ao lado dessas razões, uma outra fonte contem-porânea para a dinâmica associativa é a politizaçãoda vida cotidiana. Por muito tempo algumas facetasda sociedade não puderam ser interrogadas porqueeram do âmbito do espaço privado ou porque repou-savam sobre representações sociais que não podi-am ser contestadas. Desde os anos 1960, as trans-formações verificadas nos modos de vida vêmintroduzindo «no campo discursivoaspectos da conduta social que, an-tes, eram intangíveis ou estabeleci-dos por práticas tradicionais».17 Essacapacidade auto-reflexiva é ilustradapor movimentos como o feminismoou a ecologia. Esses novos movi-mentos sociais emergem a partir dosanos 1960, exigindo uma melhor«qualidade» de vida. Trata-se de«substituir uma política do modo devida por uma política do nível devida»,18 de levar em conta as dimen-sões de participação nas diferentesesferas da vida social, de preservar o meio ambien-te, de mudar as relações entre os sexos e as ida-des. Vozes se elevam para pôr em dúvida a capaci-dade da intervenção pública de suprir as insuficiênciasdo mercado. Usuários denunciam lógicas burocráti-cas e centralizadoras de instituições redistributivas:segundo eles, a falta de aptidão para a inovação geraa inércia, o controle social e o clientelismo. E maisgrave ainda: a inadequação diante de situações devida diferenciadas explica a sobrevivência de fortesdesigualdades por trás de uma aparente uniformiza-ção igualitária.

Essas formas de expressão assinalam uma mo-dificação tendencial das formas de engajamento noespaço público. Ligado a um projeto de sociedadeque implica uma ação por determinado período eamplas delegações de poder no âmbito de estrutu-ras federativas, o militantismo generalista fragiliza-se, como mostram-no certos engajamentos sindicais

e ideológicos. Por outro lado, essa crise do trabalhovoluntário, constatada entre as associações maisinstitucionalizadas, é acompanhada de uma eferves-cência associativa com engajamentos concretos, deduração limitada, centrados em atividades ou proble-mas particulares e operando em rede para fornecerrespostas rápidas aos sujeitos envolvidos. Um dosindicadores dessa mudança é o crescimento do nú-mero de associações de «militantismo moral», que

defendem causas como o anti-racismo ou como as que dizem res-peito a pessoas privadas de direi-tos, a exemplo dos “sem-documen-to”19 ou dos sem-teto.20

Fatores socioeconômicos

A revitalização do associacio-nismo está também ligada a evo-luções sociodemográficas: enve-lhecimento da população, diversi-ficação do perfil das famílias,progressão da atividade feminina.

Novas demandas de serviços exprimem-se em umperíodo em que os governos se esforçam por con-ter as despesas dos Estados-Providência. As asso-ciações têm assim um lugar marcado pela ambiva-lência, impulsionando, ao mesmo tempo, modos deação inovadores, mas o fazendo em um contextoem que deixam o flanco aberto para a acusação deacompanhar o desengajamento do Estado.

Em todo caso, seu impulso pode ser bem com-preendido pela escalada, no conjunto da economia,dos serviços relacionais em que a atividade é base-ada na interação direta e complexa entre prestadorde serviço e destinatário.

Se as associações estavam ausentes da indústria,é lógico que elas “entrem em economia” quando 70%da população ativa trabalha nos serviços. Na encruzi-lhada da evolução sociodemográfica e econômica,

15 Méda, D. Le temps des femmes. Paris: Flammarion, 2001.16 Mothé, D. L’utopie du temps libre. Paris: Esprit-Seuil, 1996.17 Giddens, A. Beyond left and right. The future of radical politics. Cam-bridge: Polity Press, 1994, p. 120.18 Perret, B. ; Roustang, G. L’Economie contre la société (affronter la crisede l’intégration sociale et culturelle), Paris: Collection Esprit/Seuil, 1993.

As associações têm um lugar marcadopela ambivalência,

impulsionando, ao mesmotempo, modos de ação

inovadores, mas o fazendoem um contextoem que deixam

o flanco aberto para aacusação de acompanhar

o desengajamentodo Estado.

19 Sans-papier : estrangeiros que querem permanecer num país, masnão dispõem da documentação legal para isso. NT.20 Cf. Filleule, O. Sociologie de la protestation. Les formes de l’actioncollective dans la France contemporaine. Paris, L’Harmattan, 1993 ; Mayer,N. (Dir.). Les collectifs anti-Front National. Les Cahiers du CEVIPOF, 13,septembre 1995; ver também o lugar que Alain Caillé confere a essas as-sociações: Caillé, A. La société mondiale qui vient. In: Laville, J.L. et al.Association, démocratie et société civile. Recherches-La Découverte,2001, p. 182-207.

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quatro quintos das atividades associativas se dividementre educação e pesquisa, saúde e serviços sociais,cultura, esportes e lazer e elas representaram 13%dos empregos criados entre 1980 e 1990.21

Esse aumento da importância das atividades eco-nômicas associativas em um período de desestabi-lização das relações com os poderes públicos en-gendrou o aparecimento da temática da empresasocial no seio dos países da União Européia nosúltimos 15 anos do século XX.22 Aassociação tornar-se-ia o vetor deuma terceira figura da empresasocial, que não é nem pública nemprivada com fins lucrativos. O re-conhecimento da empresa social éhoje atestado pelas leis adotadasna Itália, em Portugal ou na Euro-pa nos anos 1990. Mas, além dofato de se criarem tais estatutosnesses países, o funcionamento denumerosas associações em toda aEuropa é que realmente provousua capacidade de resistir à mer-cantilização da vida social e de inventar outros mo-delos de ação em campos de atividade em que,ademais, investem grandes grupos privados.

A experiência evidencia que o caráter não-lucrati-vo das associações é menos determinante que suacapacidade de criar a confiança mediante o envolvi-mento de diferentes partes interessadas no serviço(usuários, profissionais, voluntários, financiadores).Como mostra-o o exemplo das régies de quartier,23

que reúnem moradores, coletividades locais e re-presentantes dos órgãos que gerenciam e financi-

am habitações populares, são os “espaços públicosde proximidade” que tornam possível uma constru-ção conjunta da oferta e da demanda de serviços;eles integram a tomada da palavra coletiva dos mo-radores, que não são mais considerados como be-neficiários, porém como atores de serviços. Essaestratégia de “voice”, no sentido de Hirschman, fa-vorece a concepção de atividades que não poderi-am ter sido imaginadas no seio de outros serviços

públicos e privados. Essa realida-de merece ser objeto de reflexãono momento em que se fala de de-mocracia da proximidade.

Essas experiências, fundadassobre a mobilização de recursosvoluntários, são também levadasa pesquisar um equilíbrio, drenan-do igualmente recursos mercantise não-mercantis. A autonomia quebuscam as incita a não voltar a umarelação de dependência dos pode-res públicos, mas sua preocupaçãocom a igualdade de acesso aos

serviços e com os benefícios coletivos de que sãoportadoras leva-as a necessitarem de financiamen-to público. Elas querem promover serviços mistos,em uma conjuntura na qual o financiamento dos ser-viços sociais pelo poder público é fragilizado peladiminuição dos meios de que dispõe o Estado-Pro-vidência.

Desenvolvidas por atores de diferentes origenssocioprofissionais, essas iniciativas, quaisquer quesejam suas particularidades, deslocam as frontei-ras instituídas entre o econômico e o social, nuncase encontrando de todo na esfera da economia ouda solidariedade estatal. As ações realizadas con-tribuem para a criação de atividades econômicas ede empregos, ao mesmo tempo que reforçam a co-esão social por meio de novas relações sociais desolidariedade. Elas tiram sua força do sentido deque se revestem para seus promotores. Pouco im-porta que repousem sobre a consideração de ne-cessidades específicas de uma população, sobre avontade de conseguir ocupação para pessoas sememprego ou sobre o desejo de trabalhar na preser-vação do meio ambiente, sua pertinência continualigada à manutenção de espaços públicos de proxi-

21 Archambault, E. Le secteur sans but lucratif ; associations et fondationsen France. Paris: Economica, 1996.22 Borzaga, C. Defourny, J. (Dir.) Social enterprises in Europe. Londres:Routledge, 2001.23 Espécie de associação de moradores ou de empreendedores sociais:“Entre o econômico e o social, a régie de quartier, é uma estrutura que re-úne os moradores de um determinado território, geralmente de baixa ren-da, em torno de diversas atividades assalariadas: fazer a limpeza, cuidarde crianças, etc. A régie de quartier requalifica tarefas até agora desqua-lificadas e lhes confere uma dimensão de utilidade social, podendo con-correr para a requalificação do patrimônio e para que os moradores dedeterminado local se apropriem melhor do seu bairro”. (La régie de quarti-er – la régie de service, Disponível em: www.ecosolidaire.org/NIL/accueil/plan. Acesso em: 17/07/2002). As régies de quartier foram estudadas porGenauto França, em sua tese de doutorado em sociologia, Universidadede Paris VII, 2001: Sociétés en mutation et nouvelles formes de solidarité:le phénomène de l’économie solidaire en question – l’expérience desrégies de quartier au carrefour de logiques diverses. NT.

Desenvolvidas por atoresde diferentes origens

socioprofissionais, essasiniciativas, quaisquer

que sejam suasparticularidades, deslocam

as fronteiras instituídasentre o econômico

e o social, nunca seencontrando de todo na

esfera da economia ou dasolidariedade estatal.

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midade, quer dizer, de lugares que permitem àspessoas tomar a palavra, decidir, elaborar e execu-tar projetos econômicos adaptados aos contextoseconômicos nos quais emergem. Sua especificidadenão reside somente na sua dimensão de espaçopúblico, mas também no seu modo de funcionamen-to econômico. Os recursos mobilizados combinamtrabalho voluntário, recursos públicos e recursos li-gados à venda de serviços ou à parceria com seto-res privados. É essa lógica que foidenominada lógica de economiasolidária em diferentes contextosnacionais.24

UMA OUTRA ABORDAGEMDO LIAME SOCIAL

Por sua orientação atual, asassociações reforçam a importân-cia, na vida social, da referência àsolidariedade. Desde o século XIX,a solidariedade impôs-se como umparadigma capaz de ultrapassar o individualismocontratualista, ligado, por essa razão, à emergênciada sociologia. Depois de Leroux introduzir a noçãode solidariedade como liame social voluntário que,ao reunir cidadãos livres e iguais em direito, ocupao lugar da caridade na democracia, Durkheim e ossolidaristas ressaltaram, além das relaçõescontratuais, a dupla dívida social entre cidadãos eentre gerações. As pesquisas sobre o capital socialenfatizam as relações de cooperação e de solidari-edade como recursos coletivos para a sociedade epara a economia.

Como preconiza Walzer,25 a redefinição da açãopública é, hoje, levada a incluir a produção de con-dições favoráveis à multiplicação das formas de co-operação mútua ameaçadas pela monetarizaçãocrescente das trocas sociais. A questão, assim, nãoé substituir o Estado por uma sociedade civil asso-ciacionista, mas de reconhecer a complementarida-de entre poderes públicos e associações em basesque recusam a instrumentalização. Chanial precisa

este ponto com exatidão quando escreve contra asoposições entre sociedade civil e Estado: “a socie-dade civil supõe o reforço do Estado de direito eparticipa desse reforço”.26 A sociedade civil, se re-conhece os liames interpessoais, é marcada pelasdesigualdades. O Estado, por sua vez, procedendode orientações universalistas, garante direitos aomesmo tempo que estabelece regras gerais e pro-cedimentos padronizados que negligenciam a con-

tribuição das relações sociais deproximidade. Desse modo, a ques-tão a propor não concerne à subs-tituição do Estado pela sociedadecivil nem à dissolução da socieda-de civil no mercado, mas ao refor-ço mútuo entre democratização dasociedade civil e democratizaçãodas instituições públicas.

É por esse motivo que a questãodo liame social na associação se ligaà do futuro das democracias.

26 Chanial, P. Société civile, société civique? Associationnisme, libéralis-me et républicanisme, In: Laville, J.L. et al., op. cit., p. 159.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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______. Mouvements ou appareils associatifs?. Sociologie dutravail, v. 43, n.1, p. 131-137, janv./mars, 2001.

24 Para uma perspectiva internacional, ver Laville, J.L. (Dir.) L’économiesolidaire. Paris, 2000 (nova edição aumentada).25 Walzer, M. Sauver la société civile. Mouvements, n° 8. Paris, LaDécouverte, 2000.

A questão a propor nãoconcerne à substituição

do Estado pela sociedadecivil nem à dissolução

da sociedade civilno mercado, mas aoreforço mútuo entredemocratização dasociedade civil e

democratização dasinstituições públicas.

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A&D: Conte-nos um pouco dasua história e como você se apro-ximou do tema que tratamos nes-te momento, a Economia Solidária.

Coraggio: Bem, a minha pre-ocupação com estes assuntos co-meçou na Nicarágua, quando euera pesquisador da Coordenado-ria Nacional de Pesquisas Cientí-ficas e Sociais, no períodosandinista, e percebemos queexistiam dois problemas em rela-ção à Economia Popular. O pri-meiro era que os dirigentesrevolucionários tinham dificuldadeem compreender, ao menos domeu ponto de vista, a lógica daeconomia informal urbana. Porexemplo, se alguém queria ter umpequeno empreendimento que

vendesse uma variedade de bens –sapatos, ovos, fruta, roupas, etc.– a revolução não aceitava, poisqueria ordenar o mercado, queriaque um se especializasse em ven-der banana verde, um outro, sa-patos, o seguinte, ovos, e assimpor diante. Se pensássemos doponto de vista do funcionamentoda economia familiar, esta propos-ta não era conveniente.

Também havia uma luta con-tra a especulação, mas a políticaeconômica gerava a especulação.Se alguém, por exemplo, compra-va um queijo no mercado e o le-vava para vender de casa emcasa, em pedaços, isso era con-siderado atividade especulativa.Quer dizer, não havia compreen-são da lógica dessa economia.Então, nós fizemos um levanta-mento que tinha como objetivoentender o funcionamento das

unidades domésticas. Esse levan-tamento mostrava claramentecomo as unidades domésticasajustavam a sua participação nomercado de trabalho: isso signifi-cava ter um emprego assalariadoqualquer, que, durante a revolu-ção, dava acesso a um pacotebásico de bens que se adquiriamcom um cartão, e, por outro lado,participar do mercado informalpara poder completar a renda.Todo esse tipo de coisas era difí-cil de entender, se a partir de umavisão um pouco rígida de como aeconomia e a satisfação das ne-cessidades são organizadas.

Havia também um problemade incompreensão e de falta dearticulação entre os códigos decomunicação, entre o código dossetores populares e o dos diri-gentes revolucionários, dos téc-nicos. Foi com base nisso que eu

* Entrevista concedida a Débora Nunes, douto-ra em Urbanismo (Universidade Paris XII), pro-fessora e pesquisadora da UNIFACS e da [email protected]

A BAHIA ANÁLISE E DADOS* por ocasião do Fórum Social Mundial/Porto Alegre/2002 entrevistou José Luis Corragio, sobre sua trajetória pessoal e aproximação como tema da Economia Solidária. Economista, pesquisador titular do Instituto delConurbano e Reitor da Universidad Nacional de General Sarmiento (Buenos Aires),José Luis Coraggio é também assessor da Rede Temática “Políticas Sociales Urba-nas”, do Programa URB-AL. Pesquisador de reconhecido prestígio internacional, au-tor de inúmeros artigos e livros com análises que se situam entre as mais instigantes,originais e inovadoras nos campos da economia popular urbana, das políticas sociaise do desenvolvimento local.

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A BAHIA ANÁLISE E DADOS* por ocasião do Fórum Social Mundial/Porto Alegre/2002 entrevistou José Luis Corragio, sobre sua trajetória pessoal e aproximação como tema da Economia Solidária. Economista, pesquisador titular do Instituto delConurbano e Reitor da Universidad Nacional de General Sarmiento (Buenos Aires),José Luis Coraggio é também assessor da Rede Temática “Políticas Sociales Urba-nas”, do Programa URB-AL. Pesquisador de reconhecido prestígio internacional, au-tor de inúmeros artigos e livros com análises que se situam entre as mais instigantes,originais e inovadoras nos campos da economia popular urbana, das políticas sociaise do desenvolvimento local.

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comecei a conceber a idéia deque era preciso estabelecer umaoutra comunicação, uma outracompreensão, o que exigia quese pesquisasse e entendesseessa economia.

A&D: Nesse período você ti-nha em torno de 40 anos. Quaiseram os autores que lhe inspira-vam essa compreensão?

Coraggio: Bem, procurei eachei antecedentes em trabalhosfeitos no México sobre o que, na-quela época, se chamavam estra-tégias de sobrevivência. Essa erauma expressão discutida, achan-do alguns que se tratava de es-tratégias de vida. Entretanto, odebate era muito limitado, estavamuito centrado no lar, no tema dareprodução, inclusive biológica,ou na explicação do porquê oscamponeses tinham filhos, doponto de vista econômico. Discu-tia-se também a importância dotrabalho doméstico. Tudo isso erauma fonte útil para se refletir. Po-rém, eu não estava muito con-centrado em entender a unidadedoméstica, o que me interessa-va era a unidade doméstica den-tro de um projeto de mudançasocial, de transformação social,de revolução.

A&D: As discussões da antro-pologia que se produziram nessaépoca, como a idéia da existên-cia de uma “cultura da pobreza”,desenvolvida por Oscar Lewis,chegavam até você, mesmo sen-do economista?

Coraggio: Os estudos sobrea cultura da pobreza tinham sidofeitos justamente no México, eutinha lido isso quase como litera-

tura, não tinha me aproximado dopensamento antropológico. Esempre discordei do enfoque e doestudo dos pobres como tais, ospobres como objeto de estudo ea pobreza como uma cultura auto-reproduzida. Inclusive, hoje, 20anos depois, eu brigo contra aspolíticas assistencialistas dirigidasaos pobres, contra a focalizaçãoou a idéia de que a economia dasolidariedade é dos pobres e paraos pobres. Eu estou totalmenteem desacordo com isso: achoque é necessário provocar umatransformação da sociedade, quesó assim a pobreza desaparece.Se eu trabalhar só com os po-bres, eu não erradico a pobreza,é muito difícil.

A&D: E em termos metodoló-gicos – você teve contato, nesseperíodo, com a pesquisa partici-pante de Fals Borda, por exem-plo?

Coraggio: Tive sim, mas tive-mos desencontros com Fals Bor-da, porque ele e outras pessoasda América Latina tinham umapostura muito idealizadora dosenso comum e do saber comum,e muito anticientífica. Por isso,justamente, eu escrevi, com mi-nha companheira, Rosa MariaTorres, um trabalho que se cha-mava “Investigación social: loparticipativo no quita lo científico(y viceversa)”. A idéia era queesse tipo de pesquisa não tem porque ser não-científica. Ou seja, euposso estar fazendo uma pesqui-sa sociológica, porém de manei-ra participativa, como uma inter-venção sociológica em que usoconceitos teóricos. Se eu ficar res-trito ao conhecimento comum das

pessoas, eu estou negando àmaioria o acesso ao conhecimen-to científico, que também não pos-so idealizar. Ou seja, era como terque escolher entre ser cientificistaou ser populista: e eu digo não.Há um conhecimento científico,tecnológico, fundamental, quetem sido alienado da população– as pessoas não têm acesso aesse conhecimento, mas têm,sim, um conhecimento prático queé muito importante. Hoje euenfatizo ainda mais essa impor-tância que naquele tempo. Porém,como cientista social, eu tenho aresponsabilidade de trabalharcom as pessoas. Além disso, eutrabalhei muito em educação po-pular e a gente descobria que aspessoas não queriam que nósfôssemos às reuniões e dissés-semos: –”Sabe o quê? Todosnós somos iguais, vamos ser ho-rizontais. Fale... Quem quer fa-lar primeiro?”. Eles diziam: –“Bom, se eu fui chamado aqui,me ensine alguma coisa, imagi-no que vocês têm algo pra ensi-nar pra gente”.

Eu sempre discordei dessatendência da educação popular,que considero manipuladora, debrincar de que todo o mundo temo mesmo conhecimento e que,depois, emerge uma síntese nofinal. Eu percebia que nas ofici-nas de educação popular quasesempre o resultado era o mesmo:o problema era o imperialismo, ocapitalismo, as relações de pro-dução. E eu pensava: não é pos-sível que em todo lugar oresultado seja o mesmo. De fato,só é assim porque os animado-res encaminham tudo para queaconteça dessa forma. Sejamos

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francos, digamos que no trabalhoinicial com setores populares nemé bom dar um curso de teoria so-ciológica nem fazer de conta queas pessoas produzem esse co-nhecimento sozinhas.

Seria melhor o encontro francode duas visões, que é o que hojeproponho. Ou seja, um desafio daEconomia da Solidariedade é esseencontro entre o conhecimento ci-entífico, técnico, codificado, muitosistematizado, porém hipotético, eo conhecimento prático das pes-soas, com o qual elas resolvem osproblemas do dia-a-dia. É perce-ber essas visões de mundo con-trastadas com as visões doscientistas.

Entendo esse encontro comouma das coisas mais importantespara que a Economia Solidáriafuncione. Insisto, não devemoscair num populismo que acha queo povo sabe tudo e tem razão.Ainda por cima, esses populistasdizem: “Ninguém sabe mais dapobreza que os pobres. Se elessobrevivem, quer dizer que elestêm o conhecimento necessário,porque, neste mundo, não é pos-sível sobreviver”. E nós, intelec-tuais, ficamos como?... Além domais, isso cria no cientista um es-tado mental de culpabilidade, umavez que ele é um privilegiado quefreqüenta a Universidade. Achoque temos uma responsabilidadeque não abre espaço para nossentirmos poderosos e donos daverdade, o que pode levar aotecnocratismo, em que não é rarose cair também. É preciso partici-parmos de uma troca real.

A&D: Relacionando esses pri-meiros tempos seus na Nicará-

gua, observando o setor informalurbano e as dificuldades de co-municação entre povo e dirigen-tes, com a atualidade, 15 anosdepois, quando se chegou a essadiscussão sobre Economia Soli-dária aqui no Fórum Social Mun-dial, em que você mudou e ondemudou o mundo?

acompanhando o caso de PortoAlegre, porque acho-o muito im-portante, como também é impor-tante o processo de descentrali-zação de Montevidéu.

Creio que o que aconteceu,na verdade, foi que amadureci ouaprendi com as experiências.Aprendi, por exemplo, que fazeruma revolução de cima para bai-xo não é bom, mesmo sabendoque a força que muda a correla-ção de poder vem de baixo.Quando as decisões a respeitode como deve ser a sociedadesão tomadas lá em cima, isso nãoé bom. Quer dizer, tem que ha-ver participação de fato, as pes-soas têm que participar realmen-te das decisões. Para isso énecessário criar espaços de diá-logo, de encontro entre diversasposições, entre diversas visõesde mundo, entre diversos interes-ses do mesmo campo popular.Acho que, nesses 15 anos, mu-dei para melhor e o mundo, parapior, uma vez que fui desenvol-vendo essas idéias e que o sis-tema foi ficando cada vez maisexcludente. Ou seja, naquelaépoca colocamos a necessidadede mudar o sistema, mas depoisdisso veio a queda do socialis-mo real, veio a derrota do sandi-nismo, que caiu também devidoa seus próprios erros e a seu pró-prio nível de corrupção.

Fui embora da Nicarágua an-tes de os sandinistas perderem aseleições, porque senti que nuncapoderia ser nicaragüense e quetinha que estar num país onde mesentisse cidadão. Aí, fui para oEquador, porque minha mulher éequatoriana, mas lá não haviaprojetos revolucionários. Entrei

Um desafio da Economiada Solidariedade é esse

encontro entre oconhecimento científico,

técnico, codificado, muitosistematizado, porém

hipotético, e oconhecimento prático daspessoas, com o qual elasresolvem os problemasdo dia-a-dia. É perceberessas visões de mundo

contrastadas com as visõesdos cientistas.

Coraggio: Que pergunta difí-cil! Acho que desde a Nicaráguaeu já desenvolvia cada vez maisessa idéia da democracia partici-pativa, porque naquele país exis-tia essa prática de os dirigentesrevolucionários encararem o povouma vez por semana. Quer dizer,eles reuniam-se com as pessoase elas podiam dizer o que preci-savam, podiam apresentar asquestões que queriam, fazer crí-ticas. As mulheres faziam a críti-ca do machismo nicaragüense,por exemplo. Esse rasgo demo-crático participativo, na minhaopinião, começou nesse tipo deexperiência e não aqui em PortoAlegre. Eu sempre procurei amaneira de poder realizar isso eme fixei nas experiências queaconteciam. Há dez anos venho

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num centro de pesquisa, ondecheguei a diretor de pesquisa.Mas desde a Nicarágua eu sem-pre quis saber para quem eu tra-balho. Eu não quero fazer coisassozinho; sempre me vinculo a al-gum sujeito, trabalho para algumsujeito social. Assim, nesse cen-tro, propus o seguinte: “Façamosde conta que existe um sujeitosocial, um movimento social urba-no que faz um pedido para nós,como pesquisadores, fazermosos estudos que eles precisam”.Claro que não havia ninguém asolicitar tais estudos. Então, fica-mos a pensar em qual a pesqui-sa que deveria ser feita se hou-vesse esse tipo de sujeito, tendoem vista a formação do progra-ma de pesquisas. Ficou claro quea equipe teria que ser multidisci-plinar, porque os problemas erammuito mais complexos: não erasuficiente ter arquitetos e um ououtro economista, eram necessá-rios historiadores...

A&D: Quais foram esses su-jeitos sociais para os quais vocêtrabalhou ao longo da vida?

Coraggio: Na Nicarágua eraa revolução. Em Quito, eu tiveque imaginá-lo, porque não ha-via esse sujeito. Na Argentina...Francamente, só agora apareceum sujeito social, ao qual semdúvida vou me vincular, que é aCentral de Trabalhadores Argen-tinos (CTA): sua visão supera osimples corporativismo e não écorrupta como são outras cen-trais sindicais. Do ponto de vis-ta partidário a Argentina é muitodifícil. Há muita inconstância, aspessoas passam de um ladopara o outro...

A&D: Você começou estudan-do a sobrevivência dos pobres,suas formas de organização, pas-sou pela idéia da revolução e che-ga, hoje, a uma discussão sobrea Economia Solidária, de umaperspectiva macroestrutural.Como é que você viu e viveu essapassagem?

pelo lado da democracia. Na Nica-rágua, escrevi dois livros sobre ademocracia sandinista; avanceipelo lado da Economia Popular(como eu a chamava naquele mo-mento), tentando situá-la dentro doconjunto da economia e da socie-dade – mas não como um micro-empreendimento – e conceituá-laem um marco mais macro.

A&D: Nesse tema específi-co da Economia Popular, vocêteve contato com os conceitosde Milton Santos, de “circuitosuperior e circuito inferior daeconomia”? Como isso se colo-cava nos anos 70?

Coraggio: Eu li essas coisasem 1978, para fazer um trabalho,no México, sobre El Salvador. Nósdesenvolvemos uma metodologiaque trabalhava com sistemas deprodução e reprodução de cadei-as produtivas, que articulava aprodução com a reprodução. De-pois, na Nicarágua, nós compre-endemos que essa metodologiapermitia entender o campesinatonicaragüense muito melhor. Ocampesinato não só produzgrãos, vacas e leite, mas tambémforça de trabalho, gera força detrabalho para o resto do sistemaprodutivo, por exemplo, nas épo-cas de colheita. Então, quando liMilton Santos, não fiquei muitoimpressionado, achei bom, masnão foi uma ruptura. Até agora euquase não o citei porque senti quenão acrescentava muito à proble-mática que estava sendo desen-volvida no México. No Méxicotrabalhava-se muito com cadeiasprodutivas, com sistemas produ-tivos, e nós acrescentamos o as-pecto da reprodução.

A solidariedade nãocomeça com um valor,ela é uma relação de

vinculação real, material,dos interesses da

população, na qual aspessoas são solidárias com

os outros porque issotambém é bom para elas.Reconheço que existeminteresses particulares e

que é necessário construirum interesse geral.

Coraggio: Foi um processocontínuo. Não se trata de uma rup-tura, porque, de repente, em todocanto foi aparecendo a questão daEconomia Popular, da economiado trabalho. Eu já descobri traba-lhos prévios que Razzeto ou ou-tros tinham feito nessa linha, porémeu também me diferenciava. Querdizer, no meu caso não se colocaum sentido espiritual por trás dis-so. Eu sou mais objetivo, digamos,eu não sou cristão de base. Paramim, a solidariedade não começacom um valor, ela é uma relaçãode vinculação real, material, dos in-teresses da população, na qual aspessoas são solidárias com os ou-tros porque isso também é bompara elas. Ou seja, eu reconheçoque existem interesses particularese que é necessário construir um in-teresse geral. Então eu avancei

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A&D: Quais foram os seusmestres? Que autores e textos oimpressionaram ?

Coraggio: Os autores quemais me impressionaram foramJungen Habermas, Franz Hinke-lammert, Emmanuel Wallerstein.Em geral, são quase filósofos oufilósofos, não é? Cientistas políti-cos. Depois seria GuillermoO’Donnell, que considero muitobom, sobre o tema da democra-cia na América Latina, Bourdieue, sem dúvida, Marx. Tenho umaformação marxista autodidata...Bem, não só autodidata, porqueprocurei um professor, filósofo,que me ensinasse marxismo, por-que na Universidade não se ensi-nava. Estudei sistematicamentemarxismo, epistemologia. Semdúvida, se é para escolher umpensador, então escolho Marx.

A&D: Voltando aos conceitos,você falou que, num determinadomomento, se falava em “produçãoe reprodução da força de traba-lho”; depois, começou-se a falarde “Economia Popular” e, a partirde um determinado momento, emEconomia Solidária. Quando éque se dá isso?

Coraggio: Eu tomei uma de-cisão pessoal: acho que o concei-to teórico mais significativo paraentender tudo isso que estamosfalando aqui é “economia do tra-balho”, e não Economia Solidária.É um conceito mais amplo, queengloba muitas formas de orga-nizar autonomamente o trabalho,com a ressalva de que todas es-sas formas partilham algo: por trásdelas está a lógica da reproduçãoampliada da vida, que é o que eudescobri na Nicarágua nos cinco

anos em que estive lá. As pesso-as desafiavam a revolução porquea vida cotidiana estava em jogo equeriam viver melhor. Não se con-formavam em ser pobres com dig-nidade, queriam viver melhor.

Todavia, do ponto de vista po-lítico, eu acredito que se entrarmosna disputa por um termo ou outro,por exemplo Economia Popular...Por que adotei Economia Popular,para começar? Porque já estavainstalado nesse meio, digamos,um conceito de Economia Popu-lar que era diferente daquele queeu usava, mas que me permitia ocontato com as pessoas que esta-vam trabalhando essas questões.Entretanto, é muito complicado,porque imediatamente surge oproblema de saber o que é popu-lar; entramos nessa discussãotoda da cultura popular, do que épopular – porque, não são os po-bres, não é verdade? Decidi usaro termo Economia Popular assimmesmo, para me juntar às pesso-as, porém tentando ressignificá-lo.Mas ao fazer isso eu me depareicom uma outra dificuldade: por umlado, dar conta da Economia Po-pular real; por outro, apresentaruma proposta de transformá-la emoutra coisa. Na época eu falava: aEconomia Popular existente, a re-almente existente, e a EconomiaPopular que nós podemos desen-volver. Eu achei que tinha que di-ferenciar os dois termos, ou seja,usar um termo distinto e, assim,comecei a usar o termo “sistemade economia do trabalho”, que émais abrangente e inclui, porexemplo, um empreendimentopessoal: não tem por que serassociativo, não tem por que serbaseado em determinados valores

éticos... A solidariedade se dá pormeio dos intercâmbios, não den-tro de cada um de nós.

Além disso, a economia dasolidariedade estava muito liga-da ao pensamento cristão debase, no Chile e aqui no Brasil, eeu acho não só que não se temde traçar uma linha demarcativa,dizendo “Os que concordam comminhas idéias venham destelado”, como também que aderira essas idéias não deve implicaruma conversão de tipo religiosa,valorativa... exigente demais,particular demais. Creio que umapessoa pode ser solidária e sermuçulmana, cristã ou atéia.Considerei o termo “economiado trabalho” como mais objeti-vo, com menor carga valorativa.Todavia, há uma solidariedadeorgânica que é preciso desen-volver aí.

Finalmente, com base nas reu-niões internacionais, devo admi-tir que o termo Economia Solidáriaestá fortemente instalado e eunão tenho problema algum em meunir, em contribuir modestamen-te, no que for possível, com essacorrente. Acredito que tambémcompartilho os valores dos que acompõem, não na sua especifici-dade, como já disse, da conver-são, e sim no que eles têm a vercom as relações de solidarieda-de e, sobretudo, com os antago-nismos... Antagonismos contra ocapital, contra o capital financei-ro, contra o princípio de lucrocomo melhor forma de organizara economia e a satisfação dasnecessidades humanas.... En-fim, eu posso também discordar.Se alguém disser que viver bemsignifica viver em austeridade,

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modestamente, e não querer me-lhorar a vida material porque emoutra vida vai-se estar melhor...Isso eu não compartilho e achoque é ilegítimo propor tal coisa àpopulação, porque não é o que aspessoas querem. Se as pessoasquisessem isso, eu concordaria.Quer dizer, se na Índia houver umgrupo que quer viver ligado à na-tureza e quase não consumir coi-sas materiais, ótimo. Mas eu nãovou pretender que todo mundofaça a mesma coisa.

A&D: Há autores que come-çam a fazer uma certa diferencia-ção geocultural: a Economia So-cial estaria vinculada ao Estadode Bem-Estar Social europeu, oTerceiro Setor seria herdeiro deuma filantropia de tradição anglo-saxônica, a Economia Solidáriateria uma tradição mais francesae a Economia Popular seria maislatino-americana. Você identificaessas diferenças?

Coraggio: Eu acho que sãoum pouco exageradas. Sem dú-vida a economia social tem umaraiz européia e também traz con-sigo uma forte marca estatal. Istoé, quando reparamos na históriaque Laville constrói, isso vem domovimento operário, defensivo,que tentou autonomizar uma par-te das suas condições de vida:mas depois o Estado incorporaessas propostas, transforma-asem política de governo e, ao mes-mo tempo, a restringe. Nas últi-mas décadas, na Europa, a eco-nomia social tem uma presençamuito forte do Estado. Presume-se que a economia da solidarie-dade, da qual se fala na AméricaLatina, é mais de base. Essa é

uma outra coisa com a qual eu játive problemas. Em algumas cor-rentes, dentro desse grandeguarda-chuvas, há muito de an-tiestatismo, antipolítica e antimer-cado. Eu creio que o que tem queser feito é democratizar o Esta-do e não ser contra o Estado. Épreciso usar, criar e ampliar mer-

termo Economia Solidária já erautilizado aqui também.

A&D: Em que período, exata-mente, se começou a usar essetermo?

Coraggio: Como já disse, to-mando como referência o movi-mento contemporâneo, o termojá aparece em Razzeto, que usaexpressões como popular, soli-dária. É claro que há autoresfranceses que, nos anos 1960ou 1950, colocaram a necessi-dade de uma Economia Solidá-ria. No entanto, acho que a con-tribuição mais importante delesfoi essa história da economiasocial, iniciada pelo movimentooperário e retomada pelo Esta-do. Mas o problema agora é queo Estado nem sequer está inte-ressado em desenvolver a eco-nomia social. Além disso, mistu-ram-se muito esses temas coma idéia de Terceiro Setor, quesurge da sociedade civil. O Ter-ceiro Setor é uma grande almôn-dega, é uma mistura de coisas.Quando verificamos as classifi-cações do Terceiro Setor, vemosque inclui clubes de futebol, as-sociações de bairro, clubes deaposentados, ou seja, todo tipode organização: ONGs, bombei-ros voluntários, qualquer coisa.Na minha opinião, esse é uminvento anglo-saxão para ajudara justificar o fato de o Estado seomitir da sua responsabilidadede garantir os direitos humanos,sociais.

Agora, vejamos o mercado. AEconomia Solidária não pode fun-cionar sem mercado, não podeser antimercado, e precisa doEstado para mudar as normas ju-

O que tem que ser feito édemocratizar o Estado enão ser contra o Estado.

É preciso usar, criar eampliar mercados,

regulados, com relaçõesdiferentes, e não ser

antimercado. Porque serantimercado significa quesó podemos trocar coisas

pessoalmente, sem escalas.

cados, regulados, com relaçõesdiferentes, e não ser antimerca-do. Porque ser antimercado sig-nifica que só podemos trocar coi-sas pessoalmente, sem escalas.Desse jeito jamais vamos vencero capitalismo. É por isso quetambém discordo de algumasdessas correntes. Enfim, seaceitarmos que a economia so-cial é basicamente a forma im-pulsionada pelo Estado, comuma tradição européia, não po-deremos dizer que a economiade solidariedade vem da Fran-ça. Razzeto usou este termoantes, aqui na América Latina.Tenho a impressão de ter lido,também antes, coisas de MarcosArruda também. Está-se falandoque na França se faz um esforçointelectual para diferenciar a eco-nomia social, incorporada peloEstado, dessa outra a que cha-mam social e solidária; mas o

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rídicas, para mudar as políticasfiscais. O Terceiro Setor, do meuponto de vista, é uma propostaque confunde. Eu, pessoalmente,não gosto da versão de Riskin.Mas como está na moda, todo omundo fala em sociedade, Tercei-ro Setor, sociedade; eu acho queisso é uma salada.

A&D: Como você vê um even-to como esse no Fórum SocialMundial, com 1.600 pessoas fa-lando de Economia Solidária,apontando numa mesma dire-ção... Você acha que é um avan-ço ou uma nova moda?

Coraggio: Não vejo isso comouma nova moda. Acredito queesse evento reflete a convicção,cada vez mais profunda, de queo sistema capitalista não vai sairda recessão, que não teremospleno emprego de novo nemmelhorias salariais, e que nãovamos ter mais condições de lu-tar mais uma vez pelos sistemasde seguridade social. A convicçãogeral é que o paradigma tecnoló-gico excludente vai permanecerenquanto o capitalismo continuara comandar o uso da tecnologia,por isso é quase óbvio que aspessoas reajam... Além disso, aproposta do sistema é o assisten-cialismo, para a qual muita gentepreocupada pelos pobres contri-buiu... Ou seja, a preocupaçãopela pobreza dá lugar a dizer quedevem existir recursos para “darde comer” às pessoas, para dis-tribuir pacotes de comida, e queas ONGs, que estão mais próxi-mas da população, devem distri-buir a comida ou dar a assistên-cia ou ministrar a educação... aalfabetização. Ou seja, trata-se de

políticas assistencialistas terceiri-zadas.

Eu acho que começa a surgirum maior consenso a respeito danecessidade de mexer com a eco-nomia, porque, até agora, há pes-soas que dizem “Vamos tentarmudar as políticas econômicas,”porém essas políticas são gera-das por uma economia dominadapelo capital. Portanto, temos queseguir lutando, temos que tentarevitar o pagamento da dívida ile-gítima ou impagável, temos quetentar mudar a política fiscal –tudo isso precisa ser feito. Aomesmo tempo, não temos a forçanecessária para aplicar essasmedidas porque a cidadania estámergulhada numa situação dedependência do assistencialismo– na América Latina isso está claro–, do clientelismo. Portanto, é pre-ciso uma maior autonomia econô-mica e material para que as pes-soas possam agir como cidadãos,o que requer uma outra economia.Acredito que isso abre, inclusive,a possibilidade de que alguns go-vernos admitam a passagem dosistema assistencialista a um sis-tema de desenvolvimento de ati-vidades produtivas que possamser sustentadas, porque, casocontrário, é inviável.

É óbvio que, para os políticos,o preço é alto, porque eles sãoclientelistas. Isto é, quando elestêm coisas para repartir, eles ob-têm votos, o que não seria possívelse houvesse um sistema econô-mico que funcionasse autonoma-mente.

A&D: E, nesse debate, qualseria a particularidade da contri-buição latino-americana?

Coraggio: Bem, nós estamosna vanguarda da demonstraçãodos horrores que produz o neoli-beralismo. No passado, pelo me-nos uma vez a América Latinasubjugou a Europa, contribuindopara o pensamento europeu peloexemplo de revolução com liber-dade de Salvador Allende no Chi-le. O eurocomunismo olhava parao Chile, não é verdade? Eu acre-dito que o que nós podemos mos-trar hoje é a inviabilidade daspolíticas que estão sendo impos-tas na União Européia. Aquelesque articulam tais políticas podemver, na Argentina, a que conduz aabertura do mercado, a tecnocra-cia neoliberal, etc. Trata-se, por-tanto, de mostrar a inviabilidadedo sistema, mostrar o que leva àingovernabilidade que tanto pre-ocupa os países do norte, porqueesta levaria a confrontos, guerrase epidemias, o que, para eles, écaótico. Ou seja, eles precisam denações que funcionem, que sejaminterlocutoras, que sejam demo-cráticas.

Então, desse ponto de vista,acredito que estamos mostrandoa necessidade de uma mudançana esfera global. E há muita ex-periência e sofrimento. E mais, hácomo um ciclo que se destacariaem uma leitura européia domutualismo, uma vez que a aju-da mútua, as cooperativas come-çaram com o movimento operáriono início do século passado...Pode-se dizer que, hoje, se deveculminar novamente com os sin-dicatos. Na Europa ainda se re-siste, mas aqui temos a CUT, queé possivelmente o sindicalismomais avançado na região, que diz:“Vamos desenvolver cooperati-

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vas, vamos desenvolver formasde trabalho autônomo”. Os sindi-catos europeus ainda resistem, éna América Latina que acontecemessas coisas hoje.

Mas a América Latina contri-bui com mais uma coisa, a qualcomeçou muitíssimo antes docolonialismo: aqui na Américaexistiam culturas que tinham umaoutra forma de organizar a pro-dução e a reprodução, baseadana reciprocidade e em relaçõesde outro tipo. E o colonialismoveio – nos impôs o Estado, nosimpôs o município, nos impôs in-clusive as cooperativas, apesarde toda a resistência que houve...Agora, toda essa tradição ances-tral está emergindo: em Chiapas,no mundo andino, no movimentoindígena equatoriano, na Bolívia.Essa relação com a natureza,que os ecologistas têm, nossosindígenas tinham historicamente.Não podemos esquecer essa cul-tura que está começando a se re-vitalizar, porque, inclusive, essasetnias estão se reproduzindoagora numa velocidade demo-gráfica importante, estão aumen-tando mesmo numericamente.Mas há aqui um problema: ospróprios latino-americanos estãoa prestar atenção à literatura eu-ropéia em vez de olhar para suaprópria história, trata-se da nos-sa dependência intelectual. Nãodeveríamos estar em uma rela-ção de paridade, de poder dialo-gar, porém contribuindo mais doque fazemos quando somenteaprimoramos conceitos. De fatohá uma história latino-americana,como a experiência de Porto Ale-gre. Agora, alguém estava me di-zendo que há um município es-

panhol onde estão começando aimplementar o orçamento parti-cipativo. Quer dizer, começamosa contribuir com alguma coisaque vem de uma cultura políticaque requer mais participação.Aqui, a representação tem sidobastardeada pela corrupção,não é?

ideologia socialista e uma pro-posta de Economia do Trabalho,Economia Popular ou EconomiaSolidária?

Coraggio: Bem, aquela pro-posta, da qual eu também partici-pei, pois eu me situava dentrodesse campo, pretendia ter ummodelo ou uma utopia... Mas tra-tava-se de um modelo institucio-nal, pronto para ser instalado na-queles países onde fosse tomadoo poder: era a propriedade esta-tal dos meios de produção, era arestrição do capital. A revoluçãosandinista, porém, foi uma inova-ção, porque não nacionalizou osmeios de produção, mas apenasos bens da família Somoza. Con-trolou também o capital na esferada circulação. Isso já implicavauma ruptura, o que não aconteceem Cuba, onde tudo é estatal, atéas sorveterias, onde todos sãofuncionários do Estado.

Quer dizer, houve uma épo-ca em que não era só uma uto-pia, tratava-se de instituições.Considerava-se necessário oplanejamento centralizado, comotambém o Estado, e tinha-se quesatisfazer as necessidades bá-sicas de todos. Tudo isso esta-va previsto. Havia ainda uma ex-periência de décadas, na UniãoSoviética e outros países. Hojeem dia não temos um conjuntofechado de instituições-modeloa ser implementado. Estamosabrindo caminho. Isso é maisautêntico, porque estamos nosmovimentando no interior de umsistema, até agora hegemônico,que está sendo seriamentequestionado, que começa a ra-char e que, por isso, está fican-do perigoso, uma vez que, agora,

Há aqui um problema: ospróprios latino-americanosestão a prestar atenção àliteratura européia em vezde olhar para sua própriahistória, trata-se da nossadependência intelectual.Nós deveríamos estar emuma relação de paridade,de poder dialogar, porémcontribuindo mais do quefazemos quando somenteaprimoramos conceitos.

A&D: E a tecnoburocracia aquié menos eficaz que a européia.

Coraggio: Com certeza. Por-tanto, a população tem que semanter vigilante, atenta a seus re-presentantes; não podemos dei-xá-los soltos, temos que partici-par. É possível que incorporemosuma dimensão participativa aopensamento político, com a práti-ca, não é?

A&D: Queria que você co-mentasse sobre o que me pareceser uma herança do pensamen-to socialista. Hoje, a discussão daEconomia Solidária – os funda-mentos de um novo homem, umanova cultura – lembra muito o iní-cio do século, a construção soci-alista na Rússia e depois naUnião Soviética. Como é quevocê vê esse vínculo entre uma

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se torna um sistema de domíniomilitar. No futuro podem aconte-cer ainda muitas coisas horrí-veis.

Ainda assim estamos dentrodisso, construindo as bases deuma sociedade mais rica, maiscomplexa, mais igualitária, quenão sabemos como vai ser, já quenão sabemos por quantas déca-das ainda vão sobreviver as for-mas capitalistas de produção:pode ser mesmo que nunca de-sapareçam totalmente. Não nosiludamos pensando que, de re-pente, com um aceno de mão, ocapitalismo vai acabar e vai apa-recer uma nova sociedade.

Além disso, a experiência temmostrado que mesmo que hou-vesse uma mudança na proprie-dade dos meios de produção, acultura não mudaria da noite parao dia. Vamos lembrar do queaconteceu na União Soviéticadepois da queda do governo: derepente, reapareceram os impe-radores... Em Cuba, achavamque era um problema o fato deos jovens quererem ter jeans egostarem de rock. Mais tarde, osdirigentes conseguiram entenderque isso não era um pecado anti-socialista. Enfim, pensava-se quese mudando a propriedade dosmeios de produção, da estrutu-ra, se modificava tudo, transfor-mava-se a superestrutura. Ago-ra, sabemos que não é assim,que os ritmos da mudança cultu-ral são diferentes e que é muitodifícil fazer uma engenharia damudança cultural. Então, esta-mos aceitando a diversidade cul-tural, estamos aceitando a multi-plicidade de instituições. Tomaraque sejamos capazes de aceitar

que existem versões diferen-tes: que virá uma da Índia, umada África, uma outra da Argen-tina urbana, uma outra do Mé-xico, com uma história diferen-te. Ou seja, tomara aceitemostoda essa diversidade. Eu creioque essa é uma grande novi-dade.

Eu tenho a impressão de queisso tranqüiliza, porque, no outrocaso, era preciso existir uma res-posta precisa, exata, técnica, ci-entífica, quanto ao que se deviafazer. Como no caso do planeja-mento: tinha-se que saber o queera preciso produzir, quando tinhaque ser produzido, como tinha deser feito. Agora estamos falandode um processo muito mais aber-to, que tem que ter um certo nívelde planejamento. Porque se todoo mundo começasse a produzirartesanato, chegaria o momentoem que não poderíamos comerartesanato. É necessário organi-zar, tem que haver produção dealimentos. Devemos traduzir e in-troduzir elementos de ordem,negociados, nesses mercadosque estamos criando.

Não se trata só de uma ques-tão de valores, mas também de re-conhecimento da realidade. Acre-dito que isto é muito importante: nãoconfundir a utopia com a realida-de. A realidade é complexa, rica enos oferece amplas oportunidades,ao tentarmos transformá-la, deaprender com ela. Estamos dispos-tos a aprender? Um valor muitoimportante é não ser sectário, nãoser dogmático. Aí há um problema,porque as correntes que se origi-nam em um pensamento religiosotêm, de fato, um componente dog-mático: pode mesmo verificar-senelas um grande esforço para se-rem ecumênicas, mas mantêm suabase de dogmatismo.

A&D: Na sua opinião, na suaexperiência pessoal, essas pes-soas que estão discutindo a Eco-nomia Solidária hoje têm umcomportamento mais próximo

Estamos aceitandoa diversidade cultural,

estamos aceitandoa multiplicidadede instituições.

Tomara que sejamoscapazes de aceitar que

existem versões diferentes:que virá uma da Índia, uma

da África, uma outra daArgentina urbana, uma

outra do México, com umahistória diferente.

A&D: Imagino que essa pers-pectiva é mais próxima daquiloque você sempre desejou comofuturo e isso implica valores no-vos, o cultivo de uma outra formade viver e de se relacionar. Comovocê vê isso?

Coraggio: Acredito que todosos que estamos participando dissoqueremos viver em um mundoonde existam outras formas de con-vivência, onde haja tolerância. Te-mos que ser mais humildes e nostornar aprendizes contínuos da nos-sa própria experiência, sem procu-rar aplicar apressadamente umasolução-modelo. É necessário umprocesso aberto, em que possamosaprender dos outros genuinamen-te, sem manipulação, ou seja, emque todos possamos aprender comtodos, como quando falávamos daeducação popular.

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desses valores que pregam? Nocontato com pessoas que traba-lham esse tema, você vê relaçõeshumanas de cooperação, solida-riedade, que comprovem que osvalores que estão embutidos naproposta são de fato vividos?

Coraggio: Sim, tem muitagente que é muito dedicada, quetrabalha assim... Bom, temos quereconhecer que muitos trabalhampara sobreviver. Na América Lati-na não há filantropia como nassociedades ricas, com sistemasimpositivos, que induzem à filan-tropia, claro. As pessoas vivemdaquilo que fazem. Muitos daque-les que trabalham com os pobressão pagos por uma ONG, mas ofazem com paixão; e se esse tra-balho é feito com paixão, com uminteresse genuíno de ajudar ooutro, que é o que geralmente euobservo, não há problema nisso.Mas não podemos dizer que setrata de um voluntariado strictosensu.

A&D: Os problemas da econo-mia popular, da questão social, sãomuito complexos e requerem acooperação de muitas disciplinaspara que sejam entendidos. Alémdisso, verifica-se com certa fre-qüência um engajamento dospesquisadores nas iniciativas dosatores sociais no sentido deapoiá-los também de forma práti-ca. Essas características, na suaopinião, favorecem um comporta-mento diferenciado, um compor-tamento mais solidário, mais co-operativo e menos competitivo dospesquisadores?

Coraggio: Acadêmicos quetrabalham com isso... Não há tan-tos para que se possa generali-

zar. Na Universidade em que tra-balho deve haver umas 30 pesso-as que atuam nessa perspectiva,encarando problemas complexoscomo o da Economia Solidaria, oda gestão do habitat, o dos gover-nos participativos. Os demais tra-balham de outro jeito: esse é eco-nomista, aquele é sociólogo, o

para atuar significativa e tambémeficazmente. Porém, o que estáfaltando é que a gente seja trans-disciplinar. O sistema acadêmicouniversitário e de pesquisa se re-cusa a perder o poder e a falsasegurança que dá o domínio deuma disciplina. Há muita insegu-rança, esse é um problema. Nãohá muitas contribuições científicasnesse campo. Se nos voltamospara os textos produzidos em quese discutem os modelos monetá-rios, vamos encontrar um volumeenorme de pesquisa econômicasobre o assunto. Agora, o que há,em termos quantitativos, de pes-quisa econômica a respeito daeconomia da solidariedade? Mui-to pouca. E de pesquisa antro-pológica? Também pouca. Nocaso da pesquisa sociológica,talvez encontremos uma produ-ção maior.

A&D: Insistindo na mesmapergunta: as pessoas, pelo quevocê observa, conseguem viveros conceitos que elas estão de-fendendo teoricamente, da solida-riedade, da cooperação, nesseambiente?

Coraggio: O sistema univer-sitário é um sistema muito com-petitivo. Nós deveríamos, combase na economia da solidarieda-de ou da sociedade mais solidá-ria, incorporar esses valores naUniversidade. O que, para mim,não vai acabar com a competitivi-dade. Poucas pessoas estariamdispostas a dizer: “Bom, vamosnos reorganizar e eu abro mão domeu posto, vou para outro lugar”.Ou seja, a preocupação de satis-fazer as necessidades de todosnão parece ser o dominante quan-

Interferir numaproblemática como essa,

que implica lidar comsituações muito complexas,

que não podem sercontidas dentro de uma

disciplina, não é comum, oque é comum é ser

disciplinar. O que prevalecesão os acadêmicos que

trabalham por disciplina,que escrevem para

publicar...

outro é arquiteto, contribuindopara desenvolver as disciplinas,o que não é ruim, mas é outracoisa... Interferir numa problemá-tica como essa, que implica lidarcom situações muito complexas,que não podem ser contidas den-tro de uma disciplina, não é co-mum, o que é comum é ser dis-ciplinar. O que prevalece são osacadêmicos que trabalham pordisciplina, que escrevem para pu-blicar... Grupos de trabalho multi-disciplinar que realmente superemos limites das disciplinas, que es-crevam para a gente comum, quetrabalhem (e não só entrevistem)com as pessoas do povo, existemmuito poucos. Mesmo quando es-ses outros se reúnem, escrevemcoisas juntos, distintos capítulos deum mesmo livro, não captam acomplexidade, que é condição

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do competimos para vencer o ou-tro na luta pelo orçamento. Euacho que o mundo acadêmicotem uma alta probabilidade de seresquizofrênico. É difícil equilibrar.É claro que tem gente que con-segue, porém....

Por outro lado, há os ativistas,os que não são acadêmicos... Euprefiro que uma ONG diga: “Eume dedico a isso, isso é meumodo de vida, meu modo de tra-balho, que eu faço com paixão etem um objetivo transcendente,mas eu preciso cobrar esse tra-balho”. Muitas ONGs têm proble-mas quando trabalham com ossetores pobres, porque os pobresnão têm outra alternativa senãoaceitar a opção apresentada pelaONG quando esta canaliza os re-cursos. Mas entre eles não seestabelece uma verdadeira rela-ção de empatia, porque o pobrediz: “Por que ele ganha 20 vezesmais do que eu... Por que ele temcarpete no seu escritório e eu te-nho que morar onde eu moro? Elevem me ajudar, fala da pobreza,me diz um monte de coisas...” .Essas contradições só se resol-vem quando não há mais pobres,não é verdade? Porque eu nuncaconcordei com a idéia de que parater direito a falar dos pobres ouda pobreza é preciso ir morar en-tre eles, “ser uno com eles”. Bem,há pessoas que tentam fazer isso

e são dignas de admiração. Maseu acho que é como a questãodo conhecimento. Alguns dizem:“Meu conhecimento não vale oque vale o conhecimento dos po-bres”. Isso é renunciar a uma res-ponsabilidade que implica umcompromisso real de socializar oconhecimento científico. Eu achoque aí há contradições. Há pes-soas que se entregam genuina-mente e trabalham todos os diascom a população — elas me des-pertam uma grande admiração.Eu continuo morando em um bair-ro diferente e continuo cumprin-do funções que são remuneradascom salários altos. E me coloco àdisposição como um servidor pú-blico: se eu for convidado, eu nãovou cobrar nada das organiza-ções sociais. Mas vivo de mododiferenciado e isso não é proble-ma para mim, não me sinto cul-pado. Há pessoas que se sentemculpadas: falam tanto em solida-riedade e pobreza que acham quetêm de esconder o seu nível devida e de renda. Eu quero que osoutros vivam uma vida melhor, eunão quero viver pior. Ou, então,posso viver muito pior na ques-tão material, mas pela possibilida-de espiritual de lutar por umprojeto social que transforme paramelhor a vida de todos. Pareceque ainda há um pouco de hipo-crisia em algumas pessoas. Toda-

via, retroalimentamos os valorespositivos toda vez que nos encon-tramos e não só falamos, mas fa-zemos coisas juntos. Para algunsainda falta percorrer o caminho.O que você acha?

A&D: Eu fico esperando sem-pre um comportamento mais soli-dário, mais cooperativo. De modogeral, inclusive, eu acho que eleexiste.

Coraggio: Sim, existe, mas hátambém o outro lado, não é? E éuma luta contínua. Porque o siste-ma dualiza e, assim, se você é aca-dêmico, em algum momento vai terque falar o jargão, em algum mo-mento vai ter que escrever um tra-balho para publicação, em algummomento vai ser avaliado... São asregras do jogo. É como um outromundo em que a gente vive. É difí-cil “salvar-se” sozinho, salvar-se senão muda a sociedade. Daí, a re-ferência à esquizofrenia. Temosque participar deste mundo para so-breviver e, por outro lado, quere-mos tornar nossa atividadecotidiana transcendente. Quere-mos que a Universidade admitaque, como cientistas, trabalhemosem apoio às ações populares, masé preciso escrever sobre a Econo-mia Solidária, e não ser somenteum ativista, não é? Essa é a reali-dade. Acho que ainda falta muitoaté mudar a academia.

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A&D: Para começar eu que-ria que você falasse um pouco dasua trajetória pessoal – do que odespertou para os temas sociaise de como suas idéias foram mu-dando, ao longo do tempo, atéchegar, hoje, à proposta de eco-nomia solidária.

Marcos Arruda: É uma longahistória. Na minha infância eu via,perto da minha casa, em Botafo-go, uma favela, a Dona Marta –dali vinham as nossas emprega-das. Eu já nasci vendo aquelaspessoas do morro trabalharem naminha casa e nunca me ensina-ram que aquilo era injustiça soci-al. A impressão era que aquilofazia parte de nossa vida. Foi pre-ciso eu chegar à Universidade

A BAHIA ANÁLISE E DADOS* na ocasião do FórumSocialMundial/Porto Alegre/2002entrevistou Marcos Arruda sobre sua trajetória pessoal e aproximação com a propos-ta de Economia Solidária. Socioeconomista e educador, Marcos Arruda é coordena-dor geral do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS). É membro doInstituto Transnacional, com sede em Amsterdã, e da equipe internacional de anima-ção do Pólo de Socioeconomia Solidária, da Aliança por um Mundo Responsável eSolidário. Integra a secretaria do Fórum de Cooperativismo Popular do Rio de Janeiroe tem publicado extensamente no Brasil e no exterior, oferecendo elementos para aconstrução de fundamentos mais sólidos a uma nova práxis social.

para começar a me perguntar por-que é que havia gente pobre.Todo o estudo de história era umestudo “empacotado”, como se asociedade tivesse sido feita auto-maticamente, definitivamente, dojeito que ela é hoje: nunca teriasido diferente, nunca vai ser dife-rente. Só quando quando partici-pei das lutas do nosso povo coma Juventude Universitaria Católi-ca (JUC) foi que comecei a me darconta dessas coisas. Fui além dapreocupação com uma fé pura-mente espiritual, exotérica, nosentido negativo de estar lá fora,lá em cima, desconectada domundo de cada dia. Fui literal-mente sacudido pela realidadebrasileira, pelo desafio que eraestudar geologia, pelo sentido quetinha a pesquisa e descoberta deminérios e petróleo e por como

colocar tudo isso a serviço da so-ciedade.

Descobri a realidade das em-presas transnacionais, que dãocontinuidade à colonização doBrasil pelos portugueses e pelosingleses. E a conjuntura política daépoca era a da renúncia do Jânioe depois a da crise do Jango, quelevou ao golpe militar. Participeidisso tudo muito intensamente,enfrentando uma grande crisecom minha família, que era con-servadora, que não tinha nenhu-ma consciência social e que tinhauma identidade muito grande comos Estados Unidos.

Minha família era do Rio deJaneiro, de classe média, marca-da por uma história de vínculocom o integralismo. Integralismoidealista, não-fascista, mas inte-gralismo. Ligada também a toda

* Entrevista concedida a Débora Nunes, douto-ra em Urbanismo (Universidade Paris XII), pro-fessora e pesquisadora da UNIFACS e da UNEB.

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A BAHIA ANÁLISE E DADOS* na ocasião do Fórum Social Mundial/Porto Alegre/2002 entrevistou Marcos Arruda sobre sua trajetória pessoal e aproximação com aproposta de Economia Solidária. Socioeconomista e educador, Marcos Arruda é coor-denador geral do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS). É mem-bro do Instituto Transnacional, com sede em Amsterdã, e da equipe internacional deanimação do Pólo de Socioeconomia Solidária, da Aliança por um Mundo Responsá-vel e Solidário. Integra a secretaria do Fórum de Cooperativismo Popular do Rio deJaneiro e tem publicado extensamente no Brasil e no exterior, oferecendo elementospara a construção de fundamentos mais sólidos a uma nova práxis social.

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a fala contrária ao nacionalismo,a tudo que era getulismo, popu-lismo e sindicalismo representa-dos por Getúlio Vargas, Jango,General Lott. Então foi preciso umrompimento, o que se deu quan-do eu tinha entre 18 e 19 anos. Viviesse rompimento na medida emque tinha um grande desejo dedescobrir uma nova ligação daminha fé com a vida histórica,terrena e cotidiana, com a luta dopovo para fazer um mundo me-lhor sem opressão, dominação,injustiça e desigualdade.

A&D: Você vem de um meiocatólico conservador?

Marcos Arruda: Venho: for-mação católica conservadora,escola de padres, depois estudeicom os jesuítas... Tudo muito fe-chado, doutrinário. Fiz letras clás-sicas durante o ano e meio quepassei com os jesuítas e, ao sairdo seminário, comecei a estudargeologia. Veio então a segundaetapa da minha vida, agora comogeólogo. Ao ganhar consciênciasocial, comecei a ter papel de li-derança na escola. Primeiro, naturma; depois, como presidentedo diretório, e, mais tarde, ajudan-do a criar a Executiva Nacional dosEstudantes de Geologia e sendoeleito para presidente dessa exe-cutiva.

Tudo isso se deu entre 1962 e1964, ano do golpe militar. Nesseperíodo eu participava da JUC. Nomês de fevereiro de 1964, partici-pando do Grupo de Política Mine-ral, ajudei a organizar um grandeencontro em Belo Horizonte, queteve como tema “minério não dáduas safras”. Tivemos a presen-ça de Miguel Arraes, governador

de Pernambuco, e Almino Afon-so, Ministro do Trabalho do gover-no Jango. O grande objetivo eralevar adiante, junto com os sindi-catos, os políticos e os profissio-nais de energia, a proposta deuma Minerobrás, uma espécie dePetrobrás dos minérios, para con-trolar o subsolo brasileiro e colo-cá-lo a serviço de desenvolvimen-to do país. Creio que esse foi umdos fatores que motivou o golpemilitar, porque ameaçava interes-ses diretos de algumas empresasamericanas que vieram a financiá-lo. Quando houve o golpe, passeialgumas semanas escondido,porque o diretor da minha escola– Othon Leonardos – era direitistaferrenho. Depois que vi que nãohavia perigo, voltei à faculdade eme formei em 1964. Nossa turma,considerada “subversiva” pelo Di-retor, não teve direito nem a ceri-mônia de formatura. Não encon-trei trabalho como geólogo no Riode Janeiro e, já casado, acabeiindo para Petrópolis. Passei umano lá, trabalhando numa área deque gosto muito, a aerofotointer-pretação geológica, que envolveo mapeamento de grandes áre-as, o estudo de geologia estrutu-ral e a identificação de áreas fa-voráveis à ocorrência de minérios.Demitido, em razão de problemasfinanceiros da empresa, tive queprocurar outros trabalhos, masainda não encontrava nada no Riode Janeiro, tudo estava fechadopara mim. Cheguei a entregarmeu currículo ao DepartamentoNacional de Produção Mineral,mas um amigo, que já trabalhavaali, terminou por me dizer: “de to-dos os candidatos você é o maiscapacitado, o que tem o currículo

mais completo, mas o americanoque chefia o projeto em que vocêentraria vetou o seu nome”. Isso,porque eu tinha sido dirigente es-tudantil. Comecei a trabalharcomo tradutor para a Editora Vo-zes e fui fazer alfabetização dejovens e adultos trabalhadores daperiferia do Rio. A polícia bateu láem casa... Fui embora, com mi-nha esposa, para São Paulo e lácontinuei fazendo alfabetizaçãode trabalhadores. Dei aulas degeociências, trabalhei um tempona revista Realidade, da EditoraAbril, e também dei aulas particu-lares. Sobrevivemos assim umtempo e, depois que meu casa-mento terminou, larguei tudo e fuitrabalhar como operário em umaempresa, com o objetivo de aju-dar os trabalhadores a se educa-rem e organizarem, a aprenderema ler, escrever e a ter uma moti-vação.

A&D: Você tinha um vínculopolítico nesse período?

Marcos Arruda: Sim, eu meinspirava na experiência dos pa-dres operários belgas e franceses,mas também tinha uma ligação desimpatizante com a Ação Popular,que tinha uma vertente de intelec-tuais que trabalhavam em fábri-cas para ajudar os trabalhadoresa se conscientizar, a se educar.Fiquei dois anos trabalhando comooperário. Foi uma experiência di-fícil, que me ensinou muito, prin-cipalmente a da convivência comos operários: pude saber o que eraa vida de cada dia deles, a ami-zade, a confiança, aprendi a vivercom uma cultura tão diferente daminha. Com os operários, achoque talvez eu tenha vivido um cho-

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que cultural maior do que, maistarde, como exilado no exterior doBrasil. A diferença de classe so-cial e de escolaridade às vezes émaior que a diferença entre naci-onalidades, línguas – os operári-os falam outra língua, têm outroshábitos, seu modo de se relacio-nar é outro. Você tem que se re-ciclar para poder se integrar. Paramim, foi uma experiência de acul-turação ou, melhor, de incultura-ção, muito rica e muito especial.

Nesse contexto, fui preso, tor-turado, passei nove meses na pri-são... Consegui sobreviver a es-ses terrores todos e virei caso daAnistia Internacional, porque mi-nha mãe fez uma campanha noexterior e conseguiu mobilizar asigrejas católica e protestante nosEstados Unidos em torno do meucaso. A Anistia Internacional meadotou como prisioneiro de cons-ciência e começaram a chegarmuitas cartas de pressão ao go-verno militar perguntando porqueeu estava preso. Acabaram ten-do que me libertar. Ameaçado denova prisão para esperar o julga-mento do processo, iniciado so-mente depois que me soltaram, fuipara os EUA, onde morava minhamãe, e foi lá que decidi estudareconomia. Morei quatro anos emWashington e sete em Genebra,Suíça. Nos Estados Unidos, aca-bei o mestrado e trabalhei comopesquisador econômico. Toda aeconomia que estudei sempre melevou para o que eu gosto mais.Geologia Estrutural é macro, sãoregiões amplas, e a economia queestudei foi macroeconomia, maisdo que micro. A macroeconomiaque estudei me levou a ver o temado desenvolvimento como uma

questão ampla e abrangente, quecombinava com minha visão polí-tica de que era o Estado que tí-nhamos de conquistar e que eradele que deviam vir todas as so-luções. Ao longo do meu trabalhode economista e de educador, vima descobrir um outro caminho.Entre 1975 e 1978, trabalhei com

A macroeconomia queestudei me levou a ver o

tema do desenvolvimentocomo uma questão ampla eabrangente, que combinavacom minha visão política de

que era o Estado quetínhamos de conquistar e

que era dele que deviam virtodas as soluções.

Paulo Freire e equipe no Institutode Ação Cultural (IDAC), e fomosassessores do governo da GuinéBissau e do Cabo Verde na cons-trução de programas de educaçãode jovens e adultos. Não umaeducação abstrata ou mecânica,aquela de o “Ivo viu a uva”, “O ratoroeu a roupa de Rita”. Estávamostrabalhando a realidade da GuinéBissau, construindo materiais di-dáticos a partir daquela realidade,definindo as palavras geradorasa partir da pesquisa da realidadedos diversos setores da popula-ção. Tudo isso em ligação com otema do desenvolvimento do país,da sociedade e da cidadania. Oobjetivo maior era construir umapopulação sujeito do seu própriodesenvolvimento. A grande cha-ve para mim começou ali, naque-le trabalho com Paulo Freire.

A&D: Das pessoas com quevocê fez contato nos Estados Uni-

dos, alguma lhe marcou particu-larmente?

Marcos Arruda: Nos EstadosUnidos, me marcaram algunscompanheiros, alguns professo-res americanos: Brady Tyson, queme despertou o interesse peloestudo da economia e me ajudoua entrar para a American Univer-sity; um iugoslavo chamado BrankoHorvat, com quem estudei a ex-periência iugoslava de coopera-tivismo, mas também Celso Fur-tado, que foi meu professor emWashington, James Weaver, epessoas como Robin Hahnel eHoward Wachtel, que desdeaquele tempo escreviam e tinhamum envolvimento social. Tambémestudei Otávio Ianni nessa época.

A&D: Você era da linha cepa-lina...

Marcos Arruda: De certomodo. O Raul Prebisch é umagrande herança, um dos grandeseconomistas latino-americanos,mas eu tinha uma visão bem crí-tica porque vinha de uma militân-cia social e política muita ativa.Estudava economia já com umapostura crítica e foi preciso eu irtrabalhar na Nicarágua para viveruma transformação profunda devisão, de sentimento e de práti-ca. Essa viagem foi realizada em1979, ou seja, no período em queatuei no Conselho Mundial deIgrejas, 1979/1982. Assim, quatromeses depois do triunfo sandinis-ta, eu estava na Nicarágua, pes-quisando os impactos das empre-sas transnacionais sobre as dife-rentes regiões do mundo. Meuprincipal contato era o Pe. XabierGorostiaga, coordenador do Mi-nistério do Planejamento e nego-

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ciador da dívida externa nicara-güense, de quem me tornei ami-go para toda a vida. Quando sou-be que eu trabalhara com PauloFreire, me apresentou ao Pe. Fer-nando Cardenal, então responsá-vel pela organização da CruzadaNacional de Alfabetização, o qualme convidou a participar de umareunião estratégica, em que sediscutiriam idéias para a campa-nha de alfabetização à luz dasexperiências cubana e guineense.Depois ele mesmo convidou-mea assessorar o Ministério da Edu-cação, na construção do progra-ma de educação de jovens e adul-tos. Na época, a influência da ex-periência cubana era grande, muitomarcada pela escolarização dosjovens e adultos. A idéia que elestinham é de que era preciso alfa-betizar jovens e adultos para queesses entrassem imediatamenteno sistema escolar, passando aestudar com as crianças e ado-lescentes e, pouco a pouco, fos-sem subindo na escala da esco-la. Nossa experiência era opostaa essa. Nossa proposta partia dapergunta sobre quem é o analfa-beto concreto, e não o abstrato.O concreto são trabalhadores,homens e mulheres que são, pri-meiro, trabalhadores, só poden-do dedicar às aulas um tempomarginal, pois sua primeira preo-cupação é sobreviver, manter afamília, manter os filhos. Então,qual é a chave para uma educa-ção deles e delas? O seu traba-lho. Temos que tomar o trabalhodeles como referência primeira daeducação, adequando-a ao ritmoe ao conteúdo desse trabalho,que é a primeira atividade. Issosignifica que temos que criar um

sistema paralelo ao sistema es-colar, com uma cronologia espe-cífica, adequada à realidade decada setor de trabalhadores dopaís, em conformidade com o queeles fazem, em termos de calen-dário, conteúdo e método de es-tudo. Quem trabalha na agricul-tura de sobrevivência trabalha de

descobri, ao trabalhar com a edu-cação de jovens e adultos, a ex-periência do que eles chamavamde “setor de propriedade social”,que se desenvolvia de modo pa-ralelo às esferas estatal e priva-da e em interação com as mes-mas. Nesse setor de propriedadesocial estavam as cooperativas,as associações de trabalhadores,o tema da autogestão... Foi a par-tir daí que começou a minha pre-ocupação em ligar essas duascoisas. Eu dizia, já na época, quea educação não tem um fim em siprópria, mas que seu objetivo éajudar as pessoas a se tornaremsujeito do seu próprio desenvol-vimento, pessoal e coletivo. Tudoo mais, instrumentação, profissi-onalização, é meio. O principal éaprender a viver, é aprender a serdono de si próprio, do seu cami-nho e da sua caminhada, comopessoa e como coletividade. Pas-sei a ver o desenvolvimento comoo desafio de fazer desabrocharemos potenciais de cada pessoa, co-munidade e nação. Isso, para mim,passou a ser um outro projeto po-lítico. Não se tratava mais de par-tir do Estado para todas as solu-ções, tratava-se de construirsujeitos individuais e sociais que,pouco a pouco, iam ganhandoconsciência de si e de seu entor-no, até se tornarem cidadãos ati-vos para defender seus interes-ses e transformar sua realidade.Sem isso, qualquer Estado, pormais popular que se declare, vaiser um Estado autoritário.

A&D: Qual a influência dePaulo Freire na sua trajetória?

Marcos Arruda: Fui muitomarcado pelo meu trabalho e

Temos que criar umsistema paralelo ao

sistema escolar, com umacronologia específica,

adequada à realidade decada setor de trabalhadoresdo país, em conformidadecom o que eles fazem, em

termos de calendário,conteúdo e método

de estudo.

modo diferente de quem está naagricultura de exportação, na pe-cuária, ou no meio urbano em seusdiversos setores.

A&D: Nesse período, sua con-cepção de desenvolvimento eco-nômico era muito vinculada à atu-ação do Estado?

Marcos Arruda: Sim. Eu já ti-nha começado a mudar quandoestava na África e minha transfor-mação se acelerou muito na Nica-rágua. Nesse período eu não esta-va mais com a equipe do IDAC,estava sozinho e com um desafiomuito mais próximo da minha cul-tura, pois somos do mesmo con-tinente. Os africanos têm umaoutra cultura, não é a mesma coi-sa que a América Latina. Haviauma intimidade na realidade nica-ragüense que eu sentia em mim,que significava um desafio muitoprofundo. Foi na Nicarágua que

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convivência com ele, pela nossaamizade, que, na verdade, incluíatoda sua família: Elza, sua queri-da esposa, Fátima, Cristina, Madá,Lute e Joaquim. Tenho uma imen-sa dívida de gratidão para com elee Elza. Paulo Freire é uma daspessoas que me marcaram nãosó como autor, mas como com-panheiro de trabalho, de vivênciasem comum. Passei a incorporartoda essa aprendizagem ao meutrabalho de economista. Comeceia trabalhar a questão da educa-ção dos jovens e adultos traba-lhadores como sujeitos da econo-mia. Não era mais um projeto sópolítico, era político e econômico.Era preciso que os trabalhadoresse tornassem donos e gestoresdos empreendimentos em quetrabalham. No capitalismo eles sópoderiam ser donos se tivessemdinheiro, capital. No pós-capitalis-mo eles são donos pelo trabalhoque realizam. O valor do trabalhoé que deve ser o centro organiza-dor da economia e não o capital.

A&D: Nessa concepção vocêse aproxima de José Luis Coraggio.

Marcos Arruda: Conheci Co-raggio e a mulher dele, Rosa MaríaTorres, em 1985, na Nicarágua.Ficamos muito amigos, na época,porque ele também era economis-ta e discutíamos muito sobre aeconomia do desenvolvimento daNicarágua. A mulher dele era edu-cadora e eu tinha uma relaçãomuito próxima com os dois. MasCoraggio era um companheiro, nãoli muita coisa dele na época, éra-mos colegas. Ele escreveu um óti-mo livro sobre economias em tran-sição, refletindo sobre muitoscaminhos, mas acredito que isso

aconteceu depois. Não foram au-tores econômicos que me deramessa percepção, foi minha práxisde economista e educador, mais oestudo do cooperativismo... Achoque o Coraggio já escreve há maistempo que eu sobre essa temática,a partir dos seus estudos sobre aeconomia popular. Agora, minha

Carlos Afonso. Trabalhei quatroanos no IBASE, mas tivemos al-guns desacordos, principalmentesobre os objetivos do nosso tra-balho. A idéia deles era de umInstituto que produzisse apenasinformação para a base social, oque, a meu ver, era insuficiente.Eu, que trabalhara como operário,era solicitado continuamente paraatuar na formação do trabalhador.Com essa formação pretendia-seque os trabalhadores se tornas-sem capazes de selecionar e in-terpretar informações, pesquisarsua realidade e que, a partir dis-so e da compreensão crítica re-sultante, soubessem traçar seuspróprios planos de ação transfor-madora.

A&D: Você escrevia sobre es-ses temas?

Marcos Arruda: Escrevia bas-tante. Tenho um curriculum vitaecom 80 páginas de atividades epublicações, muitas delas no Bra-sil, mas também no exterior. E te-nho um livro pronto, em castelha-no, com meus escritos sobre edu-cação de jovens e adultos naNicarágua, que ia sair pelo Institu-to Nicaragüense de PesquisasEconômicas e Sociais (INIES),mas acabou não sendo publicado.Vários artigos meus foram publi-cados, no Brasil, pela Revista deCultura Vozes, outros, pelo IBASE,e outros ainda pelo Instituto dePolíticas Alternativas para o ConeSul (PACS). No IBASE, comeceiuma experiência maravilhosa, quetransferi mais tarde para o PACS.Foi um trabalho no Vale do Aço deMinas Gerais, centrado principal-mente em Ipatinga, onde está si-tuada a Usiminas, na época uma

Minha idéia dasocioeconomia solidária,do cooperativismo, de um

projeto de globalizaçãocooperativa e solidáriaeu construí a partir de

uma infinidadede leituras, inclusive

históricas, mas tambémrefletindo sobre as próprias

experiências que euestava vivendo.

idéia da socioeconomia solidária,do cooperativismo, de um projetode globalização cooperativa e so-lidária, na verdade, eu construí apartir de uma infinidade de leitu-ras, inclusive históricas, mas tam-bém refletindo sobre as própriasexperiências que eu estava viven-do. Foi na aproximação com o co-operativismo no Rio de Janeiro,no Rio Grande do Sul, na Espa-nha, com algumas assessorias amovimentos cooperativos aqui noBrasil...

A&D: Fale-nos de como foisua volta para o Brasil.

Marcos Arruda: Eu voltei parao Brasil em 1982 e continuei as-sessorando a Nicarágua até 1989.Desde 1979 estava empenhadoem criar o Instituto Brasileiro deAnálises Sociais e Econômicas(IBASE) junto com o Betinho e

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estatal tão ditatorial quanto o regi-me militar então vigente. Junta-mente com agentes de pastoral esindicalistas da região, realizei alium seminário, em 1984, ao fim doqual o pessoal da Usiminas, quese opunha à direção sindicalpelega da empresa, veio me con-vidar para um outro seminário. Oobjetivo deles era buscar respos-ta para a dúvida seguinte: “Se lan-çarmos uma chapa para concor-rer às eleições sindicais e perder-mos, a Usiminas vai nos demitir evamos passar anos para construiroutro grupo de oposição dentro daempresa. Desse modo, seria ocaso de concorrermos na próximaeleição?”. Estávamos em 1984 –Figueiredo, ditadura, Delfim Netoe companhia. Expliquei-lhes que,talvez, a melhor pessoa para aju-dá-los fosse um sindicalista, lem-brando que havia vários educa-dores sindicais ótimos, ao que ar-gumentaram que não era peloconhecimento do sindicalismo queestavam me chamando, mas pelametodologia. Afinal concordei, co-meçando aí uma colaboração deanos... Fiz um novo seminário comeles, que evoluiu até o momentoem que disseram estar prontospara tomar a decisão e, nessemomento, achei que era tempo deeu ir embora. Não concordaram,apesar de eu lembrar que tinhamme chamado para ajudá-los a to-mar aquela decisão, para a qualjá estavam prontos, afirmando quequeriam que eu permanecesse:“você é um companheiro, lutadore educador”. Assim, propus que adiscutíssemos, antes de acabar oseminário, o papel de liderança deum educador, uma vez que essepapel era o mesmo que eles iam

fazer, já faziam, como educadoresdas suas bases sindicais. Fomosdestrinchando o assunto e, no fi-nal, eles disseram: “está certoMarcos, já que você não vai serresponsável conosco pela tomadadessa decisão, deve mesmo irembora”. Só 15 dias depois é queme telefonaram para dizer quehaviam decidido correr o risco deconcorrer e que já tinham feito ainscrição da chapa, já me chaman-do para fazer outro seminário, nocaso, de planejamento da campa-nha. Bom, nessa altura quase con-seguimos ganhar a eleição sindi-cal em Ipatinga, mas a empresa ea ditadura Figueiredo fizeram taismanobras e intimidações que aca-bamos perdendo no segundo tur-no. Fizemos novos seminários esurgiu um grande movimento po-lítico dos operários: eles consegui-ram eleger Chico Ferramenta –que fora candidato da chapa Fer-ramenta à presidência do sindica-to – deputado estadual e, depois,federal. Em 1988, ganhamos aprefeitura de Ipatinga e de Timó-teo. Temos governado Ipatingadesde aquela época até hoje eestamos no segundo mandato emTimóteo. E Ivo José, um dos maisativos membros da Pastoral Ope-rária e do Grupo Ferramenta, estácompletando seu terceiro manda-to como deputado estadual. Hoje,o Vale do Aço é uma região de fer-mentação social importante, umaespécie de grande árvore nascidadas sementes plantadas com essepequeno trabalho de educaçãoeconômico-política com aquelesdirigentes sindicais. Eles estão nopoder e levam à prática aquelasposições que discutíamos, o con-ceito de liderança que trabalha-

mos, liderança como catalisador,serviço e co-responsabilidade.

A&D: Vem daí seu vínculocom o PT?

Marcos Arruda: Participei dasprimeiras discussões para a cria-ção do PT, ainda no exílio, em 1979.Sou economista e educador doPT. Mas todas essas atividadesque relatei foram realizadas noâmbito do PACS, uma instituiçãoaberta para trabalhar com qual-quer prefeitura que tenha umaproposta democrática participati-va. Foi no PACS que comecei atrabalhar a vertente do cooperati-vismo aqui no Brasil, principal-mente agora, nos anos 90, cola-borando para desenvolver oFórum do Cooperativismo Popu-lar no Rio de Janeiro. Para aí le-vei a experiência da Nicarágua,onde o trabalho sobre o desen-volvimento local comunitário eraatravessado pela tentativa deconstruir formas coletivas de pro-priedade e gestão, sobretudo deconstruir uma educação a serviçodo aprendizado de se tornar su-jeito dessa gestão. Houve tam-bém a experiência na Espanha,onde companheiros como Enri-que del Río, Joan Lluis Jornet eoutros me instruíram tanto a res-peito da práxis cooperativa nosterritórios espanhol e catalão.

A&D: Há uma corrente queidentifica a economia solidáriacomo uma vertente mais européiae a economia popular como sendouma experiência mais desenvolvi-da na América Latina, com particu-laridades. O que acha disso?

Marcos Arruda: A primeiracoisa a dizer é que nós queremos

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convidar todas as tendências a sejuntarem, a convergirem no mes-mo esforço de construção. O queimporta é que haja essa conver-gência em termos de princípios, deobjetivos, do modo de colaborar,respeitando-se ao máximo a diver-sidade de cada caminhada. Aomesmo tempo, os nomes são im-portantes. Eu, por exemplo, nãogosto da nomenclatura usada pe-los gaúchos – economia popularsolidária – porque dá a impressãode que é uma proposta, um proje-to de economia que é muito bompara o povo ou apenas para ossetores pobres da sociedade. Paranós, o projeto de economia solidá-ria é um projeto global, para todaa sociedade. A idéia é de umaglobalização solidária, uma econo-mia globalizada solidária, envol-vendo todos os setores da popu-lação, não só os pobres. Essa é aprimeira observação. A segunda,é que ninguém está preocupadoem ser proprietário de termos, emsaber se foi o Orlando Nuñez, oLaville ou o Singer quem falou deeconomia solidária... Nós todosestamos bebendo de fontes muitoanteriores a nós. Os grandes cria-dores dessas vias de autonomiza-ção do mundo do trabalho vêm doséculo XIX. Aí encontram-se soci-alistas, passam por Marx, Gramsci,Landauer, Buber, Ventosa y Roige outros, desembocando, na atu-alidade, em gente maravilhosa queestamos encontrando aqui noFórum Social Mundial (FSM), naConferência e Seminário sobreEconomia Solidária. Acho que éuma doença do Ocidente quererse apropriar individualmente dasidéias, dos termos e dos concei-tos e querer colocar lá sua marca

de criador. Para mim, isso é umacoisa ingênua e também arrogan-te. O que importa são as transfor-mações da realidade, aquilo quea palavra consegue operar naconsciência de cada um e quegera transformações concretasnas vidas das pessoas. Então, poresse lado, não gosto de discutir os

A&D: Você acha que as pes-soas que estão trabalhando coma idéia de economia solidária es-tão testemunhando na sua práti-ca, na sua forma de viver, de serelacionar, esses valores que sãointrínsecos da economia solidária?

Marcos Arruda: A respostanão pode ser sim ou não para to-dos nós, mas nuançada, uns maisoutros menos. Você tocou no pon-to central. O que propomos não ésó uma transformação objetiva,das instituições e mesmo dosmodos de relação de produção ereprodução na sociedade. Envol-ve também uma transformaçãoindividual, dos valores, atitudes,comportamentos, do modo de re-lação entre nós. É uma revoluçãointelectual, moral, espiritual decada um de nós e essa é uma lutade cada dia, porque o grande pesoé a velha cultura, são os velhosvalores que estão presentes nanossa existência. Eles atuam, diaa dia, na nossa relação conoscomesmos, com os filhos, com acompanheira, com os companhei-ros de trabalho – aí nosso egoaparece dando gritos para ser re-conhecido e cultuado. Mesmoquando estamos fazendo o dis-curso da coletividade, da solidari-edade, muitas vezes é o nossoego que quer aparecer. Quandoum atropela a fala do outro parafalar de solidariedade, mostrandodesrespeito pela idéia e pela pa-lavra do outro, está fazendo ooposto do que diz. Então, a nos-sa idéia é que, na educação paraque cada um se torne sujeito, tra-balhemos muito essa noção datransformação pessoal e da luta– luta nos campos cultural, morale mesmo espiritual para sermos

Nós queremos convidartodas as tendências

a se juntarem, aconvergirem no mesmoesforço de construção.

O que importa é que hajaessa convergência em

termos de princípios, deobjetivos, do modo de

colaborar, respeitando-seao máximo a diversidade

de cada caminhada.

termos, discuto-os pelo sentidoque têm e esse sentido é impor-tante. A minha opção tem sido por“socioeconomia solidária” e a ra-zão é a seguinte: assim como te-mos que falar em democracia par-ticipativa para indicar a democraciaque não é a burguesa, tambémtemos que falar em socioeconomiapara identificar uma economia quetem por objetivo o bem-viver e odesenvolvimento integral do serhumano e da sociedade e, portan-to, não é capitalista. É para casar,na nossa mente, a economia como social, com o político, para indi-car que tudo está unificado navida concreta da sociedade, parasublinhar que é uma aberraçãoouvir o General Médici voltar doNordeste muito chocado e dizerpublicamente: “a economia doBrasil vai muito bem, a vida dopovo é que vai mal”.

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humilde, para percebermos queassim como nós somos um cen-tro do mundo, cada outra pessoaé também um centro do mundo etem que ser respeitada como tal.Se a realidade é uma infinidadede centros do mundo, diversosuns dos outros e convivendo nomesmo planeta, a melhor maneiraé se integrar, fazer acordos e cri-ar regras de boa convivência, decolaboração solidária, dando asmãos e procurando um caminhoem comum.

A&D: Marcos, você é umapessoa-chave para falar destetema. É um dos que lideram umevento de importância internaci-onal, o Seminário sobre EconomiaSolidária do Fórum Social Mundiale, naturalmente, é muito solicita-do. Como consegue exercer essafunção e ao mesmo tempo estaratento, aberto, disponível, humil-de, solidário...

Marcos Arruda: Não sei di-zer... me trabalhando a cada dia,procurando não me tomar tão asério assim, procurando avaliar, acada dia, em que não estou sendocoerente com os meus valores,me abrindo para as críticas dosoutros, procurando ouvir, mesmoquando discordo, me perguntan-do por que eu teria dado razão aessa crítica, aprendendo a pedirdesculpas quando erro, dizendopara todos, inclusive no meu tra-balho: “Não pensem que, porquesou coordenador do nosso institu-to, sou infalível – me critiquem eme ajudem a melhorar, não guar-dem mal estar, sejam francos,transparentes, porque eu só pos-so mudar se souber o que estáincomodando vocês. Para isso é

preciso que falem e, quando euresistir, não é porque não queroouvir críticas, é porque tenho ra-zões para ter agido daquele jeito.Podem ser que sejam falsas ra-zões e é aí que vocês têm queme responder – ‘olha, isso não écorreto’. Não tomem como se euquisesse agredir vocês, quando

do me corrigir a cada dia, apren-dendo a ser melhor a cada dia.

A&D: Aproveitando sua fala,como você vê este momento domundo em que o neoliberalismoé vitorioso e, ao mesmo tempo,é contestado? Está se construin-do uma nova opção, fazendo-seuma nova proposta que podemestar ligadas a essas discussõesespirituais de nova era, de novomomento, de uma era mais ins-pirada na solidariedade que nacompetição...

Marcos Arruda: As “viagens”do pessoal alternativo, espiritua-lista, às vezes vão pelo caminhoerrado. Mas isso não impede quea origem da preocupação sejamuito positiva. É a busca de umsentido para além do imediato e,mesmo, desta vida transitória.Nós somos seres imanentes etranscendentes ao mesmo tempo,então há uma sede, uma buscade algo mais além. Ninguém sesatisfaz com a idéia de morrer eacabar tudo – mesmo uma pes-soa materialista, se ela está fa-zendo bem a alguém é porqueacredita em alguma coisa a maisdo que no seu próprio interesseno aqui e agora. Então, acho queesta onda de esperança no novoséculo, numa nova consciência,numa nova transformação, numponto de mutação que leve a hu-manidade a uma nova etapa, nãoé uma coisa abstrata, mas tem opotencial de transformar o concre-to, porque chama de volta o serhumano, chama-o a se ligar comaquilo que o fez se tornar a prin-cipal espécie animal no planetaTerra: a comunicação, a coopera-ção, o apoio mútuo na caminha-

Se a realidade é umainfinidade de centros domundo, diversos uns dosoutros e convivendo no

mesmo planeta, a melhormaneira é se integrar, fazeracordos e criar regras de

boa convivência, decolaboração solidária,

dando as mãose procurando um

caminho em comum.

parecer que foi agressão, venhamme dizer e vou explicar o porquêe se tiver feito mal, vou pedir des-culpas”. É assim no dia-dia. Issotem a ver com a espiritualidade.Quer dizer, para mim o sentido davida é uma escolha permanenteentre o ser humano agressivo,competitivo, que está instintiva-mente dentro de nós e o potenci-al de ser humano cooperativo,convivial, amoroso que tambémestá em nós. Entre os dois, temosque escolher, a cada momento,em cada relação, e essa escolhaé a escolha entre o amor e o de-samor. Nós todos estamos nessaluta, até na hora de morrer esta-remos nessa luta. Para mim, osentido da nossa vida é escolhero amor e é viver de acordo comessa escolha a cada momento. Éclaro que somos cheios de defei-tos... então, tenho que sair tentan-

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da evolutiva. Sou geólogo, estu-dei biologia, antropologia, evolu-ção e tudo o mais e terminei es-crevendo uma tese de doutoradocom um forte componente evolu-tivo e sistêmico. Uma idéia mara-vilhosa que os pesquisadores têmdesenvolvido é essa: a tendência,os instintos agressivos não teriamdado conta de fazer um ser hu-mano chegar ao que ele é hoje.Foi essencialmente a cooperaçãoque o fez evoluir, e alguns biólo-gos e médicos chegam a ponto deidentificar isso como tendênciaevolutiva... Há vários autores quetratam dessa questão: HumbertoMaturana, Francisco Varela, chi-lenos; Teilhard de Chardin, geó-logo e teólogo francês, exilado naChina durante anos; e orientais,como o militante, historiador emístico indiano Sri Aurobindo. Sãopessoas que afirmam a noção deque a nossa tendência à conver-gência, à comunicação, à comu-nhão, à amorosidade é uma lei daprópria natureza e não somenteum postulado ético ou moral. Éalgo como um impulso que nosleva para adiante, ao qual pode-mos aderir ou trair, porque umacondição para esse processo deconvergência se realizar é a liber-dade. A liberdade vem de umaconsciência autônoma – de indi-víduo, mas também de coletivida-de e espécie – que ganha conhe-cimento de uma realidade em quepode escolher. Então, esse é ogrande mistério. E quando se falada relação com o divino, comqualquer conceito de divino quese tenha, todas as fés se maravi-lham com esse paradoxo. O serabsoluto aceita se relativizar, cri-ando seres ou, digamos assim,

fazendo-se acompanhar por se-res que têm uma capacidade e li-berdade de escolha que lhes per-mite inclusive se separar dele oudela própria (ser absoluto) por umsimples ato de vontade. É na es-colha voluntária de adesão ao al-truísmo, à convergência e ao ple-no acolhimento do outro que se

me conhecer, tenho que mergu-lhar no fundo de mim e me per-guntar quem sou, quem estousendo, que potenciais a Vida medeu, potenciais que me cabe de-senvolver ao longo da minha vida.Se eu descobrir que sou uma di-versidade, que sou contradição,tenho a possibilidade de escolherdos vários eus aquele que real-mente pode me realizar mais.Este é o paradoxo do eu mesmo(self), o ser ao mesmo tempo eu-relação – o eu-e-tu e o eu-e-nós.E é isso que me leva a reconhe-cer o amor como o sentido donosso viver, é o que dá à idéia doamor o caráter de lei natural. Sedescobrimos que neste dar aooutro, na amorosidade, na convi-vialidade, estamos realizando aevolução, isso significa tambémque estamos indo adiante, elevan-do a consciência humana a níveissempre. Há, assim, uma conver-gência para o que todos já sabe-mos: maior felicidade, afeto, co-municação, em vez de brigas,guerra, agressividade, ódio. Odesafio para mim, como econo-mista, é criar uma economia amo-rosa, uma economia para este serhumano amoroso, uma economiapara que cada ato de troca sejamuito mais do que um ato materi-al de trocar objetos. É uma rela-ção humana que carrega traba-lho, energia, que tem, pois, umadimensão invisível tão real e di-nâmica quanto a visível. É umarelação energética Em que eu doue recebo ao mesmo tempo. Tenhoque querer bem a quem me deu,e isso vai motivar o outro a mequerer bem igualmente, ainda quenão seja essa a razão do meu dar.Quando cada um está preocupa-

É na escolha voluntáriade adesão ao altruísmo,

à convergência e ao plenoacolhimento do outro que

se realiza o amor.Então, essa busca de

transcendência não temnada de apenas abstrato,

ela deve se converterno nosso modo de vida

nessa vida terrena.

realiza o amor. Então, essa bus-ca de transcendência não temnada de apenas abstrato, ela devese converter no nosso modo devida nessa vida terrena. É aqui eagora que temos que vivenciaressa busca e ela está desafiandoo nosso dia-dia – para mim nãohá divino lá fora, lá em cima, odivino está aqui dentro de cadaum de nós e de todo o universo.É ele que anima – esta é umapalavra latina muito rica, ANIMA:aquele que dá vida, dá alma, dávivência, dá consciência. É umachama interior, inerente, imanentea nós, não exterior. Então, se éinterior, eu estou intimamente li-gado, o desafio está dentro demim, não está fora, não são re-gras que vêm de fora que me de-vem fazer desistir e me levar aandar num caminho e não emoutro. É um movimento interiormeu – mas para isso tenho que

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do com o outro todo mundo ga-nha com isso. Esta é a idéia docooperativismo, da associativis-mo, da Economia Solidária.

A&D: Eu queria que você fi-zesse uma relação ideológica ematerial dessa experiência de vidado Marcos Arruda que viveu osanos 60, cujo ideário era um so-cialismo implantado pela tomadado poder, e este Marcos Arrudade hoje, que aposta na idéia daeconomia solidária.

Marcos Arruda: A grandemudança foi passar a ter uma novaconcepção acerca do sujeito dahistória. Aquela idéia do sujeito,

das massas de trabalhadores,mudou para mim. Não se trata de“massas trabalhadoras”, sujeitoimpessoal. Nós queremos cons-truir um sujeito e este sujeito é,ao mesmo tempo, subjetividade,objetividade e sensibilidade, indi-vidualidade, comunalidade e so-ciabilidade, então é a combinaçãode tudo isso. Desse modo, o eixosai de uma coletividade sem carae vai para cada pessoa, cada in-divíduo, mas não o indivíduo abs-trato, isolado na sua totalidade,mas um indivíduo-totalidade e, aomesmo tempo, parte de totalida-des maiores. Portanto, responsá-vel por ser sujeito e por respeitar

o ser sujeito de cada outro e porformar alianças, coalizões de su-jeitos, coalizões subjetivas, que setornam novos sujeitos, sujeitos co-letivos. Assim, acabei perceben-do que o projeto político vai muitoalém do que eu percebia naquelaépoca: é um projeto de “empode-ramento” de cada ser humano ecoletividade humana para o amor.Hoje as polarizações são muitograndes. Eu aprendi a dialéticaassim, quebrando os dogmas,quebrando as visões, uni ou bidi-mensionais, descobrindo que aquestão não é “ser ou não ser”,mas sim “ser e não ser ao mes-mo tempo”.

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Resumo

O artigo se propõe a uma discussão preliminar sobre o con-ceito de Economia Solidária, assim como do seu contexto desurgimento, como pano de fundo para a descrição e análise deum projeto-piloto aplicado no bairro de Vila Verde, em Salvador.O contexto do bairro e as condições de vida dos seus moradorestambém são apresentados, para um melhor entendimento dodesenrolar da experiência. A implementação de uma Horta e deum Restaurante comunitários foram as bases do projeto, que sedesenvolveu com a implantação de um Bazar e da venda de“quentinhas” e lanches para o público externo ao bairro. A dinâ-mica interna da experiência de Economia Solidária será detida-mente descrita e analisada, com o objetivo de contribuir para omelhor conhecimento dessas práticas que se espalham pelo Bra-sil e pelo mundo e que se pretendem um exemplo de que “umnovo mundo é possível”.

Palavras-chave: Economia Solidária, pobreza urbana, desen-volvimento local, participação popular.

ECONOMIA SOLIDÁRIA: APROXIMAÇÕES DOCONCEITO

O conceito de Economia Solidária surgiu na Fran-ça nos anos 90, dentro de uma discussão maioracerca das transformações econômicas do final doséculo XX, em que, ao crescimento econômico ver-tiginoso não correspondeu um aumento generaliza-do do bem-estar dos homens e mulheres, mas, ao

contrário, um aumento do desemprego e da exclu-são social. Outros conceitos, mais conhecidos queEconomia Solidária, se desenvolveram dentro deuma lógica de questionamento da economia liberal(século XIX) e neoliberal (século XX), mas tambémde interação com ambas, a exemplo de Terceiro Se-tor, Economia Social e Economia Popular. Como es-ses quatro conceitos são muito próximos e podemser confundidos na prática, utilizaremos as defini-

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* Débora Nunes é doutora pelo Institut d´Urbanisme de Paris, Universida-de Paris XII, coordenadora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNI-FACS, e professora e pesquisadora da UNIFACS e da [email protected]

Abstract

The article aims at establishing a preliminary discussion onthe concept of Solidarity Economy, as well as the context of itsdevelopment, as background for the description and analysis of apilot project applied in the neighborhood of Vila Verde, Salvador.The neighborhood context and living conditions of its dwellersare also presented for a better understanding of the experimentdevelopment. The implementation of a vegetable garden and acommunity restaurant were the basis for the project which wasdeveloped with the implementation of a bazaar for selling of take-out hot-plates and snacks for the external public. The internaldynamics of the Solidarity Economy experiment will be describedand analyzed with the objective of contributing to the betterunderstanding of such practices which are scattering aroundBrazil and worldwide, and which intend to become an example ofa possibility of a new world.

Key-words: Solidarity economy; urban poverty; local develop-ment; popular participation.

1 Este texto é uma revisão de um artigo com o mesmo título publicado naRevista de Desenvolvimento Econômico (RDE), Ano III, n. 5. Salvador:Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano e Regional daUniversidade Salvador, dez. 2001.

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ções de França (2001) para avançarmos em segui-da na conceituação de Economia Solidária.2

Segundo França, o Terceiro Setor seria o “univer-so do privado, porém público”, que aparece numcontexto anglo-saxão, onde predomina a idéia dafilantropia para fazer face aos problemas sociais eonde, particularmente nos EUA, a ação redistributivadas organizações sem fins lucrativos é paralela àação estatal nesse campo. A Economia Social é for-mulada em um contexto europeu, no qual o Estado-Providência é a base do enfrentamento dos proble-mas sociais e onde se desenvolve uma economiacom fins sociais baseada em grandes fundações,associações e cooperativas, que atuam hoje, segundoFrança, como ‘‘apêndice do Estado”. Já a Econo-mia Popular seria oriunda do contexto latino-ameri-cano, tendo tênue fronteira com a economia infor-mal e se constituindo em “formas de sobrevivência dapopulação mais pobre”, em que o registro da soli-dariedade está na base das atividades econômicas,praticamente como um prolongamento da solidarie-dade familiar ou comunitária.

A Economia Solidária tem afinidades com os con-ceitos anteriores, mas também particularidades quea afirmam como conceito e prática particulares. Con-sistiria, ainda segundo o mesmo autor, em “iniciati-vas apoiando-se sobre atividades econômicas paraa realização de objetivos sociais que concorrem aideais de cidadania”. Ela tem herança histórica co-mum com a Economia Social, ou seja, européia, edá ênfase especial ao aspecto democrático da or-ganização do trabalho, em que predominam o esta-tuto associativista e, em alguns casos, o cooperati-vista. As iniciativas de Economia Solidária articulama dimensão econômica, social e política em uma sóação coletiva e são experiências que se abrem parao espaço público, no sentido da busca de transfor-mações sociais amplas.

Nessa busca de transformações sociais geraisbaseadas em iniciativas particulares, o movimentosindical brasileiro produziu uma visão particular eesclarecedora sobre a Economia Solidária ao afirmar:“Não se trata somente de gerar oportunidades de tra-balho e renda. Trata-se de construir novas relações

sociais baseadas nos valores da solidariedade e dacooperação, que fortalecem a participação do cida-dão na sociedade” (Revista Debate Internacional –CUT, 2000). Nesta idéia de construção de “novas re-lações sociais” está embutida a reorganização de umprojeto de transformação social através damobilização da sociedade civil, que se traduz tantodo ponto de vista da mudança do modelo político,visando à superação da democracia representativaem busca da democracia direta/participativa, quantoda mudança do modelo econômico visando reverterprioridades do Estado e incorporar critérios sociais àidéia de eficácia econômica.

Com o intuito de contribuir para uma compreen-são mais precisa do que diferenciaria a EconomiaSolidária de outras iniciativas no mesmo campo eco-nômico e social, foram levantados (consultando-semateriais de divulgação de inúmeras experiênciasque reivindicam o conceito) alguns princípios quepodem ser observados como norteadores dessasiniciativas e que ajudam a caracterizá-las, mesmoque não estejam presentes em todas elas:• motivações de justiça e solidariedade em todas as

atividades implementadas e vividas coletivamen-te, tanto nas de produzir e consumir bens e servi-ços, como nas de distribuí-los e comercializá-los;

• referências de êxito distintas daquelas do capi-talismo, já que a reciprocidade e a fraternidadenas relações interpessoais são almejadas;

• processos de autogestão e autonomia, impli-cando lógicas de participação e estímulo aoengajamento;

• criatividade e soluções alternativas face aosproblemas e negócios implementados, visandoà inovação tecnológica, gerencial e de relaçõeshumanas;

• preocupação com o meio ambiente e com umprogresso sustentável para a geração seguinte,preservando os meios naturais hoje existentes.

ECONOMIA SOLIDÁRIA: APREENDENDO SEUCONTEXTO

A partir desses referenciais gerais e antes de abor-dar a experiência concreta que tentaremos descre-ver e analisar, passaremos a discutir o contexto emque surgiu este conceito. Por que a expressão “Eco-

2 Para maior aprofundamento desses conceitos ver texto de FRANÇA,Genauto: “Esclarecendo terminologias: as noções de terceiro setor, eco-nomia social, economia solidária e economia popular em perspectiva”, napublicação acima indicada.

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nomia Solidária” surgiu no final do século XX, fazen-do renascer antigas utopias? Há aspectos econômi-cos, sociais, políticos e culturais a serem observa-dos, que, mesmo sendo imbricados, podem ser des-dobrados com o intuito de propor um melhorentendimento do fenômeno. Do ponto de vista eco-nômico, observa-se uma vinculação com o aumen-to do desemprego; do ponto de vista político, com oenfraquecimento da idéia de um Estado do Bem-Estar Social; do ponto de vista so-cial, com a intranqüilidade que re-presenta a junção dos dois proble-mas citados, e do ponto de vistacultural, com pretendidas modifica-ções identitárias que estariam emgestação no momento.

Grande parte dos países domundo – como é o caso brasileiro– passaram a apresentar altas ta-xas de desemprego ao longo dadécada de 90.3 Tais índices sãocontemporâneos de uma economiaglobalizada, gerida numa ótica delivre comércio radical. A globalização liberal, mesmonão sendo uma novidade, foi atualizada na última dé-cada pelas operações on-line, que multiplicaram oalcance dos contatos internacionais, favorecendo omundo das finanças e a deslocalização das empre-sas, fatores que, por sua vez, realimentam as ori-gens do desemprego. Há uma certa convicção, en-tre muitos autores que se debruçam sobre o tema,de que os empregos eliminados ao longo do pro-cesso de reestruturação produtiva e de crise eco-nômica das últimas décadas do século XX dificil-mente retornarão, a menos que ocorra um expres-sivo crescimento da atividade industrial e dosserviços. Por isso, tem surgido com alguma ex-pressão a idéia de que se deve buscar ocupaçãoe não necessariamente emprego, trazendo à tonaa discussão sobre alternativas de organização dostrabalhadores por uma via autônoma e solidáriacomo as iniciativas de Economia Solidária, capa-zes de melhorar as condições de vida da popula-ção envolvida.

Concomitante a isso, tem-se a crise do Estadode Bem-Estar que veio aprofundar o difícil quadrosocial da nossa época. Esta crise é advinda da situ-ação falimentar de muitos estados nacionais, mastambém da intensa campanha ideológica feitas nasduas últimas décadas pelos arautos do neoliberalis-mo. O esvaziamento do modelo de políticas sociaisintensivas de caráter público desmonta uma das so-luções antes vistas como possíveis para as crises

periódicas do capitalismo. Certa-mente o esvaziamento desta alter-nativa, a falta de perspectiva deretomada de políticas de plenoemprego ou de redução do desem-prego no curto prazo teriam permi-tido o fortalecimento de uma certatendência, em particular de solida-riedade. Junta-se a isso a impor-tância cada vez maior que a orga-nização da sociedade civil, deforma autônoma – nem via Esta-do, nem via mercado –, vem ten-do, e vê-se o surgimento de práti-

cas de solidariedade civil, que, mesmo não sendonovas na história, tomam outro significado e dimen-são neste momento.

A essas questões econômicas, políticas e sociaisjunta-se uma dimensão cultural que poderia ser en-tendida como pano de fundo de todos os fatorescitados anteriormente. Desse ponto de vista, a Eco-nomia Solidária seria um renascer de utopias e depráticas que vêm dos primórdios da humanidade eatravessam toda a história humana: o que Marx eEngels chamaram de “comunismo primitivo”; as cor-porações profissionais da idade média; as organiza-ções pré-sindicais do tipo guildas; as experiênciasditas de “socialismo utópico”, de Saint Simon, Owene Fourier; os diversos tipos de cooperativas de pro-dutores, chegando às comunidades hippies de “paze amor” e às comunidades esotéricas da atualida-de. Em todas essas experiências, que embora tãodiferentes procuram estabelecer uma produção co-letiva com base na solidariedade, podem-se identi-ficar elementos do que estamos chamando hoje deEconomia Solidária.

Dentro dessas experiências que podem ser con-sideradas “antepassadas” da idéia atual de Econo-

A globalização liberal foiatualizada na última

década pelas operaçõeson-line, que multiplicaram

o alcance dos contatosinternacionais,

favorecendo o mundodas finanças e a

deslocalização dasempresas, fatores que, por

sua vez, realimentam asorigens do desemprego.

3 Nas categorias desemprego e subemprego, a Organização Internacio-nal do Trabalho (OIT) estimou, em seu relatório de 1999, uma cifra deaproximadamente um bilhão de pessoas no mundo, um número que vemcrescendo a uma média anual de cem milhões de pessoas.

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mia Solidária, os ideais socialistas – de propriedadecoletiva e emancipação humana dos valores de com-petição e exploração – são, sem dúvida, uma con-tribuição das mais importantes. A diferença princi-pal entre a prática real do socialismo vivido no séculoXX e as demais experiências citadas é que no cam-po socialista se tentou estipular uma tática e umaestratégia para generalizar a proposta numa escalanacional (e mesmo internacional), enquanto as outrasexperiências foram implementadasde forma pontual. Esse processode generalização se baseou na to-mada do poder político liderada porum partido e na manutenção des-se poder via um Estado socialista.Na tentativa de generalização deuma prática, feita de forma imposi-tiva, o socialismo real deixou sub-jacente a idéia de que os fins justi-ficam os meios. O fracasso dasexperiências do socialismo real sig-nificou uma fragilização dos meiosutilizados e, também, dos fins, le-vando aqueles que lutaram por essaidéia de volta a uma encruzilhada, a partir da qual énecessário reconstruir o caminho.

O ressurgimento, na atualidade, dessa idéia an-tiga de uma Economia Solidária parece estar vincu-lado também ao processo de hiperdesenvolvimentodos valores capitalistas: a propriedade, o individua-lismo e a competitividade. Ao chegar ao paroxismodo consumo e ao reino da propaganda, da mercan-tilização de todos os aspectos da vida humana, dacompetição exacerbada, da corrida contra o relógio,a sociedade demonstra a vacuidade desses valo-res como fundadores das personalidades atravésdas doenças ditas “modernas”: stress, depressão,síndrome do pânico, anorexias, etc. Para muitos, estesentimento de inadequação se manifesta também soba forma de um vazio existencial angustiante.

A reação social a esse estado de coisas vem sedando pelo ressurgimento do ideal de solidarieda-de, retomando-se bandeiras históricas. Resgatam-se valores da Revolução Francesa, liberdade, igual-dade e fraternidade, e o ideário socialista do homemcomo capital mais precioso, mas com uma com-preensão nova. A idéia de uma nova espiritualida-

de, que implica a busca de uma harmonização pes-soal com o universo e com os outros, é a novida-de. Todos os rebeldes de antes precisaram rompercom a espiritualidade porque ela era manipuladapela religião como instrumento de poder. Num mo-mento em que na maior parte dos países do mun-do já se completou a desvinculação Igreja-poder,via Estado laico, a espiritualidade toma um aspec-to de escolha pessoal, que não precisa mais ser

contestada quando se questionao status quo. Dessa forma, elapode revelar todo seu potencial re-volucionário de busca de umaexistência plena, já que é impos-sível haver harmonização pesso-al junto com miséria, violência,desigualdade e injustiça.

Certamente a idéia de um “ho-mem novo” não é privilégio dostempos atuais. Os ideais republi-canos e socialistas falavam de umhomem novo, solidário, que seriaforjado, socialmente, pela razão. O“homem novo” de hoje seria forja-

do, ao mesmo tempo, por arranjos sociais novos,mas também por uma espiritualidade revalorizada,definidora da “Era de Aquários”. Certamente, nomundo hipermercantilizado em que vivemos, esta“espiritualidade revalorizada” é vendida na lojinhada esquina, mas é também acalentada com sinceri-dade e vigor por muitos dos novos rebeldes, adep-tos da busca de um mundo novo, gerido participati-vamente e baseado numa Economia Solidária(BOFF, 2001).

Tudo isso soa romântico diante da força do capi-tal, dos interesses financeiros, da política manipula-da, da corrupção, da ignorância e da miséria que seperpetua para grande parte dos humanos. Talvez,diante da magnitude da tarefa de transformaçãosocial, apareça a consciência de que, para os quese opõem a este estado de coisas, resta a velha eboa guerra de guerrilhas: pequenas ações – locaise globais – que vão minando o grande exército. Adiferença é que esta imagem “guerreira” vem tam-bém incorporando, pouco a pouco, a busca davivência da amorosidade, da vinculação dos ideaisglobais de solidariedade à prática cotidiana de com-

Os ideais republicanos esocialistas falavam de um

homem novo, solidário,que seria forjado,

socialmente, pela razão.O “homem novo” de hojeseria forjado, ao mesmo

tempo, por arranjossociais novos, mastambém por umaespiritualidade

revalorizada, definidorada “Era de Aquários”.

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partilhar, e de novas lógicas que vão além da racio-nalidade instrumental analítica. Nesta luta, ou nestedesafio, melhor dizendo, ao mesmo tempo em quecada desafiante se contrapõe a um estado de coi-sas de forma firme, racional, inteligente, se propõetambém a mudar a sociedade de forma doce,relacional e espiritual.

É neste contexto que entram a idéia e as práti-cas da Economia Solidária, que têm se mostradouma das contestações mais interessantes ao mo-delo econômico atualmente vigente, pois questio-nam, na sua própria existência cotidiana, as basesdo modelo excludente que deu origem à pobreza eexclusão. Sua principal força talvez seja o exemplo“subversivo” de atuar na economia sem submeter-se aos princípios capitalistas de competitividadeexacerbada e lucro privado, dentro de uma lógicade cooperação. Busca-se a origem grega da pala-vra “economia”, que não está na idéia de negócios,como hoje, mas de resolução de problemas domés-ticos (oikonomia de oikos, casa), o que remete a umentendimento da economia mais voltado para a so-brevivência e para o bem-estar da humanidade(ARRUDA, 2000). Por outro lado, a literatura apon-ta também que até hoje essas práticas têm peque-no alcance e são carregados de voluntarismo.Algumas polêmicas são encontradas na literaturaacerca da origem e destino das práticas de Econo-mia Solidária. Para alguns elas são vistas como umaalternativa objetiva (SINGER, 1999) de estruturaçãosocioeconômica para a humanidade. Outros questi-onam se elas seriam uma tentativa de “controle po-lítico dos miseráveis” ou, ao contrário, uma “utopiaexperimental” (VAINER, 2000).

É pensando que essas experiências podem ge-rar sobretudo outras formas de relações econômi-cas e humanas, marcadas pela solidariedade, e queelas possam significar “sementes (que) começam ase impor quando ainda o velho é quantitativamentedominante” – como diz Milton Santos (2000) em umtexto-testamento –, que propomos estudá-las emprofundidade – tanto as de cunho micro com asmacro – para compreender melhor sua dinâmicainterna e seu alcance socioeconômico. Após essevôo conceitual e contextual, pretende-se, neste tex-to, partir das evidências empíricas encontradas numcaso concreto para contribuir com o entendimento

dessas experiências, já que elas são novas e aindarecentes as análises sobre as mesmas.

O PROJETO COOPERATIVA DE ALIMENTAÇÃOPOPULAR DO BAIRRO VILA VERDE

O projeto-piloto em estudo foi iniciado em mar-ço de 2001, com dois tipos de objetivo: interven-ção e pesquisa.4 De um lado, buscou-se incentivara organização, em cooperativa, de um grupo dehabitantes do bairro Vila Verde (cerca de dez famí-lias), para produzir alimentos in natura numa HortaComunitária, distribuí-los em forma de refeição pre-parada em um Restaurante Comunitário e vendero excedente. O princípio básico da experiência seriao espírito fundador da Economia Solidária: iniciati-vas econômicas auto-sustentáveis que não visemprioritariamente ao lucro, mas sim à sobrevivênciados seus membros, dentro de uma lógica de soli-dariedade.

Do ponto de vista prático, propunha-se que aHorta pudesse funcionar nas imediações do própriobairro, em terra devoluta e cultivável. A água viriade um charco próximo, e em épocas de seca muitointensa buscar-se-ia viabilizar água encanada parairrigação. Previa-se ser necessário proteger a plan-tação com uma cerca de arame feita com troncosda própria mata existente nas imediações. Os equi-pamentos e instrumentos de trabalho seriam em-prestados (enxadas, carro de mão, sementes,adubo, etc.) e, pouco a pouco, à medida do suces-so da iniciativa, estes seriam comprados com recur-sos próprios.

Para o Restaurante, pensava-se no aluguel deum local no próprio bairro e na busca de doaçõesde equipamentos e instrumentos de trabalho (fo-gão, geladeira, freezer, mesas e cadeiras, pane-las, pratos, copos, talheres e demais acessóriosde cozinha). Para a manutenção cotidiana seriambuscadas doações e feitas compras de alimentos,assim como de material de limpeza. Alguns mem-bros da Cooperativa seriam destacados para a ati-vidade do Restaurante, devendo haver algumarotatividade com o trabalho da Horta. Uma das pre-

4 Esse projeto está inserido na Linha de Pesquisa “Desenvolvimento Ur-bano, Participação Popular e Economia Solidária” da área de Desenvolvi-mento Urbano do Mestrado em Análise Regional da Universidade Salva-dor – UNIFACS.

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missas de funcionamento do Restaurante seria acobrança de R$ 1,00 por refeição para os habitan-tes do bairro e de R$ 0,50 para os filhos e cônju-ges dos membros da Cooperativa, que seriamalimentados gratuitamente.

Para começar uma experiência-piloto, sem ne-nhum provimento financeiro inicial, esperava-se queas diversas inserções sociais da comunidade e dopesquisador, desenvolvidas nos últimos cinco anosde atuação comunitária, pudessem ajudar a mobi-lizar pessoas e instituições. Contava-se com a ex-periência de muitos habitantes, advinda damobilização ao trabalho coletivo feita anteriormen-te em uma pesquisa-ação vinculada à produção deuma tese de doutorado, que será comentada pos-teriormente.5 Previa-se ainda que pudessem serfeitos acordos de empréstimo de materiais com ins-tituições atuantes no bairro – uma creche e umaescola comunitárias – que seriam posteriormenteressarcidos, quando a iniciativa estivesse se auto-sustentando.

Além da construção de uma iniciativa de carátereconômico, no sentido de busca da sobrevivência ebem-estar dos membros e prestação de serviço àcomunidade, o desenvolvimento do potencial peda-gógico da iniciativa foi muito realçado no projeto.Pensava-se, por exemplo, em construir o regulamen-to interno da Horta e do Restaurante paulatinamen-te, junto com as famílias e pessoas envolvidas, emestreita colaboração com os pesquisadores. Ao ob-servar e estudar os fundamentos das decisões co-letivas, os pesquisadores envolvidos produziriamconhecimentos que alimentariam a existência da li-nha de pesquisa citada.

O funcionamento acadêmico seguiria assim ametodologia de pesquisa-ação, que exige que ospesquisadores sejam partícipes da experiência prá-tica – estimulando seu desenvolvimento – e, aomesmo tempo, que observem suas implicações an-tropológicas e as relações sociais e econômicas aliestabelecidas. Dessa forma, compreende-se melhora dinâmica interna das iniciativas e produzem-se

indicações que otimizam a prática concreta e análi-ses que ajudam a um melhor entendimento dos fe-nômenos em questão. As bases metodológicasdesse trabalho de campo seriam aquelas da Antro-pologia Urbana e da Pesquisa-ação, notadamenteas de fundamentação latino-americana, na linha deOrlando Falls Borda, Paulo Freire e Carlos RodriguesBrandão (FALS BORDA, 1986 e 1987; FREIRE,1982; BRANDÃO, 1986).

O contexto do bairro

O Vila Verde localiza-se na região chamada “Mio-lo” de Salvador, situada entre a Av. Paralela (umadas principais vias da cidade) e a BR 324, principalacesso urbano. Trata-se de uma área de amplia-ção das fronteiras de urbanização da cidade, quemantém ainda algumas características rurais, comoa presença de extensas áreas verdes. Essa regiãoconcentra parte significativa dos grandes conjuntoshabitacionais da cidade, entre eles o Conjunto Ha-bitacional Mussurunga, que deu nome à microrregiãoonde se encontra o Vila Verde. A pobreza da popu-lação local é uma característica evidente na pre-sença de grande número de favelas e invasões.Pesquisa feita durante a tese de Nunes (2001)mostra que 80% das famílias do Vila Verde sobre-vivem com até um salário mínimo e que há 40% dedesempregados.

5 Trata-se da tese L´apprentissage de la citoyenneté à partir du travailcommunautaire – Methodologie participative d´intervention dans les quar-tier populaires – Recherche-action à Vila Verde, Salvador, Brésil, que de-fendi em abril de 1998, na Université Paris XII. Publicada, parcialmente,pela UNESCO, com o título “La citoyenneté à travers la participation” (verreferências bibliográficas), de agora em diante será referida como:NUNES, 2001. Localização do bairro Vila Verde na cidade de Salvador

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O Conjunto Vila Verde foi construído pela Prefei-tura de Salvador para abrigar famílias vítimas dosgraves acidentes de desabamento de terra ocorri-dos durante as chuvas de maio e junho de 1995. As500 famílias que vieram habitar esse bairro eramoriginárias de vários outros bairros populares deSalvador. O Conjunto está situado numa colina e seorganiza em torno das ruas “A” e “B”, a partir deduas dezenas de caminhos de pedestres que, par-tindo dessas vias, descem a encosta em direção aosvales alagados que cercam a colina (ver foto aé-rea). O núcleo urbano conta com cerca de 500 lotesde 84 m2, com casas de 20m2, chamadas “casasembriões”, colocadas umas ao lado das outras aolongo dos caminhos, em lotes de 6 metros de largu-ra por 14 metros de comprimento. O sítio urbano,de onde se pode perceber o mar, é muito agradá-vel, cercado de verde, e conta com um clima muitoarejado. A superfície total é de mais ou menos 15hectares.

Nesse bairro, desde 1996 vêm-se realizando di-versas experiências, iniciadas em torno do trabalhode campo de Nunes (2001) sobre metodologiasparticipativas de intervenção urbanística. Nesse pri-meiro período, foram fundadas uma Associação deMães, uma Escola de Alfabetização de Adultos euma Creche Comunitária, com apoio de diversaspessoas e grupos, de ONGs, de empresas, todosatuando em estreita vinculação com os moradores

sob a liderança de um animador externo e dos líde-res locais. Num segundo momento, a partir de 1999,foi fundada uma ONG, a Rede de Profissionais So-lidários pela Cidadania (REDE), que vem acompa-nhando essas iniciativas e incrementando outras –como um Centro de Alfabetização de Crianças – jun-tamente com a comunidade.

O desenrolar da experiência

A idéia de uma experiência-piloto de EconomiaSolidária no Vila Verde, foi muito bem recebida peloslíderes locais contactados primeiramente, Ada Borgese Domingos Leite, aos quais foi solicitado que en-trassem em contato com os demais interessados. Es-ses dois líderes já tinham experiência de trabalhocoletivo pois são oriundos da experiência anterior, jácomentada, e esse fato permitiu que a iniciativa sedesenvolvesse rapidamente, assim como a relaçãoestreita do pesquisador com a comunidade, que davalegitimidade à proposta. Logo em seguida, Ada e Do-mingos buscaram mobilizar um grupo de habitantesdo bairro, que já no dia seguinte foram visitar áreascontíguas ao bairro para escolher o local da futuraHorta. Essas pessoas fazem parte do grupo de habi-tantes que por diversas vias estão ligados aos proje-tos comunitários existentes no bairro (principalmentea creche e escola comunitária).

A rapidez com que os líderes passaram à açãode mobilização e a facilidade de obter adeptos es-tão intimamente ligados ao sucesso das iniciativasde trabalho comunitário anteriores. Ao longo de todoo processo, essa vantagem foi significativa parasuperar os problemas do cotidiano. Um exemplo dis-so foi a discussão, já no primeiro dia, acerca domelhor local para a Horta. Foi feita uma votação parasaber a opinião da maioria e verificou-se uma facili-dade incomum para proceder-se a esse recursodemocrático, o que se deve à experiência da maio-ria das pessoas com processos coletivos anterioresem que a preocupação com um aprendizado dosrituais da democracia direta estava presente. A ca-pacidade de iniciativa testada anteriormente facili-tou também uma passagem imediata à ação, já que,logo no primeiro dia, se construiu uma precária pontepara acessar o terreno escolhido, pois esse fica dooutro lado do córrego que limita o bairro.

Vista aérea do bairro Vila Verde em 1996

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O terreno e a horta

Essa experiência-piloto só foi possível porque obairro é contíguo a uma área da empresa públicaCompanhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF),por onde passam linhas de alta tensão e sob as quaisnão podem ser construídos imóveis. No princípio os

fiscais da CHESF interpretaram aquela movimenta-ção de pessoas no terreno – denunciada por ummorador do bairro – como uma tentativa de invasãoe quiseram desalojar os mutirantes. Esse primeirorevés desmotivou a todos, mas Ada procurou expli-car as intenções do grupo aos fiscais, mostrando-lhes todas as atividades comunitárias do bairro, oque acabou por convencê-los da seriedade de pro-pósitos do projeto da Cooperativa. Ao verificar quea horta não ofereceria nenhum perigo às linhas daCHESF, além de ser um empecilho a invasões doterreno, os fiscais encaminharam os habitantes aosescalões superiores da CHESF.

Esse primeiro contato para obter permissão ofi-cial de ocupar o terreno foi feito exclusivamente peloshabitantes, mostrando a capacidade dos líderes derelacionar-se externamente e fazer valer os proje-tos do grupo. A liberação da área veio a seguir, coma solicitação de que nada fosse construído, que nãose plantassem árvores grandes nem se trabalhasseem dias de chuva por causa do risco elétrico. Atéhoje este compromisso é fiscalizado pelos funcio-nários da CHESF, que intervêm, por exemplo, se osCooperativados vão à horta em dias chuvosos.

Durante um bom tempo, cerca de um mês, o prin-cipal trabalho era a limpeza do terreno escolhido,ganhando espaço da mata, e consertos contínuosda ponte de acesso sobre o charco. Essa ponte tor-nava-se ponto de estrangulamento da iniciativa a

Vista aérea da horta comunitária

Água do poço para molhar as leiras

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cada dia, pois o material utilizado se degradava con-tinuamente no contato com a água. Durante essetrabalho, contava-se semanalmente com a presen-ça do pesquisador, que promovia discussões acer-ca do significado da iniciativa, principalmente daspalavras Economia e Solidariedade, e contribuíapara dar unidade e motivar o grupo.

O trabalho se dava sempre pela manhã, com fer-ramentas que haviam sido conseguidas segundo aspossibilidades de cada um e com o empréstimo da-quelas da creche e de vizinhos. A limitação do nú-mero dessas ferramentas e, em alguns casos, a máconservação de algumas delas começou a se tor-nar um problema. Porém, o fato de os membros da“pré-Cooperativa” saberem que não havia nenhu-ma disponibilidade de recursos fazia com que sefosse “dando um jeito” até surgir alguma solução.Esse acordo demonstra que, desde o início, com-preendia-se que a iniciativa era autônoma e que nãoera possível encontrar ajuda externa facilmente.

As regras de funcionamento foram sendo elabo-radas gradativamente. O tempo de trabalho diário ea divisão de tarefas de acordo com a vocação decada um são exemplos das primeiras decisões co-letivas. As tarefas do empreendimento são árduas,principalmente para pessoas sem tradição de agri-cultura, como é o caso dos moradores de Vila Ver-

de. Na horta, é necessário um trabalho contínuo deplantar, molhar, capinar, cercar, feito geralmente sobo sol; por isso, o turno de trabalho definido foi omatutino, sendo que algumas pessoas foram des-tacadas para voltar à tarde para molhar as semen-tes e brotos.

O problema da irrigação se colocou logo, quan-do foi verificado o estado da água do charco, com-pletamente poluída pelos próprios esgotos do bair-ro, que aí são despejados diretamente. Esse foi oprimeiro evento que demonstrou a distância entreprojeto e possibilidade de realização concreta, exi-gindo criatividade. Depois de várias tentativas de“filtrar-se” a água do charco foi tomada a decisão deconstruir-se um poço, tendo-se encontrado águaabundante e de boa qualidade, o que significou asalvação das primeiras leiras da horta. É com essasolução que se tem contado até o momento. Decor-rente disso, o primeiro investimento importante rea-lizado, com a ajuda de doações particulares de pes-soas ligadas à REDE e ao pesquisador, foi a comprade material elétrico para a instalação de uma bom-ba – comprada de segunda mão na própria comuni-dade – que leva água do poço à horta.

Num primeiro momento, diversas dificuldades ti-veram que ser enfrentadas pelos cooperativados: adestruição das primeiras leiras por bichos silvestres

Seu Vadu, 77 anos, a “alma” da horta

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e por vacas de uma pequena fazenda vizinha, a pra-ga das formigas que comeram os primeiros brotos,as constantes quebras da bomba, a falta de chuva.A presença de Seu Vadu, um ex-agricultor de 77anos, foi importantíssima para que a experiência vin-gasse, pois sua experiência, perseverança e dedi-cação à horta contagiou os demais nos primeirostempos. Um estímulo externo à iniciativa foram asdiversas visitas de interessados no tema da Econo-mia Solidária. Esses visitantes, de modo geral, mos-traram tal entusiasmo com a horta – atividade poucocomum no meio urbano – que, de uma forma ou deoutra, acabaram contribuindo materialmente para oseu desenvolvimento. O problema da ponte, porexemplo, foi finalmente resolvido com uma constru-ção relativamente sólida, feita com a ajuda de umgrupo de estudantes de pós-graduação que visita-ram a iniciativa.

vesse produzindo. Ele se impôs como sustentáculodo próprio trabalho da horta, já que os envolvidostrabalhavam durante toda a manhã e precisavam sealimentar em algum lugar. A idéia de cobrar R$ 0,50pela refeição dos familiares dos cooperativados foiimpossível de ser concretizada por absoluta impos-sibilidade financeira dos mesmos, tendo-se acerta-do que os filhos menores e parentes idosos oudoentes também poderiam comer de graça. É im-portante voltar a realçar que a dinâmica da realida-de nunca pode ser completamente prevista numprojeto, mas que a possibilidade de fazer-se ajus-tes contínuos é o que demonstra a flexibilidade doprojeto e a autonomia dos atores, sem o que inicia-tivas desse tipo são destinadas ao fracasso.

Por outro lado, como estava previsto no projeto,o apoio da Creche e da Escola comunitária foi fun-damental para o início do funcionamento do Res-taurante Comunitário. O empréstimo de gênerosalimentícios e utensílios permitiu a improvisação, nacasa de Ada, de um espaço onde se confeccionavao almoço de todos, logo após o trabalho na horta.Essa solução inicial não poderia perdurar para nãocomprometer o funcionamento das duas instituiçõescomunitárias, passando a ser prioritária a questãode angariar fundos para a manutenção do restau-rante. Passou-se a buscar doações de gêneros ali-mentícios entre os comerciantes locais, assim comoà venda de pratos, a R$ 1,50, a pessoas que pu-dessem pagar (comerciantes) para subsidiar, a cadadia, as compras do dia seguinte.

A partir da iniciativa dos líderes, conseguiu-seemprestado um salão próximo, que estava à venda,para funcionamento do restaurante. A partir de en-tão o projeto passa a ter uma sede provisória, visí-vel para a comunidade, o que serviu para aumentara clientela do restaurante. Foi sugerido também umbazar permanente no local, como forma de conse-guir mais recursos para sua manutenção. Essa idéiaveio das experiências anteriores, em que muitosbazares foram feitos em finais de semana visandoarrecadar recursos para o financiamento de ativida-des comunitárias. A existência de um local fixo per-mitiu o funcionamento contínuo do bazar, apoiadopor doações de simpatizantes externos à iniciativa.

Como já foi assinalado, o restaurante e a hortapassaram a ser a motivação para visitas diversas e

Funcionamento do restaurante comunitário

Clientes: os cooperativados e pessoas da comunidade

A implantação e o funcionamento dorestaurante

O restaurante comunitário começou a funcionarjá no segundo dia da iniciativa, apesar de ter-se pre-visto que isso só ocorreria quando a Horta já esti-

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essas visitas, por sua vez, eram uma motivaçãoimportante para os mutirantes. O caráter de pesqui-sa-ação da experiência motivou o interesse de uni-versitários e muitos estudantes passaram a contri-buir de alguma forma com a iniciativa, seja doandodinheiro e peças para o bazar ou, simplesmente,pagando um pouco mais caro pela comida do res-taurante. Algumas tentativas de contribuição orga-nizada de alunos da Universidade Salvador foramfeitas e funcionaram por um tem-po, mas acabaram se diluindo atédesaparecer completamente.

Como no caso da horta, a ma-nutenção do restaurante tambémsignifica um volume de trabalhoconsiderável, pois é preciso limpar,preparar a comida, servir, lavar pra-tos, fazer compras para o dia se-guinte e recomeçar tudo a cada dia.Além disso, é preciso contabilizara entrada e saída de gêneros e dedinheiro, o que se revelou logo umaatividade complicada, que será dis-cutida mais tarde. O volume de tra-balho, tanto na horta quanto norestaurante, motivou algumas saídas de cooperati-vados nos primeiros tempos, pois a idéia de um re-torno financeiro a longo prazo não se impõe facil-mente. Discutiremos a seguir o desenrolar dasrelações entre os membros da Cooperativa ao lon-go do tempo, no enfrentamento desses e de outrosproblemas.

O comportamento dos participantes daexperiência

Observe-se que as pessoas que se vinculam ini-cialmente a uma proposta como esta têm algumaafinidade pessoal com os líderes do bairro que asconvidaram a participar, sendo esta a primeira con-dição de aproximação. A busca de uma alternativade sobrevivência e o desejo de participar de umadinâmica coletiva parecem ser as motivações maiscomuns para que as pessoas se vinculem ao proje-to, sendo que o prazer do trabalho agrícola tambémfoi citado por alguns como motivação para o “per-tencimento” ao projeto. Pode-se deduzir também

que, com o desenvolvimento da iniciativa, um certoprestígio é conferido ao participante, em decorrên-cia do ir e vir de visitantes no bairro e dos empreen-dimentos (a horta, o restaurante, o bazar) que seconsolidam no cotidiano e que despertam, no míni-mo, curiosidade. Tal fato parece seduzir alguns, pelomenos por algum tempo, e esses se aproximam ese afastam em seguida, se outras motivações maissólidas não aparecem.

As pessoas que fazem parte daCooperativa são majoritariamenteadultos do sexo feminino, e podemser divididos em três grupos segun-do sua permanência no processo.Há os que são constantes desde ocomeço e podem ser chamados de“linha de frente”: contam cinco pes-soas, incluindo o animador exter-no. Os majoritários são aquelesque mantêm um vínculo instável,ora participam, ora não: podem serchamados de “intermitentes”, por-que sempre voltam. Outros têmparticipação eventual, em momen-tos de maior atividade, quando são

solicitados a estar presentes, mas depois se afas-tam: são os “ocasionais”. Há ainda aqueles que sevinculam à experiência por um tempo, geralmentede modo assíduo, como os de “linha de frente”, eque acabam por se afastar numa dinâmica de confli-to com os líderes, que será discutida posteriormente.

Podemos observar que os membros que formama “linha de frente” da iniciativa têm em comum ofato de terem sua sobrevivência já garantida poroutra atividade. Essa condição de dedicação contí-nua ao projeto é aquela dos líderes, mas tambémde pessoas sem essa característica, o que pode in-dicar que a motivação para o trabalho coletivo sebaseia mais numa vocação para este que na posi-ção de destaque dentro do mesmo. Os “intermiten-tes” têm uma vocação clara, mas não estão tãoimbuídos do compromisso ou não podem exercê-lo por questões materiais, ou seja, por necessita-rem de realizar outras ocupações ou “biscates” parasobreviver. Já os “ocasionais” se aproximam do pro-jeto quase por acaso e se vão também muito rapi-damente.

A busca de umaalternativa de

sobrevivência e o desejode participar de uma

dinâmica coletiva parecemser as motivações mais

comuns para que aspessoas se vinculem ao

projeto, sendo que oprazer do trabalho agrícola

também foi citado poralguns como motivaçãopara o “pertencimento”

ao projeto.

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Durante o período aqui analisado, de um ano,cerca de 40 pessoas foram diretamente vinculadasà experiência, o que é um número expressivo. Talnúmero, porém, nunca foi conseguido de maneiraconcomitante, e esta é uma das dificuldades do pro-jeto, já que, por uma definição legal, é preciso ummínimo de 20 pessoas para formar oficialmente umaCooperativa. Esta dificuldade leva à questão doporquê da ausência de motivação para participar deum projeto que tem uma vantagem inicial bastanteinteressante à primeira vista, que é a alimentaçãogratuita para o participante e seus filhos. Teorica-mente, qualquer pessoa passando por um momen-to de grande dificuldade financeira poderia quererparticipar do projeto para conseguir comida, mes-mo que apenas de forma emergencial, e isso nãoacontece.

As motivações para o abandono também preci-sam ser estudadas. De modo geral o afastamentodaqueles que tiveram um vínculo mais forte se dápor motivos variados, que vão do cansaço com otrabalho exaustivo, passando por conflitos pessoaise por disputas de liderança, até o fato de não vis-lumbrarem futuro para a iniciativa. Em alguns mo-mentos particularmente duros da experiência sobre-vem o desânimo. Para muitos membros, devido aquestões que discutiremos posteriormente, a van-tagem comparativa de estarem trabalhando numainiciativa própria, em que tudo é de todos e em queeles estão construindo um pequeno patrimônio co-letivo, não é percebida. Na mesma ordem de moti-vações para o abandono está a baixa remunera-ção, seja aquela obtida pelos dividendos produzidospela própria iniciativa, que é quase simbólica, assimcomo o montante total da “bolsa” de apoio aos mem-bros assíduos, conseguida com simpatizantes dainiciativa e que será comentada mais tarde.

Uma outra interrogação, ainda sem resposta, dizrespeito ao fato de a nova condição da Cooperati-va, quando esta começou a se consolidar e passoua distribuir dividendos semanais, mesmo que peque-nos, não ter mudado a filiação ao projeto. Observa-se que o perfil numérico dos “linha de frente”, “inter-mitentes” e “ocasionais” se mantém, não sendo odinheiro uma motivação maior de vinculação ao pro-jeto. Mais intrigante ainda é que a saída de algunsmembros, pelos mais diversos motivos (mas sem

conflitos pessoais explícitos e sendo mantida umarelação cordial com a Cooperativa), não foi reverti-da nem em momentos de absoluta falta de recursospara a sobrevivência das famílias envolvidas. Pes-soas que sabem que a Cooperativa mantém suasportas abertas e que há trabalho para todos, nãovoltam a participar nem quando os filhos estão pas-sando fome.

O entendimento dessas questões deve ser bus-cado em uma visão geral da vivência da pobreza esuas conseqüências, que foi discutida na tese cita-da acima, desenvolvida exatamente nessa comuni-dade, trabalhando a questão identificada como a“interiorização do estigma da pobreza”. Várias dascaracterísticas da experiência ora descrita vêm cor-roborar o que se verificou no estudo referido, parti-cularmente no que concerne às decorrências dacontínua restrição financeira, da baixa escolarida-de, da moradia em locais degradados e/ou distan-tes e da pouca privacidade pessoal, familiar e grupal,entre outros. Essas vivências têm conseqüênciasvariadas – que vão desde uma grande capacidadede solidariedade a um contínuo sentimento de impo-tência – e tornam-se ainda mais marcantes no conví-vio social dos pobres com a sociedade incluída.

Para falar de maneira simplificada desta relaçãopobres/sociedade, poderíamos dizer que esta últi-ma os estigmatiza a partir das suas característicasfísicas e comportamento social, atribuindo-lhe umaimagem negativa, que, em última instância, é umaidentidade de “perdedor”. Essa imagem estigmati-zada, vivida continuamente, acaba introjetada e re-sulta numa ampla gama de comportamentos quedenotam baixa auto-estima (FREIRE, 1999). Umaconseqüência dessa auto-imagem negativa pesso-al é que ela acaba por atingir o grupo, na medidaem que causa desconfiança na capacidade destede realizar seus projetos, favorecendo as desistên-cias do projeto coletivo.

Por outro lado, características do cotidiano dospobres, vinculadas às contínuas preocupações coma sobrevivência e conseqüente horizonte de vidarestrito ao tempo presente e ao futuro imediato, e,ainda, à pequena mobilidade no espaço da cidade,que implica um grande isolamento no próprio gruposocial (NUNES, 2001), dificultam a iniciativa em pau-ta. Essas características não estimulam a perseve-

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rança, a visão de longo prazo, a autoconfiança pes-soal e grupal ou os contatos externos, necessáriosàs iniciativas coletivas. A inexperiência com essetipo de vivência de projetos coletivos, que exigem oconhecimento dos rituais da democracia direta, étambém um entrave para os recém-chegados, osquais, de certa forma, fazem “atrasar” o desenrolardas atividades, até que aprendam esses rituais ouse afastem do projeto.

Os conflitos internos e arelação com líderes

É importante salientar a existên-cia de um certo número de confli-tos internos, de natureza interpes-soal, que foram causa de muitasdesistências ao longo do percurso.As dificuldades de relacionamentosão uma constante e, de modogeral, vinculam-se ao comporta-mento das pessoas no grupo. Asbases das disputas internas são asidiossincrasias pessoais, que mo-tivam conflitos em qualquer grupohumano, mas que no caso de umaexperiência num contexto popularparecem ser ainda mais agudas. As diferenças dededicação de cada um são uma das causas maisconstantes de brigas: ouvem-se muitos comentári-os do tipo “fulano fala demais e trabalha de menos”ou reclamações acerca de atraso na hora de che-gar ao trabalho, entre outras.

Em relação aos líderes, as relações são da or-dem da legitimação ou da ordem da competição.Na legitimação reconhece-se o papel do líder comomobilizador e dirigente e convive-se em harmoniacom esse papel, numa relação que pressupõe mui-ta confiança. A característica “mobilizadora” dos lí-deres da experiência – em contraste com o autori-tarismo dos líderes ‘fortes’ (NUNES, 2001) – é umdos pilares de sustentação da Cooperativa. Nunestrata da existência de uma tendência humana de“busca de reconhecimento” (TODOROV, 1995), queseria ainda mais aguda na vivência de situações derestrição do reconhecimento, como é o caso davivência da pobreza. Neste contexto, podemos ob-

servar que certas pessoas têm continuamente umaatitude de tentar sobressair no grupo, competindocom os líderes reconhecidos e forçando uma lide-rança que não têm, o que acaba por cansar os de-mais, gerar disputas e, finalmente, uma “depuração”daquele membro “incômodo”.

Por outro lado, alguns episódios são ilustrativos deoutro tipo de conflito comum nessas experiências,quando não há um reconhecimento do papel do líder,

principalmente por parte dos recém-chegados. A incompreensão e adesconfiança foram causa, porexemplo, de um conflito em um gru-po de adolescentes de uma bandano bairro, que se aproximaram dainiciativa, mas ficaram por poucotempo, por desconfiarem da con-dução financeira do processo. Es-ses conflitos, mesmo que raros, tra-zem enorme desgaste aos líderes:eles se sentem injustiçados, umavez que se sacrificam muito, fazen-do um enorme esforço pessoalpara manter a iniciativa em funcio-namento. Além de darem o exem-plo pessoal de dedicação e traba-lho extremos, eles se expõem a

críticas, por exemplo, quando tentam fazer valer asregras de funcionamento do grupo decididas con-juntamente, o que é um dos papéis do líder.

A relação do grupo com a comunidade externacontém elementos de conflito e de cooperação. Oprimeiro conflito da Cooperativa deu-se quando ummorador denunciou à CHESF a ocupação do terre-no. Essa denúncia de uma suposta “invasão” relacio-nou-se com disputas antigas de liderança que exis-tem no bairro. Porém, de modo geral, a iniciativatem tido apoio da maioria da comunidade, o qual seexplicita, por exemplo, na receptividade que o gru-po encontra quando se dirige aos comerciantes bus-cando ajuda na forma de doação de gêneros ali-mentícios para o Restaurante ou quando pedeemprestadas ferramentas para o desenvolvimentodas atividades. A evidência maior do respeito dacomunidade para com a iniciativa é o fato de a áreada Horta ser respeitada. Mesmo sendo contígua aobairro e sem contar com proteção à entrada, o úni-

As dificuldades derelacionamento são uma

constante e, de modogeral, vinculam-se aocomportamento das

pessoas no grupo. Asbases das disputas

internas são asidiossincrasias pessoais,que motivam conflitos emqualquer grupo humano,

mas que no caso deuma experiência num

contexto popularparecem ser

ainda mais agudas.

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co ato de vandalismo e roubo da colheita que acon-teceu durante o processo foi feito por pessoas alhei-as à comunidade.

A contabilidade das ações e os negócios daCooperativa

Um problema constante do processo de gestãoda Cooperativa foi a dificuldade dos membros deprestar contas corretamente dos gastos, principal-mente daquelas relativas à cozinha e ao bazar, queimplicam uma contabilidade cotidiana. Essa conta-bilidade é dificultada pela baixa escolaridade dosmembros e pelo fato de ser uma novidade no cotidi-ano das pessoas, já que, dificilmente, eles gerem aeconomia doméstica num espírito de receitas e des-pesas. Esse comportamento decorre da inexistência,para a maioria, de uma fonte de renda fixa, como umsalário, já que a maioria dos cooperativados encon-tra-se desempregada ou faz biscates.

Outro aspecto da questão que merece uma in-vestigação mais profunda é a dificuldade de sepa-rar o pessoal do coletivo. Observa-se que na relaçãocom os fundos que entram e saem cotidianamentena Cooperativa é freqüente uma certa imprecisãonas contas. Tal imprecisão não pode ser encaradacomo desvio de dinheiro, já que ela se apresentatanto no sentido do dinheiro da Cooperativa supriruma necessidade pessoal, como no de ser neces-sário que a Cooperativa seja suprida por recursospessoais. Esse fato é conhecido dos estudiososda Economia Popular e reflete uma tendência auma administração de negócios visando à manu-tenção da vida e não simplesmente ao lucro(KRAYCHETE, 2000).

Um exemplo dessa forma de gerir a sobrevivên-cia cotidiana é a contabilidade do restaurante, queindica que ele está condenado – nas atuais condi-ções – a ser deficitário. Se pensarmos, entretanto,que, apesar da ampliação dos negócios da Coope-rativa, a viabilidade e a expansão do empreendimen-to comunitário só existiram por causa do restauran-te, percebe-se que a lógica contábil deve ser outra.O restaurante é deficitário, mas ele alimenta os co-operativados e suas famílias, o que significaum grande serviço prestado ao grupo e contribui paraa continuidade do projeto coletivo. Da mesma for-

ma, o retorno financeiro da horta é precaríssimo,mas ela é um dos maiores atrativos do projeto parao público externo.

Graças ao espírito empreendedor dos participan-tes da Cooperativa, principalmente de seus líderes,as fontes de renda coletiva foram se ampliandogradativamente. Além das doações externas, dorestaurante e do bazar, foram feitos contratos pre-cários de fornecimento de “quentinhas” para duasempresas construtoras. Uma conquista particular-mente importante foi o contrato com a Prefeitura deSalvador para fornecimento de lanches aos 50 jo-vens do programa federal “Agente Jovem”, que edu-ca adolescentes do bairro. A Cooperativa recebe opagamento em tickets- restaurante, com os quaiscompra os alimentos tanto para o Restaurante Co-munitário como para o próprio lanche dos jovens.Por um período, quando da inauguração de umaestação de transbordo de ônibus nas proximidadesdo bairro, foram vendidos lanches diariamente, o quese configurou como mais uma atividade da Coope-rativa, porém sem continuidade.

Atualmente busca-se apoio da recém-criada Se-cretaria de Combate à Pobreza (Governo do Esta-do), para conseguir apoio financeiro e dar estabili-dade à iniciativa. Enquanto alguma ajuda oficial nãochega, um socorro improvisado em forma de “bol-sas de trabalho” está sendo viabilizado pelos ani-madores externos para os membros mais assíduose vitais para o funcionamento da Cooperativa. Es-tas “bolsas”, no valor de meio salário mínimo, foramconseguidas mediante recursos obtidos com dez“sócios cooperativos”, que são simpatizantes daexperiência e estão se dispondo a ajudá-la a se con-solidar. O acordo prevê um empréstimo que duraráum ano, com expectativa de retorno do investimen-to após esse prazo.

Entre as dificuldades encontradas para o exercí-cio da atividade “empresarial” do grupo estão a inex-periência gerencial e a precariedade legal da Coo-perativa (que ainda não está oficializada). Esses doisaspectos fazem com que o grupo se exponha a serludibriado, como de fato foi, por empresários ines-crupulosos que se aproveitaram da situação paranão pagar o que deviam. Dessa forma, um membroda Cooperativa teve que entrar na justiça em nomedos demais membros para receber dívidas, mesmo

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com tão pouco tempo de existência da iniciativa.Essas dificuldades, como a necessidade de fazeruma cobrança contínua aos maus pagadores, sãopedagógicas, mas extremamente cansativas, pes-soalmente, para quem cobra, e desmotivantes parao grupo.

A distribuição de dividendos

O início da distribuição de divi-dendos da Cooperativa deu-se cer-ca de três meses depois de inicia-dos os trabalhos e significou ummomento especial, no qual se de-monstrou o amadurecimento dogrupo. A idéia de quais deveriamser os critérios dessa divisão foisendo discutida aos poucos e duascoisas foram decididas sem maio-res conflitos: a) operar-se-ia como critério da freqüência, ou seja, to-dos receberiam conforme o tempotrabalhado; b) aqueles que se ausentassem por ummotivo justo (como doenças, problemas com a fa-mília, necessidades de resolver questões pessoaisimportantes, etc.) também entrariam no cálculo dadivisão. Outros critérios, como o desenvolvimentode atividades que envolvessem maior dispêndio deenergia física e a dedicação cotidiana, que significafidelidade ao projeto, sempre são reconhecidos nahora de repartir os dividendos.

Outra decisão tomada acerca da divisão de divi-dendos, que demonstra a existência de uma racio-nalidade baseada na ética, foi a de que seria distri-buída apenas a receita gerada pelos próprios coo-perativados. As doações seriam sempre investidasna melhoria das condições de trabalho, principal-mente do restaurante, da horta e do bazar, já quese entende que os apoiadores externos contribuemvisando ao desenvolvimento do projeto da Coope-rativa e não à distribuição de dividendos para seusmembros. Logicamente, em alguns momentos exis-te a exceção à regra, caso de quando se prevê orecebimento de recursos próprios numa perspecti-va imediata. Mas o princípio de que o que se rece-be foi o efetivamente trabalhado é a base das de-cisões coletivas.

O advento da “bolsa de trabalho” é muito recen-te e não quebra a regra citada acima, já que esseapoio externo é entendido como um empréstimo enão como doação. Entretanto, toda a gerência des-ses recursos, obtidos com ajuda externa, é coletiva.Em reunião da Cooperativa estabelece-se quemrecebe e quanto recebe, com base nos mesmos cri-térios anteriormente colocados, da freqüência e dotipo de atividade.

É muito importante observarque a ética da divisão de dividen-dos e da distribuição da bolsa nãoprecisa ser aprendida, ela é moral-mente entranhada nas pessoas e,mesmo quando há discordânciassobre a proposta, os conflitos re-solvem-se facilmente pela conversa.Poder-se-ia especular que numacomunidade onde o dinheiro é tãoescasso essas divisões de dividen-dos seriam problemáticas, o quenão é absolutamente o caso. É um

momento de festa e nunca se verificaram discor-dâncias profundas. Em alguns momentos, como in-centivo, premia-se um recém-chegado com mais di-nheiro do que o que ele efetivamente mereceu peloseu trabalho, e isso nunca é motivo de disputa.

Os animadores externos e as parcerias comopilares de apoio

Considerando as dificuldades descritas, relativasà condição de pobreza, que podem inviabilizar a ini-ciativa popular, a presença de um “animador exter-no” (NUNES, 2001) é um apoio crucial. Ele cumpreo papel de incentivador do projeto, ajuda a organi-zar as atividades, media os conflitos entre os parti-cipantes e intermedia a relação com pessoas de forada comunidade para conseguir recursos para a inici-ativa. No caso específico desta experiência-piloto, alegitimidade do animador, advinda da sua presençano bairro há mais de cinco anos, facilitou desde arapidez dos habitantes em incorporar a proposta atéa resolução de muitos problemas no desenrolar dostrabalhos.

O desafio do animador externo é estabelecer umarelação horizontal com os habitantes, reconhecen-

É muito importanteobservar que a ética da

divisão de dividendos e dadistribuição da bolsa nãoprecisa ser aprendida, elaé moralmente entranhada

nas pessoas e, mesmoquando há discordâncias

sobre a proposta, osconflitos resolvem-se

facilmente pela conversa.

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do sua particularidade no interior da experiência –como pesquisador-participante oriundo de outra clas-se social – mas sem estabelecer hierarquias. Esseproblema, assim como o de evitar a tutela dos mem-bros da iniciativa e a dependência desta em relaçãoà pessoa do animador externo foram evitadas comcerta facilidade. Esse fato é decorrente da relaçãoestabelecida com os líderes da Cooperativa em ex-periências coletivas anteriores, já citadas. Entretan-to, para os membros novos da iniciativa, essa ativi-dade de vigilância contra a tutela e a dependência éuma constante.

Outra forma de motivação e “conscientização”(FREIRE, 1982) foi a organização de palestras comconvidados externos, que se mostraram amplamenteinteressados em intervir. A idéia é que a experiên-cia-piloto de Economia Solidária pudesse servircomo um aprendizado amplo de cidadania para osinteressados, que contribuísse para ampliar a vi-são das pessoas sobre temas correlatos à expe-riência. Para concretizá-la, foram convidados umprofessor de história, um vereador ligado a ques-tões ambientais e uma pesquisadora que trabalhacom questões vinculadas à vivência da pobreza,assim como foi passado um vídeo sobre a estrutu-ração social brasileira. As reuniões aconteciam nasede da creche comunitária e contaram com a pre-sença de cerca de 20 cooperativados, e seus fami-liares, a cada vez.

Os apoios externos, fundamentais para o início, aconsolidação e expansão da experiência da Coope-rativa, consistiram nas ações de amigos, colegas,familiares e alunos do pesquisador/animador, assimcomo dos líderes locais, mostrando que as relaçõespessoais contam grandemente no sucesso de umainiciativa como a que se relata aqui. Além dos apoiospessoais, os parceiros institucionais mais contínuosda Cooperativa são a REDE de Profissionais Solidá-rios pela Cidadania e a Universidade Salvador(UNIFACS), por intermédio da linha de pesquisa ci-tada e de alunos de diversas disciplinas de gradua-ção e pós-graduação que tiveram a experiência doVila Verde como trabalho de campo. Observe-se queesse apoio dos estudantes é um vínculo muito frágile intermitente.

Os apoios se efetivavam como assistência téc-nica, trabalho manual, doações (em gêneros alimen-

tícios, instrumentos de trabalho, peças para o ba-zar, tickets), além de sob a forma de contribuiçõesem dinheiro. As parcerias caracterizam-se principal-mente por se basearem na solidariedade (pessoal/institucional), na confiança mútua entre parceiros,na informalidade da relação de parceria e, na maio-ria das vezes, inconstância do compromisso de aju-da à Cooperativa. Essa inconstância é ao mesmotempo conseqüência e causa da falta de profissio-nalização da Cooperativa e espera-se que seja su-perada com a consolidação do projeto.

As primeiras doações foram conseguidas por Ada,com antigos parceiros da creche, para o funciona-mento do restaurante: panelas, pratos, etc. O ani-mador externo conseguiu doações de sementes eferramentas, graças à simpatia de amigos pelo pro-jeto. Para ajudar a consolidar o restaurante foramorganizados vários almoços, principalmente o almo-ço mensal dos membros da REDE, pagando-se, poresses, sempre mais do que o valor previsto. A visitade parceiros, além de ajudar financeiramente, sem-pre ajudou a animar os cooperativados quando es-tes se encontravam desmotivados, o que podiaacontecer, por exemplo, pela saída de algum mem-bro. O ânimo novo dos visitantes ajuda a recuperara confiança na Cooperativa.

No último período, a presença de alunos da Es-cola de Administração, da disciplina Atividade Cur-ricular em Comunidade (programa da UniversidadeFederal da Bahia que incentiva a relação Universi-dade/Comunidade), tem sido muito importante. Es-ses alunos estão trabalhando junto com a Coopera-tiva Popular de Alimentação do Vila Verde, assimcomo com outras Cooperativas similares, num pro-cesso de ação e aprendizagem. Essa ação em co-munidade é decorrência de um projeto de finançassolidárias, concretizado através de uma Associaçãode Finanças Solidárias – BanSol, com objetivo defornecer crédito e apoio técnico a empreendimen-tos coletivos solidários.

Os limites do trabalho voluntário

No período em que a iniciativa da Cooperativafoi acompanhada, percebeu-se que a trajetória po-deria ser representada por uma curva ascendente,composta de diversos pequenos “soluços”. Esses

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pequenos intervalos descendentes seriam os retro-cessos causados por problemas de percurso queforam superados na tendência crescente do traba-lho. Pelo que se observa até agora, a curva ascen-dente começa a inverter sua tendência devido àexaustão dos cooperativados face à não- remune-ração do seu trabalho. Essa possibilidade é conhe-cida e esperada e o mesmo processo verificou-seanteriormente no próprio bairro, quando o funciona-mento da creche e da escola co-munitária começou a declinar apóscerca de um ano de trabalho vo-luntário. O processo foi revertidoquando as iniciativas encontraramos parceiros que até hoje bancamfinanceiramente seu funcionamen-to e dão estabilidade à atividade.

Outros motivos foram coadju-vantes de um retrocesso no anda-mento do trabalho: uma onda deviolência que se abateu sobre obairro pela ação de uma gang dejovens e o período de desmotiva-ção sazonal que coincide com overão. A violência atingiu algunscooperativados e a própria horta foivítima de uma ato de vandalismo,quando desconhecidos destruíramparte do trabalho, o que chocouprofundamente as pessoas mais ligadas a essa ati-vidade. Concomitante a isso, as férias, do períododo verão, da creche e da escola significaram dificul-dades objetivas e subjetivas para a atividade da co-operativa. Como foi salientado anteriormente, esseprocesso de declínio está sendo superado pela aju-da externa que visa reverter a desmotivação conse-qüente da exaustão dos cooperativados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fato de se ter conseguido levar adiante a ex-periência – imediatamente abraçada pelas pes-soas, mesmo sem qualquer tipo de apoio finan-ceiro – comprova as possibilidades deste tipo deiniciativa apesar das condições precárias de suaestruturação. Se sem nenhum apoio público e semcapital próprio inicial chegou-se a alimentar dez

famílias, subsidiar alimentação para mais pesso-as da comunidade e ainda gerar alguma rendapara os cooperativados, imagine-se o que a inici-ativa popular poderia fazer com um pouco de cré-dito?

Além disto, os resultados preliminares do proje-to não podem ser vistos apenas do ponto de vistamaterial, lembrando as características pretendidaspelas experiências de Economia Solidária, citadas

no início deste texto, entre as quaisfigura a idéia de que suas “refe-rências de êxito são distintas daque-las do capitalismo, já que a recipro-cidade e a fraternidade nas rela-ções interpessoais são almejadas”.Ainda referenciando-se nessas ca-racterísticas, pode-se observar tam-bém que a Cooperativa do Vila Ver-de apresenta “motivações de justi-ça e solidariedade em todas asatividades implementadas e vividascoletivamente, sejam elas a de pro-duzir e consumir bens e serviços,como a de distribuí-los e comer-cializá-los”. Foram observados,também, o desenvolvimento de“processos de autogestão e auto-nomia, implicando lógicas de parti-cipação e estímulo ao engajamento”,

assim como a “criatividade e soluções alternativas faceaos problemas e negócios implementados, visandoà inovação tecnológica, gerencial e de relações hu-manas” .

Todos esses elementos precisam ser mais estu-dados, e o serão, com a continuidade do projeto,mas é importante reconhecer que pelo menos umadas premissas para que o exercício da EconomiaSolidária possa vir a ser uma nova utopia da socie-dade não foi considerada. Trata-se da “preocupa-ção com o meio ambiente e com um progresso sus-tentável para a geração seguinte, preservando osmeios naturais hoje existentes”. Diante das enor-mes dificuldades que um projeto desse tipo en-frenta no seio de uma comunidade pobre, essaspreocupações não foram devidamente enfrenta-das, mas espera-se que o sejam, em algum mo-mento, no futuro.

No período emque a iniciativada Cooperativa

foi acompanhada,percebeu-se que a

trajetória poderia serrepresentada por uma

curva ascendente,composta de diversospequenos “soluços”.

Esses pequenosintervalos descendentesseriam os retrocessos

causados por problemasde percurso queforam superados

na tendência crescentedo trabalho.

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Resumo

Este artigo traz uma reflexão sobre os desafios da gestão deempreendimentos situados no campo da economia solidária. Oponto de partida são os resultados de uma pesquisa desenvolvidana universidade,1 cuja base empírica é a cooperativa de cultivo deostras situada no povoado de Ponta dos Mangues, Município dePacatuba, Sergipe. Os dados foram obtidos mediante a aplicaçãode questionários entre os cooperados, os coordenadores do pro-jeto e a comunidade em geral, bem como por meio da observaçãodireta, durante quase um ano de trabalho, envolvendo a realiza-ção de oficinas de capacitação, num processo de investigação-ação. Com base nesses dados, são analisadas as dificuldadesencontradas na gestão da organização estudada e apontados de-safios conceituais e metodológicos para os estudos e os projetosde fomento da economia solidária.

Palavras-chave: Economia Solidária, gestão, desenvolvimentolocal, cooperativismo.

Abstract

This article is a reflection about the challenges in the mana-gement of entreprises situated in the field of solidary economy. Ittakes from the results of a research carried out at university level,whose empirical basis is the raising of oysters at the village ofPonta dos Mangues, part of the town of Pacatuba, in Sergipe.The data have been obtained from questionnaires filled out bycooperative members, project coordinators and the community ingeneral, as well as from an almost full year of work involvingtraining workshops within a research-action process. Based onthose data, we analyse the difficulties found in management ofthe observed organization and point out the conceptual and me-thodological challenges in the study and projects for solidary eco-nomy support.

Key-words: Solidary Economy, management, local development,cooperativism.

Em estudo anterior distinguimos duas aborda-gens de desenvolvimento local – uma, cujo foco

é a questão da competitividade, e outra, centrada naproblemática da exclusão social (MOURA, 1998;MOURA, LOIOLA, LIMA, 1999). Denominamos a pri-meira de competitiva, e a segunda, de social, de acor-

do com o foco dos discursos e práticas adotadas. Noprimeiro caso, o foco é a inserção competitiva da ci-dade/região no mercado e as ações tendem a dirigir-se preferencialmente para as médias e grandes em-presas. Já no segundo, o combate à exclusão socialaparece como o eixo norteador e as ações tendem aenfocar os pequenos empreendimentos e os seg-mentos que estão à margem do grande mercado. Ve-rificamos a ocorrência de iniciativas que tendem maisa uma ou outra abordagem e à convivência de am-bas, mas, nesse caso, uma delas tende a receber umtratamento secundário.

Dentro da vertente social encontramos iniciativas,como a do Plano de Desenvolvimento Econômicode Porto Alegre, que discutem novos referenciais

* Maria Suzana Moura é professora e pesquisadora da Escola de Admi-nistração da Universidade Federal da Bahia e integrante do Núcleo de Es-tudos Sobre Poder e Organizações Locais (NEPOL) da [email protected].

** Ludmila Meira é bolsista de Iniciação Científica, estudante de Gradua-ção da Escola de Administração da Universidade Federal da [email protected] Trata-se da pesquisa “A Gestão do Desenvolvimento Local e as Possibi-lidades de Financiamento”, que investigou os impactos de empreendi-mentos solidários no desenvolvimento local. Realizada no âmbito daEAUFBA/NEPOL, contou com o apoio do CNPq e PIBIC.

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de economia baseados nos ideais de cooperação esolidariedade. Nesse sentido, pensar em desenvol-vimento de localidades implica não apenas imple-mentar políticas sociais, mas redefinir conceitos epráticas econômicas, o que nos coloca diante dodebate sobre Economia Solidária.

O que vem a ser Economia Solidária? A partirde diversos autores que vêm trabalhando sobre otema, podemos dizer que o termo sintetiza uma di-versidade de experiências organi-zacionais de caráter econômico,baseadas em novas e antigas for-mas de solidariedade. Isso ocorreseja numa perspectiva de buscade alternativa de emprego, sejanuma perspectiva de construçãode um modelo alternativo ou dife-renciado do capitalismo ou, sim-plesmente, como utopia experi-mental de novas formas de socia-bilidade e de vivências de valoresrelacionados com o modo de sercuidado2 (FRANÇA, 1999; SINGER;2000; VAINER, 2000; ARRUDA eBOFF 2000, ARRUDA, 1996, CO-RAGGIO, 2000; RAZETTO, 1997).

As experiências, embora incipientes no Brasil,evidenciam o crescimento de manifestações dasolidariedade na economia. São exemplos: a As-sociação Nacional de Trabalhadores em Empre-sas Auto-Gestionárias, que reúne cerca de 50 em-presas, cuja receita bruta é estimada em R$ 300milhões; a organização de cooperativas nos as-sentamentos pelo Movimento dos Sem-Terra; acriação de uma Agência de Desenvolvimento Soli-dário pela CUT; a constituição de 15 incubadorasde cooperativas populares, envolvendo universi-dades; a formação de redes para o intercâmbio efortalecimento dos grupos de economia solidária,em estados como o Rio Grande do Sul, São Pauloe Rio de Janeiro, além de outra no âmbito nacio-nal – a Rede de Socioeconomia Solidária. Não po-

demos esquecer também os projetos econômicoscomunitários estimulados por agentes vinculados àTeologia da Libertação, entre outros, desenvolvi-dos em bairros de periferia nos centros urbanos eem municípios da zona rural, a exemplo de Pinta-das e Quixabeira no sertão da Bahia.

Concordando com Gaiger (2000), vemos que pro-jetos alternativos comunitários, cooperativas e em-presas autogestionárias não são novidade. O novo é

o crescimento dos atores em rede edas perspectivas que se somam nodebate e na experimentação.

Podemos dizer que o agrava-mento das condições materiais deexistência, por conta dos fatoresacima assinalados, tem juntadovários grupos no debate e na ex-perimentação de projetos de Eco-nomia Solidária, desde setores deIgreja, ONGs, Movimentos Soci-ais Urbanos e Rurais, até sindica-tos e centrais sindicais, passandopor pesquisadores, intelectuais emilitantes socialistas, entre ou-tros.

Não se trata apenas de umareação ao agravamento do desemprego e da po-breza. Na realidade, estamos vivendo, aqui no Bra-sil como em outras partes do planeta, o que MiltonSantos (2000) identificou como uma “nova divisãodo trabalho”, cujo parâmetro é a “manutenção davida”. Processo que, segundo esse autor, vem “dosde baixo”, não só dos “pobres”, como também “dosindivíduos liberados, [vem] do pensamento livreque foge do pensamento único... da racionalidadedominante”. Podemos incluir nesse rol, além dosatores assinalados anteriormente, os hippies deontem e de hoje, as comunidades esotéricas, en-fim, todos aqueles que estão experimentando, pordentro e por fora do mundo do sistema, um produ-zir, um consumir, e um trabalhar orientados pelossímbolos do amor, da paz e da solidariedade.

Há, certamente, entre os atores e autores quehoje tecem a economia solidária visões distintas.Uns vêem as cooperativas e outras formas associ-ativas de produção e consumo como um meio deminimizar o problema do desemprego e da exclu-

O agravamento dascondições materiais deexistência tem juntado

vários grupos no debate ena experimentação deprojetos de Economia

Solidária, desde setoresde Igreja, ONGs,

Movimentos SociaisUrbanos e Rurais, atésindicatos e centrais

sindicais, passando porpesquisadores,

intelectuais e militantessocialistas, entre outros.

2 Adotamos aqui a referência de Boff (1999) quando trata de dois modosdo ser humano realizar e relacionar-se: o trabalho e o cuidado. No “modo-de-ser-cuidado .... a relação não é de domínio sobre, mas de convivência.Não é pura intervenção, mas interação e comunhão” (p.95). A perspecti-va da economia solidária pode ser pensada como a combinação do traba-lho com o cuidado.

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são social. Outros buscam uma alternativa socialis-ta à economia capitalista. E temos, ainda, os dese-jos de experimentação de uma economia afinadacom o que seriam os valores de uma “Nova Era deAquários”. Muitos estão revendo a questão da(re)produção ampliada da vida, em moldes diferen-ciados daqueles consagrados pela economia capi-talista, incluindo como referentes, além da solidarie-dade e da cooperação, o foco nas necessidade ena reprodução da vida.

Para melhor compreensão do tema, vale reto-mar Marcos Arruda (2000), que nos fala da diferen-ça entre “economia” e “crematística” (dos gregos).A primeira significa a “arte de gerir a casa”. A “Casa”é o lar, a comunidade... a Mãe-Terra que nos aco-lhe. Já a crematística significa a “arte de acumularriquezas”. Ora, o que a sociedade capitalista tem de-senvolvido é esta última. Já com relação ao primeiroconceito, não temos muito a aprender da Grécia Anti-ga, pois, como nos lembra Hannah Arendt (1991),a economia doméstica entre os gregos era o espa-ço do privado, “o mundo das trevas”, onde impera-va o senhor, o cidadão na polis, subjugando asmulheres e os escravos.

Talvez tenhamos a aprender com as comunidadespróximas do comunismo primitivo e mais integradascom a natureza, através da produção/reprodução co-letiva da vida e de modo sustentável. Mas essa nãoparece ser uma lição suficiente para este nosso tem-po/espaço urbano. O mundo do “nós” da comunida-de, da tribo, é muito distinto do “eu sem nós” aprendi-do/vivido na sociedade capitalista. Já o “nós sem eu”,construído com as experiências socialistas, afasta-seda sustentabilidade da tribo e aproxima-se do padrãoda acumulação material (só que em nome do coletivo– Estado/partido). Como nos fala Marcos Arruda (to-mando por referência Teilhard de Chardin), a pers-pectiva da “socioeconomia solidária” é a do “eu enós”, expressando a espiral evolutiva do nosso pla-neta em direção à individuação, socialização, amoro-sidade e espiritualidade.

Por este caminho, a solidariedade reintroduzidana economia pode ser percebida como base paraum desenvolvimento que, embora partindo do lo-cal, requer a construção e fortalecimento de em-preendimentos em escalas diferenciadas, do microao macro, do local ao global.

DESAFIOS DA GESTÃO DEEMPREENDIMENTOS SOLIDÁRIOS

Entendemos ser o empreendimento solidáriouma forma de expressão da economia solidáriaque pode assumir formato de cooperativa, empre-sa autogestionária, rede e outras formas de associ-ação para produção e/ou aquisição de produtos eserviços.

Cabe, neste ponto, perguntarmos: como seconstrói e se mantém a solidariedade em proces-sos de (re)produção material e simbólica da vida?Como articulam-se os propósitos e ritmos individu-ais e coletivos? Quais as dificuldades de gestãodesse tipo de organização? Como a razão comuni-cativa, a base dos processos de solidariedade socialpodem influenciar a razão instrumental, um reque-rimento para se atingir condições materiais de exis-tência mais favoráveis?

De acordo com Gaiger (2000), as cooperativas,entre outras formas de empreendimento solidário,que nascem da necessidade imperiosa de encon-trar uma solução, geram solidariedade impostapela necessidade. Existindo prática anterior de soli-dariedade, transcendendo os objetivos econômi-cos, o empreendimento é favorecido. Paul Singer(2000), embora apostando na experimentação, faladas dificuldades da cooperativa de produção e deuma certa tendência a “degenerar os valores desolidariedade e cooperação” quando crescem osnegócios. Cita o exemplo da grande empresa coo-perativa Madragon, na Espanha, que atualmenteconta com 40.000 pessoas, tem êxito econômico,mas que teria se afastado dos princípios solidários.

A utopia na experimentação certamente encon-tra obstáculos de várias ordens. Além de lidarmoscom os valores individualistas e de competição, hápercalços de ordem material e relacionados aopouco aprendizado da produção coletiva. Lisboa(1999) lembra-nos que todos os esforços, no con-junto, são ainda insuficientes para fortalecer os pe-quenos empreendimento solidários. De acordo comesse autor, muitas são as debilidades e os proble-mas constantes no cotidiano dessas organizações,tais como carência de capital de giro; acesso aocrédito; design; controle de qualidade; comerciali-zação e tecnologia e ambigüidade da propriedade

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dos meios de produção, além dos problemas de-correntes de barreiras legais e da carência de enti-dades de apoio e de padrões gerenciais adequa-dos. A precária rede de articulação das diferentesexperiências dificulta o intercâmbio e o amadureci-mento pela reflexão comum dos êxitos e dificulda-des, levando-as a um acentuado ritmo de natalida-de-mortalidade.

Como forma de solucionar os problemas advin-dos da fragmentação dessas inicia-tivas, vários autores sugerem aconstrução de uma estratégia quearticule politicamente as redesconstitutivas de economia solidá-ria. É esse o caminho que apon-tam os fóruns estaduais e as redesnacionais e internacionais, confor-me observado no Fórum SocialMundial realizado em Porto Ale-gre em janeiro de 2002. A univer-sidade pode cumprir um papel im-portante nesse processo, revendo e elaborandoreferências teóricas e contribuindo com experiênci-as concretas, ou seja, experimentando a utopia naprodução coletiva de saberes, nos projetos comu-nitários e nas redes locais e globais. A investigaçãodesenvolvida sobre o Projeto de Ostreicultura Co-munitária em Ponta dos Mangues/SE, segue nessadireção.

A ORGANIZAÇÃO DO CULTIVO DE OSTRAS

O cultivo comunitário de ostras é um projeto deiniciativa do projeto TAMAR, que se iniciou em1998. O objetivo era dar uma alternativa econômi-ca aos pescadores da Reserva Ecológica de SantaIsabel, integrando ações de natureza econômica ede preservação ambiental. Esse projeto foi viabili-zado pela Cooperativa Mista de Trabalhadores emConservação da Natureza (CONATURA), um em-preendimento que se pretende solidário, construí-do como alternativa ao desemprego de técnicos daárea ambiental, antes contratados pelo TAMAR. Aostreicultura em Ponta dos Mangues/SE é, assim,um dos núcleos da CONATURA. Até o momento derealização da pesquisa o projeto não é auto-sus-tentável, recebendo da CONATURA a maior parte

dos recursos necessários para sua manutenção,inclusive a remuneração dos cooperados e coorde-nadores.

Ponta dos Mangues é um povoado do Municí-pio de Pacatuba, situado no Estado de Sergipe.Tem uma população de aproximadamente 300 pes-soas, considerando-se o núcleo contabilizado napesquisa, ou seja, 58 casas com uma média de cin-co pessoas por casa.

O cultivo de ostras envolve umgrupo de oito cooperados e trêsparceiros. Estes últimos não rece-bem remuneração diretamente daCONATURA, uma vez que a par-ceria se dá no momento da comer-cialização e no incentivo inicialatravés de aporte técnico.

Além da ostreicultura, a maio-ria dos cooperados (70%) desen-volve outras atividades produtivasque ajudam no sustento familiar e,

em alguns casos, geram renda. Incluem-se aqui apesca (70%), o cultivo do coco (44%), a criação degalinha (22%), o corte de cabelo e a instalação derede de água e energia (um dos cooperados). Cabeesclarecer que 55% deles têm no cultivo de ostra aúnica atividade geradora de rendimento regular.

Quadro semelhante pode ser encontrado na co-munidade. Incluindo-se as atividades de sustentodas unidades domésticas, verificamos que 58,6%das unidades pesquisadas possui algum tipo derendimento fixo, tais como aposentadoria, pensão,bolsa-escola ou salário. Podemos dizer que é umpercentual pequeno se considerarmos que quasemetade delas não dispõe de uma fonte regular e selevarmos em conta outras atividades de sustentoque aí são desenvolvidas: 77,5% das unidades criamgalinhas e 67,2% tem algum nível de sustento pelapesca e pela coleta e comercialização de coco.3 Osdados acima evidenciam um potencial da comuni-dade, que é a diversificação das atividades econô-

A precária redede articulação das

diferentes experiênciasdificulta o intercâmbioe o amadurecimentopela reflexão comum

dos êxitos e dificuldades,levando-as a um

acentuado ritmo denatalidade-mortalidade.

3 Cabe relacionar outras atividades que geram renda, porém não-regula-res: 17,3% das famílias envolvem-se com algum tipo de comércio (arma-zém, venda de gás, sorveteria, produtos Avon); 10,3% têm pessoas queprestam serviços (alguns ligados à coleta de coco, outros referentes aocuidado de viveiros...); e 27,7% criam outros animais (gado, cavalo e por-co) seja para investir, seja como meio de transporte ou mesmo para oconsumo direto.

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micas, característica que pode ser reforçada emprojetos de desenvolvimento local.

Quando questionados sobre o que melhorarem Ponta dos Mangues, a maior preocupaçãodos moradores relacionou-se ao incremento daatividade econômica (84,5%), sendo que 46,6%apontaram a necessidade de criação de novasoportunidades de emprego; vale ainda ressaltarque 15,5% percebem que tal incremento depen-de da instalação de fábricas. Al-guns chamam a atenção para ofato de que a comunidade temmelhorado, em termos de insta-lação de infra-estrutura, de aces-so a serviços coletivos4 e de am-pliação da oferta de emprego,com a chegada da CONATURA(o cultivo da ostra).

Com relação aos cooperados,as possibilidades de desenvolvi-mento futuro aparecem vincula-das ao cultivo de ostras. Sejapelo fortalecimento da própria cooperativa – “coma CONATURA coisas boas vão surgir para todomundo”, seja com a “abertura de indústria paracultivar a ostra” e exportar, como registrado nasentrevistas.

Assim como na comunidade, entre os coopera-dos encontram-se idéias que afirmam possibilida-des de desenvolvimento com base em potenciaislocais – mesmo que fomentados por agentes exter-nos – além daquelas que se identificam mais comas abordagens tradicionais: o desenvolvimentochegará de fora com a “construção de fábricas”. Detodo modo, fica evidente o potencial da ostreicultu-ra para os cooperados e o mesmo podemos dizerda comunidade em geral.

DESAFIOS DA GESTÃO DA ORGANIZAÇÃO

Para a análise deste ponto vamos partir da per-cepção dos trabalhadores do cultivo acerca da ati-vidade que estão desenvolvendo e da organiza-ção em que estão inseridos. O que os motiva é,

por um lado, a possibilidade de dispor de uma ren-da e uma ocupação regular (“um emprego”) o que,até o momento, é garantido pela CONATURA.Para alguns, essa ocupação é também valoriza-da pelo que gera de oportunidade profissional.As atividades de tartarugueiro ou pescador autô-nomo não são consideradas promissoras e capa-zes de garantir segurança, uma profissão e ummelhor padrão de consumo. A ostreicultura é

percebida como uma alternativade emprego e de renda para acomunidade.

O impacto da renda geradacom a remuneração dos coopera-dos na economia local é menor doque supúnhamos no início da pes-quisa. Esse impacto poderia sermaior caso a oferta local de produ-tos e serviços fosse incrementa-da, particularmente no tocante aalimentos e vestuários. O mesmonão podemos esperar da oferta

dos bens duráveis e materiais de construção, con-siderando o porte da comunidade. De todo modo, aanálise de impacto sobre o desenvolvimento localpode ser enriquecida com a observação do fortale-cimento ou não de manifestações de solidariedadena economia.

Nesse sentido, a pesquisa evidencia que aconstrução de organizações econômicas combase na cooperação advém de uma necessidadede poder realizar algo, de uma percepção de que“juntos somos mais fortes”, “a união faz a força”,“uma varinha é mais fácil de quebrar do que umfeixe”. Força esta, necessária para enfrentar outraem sentido contrário, que pode ser a inércia, apreguiça, a fragilidade. Trata-se, de um lado, daconsciência de que o trabalho coletivo potencializaa ação, conforme ilustram os depoimentos abai-xo:

4 A partir de 1997 conseguiram a energia elétrica, a água encanada, oônibus, a escola, e, mais recentemente, o telefone e a visita regular domédico.

Entre os cooperadosencontram-se idéias que

afirmam possibilidades dedesenvolvimento com

base em potenciais locais,além daquelas que se

identificam mais com asabordagens tradicionais: odesenvolvimento chegaráde fora com a “construção

de fábricas”.

“Trabalhar sozinho não compensa. O serviço que em grupose faz em um dia, sozinho o cara leva dois ou três.”

“Um sozinho não vai por conta do recurso que tem. É precisounir a força para trabalhar todos juntos, porque prosperamelhor que um só.”

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Ao mesmo tempo, podemos observar que aUnião, além de fazer a força, faz açúcar,5 isto é, ficamais fácil e mais doce trabalhar em grupo. Pode-mos dizer que a cooperação potencializa o traba-lho, também por torná-lo mais leve, mais divertido:

continuar o cultivo. Isso pode ser considerado umponto forte da organização. Ao mesmo tempo, pare-ce contraditório com a idéia de que falta capacitaçãodo grupo para a comercialização. Outro dado, é queainda é restrita a confiança nos companheiros paraexercerem atividades de planejamento, gestão fi-nanceira e organização da reunião. Apenas três afir-maram o contrário.

Dentre os aspecto apontados por Lisboa (1999)como desafios dos empreendimen-tos solidários encontramos algunsque se aplicam ao caso em análi-se.

Observamos que o cultivo deostras em Ponta dos Manguesdispõe de apoio logístico, técnicoe financeiro de uma organização –CONATURA – que garante suasustentabilidade com a execuçãode serviços especializados naárea da preservação ambiental.Essa entidade, por sua vez, contacom o apoio do Projeto Tamar, quetem como um dos seus objetivos ofomento ao desenvolvimento localnas áreas onde atua. Desse modo,não identificamos problemas rela-cionados com a carência de enti-dades de apoio e de capital degiro, nem com relação ao controle

de qualidade e ao acesso a tecnologia. Já no quese refere à comercialização, diríamos que esse é umgrande desafio, assim como a aprendizagem depadrões gerenciais adequados à realidade de umempreendimento solidário.

Na realidade, a pesquisa aponta a necessidadede que sejam desenvolvidos conceitos e instrumen-tos mais adequados a esse tipo de organização. Porexemplo, as estratégias de marketing estão, no ge-ral, baseadas na idéia de que é necessário con-quistar mercados vendendo produtos/serviços emmelhores condições que os concorrentes. Na pes-quisa de mercado que efetuamos com os coopera-dos, deparamo-nos com a seguinte questão: – seum dos princípios do cooperativismo é que a soli-dariedade deve ultrapassar a própria organização,como enfrentar essa idéia de vencer os concorren-

Apesar da consciênciasobre a importância dotrabalho cooperativo, a

percepção quanto àpossibilidade de intervir

na organização restringe-se ao processo de cultivo

das ostras. A gestãofinanceira, a

comercialização e outrosâmbitos da organização

ainda são distantes para amaioria, que se percebe

mais como empregada daCONATURA, uma vez que

esta garante não só o“salário”, como tambémo acesso à informação

e assistência.

5 A criatividade das novas gerações subverteu o dito popular “A união faza força” para: “A união faz a força e açúcar”. É um pequeno trocadilho queresolvemos utilizar, pois “união” significa estar juntos, mas também háuma grande empresa açucareira brasileira que se chama União.6 A exemplo do transporte quando é necessário a ida a um hospital.

“Trabalhar com os outros é mais animado. O trabalho sozi-nho parece que não rende.”

Encontramos, neste caso, pouca prática anteri-or de solidariedade transcenden-do os objetivos econômicos, alémdas relações de parentesco e devizinhança ou da experiência coma associação de moradores, paraalguns. Isso sinaliza um primeirodesafio da gestão dos empreendi-mentos solidários: o aprendizadoda gestão coletiva e a quebra dodistanciamento entre produção egestão.

É interessante observar que,apesar da consciência sobre a im-portância do trabalho cooperativo, apercepção quanto à possibilidadede intervir na organização restringe-se ao processo de cultivo das os-tras. A gestão financeira, a comerci-alização e outros âmbitos da orga-nização ainda são distantes para amaioria, que se percebe mais comoempregada da CONATURA, uma vez que esta ga-rante não só o “salário”, como também o acesso à in-formação e assistência.6

Na realidade, trata-se do desafio de romper coma divisão trabalho manual e intelectual que se ex-pressa na dicotomia entre produção e gestão, ouseja, os que produzem não se ocupam da gestão doempreendimento, não se sentem em condiçõespara tanto. Ainda assim, mesmo com esse relativodistanciamento dos processos de gestão, a maioriaconsidera que, caso os coordenadores atuais se au-sentassem, se o grupo permanecesse junto poderia

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tes para conquistar mercados? Como constituir es-paços de comercialização afinados com a ótica dacooperação? Talvez as redes de socioeconomiasolidária, que estão sendo tecidas nos vários âmbi-tos, indiquem um tipo de “mercado cativo” ao qualvinculem-se os empreendimentos pontuais, como oaqui analisado. Contudo, essa ainda não é uma re-alidade para o cultivo cooperativo de ostras.

CONCLUINDO

A pesquisa realizada traz àtona uma série de desafios quemerecem ser relacionados à gui-sa de conclusão.

Num contexto, como o aquianalisado, em que um empreendi-mento solidário conta com o apoiofinanceiro e logístico de uma outraorganização, evidencia-se maisclamente o que se constitui emgrandes desafios para as organi-zações situadas no campo da economia solidária.

Por um lado, trata-se da superação da divisãoentre trabalho manual e intelectual, entre os queproduzem e os que coordenam e gerenciam o em-preendimento. Pelo que pudemos observar, isso re-quer um amplo e demorado trabalho de envolvimen-to, capacitação e aprendizagem. Envolvimento doscooperantes com as atividades específicas de ges-tão, capacitação técnica para o exercício dessas ati-vidades e aprendizagem de todos no que se refere aum processo coletivo de tomada de decisões, queseja ágil o suficiente para garantir os resultados eco-nômicos e a sustentabilidade do empreendimento.

Por outro, trata-se de realizar a produção numprocesso de comercialização que proporcione o re-torno necessário à satisfação das necessidades ma-teriais das pessoas e famílias que estão envolvidase, ao mesmo tempo, fomente a lógica da coopera-ção entre empreendimentos. Um caminho pareceser o fortalecimento de “mercados cativos” atravésdas redes de socioeconomia solidária, desde o lo-cal, passando pelo regional, até o nacional e o glo-bal. O Estado pode apoiar tal processo fomentandoempreendimentos e redes, situando-se, inclusive,como cliente de produtos e serviços.

A experimentação e a escuta do que está sendotecido podem ser qualificadas na medida em quese articulem com atividades de pesquisa. Nos pro-cessos de capacitação e aparendizagem necessi-tamos, por exemplo, reelaborar conceitos e instru-mentos que, no geral, estão baseados na grandeempresa capitalista e industrial. Organizações,como a aqui estudada, que têm a gestão e apropri-ação coletivas do fruto do trabalho como caracte-

rística básica, necessitam de novosreferentes no tocante ao marke-ting, à administração financeira, àgestão de pessoal, entre outrosâmbitos da gestão de organiza-ções.

Por fim, cabe destacar outrosdesafios conceituais e metodoló-gicos ao darmos outro passo nosentido de verificar os impactosdesse tipo de organização sobreo desenvolvimento local. Neces-sitamos, por exemplo, rever o

próprio conceito de economia local, incluindo,além das atividades formais e informais mercan-tis, aquelas que não se situam no âmbito das tro-cas monetárias, mas são fundamentais para osustento das famílias.

Tal abordagem traz também repercussões so-bre os indicadores e meios de aferição dessa eco-nomia. Indicadores tais como renda familiar e po-pulação economicamente ativa merecem serrepensados.7 Na mesma linha, é fundamental apre-ender e analisar a realidade assim como ela seapresenta, evitando enquadrar as diferentes ativi-dades econômicas em categorias do tipo primário,secundário e terciário. Na realidade, podemos di-zer que as medidas tradicionais de desempenhouniversalmente utilizadas – renda per capita, incre-mento da arrecadação e crescimento do PIB –não são apropriados para medir os resultados e,

Necessitamos revero próprio conceito de

economia local, incluindo,além das atividadesformais e informais

mercantis, aquelas quenão se situam no âmbitodas trocas monetárias,mas são fundamentais

para o sustentodas famílias.

7 A referência não pode ser apenas a renda obtida pois, com isso, exclu-em-se o que é produzido para subsistência e o que é trocado. Agora,como medir esses produtos? Poderíamos quantificar e chegar a um valorde uso. Como as famílias não tem registro e as dinâmicas são variadas énecessário proceder a um acompanhamento minucioso, pelo menos dasatividades principais. Ao mesmo tempo, é necessário considerar comoativas, nessa economia, todas aquelas pessoas que contribuem para osustento da casa e não só aquelas que desenvolvem uma atividade ca-paz de gerar renda.

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consequentemente, para avaliar o sucesso ouinsucesso dessas organizações. Neste caso, preci-samos trabalhar com dados primários levantadoscom múltiplos instrumentos, num processo quepodemos chamar de escuta sucessiva.8

Pelo exposto, pode-se observar que são muitosos desafios para as pesquisas, bem como para osprojetos de desenvolvimento local que caminhemno sentido do fomento de organizações situadas nocampo da economia solidária.

8 Adotamos um primeiro nível de escuta com os cooperados, quando apli-camos os questionários. Com esse instrumento, observamos alguns indica-tivos de impacto – a melhoria no padrão de consumo da família, uma opor-tunidade de emprego para a comunidade e o incremento do comércio local.Essas observações levaram a outros três níveis de escuta: a partir dosquestionários elaborados especificamente para as famílias dos coopera-dos, para a comunidade e para os comerciantes. Interessou-nos verificarse as percepções dos cooperados eram, de fato, compartilhadas pelos de-mais segmentos, bem como identificar as percepções diferenciadas e com-plementares. Chegamos, assim, a uma análise de impacto, com algumaslacunas decorrentes das dificuldades de contabilização daquelas dimen-sões da economia local que são informais, sazonais e não-monetárias.

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Resumo

Neste texto, busca-se entender a economia solidária em suarelação com a economia dos setores populares, tomando-se porreferência as formulações de Francisco de Oliveira sobre o signi-ficado do termo trabalho e a análise de Amartya Sen sobre com-portamento econômico e auto-interesse. Num país como o Bra-sil, que nunca experimentou o Welfare State europeu e onde umgrande contingente de trabalhadores sempre esteve fora das re-lações de emprego assalariado regular, a transformação qualita-tiva da economia dos setores populares representa uma iniciati-va, ao lado de outras, no embate pela transformação do estatutodo trabalho, impondo direitos sociais como princípios regulado-res da economia.

Palavras-chave: Trabalho, mercadoria, Economia Solidária,economia dos setores populares.

Abstract

This paper attempts to understand the notion of solidary eco-nomy with regard to the economy of working class sectors usingas reference the formulations of Francisco de Oliveira on themeaning of the term work and the analysis of Amartya Sen oneconomic behaviour and self interest. This shows that in countri-es such as Brazil, where there has been no welfare state andwhere a great number of workers have never known fixed salariedjobs, the struggle to qualitatively transform the economy of workingclass sectors reveals, among other things, that there is a resis-tance to any reworking of labour laws, thus making social rightsthe regulatory principles of the economy.

Key-words: work, labour, commerce, Solidary Economy, workingclass economies.

Apesar de relativamente novo, o tema da Eco-nomia Solidária vem adquirindo uma impor-

tância crescente no âmbito dos movimentos sociaise motivando pesquisas e estudos comprometidoscom o processo de transformação social. Apesarde tão “na moda” – e talvez por isso mesmo – o temasuscita várias controvérsias e indagações. A come-çar pelo próprio nome. Existe uma diversidade dedenominações para, supostamente, o mesmo fenô-meno. Fala-se em economia solidária, economiapopular, economia popular e solidária e socioeco-nomia solidária. Em geral, essas denominações re-ferem-se aos diferentes setores e formas de orga-nização coletiva de trabalhadores, de geração de

trabalho e renda, tendo, entre os seus traços carac-terísticos, a gestão autônoma, participativa e de-mocrática, o compromisso com a auto-sustentabili-dade e a busca do desenvolvimento humano integral.Estariam incluídas no campo da economia solidáriainiciativas como as associações de produtores, coo-perativas, empresas autogestionárias, associaçõesde crédito, os clubes de trocas e o chamado comér-cio justo. Os termos utilizados tanto refletem o es-forço de sistematização e elaboração teórica, comoexpressam as nossas utopias.

Neste texto, busco entender a economia solidá-ria, num país como o Brasil, em sua relação com oque denomino de economia dos setores populares,tomando por referência as formulações de Francis-co de Oliveira sobre o significado do termo trabalhoe a análise de Amartya Sen sobre comportamentoeconômico e auto-interesse.

* Gabriel Kraychete é professor titular da Universidade Católica do Salva-dor. Coordenador do Programa Economia Popular vinculado ao Núcleode Estudos do Trabalho – UCSal. Assessor da Cooperação e Apoio a Pro-jetos de Inspiração Alternativa (CAPINA). [email protected]

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A MERCANTILIZAÇÃO DA VIDA

Num seminário realizado na Universidade Cató-lica do Salvador, referindo-se à crise e às utopias dotrabalho, o professor Francisco de Oliveira inicia asua conferência com a seguinte indagação: Quemtem medo do trabalho? (OLIVEIRA, 2000). Apósapresentar o papel central do trabalho nas grandesutopias da modernidade e discorrer sobre a dialéti-ca do trabalho em Marx, o nossoprofessor sustenta que a conquis-ta dos direitos sociais resultantedo conflito de classes no SéculoXX significou a rejeição do estatu-to de mercadoria da força de tra-balho. O que hoje assistimos, como ataque ao Estado de Bem-Estar,é o movimento de reversão de talrejeição: nova etapa da dialéticaentre direito e mercadoria.

As lutas dos trabalhadores, re-cusando o estatuto de mercadoriada força de trabalho, operaramuma transformação no estatuto dotrabalho, inscrevendo os direitossociais no modo de produção docapital. A instituição dos gastos so-ciais como bens que não podemser vendidos no mercado, obrigou o Estado a uni-versalizar aquilo que estava estritamente ligado aotrabalho.

A formação das instituições do Welfare Statesignificou que as práticas das relações sociais ope-raram no sentido de desmercantilizar parcialmentea força de trabalho, evidenciando a finitude da formamercadoria especificamente concebida pelo capita-lismo.1 Ressignificando o que quer dizer trabalho, asorganizações dos trabalhadores apontaram para umprincípio da derrota da mercadoria: a construçãode direitos sociais efetivos e universalizados. Nãoapenas no sentido de uma declaração de boas in-tenções, mas no de ensejar a implantação de umsistema de direitos e serviços de saúde, educação,previdência, etc., extensivos, indiscriminadamente,

a toda a sociedade. Assim, além de produzir mer-cadorias, o trabalho passou também a garantir ageração de um espaço de construção de antimer-cadoria, pois um direito universal, assim como o ar,não pode ter vigência como uma mercadoria.

É sintomático que a crítica neoliberal incida pre-cisamente contra aquele ponto que universaliza osdireitos sociais. O ataque aos gastos sociais e aoEstado de Bem-Estar, atuando em sinergia com os

processos advindos da base pro-dutiva, cria novos procedimentosorganizacionais do processo detrabalho, catalogados sob a etique-ta da flexibilização. A operação emcurso tenta desvestir o trabalho doestatuto de antimercadoria que foiconstruído pelo conflito social –este é o desafio maior. “O queestá em jogo é o que quer dizertrabalho do ponto de vista civiliza-tório, do ponto de vista da trans-formação” (OLIVEIRA, 2000, p.81).O discurso tão em moda da em-pregabilidade e do empreendedo-rismo possui a mesma lógica: ca-beria agora ao próprio trabalhadorimplantar o seu trabalho, tendo asi próprio como sua melhor mer-

cadoria. Por esses caminhos, pretende-se retornarao estágio em que o trabalho ficaria restrito à condi-ção exclusiva de mercadoria e, como se sabe, a mer-cadoria não tem direitos.

Este é o embate que vivemos agora, em que sebusca transformar tudo em mercadoria: o trabalho,a saúde, a previdência, a educação, a terra, aágua, o meio-ambiente...

As lutas dostrabalhadores, recusandoo estatuto de mercadoria

da força de trabalho,operaram uma

transformação no estatutodo trabalho, inscrevendo

os direitos sociais nomodo de produção do

capital. A instituição dosgastos sociais como bens

que não podem servendidos no mercado,

obrigou o Estado auniversalizar aquilo que

estava estritamenteligado ao trabalho.

1 O central em Marx não é o trabalho, mas a sua transformação em merca-doria. A utopia do trabalho em Marx opera como uma negação dessa mer-cadoria especificamente constituída no capitalismo (OLIVEIRA, 2000).

A “mercantilização acelerada” de todas as esferas da vidasignifica “condicionar o acesso de todos os bens da vida aoimpulso cego da acumulação de riqueza sob a forma mone-tária e abstrata, estreitando o espaço ocupado pelos critériosdiretamente sociais, derivados do mundo das necessidades”(BELLUZZO, 2000).

É bom lembrar que a utopia do capital sempre foide que a expansão dos mercados desregulados, porsi só, promoveria o desenvolvimento e a riqueza en-tre as nações. E qual foi o resultado desse modelo?Aumentou a polarização entre riqueza e pobreza,

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não apenas entre continentes, países e regiões,mas no âmbito interno de cada um desses continen-tes, países e regiões. Trata-se de um padrão de in-vestimento e consumo que impõe estragos irreversí-veis ao meio-ambiente e descarta, como supérflua,parcelas crescentes da população mundial.

DA POBREZA SEM CAPITAL AO CAPITALCOM POBREZA

Numa conferência realizada noMuseu de Arte de São Paulo, emagosto de 1995, o historiador EricHobsbawm (1995) indaga por quetão poucos eventos dramáticos dahistória do mundo nestes últimos40 anos foram previstos ou mesmoesperados. Depois da SegundaGuerra Mundial, por exemplo, os economistas es-peravam uma depressão e não os “trinta gloriososanos” de grande crescimento. O que aconteceu foi,na maior parte das vezes, inesperado, provocandosurpresas e decepções. Onde havia desempregoem massa no mundo desenvolvido na década de1960? Nos “anos dourados” desse “curto séculoXX” parecia não haver abalos nas economias dospaíses do norte industrializado, que desfrutavamdo pleno emprego com níveis de consumo e derenda real crescentes. A seguridade social garantiaos rendimentos necessários aos então poucos de-sempregados.

A restauração liberal dos últimos 25 anos produ-ziu uma violenta e veloz concentração de riquezanas mãos de um reduzido número de capitais pri-vados. As idéias de eficiência, competitividade eequilíbrios macroeconômicos substituíram o con-senso keynesiano em torno do crescimento e dopleno emprego e passaram a ser os novos totensdo pensamento político-econômico internacional(FIORI, 1997).

Nesta aurora do século XXI – diferentemente dos“anos dourados”, embalados pelo Welfare State nocentro e pelo desenvolvimentismo em algumas pe-riferias – o circulo virtuoso entre crescimento eco-nômico e integração social foi desfeito. A economiajá não cresce junto com a sociedade (emprego, se-gurança, renda e um mínimo de equidade) mas

contra ela, destruindo e/ou precarizando os postosde trabalho, gerando insegurança, produzindo de-sigualdade e empobrecimento (RIFKIN,1995). Atendência ao desemprego estrutural e as transfor-mações na forma de trabalho que dominou o sécu-lo XX – o trabalho assalariado organizado –, redefi-nindo as possibilidades de trabalho para milhõesde pessoas, emergem como uma questão socialpremente. Ao contrário do que acalenta a utopia li-

beral, agora denominada de glo-balização, a identidade contraditó-ria e excludente do capitalismo re-vela-se cada vez mais parecidacom o retrato que dela foi feito noséculo XIX pela “crítica da econo-mia política” de Marx (FIORI, 1997).

No Brasil, a partir da década de1990, a preocupação com o de-senvolvimento foi substituída pela

velha convicção de que o crescimento das regiõesatrasadas exigia a adesão ao livre-comércio e a es-tabilização dos preços pela via dos mercados des-regulados, globalizados e competitivos. Nesse pro-jeto econômico fica implícito que não há lugar paratodos. Uma década depois de iniciado o desmontedo desenvolvimentismo, o balanço – considerandoos efeitos para a vida cotidiana da população – éclaro e pouco promissor.2

O Brasil nunca conheceu os índices de assalaria-mento das economias capitalistas centrais (superio-res a 90%) nem, tampouco, experimentou a redede proteção social típica ao Welfare State. Aqui, oemprego regular assalariado nunca foi uma pers-pectiva realista para um grande contingente de tra-balhadores e, nos tempos que correm, torna-seuma possibilidade cada vez mais remota. Às pes-soas que sempre viveram de ocupações fora domercado regular assalariado soma-se um novocontingente, composto pelos trabalhadores expul-sos do emprego e pelas pessoas que ingressam nomercado de trabalho a cada ano. Diferentementedo que ocorreu durante o período desenvolvimen-tista, a força de trabalho no Brasil está se deslocan-

A restauração liberaldos últimos 25 anos

produziu uma violentae veloz concentração de

riqueza nas mãosde um reduzido número

de capitais privados.

2 A Argentina transformou-se num emblema e num alerta para todo ocontinente. Mas a atual crise argentina mostra que o risco não é ficarmosem situação semelhante. Ao contrário: é a Argentina que experimentaagora, perplexa, uma inusitada situação de pobreza, miséria e violênciacom a qual já estamos “acostumados” há muito tempo.

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do do pólo dinâmico e moderno para outras formasde inserção, precarizadas e que trazem menoresrendimentos ou, então, simplesmente, para o de-semprego aberto.

O aumento do desemprego e do tempo médioem que o trabalhador permanece desempregado,somado ao desassalariamento e ao crescimentodos trabalhadores sem registro e das ocupaçõespor conta própria, empurra parcelas cada vez maio-res da população para formas al-ternativas de ocupações, colocan-do novos problemas para um mer-cado de trabalho historicamentedesigual e excludente. Parece queos donos do poder desistiram deintegrar parcelas crescentes dapopulação seja à produção, seja àcidadania. Como indica Franciscode Oliveira, não se trata de umairrealizável exclusão do mercado,porque dele, em alguma medida,ninguém escapa, mas de uma ne-gação e de uma exclusão do cam-po de direitos.

No Brasil, até os anos 1970, predominava a vi-são que explicava a pobreza, sobretudo a pobrezaurbana, como algo residual ou transitório a ser su-perado pelo desenvolvimento industrial. Desseponto de vista, não haveria razão para se perdertempo discutindo-se a situação das pessoas não-integradas ao mercado formal de trabalho. Confor-me essa visão, o futuro era o capital e todos cres-ceríamos juntos.

Do ponto de vista da esquerda, também não ha-via razões para se ocupar com as pessoas não in-tegradas às relações de trabalho tipicamente capi-talistas. O futuro era o socialismo e o que contavaera a luta sindical. Hoje, cresce implacavelmente onúmero de trabalhadores que não são nem mesmopassíveis de sindicalização. Nesses termos, pare-ce que, dentre as esperanças do desenvolvimentocapitalista e da revolução socialista, sobrou umcontingente de trabalhadores num “circuito inferiorda economia” (SANTOS, 1978), que ficou como umelo perdido.

Trata-se, portanto, de modalidades de trabalhoque permaneceram no limbo das relações sociais.

Antes, porque ainda não haviam sido integradas àexpansão das relações de assalariamento e, ago-ra, porque tendem a crescer com a própria expan-são dos setores modernos. Por sua magnitude ecaráter estrutural, o crescimento dessas formas detrabalho já não pode ser explicado como um fenô-meno residual, transitório ou conjuntural. Em ou-tras palavras, não se trata de um contingente que,algum dia, será engatado ao processo de cresci-

mento proporcionado pelos inves-timentos no setor moderno, masda presença de um futuro a ser re-criado em escala ampliada.

Face às possibilidades cadavez mais distantes do emprego re-gular assalariado, uma certa vi-são, compatível com a crença ul-traliberal, propõe aos desgarradosdo mercado formal de trabalhoque adquiram uma tal de “empre-gabilidade”; que montem os seuspróprios empreendimentos, trans-formando-se em empresários desi mesmos.

Contrastando com o discurso do empreendedo-rismo, os dados preliminares da pesquisa que reali-zamos na Península de Itapagipe3 sobre o trabalhopor conta própria revela uma realidade marcadapela precariedade. Ao invés de um espaço queviabilize e estimule o desenvolvimento de próspe-ros empreendedores como alternativa ao empregoregular, as atividades caraterísticas do trabalho porconta própria aí encontradas, tais como existemhoje, são o lugar onde, mal e precariamente, vaiocorrendo a reprodução da vida de parcelas cres-centes da população, num quadro marcado peladestruição e escassez dos postos formais de traba-lho. Configura-se um circuito de pobre trabalhandopara pobre, em que 47% possuem uma renda men-sal de, no máximo, até R$100,00. Em termos objeti-vos, a condição da sobrevivência dessas pessoas é adeterioração da sua qualidade de vida.

O aumento dodesemprego e do tempo

médio em que otrabalhador permanecedesempregado, somadoao desassalariamentoe ao crescimento dos

trabalhadores sem registroe das ocupações por contaprópria, empurra parcelas

cada vez maiores dapopulação para formas

alternativas de ocupações.

3 Pesquisa sobre os empreendimentos econômicos populares, realizadaem março de 2001, nos bairros mais densamente povoados da Penínsulade Itapagipe, em Salvador. A pesquisa foi promovida pela Comissão deArticulação dos Moradores da Península de Itapagipe (CAMPI), em par-ceria com a Universidade Católica do Salvador e com a Cooperação eApoio a Projetos de Inspiração Alternativa (CAPINA), contando com apoioda Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE).

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O desemprego foi o principal motivo para os en-trevistados trabalharem por conta própria (mais de56%). Entretanto, quando indagados sobre os seusplanos para o futuro, quase 37% responderam quepretendem ampliar o negócio e, 18%, que preten-dem permanecer como estão. Ou seja, entre o dra-ma do desemprego e os planos para o futuro aspessoas acalentam o sonho de ampliação do pró-prio negócio. Planos de quem sabe, porque senteisso na luta cotidiana pela vida,que são cada vez mais fugidias asesperanças de um emprego regu-lar assalariado.

Num país como o Brasil, é pre-ciso indagar sobre a situação demilhões de pessoas que vivem dotrabalho realizado de forma indivi-dual ou familiar. Se o discurso fan-tasioso da empregabilidade estádescartado, o futuro dessas pes-soas, agora, seria a economia soli-dária? Qual a interação entre a rea-lidade do trabalho dessas pessoase a luta histórica dos trabalhadorespela transformação do estatuto do trabalho? Qual osignificado dos empreendimentos associativos edos princípios que compõem a economia solidária?Devem ser entendidos como um fim ou como ummeio da prática social transformadora?

Sobre essas questões, penso que pode ser útilsituar o entendimento da economia solidária emsua relação com o que denomino de economia dossetores populares.

ECONOMIA DOS SETORES POPULARES

Designo por economia dos setores populares asatividades que, diferentemente da empresa capita-lista, possuem uma racionalidade econômica anco-rada na geração de recursos (monetários ou não)destinados a prover e repor os meios de vida e nautilização de recursos humanos próprios, agregan-do, portanto, unidades de trabalho e não de inver-são de capital. No âmbito dessa economia dos se-tores populares convivem tanto as atividades rea-lizadas de forma individual ou familiar como asdiferentes modalidades de trabalho associativo, for-

malizadas ou não, a exemplo das cooperativas,empresas autogestionárias, oficinas de produçãoassociada, centrais de comercialização de agricul-tores familiares, associações de artesãos, escolase projetos de educação e formação de trabalhado-res, organizações de microcrédito, fundos rotati-vos, clubes de troca, etc. Essa designação, portan-to, pretende expressar um conjunto de atividadesheterogêneas, sem idealizar, a priori, os diferentes

valores e práticas que lhe sãoconcernentes. Não se pode dizerque esse mundo da economiados setores populares seja, em simesmo, um mundo de valorespositivos, o mundo da solidarie-dade. Não, ele não é assim, mes-mo porque, em parte, é resultadode uma subordinação cultural,desenvolvendo-se no interior dosistema capitalista.

Como entender a racionalida-de dessa economia dos setorespopulares? Um artesão, uma mu-lher que vende alimentos ou os

integrantes de uma associação ou cooperativa es-tão em pleno mundo do mercado, das trocas e docálculo econômico, por mais simples e modestosque sejam esses cálculos. Mas, conforme Braudel(1985; 1996), economia de mercado e capitalismonão são a mesma coisa.4 Sem o mercado – esse lu-gar das trocas dos resultados dos trabalhos huma-nos – não haveria economia no sentido corrente dapalavra, mas uma vida fechada na auto-suficiência.Nesses termos, pode-se dizer que a economia dossetores populares situa-se nos interstícios dessaeconomia de mercado, envolvendo um conjunto deatividades que ocorre como uma iniciativa direta dapopulação tendo em vista a sua reprodução, inde-pendentemente do seu caráter de força de trabalhopara o capital (CORAGGIO, 1994). Ou seja, as con-dições de trabalho necessárias à reprodução da vidade parcelas crescentes da população não vêm sen-

4 Para Braudel, o mercado não seria o signo do capitalismo. O verdadeirolar do capitalismo residiria numa camada superior da hierarquia do mundodos negócios. Como indica Wallerstein (1987), Braudel reformula a relaçãoentre mercado e monopólio, atribuindo ao monopólio o papel de elemento-chave do sistema capitalista. O que caracterizaria o jogo superior da econo-mia seria a possibilidade do capital transitar de um monopólio para outro.

Não se pode dizer queesse mundo da economia

dos setores popularesseja, em si mesmo, um

mundo de valorespositivos, o mundo da

solidariedade. Não, ele nãoé assim, mesmo porque,em parte, é resultado de

uma subordinaçãocultural, desenvolvendo-se

no interior do sistemacapitalista.

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do proporcionadas nem pelo mercado capitalistade trabalho nem pelas cada vez mais restritas açõescompensatórias do Estado.

Diferentemente da empresa capitalista, que des-loca trabalhadores e fecha oportunidades de traba-lho, a racionalidade econômica dos empreendimen-tos populares está subordinada à lógica da “repro-dução da vida da unidade familiar” (CORAGGIO,1998). Ao contrário das empresas que – na buscado lucro, da competitividade e daprodutividade – dispensam mão-de-obra, os “empreendimentos po-pulares” não podem dispensar osfilhos, filhas, cônjuges ou idososque gravitam no seu entorno.

Para os empreendimentos po-pulares, por exemplo, a perda doemprego de um dos membros dafamília tende a ser absorvida comoum “custo” adicional para o pró-prio negócio. Ou seja, como a fa-mília não pode “dispensar” os seusmembros, os recursos que seriam destinados ao em-preendimento são redirecionados para as despesasbásicas do consumo familiar, mesmo que compro-metendo o “capital de giro” ou a “lucratividade” doempreendimento.

O que seria um comportamento irracional ouineficiente, sob a lógica da acumulação do capital,assume um outro significado para os empreendi-mentos populares. No caso dos empreendimentospopulares, é impossível separar as atividades deprodução e comercialização de bens e serviços dascircunstâncias de reprodução da vida da unidade fa-miliar dessas pessoas. Ou seja, há uma “solidarie-dade”, que seria irracional do ponto de vista da em-presa, mas que tem efetivo sentido do ponto de vistada reprodução da vida daquela unidade familiar.

Atualmente, esta economia dos setores popula-res – seja sob a forma do trabalho individual ou fa-miliar, seja através das diferentes modalidades detrabalho associativo – existe apenas de forma dis-persa e fragmentada. Em seu conjunto, ela é mar-cada pela precariedade: trabalho precário, moradiaprecária, consumo precário... Sobretudo quando ob-servamos o trabalho por conta própria nos espaçosurbanos.

Nas cidades, os empreendimentos associativosenfrentam condições bem mais adversas para sedesenvolver. Entretanto, seja no meio urbano ourural, é comum a situação em que os empreendi-mentos associativos apresentam viabilidade doponto vista estritamente econômico, mas se depa-ram com dificuldades irreversíveis porque as ques-tões associativas não foram devidamente equacio-nadas. E o grande desafio enfrentado pelos grupos

populares que se dedicam a algu-ma atividade econômica é exata-mente essa busca da eficiênciaatravés de processos democráti-cos e solidários.

Em outras palavras, os empre-endimentos associativos, quandoobservados de perto, quase sem-pre apresentam grandes dificulda-des e fragilidades. Muitas vezes asua existência depende da pre-sença ou do apoio de uma únicapessoa ou instituição, o que leva

ao risco de recriar, no interior do grupo, relaçõesque reforcem antigos e novos laços de dependên-cia Mas em outras circunstâncias lamenta-se exata-mente a ausência de alguma pessoa ou instituiçãoque auxilie no atendimento de alguma necessidadebásica, difícil de ser encaminhada pelo grupo sozi-nho. E não poderia ser de outra forma: uma mudan-ça de qualidade da economia dos setores popularesdepende de aportes econômicos e sociais que nãosão reproduzíveis atualmente no seu interior e quelimitam o seu desenvolvimento. Essa transforma-ção transcende os aspectos estritamente econômi-cos, requerendo uma ação convergente e comple-mentar de múltiplos atores e iniciativas nos campospolítico, econômico, social e tecnológico, envolven-do ONGs, sindicatos, igrejas, universidades, ór-gãos governamentais, etc.

Entretanto, apesar de toda a fragilidade, apesarde toda a precariedade, e para além das utopias,imprecisões e debates conceituais, essa economiados setores populares vem garantindo a reprodu-ção da vida de parcelas crescentes da população.Num país como o Brasil, que nunca experimentouo Welfare State europeu e onde um grande contin-gente de trabalhadores sempre esteve fora do em-

Apesar de toda afragilidade, apesar detoda a precariedade, epara além das utopias,imprecisões e debates

conceituais, essaeconomia dos setores

populares vem garantindoa reprodução da vida

de parcelas crescentesda população.

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prego regular, a luta por uma transformação quali-tativa da economia dos setores populares5 inscre-ve-se no embate mais amplo pela transformaçãodo trabalho: do estatuto de carência para o estatutopolítico de produtor e produto da cidadania. Repre-senta, portanto, uma forma de resistência, ao ladode outras, no itinerário pela desmercantilização daforça de trabalho. Nesses termos, a mudança dequalidade dessa economia dos setores popularesaponta para a produção de mercadorias pelo traba-lho que não se reduz à “penosidade da existência”(BOAVENTURA, 1999), mas que se realiza comouma “não-mercadoria” (OLIVEIRA, 2000)

Penso que é no âmbito desse conjunto maiorque também é possível antever, num país como oBrasil, as potencialidades transformadoras dos em-preendimentos associativos e as expectativas emrelação à economia solidária, não como um fim emsi mesmo, mas convergindo com outras iniciativas,antigas e novas, suscitadas pela prática socialtransformadora.

Mas ainda resta uma questão: é possível juntareconomia com solidariedade? A opinião corrente éque essa seria uma tentativa de juntar coisas quese repelem, que se opõem. A economia seria omundo da competição, da concorrência e da guerrade todos contra todos. O comportamento econômi-co e racional seria aquele movido pelo egoísmo,pelo auto-interesse. Um trecho de Adam Smith, ci-tado à exaustão, reflete esta crença da economiatradicional:

Sen lembra ainda que o comportamento humano éregido por uma pluralidade de motivações e nãoapenas pelo egoísmo ou auto-interesse:6 “o egoís-mo universal como uma realidade pode muito bemser falso, mas o egoísmo universal como um requi-sito da racionalidade é patentemente um absurdo”(SEN, 1999, p.32). Amartya Sen aponta essa visãoestreita sobre os seres humanos como uma dasprincipais deficiências da teoria econômica con-temporânea, um empobrecimento que demonstra oquanto a economia moderna se distanciou da ética.

Talvez o restabelecimento dessa junção permitavislumbrar novas perspectivas teóricas e práticasconcernentes à economia dos setores populares einstigue uma redescoberta cidadã do trabalho.Neste passo, entretanto, convém observar que opensamento ultraliberal já começa a incorporar e aretraduzir o discurso da economia solidária, trans-formando-o numa miragem: enquanto o capitaldesfruta da complacência, auxílio e liberalidades doEstado, as chamadas políticas de combate à po-breza já começam a embalar, com o novo “selo dasolidariedade”, as conhecidas medidas acessóriasdestinadas a aliviar, pontual e residualmente, osefeitos dos mecanismos geradores da miséria. Emoutras palavras, conferem-se ao capital a posse eo gozo dos recursos públicos, mantém-se inaltera-da a regressividade do sistema tributário, subtra-em-se do trabalho os direitos sociais – reduzindoa força de trabalho à condição de uma mercadoriacomo outra qualquer – e reservam-se as sobrasdo banquete para mitigar a pobreza... solidaria-mente. E dessa forma, como num passe de mági-ca, somos todos solidários, sem conflitos e ten-sões sociais e, se Deus quiser, até mesmo semclasses sociais.

Dito isto, deve estar claro que não se trata deconceber ações e políticas públicas direcionadas àeconomia dos setores populares como coisa feitapara pobre, pequenininha, precária ou compensa-tória, mas como transformações que pressupõemuma luta cultural, em que a sociedade imponha di-reitos sociais como princípios reguladores da eco-

5 Ou a transição para o que Coraggio denomina de “economia do traba-lho” (CORAGGIO, 2000).

6 Amartya Sen (2000) afirma a importância dos empreendimentos econô-micos associativos como fator de mudanças sociais, não apenas em ter-mos de benefícios econômicos, mas no modo de pensar das pessoasenvolvidas.

Não é da benevolência do padeiro ou do açougueiro que es-peramos o nosso jantar, mas sim da consideração que elestêm pelo seu próprio interesse. Apelamos não à sua humani-dade mas ao seu auto-interesse, e nunca lhes falamos dasnossas próprias necessidades, mas das vantagens que ad-virão para eles (SMITH, 1983, p.50).

Sen (1999), ganhador do Prêmio Nobel de Eco-nomia, critica o que seria uma interpretação errô-nea de Smith, observando que comentários desseautor sobre a miséria e o papel das consideraçõeséticas no comportamento humano, contidas em ou-tras partes dos seus escritos, foram relegadas aoesquecimento à medida que a própria considera-ção da ética caiu em desuso na economia. Amartya

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nomia.7 A cultura é aqui entendida não como o mun-do da leitura, das idéias, das letras ou das artes,mas como aquilo que deve ser reposto, dia a dia: asustentação da vida, a decifração do mundo e asrelações sociais. Em outras palavras, significa di-zer: o trabalho, o conhecimento, a cidadania, quedevem ser vividos, recriados e repostos a cada dia(LARA, 2000). Nesse sentido, quando se fala emluta cultural, não há como fazê-lo sem que se abar-que o econômico e o político – e é nesse embateque se situam as possibilidades e os desafios daeconomia dos setores populares.

7 Ou seja, se depender da suave benevolência que reconforta e adocicaas ações das nossas elites, essa economia dos setores populares estaráinapelavelmente condenada, desde hoje e para sempre, a viver nas fran-jas do sistema.

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Resumo

Este artigo tem como objetivo apresentar as principais inicia-tivas que estão em fase de implantação no âmbito da economiasolidária na Região Metropolitana de Salvador. Privilegiou-se asexperiências relacionadas à prática da preservação ambiental,procurando identificar quais os principais desafios e problemas aserem superados para que essas iniciativas alcancem êxito. Comosuporte teórico buscou-se contextualizar o surgimento dessaspráticas a partir da evolução do conceito de desenvolvimento.Além disso, procurou-se evidenciar as diferenças existentes en-tre as ações desenvolvidas dentro da lógica capitalista e as leva-das a cabo no plano da economia solidária.

Palavras-chave: desenvolvimento sustentável; preservação am-biental; práticas de economia solidária; terceiro setor; trabalho.

Abstract

This article has the objective of presenting the main initiativescarried out at implementation level in the scope of solidary eco-nomy in the metropolitan area of Salvador. The experiences refer-red to environmental preservation have been emphasised, aimingat identifying the main challenges and problems to be overcomeso that those initiatives can succede. The contextualization of suchpractices taking from the evolution of the concept of developmentwill act as theory support. In addition, we have tried to makeevident the existing differences between actions carried out withinthe capitalist logic and those taken from the perspective of solidaryeconomy.

Key-words: sustained development; environment preservation;solidary economy practices; third sector; employment.

Há hoje uma intensa discussão tanto no meioacadêmico quanto na esfera das Organizações

Não-Governamentais (ONGs) acerca do conceito dedesenvolvimento. Nesse sentido, pontos de vista quevinculam esse conceito ao fenômeno do desenvol-vimento econômico passam a perder espaço, verifi-cando-se uma tendência a abandonar-se tal visão,estreitamente ligada à de crescimento econômico.Por sua vez, o crescimento econômico é entendidocomo aumento do Produto Interno Bruto (PIB) percapita, acompanhado da melhoria do padrão de vidada população e por alterações fundamentais na es-trutura da economia.

Dessa perspectiva, o desenvolvimento de cadapaís depende de suas características próprias (situ-ação geográfica, passado histórico, extensão terri-torial, população, cultura e recursos naturais). Deuma maneira geral, nessa visão, as mudanças quecaracterizam o desenvolvimento econômico consis-tem no aumento da atividade industrial relativamen-te à atividade agrícola, na migração da mão-de-obrado campo para as cidades, na redução das impor-tações de produtos industrializados e das exporta-ções de produtos primários e na menor dependên-cia de auxílio externo.

Essa concepção de desenvolvimento encontra-se, atualmente, muito desgastada. Pensa-se, nos

* Laumar Neves é economista, pesquisador da SEI e professor da Facul-dade de Ciências Econômicas da UFBA e da [email protected]

** Joseanie Mendonça é economista e pesquisadora do [email protected]

*** Roberta Lourenço é economista e pesquisadora da [email protected]

1 Agradecemos a Sueli Guimarães, Maurício e Zuzélia, da IncubadoraTecnológica de Cooperativas Populares da UNRB (ITCP); a GabrielAtalla, coordenador de Programas em Economias Sociais e Cooperativis-mo, e a Rogério Santana, diretor, ambos do PANGEA – Centro de Estu-dos Socioambientais; e a Eliane Oliveira, coordenadora de Projetos daFundação Ondazul, pela atenção que nos concedeu e pela colaboraçãona elaboração deste artigo.

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dias que correm, em categorias como desenvolvi-mento local e desenvolvimento sustentado. A pri-meira, surgindo como um aparente paradoxo emface do processo de globalização, procura valorizara cultura, a produção e o meio-ambiente nos seusaspectos locais. Vale dizer que o desenvolvimentolocal não implica, necessariamente, a conquista e oexercício da auto-suficiência dos locais, mas o de-senvolvimento de uma capacidade de exercer inter-dependência, através da geração de condições paracriar uma comunidade capaz de suprir suas neces-sidades mais imediatas, de descobrir ou despertarsuas vocações.

O desenvolvimento sustentável,2 por sua vez, seconsubstancia na percepção de que o fenômeno dodesenvolvimento deve engendrar um processo desatisfação das necessidades do presente sem, en-tretanto, comprometer a capacidade das geraçõesfuturas de satisfazer suas próprias necessidades. Apartir dessa perspectiva, o desenvolvimento susten-tável passa a ser resultante de uma transformaçãoda sociedade como uma unidade formada por ele-mentos que compõem subsistemas integrados comrelações de restrições e mecanismos de regulaçãoe controle. Economia, sociedade e ecologia sãosubsistemas da totalidade complexa constituindouma identidade integrada e organizada, cada umdefinindo os limites e condicionantes dos outros.

É importante lembrar que o conceito de desen-volvimento sustentável tem passado por vários aper-feiçoamentos e redefinições, alcançando crescenterelevo, a ponto de integrar a pauta maior da políticainternacional, bem como contribuindo para consoli-dar no espaço público mundial forte consciênciaecológica.

É possível até pensar a questão do desenvolvi-mento a partir da junção dos conceitos de desen-volvimento: o local e o sustentado. Fala-se, hoje emdia, na construção de desenvolvimento local sus-tentável. Este surge como uma resposta ao modelode crescimento que ameaça a conservação e a pro-dução dos recursos naturais e que apresenta umainsustentabilidade política e social devida à profun-da desigualdade na distribuição da riqueza e da

qualidade de vida. Essa resposta contempla a idéiade um desenvolvimento mais justo, organizado eplanejado no âmbito do espaço local, seja microrre-gional, municipal ou comunitário, acompanhando atendência global que impulsiona os processos dedescentralização político-administrativa.

Frente a esse contexto de revisão do conceito dedesenvolvimento, Amartya Sen (2000) passou a de-fender a tese de que o objetivo primordial desse fe-nômeno chamado de desenvolvimento é o resgateda condição de agente dos indivíduos, condição essa“inescapavelmente restrita e limitada pelas oportuni-dades sociais, políticas e econômicas” de que dis-põe cada pessoa. Nessa linha de raciocínio, o de-senvolvimento consiste na eliminação de privaçõesde liberdades que limitam as escolhas e as oportuni-dades das pessoas para exercer ponderadamentesua condição de agente.3 Assim, afirma esse autor, aeliminação das privações das liberdades substanci-ais é constitutiva do desenvolvimento.

Ainda seguindo a linha de pensamento de AmartyaSen, o principal meio e o principal fim do desenvol-vimento são a liberdade. A liberdade como finalida-de do desenvolvimento compõe uma relação cons-titutiva. Em outros termos, desenvolver é o mesmoque ampliar as liberdades do indivíduo – liberdadepara buscar-se o atendimento das necessidadesbásicas como alimentação, saúde, educação, ves-tuário e moradia, bem como liberdade para condu-zir o próprio destino, escolhendo o tipo de atividadeque se quer desenvolver ou o estilo de vida que sequer levar.

Nessa interpretação, pode-se avaliar se uma co-munidade é ou não desenvolvida observando se aspessoas que a compõem têm: 1) oportunidades eco-nômicas (oportunidade de trabalho, de obtenção demeios de produção e de auferir renda que lhes permi-tam ter alimentação, moradia e vestuário); 2) liber-dades políticas (oportunidade de influenciar direta-mente nas decisões políticas da sua comunidade,de construir planos coletivos para a melhoria daqualidade de vida da sua coletividade e liberdadede expressar suas idéias); 3) facilidades sociais(acesso livre à saúde e educação); 4) garantia de

2 O termo desenvolvimento sustentável foi definido pela Comissão Brun-dtland, durante a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvi-mento (1987), no relatório “Nosso Futuro Comum” .

3 Agente: alguém que age e ocasiona mudança e cujas realizações po-dem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos, inde-pendentemente de avaliação ou de critério externos.

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transparência (transparência nas ações institucio-nais e suas conseqüências, não importando a natu-reza da instituição (governamental, empresarial ouONGs); 5) segurança protetora (existência de mei-os que assegurem o irrestrito respeito às outras for-mas de liberdade). Se a comunidade estiver emdesenvolvimento, essas liberdades deverão estarem processo de expansão.

É nesse contexto que emerge um novo modo deorganização do trabalho e das ati-vidades econômicas em geral, as-sentado na idéia de economia so-lidária. Esta se distingue dasrelações capitalistas de produçãoe a elas se contrapõe, na medidaem que suscita novas experiênci-as populares de autogestão e co-operação econômica.

Esse antagonismo pode serpercebido com maior clareza quan-do se expõem as principais carac-terísticas do sistema capitalista. Deuma forma geral, pode-se afirmarque o capitalismo tem se caracte-rizado pela sua capacidade de de-senvolver as capacidades produtivas. Não obstanteisso seja verdade, nos dias atuais o crescimento daprodutividade do sistema capitalista não tem con-duzido a um esquema de desconcentração da ri-queza e da renda, muito pelo contrário, o que se vêé um aumento sem precedentes das desigualdadessociais, da miséria e da exclusão. Essa situação temorigem no fato de que a lógica do sistema capitalistaé de apenas reconhecer a chamada demanda efeti-va ou, em outros termos, os sujeitos que detêm po-der de compra, desconsiderando completamente to-dos aqueles que têm necessidades, porém nãodispõem de recursos financeiros para satisfazê-las.4

(GRUPO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA DA CUT, p. 1)Em uma perspectiva diametralmente oposta a

essa, têm lugar as iniciativas levadas a cabo noâmbito da economia solidária. No seu seio tem emer-

gido práticas de relações econômicas e sociais que,de imediato, propiciam a sobrevivência e a melhorada qualidade de vida de milhões de pessoas em di-ferentes partes do mundo. E o curioso nessa histó-ria é que a idéia de economia solidária nasce emmeio a um intenso bombardeio dos valores do sis-tema capitalista. A economia solidária, como nãopoderia deixar de ser, alicerça-se em relações decolaboração solidária, criadas dentro de um espírito

que procura privilegiar o ser huma-no, elegendo-o como sujeito e fi-nalidade da atividade econômica.(GRUPO DE ECONOMIA SOLIDÁ-RIA DA CUT, p. 2)

Um outro entendimento do quevenha a ser economia solidária,fornecido por Singer (2001, pág.46), a partir de uma percepçãomais concreta, consubstancia-sena idéia de que são:

...formas de organização econômica queadotam os valores da democracia leva-dos até as últimas conseqüências dentroda área econômica: de que todos sãoiguais, todos têm o mesmo poder de deci-

são, se tiver que delegar todos votam por igual e as pes-soas que os representam têm que se submeter à suavontade senão são destituídas e são eleitas outras.

Nesse sentido, como salienta esse autor, a eco-nomia solidária é uma forma democrática e igualitá-ria de organização de diferentes atividades econô-micas.

Sendo esses os valores da economia solidária, sepercebe de pronto a importância de iniciativas nessecampo em países como o Brasil, onde uma massasem precedentes de pessoas não consegue encon-trar trabalho tanto no mercado formal quanto no infor-mal, uma colocação que lhe permita viver com digni-dade. Em face desta triste realidade, é que a sociedadebrasileira se torna campo fértil para ações na área daeconomia solidária, haja vista o seu potencial para re-integrar à atividade produtiva muitos daqueles consi-derados excluídos, fato esse que, decerto, atenua, aum só tempo, os problemas da pobreza e do desem-prego. Assim, na realidade brasileira, a economia so-lidária se constitui num instrumento poderosíssimo deluta contra a exclusão social, na medida em que re-presenta uma alternativa perfeitamente factível de

Emerge um novo modode organização do

trabalho e das atividadeseconômicas em geral,assentado na idéia de

economia solidária. Estase distingue das relaçõescapitalistas de produção e

a elas se contrapõe, namedida em que suscita

novas experiênciaspopulares de autogestão e

cooperação econômica.

4 Para Singer (2001, p.48), a economia solidária, no caso brasileiro,constitui-se em uma “resposta a uma profunda crise social que a rees-truturação produtiva, as novas tecnologias, a falta de crescimento eco-nômico e a globalização acarretaram, marginalizando uma grande quanti-dade de trabalhadores, de pequenos empreendedores e de campone-ses pelo país afora”.

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geração de trabalho e renda, possibilitando a satisfa-ção das necessidades de todos.

Na atualidade, um dos mais graves problemasque a sociedade brasileira enfrenta é, sem sombrade dúvida, o desemprego. Cresce, a cada dia, nonosso País, o contingente de pessoas que simples-mente não alimentam a esperança de ingressar ouse reinserir no mercado de trabalho nacional. Dian-te disso, muito trabalhadores põem em prática es-tratégias de sobrevivência que, muitas vezes, oupassam pelo exercício de alguma atividade precá-ria ou, então, o que é pior, se direcionam para ocaminho do crime, agravando o problema da vio-lência urbana.

Em algumas Regiões Metropolitanas, a exemploda RMS, o desemprego assume proporções alar-mantes. Só para se ter uma idéia da dimensão des-se problema, entre os anos de 1997 e 2001 a Popu-lação Economicamente Ativa (PEA) cresce cerca de15,8%. Esse comportamento foi determinado peloconsiderável aumento do número de pessoas quenão encontram trabalho, de 299 mil para 440 mil. oque corresponde a uma variação percentual de47,2%. Em termos de taxa, o desemprego salta,nesse mesmo período, de 21,6%, em 1997, para27,5% em 2001.5 A forma de desemprego que maisse manifestou, nesse intervalo de tempo, foi o cha-mado desemprego aberto,6 o qual atingia 172 milpessoas no primeiro ano da série e passou a fazerparte da vida de 262 mil indivíduos que moram nes-sa região, no último ano.

O desemprego oculto também assumiu dimen-sões expressivas. Porém aqui cabe uma qualifica-ção importante: dentro do contingente da populaçãoque se encontra na condição de desempregado ocul-to, a parcela que mais se eleva é a dos indivíduosclassificados como desempregados ocultos por tra-balho precário,7 que salta de 83 mil pessoas para128 mil, variação percentual de 54,2%. Movimentobem menos expressivo é observado para o contin-

gente dos desalentados.8 Em 1997 encontravam-se nessa situação cerca de 44 mil indivíduos; já em2001 esse número salta para 50 mil, implicando umavariação percentual de 13,6%.

Quais seriam as explicações para uma discre-pância tão acentuada na manifestação dessas duasformas de desemprego oculto, o por trabalho precárioe o por desalento? Uma argumentação interessanteque, certamente, contempla uma resposta satisfa-tória para esse fenômeno, é a seguinte: num ambi-ente fortemente marcado pela queda dos rendimen-tos, torna-se praticamente impossível, por parte dosdesempregados, o não-exercício de algum tipo depressão sobre o mercado de trabalho. Essa quedados rendimentos, como seria de esperar, tem trazi-do fortes impactos à composição da renda familiar.Na RMS, por exemplo, o rendimento máximo obtidopelas famílias do primeiro quartil, no ano de 1999, erainferior a 1,5 salário mínimo (DIEESE, 2001, p. 24).

Em face de rendimentos tão diminutos, as estra-tégias de sobrevivência das famílias são revistas,tendo em vista que suas condições de vida estãointimamente relacionadas com seus níveis de ren-dimentos totais e estes tendem a ser maiores àmedida que mais membros de um domicílio desem-penhem atividades remuneradas no mercado de tra-balho. Dessa perspectiva é que, desesperados,muitos trabalhadores se vêem obrigados a desem-penhar as atividades mais precárias possíveis paranão agravar ainda mais a situação das suas famíli-as em relação ao rendimento.

Nesse ponto, é importante mencionar que, em1999, o rendimento médio familiar na RMS era daordem de R$ 855,00 – representando cerca de 47,8%do rendimento médio das famílias do Distrito Federal–, e sua taxa de dependência econômica9 era de 1,75:isso significa que para cada pessoa trabalhando existe1,80 sem ocupação. Esses números comprometemdecisivamente as estratégias de sobrevivência dasfamílias e forçam a configuração de novos arranjosno seio das mesmas (DIEESE, 2001, p. 30).

5 Esse percentual corresponde ao desemprego total, que nada mais é doque o somatório dos percentuais referentes ao desemprego aberto, aodesemprego oculto pelo trabalho precário e ao desemprego oculto pelodesalento.6 Situação daquelas pessoas que procuraram trabalho nos trinta dias enão trabalharam nos sete dias anteriores à entrevista.7 Condição das pessoas que, simultaneamente à procura de trabalho, re-alizaram algum tipo de atividade descontínua e irregular.

8 Situação daquelas pessoas que, desencorajadas pelas condições domercado de trabalho ou por razões circunstanciais, interromperam a pro-cura, embora ainda queiram trabalhar.9 Expressa a relação entre a soma dos menores de dez anos, dos inati-vos e dos desempregados, dividida pelo total dos ocupados. Em outrostermos, representa, em porcentagem, a quantidade de pessoas que de-pendem economicamente daqueles que trabalham.

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A debilidade do mercado de trabalho da RMSpode ser percebida, também, pela análise da evolu-ção da ocupação nos últimos cinco anos. De 1997 a2001 a ocupação varia timidamente, apenas 7,2%,quando comparada ao crescimento do desempre-go. Observa-se que o crescimento deste último apre-senta uma tendência bem definida, ou seja, ano apósano, sistematicamente, o número de desemprega-dos é sempre maior, o que não é verificado no to-cante à evolução da ocupação,pois, especialmente em 1998, seregistra recuo no número de pes-soas ocupadas. Durante essesanos, no Comércio ocorre contra-ção da ocupação (0,5%). Na Indús-tria, setor que tradicionalmente ofe-rece os melhores postos detrabalho, a ocupação cresce, nes-se período, de maneira incipiente(3,3%). A variação mais expressi-va em termos de ocupação é jus-tamente a de Serviços (10,4%),reforçando a vocação, histórica, daeconomia da RMS para criar e de-senvolver atividades nesse setor.

Tendo isso em mente, seria na-tural esperar que na RMS já exis-tisse uma cultura amplamente difun-dida de desenvolvimento de açõesna esfera da economia solidária, tendo em vista queo solidarismo popular expressa-se no ideário e naprática de um número crescente de empreendimen-tos econômicos, impulsionados por trabalhadores quenão encontram alternativas de subsistência ou sãomovidos pela força de suas convicções. Nesses em-preendimentos, articulam-se atividades de naturezasocial e educativa, balizadas, umas e outras, nosvalores do solidarismo e reciprocidade.

Contudo, o que se constata até o presente mo-mento são atitudes embrionárias, ou seja, as coisasainda estão em fase de projeto, poucos são os “em-preendimentos” nos quais os resultados concretospodem ser avaliados. Qual seria a razão para isso?Convém lembrar, de saída, que construir uma soci-edade baseada nos fundamentos da economia soli-dária é uma tarefa de grande envergadura, uma vezque esta encerra o questionamento de normas e

valores culturais estabelecidos.Atualmente, na RMS os projetos de cunho soli-

dário com ênfase no meio ambiente ainda estão emfase de implementação, mesmo sendo essa regiãodetentora de indicadores econômicos e sociais pou-co ou, mais precisamente, nada animadores.

PRÁTICAS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA:O ESTADO DAS ARTES

Nesse contexto, procurou-seidentificar práticas de economia so-lidária no município de Salvadorcom envolvimento nas questõesambientais e de geração de renda,especialmente aquelas que bus-cam reconstruir de forma solidáriae ecológica as cadeias produtivas.

Para tanto, foi feito um levanta-mento de informações, privilegian-do questões como o local e formade atuação dessas instituições, fon-te de recursos para operar, princi-pais agentes para implementaçãode projetos e beneficiários, entreoutras, com o objetivo de mapearas entidades que recorrem à eco-nomia solidária como meio parauma nova forma de inserção da

comunidade carente na sociedade, com ênfase napreservação do meio ambiente. Com base nesselevantamento, conclui-se que os principais agentesparticipantes desse novo processo são as comuni-dades de bairros periféricos, as ONGs, algumas fun-dações e o governo, nas suas diversas instâncias(federal, estadual e municipal).

Dentro do que se pode chamar de interação coma comunidade, despontam projetos de cunho aca-dêmico que visam reintegrar as comunidades ca-rentes ao “mundo do trabalho”, a exemplo do Bansol(UFBA) e da Incubadora Tecnológica de Cooperati-vas Populares da Universidade Estadual da Bahia(ITCP/UNEB).

O Bansol, capitaneado pela Faculdade de Admi-nistração da UFBA, tem como objetivo específicoconceder microcrédito a empreendimentos coletivossolidários para a utilização operacional ou a aquisi-

O que se constata atéo presente momento

são atitudes embrionárias,ou seja, as coisas ainda

estão em fase de projeto,poucos são os

“empreendimentos” nosquais os resultados

concretos podem seravaliados. Construir umasociedade baseada nos

fundamentos da economiasolidária é uma tarefa de

grande envergadura,uma vez que esta encerra

o questionamento denormas e valores

culturais estabelecidos.

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ção de ativos fixos que darão suporte à produção e/ou prestação de serviços.

A Incubadora Tecnológica de Cooperativas Po-pulares da Uneb (ITCP), por sua vez, surgiu comoum Programa de Extensão Universitária, constituin-do-se num espaço que disponibiliza conhecimentose promove uma interação direta com a comunidadepara, num processo educativo, gerar oportunidadesde trabalho e renda. O seu público-alvo é formadopor grupos de indivíduos desempregados ou quevivenciam situações de trabalho precarizado. Seuobjetivo principal é assessorar a formação e o funci-onamento de cooperativas populares durante o pe-ríodo de tempo suficiente para torná-las capazes deprosseguir suas atividades de forma autônoma eautogestionária. Além disso, visa: promover a for-mação dos cooperantes por meio de cursos de quali-ficação profissional, capacitação para gestão, práti-cas cooperativistas, educação básica e educaçãoambiental; incentivar a aproximação universidade-comunidade; possibilitar a transferência de tecnolo-gias apropriadas, considerando os recursos materi-ais e humanos, assim como as culturas locais;assessorar tecnicamente cooperativas populares detrabalho já existentes que busquem o seu apoio eque concordem com os princípios que fundamen-tam a ITCP (ética, democracia, autonomia, coope-ração, solidariedade, participação coletiva, educaçãoe trabalho, respeito à identidade cultural, responsa-bilidade social e com o meio ambiente e transfor-mação social).

A ITCP/UNEB integra o Programa Nacional deIncubadoras Tecnológicas de Cooperativas Popula-res, lançado em maio/1998, numa articulação entrevárias instituições – Comitê de Entidades Públicasno Combate à Fome e Pela Vida (COEP), Coorde-nação dos Programas de Pós-Graduação em En-genharia da UFRJ (COPPE/UFRJ), Financiadora deEstudos e Projetos (FINEP), Fundação Banco doBrasil (FBB), Banco do Brasil, Programa Comuni-dade Solidária e Ministério da Agricultura – e estáassociada a duas redes universitárias:• Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas

de Cooperativas Populares, lançada em março/99, como um Programa Permanente da Funda-ção Interuniversitária de Estudos e Pesquisassobre Trabalho (UNITRABALHO);

• Rede Universitária das Américas em EstudosCooperativos, coordenada pela Universidadede Sherbrooke, do Canadá.

Uma iniciativa que vem sendo implementada naITCP é a Cooperativa Múltipla União Popular dosTrabalhadores de Tancredo Neves (COOPERTA-NE),10 localizada em Tancredo Neves, um dos maispopulosos bairros da periferia de Salvador. A COO-PERTANE surgiu da mobilização de um grupo depessoas, em 1999, em torno da proposta da ITCP.Nas etapas iniciais, 62 pessoas participaram doCurso de Formação para o Cooperativismo; desses,restaram apenas 35, dos quais 32 são mulheres.Em 15 de abril de 2000, o grupo aprovou em suaAssembléia de Fundação o seu Estatuto Social e oseu Regimento Interno e deu posse à Diretoria,Comissão Fiscal e de Ética da Cooperativa.

Como atividade produtiva, o grupo escolheu a re-ciclagem artesanal de papéis. A capacitação especí-fica dos cooperativados para essa atividade foi feitana UNEB, onde todos produziram variados tipos depapéis e de artefatos. A oficina de reciclagem da co-operativa funcionará em um espaço cedido no pró-prio bairro de Tancredo Neves.

Outra instituição também incubada na ITCP é oCENTRO DE DESENVOLVIMENTO SÓCIO-COMU-NITÁRIO IDE, que funciona em Fazenda Grande III(Cajazeiras), outro bairro populoso e periférico da ci-dade, onde residem cerca de 520 mil pessoas, emsua maioria de baixa renda. Esse grupo trabalha comvistas à reciclagem e preservação ambiental. Trata-se de uma ONG que realiza coleta seletiva de lixo naregião de Cajazeiras e promove oficinas de “recicla-gem artística”. O Centro já contou com o apoio doProjeto Comunidade Solidária, mediante uma inicia-tiva do Programa Capacitação Solidária, o que resul-tou numa Oficina de Reciclagem de Resíduos Sólidosno ano 2000. Em 2001 realizou o curso “Reciclandocom Arte”, em parceria com a Associação dosArtesãos do Centro Histórico de Salvador.

Atualmente, o IDE não recebe recursos para arealização de seus trabalhos e conta com a partici-

10 Atualmente nesta localidade residem cerca de 40 mil moradores, emsua grande maioria negros, empobrecidos, semi-alfabetizados, desem-pregados ou sub-empregados, que moram nas muitas ruelas e encostasdo bairro.

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pação voluntária de 30 jovens com idades entre 16e 21 anos. Seus dirigentes vêm buscando apoio daITCP/UNEB para reavaliar suas ações e para im-plantar uma usina de reciclagem (alumínio, vidro,papel e PET) no bairro de Fazenda Grande III A usinacontará com dois grupos de trabalhadores: o primei-ro, voltado para a coleta dos resíduos sólidos nasresidências do bairro (em Fazenda Grande III já érealizada essa atividade há 2 meses, com participa-ção de 70% da comunidade que é cadastrada peloCentro IDE e pretende alcançar todo o bairro deCajazeiras); o segundo grupo deverá voltar-se paraa produção de peças artesanais, que serão comer-cializadas para auferir renda para os cooperativados.Além das peças artesanais, serão comercializadospolímeros de PET.

Uma outra instituição, fora do ambiente acadêmi-co, que fomenta atividades na área sócio-ambientalé o PANGEA – Centro de Estudos Sócio-Ambien-tais. Essa ONG realiza projetos de desenvolvimen-to sustentável, sensibilização comunitária e educa-ção ambiental, em parceria com o Poder Público,empresas, fundações e instituições internacionais.

A missão de PANGEA é contribuir para a cons-trução de uma sociedade sustentável, identifican-do, propondo e implementando soluções integradaspara problemas sociais, econômicos e ambientais.Sua ação se efetiva mediante quatro programas fun-damentais: I)Economia Solidária e Cooperativismo;II)Protagonismo Juvenil; III)Educação Ambiental;IV)Conservação Ambiental e Desenvolvimento Sus-tentável e Desenvolvimento Institucional.

No âmbito do Programa de Economia Solidáriae Cooperativismo, o PANGEA desenvolve a forma-ção de cooperativas populares para estratos de bai-xa renda inseridos em contextos urbanos e ruraisdo Estado da Bahia, buscando capacitar, organizar,gerar renda e dar auto-sustentabilidade a esse novosujeito social. Nesse sentido, uma das experiênciasque se destacam é a Cooperativa de Costureirasdo Parque São Bartolomeu. Executada pelo PANGEAe apoiada pela Fundação Telefônica, a formação eorganização da Cooperativa de Costureiras do Par-que São Bartolomeu visa promover a cidadania,valorização social e geração de trabalho e renda embases associativistas para mulheres de baixa rendado subúrbio de Salvador, uma das regiões concen-

tradoras de significativas taxas de desemprego nacidade.

Por não se ter condições de concorrer com a in-dústria têxtil, nem se poder operar em grande esca-la, optou-se por privilegiar nichos específicos demercado e trabalhar com alta qualidade. Assim, acooperativa presta serviço de alta qualidade paraum mercado segmentado: moda (para estilistas derenome), fardamento, eventos, entre outros setores.

Uma outra iniciativa do PANGEA é o ProjetoCooperativa de Agentes Ecológicos de Canabrava(CAEC), em implantação no bairro de Canabrava,que visa contribuir para resgatar da marginalidadegrupos sociais não-valorizados e melhorar, parale-lamente, a qualidade do ambiente urbano dessesbairros periféricos.

Com essa ação busca-se capacitar e qualificaros “badameiros” de Canabrava, preparando-os paraa redefinição do próprio papel na sociedade: decatadores de lixo no aterro urbano a integrantes daCooperativa de Agentes Ecológicos de Canabrava.O Projeto, apoiado pela União Européia, implantarátambém um Centro de Triagem, Beneficiamento eArmazenamento dos materiais recicláveis coletados.Trata-se de mais uma iniciativa no campo da eco-nomia solidária, que o PANGEA desenvolve visan-do experimentar os múltiplos caminhos que esse tipode economia proporciona.

Outra ONG também de grande importância é aFundação OndAzul, que, em parceria com a Asso-ciação Comunitária Beneficente Cultural e Carna-valesca Dengo Baiano, iniciou o projeto ReciclaPeriferia. Esse tem como objetivo a melhoria daqualidade ambiental e de vida do subúrbio de Sal-vador, mais precisamente: mobilizar e sensibilizar acomunidade local para colaborar no sentido da me-lhoria da qualidade ambiental da região, através dacoleta seletiva de resíduos sólidos, em especial oplástico, e apresentar soluções como a reciclageme/ou reaproveitamento dos materiais coletados, quepromovam a geração de renda para a comunidade.

A proposta de parceria entre essas instituiçõespartiu da necessidade de definirem-se estratégiasde intervenção para a região do subúrbio da Re-gião Metropolitana de Salvador, focadas na quali-dade ambiental e em atividades que resultem nascoletas e reciclagem de resíduos sólidos. Tais ati-

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vidades podem reverter o impacto ambiental pro-vocado pela destinação inadequada de plásticos,papeis e outros resíduos sólidos, contribuindo tam-bém para a geração de renda para a populaçãolocal.

A idéia é integrar os diversos atores – banhistas,pescadores, barraqueiros, ambulantes, associaçõescomunitárias, escolas e comunidade em geral – atra-vés de uma campanha de mobilização que associeatividades como debates, palestras,exposição de filmes, peças teatrais,shows musicais, mutirões de limpe-za e outros, visando conscientizara população para os graves proble-mas causados pela degradação domeio ambiente. Além disso, essainiciativa propõe a criação dos Co-mitês Recicla Periferia como instru-mento de discussão, preservaçãoe controle permanente dos ambien-tes marinhos.11

Além disso, o projeto propõe acriação dos Comitês Recicla Peri-feria como instrumento de discus-são, preservação e controle perma-nente dos ambientes marinhos, além de uma oficinade reciclagem de plástico como alternativa de ren-da para a população carente. Através da criação decooperativas de reciclagem, as associações locaisidentificadas passarão a responsabilizar-se pela co-mercialização e sustentabilidade econômica da ofi-cina de reciclagem. Nos anos seguintes, com osrecursos gerados por essa oficina de plástico seráampliada a ação para outros resíduos sólidos. Atu-almente, as áreas de atuação são: Ilha de Maré,São Tomé, Tubarão, Paripe, Coutos, Periperi, PraiaGrande, Itacaranha, Plataforma e Lobato.

Essa iniciativa busca, além da educação ambi-ental, construir a cidadania com base na geraçãode emprego e renda por meio da coleta seletiva,reconhecendo os resíduos sólidos e estabelecendocomo meta a retirada e prensamento de 3 milhõesde resíduos plásticos do lixo público para seremvendidas para a indústria de reciclagem. Uma outrainiciativa importante é a confecção de vassouras com

as garrafas de PET, experiência que tem dado certoem algumas cooperativas de outros estados como,por exemplo, no Paraná, Minas Gerais (COOPER-MINAS), e Mato Grosso do Sul (COOPERMIDIA).Estudos realizados demonstraram um baixo custona produção das mesmas e uma ótima durabilida-de: com elas chega-se a varrer até 112 km, cincovezes mais que com a vassoura de piaçava. Outrofim a ser dado às garrafas de PET é a criação de

objetos artesanais para todo tipode ambiente, como forma de difun-dir e consolidar a importância dareciclagem e responsabilidade am-biental.

Contudo, um dos grandes pro-blemas para as cooperativas po-pulares ainda tem sido efetivar-secomo organismo ativo dentro deum nicho econômico, o que supõea existência de um agente de cré-dito que, por meio de relações so-lidárias, ajude a tornar viável aedificação de tais alternativas. Emcondições normais as cooperati-vas não têm acesso ao crédito,

mas, quando esse acesso existe, as exigências vãoalém das suas possibilidades financeiras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A idéia é integrar osdiversos atores atravésde uma campanha de

mobilização que associeatividades como debates,palestras, exposição defilmes, peças teatrais,

shows musicais, mutirõesde limpeza e outros,

visando conscientizar apopulação para os graves

problemas causadospela degradação do

meio ambiente.

11 Iniciativas governamentais já estão sendo tomadas através do projetoBahia Azul, que visa à despoluição da orla suburbana, realizando.

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A&D: O que significa para oGEP ser transformado numaOSCIP?

Dora Sugimoto: Essa mudan-ça representa um avanço da or-ganização popular comunitária.Significa também a possibilidadede experimentação de um novoformato jurídico, que permite quea sociedade civil organizada re-ceba apoio de instituições públi-cas e da iniciativa privada, usu-fruindo de total autonomia, com

direção própria e metas coletiva-mente estabelecidas.

A&D: Os diretores do GEP deVitória da Conquista estão madu-ros para levar a OSCIP adiante?

Dora Sugimoto: Eu acreditoque sim, embora eles ainda ne-cessitem de muita informação. OGEP não é um sonho, um projetopara o futuro. Ao longo de suaexistência, ele traz uma quantida-de razoável de experiências e pro-va que dá certo. Quando lembra-mos que, antigamente, essaspessoas se dirigiam à Prefeituraapenas para pedir favores assis-

tencialistas, ficamos realizados aoperceber que, hoje, elas reivindi-cam direitos e cidadania. Osmembros do Grupo participamcom maturidade de tomadas dedecisões difíceis e sabem da ne-cessidade de estar muito maisconscientes daqui para frente, di-ante da nova configuração con-quistada pela entidade da qualparticipam.

A&D: Como a senhora imagi-na que o GEP possa se auto-sus-tentar a partir de agora?

Dora Sugimoto: Os váriosgrupos de trabalhadores que com-

* Entrevista realizada por Dirceu Góes (967-DRT/BA), jornalista, professor do curso de Co-municação da Universidade Estadual do Sudo-este da Bahia e coordenador das ações decomunicação no GEP.

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No sudoeste da Bahia, acaba de ser implantada uma Organização da Sociedade Civilde Interesse Público, OSCIP. Assim, formaliza-se o Grupo de Economia Popular, atu-ante há quatro anos, através do Projeto de Economia Popular e Valorização do Arte-sanato de Vitória da Conquista. O GEP, como é conhecido na cidade, possui 280integrantes entre cozinheiras, doceiros, bordadeiras, artistas plásticos, microprodutoresrurais e ambientalistas. Pessoas que a duras provas aprenderam a cultivar o respeitomútuo e a desenvolver ações em conjunto. Eles atestam que essa é a única forma desobrevivência num mundo no qual, principalmente para a população de baixa renda,os empregos a cada dia estão mais raros, os salários achatados e a violência impera.Projeto contínuo de extensão da Universidade do Sudoeste da Bahia (UESB), emparceria com a Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, as linhas de atuação doGEP foram implementadas pelo professor e sociólogo Paulo César Lisboa e por DoraSugimoto, geógrafa paulista, coordenadora do Núcleo de Economia Popular na Se-cretaria de Expansão Econômica de Vitória da Conquista e assessora do GEP, comlarga experiência na formação de organizações populares na Baixada Santista. Elaantevê inúmeras possibilidades para o Grupo, agora que poderá buscar financiamen-tos públicos e particulares como OSCIP. A BAHIA ANÁLISE & DADOS* entrevistouDora Sugimoto, que falou do seu entusiasmo e relatou parte da história da entidade.

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põem o GEP já se organizam emlinhas de produção coletiva e es-tão aptos a obter crédito paraagilizar a criação de produtos parao mercado. Veja bem: não se tra-ta de crédito individual, mas paralinhas de produção. Talvez sejaesse o diferencial e a nossa gran-de fonte de sustentabilidade. Éclaro que não devemos esquecerdas parcerias com a UniversidadeEstadual do Sudoeste da Bahia ecom a Prefeitura de Vitória daConquista, que nos dão apoiodesde o primeiro dia de existên-cia do GEP.

A&D: Para a obtenção de li-nhas de crédito será preciso criarcooperativas dentro do GEP?

Dora Sugimoto: Algumas ex-periências de cooperativas quetemos visto serão inviabilizadas,na prática, se não houver mudan-ças na legislação, conforme de-nunciam dirigentes de cooperati-vas populares. Por exemplo, a leiexige um número mínimo de par-ticipantes. Todo mundo sabe que,dentro do GEP, muitos empreen-dimentos não atingem a cota departicipantes estipulada para a cri-ação de uma cooperativa. Então,concluímos que as linhas de pro-dução precisavam se organizar eque seus membros deviam coo-perar entre si em busca de umbem comum. Não estamos repro-duzindo o modelo de cooperati-vismo – nem poderíamos fazê-lo– estabelecido pela lei em vigorno País.

A&D: Entre os artesãos e adiretoria do Grupo se nota umavalorização do selo de qualidadeGEP aposto nos produtos. Quais

os critérios para a distribuiçãodesse selo?

Dora Sugimoto: O selo servepara indicar a procedência do pro-duto e anunciar um projeto genuí-no de Vitória da Conquista, ligadoà área do artesanato e da econo-mia local. Até agora não há outrapretensão além dessa. A origem do

quem é “Seu” Zé das bananascristalizadas, quem é Risoceledos cachorrinhos. Acho que essaé uma identificação interessante.Apesar de ter uma marca, o GEPtem personalidades populares re-conhecidas por trás dele. Dá paraver que essa relação nunca foi friacom a comunidade.

Ao mesmo tempo, a participa-ção do GEP em eventos conjun-tos com outras organizações dasociedade civil, como Grupos deTerceira Idade, MST, ConselhosLocais de Saúde e outras ONGs,fortaleceu seu ideal coletivo. Nes-ses encontros, evidencia-se paraeles a riqueza da troca de experi-ências com grupos mais articula-dos. É certo também que o enga-jamento do GEP nas questõespopulares conquistou a simpatiae o respeito daqueles grupos,aproximando-os e estreitando la-ços de parceria.

A&D: A concepção de Econo-mia Popular tem por objetivo en-riquecer as pessoas ou formar ci-dadãos, num país com tantasdificuldades de sobrevivênciacomo o nosso?

Dora Sugimoto: A primeirariqueza efetiva da EconomiaPopular é a auto-estima. A par-tir do momento em que as pes-soas se associam, mesmo quenão tenham um retorno finan-ceiro similar ao do comércio tra-dicional, já ganham ao se en-contrarem com seus semelhan-tes, ao estabelecerem laços deamizade e de troca de experiên-cias, em busca de uma vidamelhor. É bom que eles não sevejam como concorrentes, mascomo parceiros.

A participação do GEPem eventos conjuntos

com outras organizaçõesda sociedade civil,

como Grupos de TerceiraIdade, MST, Conselhos

Locais de Saúde e outrasONGs, fortaleceu seu

ideal coletivo.

selo, portanto, é institucional: divul-gar e popularizar o conceito deEconomia Popular. Queremosmostrar que economia não é coisaapenas de letrados nem para quemtem muito dinheiro. Ao contrário,existe uma grande economia queé feita pelas mãos da população.Entretanto, reconheço que, com opassar do tempo, os próprios inte-grantes do GEP desenvolveramuma autocrítica mais rigorosa e jánão aceitam que alguém se inte-gre às linhas de produção semantes passar pelos cursos de aper-feiçoamento. Quem quer se garan-tir, quer garantias para todos.

A&D: Como tem sido a acei-tação da comunidade regional aosprodutos e à filosofia do GEP?

Dora Sugimoto: Desde o co-meço foi uma questão de empatia.Os produtos não são somenteprodutos. Pessoas estão envolvi-das no processo. Em Vitória daConquista, todo mundo sabe

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A&D: É natural que o GEPpretenda aumentar o número deassociados da OSCIP. Comocrescer sem perder a qualidade,como se multiplicar sem abdicardo respeito mútuo?

Dora Sugimoto: Nas reuniõesdo Grupo, surgiu a necessidadede se formar um conselho de éti-ca que estabelecesse normas deconduta, para manter a qualida-de, maturidade e crescimento doGEP. Nesse processo, dois dife-renciais foram sempre persegui-dos. O primeiro é o da diversida-de, do trabalho com as diferenças.Juntamos bordadeiras, ambienta-listas, artistas, pequenos produ-tores rurais, enfim, pessoas que,num primeiro momento, parecemnão ter nenhuma identidade en-tre si. No fundo têm tudo em co-mum, porque são trabalhadores,habitam a mesma região, sobre-vivem do que diretamente produ-zem e passam pelas mesmas di-

ficuldades: falta de emprego, sa-lários reduzidos e violência.

O outro diferencial diz respei-to à formação intelectual e socialdos integrantes do Grupo. Alémda preocupação com o aprimora-mento técnico dos ofícios, existeum forte direcionamento para oacesso à informação. Saber ler,escrever e aprimorar o discursopara não se intimidar perante si-tuações um pouco mais difíceis.Como se vê, o GEP não é umamontoado de cozinheiras, deartesãos, de artistas, um balaio degatos, no qual cabe de tudo. Nãoé assim. Do número expressivode pessoas que passam pelo Gru-po, nem todas ficam. Hoje, aOSCIP é de quem está efetiva-mente participando dela. A confi-guração pode mudar a todoinstante.

A&D: A senhora imagina queo modelo do GEP possa vir a dar

certo em outras cidades que nãotenham a mesma orientação po-lítica de Vitória da Conquista?

Dora Sugimoto: O fato deConquista ter um governo demo-crático e popular, que possibili-tou o caminhar do GEP, tornoumais fácil ao Grupo uma práticaque não se prendesse a partidospolíticos. Cada membro tem de-lineada a sua escolha políticapessoal. O GEP é uma grandeidéia, representa uma boa opor-tunidade em qualquer lugar. Seusintegrantes têm sido constante-mente convidados a visitar outrascidades para demonstrar comofunciona o programa. A Econo-mia Popular é uma alternativaconcreta de organização comuni-tária, que pode sobreviver inde-pendentemente de contingênciaspolíticas locais. Tudo depende devontade política para implantarum programa dessa espécie.

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Resumo

Relato da experiência do Grupo de Economia Popular (GEP)de Vitória da Conquista, que começou com uma associação deartesãos e se estendeu para outros segmentos produtivos. Oque agrega pessoas aparentemente tão diversas e as mantémpróximas, constituindo um Estado Popular que tem como refe-rências a família, a união e a solidariedade, é uma das questõesformuladas neste artigo, a qual é respondida em termos pragmá-ticos: eles se unem porque redescobriram que, juntos, podemmais, e por acreditarem que a democracia nasce da luta diáriapela sobrevivência e não do discurso político.

Palavras-chave: solidariedade, Estado Popular, união, interação,economia popular.

Aexperiência da Economia Popular faz nascerum novo Estado. Não um Estado de Direito,

nacional, formado por indivíduos que falam a mes-ma língua, habitam o mesmo território e se subme-tem às mesmas leis. O novo Estado Popular, queensaia seu futuro em diferentes espaços geográfi-cos, concentra indivíduos que usam a mesma lin-guagem regional e regras que eles mesmosdeliberam, conjuntamente.

Pode-se dizer que eles formam uma nação cal-cada na vontade. A mesma vontade que leva aspessoas a criarem empresas, quando conduzida emsentido inverso estimula os indivíduos a se associa-rem em defesa de interesses coletivos — a vanta-gem de um é de todos e as dificuldades também. O

que parece um retorno às comunidades primitivasé, na verdade, uma resposta plausível às distorçõestrazidas por um sistema que privilegia o privado emdetrimento do público e faz crescer as desigualda-des sociais. O mundo dos super-homens não alcan-ça a roça, não chega até o Chico Bento. E foipensando assim que as primeiras iniciativas no cam-po da Economia Popular ganharam força.

Em Vitória da Conquista, desde 1998, o Grupode Economia Popular (GEP) atua no sentido de ofe-recer uma alternativa de interação comercial às pes-soas de sua comunidade, alijadas do progressotecnológico. Tudo começou como uma associaçãode artesãos em busca de vias para divulgar e ven-der seus produtos. As ações do grupo contempla-vam ainda a necessidade de conservar vivas taismanifestações culturais, ao tempo em que se expe-rimentava um novo modelo de democratização dainformação. Deu certo e, pouco tempo depois, dife-

* Murilo Guimarães é bacharel em Direito, escritor e documentarista. Des-de 2000 atua no setor de Comunicação e Cultura do GEP. Atualmente co-ordena o projeto Lide Positiva, que oferece atendimento jurídico epsicológico a portadores do vírus HIV e a doentes de [email protected]

Abstract

A report on the experience of the Group of Popular Economy(GEP) from Vitória da Conquista, which began its activities as anassociation of handcrafters which spread to other productivesegments. What brings together such apparently different people andkeeps them close together constituting a Popular State which has thefamily as a reference, the union and solidarity, is one of the issuesformulated in this article, an issue which we respond to in pragmaticterms: they get together because they have re-discovered that togetherthey can go further, and because they believe that democracy comesout from a daily fight for survival and not from political discourse.

Key-words: solidarity, Popular State, union, interaction, populareconomy.

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rentes segmentos produtivos foram se unido aosartesãos e contribuindo para que o encontro entreprodutores distintos amadurecesse o ideal e desseseqüência a ações que estimulassem a geração detrabalho e renda. Atualmente, há cerca de 250 tra-balhadores associados ao GEP, avançando por se-tores sociais, envolvendo da Prefeitura a outrasONGs, configurando-o como uma muito bem-suce-dida iniciativa de Economia Popular.

O que precisa ser decifrado é o segredo que uneessas pessoas, aparentemente tão diferentes entresi. Seria a promessa de dias melhores? Seria umdiscurso político bem articulado? Um prêmio em di-nheiro ao final do jogo? O que será que os agrega,o que os mantém solidários?

A resposta não está no campo da experiênciaempírica. A ciência ainda não organizou suas con-clusões. A resposta é pragmática: eles se unemporque redescobriram que, juntos, podem mais. Poracreditarem que democracia nasce da luta diáriapela sobrevivência e não do discurso político.

MARAVILHOSOS FAZEDORES DE COISAS

“Eu tenho me dado bem, porque eu apareci, ago-ra o povo todo me conhece”, declara o sr. Zé dasBananinhas, o famoso fabricante das maravilhosasbananinhas cristalizadas, José Vieira. “Hoje em dia,o GEP já anda com suas próprias pernas. Reuniutodo mundo e já somos OSCIP. A nossa tendênciaé crescer mais. Eu, como coordenador do Setor deAlimentos, estou providenciando o curso da Vigilân-cia Sanitária, para melhorar a qualidade dos produ-tos.” O Sr. José é semi-analfabeto. Desde sempre,foi carpinteiro, construiu inúmeros currais pela re-gião sudoeste da Bahia. Atualmente, assegura seusustento fabricando e vendendo suas bananas cris-talizadas, receitas que ele criou de repente e quehoje são um dos principais produtos do Grupo. EmConquista, não há quem não conheça seu Zé dasBananas.

É esse homem simples e direto em suas falasque melhor representa o perfil dos integrantes doGEP. Homem do povo, com o Grupo recebeu capa-citação para operar seu trabalho com mais eficiên-cia e qualidade, criou parcerias com outros colegase conquistou o posto de Coordenador do Setor de

Alimentos. No Grupo, cada segmento produtivo for-ma um setor, totalizando dez: trabalhos manuais,alimentos, industrianato, artístico, de agricultura or-gânica, cultural, de serviços, institucional, popular/utilitário e de meio ambiente. Cada um deles identi-fica suas necessidades e elabora propostas de so-lução que são repartidas e avaliadas por todos, numaassembléia geral mensal. Esses encontros repre-sentam a renovação contínua do GEP e deles sur-gem a agenda de trabalho, bem como os temas aserem trabalhados pelas oficinas de capacitação pro-movidas pelo grupo para seus membros e abertasà comunidade.

O Sr. José, como ele disse, coordena o setor dealimentos. Sua autoridade é reconhecida por todose suas ações são observadas de perto pelos outroscomponentes do setor. No Grupo, o Sr. José exercede forma plena a sua cidadania e descortina os ca-minhos para a sua emancipação como produtor.Toda essa evolução só aconteceu a partir do traba-lho em coletividade, visto que somente a prestezade suas mãos trabalhadoras não seria suficienteargumento para que sua política solidária fosseempregada no meio social, onde morrem princípiosem nome de alguns centavos. O Sr. José quis maise conseguiu. Eis aí um membro importante dessenovo Estado. “Eu me sinto assim, como se fosseuma família. Tanto faz o pessoal que faz escultura,ou bordado, todo mundo é unido. Vitória da Con-quista tem muita gente desempregada. O que eudigo é que o pessoal procure se juntar, porque todomundo tem o seu valor,” ensina o mágico fazedorde bananas.

À procura de novos habitantes dessa nação pou-co usual, chegamos às mãos que costuram cachor-rinhos acolchoados que se transformam emtravesseiros de bebês e exalam cheirinho doce.Maria Risocele Moreira de Oliveira, artesã, encon-trou o GEP logo nas primeiras reuniões. “Eu ficavaem casa. Quando eu comecei a sair com o GEP,passei a divulgar mais meu trabalho e a vendermais. Minha renda melhorou muito. Agora, já te-mos uma perspectiva melhor e os caminhos estãose abrindo”, avalia. Outra vez, a idéia do Grupocomo uma família aparece, o que leva a uma con-clusão: esse novo Estado é acionado por laços bemmais fortes que os que movem a gigantesca má-

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Estratégias decomunicação, aliadas

a uma gerênciadescentralizada, vãosurgindo para fazer

com que osprocedimentos internosse desenvolvam com a

máxima agilidade possível.

quina globalizada e mercantil. A família, símboloda gênese social, a qual gera sentimentos comple-xos e influentes por toda a vida, serve de modelopara a Economia Popular. Isso talvez ocorra pelofato de o Estado de Direito haver nascido da pro-messa de solução dos problemas sociais, nummomento histórico em que se acreditava que ohomem, sozinho, não conseguiria garantir a ditaordem social. Hoje, assiste-se à falência do velhoparadigma e o retorno à célula-mãe, como que se abrindo mão detodas as prerrogativas em nomeda novidade, que surge pouco apouco, mas ilumina a visão dequem a enxerga. Ouçamos umpouco mais a senhora dostravesseirinhos: “Não deixa de terrusguinhas, mas somos muito umsó, cooperamos uns com os ou-tros. A sociedade tem muito aaprender com a gente. Quem vai chegando vaisendo recebido com alegria. Porque o objetivo dogrupo é dar oportunidade a quem quer trabalhar,com honestidade. Ninguém fica enciumado porque,quanto mais gente, mais oportunidade de produzirmais e de todo mundo ganhar junto”.

Dona Olga Oliveira Brito é outra cidadã GEPdesde o início. Dona de muitos talentos, ela viu noGrupo muito mais do que uma fonte de renda. OGEP representou a descoberta de um novo mundo.“O GEP me deu auto-estima, experiência e maisatividades”. O poder de fazer acontecer com as pró-prias mãos é, sem dúvida, um remédio para a almaoprimida. Mudam-se humores, acionam-se desejos,elucidam-se problemas comuns. A vida fica mais fácile o barco mais leve, se contar com mais remado-res. O que surpreende é a riqueza das lições extra-ídas de conclusões tão simples, tão próximas aosolhos de todos. Por que será que todos não asvisualizaram antes? “A gente está sempre se co-municando. Gosto de saber das coisas, de artes eisso para mim é muito bom. Tem pessoas que es-tranham muito as idéias, mas há pessoas que che-gam ao conhecimento que devemos fazer aquilo queé possível. É preciso procurar conhecimento e sairem busca do que você deseja,” acrescenta a se-nhora dos licores, Dona Olga.

SOLIDARIEDADE NATURAL

A criação de um organismo como esse traz apreocupação com a burocracia. Como tornar o tra-balho fluente, sem que entraves dificultem o anda-mento das atividades. Ao longo de sua existência, oGrupo torna essa preocupação um desafio. Aospoucos, estratégias de comunicação, aliadas a umagerência descentralizada, vão surgindo para fazer

com que os procedimentos inter-nos se desenvolvam com a máxi-ma agilidade possível.

Viviane Sales Gomes represen-ta um outro perfil de integrante doGrupo. Administradora de empre-sas, ela começou no Grupo em2000, como estagiária. Atualmente,coordena a secretaria do GEP. Suaspalavras são o intercâmbio entre aUniversidade Estadual do Sudoes-

te da Bahia, grande parceira do Grupo desde o iní-cio, e a comunidade produtiva, carente dosconhecimentos que circulam nas academias. Ela tam-bém nos ajuda a diferenciar a atuação econômicadentro e fora do Grupo: “O objetivo de uma empresaprivada é obter lucro e produtividade. O GEP estápreocupado em fazer com que o cidadão desenvol-va uma atividade e sobreviva dela. O integrante, apóssua inscrição, é informado sobre a agenda de açõesdo GEP para que ele possa participar. Essas açõesincluem feiras, exposições e cursos. Além disso, elessão convidados a participar dos grupos de discussãosobre Economia Popular, que é essa economia de-senvolvida em casa ou em pequenos grupos. Acre-ditar nessa filosofia é a chave para se manter noGrupo”.

Viviane deixa claro que, inicialmente, as pesso-as chegam até o Grupo com interesses de expor evender seu trabalho ou serviço, sem ter noção da-quela filosofia. Aos poucos, segundo ela, eles vãose integrando e acabam se preocupando tambémcom o conjunto, descobrindo aquele laço de solida-riedade que permeia as relações interpessoais noGEP. “O novo integrante se sente não como maisum, mas parte integrante do Grupo, e aprende queo que ele fizer de bom ou de ruim repercute no GEPcomo um todo.”

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Serão mesmo os caminhos tão livres para oGEP? Não há quem com ele concorra ou lute con-tra? Embates, não se pode dizer que existam. Nãose chama a polícia para domar esse Grupo,tampouco se obriga ninguém a sair. Entretanto, omaior concorrente do Grupo são as velhas formasde exercício de poder, equivocadamente conside-radas democráticas. O novo Estado que nasce daEconomia Popular enfrenta a resistência de um sis-tema que se mantém pela opressão dos valorescoletivos, em nome dos indivíduos que têm acesso

ao conhecimento e à tecnologia e, portanto, têmpoder. Nesse velho Estado, agora dominado por in-divíduos e suas vontades sem freio, se dá a lutadaqueles que desejam tão-somente demonstrar ovalor de seu trabalho e deixar de figurar nas estatís-ticas como excluídos de qualquer sorte. Novas con-tagens devem ser feitas, contemplando os ousadosindivíduos que recriam seus destinos e fazem sur-gir, em meio à injustiças, um novo contexto ideoló-gico, baseado na solidariedade e no respeito aotalento e à força do trabalho digno.

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Resumo

A APAEB, entidade civil sem fins lucrativos, desempenhavárias atividades visando à permanência do homem no campo,em melhores condições de vida. Descreve-se aqui as ações quese tem empreendido para isso, tais como: orientação técnica,capacitação dos agricultores, uso de novas tecnologias apropria-das ao semi-árido (silagem e fenação de alimentos, armazena-mento de água, reflorestamento, energia solar, plantio de forra-geiras, criação de caprinos e ovinos, etc.), concessão de créditoapropriado à realidade das famílias camponesas, criação de es-cola-família agrícola, beneficiamento, industrialização e comerci-alização da produção, entre outras. A APAEB vem comprovandoas possibilidades de convivência com o semi-árido e que, se nãose pode acabar com as secas, é viável conviver com elas. E issoé fundamental, pois, caso medidas alternativas não sejamadotadas, as secas podem acabar com os agricultores.

Palavras-chave: desenvolvimento local, capacitação, emprego,renda, sustentabilidade.

Abstract

APAEB, a non-profit entity, carries out several activitiesaiming at assuring individuals in the rural communities better lifeconditions. We describe in this paper the actions which havebeen carried out with that objective such as: technical orientation,development training for farmers, use of new technologiesappropriate to the semi-dry lands (hay and food ensilage, waterstorage, reforestation, solar energy, planting of forage, goat andlamb raising etc.), credit concession suitable to the rural families,development of rural family-schools, transformation, industriali-zation and trade of production goods, among others. APAEB hasbeen proving the possibility of living in the semi-dry environmentand, in the event the droughts are not solved, it is possible to livewith them. It is fundamental, since, if alternative measures arenot adopted, the droughts may win over the farmers.

Key-words: local development, training, employment, income,sustainability.

A ÁREA DE ATUAÇÃO DA APAEB

A chamada Região do Sisal é constituída por 33municípios, todos incluídos no semi-árido do Esta-do da Bahia. É uma região extremamente pobre,pelas deficiências dos recursos naturais e pela re-duzida assistência dispensada pelo Estado. As ter-ras estão distribuídas irregularmente, de forma queas micropropriedades, com até 50 hectares, corres-pondem a 88,0% do total e ocupam somente 30,0%da área. As propriedades consideradas pequenas,com até 100 ha., correspondem a 97,0% do total deestabelecimentos agrícolas e ocupam 57,7% da área.No outro extremo, 3,0% das propriedades maiores

ocupam 42,3% da área. A população total dessesmunicípios compreende 1.095.390 habitantes, sen-do que 58,5% habitam a zona rural e 41,5% moramnas zonas urbanas. Leve-se em conta, ainda, queparte considerável da população urbana tem a ci-dade apenas como local de moradia e mantém suasatividades econômicas vinculadas ao meio rural: sãoprodutores rurais que se mudaram para a cidadepara gozar de alguns serviços que não são ofereci-dos na zona rural, para seus familiares, como edu-cação e saúde, e trabalhadores rurais que habitamas periferias urbanas, mas trabalham no campo.

Há ainda o contingente de pequenos produtorese trabalhadores rurais sem terra, que são assalaria-dos – nas modalidades de “diaristas” ou “empreitei-ros”, sem nenhum registro profissional e, por con-

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* Associação dos Pequenos Agricultores do Município de [email protected]

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seguinte, sem nenhum dos benefícios asseguradosem Lei – ou atuam como “autônomos” nas modali-dades de posseiros ou arrendatários, praticando aagricultura de subsistência nas propriedades deoutrem. Segundo os Sindicatos de TrabalhadoresRurais, o contingente de “sem-terra”, na região, cor-responde a cerca de 15% da população rural.

Desses municípios, a APAEB atua em 16: Va-lente (sede da entidade), Araci, Campo Formoso,Cansanção, Conceição do Coité,Itiúba, Jaguarari, Monte Santo,Nordestina, Queimadas, Retirolân-dia, Santaluz, São Domingos, Ca-pim Grosso, Nova Fátima eQuixabeira. Em seu conjunto, es-ses Municípios são habitados por462.137 pessoas, sendo que61,3% estão na zona rural e 38,7%na zona urbana; 50,4% da popula-ção são homens e 49,5% são mu-lheres (Censo Demográfico 2000,IBGE).

Os serviços públicos são defi-cientes. Existem, nesses municípi-os, 921 leitos hospitalares (redepública e particular), para atendi-mentos de casos simplificados, visto que nenhumdeles dispõe de Unidade de Tratamento Intensivo(UTI). Os casos mais graves são levados para Feirade Santana (a cerca de 400 Km de Monte Santo) eSalvador (a 500 km).

A Região do Sisal é servida exclusivamente pormeios de transporte rodoviários, interligando-se aosgrandes centros, como Feira de Santana e Salva-dor, através das rodovias estaduais, BA-120 e 308,e federais, BR-116 e 324, com pavimentação asfál-tica deficiente. Em Valente há um “campo de pou-so” para pequenas aeronaves, que é utilizado ape-nas por autoridades que visitam a região. No interiordos municípios as estradas vicinais, geralmentemalconservadas, são utilizadas para o tráfego deveículos e de animais.

A ausência de políticas públicas sociais e as con-dições climáticas são fatores decisivos que, comono passado, continuam expulsando a população doseu meio. São elevados os índices de migração emgrande parte dos municípios para outras localida-

des, sendo que o motivo preponderante é a buscada sobrevivência.

O trabalho infantil, a exemplo da situação no restodo País, é intenso. As crianças, nos primeiros anosde vida (6-8 anos), começam a desenvolver ativida-des “produtivas” auxiliares como forma de ajudar ospais a produzir a subsistência, o que prejudica gra-vemente o desempenho escolar. Em 1997, com aparticipação ativa da sociedade civil organizada da

região (inclusive a APAEB), iniciou-se a execução do Programa deErradicação do Trabalho Infantil(PETI) pelo Governo Federal. OPETI vem contribuindo paraminimizar o problema, mas não seconstitui em solução definitiva porfalta de medidas que promovam aelevação da renda familiar e o de-senvolvimento regional.

A população rural e as princi-pais atividades econômicas dessaregião podem ser classificadascomo se segue: a) pequenos pro-prietários rurais, que se utilizam ba-sicamente da mão-de-obra famili-ar no processo de trabalho e

sobrevivem da produção e extração da fibra do sisal,planta adaptada ao semi-árido e resistente às se-cas; secundariamente – embora venha ganhandoimportância com a atuação da APAEB – destacam-se pequenos criatórios de ovinos e caprinos e a prá-tica da agricultura de subsistência (plantio de milho,feijão e mandioca); b) médios e grandes proprietári-os rurais, que se dedicam à criação do gado bovinode forma extensiva; c) trabalhadores rurais sem-ter-ra, que trabalham como diaristas na extração da fi-bra do sisal ou nas fazendas de gado bovino e po-dem atuar como pequenos produtores mediantecontratos de utilização de terras de fazendeiros daregião, mantendo pequenos criatórios e praticandoa agricultura de subsistência.

A PRESENÇA DA APAEB

Acreditando que essa realidade regional, esta-dual e nacional pode mudar, mediante o empreen-dimento de ações voltadas para o desenvolvimento

Acreditando que essarealidade regional,

estadual e nacional podemudar, mediante o

empreendimento de açõesvoltadas para o

desenvolvimento regionalsustentado que

possibilitem a elevação darenda familiar, iniciou-se,

nos primeiros anos de1980, um trabalho quecomeçou a dar seusmaiores resultados

a partir de 1990.

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regional sustentado que possibilitem a elevação darenda familiar, iniciou-se, nos primeiros anos de1980, um trabalho que começou a dar seus maio-res resultados a partir de 1990.

Pequeno histórico

Ainda sob a égide do regime militar, em inícios dadécada de 1970, surgem na região e, especificamen-te, no município de Valente, as primeiras iniciativaspara a organização da sociedade civil como estra-tégia de intervenção no seu território. Esse movi-mento tinha sua origem na atuação da Igreja Cató-lica, que organizava Comunidades Eclesiais de Basecom a denominação de Círculos Bíblicos, já que aleitura da Bíblia era o ponto de partida para a análi-se e a reflexão sobre a realidade social, econômicae política.

No final da década de 1970, as comunidadesrurais de Valente, sob a orientação da Pastoral Ru-ral, incorporam-se à discussão sobre a realidadeeconômica local e regional e associam-se à luta dospequenos produtores rurais de Feira de Santana,Serrinha, Anguera, Ichu, Santa Bárbara e Araci, quereivindicavam a isenção do ICM (hoje, ICMS) parao excedente da produção agropecuária que se des-tinava ao mercado. É quando surge a idéia de for-mação de uma “Cooperativa Regional” para garantira comercialização dos produtos agropecuários ori-ginários da agricultura familiar.

O fato de a legislação impedir a formação decooperativas só de pequenos produtores, comoera o desejo das principais lideranças, e tambéma história do cooperativismo na região, mantido eutilizado pelos médios e grandes produtores comoinstrumento político em favor dos grupos domi-nantes, levou a optar-se pela criação de uma enti-dade associativa em 1980: a Associação dos Pe-quenos Agricultores do Estado da Bahia (APAEB),de caráter regional, cuja razão social foi mais tar-de alterada para Associação dos Pequenos Agri-cultores do Município de Valente (APAEB). Comoa principal atividade econômica era (como aindaé) o sisal, a APAEB tomou a iniciativa de implan-tar uma Batedeira Comunitária de Sisal (Centralde beneficiamento da fibra do sisal), o que ocor-reu em 1984 e veio a permitir, a partir daquele

momento, uma intervenção direta na base econô-mica do município.

Mas além das dificuldades internas, situadas nocampo da organização e da capacitação, outros fa-tores se constituíram em fortes empecilhos ao pro-cesso de trabalho: a) as forças políticas locais, quepassaram a ver o projeto com desconfiança e comouma ameaça ao poder que exerciam, se voltam con-tra ele e procuram torpedeá-lo das mais diversasformas, procurando sempre afastar os pequenosagricultores, historicamente dependentes seus, dotrabalho que se iniciava; b) a complexidade do sis-tema de comercialização da fibra de sisal, bem maiorque a imaginada pelos dirigentes da APAEB: na prá-tica, poucos comerciantes dominavam completa-mente o setor e estabeleciam todas as regras domercado regional, inclusive os preços. Foi difícilquebrar o monopólio e entrar no mercado externo:só depois de cinco anos a APAEB conseguiu a au-torização da CACEX (órgão que controlava as ex-portações e importações na época); c) a falta derecursos financeiros para implantar os projetos dedesenvolvimento que se tinha em mente.

O trabalho iniciado com os pequenos produtorescomeçava a delinear-se como uma alternativa viá-vel a partir da combinação do crédito com a assis-tência técnica adaptada às condições do semi-árido.Para dar suporte a esse trabalho com os pequenosprodutores rurais (capacitação, crédito e assistên-cia técnica), a APAEB articula a criação da Coope-rativa Valentense de Crédito Rural (COOPERE), quevem servindo de espelho para a fundação de váriasoutras entidades do gênero na região. É importantedestacar que a fundação dessa Cooperativa já foifruto de uma experiência anterior, inédita no Brasil,a chamada “Poupança APAEB”: os pequenos agri-cultores depositavam suas pequenas economiasnuma “conta” administrada pela entidade, cujos re-cursos viabilizaram as primeiras experiências decomercialização, servindo de capital de giro e “cré-dito orientado” numa perspectiva de enfrentamentodos efeitos da seca.

Estrutura funcional

A Associação dos Pequenos Agricultores doMunicípio de Valente (APAEB) é uma sociedade ci-

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vil, sem fins lucrativos, constituída por pequenosprodutores rurais que têm a agropecuária como ati-vidade principal. Para o ingresso na entidade exige-se, além de uma “taxa de inscrição” (correspondentea 25% do salário mínimo, pode ser paga em quatroparcelas mensais), que os candidatos participem dasreuniões nas comunidades e assembléias por umperíodo de três meses, ao fim dos quais se passa acompor o quadro de sócios. Esses associados, 560atualmente, constituem a Assem-bléia Geral da entidade, órgão má-ximo de deliberação. A cada trêsanos, a Assembléia Geral escolhe,pelo voto, um Conselho Adminis-trativo constituído por 11 membros;dentre eles, escolhe-se uma Dire-toria Executiva (seis pessoas, trêsefetivos e três suplentes) que no-meia um Diretor Executivo, pessoacom funções técnicas, para assumir a coordenaçãodo processo de trabalho. Há, ainda, um ConselhoFiscal composto por seis pessoas (três efetivos etrês suplentes) que acompanham e fiscalizam osatos da diretoria.

Gestão administrativa

A APAEB, desde os primeiros anos, procurou ins-taurar um processo de administração norteado pordois princípios básicos: o profissionalismo e a demo-cracia interna. Não dispondo de quadros com gradu-ação acadêmica para assumir seus postos de admi-nistração e gerenciamento, a entidade implementousistemas de assessoramento, consultoria ecapacitação permanente, que permitiram imprimireficiência ao processo e são responsáveis por gran-de parte dos êxitos obtidos. Tudo isso foi feito dentrode uma metodologia participativa, envolvendo supe-riores e subordinados da escala hierárquica da enti-dade, o que foi consolidado com a criação do ComitêExecutivo, que reúne diretores, lideranças comunitá-rias e chefes de setores e responsabiliza-se pelo pro-cesso decisório. Outro elemento que merece desta-que é o esforço dos dirigentes pela absoluta transpa-rência das finanças da organização. Mensalmente,todas as informações referentes à movimentação fi-nanceira e à contabilidade são afixadas em local de

acesso aos funcionários e associados e discutidasem reuniões com os sócios. Esse procedimento mui-to contribuiu para aumentar a confiança da comuni-dade e de entidades parceiras da APAEB.

A interferência da APAEB na região

O propósito inicial da APAEB era interferir no pro-cesso de comercialização da produção dos peque-

nos produtores rurais, com o fimde eliminar a rede de intermediári-os e assegurar maior valorizaçãoda produção. Daí a razão de osprimeiros projetos implantados te-rem sido um “Posto de Vendas”,que servia de local para acomercialização dos produtosagropecuários dos agricultores ede gêneros industrializados ou

oriundos de outras regiões, indispensáveis à vidano campo, e a implantação da “Batedeira Comuni-tária de sisal”, que beneficiava a fibra do sisal e ne-gociava com as grandes empresas.

Logo nos primeiros anos, os técnicos e dirigen-tes da APAEB perceberam que atuar apenas nosetor da comercialização não era suficiente paragerar uma real melhoria na qualidade de vida dapopulação rural. Era preciso interferir no sistema pro-dutivo, de forma a permitir atividades mais rentá-veis economicamente para os produtores rurais e aagregar valor aos produtos da região mediante oprocesso de beneficiamento. Alguns dos desafiosenfrentados merecem destaque: no setor produti-vo, os limites decorrentes das condiçõesedafoclimáticas e da mentalidade dos produtores,norteada por conhecimentos tradicionais; no setordo beneficiamento, a ausência de conhecimentostécnicos e de capital para investimento.

Viabilizar a economia familiar no semi-árido eraa principal questão posta em todas as reuniões comos associados, nas comunidades de base, e nasdiscussões dos técnicos que foram contratados pelaentidade para iniciar um processo de assistênciatécnica aos produtores rurais e técnicos de outrasorganizações, que passaram a acreditar na possibi-lidade de encontrar alternativas para a região.

A partir do funcionamento da Batedeira Comuni-

A APAEB, desde osprimeiros anos, procurouinstaurar um processo deadministração norteado

por dois princípiosbásicos: o

profissionalismo e ademocracia interna.

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tária de Sisal e de algumas experiências com peque-nos produtores, a APAEB define uma estratégia deintervenção que se compõe de três partes principais:a) implementar um Programa de Convivência com oSemi-Árido, que requer a aplicação de tecnologiasapropriadas e de capacitação dos produtores quepossam viabilizar a economia familiar rural; b) implan-tar um sistema de crédito alternativo para o pequenoprodutor, através de um “Fundo Rotativo” (que origi-nou a fundação da Cooperativa Valentense de Cré-dito Rural – COOPERE, que se constitui hoje emgrande aliada do processo de trabalho) para dar su-porte às atividades produtivas; c) empreender medi-das para agregar valor aos produtos dos pequenosagricultores, permitindo maior remuneração pelo seutrabalho e gerando oportunidade de emprego.

Para dar suporte a essas medidas, desenvol-ve-se todo um processo de (re)educação dos pro-dutores, que lhes permite construir uma novarelação com o seu meio (posturas de preservaçãodos recursos naturais e do meio ambiente substi-tuindo as atitudes predadoras de outrora) e decapacitação técnico-gerencial, que permite a ad-ministração adequada da unidade de produção eutilização dos recursos tecnológicos disponíveis,além da realização de algumas pesquisas como ouso do resíduo do sisal na alimentação animal, usoda energia solar para iluminação das residências econstrução de cercas para a criação de caprinos eovinos, entre outros.

AÇÕES EMPREENDIDAS PELA APAEB

Programa de convivência com o semi-árido

Trata-se de um conjunto de ações que permitema convivência do pequeno produtor rural com a re-gião semi-árida, isto é, que oferecem as condiçõesnecessárias para tornar as unidades familiares efe-tivamente produtivas e que garantem a elevação darenda familiar e a melhoria da qualidade de vida. Asprincipais ações desenvolvidas são:

a) capacitação do pequeno produtor rural e deseus familiares para o empreendimento de méto-dos e técnicas apropriadas ao semi-árido e para aadequação da sua unidade de produção às possibi-lidades locais;

b) redimensionamento da unidade de produção,permitindo o consórcio entre o cultivo do sisal e aovino-caprinocultura, o cultivo de plantas legumino-sas e forrageiras (reflorestamento) para a alimenta-ção dos animais (palma, algaroba, leucena, lab-lab,etc.) e a utilização do resíduo de sisal (antes, com-pletamente desperdiçado) para a produção de ali-mentos para ovinos e caprinos, através de silageme fenação;

c) captação e armazenamento de água, visto quesua escassez, na região, sempre foi um grandeproblema: escavação de poços artesianos (a APAEBadquiriu uma perfuratriz para auxiliar nesse esforço),escavação de pequenos açudes e barreiros; cons-trução de reservatórios para captação das águasdas chuvas (utilizando o telhado das residências);

d) introdução da apicultura como atividade eco-nômica complementar;

e) ações de educação ambiental, permitindo aosprodutores as informações necessárias para preser-var os recursos naturais e recuperar o meio ambiente.Vem-se procurando recuperar a flora com o plantiode árvores nativas, adaptáveis à região (frutíferasou não), e com a preservação dos recursos natu-rais, mediante um programa de reflorestamento emque a APAEB produz e distribui as mudas aos pe-quenos agricultores;

f) energia solar: a região semi-árida é quente eseca; durante o dia, a temperatura ambiental médiaanual é sempre superior a 25ºC, chegando, em al-guns meses, ao tempo, a 40ºC. A APAEB foi pionei-ra na utilização da energia solar pelos pequenosprodutores rurais, que passaram a substituir o die-sel (altamente poluente), na iluminação doméstica,por energia natural e limpa. A utilização da energiasolar vem favorecendo também a caprinocultura,com a implantação de cercas elétricas. Estas sãocomprovadamente eficientes e econômicas (seucusto fica, aproximadamente, 70% mais barato queo das convencionais), além de contribuírem para apreservação do que resta de matas e florestas, sen-do poupadoras de madeira;

g) implantação do Fundo Rotativo, projeto depequenos financiamentos para a reestruturação daspequenas propriedades, com valores médios de U$1,500. por família, com prazos de até sete anos,corrigidos com base na equivalência do produto, que

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toma como base a carne caprina, mais um acrésci-mo de 10%, ou seja: num financiamento de R$3.000,00, acrescentam-se 10% (R$ 300,00) e o agri-cultor fica devendo 1.000kg de carne (1.000 x R$3,30 = R$ 3.300,00), pagos em reais, pelo preço dodia. Isso facilita o acompanhamento e a administra-ção do débito por parte do agricultor.

Todo esse trabalho é acompanhado de um siste-ma de assistência técnica às famílias participantesdo programa, num processo per-manente de acompanhamento emonitoramento das atividades dosprodutores. Realizam-sefreqüentemente “dias de campo”,com a participação dos produtoresrurais de uma mesma comunidade,sob a orientação do técnico, parao intercâmbio de experiências eaprimoramento dos conhecimen-tos, e visitas individuais dos técni-cos às famílias e cursos de aperfeiçoamento.

Para implementar o conjunto das atividades, osprodutores rurais contam, via de regra, com o crédi-to agrícola fornecido pela Cooperativa Valentensede Crédito Rural (COOPERE), que atua em parce-ria com a APAEB na região.

Agregação de valor à produção dos pequenosprodutores

Para melhorar a renda dos agricultores é ne-cessário produzir bem, como também vender bem.Para isso, é preciso implantarem-se projetos quepermitam beneficiar, industrializar e comercializara produção, permitindo assim agregar valor, colo-car no mercado um produto já acabado e gerar em-prego e renda. Esse trabalho se desenvolve daseguinte forma:

a) sisal – o sisal, principal atividade econômica daregião, é altamente absorvedor de mão-de-obra noprocesso de extração da fibra. Depois da experiên-cia da “Batedeira de Sisal”, iniciada em 1984, a APAEBcomeçou a buscar um projeto mais abrangente quepermitisse maior valorização do produto. Implantoua Fábrica de Tapetes e Carpetes, que começou aoperar em 1996, funcionando em quatro turnos diári-os e empregando, diretamente, 520 trabalhadores

(todos registrados e com os direitos trabalhistas as-segurados). Com essa medida, o preço da fibra au-mentou em cerca de 240% para o produtor (passan-do de R$ 150,00 para R$ 520,00 por tonelada),remunerando melhor produtores e trabalhadores. Ain-da hoje, nos municípios mais distantes, que não per-mitem aos produtores comercializar a fibra do sisalna APAEB, a exemplo de Monte Santo, o preço doproduto fica em torno de 30% a menos;

b) curtume de peles caprinas eovinas – a região produz pelesbovinas, caprinas e ovinas de altaqualidade. Os produtores sempreforam vítimas do cartel de duasempresas que monopolizavam omercado regional e controlavam ospreços (uma em Juazeiro, a 400Km, e outra em Alagoinhas, a 220km). Depois de um processo detreinamento sobre tratamento de

peles animais, viabilizado por um convênio com oComunidade Solidária (Programa do Governo Fe-deral), a APAEB implantou um pequeno curtumeque, além de promover os cuidados com o meioambiente, propiciou um aumento extraordinário nospreços de peles ovinas e caprinas. As primeiraspassaram de R$ 2,00 para R$ 7,00 a unidade, e ascaprinas, de R$ 1,50 para R$ 6,00;

c) laticínio – com o incentivo à caprinocultura naregião, os produtores passaram a ter mais uma op-ção de renda: o leite caprino. A APAEB implantouum pequeno laticínio com capacidade de processa-mento de 500 litros por dia, que está funcionandoainda de forma precária (processando apenas 300litros/dia). Mesmo assim, são gerados diariamenteR$ 210,00 (R$ 6.300,00 por mês) para os produto-res. O leite caprino é comercializado in natura etransformado em iogurtes, doces e queijos.

Posto de venda

O antigo “Posto de Vendas” foi transformado numsupermercado de porte médio, que cumpre três fina-lidades básicas: a) serve de local para o escoamentoda produção dos pequenos agricultores (especialmen-te carnes e cereais); b) fornece aos produtores todosos produtos de que necessitam; c) funciona como

Para melhorar a rendados agricultores é

necessário produzir bem,como também vender

bem. É precisoimplantarem-se projetosque permitam beneficiar,

industrializar ecomercializar a produção.

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importante instrumento regulador de preços no mer-cado local, evitando majorações injustificáveis.

Educação

Era preciso investir na formação de uma novamentalidade na população, voltada para a convivên-cia com o semi-árido, ou seja, para a perspectiva deum projeto de desenvolvimento sustentado firmadonas condições locais. As medidasimplementadas nesse âmbito sãoas seguintes:

a) comunicação – implantaçãode uma Rádio Comunitária (RádioValente FM), no Município de Va-lente e de um programa radiofôniconuma rádio comercial de grande al-cance regional, que atuam, basica-mente, orientando a populaçãopara as possibilidades de convivência com o semi-árido, com a divulgação constante de tecnologiasapropriadas à região e das experiências bem-suce-didas de agricultores da região;

b) cursos e treinamentos – dirigidos aos peque-nos produtores rurais, buscam a transferência deinformações e de conhecimentos que permitam aadoção de medidas voltadas para a convivência como semi-árido;

c) atuação nas escolas – procura-se despertaros jovens da zona rural para as novas perspectivasque se apresentam para a região com o uso de tec-nologias apropriadas (palestras, visitas dos profes-sores e alunos às experiências realizadas, etc.);

d) Escola Família Agrícola – implantação de umaexperiência inovadora no setor da educação formalpara os filhos dos pequenos produtores rurais, como objetivo de não apenas “ensinar a ler e escrever”,mas sobretudo de despertar nas crianças e jovenso interesse pelo campo e de prepará-los para a con-vivência com o semi-árido. A grade curricular daEscola, além das disciplinas obrigatórias para a 2a.etapa do ensino fundamental (5a. à 8a. séries) –português, matemática, etc.– incorpora outras “dis-ciplinas”, como arte e cultura, noções de economiarural, ecologia, etc. Além do ensino teórico, mantêm-se campos de demonstração para o ensino práticoda avicultura, caprinocultura, apicultura, agricultora

orgânica, horticultura, suinocultura, cunicultura etc.,que funcionam com a pedagogia da alternância: osestudantes permanecem na Escola por uma sema-na, em regime de internato, e voltam ao convíviodos pais na semana seguinte, podendo, assim, in-fluenciar a atividade econômica da família.

Experiências inovadoras

a) produção de legumes e ver-duras pelo sistema de hidroponia,aproveitando a água de um poçoartesiano do município de Reti-rolândia. O projeto é administra-do pela comunidade local, quetem na comercialização dos pro-dutos uma fonte complementarde renda;

b) kit irrigação – processo deimplantação de uma experiência com um kit irriga-ção produzido para regiões semi-áridas, de baixoconsumo de água; ainda se conta com elementosde avaliação dos resultados, mas as expectativassão positivas;

c) milho hidropônico – realizaram-se, durante oano passado, algumas experiências de produção demilho hidropônico para ser utilizado na alimentaçãoanimal. A experiência, cujos resultados foram posi-tivos, foi feita por técnicos da APAEB em camposde demonstração, mas ainda não foi transferida paraos pequenos produtores;

d) aproveitamento do sisal – pesquisa para apro-veitar a mucilagem na alimentação animal, garantin-do, mediante a fenação ou silagem, o armazenamentode alimentos para as épocas de seca.

Políticas públicas

Todo esse trabalho é desenvolvido numa pers-pectiva de ajudar a população a exercer a sua cida-dania, cumprindo suas obrigações e reivindicandoo atendimento dos seus direitos. Um dos aspectosrelevantes é o fomento à busca de políticas públi-cas, o que se concretiza da seguinte forma: a) ca-pacitação das lideranças comunitárias para interfe-rir na administração pública municipal; b)participação nos Conselhos Municipais (Saúde, As-

Além do ensino teórico,mantêm-se campos dedemonstração para o

ensino prático daavicultura, caprinocultura,

apicultura, agricultoraorgânica, horticultura,

suinocultura, cunicultura.

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sistência Social, Criança e Adolescente, Educaçãoetc.); c) formação de Conselhos Municipais de De-senvolvimento local; d) apresentação de propostasaos orçamentos municipais para a implementaçãode políticas públicas; e) acompanhamento e fiscali-zação do Poder Público.

Apoio ao artesanato regional

Muitas famílias desenvolvem atividades artesa-nais como forma de complementação de renda, ca-bendo essa responsabilidade especialmente àsmulheres. Depois de oferecer cursos de capacita-ção para aprimorar o trabalho, desenvolvido prin-cipalmente em tecido, palha, e fibra, a APAEB pas-sou a estimular a organização das mulheresartesãs, surgindo três segmentos: 1) de mulheresda periferia da cidade de Valente, que trabalhamcom tecidos; 2) de mulheres da periferia e rurais,que trabalham com tecidos e fibra; 3) de mulheresque se vinculem ao Movimento de Mulheres Tra-balhadoras Rurais, que trabalham com palha. Re-centemente, esses três grupos se juntaram e cria-ram a “Associação das Artesãs da Região do Sisal”,com sede em Valente, para viabilizar o intercâm-bio de experiências e o aprimoramento da dimen-são de gênero que integra os processos de traba-lho (luta contra a discriminação da mulher e buscada igualdade de gênero).

Projeto de desenvolvimento local

Iniciou-se, neste ano, uma nova experiência:selecionaram-se três comunidades rurais, com ele-vado índice de pobreza de seus moradores, paraum trabalho concentrado visando ao desenvolvimen-to local e que possibilite melhorias na qualidade devida da população. O trabalho está ainda em faseinicial: mediante um processo de “Diagnóstico Rá-pido Participativo – DRP” está sendo identificado oMarco Zero para, a partir daí, ser formulado, junta-mente com as comunidades, um plano mínimo deações que venha gerar melhor qualidade de vidapara a população. Dado o caráter recente do traba-lho (fase do DRP), ainda não se dispõe de elemen-tos avaliativos.

Comunicação

Considerando a importância da comunicação, aAPAEB mantém um trabalho informativo, que cons-ta de:

a) Boletim Informativo Folha do Sisal – publica-ção mensal, com 4.000 exemplares, com informa-ções sobre a APAEB, o município e outros fatos deinteresse da comunidade;

b) TV Itinerante – uma experiência em fase inici-al, em que se leva informações de interesse da po-pulação até as comunidades por meio de um telão;

c) Programas de Rádio – além de manter a Va-lente FM, a APAEB tem também um programa se-manal de 30 minutos numa rádio de alcance regional,durante o qual são veiculadas informações de inte-resse da população, com autonomia e isenção, oque não acontece nos meios de comunicação con-vencionais.

Todos esses mecanismos vêm ajudando na in-formação e capacitação da população.

OUTRAS ATIVIDADES

A APAEB participa de várias outras atividades,em conjunto com outras organizações locais e regi-onais: Fórum Municipal da Cidadania, juntamentecom entidades da sociedade civil de Valente; Rededas Escolas Famílias Agrícola da Região Semi-Ári-da; Rede Nordeste; IRPAA, especialmente nas lu-tas pela água e por tecnologias alternativas para osemi-árido; Sindicatos de Trabalhadores Rurais ePólos Sindicais da região em suas lutas pela refor-ma agrária, crédito, preços mínimos para os produ-tos de origem rural e políticas de combate aos efeitosdas secas. É ainda membro do Grupo Gestor doPrograma de Erradicação do Trabalho Infantil, den-tre outros.

ALGUNS RESULTADOS

O trabalho desenvolvido pela APAEB vem de-monstrando, na prática, ser possível promover odesenvolvimento sustentado regional e a agrope-cuária no semi-árido, com a adoção de tecnologiassimples e adaptadas à região, assistência técnicaadequada e crédito facilitado, contrariamente ao que

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preconizam muitos estudos técnicos para justificara omissão do governo.

Embora se saiba que os problemas da regiãosemi-árida são de natureza histórico-estruturais, querequerem medidas continuadas de longa duraçãopara serem solucionados, e apesar do pouco espa-ço de tempo de interferência da APAEB, alguns re-sultados já demonstram a viabilidade do trabalho:

a) geração de emprego – o “projeto APAEB” (Fá-brica de tapetes e carpetes, Esco-la Família Agrícola, supermercado,administração da entidade, curtu-me, laticínio, batedeira, entre ou-tros) oferece 811 empregos diretose cerca de 4.000, indiretos;

b) elevação da renda – alémdaqueles que se beneficiaram di-reta ou indiretamente com a gera-ção de emprego, 70% dosprodutores rurais integrados ao pro-grama de convivência com o semi-árido declaram que houve elevação da sua rendafamiliar, sendo que, para 40%, a renda mensal dafamília aumentou em 100% nos últimos três anos;

c) quase todos os produtores rurais assistidos pelaAPAEB adotaram alguma medida para ampliar a ca-pacidade de captação e armazenamento de água.Alguns, aumentaram em 100% seus reservatórios.Estima-se que, no conjunto, nos últimos cinco anos,a oferta de água armazenada na região aumentouem 30%;

d) além das atividades tradicionais, muitos pe-quenos produtores rurais já implementam outrasatividades de complementação da renda familiar(apicultura, por exemplo);

e) muitos dos pequenos produtores rurais já vêema região semi-árida de outra perspectiva, perceben-do o potencial econômico que pode ser explorado,e já administram sua unidade produtiva dentro deuma racionalidade empresarial;

f) valorização do artesanato regional, com a qua-lificação das artesãs e a abertura de mercado paraos produtos;

g) redução dos índices de migração na região,que já oferece às famílias rurais perspectivas de vidadigna no local;

h) melhores condições sociais para centenas defamílias de pequenos produtores rurais, com as açõesde elevação da renda, implantação de kits de ener-

gia solar e de conhecimentos quepossibilitam a utilização correta daágua e dos alimentos (tratamento,higiene, etc.);

i) ingresso de todas as criançasem idade escolar na rede escolarpública da região, com o desenvol-vimento de um processo de estu-dos e reflexão com as famíliassobre a importância da educaçãodos filhos;

j) formação de uma mentalida-de nova que acredita nas reais possibilidades dedesenvolvimento da agropecuária na região semi-árida;

k) agregação de valor aos produtos dos peque-nos agricultores: sisal, leite, peles, artesanato, car-nes etc;

l) medidas efetivas de preservação ambiental:reflorestamento das propriedades rurais pelos pro-dutores, adoção de medidas voltadas para o trata-mento adequado dos resíduos sólidos (lixo) etc;

m) formação de uma consciência cidadã, que per-mite aos indivíduos passarem a ver o Poder Públiconão mais como agente do empreendimento de açõesocasionais e assistencialistas, mas como um instru-mento potencial de desenvolvimento sustentado;

n) e, acima de tudo, a geração de um modelo dedesenvolvimento sustentado para a região semi-ári-da capaz de gerar melhorias econômicas e sociaiscom sustentabilidade.

Muitos dos pequenosprodutores rurais já vêem

a região semi-árida deoutra perspectiva,

percebendo o potencialeconômico que pode ser

explorado, e jáadministram sua unidadeprodutiva dentro de uma

racionalidade empresarial;

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Resumo

Apresentamos neste texto uma síntese da exposição realiza-da em detalhes em trabalho a ser publicado nos próximos meses.1

As críticas e sugestões que fazemos aqui se referem especifica-mente às redes de trocas e não às redes de economia solidáriaem geral, uma vez que há muitas outras formas de redes de eco-nomia solidária que não se organizam como redes de trocas. Inici-almente, apontamos sumariamente algumas debilidades estraté-gicas peculiares a essa prática, tomando por referência básica aRede Global de Trocas, e, em seguida, também sumariamente,apontamos algumas alternativas que visam – respeitando-se osprincípios advogados nessas redes – sanar as debilidades perce-bidas. Por fim, explicitamos como a remontagem solidária das ca-deias produtivas, corrigindo fluxos de valores, viabiliza a expan-são sustentável de uma economia pós-capitalista.

Palavras-Chave: redes de troca, moeda, cadeias produtivas,fluxos de valores, empresas solidárias.

Abstract

We present in this text a synthesis of a detailed paper to bepublished in the next few months. The criticisms and suggestionswhich we bring here refer specifically to the exchange networksand not to the solidary economy networks in general, since thereare many other forms of solidary economy network which are notorganised as exchange network. Initially, we point out a summaryof the strategic weaknesses typical of such practice, taking asreference the Global Exchange Network, and following that, alsoin a summarised form, we show some alternatives which aim atsolving the observed weakenesses – taking into account theprinciples advocated by those networks. Finally, we clarify theway the solidary resetting of productive chains, with the correctionof flows of values, can allow for viability of a sustained expansionof a post-capitalist economy.

Key-words: exchange networks, currency, productive chains,flows of values, solidary companies.

ALGUNS LIMITES E DEBILIDADES DAS REDESDE TROCAS

As redes de trocas são um meio eficiente paragerar renda complementar para seus participan-tes e, em alguns casos, permite às pessoas so-breviverem com as atividades econômicas quenelas realizam. Contudo, as trocas simples – mes-mo que multirrecíprocas – mediadas por qualquermoeda, social ou não, não produzem valor.

A produção do valor é realizada com o trabalhoque gera produtos e serviços que se concluem noconsumo. Na sociedade capitalista, os fluxos de va-lor realimentam o processo de concentração da ri-queza, produzida pelo trabalho, nas mãos daquelesque detêm o capital. Caso as redes não corrijam osfluxos de valor inerentes a seu processo produtivo,elas acabam sendo subsumidas no movimento deacumulação capitalista.

A inviabilidade de cambiar a moeda social pelamoeda oficial do País, conforme normatização darede de trocas, implica que todos os prossumidoresnecessitem de alguma atividade externa às redesde trocas ou de outra fonte de renda como formade obter tais moedas para atender suas necessida-des não-cobertas por essas redes.

* Euclides André Mance é filósofo, mestre em Educação, sócio-fundador doInstituto de Filosofia da Libertação (IFiL) e colaborador da Rede Brasileirade Socioeconomia Solidária. Trabalhos do autor estão disponíveis emwww.euclidesmance.pro.br.1 Cf. MANCE, Euclides André. Algumas considerações sobre redes de trocas.In: MANCE, Euclides André. Redes de colaboração solidária – Aspectos eco-nômico-filosóficos: complexidade e libertação. Petrópolis: Vozes (no prelo).

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A impossibilidade de, solidariamente, acumula-rem-se excedentes nas redes de troca, inviabilizaum processo de reinvestimento, coletivamente ge-renciado, que permita completar solidariamente ascadeias produtivas, evitando a acumulação capita-lista dos valores nelas gerados quando da aquisi-ção de insumos, maquinários, equipamentos, etc.

No processo de produção nas redes de trocassão utilizadas moedas não-sociais como única con-dição para a obtenção de insu-mos e de outros elementos de-mandados no processo produtivoque não estão disponíveis nas re-des. Isto é, todos os insumos eoutros itens necessários ao pro-cesso produtivo que não são co-mercializados no interior das re-des de trocas precisam seradquiridos no mercado convenci-onal com moeda oficial. Embora,aparentemente, não se permitacambiar as moedas sociais e não-sociais, no fluxoreal de produção e circulação de valor tais inter-câmbio e integração ocorrem, com parcelas de va-lores produzidos na rede de trocas sendo acumula-das fora dela em outros segmentos das cadeiasprodutivas não-cobertos por ela mesma.

A introdução de moedas sociais que reimplantamtrocas simples, visando reinserir empreendimentosno mercado formal, não é condição suficiente paraenfrentar os problemas da exclusão social e dos/astrabalhadores serem submetidos a relações de pro-dução injustas, sendo necessária uma estratégia queviabilize a conversão de todo o modo de produção econsumo para uma economia solidária.2

A análise dos fluxos de valor mostra não apenasque, no processo de produção, as redes de trocasoperam com dois tipos de moedas, a social e a ofi-cial – embora nas trocas circule apenas a moedasocial – como também que é possível se reprodu-zir, com a moeda social, práticas injustas similaresàs existentes no mercado capitalista.3 O fato de a

moeda social circular – em tese – somente dentrodas redes de trocas cria a ilusão de que a riquezanelas produzida se mantém dentro delas, quando,de fato, a maior parte dessa riqueza continua sen-do acumulada por empresários capitalistas, o quese percebe claramente ao se fazer um diagnósticodo conjunto das cadeias produtivas, nas quais asações produtivas integradas por essas redes estãoinseridas como momentos parciais e sob as quais

essas mesmas redes não têm au-tonomia, e de como ocorre a con-centração de capital nos diversossegmentos dessas cadeias produ-tivas sob o controle do capital. Porexemplo. Grande parte da riquezaproduzida pelos empreendimentosque atuam no setor de confecçãono campo da economia solidária éacumulada por fornecedores capi-talistas de tecido e outros insumos,posto que as redes de economia

solidária não têm domínio sobre toda essa cadeiaprodutiva. O ato de confeccionar é apenas um dosmomentos parciais da cadeia produtiva no setor dovestuário. Se por um lado, no interior das redes detrocas, o intercâmbio do produto final é feito com amoeda social, por outro lado, para comprar os insu-mos e outros itens não disponíveis no interior dasredes, mas requeridos para a produção, o inter-câmbio é feito com moeda oficial. Nesse momento,o produtor solidário fica sujeito à lógica do mercadoe o valor econômico por ele despendido na aquisi-ção dos materiais necessários ao novo giro de suaprodução é acumulado pelo fornecedor capitalista,que opera sob a lógica do lucro e não da solidarie-dade. O mesmo ocorre com os outros ramos de

No processo de produçãonas redes de trocas

são utilizadas moedasnão-sociais como única

condição para a obtençãode insumos e de outroselementos demandadosno processo produtivo

que não estãodisponíveis nas redes.

2 Sobre isso veja-se MANCE, Euclides André. A revolução das redes – acolaboração solidária como uma alternativa pós-capitalista à globalizaçãoatual. Petrópolis: Vozes, 1999.3 Veja-se CORAGGIO, José Luis. Las redes de trueque como instituciónde la economia popular. Out. 1998, p. 10 Disponível em: http://www.educ.ar/educar/servlet/Downloads/S_BD_POLITICASOCIAL/

JLC12.PDF onde se lê que a troca no interior da rede também pode serinjusta, pois: “...pode haver intercâmbio desigual (como quando alguémaproveita a extrema necessidade de outro para forçá-lo a aceitar propor-ções não-eqüitativas de intercâmbio, ou ainda por falta de informaçãoadequada a respeito do valor dos bens e serviços intercambiados) oupode esse intercâmbio ser veículo de relações de exploração de classe,gênero ou geracional (nas relações de produção dos produtos intercambi-ados), de valores considerados negativos (droga, prostituição, etc.)”. Re-centemente, a estratégia de trocas mediadas por moedas não-oficiais –mas que também não podem ser consideradas sociais – deu origem a re-des capitalistas entre empresas de grande porte, listadas entre as maio-res do mundo. Duas grandes organizações que atuam desse modo,gerenciando redes de trocas entre multinacionais, são a Argent Atwood ea Tradaq. Veja-se: WILNER, Adriana. O escambo voltou. Carta Capital,Ano VIII, n. 159, p. 50, 3 out. 2001. Pelo menos 100 entre as 500 maioresempresas do mundo participam de alguma rede de troca multirrecíproca.

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produção. Daí a importância das redes remonta-rem solidariamente as cadeias produtivas, isto é,montarem novos empreendimentos que forneçamos insumos demandados pelas redes ou utilizareminsumos alternativos que permitam substituir os for-necedores capitalistas por outros fornecedores quejá operem sob os princípios da economia solidária.

Enfim, não é a adoção de um novo tipo demonetarismo ou a crença nos poderes das moedas– quaisquer que sejam elas – oque permitirá romper com os flu-xos de acumulação de valor queoperam sob a lógica do capitalismo.Cabe avançar na colaboração so-lidária entre distintas redes, possi-bilitando tanto a superação de de-bilidades peculiares às diversaspráticas de economia solidáriaquanto o compartilhamento de ca-racterísticas e procedimentos que nelas contribuí-ram a bons resultados.

POSSIBILIDADES DE SUPERAÇÃO DASLIMITAÇÕES APONTADAS

Pretendemos aqui apontar algumas alternativasque permitam às redes de trocas corrigir seus fluxosreais de valor, organizando empreendimentos produ-tivos que, paulatinamente, reconstruam, sob práticasde economia solidária, as cadeias produtivas dosbens e serviços que elas produzem e consomem. Es-sas alternativas permitirão: a) a poupança de exce-dentes que possam ser reinvestidos coletivamente,mesmo com os prossumidores gastando o que rece-bem pelos produtos e serviços seus que nelas comer-cializam; b) a aquisição de máquinas, equipamentose outros instrumentos de produção, geralmente não-disponibilizados nessas redes de trocas – que pode-rão ser feitos com os créditos dos prossumidores,preservando-se o princípio de que os créditos nãodevem ser cambiados em moedas oficiais.

O modo de alcançar esses objetivos é a rede detrocas organizar uma Bolsa de Negócios, comouma das ferramentas de seu funcionamento, cujopapel é facilitar transações de compra e venda aprazo entre participantes da rede, valendo-se demoeda social.

Suponhamos que uma participante da rede detrocas necessite comprar uma máquina de costuraespecial para acabamentos. Deverá fazê-lo no mer-cado, pois aquele meio de produção não está àvenda na rede de trocas. Suponhamos que ela nãotenha o dinheiro necessário para pagá-la à vista.Terá então de fazer um crediário por um ano, o queelevará bastante o preço final da máquina em ra-zão da taxa de juros cobrada no mercado.

Entretanto, se aquela rede im-plantasse uma Bolsa de Negócios,haveria uma outra alternativa. Acostureira apresentaria na Bolsa asua demanda pela máquina, o va-lor total à vista, as condições e onúmero de parcelas em que fará opagamento; por exemplo, dez par-celas. Outros membros do clube,que dispusessem de alguma pou-

pança em dinheiro e pudessem, assim, adquirir amáquina à vista no mercado, poderiam então fecharum negócio com essa pessoa, estabelecendo umcerto volume de produtos ou serviços – preferencial-mente oferecidos no clube – como forma de recebi-mento das dez parcelas. Na prática, as coisasfuncionariam da seguinte forma. Uma pessoa com-pra a máquina no mercado à vista. Oferece-a noclube de trocas para a pessoa com quem já haviafechado o negócio a ser pago em dez parcelas. Du-rante dez meses o comprador paga mensalmenteas parcelas com os produtos que havia se compro-metido a oferecer (sejam produtos elaborados porele mesmo ou por terceiros, sejam do clube ou defora dele). Vendedor e comprador poderão negociarum valor pela máquina que seja satisfatório paraambos. Por exemplo: se a máquina fosse compradano mercado em prestações, o preço final subiria em30%. Se o poupador deixasse seu dinheiro em umacaderneta bancária, teria 5% em rendimentos. Po-derão estabelecer então que a máquina será vendi-da a prazo no clube de trocas, 20% mais barato doque o seria no mercado a prazo e 10% mais caro doque o seria à vista. Assim, o comprador da máquinaeconomiza 20% e o poupador que financiou a ope-ração recebe 5% a mais do que receberia se dei-xasse o seu dinheiro no banco, alimentando aciranda financeira. Trata-se de um negócio vantajo-

Não é a adoção de umnovo tipo de monetarismoou a crença nos poderes

das moedas o quepermitirá romper com osfluxos de acumulação devalor que operam sob alógica do capitalismo.

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so para ambos e para a rede, que permite incorpo-rar novos meios de produção ao clube de trocas. Arigor, para manter-se o princípio de que não se ne-gocia moeda a juros no interior da rede de trocas, opoupador poderia receber apenas a correção mo-netária referente à inflação do período, sem ne-nhum tipo de ganho por ter financiado essaoperação.

Suponhamos que, na Bolsa de Negócios, umgrupo de produtores se reúnapara comprar insumos em conjun-to. Ao totalizar um grande volume,eles conseguem fazer essa com-pra no mercado com uma signifi-cativa margem de economia. Comisso, uma quantidade menor devalor – gerado no interior da rede– dela escapará. Imaginemosque, em seguida, uma parte delesproponha na Bolsa a realizaçãode um negócio visando montar umempreendimento que produzaaquele insumo. Os poupadores in-teressados em investir nesse em-preendimento poderão negociartal como indicado anteriormente.Nesse caso, o prazo de recebi-mento poderia ser dilatado, porexemplo, para 24 meses. Do mes-mo modo, as parcelas seriam pagas com produtosoferecidos no clube – nesse caso, entre outros, opróprio insumo a ser produzido no empreendimen-to instalado.

Empreendimentos desse tipo podem ser organi-zados visando não apenas produzir insumos e ou-tros materiais de manutenção demandados noprocesso produtivo ou bens de consumo final,como também meios de produção demandados nointerior do conjunto das redes solidárias, ampliandoo seu grau de autopoiese.

No caso dos poupadores, essas operações –quando lhes geram algum excedente – podem serconsideradas como uma espécie de aplicação pré-fixada com resgate parcelado, recebida em produ-tos e serviços. Ou ainda como uma espécie deoperação em mercado futuro, uma vez que estãoantecipadamente comprando produtos que serão

fabricados e recebidos futuramente. Essas opera-ções, que são vantajosas a todos/as, permitem àsredes de trocas remontar progressivamente as ca-deias produtivas, corrigindo os fluxos de valor quedeságüem na acumulação de empresas capitalis-tas. Por sua vez, os excedentes gerados nos empre-endimentos podem ser integralmente investidos naBolsa de Negócios, visando financiar a montagemde outros empreendimentos, incorporar novos mei-

os de produção à rede, à aquisi-ção conjunta de insumos, etc.

No momento em que as redesde trocas passassem a operar des-se modo e volumes muito maioresde riqueza fossem comercializa-dos em seu interior, ainda restariao problema de que o único modoaparente de adquirir bens externosa elas seria com moedas oficiais eque, portanto, seria necessáriotambém incrementar as vendasexternas às redes como forma deobter tais moedas que possam serpoupadas e financiar a sua expan-são. Contudo, tendo em vista queempresas capitalistas também co-meçam a operar em redes de tro-cas com moedas próprias, nadaimpediria que esses empreendi-

mentos solidários participassem taticamente des-sas outras redes capitalistas, permutando seusprodutos e serviços por equipamentos, insumos emeios de produção nelas oferecidos, até que as pró-prias redes de trocas solidárias tenham a capacida-de de produzi-los. O problema não está em permu-tar com empresas capitalistas, mas nos termosdegradados de intercâmbio que desfavoreçam osempreendimentos solidários – pois, do ponto devista da circulação do capital, não há diferença en-tre comprar à vista com dinheiro no mercado oupermutar com mercadorias em uma rede capitalis-ta. Em ambos os casos a questão é o valor que seoferta em relação ao valor do que se recebe e oprazo de conclusão da operação – que acaba imo-bilizando o valor econômico temporariamente nelaaplicado – face a outros processos de sua possívelvalorização nesse período.

Tendo em vista queempresas capitalistastambém começam a

operar em redes de trocascom moedas próprias,

nada impediria que essesempreendimentos

solidários participassemtaticamente dessas outras

redes capitalistas,permutando seus

produtos e serviços porequipamentos, insumos emeios de produção nelas

oferecidos, até que aspróprias redes de trocas

solidárias tenham acapacidade de produzi-los.

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Seja como for, no contexto atual, a maioria dasempresas solidárias que integram redes de trocasnão conseguiria sobreviver vendendo toda sua pro-dução em troca de moedas sociais. Em sua estru-tura de custos há uma série de itens que somentepodem ser cobertos com moedas oficiais. Assim,ou os participantes das redes de trocas aceitariamcomprar uma parte da produção das empresas so-lidárias em moedas oficiais para viabilizar o seugiro produtivo ou essas redes teriam de venderseus produtos nos mercados buscando tal volumede moedas. Novamente aqui, entretanto, o expedi-ente da bolsa de negócios poderia funcionar. Umconjunto de poupadores que tenha moeda oficialpoderia assumir o pagamento mensal das contasda empresa em troca do recebimento de produtosvariados ofertados nas redes com alguma vanta-gem ou não.

Como se vê, todos esses mecanismos permitemresolver algumas das debilidades inerentes às redesde trocas que se valem de moeda social. A práticade outras redes, que usam somente moedas oficiaisem seus processos de comercialização, chega a es-ses resultados com percursos menos complicados.Seja como for, com essas interfaces torna-se possí-vel conectar redes que usam moedas sociais comredes que não as usam (uma vez que empresas so-lidárias que não usam moedas sociais podem ope-rar nessas bolsas de negócios das redes de trocas)e avançar de maneira estratégica em reinvestimen-tos coletivos que permitem remontar as cadeias pro-dutivas e corrigir fluxos de valor, visando realimentaro próprio processo de produção e consumo no interiordas redes solidárias.

REMONTANDO CADEIAS PRODUTIVAS ECORRIGINDO FLUXOS DE VALORES

Quando os excedentes obtidos pelos produto-res e prestadores de serviços com a venda de seusprodutos e serviços nas redes são nelas reinvesti-do para que se gerem mais cooperativas, grupos deprodução e microempresas, criam-se novos postosde trabalho e aumenta-se a oferta solidária de pro-dutos e serviços em seu interior. Isso permite incre-mentar o consumo de todos, ao mesmo tempo emque diminui volume e o número de itens que as redes

ainda compram no mercado capitalista, evitando-se, assim, que a riqueza nelas produzida realimen-te a acumulação capitalista ao girar a produção docapital4 pela aquisição de produtos e serviços capi-talistas no mercado.

Na prática, quando os consumidores realizam oconsumo solidário, consumindo os produtos de umaempresa solidária que não explora os trabalhado-res e protege o meio ambiente, essa empresa ven-de toda a sua produção e gera um excedente que,na lógica capitalista, seria lucro. Entretanto, esseexcedente, na lógica da solidariedade, é reinvesti-do na construção de novas empresas, gerando no-vos postos de trabalho, diversificando a produção emelhorando o padrão de consumo de todos os queparticipam da rede.

Por isso, em uma rede solidária que opera sobessa lógica – paradigma da abundância –, quantomais se reparte a riqueza, mais a riqueza dos parti-cipantes aumenta. Como vimos, o que gera a ri-queza é o trabalho. Com o trabalho são feitos bense serviços para atender às necessidades e desejosdas pessoas. Após a comercialização desses bens,obtém-se um valor excedente. Ora, quanto mais sereparte essa riqueza gerada pelo trabalho, tanto maisas pessoas podem comprar os produtos e serviçosdas redes. E quanto mais elas compram, maisoportunidades de trabalho elas geram para outraspessoas que ainda estão desempregadas. Assim,quanto mais se distribui a riqueza nas redes, maisos seus produtos são consumidos, mais oportuni-dades de trabalho que gera riqueza são criadas eum número maior de pessoas passa a integrar asredes como produtores e consumidores. Trata-sede um circulo virtuoso que integra consumo e pro-dução sob parâmetros ecologicamente sustentá-veis. Uma das melhores maneiras de distribuir essariqueza é criar novos empreendimentos solidários eremunerar mais trabalhadores, produzindo uma di-versidade maior de produtos à disposição do bem-viver de todos.

Assim, conforme a rede vai crescendo ela vai in-tegrando um número cada vez maior de produtores

4 Girar a produção significa converter o valor econômico abstrato em ele-mentos produtivos que, por sua vez, consumidos no processo de produ-ção, serão convertidos em produtos finais, os quais, ao serem comerciali-zados, se convertem novamente em valor econômico abstrato – nestecaso particular, em capital.

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e vai remontando de maneira progressiva e solidáriaas partes das cadeias produtivas sobre as quais elaainda não tem autonomia. Por exemplo: se um gru-po produz macarrão, ele precisa comprar ovos e fa-rinha. Pode ocorrer que na rede não haja produtoresdesses bens e que esse grupo tenha que compraresses insumos no mercado capitalista. Entretanto,assim que for possível montar uma nova cooperati-va ou microempresa, será dado preferência a mon-tar-se uma granja ou moinho paraproduzir-se os ovos ou a farinha detrigo que são usados para fazer omacarrão. Depois organiza-se aprodução de milho para fazer ra-ção e alimentar as galinhas. E as-sim sucessivamente, progressiva etendencialmente, vão sendo com-pletadas as cadeias produtivas.Desse modo, o lucro que os capita-listas acumulavam nas diversasetapas das cadeias produtivaspassa, agora, a financiar o surgi-mento de outras cooperativas oumicroempresas em favor do bem-viver de todos e não apenas do enriquecimento dealguns. Com isso, progressivamente, essas redesvão substituindo as relações de produção, comerci-alização e consumo de tipo capitalista e vão criandomelhores condições para o exercício das liberdadespúblicas e privadas de todos/as.

Que ninguém, entretanto, se confunda com asimplicidade dos exemplos didaticamente escolhi-dos neste texto. As redes de economia solidáriaintegram empresas que faturam anualmente mi-

lhões de dólares e que cobrem inúmeros setoresdas cadeias produtivas. A construção de interfa-ces que permitam conectar as diversas práticasde economia solidária em redes de colaboraçãoavança rapidamente. O incremento dos fluxos deinformação, valores, produtos e serviços entreelas, acompanhado de uma difusão maciça doconsumo solidário – condição fundamental para osucesso da economia solidária – possui um poten-

cial de engendrar um forte movi-mento sinérgico de transforma-ção estrutural da economia glo-bal que, considerado também emsuas dimensões políticas e cultu-rais, podemos corretamente de-nominar revolução das redes.

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

CORAGGIO, José Luis. Las redes detrueque como institución de la economiapopular. Out. 1998, p. 10. Disponívelem:<http://www.educ.ar/educar/servlet/

Downloads/S_BD_ POLITICASOCIAL/JLC12.PDF>.

MANCE, Euclides André. A revolução das redes — a colabora-ção solidária como uma alternativa pós-capitalista à globalizaçãoatual. Petrópolis: Vozes, 1999.

______. Euclides André. Algumas considerações sobre redes detrocas. In: _______. Redes de colaboração solidária — aspectoseconômico-filosóficos: complexidade e libertação. Petrópolis:Vozes. (no prelo).

WILNER, Adriana. O escambo voltou. Carta Capital, v. 8, n. 159,p. 50, 3 out. 2001.

As redes de economiasolidária integram

empresas que faturamanualmente milhões dedólares e que cobreminúmeros setores dascadeias produtivas.

A construção de interfacesque permitam conectar as

diversas práticas deeconomia solidária emredes de colaboraçãoavança rapidamente.

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Resumo

No presente artigo faz-se uma breve descrição do chamadomicrocrédito e do modo como esse se efetiva na Bahia, mostran-do-se, especificamente, o funcionamento do Programa de Micro-crédito do Estado da Bahia (CREDIBAHIA), sua estrutura eformas de atuação nos municípios.

Palavras-chave: microcrédito, microempreendedores, funding,financiamento, município.

Em 1974, Mohamed Yunus, professor universi-tário de Bangladesh,1 tomou conhecimento, me-

diante trabalho de campo realizado por seus alu-nos, que a maioria dos habitantes da pequena al-deia de Jobra vivia de maneira subhumana, ou seja,ganhava, pela atividade que exercia, menos de US$1por dia. Muitas famílias da aldeia trabalhavam porconta própria – artesãos, marceneiros, artífices – esuas atividades requeriam matérias-primas e, con-sequentemente, dinheiro para adquiri-las. Como nãodispunham de recursos, recorriam aos agiotas lo-cais,2 pagando taxas de 20% a 25% ao dia. Parecialógico para Yunus que o problema poderia ser re-solvido se ele pudesse atrair a atenção de um ban-co e o estimulasse a conceder crédito, a taxas me-nores, à população de baixa renda. Porém, depoisde muito procurar, chegou à conclusão que essaclientela não interessava aos bancos de Bangladesh,que se justificavam dizendo que as pessoas não ti-

nham garantias a oferecer e que o crédito com valo-res pequenos era oneroso, não cobrindo o custooperacional da instituição (YUNUS, 2000)

Yunus não desistiu: mapeou as famílias que to-mavam empréstimos na aldeia, verificando que asnecessidades de 42 famílias podiam ser atendidascom US$ 27. Apesar das severas leis muçulmanas,que proíbem a cobrança de juros e reservam aohomem as decisões familiares, ele resolveu que fa-ria os empréstimos3 a essas famílias, com recursospróprios, de forma associativa e solidária, e que,preferencialmente, negociaria com as mulheres . Éclaro que isso causou grande reboliço na aldeia,tanto por parte dos maridos, que não se conforma-vam em perder o lugar de cabeça-do-casal, comopor parte dos agiotas, que estavam perdendo omercado. Mas Yunus não se abateu e continuoutentando até conseguir seu objetivo. Estava lançadaa pedra fundamental do Grameen Bank, e os seusU$ 27 iniciais transformaram-se em mais de U$ 349milhões em ativos.4

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* Caio Márcio Ferreira Greve é mestrando em Administração Pública (Uni-versidade Federal da Bahia - UFBA), Diretor de Desenvolvimento de Ne-gócios da Agência de Fomento do Estado da Bahia (Desenbahia).1 Pequeno país da Ásia, de população predominantemente muçulmana.2 Na maioria das vezes, os grandes comerciantes de matéria-prima.

Abstract

This article draws a brief description of the so-calledmicro-credit and the way it is in effect in Bahia, showing speci-fically the workings of the Micro-credit Program of the State ofBahia (CREDIBAHIA), its structure and its operation in thetowns.

Key-words: micro-credit, micro-entrepreneurs, funding, finan-cing, town.

3 Esses empréstimos foram feitos com a cobrança de juros de 20% ao ano.4 Conforme seu último balanço, divulgado no ano 2000 (YUNUS, 2000)

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Hoje, a idéia do Grameen encontra-se dissemi-nada em vários países, conhecida comomicrocrédito,5 tendo-se tornado uma solução factívele real de combate à pobreza e de inclusão social(YUNUS, 2000) Além disso, inclui a prática da soli-dariedade e da consciência comunitária, já que oagente de crédito6 atua como conselheiro, consul-tor, educador e fiscal. Na maioria das vezes esseagente pertence à comunidade, e isso facilita o seutrabalho na seleção dos microem-preendedores e na formação dosgrupos solidários.7 Esse é um ou-tro diferencial em relação aos ban-cos tradicionais, pois o agente decrédito vai até os clientes.

MICROCRÉDITO NO BRASIL

As primeiras experiências commicrocrédito no Brasil foram realizadas no final dosanos 70, por Organizações Não-Governamentais(ONGs), podendo-se registrar como pioneiras a redeCentro de Apoio aos Pequenos Empreendedores(CEAPE) e o Banco da Mulher. Naquela época, nãohavia regulamentação para a atividade e esse eraum dos fatores a que se atribuía o fraco desempe-nho dessa modalidade de crédito no país: sem re-conhecimento legal, as ONGs ficavam no mesmopatamar dos agiotas, ou seja, na ilegalidade. Afinal,com a Resolução 2.627, de 2 de agosto de 1999, oBanco Central (BACEN) regulamentou o microcré-dito no Brasil, permitindo que as Organizações daSociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e asSociedades de Crédito aos Microempreededores(SCMs) pudessem operar com crédito, cobrandotaxas maiores que 12% a.a. Cabe esclarecer quepara qualquer entidade de microcrédito continuar aexistir ela tem que levar em conta que seus custosdevem ser cobertos e que sua única fonte de recei-ta é a cobrança de juros. Imaginar que se possa

fazer caridade com o microcrédito é um erro grave,sobretudo porque o pobre, aquele sem acesso aosbancos, não precisa de caridade, mas de acesso aum crédito que lhe seja viável. A um crédito que lhepermita obter capital para o seu pequeno negócio,que lhe permita pagar suas prestações ao final doprazo e que lhe proporcione condições para obterum novo crédito para continuar crescendo. Assim,os juros cobrados pelas instituições dependem di-

retamente dos seus custos e dainadimplência de seus clientes.

MICROCRÉDITO NA BAHIA

Na Bahia o cenário não é dife-rente do resto do Brasil: algumasagências de microcrédito já se en-contram em atuação,8 mas a mai-oria do público-alvo ainda não é

atendida. Necessidade de funding, capacitação deagentes de crédito e gerentes, além dos custos fi-xos altos, são as principais dificuldades dessas en-tidades, que, nesses anos de prática, sempreenfrentaram uma concorrência direta de financeirase factorings, que atuam de maneira direta ou indire-ta no crédito ao consumidor.

CREDIBAHIA

É dessa forma que surge a idéia do Programade Microcrédito do Estado da Bahia (CREDIBAHIA),que conta com a participação da Desenbahia, daSecretaria do Trabalho e Ação Social (SETRAS),Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia(SEPLANTEC), Secretaria da Fazenda (SEFAZ),Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração(SICM), Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Em-presas da Bahia (SEBRAE/BA) e também das pre-feituras municipais onde o programa for implanta-do. O CREDIBAHIA nasce com o intuito defomentar os microempreendedores do Estado, se-jam eles formais ou informais,9 que não têm aces-so ao crédito bancário, e, conseqüentemente, de

Para qualquer entidadede microcrédito continuar

a existir ela tem quelevar em conta que seus

custos devem sercobertos e que sua única

fonte de receita é acobrança de juros.

5 Microcrédito não é crédito pequeno, e sim crédito para os pequenos.6 O agente de crédito é peça fundamental dessa engrenagem, pois a eleé delegado o poder de selecionar, acompanhar e fiscalizar o microempre-endedor.7 Entende-se como solidária, no concernente ao crédito, a relação entregrupos de cinco a dez pessoas de uma mesma comunidade, que garan-tem uns aos outros os seus débitos perante a organização que pratica omicrocrédito.

8 As principais são: Banco da Mulher, Visão Mundial, CEAPE, CEADE,Credisul. Além dessas, o BNB com o CREDIAMIGO e a CEF, em Salva-dor, completam a rede em pauta.9 Ambulantes, artífices e pequenos negócios.

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contribuir para melhorar o padrão de vida da popu-lação, através de duas linhas de atuação: a pri-meira consiste na concessão de financiamento demaneira direta aos microempreendedores; a segun-da, através de funding para as agências demicrocrédito que já atuam no Estado (D.O. Decre-to 8.241 de 30/04/2002).

CRÉDITO DIRETO AO MICROEMPREENDEDOR

Na primeira linha, o CREDI-BAHIA atuará nos municípios se-lecionados pelo Governo do Esta-do,10 nos postos da SETRAS e emparceria com a Prefeitura. Omicroempreendedor será visitadopelo agente de crédito do progra-ma,11 que, após uma análise doseu negócio e da viabilidade domesmo, preencherá uma propos-ta a ser enviada ao comitê de cré-dito.12 A proposta sendo aprova-da, o valor é liberado através deum banco conveniado, por meiode uma ordem de pagamento. Nomesmo instante o microempreendedor receberá osboletos de cobrança, que serão pagos diretamen-te em qualquer instituição bancária. Observe-seque, desde o primeiro contato, os conceitos doCREDIBAHIA são passados ao cliente, para quefique bem claro que:• trata-se de um empréstimo e, portanto, precisa

ser pago (conceito de responsabilidade);• cada vez que se paga uma prestação disponibi-

lizam-se mais recursos para o programa e maispessoas podem ter acesso ao CREDIBAHIA(conceito de solidariedade);

• após o pagamento da última prestação pode-seter acesso ao novo crédito num valor um poucomaior (conceito de continuidade);

• faz-se parte de um grupo de pessoas da comu-nidade e, para que o grupo tenha sucesso, nãobasta o seu sucesso individual (conceito de co-munidade).

Assim, pode-se perceber a importância do agen-te de crédito, que, além de fazer tudo o que é precisopara concedê-lo, ficará também responsável peloacompanhamento e cobrança dos inadimplentes. Efe-

tivamente, se sua carteira de clien-tes não vai bem,13 o agente nãopode conceder novos créditos. Paraisso foi criado pela Desenbahia umsoftware que controlará cada ope-ração efetuada: à medida que acarteira ativa de clientes do agentede crédito atinja um determinado li-mite máximo de inadimplência, au-tomaticamente será bloqueada.Nesse caso, o agente só poderávoltar a conceder crédito quandoseus clientes saldarem seus débi-tos, reduzindo o seu percentual deinadimplência.

CRÉDITO ATRAVÉS DAS AGÊNCIAS DEMICROCRÉDITO

Outra forma de atuação do Programa será oapoio às entidades que já fazem microcrédito no Es-tado da Bahia, através de uma linha de crédito vi-sando à expansão do público atingido. Sua finalidadeé financiar instituições de microcrédito, buscando ofortalecimento e a ampliação de uma rede de agên-cias capaz de propiciar crédito aos microempreen-dedores.

Os beneficiários são Organizações Não-Governa-mentais (ONGs), Organizações da Sociedade Civilde Interesse Público (OSCIPs) e Sociedades de Cré-dito ao Microempreendedor (SCMs) atuantes noEstado da Bahia há mais de seis meses. Essa linhaserá operada diretamente pela Desenbahia e, comisso, o CREDIBAHIA poderá aumentar a sua partici-pação em outros municípios mais rapidamente, atra-vés do trabalho desenvolvido por essas instituições.

Pode-se percebera importância do agente

de crédito, que, alémde fazer tudo o que

é preciso paraconcedê-lo, ficará

também responsávelpelo acompanhamento

e cobrança dosinadimplentes.

Efetivamente, se suacarteira de clientes não vai

bem, o agente não podeconceder novos créditos.

10 Os municípios onde serão implantadas as primeiras agências foramselecionados pelas Secretarias de Estado participantes do programa:Lauro de Freitas, Feira de Santana, Ilhéus, Jacobina, Valente, Lajedo doTabocal e Pojuca.11 O agente de crédito do CREDIBAHIA geralmente é selecionado nopróprio município.12 O comitê de crédito se reunirá uma vez por semana, e será formadopelos agentes de crédito, o gerente da agência de Microcrédito, além defuncionários da SETRAS, e representantes da comunidade.

13 Isto é, quando a inadimplência dos seus clientes atinge um patamarpré-estabelecido pelo Programa.

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Os recursos do financiamento deverão ser utili-zados na concessão de microcrédito. O limite paracada instituição beneficiária é de metade do valorde sua carteira ativa, comprovada, à época da soli-citação do financiamento.

CONCLUSÃO

O primeiro município a participar do CREDIBAHIA,na modalidade de crédito direto ao microempreen-dedor, será o de Lauro de Freitas.14 Sua agência co-meçou a funcionar no dia 2 de maio de 2002, no SAClocalizado no Shopping Litoral Norte. Com isso, es-pera-se estar contribuindo para o combate às desi-gualdades sociais, com a oferta de crédito produtivo

a quem dele precisa e não consegue obtê-lo atravésdo sistema bancário. As primeiras propostas de agên-cias de microcrédito que já operam na Bahia estãosendo analisadas e espera-se que até o final do pri-meiro semestre de 2002 sejam iniciadas as primei-ras parcerias. Temos certeza de que o pobre não pre-cisa de caridade e sim de oportunidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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YUNUS, Muhammad. O banqueiro dos pobres. São Paulo:Ática, 2000.14 Até o final de 2002 serão sete os municípios atendidos.

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Resumo

Descreve-se, neste artigo, o processo de gestação doBanSol, uma iniciativa em finanças solidárias que articula profes-sores e estudantes de três universidades baianas no apoio técni-co e financeiro a cooperativas populares. São considerados ocaráter participativo do método adotado e os conceitos desenvol-vidos na construção do projeto, que resultou premiado em concur-so nacional. São aqui ressaltados os objetivos da empreitada, opúblico-alvo, a natureza universitária da proposta, envolvendoensino, pesquisa e extensão. Além de apresentar os aspectosoperacionais, procura-se estabelecer os parâmetros teóricos es-senciais do campo das finanças solidárias, como subárea daeconomia solidária.

Palavras-chave: finanças solidárias; economia solidária; coope-rativas populares; microcrédito; universidade.

Abstract

We describe the development process of BanSol, aninitiative in solidary finances which connects professors andstudents from three universities in Bahia for technical andfinancial support to popular cooperatives. The participative cha-racter of the adopted method and the concepts developed in theconstruction of the project are considered, and resulted in theproject being nationally awarded. We do emphasise here theobjectives of the effort, the target public, and the university natureof the proposal, involving teaching, research and extension. Inaddition to presenting the operational aspects, we aim at esta-blishing the theoretical parameters which are essential in the fieldof solidary finances as a sub-area of solidary economy.

Key-words: solidary finances; solidary economy; popular coope-ratives; microcredit; university.

Este texto tem como objetivo registrar osurgimento de uma experiência de finanças

solidárias que, embora embrionária, merece serdestacada por suas peculiaridades diante de ou-tras experiências do gênero.

A Associação de Finanças Solidárias (BanSol)surgiu e está sendo construída a partir da Escolade Administração da Universidade Federal daBahia (UFBA), em parceria com outras duas insti-tuições universitárias, uma pública e estadual – aUniversidade do Estado da Bahia (UNEB), atravésda Incubadora Tecnológica de Cooperativas Po-pulares (ITCP) – e a outra, uma instituição priva-da, a Universidade Salvador (Unifacs).

A constituição do Ecosol-Bahia, grupo de estudossobre Economia Solidária integrado por professoresda UFBA e Unifacs, com o objetivo de estimular o de-senvolvimento dessa área de conhecimento no Esta-do, criou um campo propício ao aparecimento doBanSol. Não se trata, evidentemente, de um bancono sentido estrito do termo ou mesmo de uma insti-tuição de microcrédito nas modalidades previstaspela legislação federal, mas de uma organizaçãocom características inovadoras.

Embora faltasse experiência sobre iniciativasem finanças solidárias aos participantes do proces-so – professores, estudantes e outros profissionais– o BanSol evoluiu de uma idéia simples até umaproposta razoavelmente elaborada e estruturada.

Este texto tem, assim, um duplo propósito: rela-tar os procedimentos que envolveram a criação e

* Nilton Vasconcelos é professor da Escola de Administração da UFBA(2001-2002) e membro do BanSol. [email protected]

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construção do BanSol, sem o que se torna difícilcompreender a extensão da proposta, e destacar,ainda, os conceitos básicos que a sustentam, aju-dando a esclarecer a especificidade da experiência.

Como poderá ser observado, apesar da suaprecocidade e falta de dados relativos a aspectosfundamentais dos seus objetivos finais, o BanSol jáproduziu resultados parciais satisfatórios, e justificao presente artigo.

Antes, porém, de tratarmos es-pecificamente da iniciativa, faremosuma breve abordagem sobre as fi-nanças solidárias como campo es-pecífico da Economia Solidária.

FINANÇAS SOLIDÁRIAS

Singer (2002) retoma as ori-gens das práticas de ajuda mútuaentre parentes e amigos para as-sociar finança e confiança. O em-préstimo de bens e dinheiro surgecomo atitude de reciprocidade en-tre aqueles que enfrentam neces-sidades periódicas. Entretanto, ocrescente domínio das instituiçõesfinanceiras sobre esse campo tornou o crédito cadavez mais caro e de acesso restrito, estimulando,com o agravamento da crise econômica, a retoma-da de práticas solidárias.

França (2001), ao discutir novos arranjos orga-nizacionais possíveis, nos marcos da EconomiaSolidária, analisa uma tipologia originária da expe-riência francesa, reunindo quatro universos, entreos quais o da “finança solidária”. Destaca aindaque esse conceito engloba iniciativas com diferen-tes denominações, como microcrédito, poupançasolidária, microfinança, finança de proximidade,que, de um modo ou de outro, “participam de umoutro tipo de relação com o dinheiro”. Ou seja, deuma relação que foge das características do mer-cado financeiro, por democratizar o acesso ao cré-dito para aqueles que buscam viabilizar empreen-dimentos ligados à ocupação e geração de rendapara os seus integrantes. Mas, além disso, ressaltaFrança (2001), há uma preocupação com a utilida-de social do investimento:

Portanto, a idéia de facilitar o acesso ao créditoestá intimamente ligada às finalidades, enfim, àdestinação dos recursos, devendo-se observar ocaráter ético e social do empreendimento apoiado.

O fornecimento de crédito apopulações economicamente ca-rentes para geração de ocupaçãoe renda tem na experiência doGrameen Bank de Bangladeshuma referência essencial. O su-cesso daquela iniciativa, que en-volve, atualmente, mais de 2,3 mi-lhões de mutuários, chamou aatenção de todo o mundo e fezmultiplicar outros bancos e asso-ciações de crédito cooperativo denatureza semelhante. Há 25 anos,o professor universitário Muham-mad Yunus, idealizador da propos-ta, deu início à experiência que vi-ria a resultar no Grameen Bank,com 42 empréstimos de 27 dóla-

res, um valor irrisório mas de grande impacto paragente muito pobre.

Na América Latina, o Bancosol da Bolívia é, pro-vavelmente, o mais bem-sucedido exemplo de for-necimento de microcrédito com grande impacto eco-nômico sobre a renda dos tomadores de emprésti-mo, muito embora sua relação com as instituiçõesfinanceiras tradicionais configurem uma tipologia di-ferenciada daquela iniciada em Bangladesh. O cres-cimento desse campo deu margem à denominada“indústria do microcrédito”, sujeita a uma série deproblemas típicos desse mercado. As grandes insti-tuições financeiras vêem, assim, um segmento demercado com grande potencial, mas ao qual nãotêm tido acesso, o que poderia se viabilizar atravésde acordos com organizações não-governamentais.

Desse modo, os bancos centrais de diversos paí-ses começam a estabelecer regras sobre o funciona-mento desses empreendimentos, restringindo o seunúmero e ampliando a regulação sobre a atividade,

O empréstimo de bens edinheiro surge como

atitude de reciprocidadeentre aqueles que

enfrentam necessidadesperiódicas. Entretanto, ocrescente domínio dasinstituições financeiras

sobre esse campo tornouo crédito cada vez mais

caro e de acesso restrito,estimulando, com o

agravamento da criseeconômica, a retomada de

práticas solidárias.

Trata-se assim, com estas experiências, de afirmação deuma finalidade de aplicação ética do dinheiro na direção da-queles projetos, articulando, por exemplo um trabalho deluta contra a exclusão, de preservação ambiental, de açãocultural, de desenvolvimento local, etc. (FRANÇA, 2001:131)

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em função das dificuldades operacionais em realizara fiscalização do setor (PASSOS e outros, 2002).

No Brasil, em 2001, segundo pesquisa do InstitutoBrasileiro de Administração Municipal, existiam 110instituições de microfinanças em atuação (IBAM,2001). Entre essas podemos destacar algumas,correspondentes a variados modelos de forneci-mento de microcrédito: Instituição Comunitária deCrédito PORTOSOL, Centros de Apoio aos Peque-nos Empreendimentos (rede Ceape), Banco da Mu-lher, diversos Bancos do Povo ligados a governosestaduais e municipais, Banco do Nordeste. Boaparte delas são iniciativas estatais ou contam comparticipação de governos municipais e estaduais;outras tantas se viabilizam a partir de associaçõescom o sistema financeiro privado ou repasses derecursos federais destinados ao microcrédito. NaBahia, estão presentes: Banco da Mulher, Ceape,Centro Ecumênico de Apoio ao Desenvolvimento(Ceade), Visão Mundial, Instituição Comunitária deCrédito Conquista Solidária.

Entre as experiências brasileiras não-governa-mentais, uma merece destaque: trata-se do Bancode Palmas, em Fortaleza, por se vincular a uma lógi-ca de desenvolvimento local associando a finançaao comércio justo e a outras práticas solidárias.

Em geral, entretanto, a vinculação à lógica con-vencional de mercado, de remuneração do dinheiroe de resposta aos custos operacionais, tem deter-minado a prática de taxas elevadas de juros, enca-recendo o crédito acima, inclusive das taxas médi-as, tornando alto o custo do dinheiro para quemmais precisa dele para sobreviver.

O BanSol nasce com a perspectiva de articulara atividade acadêmica de ensino, pesquisa e ex-tensão ao microcrédito, para empreendimentos so-lidários, desenvolvendo conceitos e instrumentosde gestão social.

O BANSOL

Para atender aos objetivos específicos deste arti-go, de descrever os procedimentos adotados naconstrução do BanSol e apresentar os conceitos de-senvolvidos, far-se-á um relato cronológico abran-gendo a primeira fase, de construção conceitual daexperiência.

A idéia de organizar um banco solidário, ouseja, uma instituição que fornecesse crédito bara-to para empreendimentos solidários surgiu comum objetivo bem determinado: participar-se de umconcurso tendo em vista o Prêmio Fenead, organi-zado, anualmente, por uma entidade denominadaFederação Nacional dos Estudantes de Adminis-tração. O regimento do concurso estabelecia crité-rios específicos para a participação de estudantese professores nos projetos, bem como a explicita-ção de objetivos, indicação de viabilidade econô-mica, tipo de participação comunitária, entre ou-tros. A proposta básica consistia em transformar ovalor monetário da premiação – que poderia che-gar a até R$ 20.000,00 (vinte mil reais) – em re-curso financeiro a ser emprestado a empreendi-mentos solidários.

A essa época, um grupo de professores daEscola de Administração da UFBA e do Mestradode Análise Regional da Unifacs ministrava umadisciplina em curso de especialização, articulan-do modelos participativos em ação comunitária eos conceitos de Economia Solidária. O contatocom essa temática e com organizações popula-res que buscavam desenvolver atividades econô-micas, especialmente na forma de cooperativas,possibilitou a identificação da imensa dificuldadepor elas enfrentadas, exatamente por não teremacesso aos recursos necessários à realizaçãodos investimentos.

Rapidamente, a idéia conquistou inúmerosadeptos entre professores, estudantes e profissio-nais de alguma forma ligados à EAUFBA. A Incuba-dora Tecnológica de Cooperativas Populares daUneb,1 por sua atuação no apoio a várias iniciativaseconômicas de grupos de moradores de bairrospopulares, na capital e no interior do estado, tam-bém logo se interessou em integrar o projeto quecomeçava.

1 A ITCP/UNEB tem como objetivo a criação de oportunidades de trabalhoe renda através da estruturação de cooperativas populares. A idéia de fo-mentar a criação de cooperativas populares a partir das Universidadessurgiu com a experiência desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz(FIOCRUZ) em 1994. O Programa Nacional de Incubadoras Tecnológicasde Cooperativas Populares (PRONINC), lançado em maio de 1998, noRio de Janeiro, pela COPPE/UFRJ, FINEP, FBB, Banco do Brasil, COEPe Programa Comunidade Solidária, teve o objetivo de estender essa ex-periência a outras universidades brasileiras, sendo a Uneb uma das pri-meiras selecionadas para dar continuidade à experiência

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Método participativo

Um primeiro registro importante a fazer é sobreo processo de elaboração da proposta. Optou-sepor não estabelecer limites quanto ao número departicipantes da equipe, esforçando-se os idealiza-dores para estimular novas adesões. Em poucomais de uma semana, estava-se então em julho de2001, realizou-se a primeira reunião em uma dassalas da Eaufba. Muitas mais seriam realizadas nocurso do semestre, pelo menos uma vez por sema-na, até que se elaborasse coletivamente a propos-ta, enfim apresentada ao concurso.

Não se poderia dizer que se tratava de reuniõesconvencionais. No início, sob a coordenação deuma das professoras e, posteriormente, por quemse habilitasse, as reuniões começavam ao som demúsicas indígenas, cantigas de roda ou sons colhi-dos da natureza. Sempre em círculo, de mãos da-das ou abraçados, o grupo cantava e dançava, deinício descompassadamente e, aos poucos nummesmo ritmo. Constrangimentos não faltaram, es-pecialmente entre aqueles que não eram acostu-mados com esse tipo de dinâmica de grupo. Efeti-vamente, tal procedimento contribuiu para reforçaros laços de amizade, confiança e solidariedade. Aprática foi abandonada posteriormente, sem que seavaliassem os motivos, embora esses possam sercompreendidos no contexto da nova configuraçãoassumida numa segunda etapa dos trabalhos, con-forme será esclarecido um pouco mais adianteneste texto.

A essa breve abertura lúdica, seguiam-se deba-tes, orientados por uma intervenção estruturada,sobre Economia Solidária ou sobre experiências demicrocrédito. Sempre em círculo, a reunião trans-corria de modo a estimular a intervenção dos pre-sentes, justamente para reduzir o desnível de infor-mação entre os participantes. Contudo, o caráterinovador da proposta encorajava todos a ofereceras suas contribuições. O encontro semanal dedi-cava a maior parte do tempo, entretanto, à formu-lação do projeto em discussão de grupos e emplenária.

Motivados pela oportunidade de realizar umaexperiência com a comunidade ou de observar aspossibilidades de trabalho com a Economia Solidá-

ria, o grupo envolvido conseguiu mobilizar seis pro-fessores, além de técnicos e dezenas de estudantes.Vinte a trinta pessoas participavam dos encontrossemanais.

Aos poucos passaram a realizar-se reuniões ex-traordinárias de grupos encarregados de apresen-tar propostas sobre partes do projeto. Desde oinício, no entanto, a criação de uma lista de discus-são na internet – que logo alcançou cinqüenta ins-crições – possibilitou um clima de assembléia geralpermanente, visto que consultas, proposições, tex-tos diversos, passaram a circular com grande fre-qüência. Com a distribuição das atas das reuniõespela lista de discussão tornou-se fácil acompanharo andamento dos trabalhos, ainda que não se pu-desse comparecer a todos os encontros.

As atribuições de coordenar as reuniões e ela-borar as atas eram distribuídas, de preferência, emsistema de rodízio, mas também pelo critério dovoluntariado, ou seja, aqueles que se dispunhampara a tarefa deveriam se manifestar. Quanto àsdecisões, essas deveriam ser consensuais para asquestões mais relevantes, de modo a permitir oexercício do convencimento ou, quase sempre, dabusca de uma solução alternativa.

Em linhas gerais, esses procedimentos sãomantidos até hoje, com pequenas alterações.

Quais finanças?

Um Manifesto, elaborado em agosto de 2001,para difundir os princípios que norteavam a propos-ta do BanSol referia-se ao compromisso com apossibilidade de desenvolver uma “alternativa àsconcepções neoliberais de mercado”, empreen-dendo-se uma prática solidária (veja-se, no box, aíntegra do Manifesto do BanSol). Tratava-se, inicial-mente de apontar as diferenças básicas entre o quese pretendia construir e as demais organizações defornecimento de microcrédito. De uma forma geral,aquelas instituições repassavam recursos disponi-bilizados por agências nacionais e internacionais ese orientavam por lógicas típicas de mercado, oque tornava o dinheiro excessivamente caro paraos empreendimentos populares. Os custos operaci-onais para o fornecimento do crédito aos pequenosempreendedores eram maiores do que naquelas

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operações voltadas para uma empresa de maiorporte, o que se constitui em um contra-senso.

Começava-se, assim, a delimitar os contornosessenciais do BanSol: 1) o custo operacional nãodeveria ser repassado aos empreendimentos apoi-ados; 2) não se constituía objetivo do BanSol a ob-tenção de lucro; 3) as relações entre o BanSol e asorganizações apoiadas deveriam ter caráter essen-cialmente solidário.

Como decorrência desses ob-jetivos básicos, as atividades doBanSol deveriam se basear so-bretudo em trabalho voluntário, demodo a limitar os custos operacio-nais, que seriam ainda minimiza-dos pela utilização de instalaçõesda Universidade para a realizaçãode reuniões e contatos. Custosadicionais deveriam ser providosmediante a captação de recursosem outras fontes, desonerando osempreendimentos apoiados.

O caráter não-lucrativo e soli-dário da iniciativa resultou na for-mulação do conceito de Taxa deRetribuição Solidária, devida pelaorganização recebedora do crédi-to, adicionalmente ao recursotransferido na forma de emprésti-mo. A referida Taxa deveria tão-somente incluir acorreção monetária e gastos tributários com a mo-vimentação financeira, sem juros, sendo consideradoesse adicional ao valor emprestado uma retribui-ção solidária, de forma a tornar o recurso, posteri-ormente, disponível para outras instituições.

O Fundo Solidário – o recurso a ser disponibili-zado às entidades apoiadas – seria composto pelorecurso a ser obtido com a premiação mas, tam-bém, por meio de outras iniciativas. Dessa forma,aos poucos, a idéia do Banco Solidário vem-se fir-mando, bem como a possibilidade concreta de via-bilizar-se independentemente do almejado recursoda premiação.

A necessidade de definir o público-alvo do BanSollevou à noção de “empreendimentos coletivos soli-dários”, ou seja, cooperativas populares ou outrasformas de associação que envolvam pessoas de

baixa renda em torno de atividades econômicas quelhes garantam uma ocupação e rendimento. Assim,por opção, o crédito não seria fornecido a indivíduosisoladamente.

Todo o processo decisório para chegar a esseformato, deve-se reafirmar, teve ampla participaçãodos professores e alunos das já citadas universida-des, além daquela de profissionais que aderiram àproposta. Havia, contudo, aspectos fundamentais a

serem equacionados, entre osquais os relacionados à própriainstituição universitária, ou seja,as atividades de ensino, pesquisae extensão. Outra importante ques-tão decorria da necessidade decriação de mecanismo de estímu-los à participação.

Assim, procurou-se uma solu-ção articulada. A experiência doBanSol seria integrada às ativida-des de Extensão da UFBA, trans-formando-se em uma disciplinaoptativa, dentro do programa deAtividade Curricular em Comunida-de (ACC), que reúne, em toda aUniversidade, 500 estudantes nosmais diversos projetos deintegração com a sociedade. OColegiado do Curso de Administra-

ção da UFBA também reconheceu aos estudantes apossibilidade de converter em créditos a participa-ção no BanSol, a título de estágio supervisionado.

Essa articulação permitiu ampliar o foco do pro-jeto, de modo a associar o fornecimento de recur-sos financeiros ao apoio técnico a empreendimen-tos coletivos solidários. Caberia ao BanSol, emcolaboração com a Incubadora Tecnológica de Coo-perativas Populares (ITCP/UNEB), formatar propos-tas de financiamento, apontando sugestões com vis-tas à viabilidade econômica e administrativa dosempreendimentos. Outras organizações vinculadasà EAUFBA, como a Empresa Júnior, Aisec, secionallocal da Association Internationale des Etudiants enSciences Economiques et Commerciales (AIESEC),de intercâmbio internacional de estudantes, e oDiretório Acadêmico se comprometeram a partici-par de variadas formas.

As atividades do BanSoldeveriam se basear

sobretudo em trabalhovoluntário, de modo a

limitar os custosoperacionais, que seriamainda minimizados pelautilização de instalaçõesda Universidade para arealização de reuniões

e contatos. Custosadicionais deveriam

ser providos mediantea captação de recursos

em outras fontes,desonerando os

empreendimentosapoiados.

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A atividade do BanSol foi planejada de modo aassociar-se às atividades de pesquisa do Núcleo dePós-Graduação em Administração (NPGA/EAUFBA),especialmente ao Núcleo de Estudos sobre Podere Organizações Locais (Nepol). Nesse particular,estabeleceu-se como um dos objetivos adicionaisdo BanSol o desenvolvimento de conhecimentosespecíficos de “gestão de empreendimentos soci-ais”, cujas características em muito se diferenciamdos segmentos público e privadoe à qual a literatura do campo daadministração não se dedica aanalisar.

A estrutura do Projeto

Em meados de setembro, oprojeto BanSol já estava concluí-do para efeito da candidatura aoPrêmio. Além da concepção geraldo modelo de finanças solidárias,também foi definida a forma deaplicação do recurso financeiro aolongo de um ano, apresentando-se evidências da sustentabilidadedo processo, ou seja, de que osprogramas apoiados permanece-riam após esse período inicial. As-sim, foram escolhidas entre ascooperativas populares com asquais mantínhamos contato,aquelas que participariam dessaexperiência.

A seleção de três cooperativasteve como critério básico o fato de que todas elasvinham sendo acompanhadas pela ITCP/UNEB oupelo Mestrado de Administração Regional daUnifacs. Tratava-se de empreendimentos com dis-tintos graus de desenvolvimento, conforme pode-mos verificar a seguir:• Cooperativa Múltipla Fontes de Engomadeira

(COOFE) – incubada da ITCP, é composta emsua quase totalidade por moradores do bairro deEngomadeira, situado na vizinhança da UNEB.Grande parte da população desenvolve ocupa-ções no mercado informal de trabalho e temrenda média familiar de 1,5 salário mínimo. O

bairro é predominantemente residencial, apre-sentando condições de saneamento e pavimen-tação bastante precárias. A cooperativa, queenvolve 20 a 30 pessoas, produz pães de 50gpara comercialização no próprio bairro além depãezinhos e panetones, com a pretensão de di-versificar sua produção para pizzas e bolos,além de para outros tipos de pães. Seus inte-grantes identificavam, imediatamente, a neces-

sidade de aquisição de carrinhosque facilitassem a comercializa-ção de seus produtos, ampliandoa sua capacidade de vendas;• Cooperativa Múltipla União Po-pular dos Trabalhadores de Tran-credo Neves (COOPERTANE) –igualmente incubada da ITCP, ésediada em Tancredo Neves, umdos mais populosos bairros da pe-riferia de Salvador. Atualmentetem cerca de 40 mil moradores,em sua grande maioria negros,pessoas empobrecidas, semi-al-fabetizadas, desempregadas ousubempregadas, que moram nasmuitas ruelas e encostas do bair-ro. O grupo é constituído por 35integrantes, dos quais 32 são mu-lheres, tendo sido feita a opção deiniciar as atividades com areciclagem artesanal de papel.Após o processo de capacitaçãodos cooperantes para o desenvol-vimento da produção, veio a bus-

ca de financiamento para aquisição de equipa-mentos e reforma do espaço que lhes foi cedidopara funcionamento;

• Cooperativa Popular de Alimentação do BairroVila Verde (COOPAVV) – é formada por mora-dores do Conjunto Vila Verde, construído em1995, para abrigar famílias vitimadas por desa-bamentos decorrentes das fortes chuvas da-quele ano. O Conjunto foi implantado em umacolina, onde foram demarcados 500 lotes de84m2, com casas-embriões de 20m2, encontran-do-se grande parte delas já modificada. A Coo-perativa é baseada em uma Horta e num Res-

A atividade do BanSol foiplanejada de modo a

associar-se às atividadesde pesquisa do Núcleo de

Pós-Graduação emAdministração (NPGA/

EAUFBA), especialmenteao Núcleo de Estudos

sobre Poder eOrganizações Locais

(Nepol). Nesse particular,estabeleceu-se como umdos objetivos adicionais

do BanSol odesenvolvimento de

conhecimentosespecíficos de “gestão de

empreendimentossociais”, cujas

características em muitose diferenciam dossegmentos público

e privado.

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taurante comunitários, registrando-se experiên-cias mais recentes, como a Associação Clubede Mães, que mantém uma creche e uma esco-linha. A COOPAVV funciona desde março de2001, de forma irregular. Inicialmente, a idéia eraproduzir alimentos in natura e distribuí-los em for-ma de refeição preparada pelos cooperados,comercializando-se o excedente. Posteriormentea iniciativa foi incrementada com a venda dequentinhas, como forma de ampliar o empreendi-mento. A Horta foi instalada em terreno contíguoà área residencial, sob uma linha de alta tensãoda CHESF, que autorizou o uso do espaço parafins agrícolas. A aplicação de recursos na coope-rativa seria destinada à aquisição de equipamen-tos e formação de capital de giro.

Segundo a proposta, o BanSol forneceria os re-cursos financeiros requeridos pelas cooperativascom base em um projeto de financiamento elabora-do conjuntamente pelos diversos parceiros institu-cionais, em que fosse identificado o investimentoque melhor potencializaria os empreendimentos.De imediato, estabelecia-se a cobrança da Taxa deRetribuição Solidária (TRS) para recompor o fundode recursos e assegurar a continuidade do próprioBanSol. O próprio valor da Taxa e demais condi-ções do crédito – valor de cada operação, carência,prazo – seriam analisados caso a caso, segundo ograu de desenvolvimento de cada cooperativa.Tendo em vista o objetivo de reduzir ao máximo aTRS, o “banco” viabilizaria outras alternativas paracustear as operações de análise, assessoramento,acompanhamento dos projetos e recomposição dofundo de recursos, bem como os custos de instala-ção, equipamentos e manutenção.

Posteriormente, na fase dos trabalhos que cor-responde à Atividade Curricular em Comunidade(ACC), evoluiu-se para uma proposta de retribuiçãodo crédito fornecido, que, embora não pudesse sergeneralizada para todos os casos, passaria a seruma referência de análise. Nesse formato, tão logofornecido o crédito o BanSol seria consideradocomo um dos cooperantes para efeito de recebi-mento dos rendimentos, até que fosse devolvidotodo o valor emprestado mais a TRS. Portanto, oBanSol receberia o equivalente ao rendimento men-

sal obtido por cada cooperante, a título de amortiza-ção da dívida. Ficava assim estabelecida a parceria.O BanSol receberia o que cada um dos cooperadosrecebesse. Quanto maior o rendimento líquido a serdistribuído, mais rapidamente o BanSol poderia secomprometer com novos financiamentos.

O Projeto incluía, ainda, uma estratégia de difu-são da experiência, com a realização de fóruns es-pecíficos para associações de moradores – inter-mediados pelas Federação de Associações deBairro de Salvador (FABS) – sindicatos de trabalha-dores, e entidades como a Agência de Desenvolvi-mento Solidário (ADS/CUT). Em outro plano, a difu-são da experiência atingiria as prefeiturasmunicipais, buscando o desenvolvimento de inicia-tivas similares de fornecimento de crédito, enfim,obedecendo aos parâmetros solidários (PROJETOBANSOL, 2001).

Para medir e apreender os impactos econômi-cos, sociais e psicossociais, foram relacionados osindicadores abaixo discriminados.a) Econômicos:– impacto sobre a produção em empreendimen-

tos beneficiários, em função da aquisição deequipamentos e materiais, viabilizada atravésdo crédito recebido;

– variação da receita do empreendimento no perío-do de concessão do crédito;

– variação dos custos do empreendimento;– número de horas de capacitação técnica;– número de entidades beneficiadas;– montante do crédito fornecido frente aos recur-

sos disponíveis.

b) Qualitativos:– aumento da autonomia e desenvolvimento de ati-

tudes pró-ativas das pessoas envolvidas em rela-ção ao aspecto gerencial do empreendimento;

– aumento da autonomia do empreendimento comrelação aos aportes externos.

c) Impactos sociais:quantitativos

– variação na renda familiar dos integrantes dosempreendimentos solidários;

– variação do número de associados dos empre-endimentos coletivos;

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– número de alunos e professores envolvidos naexperiência;

– número de trabalhos produzidos com base notema;

– experiência e número de pesquisas financiadasassociadas à experiência.

qualitativos– nível de articulação entre pesquisa, ensino e ex-

tensão;– nível de articulação entre uni-

versidade e sociedade;– consolidação de conceitos e

instrumentos relativos à gestãode empreendimentos solidários;

– multiplicação, para instituiçõesde ensino de outros Estados,da prática de economia solidá-ria desenvolvida no projeto.

indicadores psicossociais– grau de permanência dos indi-

víduos no empreendimento;– grau de satisfação dos envolvi-

dos no empreendimento;– grau de integração do grupo.

Ainda segundo o projeto, a avaliação do anda-mento dos trabalhos seria desenvolvida em reuniõesperiódicas com os responsáveis de cada empreen-dimento, devendo ser utilizadas dinâmicas de grupoe observações dos envolvidos. Além disso, deveri-am ser realizadas atividades de acompanhamentodos demonstrativos econômicos e financeiros dosempreendimentos e avaliação periódica do próprioBanSol.

O PRÊMIO

Encaminhado o Projeto ao concurso, foi grandea expectativa da equipe, que acompanhava passoa passo o desenvolvimento das diversas etapas deseleção. Se é verdade que mantínhamos a disposi-ção de levar adiante a iniciativa, independentementedo resultado, sabíamos que a obtenção do recursonos pouparia esforços adicionais de captação, per-mitindo atender à expectativa gerada também en-

tre os cooperantes dos empreendimentos com osquais vínhamos mantendo contato.

Finalmente, o BanSol e mais quatro projetos fo-ram escolhidos entre mais de cem propostas enca-minhadas por grupos organizados em quase todosos Estados da Federação. Imediatamente passa-mos a novas tarefas, relacionadas ao formato jurí-dico a ser assumido pelo BanSol, pesquisa entre oscooperantes, etc.

No momento, conclui-se o se-mestre letivo e, com ele, a experiên-cia com a disciplina ACC – Proje-tos Solidários, cuja avaliação estáem andamento. Muitos proble-mas são identificados, entre elesa falta de liberação do recurso fi-nanceiro do Prêmio, que frustrouexpectativas e atrasou o crono-grama de implantação. Esses re-vezes não têm implicado descon-tinuidade, ao contrário, novasmedidas e correções de rumo es-tão sendo discutidas. A confiançano caráter inovador da proposta ea certeza de que estamos, todos

os envolvidos, aprendendo muito, é o que nos im-pulsiona.

CONCLUSÕES

Pelo exposto, pode-se concluir que o BanSol,pelo caráter participativo do seu processo de cons-trução e pela preocupação com o desenvolvimentode empreendimentos coletivos que aliem solidarie-dade e sustentabilidade de comunidades de baixarenda, configura um arranjo organizacional inova-dor no campo das finanças solidárias.

A articulação da experiência com o ensino, pes-quisa e extensão, dá espaço a uma análise críticapermanente e a um amadurecimento da propostainicial com vistas ao atendimento dos seus objeti-vos finalísticos. A possibilidade, por sua vez, de de-senvolvimento de conceitos e instrumentos para agestão social aponta uma perspectiva de trabalhonesse imenso e crescente universo de empreendi-mentos sociais. Ressalte-se, em particular, o fatode tal iniciativa ter nascido numa escola de admi-

O BanSol, pelo caráterparticipativo do seu

processo de construção epela preocupação com o

desenvolvimento deempreendimentos

coletivos que aliemsolidariedade e

sustentabilidade decomunidades de baixa

renda, configura umarranjo organizacionalinovador no campo das

finanças solidárias.

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nistração, lembrando-se que, no geral, essas esco-las têm seus currículos presos às lógicas da admi-nistração privada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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OManifesto do BanSol, que resumia as prin-cipais conclusões a que se chegara, ainda

no início do projeto, conclamava a novas ade-sões, registrando:

A idéia de iniciar uma experiência no campodas finanças solidária nos mobiliza por diferentesmotivações: engajamento em um projeto de cunhosocial, articular o que poderia parecer paradoxal -economia e solidariedade, pela possibilidade deaprendizado, de desenvolvimento de uma alter-nativa às concepções neoliberais de mercado ede empreendimento de uma prática solidária. Ra-zões suficientes para reunir parte da comunidadeuniversitária de diferentes instituições, e organi-zações outras da sociedade, em torno da criaçãode um banco solidário.

De início, não mais que uma vaga noção decomo organizá-lo. Aos poucos, contudo, a idéiavai tomando consistência. Verificamos que exis-tem variadas experiências e de diferentes matizes,sob o mesmo guarda-chuva, a mesma designa-ção. Também, aos poucos, num processo partici-pativo – como devem ser iniciativas desta natureza,construindo juntos –, procurando acertar nossospassos, identificamos o que não queremos, e vis-lumbramos algumas luzes do que parece ser onosso desejo.

Queremos um banco diferente, não uma orga-nização que sirva de ponte para o sistema finan-ceiro já instituído, que siga a mesma lógica e, porconseqüência, reproduza injustas relações. Que-remos um banco que não vise o lucro, mas, sim,apoiar iniciativas solidárias. Uma instituição cujorazão de existir não seja a sua permanência esim os seus objetivos, embora sua sobrevivênciaseja necessária para alcançá-los. Um banco quenão pretenda ser grande, como a lógica competi-tiva impõe a todas instituições deste gênero.

Um banco que, ao apoiar empreendimentos co-letivos solidários, não o faça com base em criquebanco é esse? Respondemos: é um banco ver-dadeiramente solidário, baseado no trabalho soli-dário. É um banco que não pode deixar de disporde uma participação ampla e desinteressada dacomunidade em que se instala, e que contribuipara fortalecer os seus laços de solidariedade eos seus laços econômicos. Uma instituição cujapreocupação central seja a manutenção do fundode empréstimo, e que mesmo que vise a sua am-pliação, o faça através de outras iniciativas quenão seja a aplicação de juros de mercado, ou ta-xas próximas às que ali se pratica.

Uma instituição que estabeleça relações comoutras organizações visando o acompanhamentodas experiências-alvo de financiamento, e a aqui-sição de equipamentos e instalações – reduzidasao mínimo, de forma a não comprometer os re-cursos de empréstimo com outras finalidades.Uma instituição que contribua para desenvolveruma gestão solidária e que funcione sob estaótica. Um vasto campo para experiências aca-dêmicas.

Esse banco é viável? É o banco que quere-mos, que nos interessa! É o que entendemoscomo uma instituição que forneça crédito baratopara financiar, prioritariamente, atividades produ-tivas de iniciativa popular.

Como se faz um banco assim? É um bancoem construção, em que se aprende à medida quenos comprometemos com uma idéia que aospoucos se concretiza. Para isso precisamos detodos.

Venha se juntar a nós!

Salvador, 2 de agosto de 2001.

Manifesto por umBanco verdadeiramente solidário

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Resumo

O Banco Palmas é um sistema financeiro solidário criado,em 1988, pela Associação dos Moradores do Conjunto Palmeira(ASMOCONP). Visando garantir microcrédito para a produção eo consumo locais desenvolveu instrumentos de concessão des-sa forma de crédito compatíveis com a realidade da comunida-de, buscando atuar de forma integrada nos quatro pontos da ca-deia produtiva: capital solidário, produção sustentável, consumoético, comércio justo.

Palavras-chave: finanças solidárias, moeda social, rede de soli-dariedade, sustentabilidade, parcerias.

Abstract

Palmas Bank is a financial system of solidarity established in1988 by the Association of Dwellers of the Neighborhood of Pal-meira (ASMOCONP). Aiming at granting micro-credit for localproduction and consumption it has developed instruments forconcession of such credit form compatible with the communityreality, with the objective of acting in an integrated form in the fourpoints of the productive chain: solidarity capital, sustainable pro-duction, ethic consumption, just trade.

Key-words: solidarity finances, social currency, solidarity network,sustainability partnerships.

OConjunto Palmeira é uma favela com 30 milhabitantes, situada na região sul de Fortale-

za-Ce, nordeste do Brasil. Em 1973 chegaram osprimeiros habitantes. Os moradores foram constru-indo, espontaneamente, seus barracos, dando ori-gem a uma grande favela, sem nenhuma rede desaneamento básico, água tratada, energia elétrica,escola ou outro serviço público. A partir de 1981,com a fundação da Associação dos Moradores doConjunto Palmeira/ASMOCONP, deu-se início aoprocesso de organização das famílias.

Através de mobilizações populares e de diver-sas parcerias a Associação de Moradores foi aospoucos construindo o bairro. Em 1988 conseguiu aimplantação das redes de água tratada e energiaelétrica. Em 1990 construiu, em parceria com a Pre-feitura, o governo do Estado e a GTZ, por meio demutirão, 1.700 metros de canal de drenagem e, doisanos após, organizou os moradores por quadras eimplantou, junto com o governo do Estado, a redede esgotamento sanitário. O bairro foi assim urbani-zado, tornando-se mais habitável.

Apesar dos avanços na infra-estrutural local, em1997 foi realizada uma pesquisa pela Associaçãode Moradores e constatou-se que a pobreza e afome eram devastadoras no bairro. Da sua popu-lação economicamente ativa, 90% tinha renda fa-miliar abaixo de dois salários mínimos (U$ 100),80% estava desempregada, e os pequenos produ-tores não tinham como trabalhar devido à falta deacesso ao crédito e à ausência de uma estratégiade comercialização de seus produtos. Cerca de1.200 crianças estavam nas ruas por não havervagas nas escolas.

Em janeiro de 1998 a ASMOCONP criou o Ban-co Palmas e implantou uma rede de solidariedadeentre produtores e consumidores. O objetivo do ban-co é garantir microcréditos para a produção e o con-sumo local, a juros muito baixos, sem exigência deconsultas cadastrais, comprovação de renda ou fia-dor. Os vizinhos são consultados pelo banco quan-to ao espírito empreendedor e à responsabilidadedo tomador do crédito.

O banco começou com apenas dez clientes, apartir de um empréstimo de R$ 2.000,00 (dois milreais) concedido por uma ONG local, e, hoje, pos-

* João Joaquim é educador popular e coordenador do Banco [email protected]

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sui uma carteira de 30 mil reais. A gestão do ban-co é feita localmente pela própria ASMOCONP eseu quadro de pessoal é majoritariamente volun-tário.

OS PRODUTOS DO BANCO PALMAS

O sistema integrado de microcréditos

O Banco Palmas constitui-seem um sistema financeiro solidá-rio, que atua de forma integradanos quatro pontos da cadeia pro-dutiva, quais sejam: capital solidá-rio, produção sustentável, consu-mo ético, comércio justo. Para isso,o Banco Palmas desenvolveu ins-trumentos para concessão de mi-crocréditos, compatíveis com a re-alidade da comunidade, tanto paraprodução como para o consumo ecomercialização.

A filosofia central do banco constitui-se em umarede de solidariedade de produção e consumo lo-cal. O Banco Popular possui uma linha de micro-créditos para quem quer produzir (criar ou ampliarum pequeno negócio) e outra linha que financiaquem quer comprar aos produtores e comercian-tes do bairro. Esse sistema oxigena a rede de soli-dariedade local, facilitando a comercialização dosprodutos da comunidade, fazendo a renda circularno próprio bairro, promovendo o crescimento eco-nômico.

Para financiar o consumo o banco criou um car-tão de crédito popular: o PalmaCard. Esse cartão,utilizado apenas no Conjunto Palmeira, permite àsfamílias comprarem em qualquer comércio cadas-trado do bairro e pagarem ao Banco Popular apóstrinta dias, sem juros, em uma data estabelecida pelaprópria família. O valor do crédito é de R$ 20,00,podendo chegar até R$ 100,00. No caso de com-pras acima de cem reais, a família pode receber umaautorização do banco e parcelar a compra em atétrês prestações.

No dia estipulado pelo banco, os comercianteslevam suas faturas até o Palmas e recebem o que

venderam para o PalmaCard. Como taxa de admi-nistração o banco desconta 3% de todas as vendasrealizadas.

Esse cartão, além de resolver problemas emer-genciais das famílias, garantindo o acesso a remé-dios, gás de cozinha, gêneros alimentícios e outrosprodutos básicos, também eleva a auto-estima e aconfiança da comunidade. É através das economi-as populares geradas a partir do consumo solidário

dos próprios moradores que seconsegue o desenvolvimento eco-nômico da comunidade.

A consciência de que ao con-sumir produtos e serviços do bair-ro estamos ajudando a distribuir arenda, gerando riquezas e melho-rando a qualidade de vida na co-munidade, permitiu ao Banco Po-pular criar vários instrumentos decomércio solidário. Os mais visí-veis são as feiras dos produtoresdo Banco Palmas, que se realizam

semanalmente, em frente à sede da Associaçãode Moradores, e uma Loja Solidária, que funcionana própria sede do Banco, expondo e vendendoos produtos fabricados localmente. Para esse cír-culo poder existir e funcionar adequadamente é ne-cessário que na comunidade sejam produzidas asmercadorias mais necessárias para a populaçãoconsumidora. Nesse sentido, o Palmas apóia a cri-ação de unidades produtivas que vão se multipli-cando através de seus excedentes. Com o exce-dente de uma unidade produtiva (na EconomiaSolidária o lucro chama-se excedente) é possívelabrir outro empreendimento que passa fazer parteda rede.

Três unidades produtivas já estão funcionando.No futuro, as cadeias produtivas poderão ser re-

montadas, de maneira que cada empresa produzaos insumos a serem consumidos pela outra. Essalógica compreende a concepção de que é possíveltornar o bairro auto-sustentável, a partir de uma redede colaboração econômica entre seus moradores,sem perder de vista a relação local-global, exigentede uma solidariedade universal com todas as co-munidades pobres do mundo.

A consciência de queao consumir produtose serviços do bairroestamos ajudando a

distribuir a renda, gerandoriquezas e melhorandoa qualidade de vida nacomunidade, permitiuao Banco Popular criarvários instrumentos de

comércio solidário.

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São cinco as linhas de crédito do Banco Palmas.

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O Banco Palmas trabalha com uma política decréditos evolutivos e juros evolutivos para garantir adistribuição de renda.

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Balcão de empregos e trocas de serviços

Esse serviço do Banco Palmas teve início em 28de agosto de 1999, através de uma parceria com oServiço Nacional de Empregos (SINE), o Institutode Desenvolvimento do Trabalho (IDT) e a Coorde-nadoria Ecumênica de Serviços (CESE). O balcão

funciona de segunda a sexta-feira, na sede do Ban-co Palmas, no horário das 7h às 12h.

Por meio de uma rede de computadores interli-gada ao Sistema Nacional de Empregos (SINE) oBanco Palmas tem informações sobre as oportuni-dades de emprego existentes nas empresas.

No período de 02/01/2001 a 31/12/2001 o Bal-cão de Empregos conseguiu os resultados apresen-tados no quadro abaixo.

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Clube de trocas solidárias com moeda social

Esse serviço está voltado para os prossumidores(produtores e consumidores) locais, dando oportu-nidade para que cada um troque seus produtos en-tre si, através de uma moeda social criada pelobanco: Palmares. Essa moeda não é indexada anenhuma outra. O que define o valor dos Palmaressão as horas trabalhadas e os insumos para fabri-cação de determinada mercadoria.

No clube de trocas, cada pessoa que chega ao bal-cão apresenta seus produtos e atribui um valor emPalmares. O grupo decide se aceita ou não aquele va-lor. Quando se chega a um consenso sobre o preço, oprodutor coloca suas mercadorias em cima de uma gran-de mesa e recebe do Banco Palmas a quantidade dePalmares correspondente à quantidade de produtosofertados. Quando todos têm seus Palmares, começao sistema d compra e venda com a moeda social.

A Loja Solidária e a feira do Banco Palmas

Como instrumento de incentivo à comercializa-ção, o Banco Palmas instalou uma Loja Solidáriaem sua própria sede, onde os produtores do bairroque tomaram um crédito ao banco podem expor evender. A loja tem se mostrado um grande “difusor”dos produtos do bairro, além de trazer energia posi-tiva para o ambiente da sede. A estratégia tem semostrado satisfatória, embora o volume de vendasse mantenha baixo, na média dos comércios locais.

Todos os sábados, das 15h às 22 horas, realiza-se a feira do Banco Palmas, com 20 barracas de pro-dutores locais. A feira é também um espaço de refor-ço da cultura popular, dando oportunidade paraapresentação dos artistas do bairro, tocadores, em-boladores, repentistas e outras expressões da cultu-ra local. É um momento de encontro entre famílias ede troca de experiência entre produtores. As vendassão sazonais, de acordo com o período do mês. Nor-malmente, o maior volume de vendas ocorre na pri-meira e na terceira semana do mês.

Incubadora feminina

A Incubadora Feminina é um projeto de segu-rança alimentar, iniciado em outubro de 2000, com

o objetivo de incluir socialmente mulheres em situa-ção de risco pessoal e social, moradoras no Con-junto Palmeira. A estratégia consiste em reintegrá-las ao ciclo econômico de forma a garantir-lhes rendaque assegure o acesso ao alimento. É um espaçoequipado com sala, cozinha, refeitório, banheiros,galpão – onde são realizadas oficinas e cursos pro-fissionalizantes, com ateliê de produção – e um La-boratório de Agricultura Urbana. Ao final da incuba-ção, o Banco Palmas garante microcrédito para asmulheres desenvolverem uma atividade produtiva.

Objetivos da incubadora:• garantir segurança alimentar para mulheres em

situação de risco;• reforçar a economia das mulheres beneficiadas

mediante a concessão de microcréditos;• potencializar o desenvolvimento local e o asso-

ciativismo do bairro;• otimizar os serviços e recursos públicos existen-

tes na comunidade;• servir como experiência modelo para implanta-

ção em outras localidades;• sensibilizar para a necessidade de políticas pú-

blicas voltadas para as mulheres mais pobres.

A seguir, apresentam-se as ações desenvol-vidas pela incubadora em 2001.• Oficina de gênero e vitalização trabalhando a

questão da auto-estima, que foi o marco zero daincubadora – 40h;

• Oficinas de DST/AIDS e métodos contracepti-vos – 40h;

• Atendimentos médicos e vários outros procedi-mentos decorrentes (exames laboratoriais, cu-rativos, pequenas cirurgias);

• Oficina sobre elevação da auto-estima, empe-dramento feminino, relações interpessoais egrupais e cidadania – 120h;

• Curso profissionalizante de corte e costura –200h;

• Reunião com os companheiros das mulheres,com os objetivos de explicar o trabalho da Incu-badora e intermediar conflitos familiares (algunsmaridos tentaram invadir a incubadora para ba-ter nas mulheres) – 4h;

• Reuniões com a Assistente Social para traba-lhar problemas familiares e viabilizar procedi-

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mentos nos órgãos públicos (documentos, regis-tros de nascimento, situações policiais, atendimen-tos especializados de saúde e outros...) – 40h;

• Visitas pedagógicas a feiras e mercados – 15h;• Oficina sobre alimentação equilibrada e hábitos

alimentares saudáveis – 40h;• Oficinas sobre higiene pessoal, do ambiente e

dos alimentos – 60h;• Pesquisa sobre hábitos alimentares;• Concessão de microcréditos

para mulheres.

Laboratório de agriculturaurbana

O mais recente produto do Ban-co Palmas foi a inauguração de umLaboratório de Agricultura Urbana,orgânica e agroecológica. Esseprojeto tem por objetivo reforçar aestratégia de segurança alimentar que vem sendoposta em prática desde a implantação do ProjetoIncubadora Feminina.

O laboratório consiste em um espaço onde asmulheres aprendem a cultivar plantas medicinais ehortaliças e a criar galinha caipira, e onde, futura-mente, aprenderão a hidroponia e a criação de pei-xes em cativeiro. Cada mulher do programa de-senvolverá as ações que aprendeu no quintal desua própria casa. A produção é orgânica e a quali-dade dos produtos é monitorada por técnico espe-cializado.

Uma parceria com a Universidade Federal do Cea-rá (UFC) vai garantir toda a capacitação técnica ne-cessária ao Projeto. A abordagem pedagógica daSegurança Alimentar, tanto nos aspectos da educa-ção para o consumo e do preparo dos alimentoscomo na produção e comercialização desses, é temaessencial do Projeto. O Núcleo de Estudos e Pes-quisas em Idade e Família (NEGIF), ligado à UFC,está disponibilizando uma estagiária de EconomiaDoméstica que irá desenvolver o programa de ca-pacitação em segurança alimentar.

O Banco Palmas está buscando financiamen-tos para organizar uma linha de crédito específi-ca para financiar pequenos projetos de agriculturaurbana.

Escola de Socioeconomia Solidária(Palmatech)

Em abril de 2000, o Banco Palmas criou a Esco-la de Socioeconomia Solidária (PalmaTech), cujoobjetivo central é oferecer capacitação gerencial eprofissional na perspectiva da Socioeconomia Soli-dária, desenvolver pedagogias de sensibilizaçãopara a cultura da solidariedade e difundir a metodo-

logia e os produtos criados peloBanco em sua estratégia de com-bate à pobreza com desenvolvi-mento local.

Como expresso em seu nome,tem como valor central o controleda sociedade sobre a economia esobre o mercado, tornando-oscomo espaço de cooperação, co-laboração e satisfação das neces-sidades humanas.

No período de julho de 2000 a dezembro de 2001foram realizados vários cursos, como se pode veri-ficar no quadro na próxima página.

Centro de Estudos em SocioeconomiaSolidária

A ASMOCONP organizou, em 1997, um centrode documentação de informações e estudos sobreo Conjunto Palmeira, contendo dados estatísticos,indicadores sociais, mapas e plantas do bairro.

Com o surgimento do Banco Palmas em 1998, ocentro vem sistematizando informações sobre aSocioeconomia Solidária, como publicações locaise nacionais, vídeos, jogos pedagógicos e outrosmateriais. O Centro de Documentação é fonte depesquisa para estudantes e professores em suasmonografias, teses de mestrado e doutorado, e portécnicos de ONGs em busca de subsídios para suasentidades.

CONSTRUINDO A REDE CEARENSE DESOCIOECONOMIA SOLIDÁRIA

Em junho de 2000, em Mendes, RJ, realizou-seo 1º Encontro Brasileiro de Cultura e Socioecono-mia Solidária. O Banco Palmas esteve presente e

Cada mulher do programadesenvolverá as ações

que aprendeu no quintalde sua própria casa.

A produção é orgânicae a qualidade dos

produtos é monitoradapor técnico especializado.

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foi indicado para compor a equipe de animação na-cional da Rede Brasileira de Socioeconomia Soli-dária durante o biênio 2000/2001.

No Ceará, tivemos papel decisivo para a cons-tituição da Rede Cearense de Socioeconomia Soli-dária, que atualmente articula várias organizaçõespopulares, ONGs e grupos produtivos. Dentre ou-tras ações, a Rede desenvolveu, em 2001, o I Feirãode Socioeconomia Solidária e Agricultura Familiar,que contou com a participação de 250 produtoresrurais e urbanos. No plano das políticas públicas,foi apresentado à Assembléia Legislativa um Proje-to de Lei para criação de um Fundo de apoio aosempreendimentos solidários, o Fundo Ceará Sol.

No período de 18 a 24 de agosto de 2002 reali-zar-se-á no Ceará o 2º Encontro Brasileiro de Cul-

tura e Socioeconomia Solidária, ficando a cargo daRede Cearense toda a animação do evento.

IMPACTOS IDENTIFICADOS EM 2001

Os impactos diretos do Banco Palmas podem seridentificados dentro do Conjunto Palmeira e em ou-tras áreas de Fortaleza e sua Região Metropolita-na. Quanto aos impactos indiretos, infelizmenteainda não tivemos condições de realizar uma pes-quisa que possa auferi-los.

Impactos no Conjunto Palmeira:• 30 mulheres em situação de risco recuperaram

sua auto-estima e estão em condições de se in-serir no mercado de trabalho;

• 5 jovens, na busca do primeiro emprego, conse-

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guiram abrir uma empresa (Palmalimpe) e estãoinseridos no mercado de trabalho, solidário esustentável;

• 401 moradores conseguiram emprego no mer-cado formal;

• 150 famílias em situação de risco tiveram suasnecessidades básicas – emergenciais – satisfei-tas com a utilização do cartão Palmacard;

• o comércio local aumentou suas vendas em20% (informações fornecidaspelos comerciantes do bairro);

• 80 empreendedores consegui-ram ampliar ou manter seusnegócios através do acesso amicrocréditos concedidos peloPalmas;

• 27 moradores que há anos ha-viam deixado de estudar con-seguiram seu diploma de 1ºgrau e se matricularam no en-sino médio dando prossegui-mento a seus estudos;

Os impactos observados em outros locais encon-tram-se discriminados no quadro a seguir.

PRINCIPAIS DIFICULDADES

– Limite da Carteira de Crédito: com a maioriados clientes já no terceiro crédito (R$ 1.000,00) oPalmas tem hoje uma possibilidade pequena deatendimento, haja vista sua carteira ser de apenas30 mil reais. Os juros não são suficientes para capi-talizar o banco e é proibido pelo Banco Central qual-quer sistema de poupança.

– Ausência de uma linha decrédito para empresas: quandoum grupo de pessoas deseja abriruma pequena empresa (por exem-plo, o que ocorreu com a Palma-Limpe) o valor solicitado é sempresuperior a R$ 1.000 e está fora daslinhas do banco. No entanto, osgrupos solidários são sempre a pri-oridade do Palmas.

– Aumento dos riscos deinadimplência: como o Palmas

trabalha um público de auto-risco, cada vez estámais exposto à inadimplência crescente no país.

– Consumo local voltado unicamente para ali-mentação: 98% dos recursos movimentados pelocartão PalmaCard destinam-se à compra de alimen-tos, deixando de ser incentivadas produções locais,como calçados, confecção, artesanatos e serviçosem geral.

– Estrutura insuficiente para atendimento àsmulheres: a oficina de profissionalização da Incu-badora Feminina só está equipada para cursos decorte e costura e artesanato, o que limita o aprendi-zado em outras áreas.

– Comercialização insuficiente dos produtos:a ausência de uma estratégia de comercializaçãosolidária, em um mercado cada vez mais competiti-vo, dificulta o escoamento das mercadorias em si-tuação, fazendo as unidades produtivas operaremcom muita dificuldade.

– Pouca capacitação contábil e financeira: oBanco enfrenta dificuldades em organizar a sua es-trutura financeira e contábil, em virtude de não en-contrar na comunidade alguém com experiêncianesse ramo de atividade. Um rigoroso processo decapacitação está previsto para 2003.

A ausência deuma estratégia de

comercialização solidária,em um mercado cada vezmais competitivo, dificulta

o escoamento dasmercadorias em situação,

fazendo as unidadesprodutivas operarem com

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– Falta de um espaço físico para a Palmatech:os cursos da Escola estão sendo ministrados nomesmo local de atendimento às mulheres, o queresulta em um limitado espaço para realização dedinâmicas e trabalhos em grupos.

DESAFIOS PARA 2002

Para 2002, o Palmas considera como principaisdesafios:

– consolidar o Laboratório de Agricultura Urbanano Conjunto Palmeira, implantando o projeto em cemquintais de residências, combatendo a fome dentrode uma estratégia de Segurança Alimentar;

– reestruturar o cartão PalmaCard, para que sejautilizado, prioritariamente, na compra de produtosfeitos no bairro;

– criar a Agenda 21 do Conjunto Palmeira, agre-gando um componente ambiental às ações do Ban-co Palmas como elemento determinante para oprojeto de Socioeconomia Solidária no bairro;

– implantar o sistema de Compras Coletivas emFortaleza, em vários bairros, barateando os custosdos insumos e da cesta básica e gerando exceden-tes que possam ser reinvestidos na criação de em-presas comunitárias;

– realizar o III ABC da Socioeconomia Solidária,com a participação de produtores e consumidoresdo Campo e da Cidade, articulando a criação deredes com o objetivo de comercializar diretamenteos produtos;

– animar a realização, no âmbito nacional, deum debate sobre o microcrédito para os mais po-bres, refletindo sobre a atual “indústria das microfi-nanças”.

– organizar, junto com a Rede Cearense de So-cioeconomia Solidária, o II Encontro Brasileiro deCultura e Socioeconomia Solidária, a ser realizadoem junho de 2002.

PARCEIROS

Governamentais• Secretaria do Trabalho e Ação Social (SETAS) –

Governo do Estado – Ce• Fundação da Criança e da Família Cidadã (FUNCI)

– Prefeitura Municipal de FortalezaSistema Nacional de Empregos (SINE-Ce)Projeto PRORENDA/GTZ

Não-Governamentais• Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT)• Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresa

do Estado do Ceará (SEBRAE-Ce)• Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS/CUT)• Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE)• OXFAM• DED• Ágora XXI• NEGIF• Entidades Comunitárias• Moradores do Bairro (consumidores)• Comerciantes Locais

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Resumo

Este artigo enfoca a importância do microcrédito no contextoatual de dificuldades econômico-sociais e, consequentemente,de deslocamento crescente de trabalhadores para a informalida-de. O microcrédito vem tomando uma dimensão de política dedesenvolvimento local e possibilitando aos empreendedores debaixa renda um acesso fácil ao crédito, ao dispensá-los das exi-gências e burocracias do sistema financeiro convencional. Men-ciona-se também a necessidade de articular estratégias regiona-lizadas, considerando o microcrédito de forma solidária e comomecanismo de inclusão social.

Palavras-chave: microcrédito, desenvolvimento local, solidarie-dade, cultura, redes.

As dificuldades econômico-sociais geradas pe-las modificações que vêm se verificando no

mundo do trabalho, com o deslocamento para a in-formalidade de crescentes contingentes de traba-lhadores que, hoje, encontram-se em permanentesituação de vulnerabilidade econômica e social, têmfeito crescer o reconhecimento da importância deserem desenvolvidos mecanismos de acesso aocrédito para aqueles que, usualmente, não teriamessa possibilidade. Dessa forma, podem tornar-seviáveis projetos produtivos que venham a garantiràs camadas de baixa renda uma qualidade de vidacompatível com os padrões de cidadania deseja-dos por todos.

Essa afirmação, por si só, conduziria a uma sé-rie de considerações que não cabe aqui aprofundar,na medida em que apenas se pretende montar um

cenário para tratar da questão do microcrédito comoestratégia de inclusão social.

Embora chamado de microcrédito, trata-se deuma idéia macro e constitui-se hoje em uma novatendência mundial. Esse movimento é de tal magni-tude que chega a configurar uma política de desen-volvimento abrangendo questões de natureza social,econômica, legal, financeira e institucional, na me-dida em que possibilita o acesso ao crédito a em-preendedores de baixa renda, sem as exigências eburocracias do sistema financeiro convencional queterminam por excluí-los do processo.

O microcrédito tem, entre seus princípios bási-cos, a sustentabilidade e o enfoque na populaçãoprodutiva pobre, valores compatíveis com a realnecessidade e capacidade de pagamento do públi-co-alvo e pouca burocracia. Nada tem a ver comtransferência de renda, operação a fundo perdido,opondo-se, assim, ao conceito de crédito assisten-cialista ou paternalista. Na verdade, o que o micro-

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* Zélia Maria de Abreu Paim é socióloga, pós-graduada em Política Públi-ca de Trabalho e Renda, coordenadora de Emprego e Renda da Secreta-ria do Trabalho e Ação Social (SETRAS). [email protected]

Abstract

This article focuses on the importance of micro-credit inthe present context of social-economic constraints and, con-sequently, of increasing shifting of workers to informality.Micro-credit is acquiring a dimension of local developmentalpolicy and allowing low income entrepreneurs easy access tocredit by means of dismissing them of requirements andbureaucracies imposed by the conventional financing system.We also address the need for articulating regional strategies,considering micro-credit as a mechanism of solidarity for soci-al inclusion.

Key-words: micro-credit, local development, solidarity, culture,networks.

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crédito propõe é uma relação de confiança entre ocliente e a organização financeira, que envolve oconceito de solidariedade e de credibilidade paraambas as partes.

A estratégia operacional do microcrédito tem comoponto forte a premissa de que as informações para oprojeto são coletadas no próprio local do negócio,pelos agentes de crédito, peças-chave nessa novatecnologia financeira. Por essa razão, quanto mais ainstituição financeira estiver próxi-ma da comunidade podendo avali-ar o nível do capital social, maiorserá a possibilidade de obter resul-tados positivos nessas operações

Embora sejam consensuais osprincípios que regem o microcré-dito, o que se verifica na prática éque este é confundido com créditopequeno e que não são assegura-das condições reais de acesso aosempreendedores que procuram talmodalidade.

Infelizmente, a visão que regealguns programas de microcrédito é a de que o pú-blico-alvo é de alto risco, representando quase sem-pre negócios instáveis e não oferecendo segurançapara o retorno do capital a ser financiado. Dessaforma, por vezes exigem-se garantias e histórico decrédito, tomando-se por base, em muitos casos, osistema financeiro tradicional, o que contraria osprincípios estabelecidos para essa modalidade decrédito e impede que ele se torne um instrumentopara o alívio da pobreza, conforme sonhou M. Yunus,fundador do Grameen Bank em Bangladesh:

dinamismo, criatividade e facilidade em transporobstáculos a partir de seu caráter empreendedor.

Aportes pequenos de capital nesses negóciosgeram altíssima produtividade do investimento, oque, por si só, é uma evidência de que, economica-mente, esse é um dos melhores usos do capital.Por outro lado, o microcrédito é também um dosúnicos casos em que crescimento e distribuição ca-minham juntos.

Uma questão a ser colocada éque o público-alvo do programa éformado por empreendedores po-bres e, por isso o valor do financia-mento é pequeno. Essa é umanecessidade e característica do ne-gócio, mas o importante é garantircondições de acessibilidade ao cré-dito de forma ágil, sem burocracia,assegurando-se um direito de ci-dadania e abrindo-se canal para fo-mento de uma socioeconomiasolidária.

O agente operador desse mo-delo de programa precisa romper alguns paradigmase criar uma nova cultura de crédito, abrindo efetivaspossibilidades de acesso aos empreendedores ex-cluídos, que lhes permitam reverter a própria situa-ção de desigualdade, uma vez que o pobre nãoprecisa de caridade, mas de oportunidade. Entre-tanto, o microcrédito não deve ser visto como umapanacéia que irá resolver a questão da pobreza, poisesta problemática exige medidas estruturais e es-tratégias multidisciplinares no âmbito das políticasmacroeconômicas. O essencial é investir no micro-crédito como ferramenta para a transformação dapessoa e de sua comunidade, destacando-se a ca-pacidade que deve ter de possibilitar a criação deredes de empreendedores, fomentando o capitalsocial.

Boudon (1995), nos leva a refletir sobre esta pre-missa:

O essencial é investirno microcrédito como

ferramenta para atransformação da pessoa

e de sua comunidade,destacando-se acapacidade que

deve ter de possibilitara criação de redes

de empreendedores,fomentando ocapital social.

Precisamos construir e criar instituições para ajudar os em-preendedores, porque são eles que fazem as coisas acon-tecerem (...) Minha idéia e meu conceito é que todo ser humanoé um empreendedor em potencial (...) Como todos podemser empreendedores, precisam então de instituições finan-ceiras diferentes das tradicionais. Dessa forma, creio que ocrédito deve ser aceito como um dos itens dos direitos hu-manos, porque tudo o que precisa ser feito necessita de di-nheiro (YUNUS, 2001).

Para se compreender a lógica do microcrédito épreciso compreender a especificidade do seu públi-co-alvo, sua fragilidade, vulnerabilidade, mas tam-bém sua capacidade de gerar trabalho e renda, seu

“Todo fenômeno social é sempre resultado de ações, de ati-tudes, de convicções e, em geral, de comportamentos indivi-duais. O sociólogo que pretende explicar um fenômenosocial deve procurar o sentido dos comportamentos individu-ais que estão em sua origem”.

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Na realidade, primeiro mudam as pessoas, ocomportamento individual dos técnicos, dos agen-tes produtivos e gestores. “Surgem os primeiros re-sultados e as instituições começam a se envolver ea assumir compromissos. A comunidade aumentao seu grau de organização, passa a visualizar o pro-cesso de mudança e a acreditar que os novos avan-ços dependem também do seu envolvimento”(PARENTE; ZAPATA, 1998). É com esse pano defundo que a política de microcrédi-to vem cada vez mais se consoli-dando no País, também como umavia de desenvolvimento local.

Embora existam programas demicrocrédito funcionando desdemeados da década de 80, ainda setem muito a avançar no Brasil, nosentido de se obter resultados qua-litativos em escala. De acordo comdados da PNAD de 1999, o totalde pequenos empreendimentos noBrasil é de 13,9 milhões, dos quais39 milhões são chefiados por mu-lheres e 10 milhões, por homens.Desse total, estima-se que apenas86 mil pequenos empreendimentos chefiados pormulheres e 270 mil chefiados por homens têm aces-so a crédito bancário. Os “desbancarizados” só con-seguem financiar suas atividades recorrendo a agi-otas, a prazos concedidos por fornecedores ou aempréstimos de familiares ou amigos.

Estima-se em 6 milhões o número de potenciaistomadores de microcrédito no País. A Bahia regis-tra a existência de cerca de 983.882 pequenos em-preendimentos demandantes de microcrédito, abai-xo apenas do Rio de Janeiro, com 1.398.044, MinasGerais, com 1.452.695, e São Paulo, com 3.215.24.Esses números indicam que a falta de acesso aocrédito é significativa e que há uma real necessida-de da ampliação da oferta, o que pode vir a ocorreratravés da parceria entre os diversos atores, inclu-sive em atividades que possam sustentar o cresci-mentos harmônico da economia local e contribuirpara a constituição de uma rede de programas ope-rando de forma estratégica e sinérgica.

A formação de redes de instituições operadorasde microcrédito traz à discussão o incentivo à cultu-

ra de cooperação entre essas instituições que ope-ram em um mesmo mercado. Essa articulação po-derá possibilitar a troca de experiências e informaçõese a divisão de custos operacionais, a exemplo da par-ceria para treinamento dos agentes de crédito e dosempreendedores financiados. A concepção do tra-balho em rede contribui também para a mudança davisão predatória e competitiva que ainda existe aindano setor e que contradiz a filosofia e os princípios

que regem um programa dessa na-tureza.

As redes aumentam a possibilida-de de que as instituições de micro-crédito exercitem também, a solidari-edade, respeitando as diferenças, nabusca de resultados compartilha-dos, objetivando nova estratégia dereconstrução do tecido produtivo,sem perder o foco da sobrevivên-cia, da sustentabilidade e da viabi-lidade econômica das instituições.Em síntese, trata-se de criar, cole-tivamente, um espaço de informa-ções e conhecimentos, estimuladorda inovação operacional do siste-

ma de microcrédito.O desafio maior está em se estabelecer políticas

e criar mecanismos que permitam o acesso dos em-preendedores ao crédito. Caso contrário, os micro-empreedimentos não vão se desenvolver em númerosuficiente para constituir uma alternativa significati-va de aporte ao PIB regional e de promoção de maiorequidade social.

A democratização, de modo efetivo e eficaz, domicrocrédito, passa pela conciliação de interessesde ordem ideológica, concepções diferentes de de-senvolvimento, o que implica construção coletiva emprocesso dialógico e endógeno para a convergên-cia das ações, permitindo, quem sabe, a reduçãode taxas de juros e dos custos operacionais dessesfinanciamentos. A aliança ora proposta não se confi-gura como um novo programa nem visa substituir asações já em andamento, mas a idéia é articular es-tratégias regionalizadas, com vistas a otimizar recur-sos e maximizar resultados, fortalecendo o “olhar” domicrocrédito de forma solidária e como mecanismode inclusão social.

O desafio maior está emse estabelecer políticas e

criar mecanismos quepermitam o acesso dos

empreendedores aocrédito. Caso contrário, osmicroempreedimentos não

vão se desenvolver emnúmero suficiente para

constituir uma alternativasignificativa de aporte ao

PIB regional e depromoção de maior

equidade social.

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É certo que essa questão não pode ser resolvi-da a curto prazo, mas é consenso no círculo dessasinstituições financeiras que se deve ampliar o deba-te de como promover o acesso ao crédito aos cida-dãos produtivos mais empobrecidos, de acordocom a sua capacidade de pagamento. Trata-se deum processo através do qual incorporamos solidarie-dade à economia. É uma tarefa que não pode serdesenvolvida por consciências individualistas ou von-tades débeis, pois exige espírito solidário, compro-metido e generoso. Os que vierem para concretizaresta idéia serão os verdadeiros desbravadores e ar-ticuladores de uma sociedade solidária e produtiva.

E aqui fica a pergunta-convite: microcrédito não écrédito pequeno, vamos fortalecer a solidariedade?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOUDON, Raymond. (Org.). Tratado de sociologia. Rio de Ja-neiro: Jorge Zahar, 1995.

BRASIL. A expansão do microcrédito no Brasil. Brasília: Presi-dência da República, Conselho da Comunidade Solidária, 2001.(mimeo).

FREDIANI, Ramon; GONÇALVES, Luiz Estevam Lopes. Asmicrofinanças. Turim: Centro Internacional de Formação da OIT,2001.

PARENTE, Silvana; ZAPATA,Tania. Parceria e articulaçãoinstitucional. Recife,1998. (Série cadernos técnicos, 4).

YUNUS, M. Conheça o Grameen Bank. Entrevista concedida àcomitiva brasileira em Bangladesh, jun. 2001. Disponível em:<www.portaldomicrocredito.org.br> Acesso em: 6 jun. 2002.

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Resumen

Este trabajo es un breve análisis de la evolución de los Pac-tos Territoriales de Empleo en el ámbito de la Unión Europea enlos últimos años, así como plantea la aplicabilidad de estas polí-ticas en los países latinoamericanos.

Palabras clave: políticas de empleo, pactos territoriales, UniónEuropea, América Latina.

La crisis de los setenta da un vuelco en el pensa-miento económico regional. La apertura de los

mercados, las innovaciones tecnológicas, y la crisisdel Estado de bienestar, hicieron que algunas tradici-onales regiones industriales entrasen en un procesode estagnación o incluso de retracción económica,perdiesen competitividad y encontrándose con ele-vadas tasas de empleo.

Los cambios sectoriales, como la despoblaciónde las zonas rurales y el aumento de la importanciadel sector servicios; conjuntamente con importan-tes cambios sociales, como la mayor inserción delas mujeres y los jóvenes originarios del babyboomen el mercado de trabajo, exigía una reestructuraciónde los mercados de trabajo y ante el crecimiento delas tasas de desempleo.

En un primero momento como una especie deautodefensa a una mayor internacionalización de la

economía y a la luz de algunas experiencias exitosas,el desarrollo local se pone en el orden del día. Larecuperación de conceptos como tradición local,vocación de los territorios, ventajas competitivas, altaespecialización productiva, concentración producti-va, difusión de la información, profundización de ladivisión social del trabajo, atmósfera industrial; sirvende base para nuevos conceptos de desarrollo: de-sarrollo sostenido y desarrollo sostenible.

Sin embargo, la crisis de legitimidad política delos Estados y el fracaso de las políticas de planifica-ción regional “desde afuera”, imponían la necesidadde recuperar un concepto esencial “olvidado” en laobra de Marshall y Perroux: el diálogo y el consen-so social. Nace el concepto de “desarrollo desdeabajo”, formulado por Stöhr.

Excluyéndose las ortodoxias localistas y volun-taristas, los conceptos de participación de los agen-tes locales y de potenciación de los recursos loca-les, llevarían a consolidar la territorialidad de las

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* Benito Muiños Juncal é Doctor en Geografía Humana (Universidad deBarcelona) y Asesor Especial da SECOMP-BA

Abstract

This paper is an analysis of the evolution of the TerritorialEmployment Pacts in the European Union in the last years andthe possibilities of its application in South America

Key-words: employment policies, territorial pacts, European Union,Latin America.

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políticas de desarrollo, y consecuentemente de laspolíticas de creación de empleo.

Sin embargo, la ofensiva económica liberal yla confusa, y algunas veces mal intencionada, in-terpretación del concepto de flexibilidad producti-va, provocó serios daños en el mercado de trabajo.La ofensiva de distintos organismos internaciona-les y de algunos Estados por la desregulación delos mercados de trabajo, y las estrictas medidasde combate antiinflacionario du-rante la década de los ochenta,representó durante algunos añosuna ascendencia del paradigmaestadounidense: bajas tasas dedesempleo, sin que se plantearasu elevado coste social. Bajossalarios, aumento de las diferen-cias sociales y un precario Esta-do de bienestar, fueron el resul-tado de esta política en EstadosUnidos.

Las condiciones políticas enEuropa contribuirían a un cierto re-planteamiento de este paradigma.Nuevas experiencias sugeríanque era posible compaginar el desarrollo econó-mico local y el mantenimiento del Estado de bie-nestar. La detección de nuevas demandas soci-ales, y su potencial de generar nuevos yacimientosde empleo; un nuevo planteamiento sobre el pa-pel del liderazgo de las administraciones públicasen el fortalecimiento de los agentes locales; y laaceptación general del papel del diálogo social enla búsqueda del consenso social local; impulsaronlas Iniciativas Locales de Desarrollo (ILDE) y pos-teriormente los Pactos Territoriales de Empleo(PTE).

EL FUTURO DE LOS PACTOS TERRITORIALESDE EMPLEO (PTES)

Hoy en día podemos afirmar que las ILDE sonmayoritariamente apoyadas por los estudiosos ygobiernos de la Unión Europea. Las ILDE represen-tan la existencia de un gran vivero de experienciaslocales, cambiaron los conceptos sobre el futuropesimista del mercado de trabajo, y afirmaran el ca-

rácter territorial de las políticas de creación deempleo.

Sin embargo, como para Jouen (2000), hay to-davía algunos obstáculos al pleno desarrollo de lasILDE: el inmovilismo administrativo, la rigidez delmarco jurídico, el riesgo del aislacionismo de losterritorios, y la recuperación de las iniciativas porgrandes estructuras.

Es cierto que varios proyectos bien elaboradosacabaron fracasando debido al in-movilismo y la falta de preparaciónde las administraciones en distin-tos niveles para ejercer sus com-petencias. Además los conflictosde competencia entre las distintasesferas, muchas veces, son másfrecuentes que la solidariedad ins-titucional.

La rigidez del marco jurídicoimpide en algunos territorios el ple-no desarrollo de las PyMEs, dificul-tan la inserción de determinadoscolectivos; y en el marco de nuevosyacimientos de empleo la necesi-dad de una reforma de los estatu-

tos profesionales se encuentra bloqueada por elcorporativismo.

La recuperación por grandes estructuras de losservicios de proximidad y de protección al medio am-biente, debido al potencial de mercado cada vez mayorde estas actividades, amenazan a las empresas deeconomía social. En algunas regiones se da el casode que empresas de carácter social fuesen adquiridaso expulsadas por la competencia agresiva de grandesempresas. Esto perjudica el desarrollo de nuevasPequeñas y Medianas Empresas (PyMEs) y reduce,en la mayoría de los casos, la calidad del empleo.

El componente comunitario sobre el cual se cons-truyen varias iniciativas locales las hace, segúnJouen, particularmente vulnerables a las ideas másretrógradas. Una excesiva valorización del “patrimo-nio local” y del tradicionalismo conllevan actitudesendogámicas que pueden conducir a un retrocesode la competitividad y a un modelo político socialpaternalista.

Sin embargo, al hacerse una análisis individuali-zado de algunos planes podemos llegar a la conclu-

La rigidez delmarco jurídico impide en

algunos territoriosel pleno desarrollo

de las PyMEs, dificultanla inserción de

determinados colectivos;y en el marco de nuevosyacimientos de empleo

la necesidad de unareforma de los

estatutos profesionalesse encuentra bloqueadapor el corporativismo.

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sión de que otros obstáculos están presentes. Unode estos problemas es la falta de un liderazgo, yaque el papel de la administración pública de fortale-cer los agentes sociales y fomentar el diálogo social,no se realiza por la ausencia de legitimidad social delgobierno, resultante de la falta de confianza de losagentes sociales en su capacidad de conduccióndel proceso.

Hay que aclarar también que el liderazgo nodebe resultar en vanguardismo.Sin embargo, los agentes socialesno se comportan igualmente. El li-derazgo, por tanto, se impondrá afavor del agente capaz de antici-parse a los acontecimientos y defomentar el diálogo social.

La falta de comprensión de losagentes locales sobre el papel delos PTE conduce muchas veces aun importante equívoco: los proyec-tos son desarrollados teniendocomo reto principal un camino “rá-pido” hacia una financiación.

Algunos planes podrían ser ela-borados a partir de la hipótesis deque hay unos recursos disponibles,y que un proyecto construido “colectivamente”, lo-graría estos recursos. Ocurre que la ausencia delconsenso e incluso de un objetivo territorial bien de-finido, llevaría a un reparto de estos recursos enproyectos aislados, lo que conllevaría a un fracasoanunciado.

¿CUÁL SERÍA ENTONCES LOSPROCEDIMIENTOS MÁS IDÓNEOS PARA LAIMPLANTACIÓN DE UN PTE DE ÉXITO?

El primer paso debe ser el reconocimiento co-lectivo de los agentes sociales locales de que hayun problema común, y que la resolución del mismosolamente se dará a partir de una salida colectiva.

Dado que un pacto debe estar constituido decuatro elementos básicos; cooperación, objetivos,innovación y la propia consecución del pacto, ¿cualsería la secuencia más idónea?

Es cierto que la mayoría de los pactos actualesposeen la siguiente secuencia:

Pacto – objetivo – cooperación – objetivo –innovación

Sin embargo, aquí hay un error de planteamiento:el pacto no puede ser un objetivo en sí mismo. Elconvencimiento comunitario del problema, y la exis-tencia previa de una cooperación entre los agenteslocales es imprescindible. Para tanto, la predisposi-ción al diálogo social es un factor determinante para

el futuro del pacto.Por ello la actitud favorable hacía

la cooperación debe ser el primeropaso de un PTE. Partiendo de estesentimiento común y de la deteccióndel problema local, se establecenlos objetivos comunes. La coope-ración es un prerrequisito y no unobjetivo a ser alcanzado. La exis-tencia de un liderazgo aceptado co-lectivamente, y la predisposición dela administración hacía un fortale-cimiento de los agentes locales sontambién esenciales al desarrollodel PTE.

Por tanto, la asunción de quela constitución de un PTE es la más

idónea para la resolución de los problemas locales,debe ser una etapa posterior. Insistimos que el PTEes un medio y no un objetivo en si mismo.Ya queuna de las características principales de los PTE esestablecer procesos innovadores en escala territo-rial, los objetivos finales deben se centrar en esta-blecer innovaciones pertinentes a las demandasterritoriales. Esto no significa que buenas prácticasdesarrolladas en otros territorios puedan ser adap-tadas de forma satisfactoria.

Por tanto la secuencia más idónea del procesode elaboración de una política local de desarrollo ycreación de empleo sería:• Compromiso y confianza mutua entre los agen-

tes sociales• Diálogo Social• Detección del problema• Objetivos territoriales• Elección de la iniciativa (¿PTE?)• Objetivos de la iniciativa• Innovaciones territoriales

Una de las característicasprincipales de los PTE es

establecer procesosinnovadores en escalaterritorial, los objetivos

finales deben se centrar enestablecer innovaciones

pertinentes a lasdemandas territoriales.Esto no significa que

buenas prácticasdesarrolladas en otrosterritorios puedan seradaptadas de forma

satisfactoria.

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Sin duda los PTE representan un avanzo en re-lación a otras iniciativas de desarrollo local comolos planes estratégicos. No cabe duda que los pla-nes estratégicos representaron un avance en las ad-ministraciones públicas, especialmente por estable-cer una diferenciación importante en relación a losplanes urbanísticos tradicionales. La consideracióndel territorio como un todo económico y social; unamayor interacción público-privada; una orientacióna la acción; el diseño de un modelo basado en lacalidad; tomar en consideración acciones a nivelmicro; y la participación de los agentes sociales ensu elaboración; son importantes avances sociales.

Sin embargo, a nivel local, los PTE representanun cambio fundamental: el compromiso conjunto delos agentes locales en su ejecución y gestión. Laexperiencia muestra que el compromiso y la gestiónde la acción representa una interacción más pro-ductiva a largo plazo, ya que tanto el éxito como elfracaso son compartidos igualmente. Además, im-pone a los agentes la exigencia de la búsqueda con-tinua de un consenso, lo que podría transformarseen una importante variable hacía futuras accionesde desarrollo y creación de empleos locales.

TRANSFERIBILIDAD HACÍA LOS PAÍSESMENOS DESARROLLADOS

Si en los países desarrollados las estrategias delos PTE se concentran fundamentalmente en larecuperación económica de zonas deprimidas y encreación de empleos de forma sostenida, en lospaíses menos desarrollados, el eje de las principa-les políticas todavía es el combate a la pobreza.

Al hacerse un análisis del enfoque del BancoMundial sobre el combate a la pobreza en las últi-mas cinco décadas observamos una interesantevinculación del pensamiento social y económico deesta entidad con la evolución del pensamiento eco-nómico regional.

Durante el auge del desarrollo capitalista de pos-guerra, años cincuenta y sesenta, la realización deinversiones de gran envergadura en capital físico einfraestructura era, para el Banco Mundial, el mediomás eficaz para impulsar el desarrollo.

Con la llegada de la crisis en la década de lossetenta, la idea de que actuar solamente sobre las

inversiones físicas no es suficiente para la resoluci-ón del problema y ha puesto de relieve la necesidadde inversiones también en educación y salud, ins-trumentos que fueron considerados necesarios parael aumento de los ingresos de los pobres.

En la década de los ochenta, la supremacía dela ideología económica liberal instituía como eje delas acciones una gestión pública centrada en elcontrol de la inflación y de la apertura de mercados.Un crecimiento marcado por un uso intensivo demano de obra, inversiones en infraestructuras y ser-vicios sociales.

Estas políticas se revelaron muy poco eficacespara la mayoría de las regiones. A pesar de que en-tre 1987 y 1998 hubo una disminución del porcentajede la población mundial que vivía con menos de undólar al día, pasando de un 28,3 por ciento un 24 porciento, no todos los territorios presentaron mejorascomo ocurrió con América Latina y África.

En su último Informe sobre el Desarrollo Mundial,el Banco Mundial apunta además de la falta deingresos e infraestructuras; la sensación de impo-tencia y falta de representación en las institucionesdel Estado y de la sociedad, como factor clave de laexistencia de la pobreza.

Por tanto, la nueva estrategia propuesta para elcombate a la pobreza habría que tener tres ejesfundamentales: oportunidad, fortalecimiento de losagentes sociales (empowerment) y seguridad.

El aumento de la oportunidad de inserción paralos menos favorecidos debería ser garantizada me-diante las siguientes acciones:• La introducción de reformas deben se enmarcar

en las condiciones institucionales y estructuraslocales

• Inversión en innovaciones tecnológicas• Combate a corrupción• Medidas de protección a las pequeñas empre-

sas• Inversiones públicas en infraestructura y forma-

ción• La apertura del comercio debe ser realizada con

especial atención a las características específi-cas de cada país

• La introducción de políticas deberá alentar lacreación de empleo y controlar la destruccióndel mismo

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• Ampliar la oferta de servicios sociales y acabarcon los obstáculos por parte de la demanda(becas, renta mínima)

• Garantizar la participación de las comunidadesen la selección , prestación y supervisión de losservicios

• Llevar la infraestructura y el conocimiento a to-das las regiones

Este significativo cambio deideas en el seno del Banco Mundialllevó a esta institución a plantear unsegundo factor muy importante parala implantación de las medidaspropuestas anteriormente: el forta-lecimiento de la sociedad civil.

Para el Banco Mundial, “el po-tencial de crecimiento económicoy de reducción de la pobreza de-pende de buena medida del Esta-do y de las instituciones sociales”.Entre tanto las instituciones estatales deberían con-tar con mecanismos democráticos y participativospara la toma de decisiones y la supervisión de sucumplimiento.

La “promoción de una descentralización integra-dora y del desarrollo comunitario” debería compagi-narse con mecanismos eficaces de participaciónpopular y de supervisión ciudadana, favoreciendolas decisiones relativas a la utilización de recursos ya su ejecución.

Por fin, medidas que garanticen la seguridad eco-nómica y social, como el enfrentamiento a proble-mas coyunturales como las catástrofes naturales,consolidarían un estrategia rumbo a un crecimientomás sostenido.

Está claro que este nuevo posicionamiento deuna institución cuyas acciones pasadas han causa-do tanta polémica, y el reconocimiento por su partede que las reglas del mercado no se mostraroncapaces de resolver los problema sociales, especi-almente de los países menos desarrollados, repre-senta un planteamiento más esperanzador en laformulación de las futuras políticas destinadas a losPMD, por parte de los organismos internacionales.

Siendo el fortalecimiento (empowerment) de lasociedad civil a nuestro ver el eje que permite la

eficacia y la sustentabilidad de las medidas econó-micas necesarios al desarrollo, se hace necesariouna breve análisis de la relación sociedad civil yEstado en los países menos desarrollados.

EL PAPEL DE LA SOCIEDAD CIVIL EN LOSPAÍSES MENOS DESARROLLADOS

En las dos últimas décadas los conceptos deSociedad Civil (SC) y organizacio-nes no gubernamentales se relacio-nan cada vez más con su papel endesarrollo económico, social y polí-tico. El intento de precisar el ámbitode la sociedad civil ha acaparadouna serie de estudios. La definiciónmás amplia es aquella que consi-dera la sociedad civil todas las for-mas de acción social, realizadacolectiva o individualmente, que noproceden o son dirigidas por la ad-

ministración del Estado. Otras definiciones procuranhacer una distinción entre la sociedad civil y las esfe-ras privadas de la sociedad, como la empresa y lafamilia; las acciones de la SC se encontrarían entreel privado y el Estado.

Según el Comité Social Europeo (CSE) las orga-nizaciones de la sociedad civil deberían tener comoprincipales características comunes:• Poseer un cierto grado de organización e institu-

cionalización• Ser de carácter privado, y se sitúan entre el Es-

tado y el mercado, constituyendo un ámbito au-tónomo

• Guiarse por sus propios reglamentos• No tener carácter lucrativo• Basarse en la participación y filiación voluntarias

Es claro que estas características no son univer-sales, especialmente en los países menos desarro-llados, donde muchas de las organizaciones de lasociedad civil poseen una frágil organización y insti-tucionalización. Muchas organizaciones, especial-mente las de carácter asistencial, incluso en los pa-íses desarrollados son financiadas por el Estado.Sin embargo, vale resaltar el papel de las empresasdel denominado “tercer sector”, que a pesar de ejer-

Medidas que garanticen laseguridad económica y

social, como elenfrentamiento a

problemas coyunturalescomo las catástrofes

naturales, consolidaríanun estrategia rumbo a un

crecimiento mássostenido.

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cer actividades económicas, se sitúan entre el Esta-do y el mercado capitalista tradicional.

Otro tema fundamental son los intereses a ser de-fendidos. Las OSC no necesariamente defienden losintereses colectivo; al ser creadas por colectivos soci-ales específicos, en su gran mayoría defienden intere-ses de un sector de la sociedad o de sus miembros.

Si es cierto que la organización del conjunto de losagentes sociales locales es fundamental para el de-sarrollo de una ILDE y un PTE, yaque es a través de estas organizaci-ones que se llega al diálogo y al con-senso necesarios para su desarro-llo; más cierto es aún que no sepuede ver estas organizacionescomo sustitutas del Estado, especi-almente en su papel de liderazgo.

Para tanto la existencia de unrégimen democrático y consolidadoes un requisito básico para la ga-rantía de un nuevo concepto degovernabilidad, entendida como elfuncionamiento regular de las insti-tuciones democráticas, y la partici-pación activa de la sociedad civil.

Sin embargo, la historia del siglo XX en AméricaLatina sirve de ejemplo de las dificultades del de-sarrollo de la sociedad civil y sus contradictorias re-laciones con el Estado. Durante la primera mitad delsiglo XX, la consolidación de las repúblicas, el cre-cimiento de las ciudades, y el inicio del proceso deindustrialización, crearon nuevas clases socialesurbanas, que debilitaron relativamente el poder delas elites rurales tradicionales.

Sin embargo, el papel del Estado fue visto poralgunos seguimientos corporatistas como un instru-mento para alcanzar sus objetivos. Para los terrate-nientes, era papel del Estado la manutención de susprivilegios; para los empresarios este debería ser elresponsable por la financiación y protección de lasempresas nacional; y por fin, una parte del movimien-to obrero y de los movimientos sociales le veía comoun factor de protección y de combate a las desigual-dades. Esta coyuntura permitió la ascensión deregímenes populistas, que basaron su relación conla sociedad civil en un triple juego: corporatismo,cooptación y represión.

Las dictaduras de los sesenta hasta los ochenta,rompieron esta triple acción y se basaron esencial-mente en la represión. La sociedad civil capaz deorganizarse se centraba fundamentalmente en larecuperación democrática. La redemocratización, eldebilitamiento de las estructuras económicas, y laapenas existencia de partidos políticos organizadosy representativos, pusieron de relieve el papel delos agentes sociales.

Sin embargo, el continuo distan-ciamiento de las élites sociales enrelación a la población menos fa-vorecida; la liberalización económi-ca, que ha reforzado los mecanis-mos de influencia informales dealgunos grande grupos empresaria-les; la reducción de las funcionespúblicas; la corrupción; y el clien-telismo del Estado, debilitaron di-versas acciones destinadas al de-sarrollo y la organización de algunossectores de las sociedad civil.

Además de la corrupción, el cli-entelismo se manifiesta principal-

mente en cadenas de brokers políticos que manejanrelaciones desiguales y paternalistas con sus clien-tes mediante el monopolio de la información y elcontrol de los beneficios (CEPAL, 2001). El cliente-lismo, en sus manifestaciones de mayor concentra-ción, donde unos pocos grupos gozan de los privile-gios y de los compadrazgos, que conllevan a lacorrupción, la ineficacia de la administración públi-ca, y a la profundización de la desigualdad social.

A medida que los gobiernos, incluso los locales,sirvan a este “juego de representación”, a través deinstituciones públicas diseñadas a atender los inte-reses de una élite, las posibilidades de participacióny de control de la sociedad civil se verán reducidas,incluso por la sumisión de algunos agentes al clien-telismo.

Otra cuestión problemática son las políticas deemergencia o compensatorias, practicadas inclusopor gobiernos dichos progresistas. En territoriosmarcados por desniveles sociales importantes e in-cluso por catástrofes naturales de consideración, laspolíticas de emergencia pueden significar la propiasupervivencia de las clases menos favorecidas. Sin

La sociedad civil capaz deorganizarse se centrabafundamentalmente en la

recuperación democrática.La redemocratización, el

debilitamiento de lasestructuras económicas, y

la apenas existencia departidos políticos

organizados yrepresentativos, pusieronde relieve el papel de los

agentes sociales.

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embargo, la ausencia de políticas de desarrollo sos-tenido socialmente, representa la perpetuación delstatus quo , del paternalismo político y el manteni-miento de la exclusión social y política de una parteconsiderable de la sociedad.

Otro factor importante en América Latina es laexistencia de una gran clase media consolidada yorganizada en asociaciones representativas de susintereses. Incluso, segmentos importantes como lospequeños empresarios, que podríanejercer una presión política importan-te en los gobiernos, se subordinan aun cierto clientelismo y aceptan quelas medidas coyunturales se cons-tituyan en el modo de operar de lospoderes públicos dominados porlas élites empresariales y políticas.

POR TANTO, ¿LOS MODELOSDE LAS ILDE Y DE LOS PTEIMPLEMENTADOS EN EUROPA,SON APLICABLES ALA REALIDADLATINOAMERICANA?

Pensamos que sí. Sin embargo, como afirma laOIT (1999), si la globalización comporta un ciertonúmero de temas y de definiciones comunes a to-dos los países, sus efectos no han variado menosde una región a otra. Los problemas del desarrollo ydel ajuste están arraigados en los contextos históri-cos, culturales, económicos y sociales muy diver-sos.(...) No existe un modelo único ni una prácticauniversal, simplemente experiencias comparables ybuenas prácticas.

Así como las ILDE y los PTE se adaptan a lasdiversidades territoriales europeas, la difusión desus buenas prácticas basadas principalmente enel aprovechamiento de la innovación y el descubri-miento de nuevos yacimientos de empleo; su im-portancia en la creación de empleos locales enEuropa se muestra como una referencia para lospaíses menos desarrollados y a los cuales se debegarantizar su transferencia.

Si el combate inmediato a la pobreza es unapreocupación actual de los organismos internaciona-les, su superación solo se dará con una política de

desarrollo sostenido, para que se pueda alcanzar sueliminación definitiva. Las políticas compensatorias,basadas en un modelo liberal, con la simple creaciónde empleos precarios y temporales, o programas desubsidios coyunturales, no garantizaran a largo plazouna la salida para la sociedad latinoamericana.

Sin embargo, para que se alcance un modelo dedesarrollo más equilibrado y participativo, es nece-sario un cambio profundo en las instituciones guber-

namentales, para que estas puedanejercer el liderazgo de fortalecer einvolucrar a los agentes locales ennuevo modelo de desarrollo.

Este cambio no puede limitarseúnicamente a reformas legales,que pueden ser importantes, yaque diversos espacios de partici-pación creados legalmente con lademocratización de los Estados la-tinoamericanos, como diversosconsejos populares y múltiples lascomisiones tripartitas, se mostra-ron ineficientes debido al inmovi-

lismo y, en algunos casos, la falta de legitimidad delos gobiernos.

El gran desafío debe ser el de fortalecer el papeldel liderazgo de los gobiernos en todas sus nivelesterritoriales. No a través de la reconstrucción de unneo-populismo, sino a través de la construcción denuevos espacios públicos no estatales. Espacios enlos cuales es posible organizar una esfera para dis-putas y consensos, organizada por ley o contratopúblico, para articular la representación política tra-dicional con la presencia directa y voluntaria de laciudadanía. Un espacio donde el Estado recupere sulegitimación y se afirma. Y la sociedad civil expresasu identidad y se fortalece.

Existe, por supuesto, una certeza y una espe-ranza. La capacidad de liderazgo de algunas admi-nistraciones públicas actuales en Latinoamérica enconstruir nuevos espacios públicos no estatales querecuperen la legitimación del Estado y que ayudena fortalecer los agentes sociales, son la esperanzade un cambio hacía un nuevo modelo de desarrollo.La certeza, es que las políticas públicas de desarro-llo y creación de empleos locales implantadas enEuropa, en los últimos años, son un fabuloso yaci-

Para que se alcance unmodelo de desarrollo másequilibrado y participativo,

es necesario un cambioprofundo en las

institucionesgubernamentales, para

que estas puedan ejercerel liderazgo de fortalecer e

involucrar a los agenteslocales en nuevo modelo

de desarrollo.

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miento de buenas prácticas, que ,con la convenien-te atención a las diferencias territoriales, pueden serimpulsadas satisfactoriamente en América Latina.

Sin embargo, la historia nos enseña que la ten-dencia al mimetismo de las buenas prácticas, prac-ticada tanto por los organismos internacionales asícomo por algunos investigadores extranjeros querealizaron sus estudios en Europa, debe ser evitada,para que posamos aprovechar de manera más efi-ciente este legado en la búsqueda de una sociedadcon más y mejores empleos.

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