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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Instituto de Ciências Sociais Departamento de Estudos Latino-Americanos Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - Estudos Comparados sobre as Américas Isolamento voluntário de povos indígenas no Brasil: Do conceito político-antropológico a uma expressão da autodeterminação nas encruzilhadas do indigenismo global Felipe de Lucena Rodrigues Alves Brasília, abril de 2019

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Page 1: Isolamento voluntário de povos indígenas no Brasil: Do conceito ...€¦ · Mudanças institucionais do indigenismo brasileiro entre o surgimento da FUNAI e a redemocratização

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Estudos Latino-Americanos

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - Estudos Comparados sobre as Américas

Isolamento voluntário de povos indígenas no Brasil:

Do conceito político-antropológico a uma expressão da

autodeterminação nas encruzilhadas do indigenismo global

Felipe de Lucena Rodrigues Alves

Brasília, abril de 2019

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Felipe de Lucena Rodrigues Alves

Isolamento voluntário de povos indígenas no Brasil:

Do conceito político-antropológico a uma expressão da

autodeterminação nas encruzilhadas do indigenismo global

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Ciências Sociais - Estudos

Comparados sobre as Américas da Universidade de

Brasília (UnB) como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Cristhian Teófilo da Silva

2019

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Agradecimentos

Há pouco mais de cinco anos, defini como um compromisso pessoal a realização de pesquisa

que pudesse ajudar na compreensão mais geral do tema do isolamento voluntário de povos

indígenas, a partir do ingresso no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais – Estudos

Comparados sobre as Américas, do Departamento de Estudos Latino-Americanos da

Universidade de Brasília, e da interação profissional que tive ao longo da última década com

funcionários públicos que trabalham com esses desconhecidos.

Movido pela constatação de que as histórias pessoais de abnegação, sacrifício e boas

intenções de meus interlocutores e dezenas de outros sertanistas merecem ser amplamente

conhecidas e reconhecidas como parte importante da formação de nosso país, tão marcado

pela ignorância de seu próprio passado de exploração e massacres dos povos indígenas, é a

esses homens e mulheres, quase anônimos fora dos círculos indigenistas e antropológicos, que

primeiramente dedico os resultados deste esforço de pesquisa.

Aos amigos que fiz e aos mestres com quem pude aprender durante esta longa jornada,

agradeço especialmente ao meu orientador Cristhian T. da Silva, por todo o conhecimento

compartilhado, pelo exemplo de docência como missão de vida, pela sensibilidade e

incentivos nos momentos difíceis, que não foram poucos, e pela permanente disponibilidade

de diálogo construtivo. Sem os seus estímulos, dificilmente teria concluído esta etapa da

forma como ocorreu.

Tampouco poderia deixar de mencionar Caio Csermak, Mariana Yokoya, Pétalla Timo,

Augusto Rabelo, Laura Lima, Mara Palhares e Isabel Mesquita, dentre outras pessoas que

levo da universidade para a vida como parceiras da alma, pois cada um, com sua carinhosa

contribuição, ajudou-me a perceber que a vida acadêmica não se trata apenas de noites em

claro, dezenas de livros e centenas de litros de café, mas também da elaboração conjunta de

conhecimento e de nossas próprias individualidades nesse processo.

Às famílias de sangue, de coração e de carnaval que me receberam nesta vida, expresso minha

mais profunda gratidão, por nutrirem minha esperança por dias melhores e por segurarem suas

mãos nas minhas, para que possamos fazer juntos tudo aquilo que não poderia e nem gostaria

de fazer sozinho. Sou o que somos, e que possamos assim desfrutar das realidades que

criamos e ainda criaremos, a partir da compreensão, do companheirismo e da criatividade.

À minha irmã Gabriela, cuja ausência não foi capaz de fazer desaparecer nossa profunda

conexão, a certeza de que estaremos sempre juntos, nos sentidos que as palavras formam, nas

sensações que a música produz e no amor que ilumina as sendas desta vida.

Esta obra não é só minha, é nossa.

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Resumo

Este trabalho é um estudo acerca das práticas e discursos indigenistas das últimas três décadas

no Brasil sobre os povos indígenas amazônicos que atualmente vivem em situação de

isolamento voluntário. Durante esse período, identifica-se um percurso de ascensão e recente

contestação do modelo de proteção baseado no princípio da garantia do isolamento desses

povos, que emerge a partir da definição de novos princípios, marcos constitucionais e práticas

administrativas para proteção estatal de seus territórios desde o fim da década de 1980,

obtendo considerável reconhecimento internacional por ser entendida como uma forma de

promoção da autodeterminação dos povos indígenas.

De modo geral, este trabalho aborda algumas das formas pelas quais o isolamento voluntário

vem sendo compreendido desde a segunda metade do século XX, pela Antropologia, o

indigenismo estatal e nos debates internacionais sobre os direitos humanos e o direito à

autodeterminação dos povos indígenas. A partir daí, buscamos compreender como a interação

entre esses contextos ocorre em termos de normas jurídicas, abordagens epistemológicas e

embates políticos que se comunicam entre si e, justamente por isso, favorecem a influência

recíproca das elaborações práticas e discursivas sobre a realidade objetiva desses povos e das

políticas voltadas à sua proteção.

Palavras-Chave: Indigenismo; Direitos Humanos; Autodeterminação; Povos Isolados; Amazônia (Brasil).

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Abstract

This is a study of indigenist practices and discourses over the past three decades in Brazil with

regard to Amazonian Indigenous Peoples who currently live in voluntary isolation. During

this time, the protection model based on the principle of guaranteeing the isolation of these

peoples has made its way upwards and has recently been challenged. It emerges from the

definition of new principles, constitutional frameworks and administrative practices for state

protection of their territories since the end of the 1980s, obtaining considerable international

recognition for being acknowledged as a mechanism for the promotion of self-determination

of indigenous peoples.

In general, this work addresses some of the ways in which voluntary isolation has been

understood since the second half of the Twentieth Century by anthropology, state indigenism

and in international debates on human rights and the right to self-determination of Indigenous

Peoples. In doing so, we sought to understand how the interaction between these contexts

occurs in terms of legal norms, epistemological approaches and political clashes that

communicate with each other and, precisely for this reason, favor the reciprocal influence of

practical and discursive elaborations on the objective reality of these peoples and of public

policies for their protection.

Keywords: Indigenism; Human Rights; Self-Determination; Isolated Peoples; Amazon (Brazil)

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Sumário

1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9

1.1. O isolamento voluntário como tema interdisciplinar: o campo de pesquisa e seus objetos

teóricos e empíricos ......................................................................................................................... 11

1.2. Encarando o isolamento voluntário: questões orientadoras da pesquisa .................................... 15

1.3. Trajetórias e metodologia de pesquisa ....................................................................................... 17

1.4. Organização do trabalho ............................................................................................................ 21

2. CONTATO E ISOLAMENTO: NARRATIVAS MESTRAS DO INDIGENISMO BRASILEIRO ........ 23

2.1. Do contato como processo civilizatório à impossibilidade do isolamento absoluto: categorias

políticas vistas pelas perspectivas da Etnologia Indígena praticada no Brasil................................... 25

2.1.1. A assimilação para além dos aspectos culturais: estudos sobre a aculturação indígena no

Brasil e alguns avanços e limitações de suas perspectivas teóricas ................................................ 28

2.1.2. Sistemas sociais e a transfiguração étnica: o estudo das relações interétnicas do ponto de

vista do conflito social, das identidades e processos históricos regionais ......................................... 38

2.1.3. O rompimento com a “naturalização da sociedade” e a perspectiva das situações históricas de

povos indígenas ................................................................................................................................. 46

2.1.4. A paulatina visibilidade dos povos invisíveis: elementos de uma abordagem antropológica do

isolamento voluntário ........................................................................................................................ 49

2.2. Mudanças institucionais do indigenismo brasileiro entre o surgimento da FUNAI e a

redemocratização do país: da integração tutelada ao princípio do não-contato ................................. 54

2.2.1. Entre o desenvolvimento e a proteção: discursos e práticas estatais frente às vulnerabilidades

indígenas em sistemas interétnicos ................................................................................................... 57

2.2.2. Regime tutelar e a consciência do indigenismo: a emergência do princípio do não-contato no

Encontro de Sertanistas da FUNAI (1987)........................................................................................ 63

3. FRONTEIRAS DO ISOLAMENTO: O DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO INDÍGENA E A

GLOBALIZAÇÃO DO INDIGENISMO .............................................................................................. 70

3.1. O conceito de isolamento como categoria antropológica, jurídica e política .............................. 71

3.1.1. A ampliação da conceituação política do isolamento.............................................................. 72

3.1.2. Autodeterminação, isolamento e resistência: Contextos políticos globais e a

internacionalização dos movimentos indígenas nacionais ................................................................ 77

3.2. Autodeterminação e a internacionalização do indigenismo ....................................................... 80

3.2.1. O conceito de autodeterminação e o sistema internacional de direitos humanos .................... 82

3.2.2. O Instituto Indigenista Interamericano e a Declaração de Barbados (1971): aproximações

político-antropológicas e a integração dos povos indígenas no indigenismo latino-americano ........ 86

3.2.3. Afirmação e negação da autodeterminação dos povos indígenas no contexto internacional .. 93

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O ISOLAMENTO VOLUNTÁRIO DE POVOS INDÍGENAS NAS

ENCRUZILHADAS DO INDIGENISMO GLOBAL ......................................................................... 102

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS ............................................................... 109

ANEXO I: UM BREVE PANORAMA METODOLÓGICO E ORÇAMENTÁRIO DA POLÍTICA

BRASILEIRA DE PROTEÇÃO TERRITORIAL DE POVOS INDÍGENAS ISOLADOS NO INÍCIO DO

SÉCULO XXI .......................................................................................................................... 119

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Lista de Mapas, Figuras, Tabelas e Siglas

Mapa 1.1 – Localizações confirmadas, referências e informações em estudo de povos indígenas em

isolamento voluntário na Amazônia, no Cerrado e no Gran Chaco .............................................................. 13

Mapa 2.1 – Áreas culturais indígenas do Brasil, 1900-1959 ........................................................................ 31

Mapa 2.2 – Áreas etnográficas da América do Sul ..................................................................................... 32

Mapa 5.1 – Terra Indígena Massaco (RO) e seu entorno .......................................................................... 121

Mapa 5.2 – Localização de informações e referências de povos isolados na Amazônia ........................... 124

Figura 2.1 – Matriz conceitual sobre o isolamento voluntário de povos indígenas ..................................... 52

Figura 5.1 – Evolução orçamentária da FUNAI (2000 a 2017) ............................................................... 125

Figura 5.2 – Evolução orçamentária da política de proteção de povos isolados (2000 a 2017) ................ 126

Tabela 2.1 – Combinações das noções de “identidade” e “cultura” na formação do fenômeno étnico....... 41

Tabela 2.2 – Número de grupos indígenas que se encontravam em 1957 nas diferentes etapas de integração

à sociedade nacional em relação à distribuição dos mesmos em 1900.......................................................... 61

Tabela 2.3 – Comportamento dos grupos indígenas brasileiros que defrontaram com diferentes fronteiras

de expansão econômica da sociedade nacional de 1900 a 1957 .................................................................... 61

Tabela 2.4 – Comportamento dos grupos indígenas brasileiros por troncos linguísticos, de 1900 a 1957,

quanto ao grau de integração à sociedade nacional e quanto à extinção ....................................................... 61

Tabela 2.5 – Populações indígenas brasileiras – 1957 (adaptada pelo autor) ............................................... 61

Tabela 5.1 – Frentes de Proteção Etnoambiental da FUNAI e sua localização ......................................... 122

AAAS – Associação Americana pelo Avanço da Ciência (Em Inglês)

CF/88 – Constituição Federal de 1988

CII/FUNAI – Coordenação de Índios Isolados

CGIIRC/FUNAI – Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato

DID/FUNAI – Departamento de Identificação e Delimitação

ECOSOC – Conselho Econômico e Social das Nações Unidas

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

INI – Instituto Nacional de Indigenismo (México)

OEA – Organização dos Estados Americanos

OIT – Organização Internacional do Trabalho

OTCA – Organização do Tratado de Cooperação Amazônica

RAISG – Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada

SIL – Instituto Linguístico de Verão (Em Inglês)

SNI – Serviço Nacional de Informações

SPI – Serviço de Proteção ao Índio

SPILTN – Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

UNPFII – Foro Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas (Em Inglês)

UNWGPI – Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Populações Indígenas (Em Inglês)

UNDRIP – Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (Em Inglês)

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“La libertad es un derecho ínsito en el hombre por necesidad y per se,

como consecuencia de la naturaleza racional y, por ello, es de derecho

natural.”

― Frei Bartolomé de las Casas

De Regia Potestate, o Derecho de Autodeterminación (1571)

“Assegurar para as populações indígenas o reconhecimento aos seus

direitos originários às terras em que habitam, (...) [e] reconhecer (...) as

suas formas de manifestar a sua cultura, a sua tradição, se colocam como

condições fundamentais para que o povo indígena estabeleça relações

harmoniosas com a sociedade nacional, para que haja realmente uma

perspectiva de futuro de vida para o povo indígena, e não de uma ameaça

permanente e incessante (...)

Ainda existe dignidade, ainda é possível construir uma sociedade que

saiba respeitar os mais fracos.”

― Ailton Krenak, União das Nações Indígenas

Discurso à Assembleia Nacional Constituinte (Brasília, 27/01/1988)

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1. INTRODUÇÃO

Ao longo da história, os povos que habitaram o território que viria a ser

modernamente conhecido como Brasil foram vítimas de nefastas práticas de conquista,

exploração e dizimação por parte de forasteiros que, em busca de riquezas e prestígio,

materializaram incontáveis ondas migratórias para o chamado “Novo Mundo” onde se

encontravam os territórios desses povos. Pelas diversas regiões do Brasil, a posse imemorial

de terras pelos povos originários — absolutamente suficientes para o desenvolvimento

dessas coletividades conforme seus modos de vida tradicionais — pouco a pouco deixa de

se manifestar como regra nas relações interétnicas — não raro percebidas por eles e seus

interlocutores como verdadeiramente internacionais — que se estabeleciam entre os povos

autóctones e crescentes grupos de estrangeiros que, em nome de majestades reais, de

interesses ditos nacionais ou de suas próprias avarezas, desejavam apoderar-se das vidas,

terras e recursos naturais dessas populações.

Nesse sentido, diversos pensadores e intelectuais buscaram compreender os

processos de redução demográfica, transformação cultural, assimilação e fomento ao

conflito interétnico entre os povos indígenas em território brasileiro ao longo dos anos,

aprofundando com suas pesquisas e trabalhos o conhecimento sobre algumas das dinâmicas

sociais, culturais e econômicas que estiveram na base da conquista e da integração

subalterna das populações indígenas aos contextos regionais e nacionais no país.

Dentre esses estudos, achamos por bem mencionar preliminarmente o trabalho

etnohistórico de Carlos Moreira Neto (1988) sobre os povos indígenas da Amazônia entre

1750 a 1850, no qual discute o papel da deculturação e de disputas políticas como a

Cabanagem (1835-1840) no fenômeno de relativo desaparecimento demográfico e cultural

das populações indígenas naquela região, frente aos processos de expansão e dominação

colonial, por sua visão histórica em relação aos efeitos desarticuladores que a integração das

sociedades indígenas à sociedade nacional produziu ao longo dos séculos. Nessa linha, as

obras de Robert Jaulin (1970, 1976) em torno do conceito de etnocídio destacam a perda

cultural e a desarticulação das identidades indígenas como fatores primordiais para que, a

partir de processos de integração subalterna, os povos indígenas diminuíssem

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demograficamente e fossem até mesmo considerados extintos em algumas localidades,

como em diversas províncias do Nordeste brasileiro e em países como o Uruguai1.

Sem prejuízo a outras análises e pontos de vista sobre a tendência ao relativo

desaparecimento e também à reconfiguração da diversidade étnica, podemos afirmar que é

quase consensual no universo acadêmico o entendimento de que os impactos da expansão

da sociedade ocidental sobre as populações indígenas e os territórios coloniais havidos nesta

região do globo, como em muitas outras, foram amplamente desfavoráveis aos seus modos

de vida e organizações sociais próprias; e se não são mais numerosos e conhecidos os casos

de violência interétnica ao longo da história do Brasil, isso provavelmente se deve mais à

deliberada ausência de registros historiográficos que os evidencie, que à insustentável

afirmação de que não teriam ocorrido de forma extenuante e sistemática, haja vista seus

resultados de longa duração2.

Especificamente, este trabalho é um estudo acerca das práticas e discursos

indigenistas ao longo das últimas três décadas no Brasil, período este conhecido como a

Nova República, sobre os povos indígenas amazônicos que atualmente vivem em situação

de isolamento voluntário. Durante esse período, é possível identificar preliminarmente o

percurso de ascensão e recente contestação de um modelo de proteção baseado no princípio

da garantia do isolamento, que emerge a partir da definição de novos princípios, marcos

constitucionais e práticas administrativas para proteção estatal dos territórios desses povos,

entre 1987 e 1988, obtendo considerável reconhecimento internacional a partir de certos

resultados positivos, mesmo nos períodos mais recentes em que se evidencia a sua crescente

exaustão.

De modo geral e temporalmente mais amplo, pretende-se abordar também algumas

formas pelas quais esse isolamento vem sendo percebido e tratado desde o início da segunda

1 Esse “desaparecimento” em muito se explica por fatores epidemiológicos (ver HUERTAS, 2007;

RODRIGUES, 2014 para discussões mais específicas sobre os aspectos de saúde que envolvem a proteção dos

povos indígenas isolados pelos estados nacionais) e pelos efeitos de conflitos e outras formas violentas de interação

interétnica, mas não suficientemente. Por esse motivo, entendemos que os estudos sobre identidades étnicas e sua

resiliência em processos de contato revelam-se como fatores centrais nos processos de aculturação, transfiguração

étnica e invisibilidade da diversidade étnica, como discutiremos no Capítulo 2 deste trabalho.

2 Embora haja dezenas de trabalhos aprofundados sobre os episódios e os processos históricos que

envolveram os povos indígenas do país ao longo dos séculos, tomamos o volume organizado por Manuela Carneiro

da Cunha (1998) sobre a história dos povos indígenas no Brasil como obra de referência para emoldurar os

processos de dominação e integração dos povos indígenas que abordamos nesta dissertação.

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metade do século XX pelos campos da Antropologia, do indigenismo estatal e dos debates

em torno dos direitos humanos e do direito à autodeterminação dos povos indígenas. Com

isso, buscamos compreender como a interação entre esses contextos se dá em termos de

normas jurídicas, abordagens epistemológicas e embates políticos que se comunicam entre

si e, justamente por isso, favorecem a influência recíproca de suas elaborações práticas e

discursivas sobre a realidade objetiva desses povos e das políticas voltadas à sua proteção.

1.1. O isolamento voluntário como tema interdisciplinar: o

campo de pesquisa e seus objetos teóricos e empíricos

O termo “isolamento voluntário” — utilizado pela primeira vez pelo antropólogo

Glenn Shepard Jr. (1996) para se referir aos povos amazônicos considerados isolados em

uma carta aberta à Mobil Prospecting Peru, na qual alerta para os riscos da concessão de

lotes petrolíferos e sua prospecção nos arredores do Rio Las Piedras, situado entre os

departamentos de Ucayali e Madre de Dios, no Peru, regiões onde vivem os Mashco-Piro e

outros povos isolados relativamente desconhecidos — abrange uma realidade que, embora

seja residual nas sociedades nacionais em termos demográficos, faz-se relevante para

compreender a diversidade de abordagens quanto à garantia dos direitos coletivos de grupos

etnicamente diferenciados, existentes às margens do sistema econômico global.

Em virtude da própria natureza do isolamento adotado por dezenas de povos

indígenas na Amazônia e outras regiões do continente, podemos nos apoiar apenas na

estimativa populacional desses povos, de acordo com alguns pesquisadores e agências

internacionais e nacionais, governamentais ou não. De acordo com o Escritório do Alto-

Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas (2012), existem 200 povos

indígenas isolados em todo o continente americano, que somam mais de 10.000 pessoas na

região amazônica. Em um volume sobre o tema dos isolados, Loebens (2012) menciona

uma estimativa mais conservadora, de 127 referências na Amazônia e outras 23 espalhadas

pelo mundo, sem, no entanto, arriscar quaisquer estimativas populacionais, assim como Vaz

(2017) ao estimar 150 registros de povos isolados e de recente contato na Amazônia e no

Gran Chaco, região entre o Paraguai e a Bolívia. Gallois (1992) fala em 50 grupos isolados

no Brasil, enquanto a FUNAI, segundo Amorim (2016: 1), mais atualmente trabalha com

103 referências, das quais 26 tiveram confirmada sua existência. Algumas estimativas

populacionais estão disponíveis para algumas regiões específicas, como a de que existem

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cerca de 5.750 indivíduos de povos isolados no Vale do Javari/AM (ARISI, 2016), 300

indígenas isolados na TI Massaco, em Rondônia, e 600 indígenas no estado do Acre,

segundo campanha virtual da Survival International em prol dos povos indígenas isolados,

lançada em 2011.

Historicamente, o isolamento voluntário é um fenômeno que está relacionado com os

processos de expansão colonial e capitalista sobre as diversas regiões do planeta, persistindo

atualmente como uma estratégia de relacionamento de comunidades etnicamente

diferenciadas com seu entorno em algumas localidades remotas, como a ilha de Sentinela do

Norte, no litoral da Índia, e áreas de cabeceiras de rios ou outras zonas de refúgio

especialmente na Amazônia, cujo objetivo principal é garantir a sua própria sobrevivência

física e sociocultural frente a traumáticas experiências anteriores de contato interétnico e à

situação de multifacetada vulnerabilidade em que vivem.

Com isso, o isolamento voluntário é entendido, antes de mais nada, como um

conceito político elaborado a partir de questões próprias dos estados nacionais e de seus

processos de consolidação social, econômica e territorial em torno da chamada “questão

étnica”, de que nos fala o antropólogo Rodolfo Stavenhagen (1990). A noção de isolamento

e a implicação de rechaço a grupos e dinâmicas externas por pequenos grupos etnicamente

diferenciados que ela carrega são especialmente significativos nos contextos nacionais, e

levaram ao estabelecimento de diferentes políticas indigenistas no contexto brasileiro desde

o estabelecimento de uma agência governamental para esse fim, na esteira da negativa

repercussão internacional de massacres ocorridos na primeira década do século XX3.

Até pouco menos de uma década atrás, o Brasil era o único país amazônico a possuir

uma metodologia estatal específica de proteção territorial e informações demográficas

relativamente precisas quanto aos povos indígenas em isolamento voluntário em seu

território nacional. Com a aproximação técnica entre as agências indigenistas ou similares

3 Registros de diversas naturezas sobre os massacres de povos indígenas no início do século XX foram

feitos por pesquisadores e jornalistas, e dentre eles mencionamos os trabalhos do repórter norte-americano Norman

Lewis (1969), que repercutiu internacionalmente os escândalos relacionados à investigação, que mais tarde

culminaria no chamado Relatório Figueiredo (1968), após sua publicação no jornal inglês The Sunday Times, e do

jornalista Shelton Davis (1977) sobre os efeitos devastadores das políticas de integração e desenvolvimento

regional implementados durante o Regime Militar brasileiro (1964-1985) aos povos indígenas do país.

Paralelamente, podemos recorrer à obra de Darcy Ribeiro em que se evidencia o processo de drástica redução

populacional a partir de dados demográficos do começo do século e do final da década de 1950, os quais

apresentamos mais a fundo no Capítulo 2.

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dos países, no âmbito do projeto da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica

(OTCA) que mencionaremos adiante, e outros fatores pontuais relacionados com os

interesses econômicos sobre os recursos existentes nos territórios desses povos, outros

países como Equador, Peru e Colômbia passaram a desenvolver iniciativas governamentais

nesse sentido, com o apoio variável de organizações não-governamentais que já

trabalhavam com essa temática e contribuíram na elaboração de informações como as

contidas no Mapa 1.1, apresentado a seguir, com ressalvas4.

Mapa 1.1 – Localizações confirmadas, referências e informações em estudo de povos indígenas

em isolamento voluntário na Amazônia, no Cerrado e no Gran Chaco (VAZ, 2017)

4 O Mapa 1.1 indica a localização geográfica de povos isolados, de referências (indícios da existência de

novos povos isolados em vias de confirmação) e de informações menos específicas sobre eles, a serem estudadas e

qualificadas para fins de proteção territorial, conforme compilação da Rede Amazônica de Informação

Socioambiental Georreferenciada (RAISG) disponível em entrevista de Antenor Vaz (2017). Em que pese o

impacto visual dessas informações quando dispostas cartograficamente, é importante ressaltar que apenas parte

delas foram confirmadas como localizações exatas de povos isolados. A sua compilação neste formato é um

instrumento cujo objetivo é ressaltar a necessidade de políticas específicas de proteção desses povos, seja ela pela

interdição territorial, seja pelo controle das relações interétnicas estabelecidas com esses grupos por outros atores da

sociedade nacional, incluindo aí os povos indígenas de contato mais antigo e que, em muitas situações,

compartilham com os isolados não apenas os territórios tradicionais, mas os processos históricos regionais

decorrentes da expansão econômica e política das sociedades nacionais sobre seus territórios.

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Em torno de tal realidade, porém, é necessário compreendermos o pioneirismo

brasileiro nessa temática no contexto em que o país, tendo definido e redefinido suas formas

de atuação junto aos povos indígenas a partir de 1910, com o surgimento do Serviço de

Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN, posteriormente SPI),

e ao longo do século XX, desenvolve uma política especificamente voltada aos povos

classificados como isolados, compreendendo que essa categoria, juntamente com a ideia de

contato, enquanto momento crucial e fundante das relações interétnicas do ponto de vista da

sociedade nacional, está presente em ambos os campos sociais do Indigenismo e da

Antropologia. As interações entre esses campos são de especial interesse se pretendemos

entender as implicações desse fato para as formas como o Estado, entendido aqui

estritamente a partir de seus órgãos indigenistas e servidores, se relaciona não apenas com

os povos indígenas isolados, mas com os diversos segmentos minoritários e marginalizados

da sociedade nacional, ideia esta que intentamos desenvolver ao longo do Capítulo 2 do

trabalho.

Assim, temos como nosso objeto teórico de pesquisa a própria noção de isolamento

voluntário, entendida como uma categoria político-antropológica do indigenismo brasileiro

voltada à classificação dos povos indígenas para fins de integração à sociedade nacional, e

tomada em sua interação com o direito à autodeterminação dos povos, tal qual esta vem

sendo desenvolvida internacionalmente desde o início do século XX e principalmente após

o advento das Nações Unidas, na década de 1940.

Já do ponto de vista empírico, o conceito de isolamento voluntário se manifesta

primordialmente na decisão autônoma de algumas dezenas de grupos indígenas que,

entendidos como povos na acepção internacional do termo, expressam sua vontade coletiva

por uma forma seletiva de relacionamento com os demais grupos sociais com os quais têm

ou poderiam ter relações sociais de outros gêneros e intensidades. O distanciamento social

e, na medida do possível, físico que esses povos optam por manter em relação ao seu

entorno, além de ser frequentemente caracterizado como expressão de sua resistência aos

processos de integração e subordinação da diferença étnica em contextos sociais mais

amplos, traz implicações de diversas naturezas aos seus modos de vida e aos riscos que a

imposição do contato pode trazer, seja dos pontos de vista sócio-cultural e territorial, seja da

perspectiva epidemiológica, considerando a vulnerabilidade desses povos a agentes

patógenos externos.

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15

Ademais, a forma como esse conceito se encontra presente na base das práticas e

discursos indigenistas oficiais, assim como nas reflexões e elaborações teóricas da

Antropologia e no desenvolvimento jurídico do conceito de autodeterminação ao longo da

segunda metade do século XX, são objeto de especial interesse neste esforço de

compreensão do tema, a partir dos quais buscamos compreender seus significados

sociológicos e políticos mais profundos, elucidando alguns questionamentos que emergem

com a pesquisa.

1.2. Encarando o isolamento voluntário: questões orientadoras

da pesquisa

Atualmente, a atuação de instituições públicas, organismos internacionais e

organizações da sociedade civil para a proteção territorial dos povos indígenas isolados na

Amazônia ocorre em um contexto de expansão das dinâmicas políticas e econômicas sobre

aquela região, processo este que, em território brasileiro, tem se intensificado a partir da

década de 1970. Ainda que a complexificação do quadro social da região remeta a períodos

anteriores, como o ciclo da borracha no início do século XX e aos esforços de integração e

dominação interétnica próprios dos períodos colonial e imperial da história nacional, é a

partir do Regime Militar instaurado em 1964 que se intensificam os esforços nacionais de

integração regional da Amazônia às dinâmicas econômicas nacionais e globais, apoiados em

uma abordagem técnico-científica decorrente das interações entre os campos indigenistas e

antropológicos em diversos países do continente, sobretudo entre as décadas de 1940 e

1970. Nesse sentido, um questionamento sobre o tempo presente que se faz necessário

colocar preliminarmente, sem o intuito de respondê-lo efetivamente, é de quais seriam os

significados e implicações da persistência da noção de “isolamento” nas práticas e discursos

indigenistas para se referir/gerir as estratégias de sobrevivência física e cultural de povos

indígenas no contemporâneo mundo globalizado.

A partir dessa primeira questão, voltamo-nos a um esforço de compreensão mais

localizada do tema do isolamento voluntário, considerando o histórico de sua transformação

como objeto de políticas indigenistas desenvolvidas pelo Estado brasileiro, enquanto fontes

de discursos e práticas de dominação que se estendem pelo século XX até a adoção de uma

perspectiva voltada à proteção dos povos que adotam essa estratégia de sobrevivência, no

bojo da redemocratização do país e da redefinição da política desenvolvida pela FUNAI a

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partir do final da década de 19805. Nesse sentido, buscamos delinear algumas das formas

pelas quais as ideias de integração e dominação dos povos indígenas se manifestam

atualmente, do ponto de vista dos isolados e das ações voltadas à sua proteção territorial.

Entretanto, o questionamento que está subjacente a esse primeiro esforço de

pesquisa não se limita a si mesmo, uma vez que a evolução da política de proteção territorial

adotada a partir de 1988 está intimamente relacionada com outros debates que vão além do

campo indigenista oficial, considerando sua interação com a Antropologia e com os debates

internacionais sobre os direitos humanos e o direito à autodeterminação desde a primeira

metade do século XX. Dessa forma, outras perguntas devem ser feitas para compreender o

isolamento voluntário em sua amplitude conceitual e dificuldade de pleno entendimento

pelos agentes nacionais:

1. Quais as implicações dos debates internacionais sobre o direito à

autodeterminação para a garantia da vida e da autonomia de povos indígenas que

vivem em isolamento voluntário? De modo geral, como o isolamento voluntário

pode ser compreendido como expressão da autodeterminação dos povos, e o que isso

implica para o indigenismo estatal?

2. De que formas o debate internacional sobre os direitos humanos e sua

internalização pelo arcabouço jurídico nacional têm contribuído para a proteção e a

garantia dos direitos dos povos indígenas isolados no Brasil?

Ainda, entende-se que a orientação da pesquisa por esses questionamentos permitiu-

nos elucidar parcialmente quais seriam os principais aspectos contraditórios das leis e das

políticas brasileiras de proteção dos povos indígenas isolados, de forma a analisar de forma

mais geral os seus desafios mais candentes e atuais e, espera-se, a contribuir para o seu

aperfeiçoamento do ponto de vista da garantia dos direitos e da autonomia desses povos.

5 Em um de seus trabalhos, Souza Lima (2015b: 440-1) observa que o advento da Constituição Federal de

1988 pôs “um fim ‘jurídico’ ao regime tutelar”, com implicações diretas sobre as formas de organização dos

movimentos indígenas e de atuação do Ministério Público Federal na assistência jurídica aos povos indígenas,

inclusive contra o Estado, não tendo ocorrido, porém, uma incorporação homogênea dos preceitos constitucionais

pelas normas de hierarquia inferior e em sua aplicação pelos tribunais do país. O tema dos povos isolados, como

veremos adiante, situa-se em outros termos, uma vez que sua vulnerabilidade física e cultural, bem como a

expressão de sua autodeterminação por meio do rechaço ao contato interétnico, ensejam uma abordagem distinta

por parte do Estado, que viria a ser proposta e organizada administrativamente a partir de 1987, com a criação da

Coordenação de Índios Isolados, na FUNAI.

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17

1.3. Trajetórias e metodologia de pesquisa

Diante da caracterização dos objetos de nossa pesquisa e da apresentação dos

questionamentos que moveram nossos interesses a realizá-la, é importante ainda neste

capítulo introdutório descrever, ainda que sucintamente, o percurso intelectual e pessoal que

nos trouxe ao desenvolvimento deste trabalho em específico, que se pretende uma humilde

contribuição à elaboração da temática do isolamento de povos indígenas do ponto de vista

das ciências sociais, trazendo contribuições de um campo ou outro das disciplinas que as

compõem sem necessariamente redundar em simples releituras de conceitos e análises já

feitas sobre os povos indígenas do país.

A relevância desta reconstrução da trajetória individual reside em que ela nos

propiciou vislumbrar que a permanente tensão entre o princípio da proteção pelo não-

contato e as pressões econômicas sobre as regiões onde vivem povos indígenas isolados se

revela como um aspecto difuso na sociedade brasileira e dos demais países amazônicos, que

oscila entre a total indiferença e desconhecimento sobre a existência dessas populações e o

consequente endosso de práticas de colonialismo interno, por um lado, e as iniciativas de

agentes estatais e de outras organizações do campo indigenista dedicadas a essa proteção.

Com isso, partimos de um envolvimento profissional com a temática para um engajamento

intelectual no entendimento do assunto de um ponto de vista mais geral, considerando os

significados que um estudo multidisciplinar do isolamento voluntário poderia trazer para os

debates acadêmicos em geral e para a superação das limitações conceituais de uma

abordagem puramente político-burocrática do assunto, excessivamente centrada nas lógicas

do próprio Estado e das respostas dadas a ela.

Assim, temos que esta primeira oportunidade de conhecer mais profundamente as

nuances do debate surgiu a partir de meu ingresso no corpo de funcionários da FUNAI, no

final de 2010, propiciando um envolvimento profissional introdutório com a temática.

Daquele momento até o final de 2015, estive à frente dos diálogos interinstitucionais

mantidos pela Fundação no âmbito de uma ampla iniciativa de cooperação internacional,

que envolveu os países amazônicos membros da Organização do Tratado de Cooperação

Amazônica (OTCA), para a troca de experiências técnicas, políticas e legais sobre as

políticas nacionais de proteção territorial e epidemiológica de povos indígenas isolados. A

partir de então, tornou-se possível perceber que, por mais bem intencionadas e estruturadas

que pudessem ser ou ter sido historicamente as iniciativas do indigenismo oficial, as formas

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de atuação do Estado brasileiro para garantir a sobrevivência de povos indígenas não-

integrados ao longo de toda sua história republicana ainda carecem, ao nosso ver, da

institucionalização de uma abordagem mais ampla da temática. Essa ideia será melhor ao

longo deste trabalho, mas é possível entender que este aspecto, que procuraremos abordar

após algumas reflexões mais específicas, esteve na base das idas e vindas pelas quais a

própria pesquisa passou ao longo de seu amadurecimento e realização.

Em um primeiro momento da pesquisa, pretendíamos compreender os fatores

externos que estariam na origem da vulnerabilidade dos povos indígenas isolados em toda a

Floresta Amazônica, comparando alguns contextos regionais no Brasil, no Peru e no

Equador e suas especificidades quanto aos riscos envolvidos na garantia da sobrevivência e

proteção territorial desses povos frente a determinados fatores de vulnerabilidade, de forma

a elaborar uma compreensão internacional da temática. Ou seja, os diversos elementos e

interesses que ameaçam os territórios e a existência desses povos, desafiando as distintas

políticas nacionais para sua proteção, seriam entendidos como expressões multifacetadas

dos processo de expansão capitalista sobre a Amazônia ou, mais na linha do pensamento e

dos trabalhos do antropólogo Eric Wolf, como pontos locais de redes de relações sociais

mais amplas que emolduram a exploração política e econômica de povos e regiões

marginalizadas pelos centros nacionais e globais de poder.

Além disso, esse primeiro desenho de pesquisa pretendia teria como base as relações

mais próximas de diálogo que havíamos construído com diversos indigenistas no âmbito dos

governos e da sociedade civil desses países, o que contribuiria para uma compreensão

historicamente mais ampla dos processos regionais que se pretendia cotejar, não fossem as

dificuldades práticas de sua realização com tantos interlocutores em tão curto período de

pesquisa. Dessa forma e sem prejuízo à viabilidade futura dessa linha de reflexão, a

investigação foi então redimensionada, passando a se restringir ao contexto brasileiro e ao

desenvolvimento do chamado Sistema de Proteção de Povos Indígenas Isolados pela

FUNAI desde a década de 1980, o que ainda não era o desenho final da pesquisa que

realizamos, mas já trazia alguns de seus elementos.

Isso porque, em setembro de 2018, tive a oportunidade de assistir ao Seminário

“Povos Indígenas em Isolamento Voluntário”, realizado na Universidade Federal do Rio de

Janeiro, onde foi possível reencontrar muitos de antigos interlocutores e também conhecer

outros trabalhos sobre a temática, que vinham sendo realizadas por pesquisadores de áreas

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tão diversas como a antropologia, a linguística, a filosofia, o direito e as ciências da saúde,

para ficar em alguns exemplos. Nesse contexto, foi possível nos darmos conta de que o

ponto de vista que inicialmente se vinha construindo em nosso trabalho sobre os povos

indígenas isolados estava de certa maneira contaminado pela perspectiva profissional que

originalmente nos motivou, e que isso estaria desfavorecendo um desenvolvimento mais

adequado dos elementos de reflexão e de sua própria elaboração como contribuições

originais e adequadas aos subsídios e referências coletados ao longo dos anos de realização

da pesquisa.

Assim, pareceu-nos que os esforços inicialmente planejados de reconstrução

histórica do modelo de proteção territorial desenvolvido pela FUNAI há trinta anos, por

meio de pesquisa documental e entrevistas aos sertanistas que vivenciaram esse movimento

no âmbito da administração pública, seriam redundantes e superficiais, considerando outros

trabalhos que seguem essa abordagem6. Da mesma forma, as puras análises de como o tema

dos povos indígenas aparece em contextos internacionais que também constituem o nosso

objeto de pesquisa certamente trouxeram elementos interessantes para a nossa discussão7,

mas não seria conveniente simplesmente repeti-los em seus argumentos e conclusões, de

forma que, ao fim dessa trajetória, o caminho que procuramos seguir foi o de aproximar

essas “contribuições disciplinares” para compor um quadro mais amplo sobre o conceito de

isolamento voluntário de povos indígenas, dos pontos de vista debatidos em contextos

6 Os trabalhos de Liebgott (2009), Vaz (2011) e Amorim (2016), por exemplo, referem-se mais

especificamente à estrutura administrativa atualmente existente para a proteção de povos indígenas isolados,

estando concentradas no que se poderia entender como uma metodologia de proteção baseada no princípio do não-

contato, do ponto de vista do indigenismo institucionalizado. Em complemento a outros trabalhos mais voltados à

evolução histórica desses processos havidos no âmbito governamental, podemos mencionar entrevistas de

sertanistas, como aquelas reunidas no volume organizado por Milanez (2015), e outras fontes secundárias de

informações sobre a temática, que ajudam a contextualizar contribuições academicamente mais vinculadas ao

campo antropológico, como as dissertações de Arisi (2007) e Villa (2018), em seus esforços de reflexão e

construção de conhecimento.

7 A abordagem comparativa dos indigenismos, presente em trabalhos como os de Silva (2012, 2017) e a

perspectiva internacional sobre os direitos dos povos indígenas de que partem Niezen (2012) e Yamada; Amorim

(2016), dentre outros, para elaborarem suas reflexões, são contribuições epistemológicas que vão além dos pontos

de vista voltados a aspectos específicos das relações interétnicas, como as formas de organização e atuação dos

Estados nacionais sobre os povos indígenas, favorecendo uma compreensão mais ampla de temas como o que

pretendemos analisar em nossa pesquisa. Mais do que nos apoiarmos em suas conclusões para avançar nossa

discussão, a ideia foi nos inspirarmos em suas metodologias e abordagens mais gerais, para produzir um trabalho de

pesquisa que contribuísse com uma abordagem multidisciplinar e geograficamente mais ampla do isolamento

voluntário de povos indígenas.

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nacionais e internacionais, levando em conta a sua relação com o direito à autodeterminação

dos povos e os aspectos estruturais do indigenismo brasileiro que se relacionam entre os

extremos da dicotomia do contato e do isolamento. Com esta nova delimitação, esperamos

partir de uma perspectiva da Sociologia do Conhecimento8 para, ao tomar as categorias do

isolamento e do contato como elementos constitutivos dos campos semânticos do

indigenismo, em sua relação com os campos político e da antropologia, contribuir na análise

das condições de possibilidade de assegurar autonomia ou, ao menos, em um entendimento

mais adequado do que se deve entender e proteger como autonomia, para os povos

indígenas em áreas de fronteira da expansão do capitalismo.

Essa perspectiva multifacetada do isolamento voluntário de povos indígenas na

Amazônia — que procuramos elaborar teoricamente a partir de uma abordagem

inicialmente intuitiva dessas e outras diversas contribuições, e que depois viria a se revelar

bastante singular no sentido de que nos permitiu observar a multiplicidade de significados

que a noção de isolamento adquire nos campos sociais que analisamos — possibilitou-nos a

realização de uma análise que entendemos ser mais adequada à compreensão das

problemáticas envolvidas na existência e nos desafios à garantia dos direitos desses povos,

que abrange desde os elementos originários do modelo brasileiro de proteção territorial

baseado no princípio de não-contato, até aqueles que indicam as fissuras que se alastram por

sua superfície diante do desconhecimento e de interesses e dinâmicas contrárias à sua

existência.

Com isso, os capítulos seguintes deste trabalho foram elaborados de forma a

favorecer a compreensão dos processos políticos que levaram a mudanças substanciais nas

práticas e discursos do indigenismo de Estado no Brasil, em diálogo: (1) com as elaborações

da Etnografia feita no Brasil em suas discussões sobre a presença indígena no país (2) com

o campo jurídico-legalista na elaboração de novos marcos da política indigenista oficial e

8 Referimo-nos à corrente da Sociologia do Conhecimento para destacar a ênfase que se pretendeu dar aos

percursos que a ideia de isolamento, em sua contraposição com a noção de contato, percorreu ao longo do século

XX nos âmbitos da antropologia feita no Brasil, do indigenismo estatal e nos contextos internacionais sobre os

direitos humanos dos povos indígenas, considerando as inter-relações entre esses campos e a produção social de

discursos e práticas voltadas à integração e dominação dos povos indígenas no contexto brasileiro. Para além de

autores considerados clássicos nesse subcampo do conhecimento sociológico, optamos por referenciar os trabalhos

de Cardoso de Oliveira (1976c) e Valle (2004) que abordam as temáticas da identidade e dos sistemas interétnicos

em termos de “campos semânticos da etnicidade”, que aqui procuramos replicar no contexto do indigenismo e de

sua produção do isolamento voluntário de povos indígenas.

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(3) com o debate internacional sobre os direitos dos povos indígenas, no âmbito dos

sistemas internacionais de direitos humanos e de iniciativas regionais de cooperação

multilateral, como aquelas de aproximação indigenista e antropológica em torno do Instituto

Indigenista Interamericano, entre as décadas de 1940 e 1970, e de intercâmbios entre os

governos dos países membros da OTCA a partir de 2010.

1.4. Organização do trabalho

Além desta introdução e da conclusão, o trabalho está organizado em dois capítulos

principais, nos quais nos esforçamos para abordar o isolamento voluntário como uma ideia

subjacente a discursos e práticas no âmbito dos Estados e das sociedades nacionais, mas

também da Antropologia e dos debates internacionais sobre os direitos humanos e o direito

à autodeterminação dos povos indígenas.

No Capítulo 2 (Isolamento e Contato: narrativas mestras do indigenismo brasileiro),

procuramos relacionar o processo de evolução epistemológica ocorrido na Antropologia

brasileira desde o fim da primeira metade do século XX com as mudanças paradigmáticas

do indigenismo oficial até a adoção do princípio do não-contato, em 1988, nas políticas de

proteção territorial de povos não-integrados, especialmente na Amazônia. A linha condutora

dessa discussão passa pelas diferentes abordagens dos conceitos de isolamento e contato no

âmbito da Etnografia e do campo indigenista, com ênfase em seu entrelaçamento num

cenário de dominação e violência interétnica sob os auspícios tutelares do Estado que se

busca desde então superar pela adoção de um novo modelo de proteção, logrando

importantes avanços na proteção desses povos e na preservação de seus territórios e modos

tradicionais de vida e organização social, mas que enfrenta dificuldades práticas e

discursivas para a efetiva garantia dos direitos e da autonomia dos povos indígenas

classificados como isolados.

Ao longo do Capítulo 3 (Fronteiras do Isolamento: o direito à autodeterminação e a

globalização do indigenismo), discutimos a emergência do conceito de autodeterminação

dos povos no âmbito do sistema internacional de direitos humanos que se estabelece ao fim

da 2° Guerra Mundial, primeiro como princípio das relações entre os países e

posteriormente como um direito de coletividades infranacionais, e o processo de

internacionalização do indigenismo que ocorre a partir da segunda metade do século XX.

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Nesse contexto, buscamos relacionar os desdobramentos desses debates com o processo de

evolução da política indigenista nacional desde o estabelecimento de uma política de

proteção territorial baseada no princípio do não-contato e na compreensão do isolamento

voluntário como expressão da autonomia dos povos que historicamente o adotam, desde o

final da década de 1980.

Na parte que traz nossas considerações finais (O isolamento voluntário de povos

indígenas nas encruzilhadas do indigenismo global), concluimos apontando alguns dos

desafios atuais da política de proteção dos povos indígenas isolados conforme sua

vinculação com os debates internacionais sobre o direito à autodeterminação dos povos

indígenas, frente às dificuldades políticas, orçamentárias, administrativas e discursivas que

se apresentam mais recentemente. O alerta de especialistas e analistas do tema de que, em

detrimento dos avanços alcançados ao longo dos últimos anos, estaríamos vislumbrando

uma nova “década do contato”, com todas as implicações negativas de violações de direitos

humanos e de dizimação desses povos que isso potencialmente acarretaria, nos moveu a

realizar uma reflexão sobre a aplicação seletiva de normas nacionais e internacionais, a

partir da tomada do Estado por interesses patrimonialistas e historicamente voltados a um

modelo de desenvolvimento econômico desigual e excludente, que marcou a história da

Amazônia ao longo do séculos.

Assim, entendemos ser possível delimitar um percurso rico em reflexões para

compreendermos os processos políticos e ideológicos pelas quais o isolamento voluntário

emerge do secular processo de integração e dominação dos povos indígenas na América

Latina e se ressignifica como conceito antropológico, jurídico e administrativo

governamental ao longo do século XX até a atualidade. Com o passar das décadas, a

interação entre os campos antropológicos, indigenistas e jurídicos nacionais e internacionais

em torno dos conceitos de aculturação, contato e isolamento de povos indígenas propicia

espaços de discussão e definição política que tornam a temática do isolamento bastante

complexa, em termos de sua crescente, mas ainda insuficiente visibilidade, e de sua

compreensão e possível superação conceitual pelas agências e agentes do indigenismo de

um ponto de vista global.

* * *

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2. CONTATO E ISOLAMENTO:

Narrativas mestras do indigenismo brasileiro

As ideias de evolução e integração dos povos indígenas à sociedade nacional

estiveram na raiz de muitos dos debates políticos e antropológicos sobre a diversidade

étnica e a garantia dos direitos desses povos ao longo do século XX. Com isso, as diversas

formas de compreender e lidar com esses povos, tanto do ponto de vista das políticas

oficiais quanto do campo intelectual, se basearam no binômio isolamento e contato,

contribuindo para a persistência de uma aproximação colonialista e de dominação sobre

essas populações e, em certas medidas, respondendo por uma grande variedade de

imposições e violações de direitos humanos sofridas pelos povos indígenas no país ao longo

da história republicana.

Sob o ponto de vista do processo de consolidação do campo antropológico no Brasil

a partir da década de 1930, com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras

(posteriormente FFLCH) e o estabelecimento temporário de intelectuais estrangeiros na

Universidade de São Paulo (USP), bem como com a crescente realização de pesquisas

etnológicas no âmbito do Museu Nacional e do Museu do Índio, no Rio de Janeiro,

buscamos neste capítulo dialogar com antropólogos e outros cientistas sociais que

contribuíram para o desenvolvimento desse campo intelectual entre as décadas de 1940 e

1980. A partir dessa leitura e da análise das bases conceituais desses trabalhos, procuramos

compreender de que formas os dois conceitos que orientam este capítulo se situaram ao

longo das trajetórias acadêmicas da noção de aculturação dos povos indígenas e das

abordagens sociológicas sobre as relações interétnicas, que surgem a partir da década de

1960 e passam a influenciar crescentemente o pensamento sobre a diferença étnica no país.

Considerando as interações entre a Antropologia e o campo indigenista oficial na

elaboração e desenvolvimento da política indigenista, que vão se avolumando ao longo

desse mesmo período e contribuindo para que as trocas colaborativas ou críticas entre essas

instâncias sociais se materializassem em novas práticas e discursos sobre o isolamento e a

integração de povos indígenas no país, os trabalhos de Antônio Carlos de Souza Lima

(1987, 1989) nos ajudam a compreender mais a fundo como se deram essas transformações,

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a partir do conceito de campos sociais9. Para esse autor, na medida em que se amplia o

conhecimento etnológico, as trocas entre o campo intelectual e o campo indigenista –

conformado sobretudo pelas instituições estatais, mas não somente – atendem ao propósito

de legitimação e crítica de certas construções ideológicas e práticas administrativas em

torno da situação concreta de isolamento, tal qual havia ocorrido na vinculação entre as

primeiras experiências indigenistas oficiais e a ideologia de inspiração positivista que

animava as elites políticas e econômicas nacionais nas primeiras décadas do período

republicano nacional.

Para compreendermos a crescente importância dos debates antropológicos havidos

no Brasil para a evolução das políticas indigenistas nacionais, é importante, ainda, situá-los

no âmbito das interações que se dão entre intelectuais latino-americanos de diversos países a

partir da primeira metade do século XX, contribuindo para a emergência de um indigenismo

de cunho antropológico em diversos países do continente. Distinto daquele que se vinha

desenvolvendo até então, esse indigenismo tem como marcos referenciais – primeiro de sua

internacionalização e depois de sua crítica –, a nosso ver, a criação do Instituto Indigenista

Interamericano, em 1940, e a Declaração de Barbados, de 1971. Ao longo desse período, a

interação entre os campos intelectuais e os indigenismos nacionais ocorreu a partir da

atuação de uma ampla variedade de agentes e agências, incluindo os órgãos indigenistas

(como o SPI e a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, no Brasil, e o Instituto Nacional

Indigenista – INI, no México), os centros nacionais de pesquisa em Etnologia e Linguística,

dentre outras áreas afins (dos quais destacamos a USP, o Museu Nacional e o Museu do

9 Em sua dissertação de mestrado, defendida no Museu Nacional, da UFRJ, Souza Lima (1985) descreve

inicialmente a abordagem de campos sociais que viria a desenvolver ao longo de sua carreira acadêmica, que para

nós é de grande utilidade analítica quando abordamos a interação entre os contextos da Antropologia, do

Indigenismo e dos debates internacionais sobre os direitos humanos. A estruturação de discursos e práticas próprias

dos atores e grupos que se relacionam nesses campos sociais – elaborada a partir das contribuições de Cardoso de

Oliveira (1976b) sobre os aspectos discursivos que estruturam as identidades étnicas e sua interação nos sistemas

sociais a partir da noção de “fricção interétnica”, que ressalta a conflitividade existentes nessas relações – é assim

percebida como característica que envolve não apenas os aspectos discursivos que conformam aquilo que Cardoso

de Oliveira (1976d) chama de “campos semânticos da etnicidade”, ao se referir aos conjuntos de processos

ideológicos de elaboração e interação das identidades étnicas, mas também a estruturação de aspectos políticos e

comportamentais que com os primeiros se relacionam.

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Índio, no Rio de Janeiro, e a Universidade de Brasília, em um período posterior, além do

Museu Nacional de Antropologia, no México) e outras organizações como o Instituto

Linguístico de Verão (SIL, em inglês).

Com isso, a ideia deste capítulo é nos concentrarmos nas evoluções epistemológicas

e teóricas havidas no âmbito da Etnologia brasileira ao longo do período entre 1940 e 1980

com foco em um subcampo específico do campo indigenista, qual seja, aquele

compreendido pelas trocas colaborativas ou críticas entre sertanistas, indigenistas e

antropólogos. Ao mesmo tempo em que procuraremos evidenciar a importância dessa

instância para a compreensão mais geral dos fenômenos da diferença étnica, discutiremos a

evolução discursiva dos conceitos de contato e isolamento, tidos enquanto ideias-valores

que estão na base dos discursos e das práticas indigenistas, configurando novas formas de

classificação dos povos indígenas para fins de administração, passíveis de análises

sociológicas a esse respeito10

.

2.1. Do contato como processo civilizatório à impossibilidade do

isolamento absoluto: categorias políticas vistas pelas perspectivas

da Etnologia Indígena praticada no Brasil

A existência de realidades sociais distintas em espaços compartilhados é um aspecto

da expansão do capitalismo a níveis globais e regionais, em que a produção do espaço

capitalista, nos termos de David Harvey, trouxe profundas mudanças sociais e culturais aos

povos indígenas, mesmo aqueles que habitam as mais remotas áreas do planeta. No marco

dos conflitos territoriais que ocorrem a partir da sobreposição de cosmologias e

territorialidades que envolvem os espaços ocupados por esses povos, de que nos fala Paul E.

10

Um exemplo interessante de classificação dos povos indígenas a partir de categorias administrativas é

discutido por Souza Lima (2005a) em um trabalho que, elaborado no contexto do projeto “Estudo sobre Terras

Indígenas no Brasil: invasões, uso do solo e recursos naturais” (coordenado por Oliveira no âmbito do Museu

Nacional) e publicado em diversas circunstâncias desde meados da década de 1980, está voltado à discussão sobre

a historicidade da categoria de “identificação” de terras indígenas. Na versão que estudamos, esse autor compara a

atuação fundiária da FUNAI com o período do SPI, pontuando as ideias básicas que conformam a ideia de

identificação e sua emergência recente no indigenismo nacional, a partir da Portaria nº 255/N, de 02/06/1975.

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Little (2001) ao analisar alguns contextos regionais da Amazônia, a usurpação da soberania

dessas populações ao longo da História é um processo evidente, embora não completamente

conhecido em seus desdobramentos. Nesse sentido, os processos de expropriação territorial

dos povos indígenas foram compreendidos ao longo da evolução das Ciências Sociais a

partir da ideia de que sua progressiva integração aos sistemas sociais nacionais se deu em

termos de imposições violentas, mudanças culturais e reconfigurações sociais das diferenças

étnicas, o que foi determinante para a evolução da perspectiva antropológica nacional sobre

a temática.

É importante ressaltar que os trabalhos dos antropólogos pioneiros no estudo da

realidade brasileira se mantiveram, de certa forma, associados às tradições ditas universais

da Antropologia enquanto disciplina acadêmica, sendo a proeminência da Etnologia nas

primeiras décadas dessa especialização geográfica da disciplina uma decorrência da

especificidade dos processos sociais e culturais envolvendo os povos indígenas do país.

Nesse contexto, a vinda de intelectuais franceses como Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide

e Fernand Braudel para a Universidade de São Paulo, na segunda metade da década de

1930, e sua contribuição para a formação de pesquisadores e a projeção de destacados

pensadores nacionais como Antonio Candido, Florestan Fernandes, Roberto Cardoso de

Oliveira, Milton Santos, Egon Schaden, Sérgio Buarque de Holanda e Fernando Henrique

Cardoso, entre outros, favoreceram a expansão do pensamento social nacional no âmbito de

seus respectivos campos de atuação, inclusive na Antropologia. Apenas a título de

ilustração, podemos mensurar a produção acadêmica no campo da Etnologia brasileira pela

menção de Júlio Cezar Melatti (1970) ao levantamento feito por Herbert Baldus no segundo

volume de sua “Bibliografia Crítica da Etnologia Brasileira” (1968) da existência de

exatamente 2.834 (duas mil oitocentos e trinta e quatro!) obras publicadas até o ano de

1967, tendo os povos indígenas do Brasil como tema ou a eles se referindo.

Com isso, temos que a formação de um campo antropológico nacional, com base em

tal intercâmbio com pesquisadores de grandes centros globais e de outros polos continentais

de pesquisa e no crescente interesse sobre as “questões indígenas”, é um processo que

remete tanto à especificidade dos processos de dominação sobre os povos indígenas que

historicamente tiveram lugar no país, quanto ao potencial de sua persistência nos processos

de expansão interna das dinâmicas econômicas e sociais nacionais, o que contribuiu para o

levantamento de questões que as tradições do pensamento humanista ocidental não foram

capazes de apreender totalmente. Ainda assim, as contribuições epistemológicas de linhas

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teóricas da Antropologia e da Sociologia, especialmente, avançaram a reflexão geral sobre a

diferença cultural entre os povos ditos selvagens e a civilização ocidental, as dinâmicas de

dominação interétnica e as formas de organização social, não dissociando, assim, os

desenvolvimentos nacionais das tradições científicas ditas universais.

É interessante situar esta menção às tradições da Antropologia nos termos que

Cardoso de Oliveira (1988: 59-60), em suas reflexões sobre o desenvolvimento das

tradições da disciplina desde seus primórdios no século XIX, caracterizando-os como

“paradigmas da ordem”, pois é a partir desse pressuposto que seus representantes realizam

seus trabalhos, estando a categoria de ordem explícita nas diferentes escolas, enquanto

noção devidamente tematizada em seus respectivos discursos. Segundo ele:

“O paradigma racionalista, já em seus primeiros passos na École Française [de

Sociologie], aplica-se tanto na questão da organização social [...] como na descoberta de

‘formas elementares’ ordenadoras do pensamento primitivo [...]. Na questão, equacionada

em termos de estrutura social e de função social, destaca-se o paradigma estrutural-

funcionalista particularmente no que diz respeito à instituição do parentesco e aos grupos

organizacionais tão extensamente estudados na British School [of Social Anthropology],

enquanto o paradigma culturalista, subjacente à American Historical School of

Anthropology, conduz à indagação para os processos culturais e ao estabelecimento de

padrões ou regularidades culturais.

A categoria da ordem implementa a investigação científica, teórica ou ‘de campo’, em todo

amplo espaço ocupado por essas ‘escolas’, [com tal força] [...] que ela não apenas orienta o

discurso das diferentes ‘escolas’ [e] a gramaticalidade da linguagem antropológica, o que

constituiria, a bem dizer, o impensado da disciplina, como ainda se manifesta no centro de

sua problemática [...].

[...] O quarto paradigma, o hermenêutico, começa a se impor na disciplina na medida em

que logra contaminá-la de elementos conceituais solidários de uma categoria oposta à da

ordem, isto é, de uma determinada ordem que se caracteriza por domesticar eficazmente

esses elementos, a saber, a subjetividade, o indivíduo e a história”.

Dessa forma, quando optamos pela abordagem dos conceitos de isolamento e

contato do ponto de vista da Etnologia Indígena feita no Brasil, o fazemos a partir da

especial atenção que esta deu à centralidade desses conceitos nos processos de formação da

identidade e consolidação política do Estado-Nação, com o objetivo de auxiliar na

compreensão das relações que existam entre esse campo do conhecimento e a elaboração

política do indigenismo nacional e de suas práticas, normas e discursos em relação aos

povos indígenas do país. Assim, pretende-se observar os percursos antropológicos das

noções de isolamento e contato enquanto conceitos políticos para entender de que formas a

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Etnologia Indígena, direta ou indiretamente, abordou essa temática e, com isso, contribuiu

no processo evolutivo da política indigenista no país.

2.1.1. A assimilação para além dos aspectos culturais: estudos sobre a

aculturação indígena no Brasil e alguns avanços e limitações de suas

perspectivas teóricas

No contexto da Antropologia feita no Brasil durante a primeira metade do século

XX, constituía-se como principal aspecto de reflexão teórica a Cultura, este conceito tão

amplo quanto incompreendido que podemos sintetizar para os fins deste trabalho como a

dimensão simbólica da vida individual e coletiva associada à visão de mundo, aos valores,

aos costumes, aos rituais e às práticas tradicionais de grupos sociais etnicamente

diferenciados11

. Compreendidas como realidades sociais em vias de desaparecimento, as

culturas dos povos indígenas foram durante boa parte desse período analisadas sob essa

perspectiva, o que não poderia deixar de contribuir para o avanço da ciência antropológica

em terras brasileiras. À medida que as pesquisas deslocavam seu interesse da análise isolada

dos aspectos diferenciais da realidade cultural dos povos indígenas para estudos de cunho

comparativo focados nos processos de aculturação

Ao longo desse período, a ênfase das pesquisas nos aspectos culturais diferenciais

desses povos foi sendo deslocada para a compreensão e análise comparativa de suas

realidades culturais, nas quais as dinâmicas de transformação e integração cultural passaram

a ser problematizadas e vista sob uma perspectiva mais ampla, que incluía não somente os

efeitos socialmente desagregadores dessas questões, mas também a sua caracterização como

vias de mão-dupla, em que a interação social entre grupos étnicos era determinante para a

formação de contextos sociais interétnicos, onde a influência da “cultura indígena” sobre

discursos e práticas de outros atores sociais era significativa (GALVÃO, 1960: 01). Nesse

contexto, Eduardo Galvão discute a emergência de novas formas de classificação cultural

dos povos indígenas pela Antropologia, que segundo ele ocorre em um processo de

complexificação das análises etnológicas sobre as relações interétnicas, ainda que não seja

utilizado este termo para apresentar a sua proposta de áreas culturais existentes no país no

11

Considerando a diversidade de trabalhos sobre a elaboração do conceito de Cultura ao longo da história

da Antropologia, temos que essa definição se respalda nos trabalhos de Laraia (1986b) e Cardoso de Oliveira

(1976b), sem prejuízo a outras referências que exploram esse debate.

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final da década de 1950. Para ele, a evolução dos estudos sobre aculturação contribuiu para

evidenciar a necessidade de elaboração de divisões geográficas que refletissem não apenas a

limitada identidade entre os aspectos culturais e linguísticos que aproximavam ou afastavam

diferentes grupos indígenas, mas principalmente aqueles aspectos sociais de afinidade ou

divergência presentes nas relações entre os povos indígenas e os membros da sociedade

nacional. Com isso, uma série de propostas de conceituação do que se viria a chamar de

“áreas culturais” surgiu nessa época, sobretudo a partir da aplicação de critérios

socioculturais por antropólogos norte-americanos em esforços de categorização dos povos

indígenas sul-americanos, com maior ou menor nível de detalhamento a depender da

combinação desses aspectos na elaboração metodológica dos mapas e descrições dessas

áreas12

. Nesse contexto, Galvão observa que a classificação mais adequada das áreas

culturais do Brasil deveria partir desses primeiros esforços continentais realizados no

âmbito da Antropologia estadunidense para, em algumas etapas, ser capaz de levar em

consideração os fatores de dispersão e trocas culturais envolvidos na conformação de áreas

passíveis de receberem tipologias específicas.

“Uma classificação de áreas culturais indígenas em território brasileiro terá, a nosso ver,

que proceder por etapas. Em primeiro lugar torna-se necessário um levantamento das tribos

remanescentes numa base temporal definida (...). Em segundo lugar e dependente do

período escolhido, torna-se mister (...) a definição da situação de contato de tribos

selecionadas como representativas da área [com base em suas vertentes intertribal e

externa, e as respectivas resultantes aculturativas]” (GALVÃO, 1960: 13-15).

Assim, aproxima-se do levantamento publicado por Ribeiro (1957) e utiliza o

mesmo recorte temporal para, a partir de uma depuração das classificações feitas por

Murdock (1951) e Steward (1949), elaborar um esquema que levasse em maior

consideração os aspectos aculturativos que chama de intertribais e, com isso, tivesse maior

12

Para acompanhar a evolução desses esforços de regionalização realizados por antropólogos norte-

americanos, mencionamos em ordem cronológica e de complexidade no que diz respeito às categorizações dos

povos indígenas brasileiros, os estudos detalhadamente analisados por Galvão (1960): Wissler (1922), Kroeber

(1923; 1948), Stout (1938); Cooper (1942); Bennet e Bird (1949); e Murdock (1951), sendo este último aquele que

mais se aproxima da definição tradicional de áreas culturais ao propor um modelo equilibrado considerando a

heterogeneidade de dados etnográficos para comparação de povos distintos e a superação da tendência à

classificação com base em ausências de aspectos culturais. Schettino (1996: 4) observa que o conceito de áreas

etnográficas, proposto por Melatti (1979) décadas após os esforços que mencionamos, apoia-se também em

critérios como “(...) meio ambiente, situação de contato atual, semelhanças etnohistóricas, apoio logístico, polos de

articulação, fronteiras econômicas, frentes de expansão da sociedade nacional e jurisdições político/administrativas,

constituindo um conjunto de informações etnográficas relativas a um determinado contexto previamente restrito”.

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poder explicativo no que diz respeito às relações entre os grupos e povos indígenas,

especialmente nas áreas de povos considerados “marginais” aos demais tipos, passíveis de

maior detalhamento conforme a disponibilidade de dados etnográficos. Dessa forma, é

possível inferir que o modelo de áreas proposto por Galvão (1960: 16-39) tem o grande

mérito de refinar as áreas culturais que vinham sendo elaboradas do ponto de vista do

culturalismo norte-americano, apoiando-se e permitindo futuros aprimoramentos a partir da

crescente diversidade da produção etnológica nacional. As onze áreas, contemplando mais

de oitenta povos indígenas, propostas por ele:

“(...) constituem grandes áreas cuja subdivisão é sugerida com maior ou menor

especificidade por outros de configuração mais complexa, da mesma área, segundo os

dados etnológicos a nosso dispor. A inclusão de alguns grupos nessas áreas poderá parecer

arbitrária. Assim, por exemplo, a classificação dos Karajá na área Tocantins-Xingu, em que

predominam elementos Timbira-Kayapó. Ao invés de considerar os primeiros atípicos, ou

isolá-los numa província autônoma, achamos que além de possuírem alguns traços em

comum, representam uma especialização a um setor do ambiente geográfico, o rio

Araguaia.” (GALVÃO, 1960: 15-16).

Considerando a relevância desse esforço classificatório dos povos indígenas em

áreas culturais para os desenvolvimentos posteriores no campo da Etnologia e do próprio

indigenismo oficial na execução de políticas voltadas à integração desses povos à sociedade

nacional, temos que sua reprodução (Mapa 2.1) atenderia ao propósito de irmos

compreendendo de forma objetiva como a evolução do conhecimento antropológico sobre

as populações indígenas nacionais esteve na base da evolução das relações interétnicas ao

longo do século XX, sem que deixemos de ressaltar as limitações dessas elaborações sobre a

diversidade étnica dos povos indígenas na atualidade.

A perspectiva científica que está subjacente a esses esforços de definição de áreas

culturais no país e no restante do continente americano foi problematizada por Julio Cezar

Melatti e outros autores, não apenas no sentido de apontar suas limitações, mas de elaborar

novas propostas a partir de seu refinamento (Mapa 2.2). Segundo esse autor, na última versão

de seu material sobre as áreas etnográficas do continente americano (2016), e como iremos

discutir ao longo deste capítulo, o acúmulo de conhecimentos etnográficos a respeito dos

povos indígenas do país, que tem início nos estudos sobre a aculturação e se prolonga até os

dias de hoje, permite que se evidencie a arbitrariedade e transitoriedade da definição de

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quaisquer áreas de afinidades e distinções entre diferentes povos indígenas a partir da

produção etnográfica13

.

Mapa 2.1 – Áreas culturais indígenas do Brasil, 1900-1959 (GALVÃO, 1960)

13

Destaque-se que a definição de áreas culturais ou etnográficas não reflete uma realidade objetiva ou

politicamente neutra, e sua permanente reconfiguração por diversos atores sociais, pelas vias da contestação ou

aceitação, atende a diversos propósitos em torno da temática indígena, inclusive na definição das políticas

indigenistas. Isso fica evidenciado, por exemplo, no texto em que SCHETTINO (1996) propõe a incorporação do

conceito de áreas etnográficas de MELATTI (2016) pelo departamento de identificação e demarcação da FUNAI

como uma forma de racionalização e refinamento da política de demarcação de terras indígenas ou, nas palavras do

autor, “[de] definição de áreas onde, mediante semelhanças, se possa aglutinar a demanda fundiária indígena para

que seja considerada e atendida pela FUNAI, conforme os procedimentos administrativos próprios.” (1996: 4).

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Mapa 2.2 – Áreas etnográficas da América do Sul (MELATTI, 2016)

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Paralelamente a essa discussão sobre as áreas culturais ou etnográficas, o percurso das

pesquisas antropológicas sobre as culturas indígenas e os processos de aculturação viria a ser

objeto de uma ampla análise sobre o contexto, as contribuições e as limitações da perspectiva

culturalista nos estudos sobre mudanças culturais no Brasil, realizada pelo antropólogo Egon

Schaden (1969). Para tanto, inicia o seu trabalho com um importante panorama dessas

pesquisas e suas aplicações ao contexto dos povos indígenas no país, em que se

problematizam tendências de alguns desses estudos: para o autor, alguns deles falham, em um

primeiro momento, ao perceberem as culturas indígenas como meras unidades em

desagregação diante dos processos de assimilação, e posteriormente ao se aprofundarem

excessivamente nos efeitos da aculturação sobre determinado aspecto da vida indígena, como

relações de parentesco, religião, hábitos alimentares e práticas econômicas, sem

necessariamente percebê-los como parte de uma rede de causalidades composta também por

outros elementos culturais e sociais.

De uma forma ou de outra, percebe que os estudos sobre a transformação cultural

ainda careciam de maior consistência para ajudarem na compreensão do contato interétnico,

uma vez que o pressuposto da decadência cultural dos povos indígenas, devida à

transformação de seus traços étnicos, implicava uma teoria da mudança cultural que via como

impossível a sobrevivência de culturas diferenciadas no âmbito das sociedades ocidentais,

como resignadamente transparece Schaden (1955: 200).

"Apesar de tudo o que se procura fazer em prol do índio brasileiro, as perspectivas do

futuro não são de todo promissoras. O problema é fundamental: o da sobrevivência. Um

meio de garanti-la seria manter as tribos isoladas de qualquer contato com a civilização, a

fim de preservá-las das consequências fatais do convívio com o branco invasor. Mas é

utopia, infelizmente.

Enquanto possível, é claro, há de conservar-se e defender-se o isolamento total, mas, de

outro lado, basta um pouco de realismo para se compreender que não existe poder no

mundo capaz de reter o avanço da civilização até os lugares mais recônditos da floresta e de

assim prevenir a destruição das primitivas condições de vida. Seria tolice negar esse fato.

Por mais que nos entristeça, as culturas tribais vão desaparecer e não há como salvá-las.

Não obstante, os seus portadores, os índios como elemento humano, é que devem merecer a

nossa apreensão e os nossos cuidados especiais. Cumpre dar-lhes amparo eficiente e

integral, para não desaparecerem juntamente com as formas-de-vida que herdaram de seus

antepassados, auxiliá-los a vencer a crise aculturativa na perigosa fase de marginalidade e

levar-lhes os meios para construírem uma vida nova e não ficarem ao abandono em um

mundo estranho que por nossa causa se vêm obrigados a aceitar.”

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Antes, porém, que antropólogos como Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira

buscassem compreender os fenômenos da mudança cultural como expressões da persistência

étnica dos povos indígenas brasileiros diante dos complexos processos de aculturação que

enfrentam historicamente, outros estudos, ainda que não ousassem a tanto, já levantavam

questões e linhas causais sobre o assunto a partir da observação etnográfica de contextos

específicos de contato interétnico. Nesse contexto, Roque Laraia discute a diversidade dos

esforços de vários antropólogos na elaboração de classificações dos povos indígenas com base

nas expressões de contato e isolamento existentes.

“Consideramos interessante destacar a análise de Schaden (1965: 34) das tentativas realizadas

por antropólogos brasileiros de ‘estabelecer uma tipologia das situações de contato entre os

grupos nativos e os representantes de nossa cultura’. Nosso destaque prende-se ao fato de que

a grande parte dos antropólogos considera apenas a tipologia desenvolvida por Ribeiro (1957)

e ignora totalmente as demais tentativas.

O primeiro trabalho citado é o de Baldus (1945: 281-283), que estabeleceu duas categorias

básicas, o contato direto e o indireto, cada uma delas subdivididas em duas outras, o contínuo

e o intermitente. A crítica de Schaden é que Baldus não levou em conta as inúmeras

possibilidades de variação contidas nas categorias relacionadas. Dois anos depois de Baldus,

Donald Pierson e Mário Wagner Vieira da Cunha (1947-1948) estabelecem uma nova

tipologia, que foi dividida em nove categorias: 1) em contato contínuo com representantes de

nossa cultura (com núcleos de missionários, postos militares, postos de funcionários do

governo, povoadores); 2) em contato regular, mas intermitente; 3) em contato ocasional; 4)

sem contato algum; 5) divididos pela invasão dos brancos, em unidades menores, já sem

contato entre si; 6) divididos em subgrupos sujeitos a diferentes condições de contato; 7) em

contato regular com representantes de outras tribos em processo de aculturação, mas com

pouco ou nenhum contato com brancos; 8) em contato prolongado com índios de cultura

diferente; 9) em contato ocasional ou contínuo com portadores de cultura africana e, às

vezes, simultaneamente com outros, de cultura europeia.

Schaden criticou essa tipologia pela falta de um critério geral de classificação, mas considerou

“o mérito de mostrar a dificuldade do problema”. Embora tenha comentado, em seguida, as

ideias de Darcy Ribeiro (1957) em “Culturas e línguas indígenas” sobre as consequências do

contato, não faz nenhuma referência à classificação da tipologia de contato desenvolvida pelo

mesmo. O estranhamento se deve pelo fato de que essa tipologia passou, a partir de então, a

ser aceita pela maioria dos antropólogos brasileiros. O interessante, também, é que Darcy não

fez nenhuma menção às tipologias anteriores.” (LARAIA, 2013: 434-5).

Em linhas gerais, Schaden coteja essas e outras contribuições como parte de um

esforço mais amplo para compreensão e análise da complexa rede de relações causais que

envolvem os processos de mudança cultural, um longo e coletivo processo de maturação

teórica. Com base nele, antropólogos como Herbert Baldus, Charles Wagley, Eduardo

Galvão, Robert Murphy, Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira empreenderam

pesquisas que, em que pesem suas limitações de metodologia e alcance para formulação de

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uma teoria geral do contato interétnico, possuem “(…) o valor incontestável de não somente

avivar a consciência dos limites da uniformidade do processo aculturativo em sua expressão

concreta, como ainda o de tornar legítima a indagação pelas causas que presidem às variações

(…) tão díspares nas diferentes situações de contato entre as culturas indígenas no Brasil e a

civilização.” (1969: 57).

Nesse contexto, Herbert Baldus (1937), cujos primeiros e precursores trabalhos sobre

transformações culturais estão reunidos em Ensaios de Etnologia Brasileira – um estudo

comparativo feito sobre os resultados diretos e indiretos do contato entre os Kaingáng,

Bororo, Karajá e Tapirapé com as sociedades regionais envolventes na região Centro-Oeste –,

buscou “(…) discernir certas tendências comuns que encontram expressão concreta em

manifestações de mudança não raro díspares” (1937: 12). Para alcançar esse objetivo, ainda que

não usasse o termo “aculturação”, então apenas recém-cunhado pelo culturalismo norte-

americano para se referir a processos de trocas culturais, Baldus parte da noção de que as

transformações culturais estariam intimamente relacionadas com as necessidades das culturas

indígenas, como a adaptação a situações de risco tais como epidemias, guerras e novas

tecnologias e relações sociais, e com a atuação de “indivíduos condutores” no âmbito de cada

cultura, a indicar as formas pelas quais deveriam ser assimiladas tais situações. Assim,

percebe as possibilidades de acomodação dessas mudanças, por meio da assimilação parcial

ou total de elementos culturais exógenos pelas culturas indígenas, como dinâmicas de

transformação que corresponderiam a situações de “equilíbrio institucional”, nas quais a

centralidade ou o sacrifício dos valores centrais das culturas indígenas nesses processos

seriam seus elementos definidores. Ou seja, a integração cultural não deixa de ser vista como

processo inevitável, mas se torna cada vez mais perceptível que tais equilíbrios poderiam

significar não apenas o desaparecimento, mas também a persistência da diferenciação cultural

em diversos contextos aculturativos.

Para além das críticas que essa perspectiva poderia ensejar (como à tendência histórica

de perda total da identidade cultural diante da intensidade do processo de desintegração e da

necessidade de adaptações culturais muito mais profundas do que aquelas que efetivamente

poderiam ser dadas pelas culturas indígenas em resposta ao processo aculturativo), é

importante destacar que esse autor indicou algumas pistas importantes no caminho que

deveriam trilhar os investigadores das mudanças culturais, tais como a diferença entre a

situação aculturativa indígena e os efeitos sistêmicos das mudanças sobre suas bases culturais.

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Dentre as três pesquisas publicadas no final da década de 1940 sobre culturas

indígenas diante de situações de contato com a civilização, a que maior destaque recebe no

panorama sobre os estudos de aculturação feito por Schaden é o trabalho de Charles Wagley e

Eduardo Galvão sobre os Tenetehara, do Maranhão (1949). Próximos de algumas das

conclusões de Baldus, os autores constroem uma análise monográfica sobre a cultura daqueles

povos indígenas e as relações existentes com a sociedade rural que os circundava, a fim de

compreender as mudanças decorrentes do contato interétnico; o que por um lado significou

um deslocamento do enfoque essencialmente culturalista para outro mais amplo (situando e

permitindo-lhes perceber os processos de aculturação como redes sociais de diversas

causalidades), e por outro possibilitou levar adiante a reflexão sobre a plasticidade das

culturas indígenas, seus setores históricos de resistência e a consequente distinção entre

processos de transformação e as possibilidades de completa desagregação estrutural.

Devido à ausência de elementos etnográficos que permitissem uma reconstrução dos

processos de transformação sofridos por aqueles povos, a ênfase dada pelos autores aos

fenômenos aculturativos, embora se apoiasse em uma visão especialmente sincrônica, serviu

para que apresentassem um quadro rico em elementos significativos para a apreensão de

tendências gerais desse processo, como a da influência da cultura indígena na constituição da

subcultura regional amazônica. Além disso, perceberam as linhas gerais de transformações

culturais que não se associavam necessariamente à pressão de fatores culturais originados na

sociedade nacional, mas a alterações sociais decorrentes do contato que ao longo da história

demandaram readequações para manter a constância e a institucionalidade interna das partes

no âmbito de suas relações interétnicas. Foi o caso da forma de adaptação dos costumes

rituais e do sistema político-organizacional Tenetehara diante da significativa redução

demográfica decorrente de epidemias, ainda durante o século XIX, em que diversas

transformações se deram independentemente do contato com a cultura regional que, aliás, se

conformava em torno da cultura indígena de forma muito menos drástica que em outros

contextos interétnicos.

“(...) a cultura dos vizinhos, por sua vez constituída em grande parte de elementos

autóctones, oferece-lhes [aos Tenetehara] numerosos pontos de contato com o seu próprio

sistema de vida, circunstância que naturalmente previne a emergência de zonas de atrito

demasiado desorientadoras no tocante aos valores e ao comportamento por estes

determinado. Capazes como foram, de sacrificar ou reduzir o funcionamento de

instituições tradicionais, sempre que estas se opusessem à satisfação de exigências novas,

de ordem econômica, parecem ter encontrado um caminho relativamente suave para sua

integração gradual na sociedade cabocla da região.” (WAGLEY & GALVÃO, 1949: 16).

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No bojo dessas discussões, o que se assenta como contribuição de maior destaque é a

interpretação das culturas indígenas como identidades étnicas que, apesar dos intensos

processos aculturativos a que estão sujeitas, são capazes de se reorganizar estruturalmente

como uma forma de manter sua diferenciação em relação ao restante da sociedade. A esse

novo elemento nas reflexões sobre as mudanças culturais, diversas outras contribuições foram

cotejadas por Schaden, cada qual com seus avanços e limitações, mas todas contribuindo para

que perspectivas teóricas de maior complexidade e capacidade explicativa passassem a

germinar naquela época. O enfoque nas relações interétnicas dado pelo trabalho de Galvão e

Wagley, por exemplo, é levado adiante pelo primeiro em estudos posteriores sobre as relações

intertribais existentes na Bacia do Rio Xingu e no Alto Rio Negro, dentro do objetivo geral de

descrevê-las e explicá-las em termos das peculiares condições de interação socioeconômica

entre culturas indígenas e caboclas.

Essa busca pela ampliação teórica dos estudos sobre aculturação vinha se desenhando

já nas tentativas de distinção e classificação de formas de contato, feitas pelo próprio Baldus

(1945) e Darcy Ribeiro (1957), dentre outros. A partir daí, torna-se mais claro o caminho a ser

trilhado por pesquisadores que “buscavam explorar a história recente das relações entre as

populações nativas e os portadores de nossa cultura para a formulação de objetivos e princípios

gerais de ação” (BALDUS: 1949: 32). A partir dessa premissa, os trabalhos de Schaden

(1955; 1962) e de Robert Murphy (1960) se voltaram aos processos de transformação cultural

dos povos indígenas de contato secular enquanto reflexos de mudanças socioculturais que

desafiavam o difusionismo, nos quais as diversas situações de assimilação podiam ser melhor

compreendidas e explicadas como fatores de um sistema interétnico, no qual tanto podem se

ressignificar os aspectos mais ameaçados das culturas indígenas, quanto pode ser influenciada

pela estrutura da sociedade indígena a direção de sua transformação.

Somam-se a esses esforços as reflexões que, vindas de fora do campo da

Antropologia, ainda assim puderam contribuir para o seu fortalecimento teórico no que tange

à compreensão dos fenômenos aculturativos. É o caso dos trabalhos de Florestan Fernandes

(1960) e de Alexander Marchant (1943) sobre o contato histórico dos Tupinambá e dos Tupi

no século XVI, respectivamente, os quais enfatizam menos aspectos culturais da

transformação das culturas indígenas em favor de uma abordagem sociológica e histórica do

assunto, de forma a contribuir com a dissociação entre aculturação e absorção cultural e para

se perceber as mudanças culturais como desdobramentos históricos das mudanças nas

relações interétnicas. Por outro lado, a influência dos estudos etnológicos realizados na

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primeira metade do século XX sobre outras áreas do conhecimento ocorreu na medida em que

a Antropologia se consolidava como uma ciência social aplicada às questões políticas

nacionais, contribuindo para a apropriação de certos conceitos sobre a diferença cultural por

áreas como a Linguística, o Direito e a própria Administração Pública que, mesmo tendo seus

desdobramentos próprios ao longo do tempo, seguem abordando as problemáticas

relacionadas com as populações indígenas a partir de pressupostos da perspectiva das

mudanças culturais.

2.1.2. Sistemas sociais e a transfiguração étnica: o estudo das relações interétnicas

do ponto de vista do conflito social, das identidades e processos históricos

regionais

O longo processo de ampliação das perspectivas teóricas e metodológicas da Etnologia

nos estudos sobre a aculturação indígena, pelo qual nos guia Schaden no panorama que

resumidamente se acabou de apresentar, ainda se manifestava na década de 1960, ao final da

qual foi escrito, quando os trabalhos de Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira

passaram a se voltar a esforços de teorização sobre esses fenômenos, influenciando boa parte

dos estudos posteriores sobre as relações interétnicas no país. De forma resumida, cada qual

contribuiu para que perspectivas sociológicas e históricas incorporassem as discussões sobre

aculturação e lhes dessem um alcance explicativo mais amplo e adequado à realidade das

culturas indígenas, que então se viam diante de complexos processos de integração social a

partir das dinâmicas de expansão das fronteiras econômicas do país.

Nesse contexto, Roberto Cardoso de Oliveira (1976) procurou “explicar a configuração

atual das comunidades Terena, as variações socioculturais destas e a sua assimilação à sociedade

nacional, quer do ponto de vista das principais ‘dimensões’ do processo [de aculturação de

comunidades e mobilidade de indivíduos], quer dos seus mecanismos” (SCHADEN, 1969: 52), a

partir do que discute fatores “convergentes” e “divergentes” para a assimilação cultural,

tendências que, podendo prejudicar ou incentivar a integração daquela cultura, revelaram-se

como insuficientes para seu completo desaparecimento étnico.

Importante destacar aqui os conceitos a que temos nos referido, de assimilação —

“processo geral de incorporação de um grupo étnico por outro através da perda da peculiaridade

cultural e da identificação étnica anterior”, aculturação — “mudança de costumes de todos os

membros de um grupo até o grau em que tais costumes servem cada vez menos para distinguir esse

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grupo social de outros” e mobilidade — “[que] se refere ao indivíduo que se torna membro de

outra classe ou grupo étnico”, cujas definições são apresentadas por Schaden ao discutir essa

fase dos estudos de Cardoso de Oliveira. Posteriormente, ele viria a definir a importante

noção de “fricção interétnica” com base na pesquisa que realizou junto aos Tikuna, no Alto

Rio Solimões (1964), menos focada na descrição de aspectos culturais ou processos

aculturativos, e exatamente por isso mais propícia à compreensão das relações entre índios e

representantes nacionais em termos sociológicos.

Ao cunhar essa noção, Cardoso de Oliveira parte de um ponto de vista teórico distinto

daquele que movia a maior parte dos estudos etnológicos realizados à época no país,

inserindo-se em uma discussão mais próxima daquelas que vinham ocorrendo na

Antropologia Social britânica, acerca das funções das instituições ditas culturais em estruturas

sociais. Do ponto de vista dos povos indígenas enquanto objetos de suas reflexões, esse

antropólogo elabora uma teoria sobre a identidade étnica (principalmente nos ensaios

presentes em 1976b) que muito se aproxima do que Fredrik Barth (2000) afirma a partir da

análise de outros contextos interétnicos. Para eles, a conformação das identidades e, por

conseguinte, dos grupos étnicos e das relações sociais existentes entre as partes que compõem

os sistemas interétnicos se dá a partir dos contrastes que se manifestam a partir da interação

entre essas identidades, vistas como “tipos organizacionais”, restando em segundo plano os

aspectos culturais dos grupos sociais em interação. Na trilha em que Cardoso de Oliveira

inicia sua abordagem da questão étnica em ensaio presente nessa coletânea (1976d), observa

que Barth toma por referência uma definição consensual de “grupos étnicos” na literatura

antropológica da época, como uma população com traços culturais distintivos e que

permanecem ao longo do tempo, para elaborar uma outra abordagem sistêmica do fenômeno

étnico na qual a diversidade étnica é melhor entendida “(...) como uma consequência ou

resultado (...) [que] como um aspecto primário ou definidor da organização dos grupos étnicos”

(BARTH, 2000 :29).

Entendidos os grupos étnicos como unidades portadoras de cultura em sistemas

sociais, Cardoso de Oliveira ressalta a separação entre esses conceitos e a utilidade de análises

específicas sobre cada um deles, mencionando possíveis imprecisões que se pode cometer ao

não as discernir claramente, em quaisquer análises de relações interétnicas.

[...] a “interconexão entre grupo étnico e cultura” é algo sujeito a tantas confusões (Barth,

1969:12) que melhor seria tomá-los separadamente para fins analíticos e de conformidade

com a natureza dos problemas formulados para investigação. Veja-se, por exemplo, que,

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“se o mesmo grupo de pessoas com os mesmos valores e ideias, se defrontasse com as

diferentes oportunidades oferecidas em diferentes meios, seguiria também diferentes

padrões de vida e institucionalizaria diferentes formas de comportamento. Da mesma

forma, devemos esperar que um grupo étnico espalhado num território de circunstâncias

ecológicas variáveis apresente diversidades regionais de comportamento

institucionalizado explícito, diversidades estas que não refletem diferenças na orientação

cultural.” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976d: 117-8)

Paralelamente a essas reflexões teóricas e metodológicas, é interessante mencionar

que, durante a década de 1960, Cardoso de Oliveira coordenou uma série de projetos de

pesquisa no âmbito do Museu Nacional, como aquele intitulado “Estudos das Áreas de

Fricção Interétnica no Brasil”, que incluiu a realização de trabalhos sobre povos indígenas de

regiões tão diversas como Mato Grosso (junto aos Terena), o sudoeste amazônico (Tikuna),

Pará (Gavião) e Rondônia (Suruí) por antropólogos como Júlio Cezar Melatti, Roque Laraia e

Roberto da Matta. Com isso, o desenvolvimento de tal abordagem sistêmica das relações

interétnicas do país, associado ao acúmulo de dados etnográficos a respeito de inúmeros

povos em distintas situações de interação cultural e contato interétnico, favoreceu uma maior

compreensão sobre os fenômenos étnicos no país, como entende Laraia (1986a) ao discutir

esse momento da Antropologia nacional.

“(...) foi somente na década de 70, a partir dos trabalhos de Roberto Cardoso de Oliveira, que

o conceito de identidade associado ao de etnia passou a ser usado mais sistematicamente,

tornando-se um instrumento analítico útil para explicar as relações decorrentes do contato

entre grupos sociais extremamente diferenciados, como as sociedades indígenas e as

diferentes frentes de expansão da sociedade nacional. Tal conceito, como todos sabem,

mostrou-se muito mais eficaz para explicar os fenômenos referentes ao contato do que o

anacrônico conceito de raça que privilegiava mais as diferenças biológicas do que as

históricas e culturais”. (LARAIA, 1986a: 209 – grifos nossos).

Nesse contexto, Laraia afirma que foi “a partir das reflexões decorrentes da análise do

material produzido pelo projeto [de Áreas de Fricção Interétnica] que Cardoso de Oliveira

começou a se preocupar com o conceito de identidade étnica” (1986a: 209-10), o que se

desenvolveria de fato nos trabalhos desse autor a partir do final da década de 1960. Em seu

livro que reúne quatro artigos sob o título de “Identidade, Etnia e Estrutura Social” (1976b),

Cardoso de Oliveira desenvolve uma reflexão sobre os processos identitários dos povos

indígenas com os quais já havia trabalhado até aquele momento, propondo a discussão sobre

os conceitos de etnia e identidade étnica a partir da noção de “campo semântico da

etnicidade”, formado pelo conjunto de ideias, representações e discursos que se relacionam e

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estruturam as relações interétnicas14

, que ele entende ser essencial para delimitação do alcance

explicativo do conceito de etnia na análise de sistemas de relações interétnicas.

A partir da interação entre os fenômenos cognitivos (entendidos como as formas de

apreensão consciente dos aspectos ideológicos em torno da diferença étnica) e os

comportamentos dos agentes sociais, Cardoso de Oliveira destaca a importância dos aspectos

não-conscientes que se manifestam nas relações interétnicas, produzindo sentidos e padrões

de comportamento. Ou seja, para ele, a ideia de etnia se torna operacional no âmbito das

relações sociais na medida em que se estabelece o contraste entre as identidades que se

formam nesses contextos sociais. Com isso, ele apresenta um modelo para o campo semântico

da etnicidade inspirado em Claude Levi-Strauss15

, em que relaciona a dimensão das

identidades étnicas e a complexidade cultural no âmbito das relações interétnicas para definir

os contextos específicos a que se poderia aplicar o conceito de etnia como instrumento de

análise pelas ciências sociais.

Tabela 2.1 – Combinações dos conceitos de “identidade” e “cultura” na formação do fenômeno étnico

1 2 3 4

Identidade Minoritária Majoritária Minoritária Majoritária

Cultura Simples Simples Complexa Complexa

Uso do Conceito de Etnia Sim Não Sim Não

Fonte: CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976c: 146.

14

O conceito de campo semântico da etnicidade, que estaria na base de vários trabalhos de Cardoso de

Oliveira sobre as identidades étnicas e suas interações em sistemas sociais complexo, pode ser entendido como um

desenvolvimento paralelo às discussões fenomenológicas no campo da filosofia da linguagem e da sociologia do

conhecimento, em autores como Edmund Husserl e Alfred Schütz, sobre o que o último conceitua como

“províncias de significados limitados”, entendidas por ele como basilares da compreensão humana sobre a

existência dos fenômenos da vida social, dentre outros, nos seguintes termos: “Acima de tudo, é importante

salientar que as ordens de realidade (...) se constituem através do sentido da nossa experiência. Por esta razão

preferimos (...) falar de províncias finitas de sentido, às quais conferimos um grau de realidade. (...) Todas as

experiências que pertencem a uma província finita de sentido apontam para um estilo particular de vivência, isto é,

um certo estilo cognitivo. Por relação a este estilo, estão todas em harmonia mútua e são compatíveis umas com as

outras" (SCHÜTZ apud PINHEIRO, 2005: 69).

15 Cardoso de Oliveira destaca o passo-a-passo de Levi Strauss para elaboração de sua noção de campo

semântico do totemismo, que aqui reproduzimos integralmente a fim de entender a origem da Tabela 2.1: “1º)

Definir o fenômeno (que no nosso caso é etnia – RCO) proposto para estudo como uma relação entre dois ou

mais termos reais ou virtuais; 2º) Construir o quadro de permutações possíveis entre seus termos; 3º) Tomar

este quadro como objeto geral de uma análise que, somente a esse nível, possa alcançar conexões necessárias de

maneira a que o fenômeno empírico seja visualizado inicialmente apenas como uma combinação possível entre

outras, a partir das quais o sistema total deva ser previamente reconstruído.” (1962: 22-3 apud CARDOSO DE

OLIVEIRA, 1976c).

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Diversas limitações conceituais foram reconhecidas pelo autor na elaboração da tabela

acima, como quando observa que “a arbitrariedade de nossa decisão [terminológica] permitirá,

entretanto, a fixação de relações entre um conjunto de termos, usualmente associados à etnia, além

de possibilitar a construção de um quadro de permutações entre eles, com vistas a “domesticar”

logicamente o fenômeno empírico [da etnia]” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976: 146). Para o

nosso trabalho, cabe apresentar essa tabela para ilustrar a abordagem estrutural que esse autor

propõe para a análise do fenômeno étnico com base nos conceitos de etnia e identidade étnica,

que entendemos ser de grande utilidade para a compreensão do conceito de isolamento dentro

daquilo que poderíamos nomear como campos semânticos do indigenismo, proposta esta que

esclareceremos mais adiante neste capítulo.

Por ora, é importante ressaltar que essa abordagem estrutural das áreas culturais

indígenas a partir da conflitividade existente entre as partes de sistemas interétnicos viria a ter

um papel de grande destaque no desenvolvimento posterior do campo antropológico do país,

pois em se considerando o progressivo desenvolvimento de uma visão que reconhece as

relações de oposição, histórica e estruturalmente demonstráveis, entre as sociedades indígenas

e nacionais.

“Não se trata de relações entre entidades contrárias, simplesmente diferentes ou exóticas,

umas em relação a outras; mas contraditórias, isto é, que a existência de uma tende a negar a

da outra. E não foi por outra razão que nos valemos do termo fricção interétnica para enfatizar

a característica básica da situação de contato. [...]. Daí entendermos a situação de contato com

uma “totalidade sincrética”, ou em outras palavras – [...] –, enquanto situação de contato entre

duas populações dialeticamente “unificadas” através de interesses diametralmente opostos,

ainda que interdependentes, por paradoxal que pareça.” (CARDOSO DE OLIVEIRA apud

MENEZES, 2011: 522).

Como prossegue Menezes sobre Cardoso de Oliveira, este teria mostrado em seus

trabalhos desse período “que não seria suficiente dizer que é a sociedade dominante, nacional,

quem decide sobre o destino dos povos indígenas. Para ele, a etnologia deveria penetrar na

dimensão política da situação de contato a fim de descrever e analisar a estrutura de poder

subjacente: o poder na esfera tribal, tradicional, e como ele é transfigurado quando a sociedade

indígena se insere noutra, maior, mais poderosa, que lhe tira sua autonomia.” (2011: 522). Tendo

Cardoso de Oliveira participado desde a década de 1960, não apenas no projeto de pesquisa

mencionado anteriormente por Laraia, mas em diversos outros, como aquele desenvolvido

conjuntamente entre o Museu Nacional e a Universidade de Harvard, nos EUA, para o estudo

sobre os povos do tronco linguístico Jê localizados no chamado Brasil Central, na mesma

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época, podemos verificar a sua contribuição na consolidação do fazer antropológico no país e

na elaboração de importante parte de suas bases teóricas e epistemológicas.

Na mesma linha do deslocamento metodológico que levou Cardoso de Oliveira a

focalizar suas reflexões sobre transformações culturais nas relações sociais que se

estabeleciam entre os grupos étnicos nos contextos interétnicos, Darcy Ribeiro procurou

expandir o campo de análise das transformações, mas em outro sentido, o de incluir a

perspectiva da dinâmica histórica dos processos aculturativos pelos quais têm passado os

povos indígenas desde o início da colonização da América, com ênfase nos processos de

mudança cultural.

Para ele, os conceitos de Cardoso de Oliveira seriam úteis para compreender as

situações de contato interétnico e as possibilidades de emergência de conflitos, haja vista o

seu destaque às identidades e relações sociais existentes nesses contextos, mas também

poderiam implicar em excessiva “sociologização” das análises sobe os povos indígenas, que

para ele poderia ser tão prejudicial à compreensão quanto o destaque exagerado aos aspectos

culturais. Com isso, Ribeiro nos traz a sua conceituação de “transfiguração étnica”, que

poderia ser colocada nas palavras do próprio autor como:

“(...) o processo através do qual as populações tribais que se defrontam com sociedades

nacionais preenchem os requisitos necessários à sua persistência como entidades étnicas,

mediante sucessivas alterações em seu substrato biológico, em sua cultura e em suas

formas de relação com a sociedade envolvente. (…) uma aplicação particular e restrita de

um processo mais geral que diz respeito aos modos de formação e de transformação das

etnias” (RIBEIRO, 1970: 13).

Esse conceito, também presente com grande importância nos trabalhos de Ribeiro que

se inserem no campo do conhecimento que ele chama de antropologia da civilização, foi

desenvolvido de forma a possibilitar, em “O Processo Civilizatório” (1968), uma

compreensão histórica dos processos dialéticos de transição cultural em duas formas — dos

pontos de vista expansivo, a “aceleração evolutiva”, e constrangido, de “atualização ou

incorporação histórica” —, em termos das quais entende o desenvolvimento histórico das

relações existentes entre a formação dos povos americanos, seu desenvolvimento desigual e

os processos de aculturação e atualização histórica que caracterizaram sua forma de inserção

na história mundial, uma discussão que se apresenta especialmente em “As Américas e a

Civilização” (1969).

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Cabe frisar que a perspectiva histórica de Darcy Ribeiro ampliou a abordagem

culturalista de forma a compreender as diferenças e os processos de mudança cultural como

parte de processos históricos muito mais amplos que os espaços regionais onde se

desenvolviam na prática, convergindo com Cardoso de Oliveira em abordar os aspectos

ideológicos presentes nas relações interétnicas do país. Nesse contexto, as bases discursivas

dos processos de integração dos povos indígenas às sociedades nacionais, ao passo em que

são evidenciadas, são por esse antropólogo analisadas e criticadas, ainda que a sua proposta

de categorização dos povos indígenas, pensada como forma de refinamento discursivo das

formas pelas quais se daria a integração, acabe por manter uma perspectiva evolucionista

quanto às diferenças étnicas. Com isso, as categorias apontadas por Ribeiro, ainda que nos

sejam de grande utilidade para compreender as distintas formas de interação e transformação

social dos povos indígenas do país, terminam por reforçar a ideia de que consistem em etapas

civilizatórias. Segundo Silva e Lorenzoni (2014) e como veremos na próxima seção desse

capítulo, a classificação de Darcy Ribeiro viria a influenciar decisivamente as mudanças do

indigenismo oficial e suas práticas para integração dos povos indígenas a partir da década de

1970, motivo suficiente para que a apresentemos integralmente abaixo, em que pese o seu

descompasso com a atual realidade indígena, especialmente daqueles povos em situação de

isolamento voluntário.

“1. Isolados: São os grupos que vivem em zonas não alcançadas pela sociedade brasileira, só

tendo experimentado contatos acidentais e raros com ‘civilizados’. Apresentam-se como

simplesmente arredios ou como hostis. Nesta categoria se encontram as tribos mais

populosas e de maior vigor físico e, também, as únicas que mantém completa autonomia

cultural.

2. Contato intermitente: Corresponde àqueles grupos cujos territórios começam a ser

alcançados e ocupados pela sociedade nacional. Ainda mantém certa autonomia cultural, mas

vão surgindo necessidades novas cuja satisfação só é possível através de relações econômicas

com agentes da civilização. Frequentemente têm atitudes de ambivalência motivadas,

por um lado, pelo temor ao homem branco; e, por outro lado, pelo fascínio que exerce

sobre eles um equipamento infinitamente superior de ação sobre a natureza. Suas

atividades produtivas começam a sofrer uma diversificação pela necessidade de, além das

tarefas habituais, serem obrigados a dedicar um tempo crescente à produção de artigos para

troca ou a se alugarem como força de trabalho. Sua cultura e sua língua começam já a refletir

essas novas experiências através de certas modificações que a acercam das características da

sociedade nacional.

3. Contato permanente: Incluímos nesta categoria os grupos que já perderam sua

autonomia sociocultural, pois se encontram em completa dependência da economia

regional para o suprimento de artigos tornados indispensáveis. No entanto, ainda

conservam os costumes tradicionais compatíveis com sua nova condição, embora

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profundamente modificados pelos efeitos cumulativos das compulsões ecológicas,

econômicas e culturais que experimentaram. O número de índios capazes de exprimir-se em

português aumenta, alargando assim os meios de comunicação com a sociedade nacional. A

população indígena tende a diminuir, chegando algumas tribos a índices tão baixos que

tornam inoperante a antiga organização social.

4. Integrados: Estão incluídos nesta classe aqueles grupos que, tendo experimentado todas as

compulsões referidas, conseguiram sobreviver, chegando a nossos dias ilhados em meio à

população nacional, a cuja vida econômica se vão incorporando como reserva de mão-de-

obra ou como produtores especializados em certos artigos para o comércio. Em geral vivem

confinados em parcelas de seus antigos territórios, ou, despojados de suas terras,

perambulam de um lugar a outro. Alguns desses grupos perderam sua língua original e,

aparentemente, nada os distingue da população rural com que convivem. Igualmente

mestiçados, vestindo a mesma roupa, comendo os mesmos alimentos, poderiam ser

confundidos com seus vizinhos neobrasileiros, se eles próprios não estivessem certos de

que constituem um povo à parte não guardassem uma espécie de lealdade a essa

identidade étnica e se não fossem definidos, vistos e discriminados como ‘índios’ pela

população circundante.

5. A etapa de integração não corresponde à fusão dos grupos indígenas na sociedade nacional

como parte indistinguível dela, pois essa seria a assimilação grupal que não ocorreu em

nenhum dos casos examinados. Aquilo com que nos defrontamos e que foi designado

como estado de integração ou como condição de índio genérico representa uma forma

de acomodação que concilia uma identificação étnica específica com uma crescente

participação na vida econômica e nas esferas de comportamento institucionalizado da

sociedade nacional.” (RIBEIRO, 1970: 432-34 – grifos do autor).

A respeito destes e outros esforços classificatórios dos povos indígenas e sua

apropriação pelo indigenismo oficial, Silva e Lorenzoni (2014) observam ainda que a

característica mais marcante desses sistemas de categorias se baseiam em níveis de contato e

interação dos povos indígenas entre si e com os atores das sociedades nacionais, culminando

em certa “erradicação do lugar de uma voz indígena [em que] (...) o índio é, não somente

implicitamente, mais explicitamente e legalmente, definido pelo olhar e atos do sujeito nacional”.

Dessa perspectiva, afirmam o seguinte:

“Se tratarmos essas classificações e sua genealogia como expressão de uma forma de

classificação arraigada do pensamento positivista, nos tornaremos mais conscientes dos

sentidos ocultos ou escondidos por trás de palavras muitas vezes usadas acriticamente

(Ramos 1998: 13), bem como de seus efeitos sobre indivíduos e grupos etnicamente

diferenciados como "índios". Isso significa dizer que essa forma de classificação está

ancorada em um sistema positivista de classificação e, como tal, estágios evolutivos

considerados como expressão de estados mentais e níveis de desenvolvimento cultural e

tecnológico são empregados como instrumentos de classificação social básica das

populações indígenas no âmbito do indigenismo oficial e da justiça no Brasil”. (SILVA;

LORENZONI, 2014: 16)

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Assim, entendemos que as distintas ênfases que Ribeiro e Cardoso de Oliveira dão à

conflitividade emergente de contextos de fricção interétnica ou aos processos históricos de

transformação cultural são de grande valor para a relativa superação do impasse culturalista

em que parte da Etnologia nacional havia se metido, tendo sido o segundo aquele que

conseguiu elaborar um marco teórico sobre as relações interétnicas que permitisse

compreender níveis e fatores do contato interétnico (seja entre culturas indígenas ou entre elas

e representantes da sociedade nacional) como um fenômeno sociológico. Ainda que sua

perspectiva continuasse a levar a marca do ahistoricismo dos estudos da aculturação indígena,

muito em função das limitações de suas referências do funcionalismo britânico. Os trabalhos

de Ribeiro, por outro lado, poderiam ter a sua perspectiva histórico-sociológica compreendida

como uma evolução do ponto de vista evolucionista sobre as culturas indígenas, em que a

tendência à assimilação cultural se manteria, porém relativizada pela ideia de que a

transfiguração étnica não seguiria necessariamente uma escala universal de evolução cultural,

mas as condicionantes políticas, econômicas e culturais do contexto em que se dava.

De uma forma ou de outra, a contribuição desses dois antropólogos aos estudos sobre

a transformação cultural e as relações interétnicas passou pela compreensão dos significados

históricos desses fenômenos, assim como dos contextos sociais em que se dão, restando mais

ou menos aberta, em ambos os casos, a questão do universal e do particular em sistemas

interétnicos e o campo que se abre para a análise de situações de isolamento voluntário de

povos indígenas.

2.1.3. O rompimento com a “naturalização da sociedade” e a perspectiva das

situações históricas de povos indígenas

Como descrito anteriormente, o longo percurso da Etnologia brasileira rumo à

mudança de paradigmas dos estudos sobre as relações interétnicas, desde a aculturação e as

transformações culturais até a proposição de teorias de inspiração sociológica e histórica

sobre o contato interétnico, contou com contribuições de diversos antropólogos no sentido de

possibilitar um salto epistemológico, que permitisse compreender a dita complexidade das

situações de interação entre povos indígenas e a sociedade nacional, e observar com mais

clareza como fatores sociais, econômicos e históricos estão nela implicados.

Do ponto de vista brasileiro, desde os primeiros trabalhos de Darcy Ribeiro e Roberto

Cardoso de Oliveira que demonstraram maiores esforços teóricos, a Antropologia se

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desenvolveu nas franjas do indigenismo oficial, chegando a realizar projetos mais autônomos

de construção do conhecimento, como podemos enxergar a própria Universidade de Brasília

(inaugurada em 1962) e a cooperação entre o Museu Nacional e a Universidade de Harvard

voltada à pesquisa etnológica entre os povos do tronco linguístico Jê no Brasil Central.

Nesse sentido, a retomada dessas discussões feita por João Pacheco de Oliveira (1988)

ajuda muito a refletir sobre como essa trajetória se relaciona com os debates em que a

Antropologia mergulhava desde a década de 1940 até a época em que foi escrito. Desde a

descrição da “naturalização da sociedade” que esteve na base da maioria dos estudos sobre a

diferença, a mudança e as relações de base étnico-cultural – um paradigma “que concebe o

conhecimento como um ato primordialmente classificatório, onde um elemento (…) deve ser

inserido em uma classe, que o agrupa junto com outros elementos, e que se contrapõe a outras

classes consideradas distintas.” (OLIVEIRA, 1988: 26) – e seu percurso até as tentativas de

formulação de teorias baseadas em um “novo enquadramento do social”, esse antropólogo

discute criticamente o papel de contribuições inovadoras, como a do britânico Max Gluckman

ao estudar as relações interétnicas na África do Sul com base na noção de campo social, para

a formulação de teorias sobre o contato interétnico como as que foram anteriormente

discutidas.

Como dito anteriormente e reforçado por Oliveira, os estudos de fricção interétnica de

Cardoso de Oliveira remetem mais às relações sociais entre etnias que às suas diferenças

culturais, construindo-se a partir da referência à ideia de “situação colonial” de Georges

Balandier e do reconhecimento de que as relações entre etnias se dão em termos de domínio e

submissão. Assim, a conflitividade inerente a esses contextos se manifesta na teoria desse

autor quando esse “desloca a ênfase dos grupos étnicos enquanto ‘unidades portadoras de

cultura’ para a sua existência e eficácia como ‘tipos organizacionais.’” (OLIVEIRA, 1988: 46).

A definição de fricção interétnica no âmbito dos sistemas interétnicos abre as portas

para a entrada de conceituações tipicamente sociológicas que, se por um lado inovam, por

outro agregam à ideia de identidades constrastivas — que se manifestariam em contextos

interétnicos — a noção de que o desajuste sistêmico é temporário e se relacionaria com o que

chama de “potencial de integração social.” Com isso, a tendência a comparar esse sistema

interétnico com as lutas de classes esbarra no fato de que a acomodação da diferença étnica

não significa, como em outras perspectivas sobre conflitos relacionados com a dominação

econômica, uma integração e aprimoramento do sistema por meio do choque, mas o

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estabelecimento de relações cada vez mais desiguais entre as partes. Além disso, Oliveira

observa que os estudos de fricção interétnica possuem limitações no que diz respeito à

generalização da situação de contato como primordial à formação dos sistemas interétnicos e

seus elementos distintivos, e à insuficiência dos instrumentos para análise de sistemas

interétnicos que ele apresenta (frentes de expansão e agentes interculturais), tendentes a

manter e aprofundar a dualidade entre os mundos dos brancos e dos índios.

Assim, Oliveira parte da contribuição que a noção de campo e a perspectiva dos

estudos de situação trazem para propor o seu próprio modelo de análise das relações

interétnicas, inspirado em Gluckman. Para este, a ideia de situação social estaria relacionada

com a presença de três elementos (atores sociais, ações e comportamentos desses atores, e um

conjunto de eventos que enquadra a situação em certo momento histórico), adensando-se à

medida que as relações interétnicas passam a definir padrões de interdependência no âmbito

dessa situação, o que permitiria a interpretação que Oliveira faz da possibilidade de se analisar

o fato étnico enquanto algo mais que uma diferença a priori, mas construída a partir de

“linhas de cooperação e clivagem entre um universo de atores e condutas” (1988: 55). Isso é

entendido como um fator estruturante das escolhas individuais, uma vez que tanto as

clivagens étnicas quanto a própria coesão interna dos grupos étnicos são vistas como

resultantes histórico-culturais de relações dessa interdependência. Com isso, define o conceito

de situação histórica como reflexo da utilização das categorias de campo e situação social, a

partir das quais se observa a complexidade dos processos sociais que envolvem a interação

entre os povos indígenas e as sociedades nacionais, representadas por seus agentes e agências

do indigenismo, dentre outros.

A esse respeito, Silva (2015) apresenta, a partir da discussão sobre conceitos

antropológicos e sociológicos, a ideia de que a noção de raça está na base do exercício do

poder estatal sobre os povos indígenas na América Latina, argumentando criticamente sobre

as possibilidades de superação dos padrões de dominação e marginalização desses povos por

aquilo que denomina “multiculturalismo constitucional”.

“Como vimos desde os primeiros estudos antropológicos sobre a mudança cultural e

depois, mais detidamente nas análises de Balandier, González Casanova e Quijano, o

ponto comum definidor da ‘situação colonial’, do ‘colonialismo interno’ e da

‘colonialidade do poder’ é justamente a raça como princípio de organização das

relações entre colonizadores e colonizados. Esta racialidade é responsável pela

afirmação de superioridade de uma cultura superior (a dos colonizadores, depois

tornada ‘nacional’) sobre outras culturas inferiores (a dos indígenas, depois

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transformados em minorias étnicas) e se traduz em ideologias, políticas,

legislações, normas e práticas jurídicas e administrativas que legitimam a

dominação como ato e processo ‘em benefício e proteção’ dos colonizados. A

expropriação territorial e a superexploração do trabalho são ressignificadas como

ações civilizatórias diante das quais as populações indígenas, fatalistamente mais

frágeis e vulneráveis, deveriam reconhecer como dadivosas. Esta realidade, para os

autores mencionados, configura uma ‘situação’, que agora seria melhor definida

como um ‘complexo’, pelo fato de se constituir e ser constitutiva de um sistema

mundial de expansão e manutenção do capitalismo através de relações de

interdependência entre países centrais e periféricos deste sistema.” (SILVA, 2015: 20

– grifos do autor).

2.1.4. A paulatina visibilidade dos povos invisíveis: elementos de uma abordagem

antropológica do isolamento voluntário

De todo esse percurso epistemológico que levou a antropologia brasileira a ampliar

sua abordagem sobre as relações interétnicas ao longo do século XX, o que se destaca ao

nosso ver são as interações entre os conceitos de contato (entendido como o estabelecimento

de relações mais ou menos permanentes entre os povos indígenas e as sociedades nacionais) e

de isolamento (baseado em ideais de pureza étnica e de transitoriedade histórica da

diferenciação cultural).

Considerando as contribuições do que poderíamos esboçar como tradições

etnológicas, que se iniciam com o conhecimento dos estudos de aculturação sobre os

processos de assimilação e transformação cultural (décadas de 1930 a 1960), passando pelos

estudos dos sistemas interétnicos em termos de identidade étnicas contrastivas (1960 e 1970)

e pela antropologia crítica do indigenismo (1980 a 1990), o acúmulo de instrumentos teóricos

que permitissem uma compreensão mais refinada das questões sociais que envolvem os povos

indígenas pela Antropologia foram tornando possível, nesse sentido, a elaboração do conceito

de isolamento como significado que se refere a uma certa variedade de significantes e, dessa

forma, estrutura aquilo que Cardoso de Oliveira define como “campo semântico da

etnicidade” (1976c), entendido aqui de forma geral como o conjunto de aspectos ideológicos

que se associam a um ou mais campos sociais.

A partir daí, tomamos a ideia de isolamento como conceito presente e potencialmente

ativo dos campos sociais da antropologia, do indigenismo e, como veremos adiante, do direito

internacional, sendo operacionalizado a partir de sua (re)interpretação pelos atores e grupos

sociais, em interação com outras ideias e representações que compõem os respectivos campos

semânticos. Desse ponto de vista, a realidade objetiva do isolamento voluntário vivido pelos

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povos indígenas ou potencialmente violado pelos atores nacionais representa apenas alguns

aspectos do fenômeno do isolamento, sendo complementada por sua apreensão como conceito

político, antropológico e jurídico pelo qual se transmitem sentidos entre esses campos sociais

na conformação das relações interétnicas.

Assim, podemos compreender que as categorias de classificação dos povos e

comunidades indígenas em termos do distanciamento geográfico-cultural, dentre as quais

destacamos o isolamento, sedimentam as transformações discursivas e práticas que ocorrem

em torno da questão étnica, guardando em si também traços ou resquícios de elaborações

anteriores nos campos antropológicos e políticos, como observam Silva e Lorenzoni (2014)

em sua análise comparativa dos aspectos ideológicos que aproximam o Estatuto do Índio, de

1973, e o ideário positivista comteano em sua expressão nacional.

Em outras oportunidades, iniciamos o desenvolvimento de uma análise que relaciona a

crescente compreensão sobre os aspectos multifacetados do conceito de isolamento com a

formação de instrumentos da nacionalidade voltados ao “governo dos índios”, ou seja, à sua

integração subalterna às lógicas econômicas e políticas que se expandiam territorialmente

pelo país por meio da própria política indigenista oficial. O trabalho de Bárbara Arisi (2011)

sobre as relações interétnicas atualmente existentes no Vale do Javari serviu-nos de

importante referência para prosseguir a reflexão sobre o percurso do conceito de isolamento

no âmbito da Antropologia, uma vez que ela busca refletir sobre as questões de interação

entre os agentes governamentais, os povos indígenas isolados e aqueles que, na perspectiva do

indigenismo oficial, já se encontram integrados à sociedade nacional. Nesse esforço, a

antropóloga aponta para uma abordagem que abrange as duas perspectivas sobre o isolamento

e contato que procuramos delinear abaixo.

A primeira delas conforma o isolamento como conceito que, do nosso ponto de vista,

enquadra-se no campo indigenista (assim como em suas sobreposições com o jurídico e o

antropológico) de formas cada vez mais complexas, deixando de ser exclusivamente tomado

em suas implicações de uma dominação interétnica ainda por acontecer, para alcançar novas

expressões dentro dessas instâncias. Ou seja, em todos esses três campos inter-relacionados, o

isolamento enquanto ideia vai deixando de ser um fator de restrição de direitos próprios dos

povos indígenas por meio do regime tutelar, para permitir cada vez mais a sua apropriação por

outros atores do indigenismo, para fins de promoção da autodeterminação e de aprimoramento

dos marcos jurídicos que embasam as práticas indigenistas oficiais. O segundo ponto de vista

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51

que a autora define é o do isolamento como situação, conforme as ideias que desenvolvemos

nas seções anteriores sobre os conceitos de “situação colonial” e “situação histórica”. Se por

um lado a escolha pelo isolamento vem sendo discursivamente reconhecida como expressão

da autonomia e dos interesses daqueles povos que por ele optam, por outro os fatores sociais

que levam ao ponto de aparente ruptura das relações interétnicas pelo isolamento, em verdade,

são historicamente ocultados, invisibilizados juntos com os objetos da política indigenista

oficial e trazendo uma série de implicações como aquelas que Arisi analisa juntamente com

Felipe Milanez em artigo sobre as diferenças de abordagem desse indigenismo sobre os

“isolados” Korubo e os Matis “de recente contato” (2016). Para eles, a existência de relações

interétnicas invisibilizadas, quando não criminalizadas, pela atuação da FUNAI no Vale do

Javari, evidenciam algumas das limitações que o órgão indigenista tem para mediar as

relações entre esses povos a partir da evolução da política de integração para outra distinta,

baseada na proteção territorial sem a utilização das práticas de atração e sedentarização de

índios isolados historicamente adotadas.

A partir dessas duas facetas do isolamento, propomos um modelo voltado à

abordagem multidisciplinar do conceito, que abarca as suas diversas expressões concretas no

plano das práticas políticas e dos discursos sobre ele, conforme os eixos da Figura 2.1. Nesse

modelo, a noção de isolamento, entendida a partir de sua presença concomitante nos campos

da antropologia e do indigenismo, caracteriza-se no eixo vertical ora como conceito, ora como

situação, e no outro sentido como expressão prática e conceitual da autonomia indígena e da

soberania nacional, manifestada pelos agentes e agências nacionais. No cruzamento dessas

duas concepções dicotômicas do isolamento, entendemos ser possível abranger a diversidade

de práticas e discursos elaborados sobre essa realidade que vivem alguns povos indígenas no

país, conforme a combinação dessas coordenadas na definição de vetores ilustrativos da

composição multifacetada da realidade material e ideológica da noção de isolamento, que

resumimos nos quadros explicativos na cor cinza.

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52

Figura 2.1 – Matriz conceitual sobre o isolamento voluntário de povos indígenas

Essa combinação de aspectos antropológicos, políticos e jurídicos para compreender o

isolamento voluntário de povos indígenas dialoga também com as reflexões de Amanda Villa

(2018) em sua dissertação de mestrado sobre o processo de demarcação da Terra Indígena

Massaco, em Rondônia, considerado o primeiro caso de plena aplicação do princípio de não-

contato para demarcação e proteção territorial de povos isolados no país, assunto este que

abordaremos na próxima seção deste trabalho. Segundo ela, a consolidação da Antropologia

como uma disciplina científica de fato passou pelo afastamento de fatores ideológicos em suas

abordagens sobre as diferenças culturais, sem que por muito tempo, porém, a ideia de

“sociedade primitiva” deixasse de se sustentar por forças internas a esse campo de

conhecimento. Essa aparente contradição já era objeto de discussão nas reflexões de Roger

Bastide sobre como o “mito do primitivo” se manteve na base dos estudos sobre os nativos, os

índios ou outras categorias homogeneizantes da diferença, favorecendo por décadas uma

compreensão descontínua dessas “unidades sociais” frente às outras que compõem os sistemas

interétnicos. A ideia de que as diferenças culturais estariam vinculadas a uma espécie de

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escala evolutiva, na qual as instituições e categorias nativas seriam entendidas como

expressões mais simples e ilustrativas, ainda que incompletas, daquelas características das

sociedades nacionais modernas (2018: 57).

A autora destaca ainda no pensamento de outros intelectuais a abordagem do contato e

da cultura a partir da utilização de paradigmas das ciências biológicas, naquilo que Oliveira

(1988) apontou, como observamos anteriormente, como uma espécie de “naturalização da

sociedade”, em que as definições políticas do isolamento de povos indígenas remetem

excessivamente à ausência de contato físico entre esses povos e as sociedades envolventes de

seus territórios, sem observar a sua vinculação com contextos históricos e sociopolíticos mais

gerais e a ampla gama de significados que a estratégia do isolamento voluntário pode

carregar, especialmente nos discursos e práticas do indigenismo.

À medida que os estudos etnológicos feitos no Brasil deslocam suas atenções dos

processos de aculturação e transformação cultural para abordagens de caráter sociológico,

passando a enfatizar os processos de interação social entre grupos étnicos e da conformação

das estabelecimento de situações históricas em que ocorrem, esse isolamento voluntário vai se

tornando mais visível e passível de interpretações que o definam não apenas como um estado

transitório rumo à integração total das populações autóctones à sociedade nacional, mas como

uma estratégia ativa de relacionamento interétnico por parte dos povos que a adotam, baseada

no rechaço seletivo ao mundo exterior.

Nesse contexto, as motivações de discursos e práticas dos órgãos indigenistas voltadas

à atração e sedentarização dos povos indígenas como formas de antecipação às frentes de

expansão nacional sobre seus territórios foram ressignificadas com o passar das décadas,

como veremos adiante. De esforços voltados à “proteção civilizatória laica” dessas

populações, a integração econômica e social passa a ser o mote da política indigenista a partir

da década de 1970, calcada no binômio da segregação e controle territorial e do

estabelecimento de um regime de tutela política que invisibiliza e desconsidera a expressão de

autonomia desses povos, em um processo que segue em desenvolvimento até o presente. Com

isso, buscaremos discutir os processos de mudança de discursos e práticas pelos quais passou

a política indigenista brasileira nesse contexto, com a substituição do SPI pela Fundação

Nacional do Índio (FUNAI), em 1967, o estabelecimento de uma política indigenista voltada à

integração dos povos indígenas no Brasil, e seus posteriores desenvolvimentos acerca da

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situação dos povos indígenas não-contatados, categorizados como “isolados”, especialmente

na Amazônia.

2.2. Mudanças institucionais do indigenismo brasileiro entre o

surgimento da FUNAI e a redemocratização do país: da

integração tutelada ao princípio do não-contato

A existência de uma política indigenista voltada à resolução do chamado problema ou

questão indígena no Brasil remete, como já observamos, à criação de uma instituição

governamental específica para lidar diretamente com as “hordas selvagens” do interior do

país, a partir de 1910. O contexto político e ideológico em que se deu o surgimento do

Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) e sua

posterior concentração na questão indígena com a redução do nome para SPI foi objeto de

dezenas e dezenas de trabalhos de pesquisa, produções literárias, filmes e muitas outras

formas de compreensão e explicação de suas idiossincrasias e contradições, tendo o papel

heroico e abnegado do icônico Marechal Rondon e de muitos outros sertanistas na defesa

humanitária desses povos certamente marcado profundamente a história e a identidade

nacionais ao longo do período republicano16

.

As dificuldades práticas de assistência e catequese dos povos indígenas por entidades

religiosas como forma de redução dos conflitos interétnicos, em meio ao clamor pela

pacificação desses povos para abertura dos sertões ao progresso da colonização no início do

século XX, resultaram em debates políticos que, se não puderam arrefecer completamente as

disputas territoriais existentes, culminaram na consolidação do indigenismo laico do SPI que,

nas palavras de Luiz B. Horto Barbosa (1923):

16

De acordo com Freire (2008: 107-108), o termo “sertanista” perpassa a história das relações interétnicas

no país, tendo sido empregado para se referir de forma geral aos agentes coloniais envolvidos no apresamento,

descimento e esbulho territorial de povos indígenas, passando, no início do século XX, a ser utilizado para designar

indivíduos que trabalham na exploração das regiões do interior e na pacificação dos povos indígenas. Esse uso do

termo pelo senso comum e pelos meios de comunicação viria a ser adotado como categoria administrativa somente

na década de 1960, no âmbito da Fundação Brasil Central e da FUNAI, para se referir especificamente aos agentes

da política indigenista dedicados à atração e pacificação de povos isolados ao longo das décadas seguintes, a partir

da atuação de Cândido Rondon, Francisco Meirelles e os irmãos Villas-Boas, dentre outros sertanistas.

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"não procura nem espera transformar o Índio, os seus hábitos, os seus costumes, a

sua mentalidade, por uma série de discursos [...]; conta apenas melhorá-lo,

proporcionando-lhe os meios, o exemplo e os incentivos indiretos para isso: melhorar

os seus meios de trabalho, pela introdução de ferramentas; as suas roupas, pelo

fornecimento de tecidos [...] enfim, melhorar tudo quanto ele tem e que constitui o fundo

mesmo de toda sua existência social. E de todo esse trabalho, resulta que o índio

torna-se um melhor índio e não um mísero ente sem classificação social possível, por

ter perdido a civilização a que pertencia sem ter conseguido entrar naquela para onde o

queriam levar". (BARBOSA apud RIBEIRO, 1970: 140 – grifos do autor).

Ainda que viessem a ser constatadas contradições de fundo presentes nas experiências

indigenistas latino-americanas da primeira metade do século XX, como observamos na seção

anterior, em geral era dessa forma que se revelavam discursivamente as nobres motivações

dos esforços civilizatórios empreendidos pelo SPI através das palavras de seus apologistas,

tornando bastante complexa a tarefa de compreender os caminhos que levaram aos episódios

de sujeição e mesmo dizimação dos povos indígenas frente a tão humanistas discursos e

análises. Do ponto de vista legal, a experiência indigenista brasileira, seus princípios e

aspectos pioneiros viriam a inspirar, em 1956, durante a 39° Conferência Internacional do

Trabalho, em Genebra, uma recomendação para orientar a política indigenista de todos os

países que contam com populações tribais — a Convenção n° 107 da Organização

Internacional do Trabalho (OIT), que décadas depois viria a ser negativamente avaliada em

seus pressupostos evolucionistas e desdobramentos para a integração subalterna dos povos

indígenas às sociedades nacionais.

Apesar disso, em um lento porém implacável processo, a decadência das bases

ideológicas e das práticas governamentais para proteção dos povos indígenas por meio de seu

“melhoramento” ocorreu à medida que as frentes de expansão da economia nacional rumo ao

interior sobrepujaram e cooptaram os esforços de mitigação de seus impactos sobre esses

povos, realizados pelas equipes e unidades administrativas do órgão indigenista, de tal forma

que em finais da década de 1960, escândalos generalizados de corrupção e violações de

direitos humanos dessas populações por agentes do próprio SPI culminaram em seu completo

descrédito junto às opiniões públicas nacionais e internacionais. Ainda que pensadores e

sertanistas mantivessem o compromisso com a preservação e proteção dos povos indígenas17

,

17

Ainda segundo Freire (2008: 108-110), é possível compreender as divergências internas do indigenismo

quanto às formas de atração e integração dos povos indígenas em termos de escolas ou estilos sertanistas, que se

inserem em uma espécie de “habitus sertanista”. Embora se sobreponham em alguns sentidos, esses termos são

sutilmente distintos, na medida em que os primeiros dizem respeito à “legitimidade carismática associada a

agentes do campo indigenista”, ou seja, à expressão individual que os sertanistas davam às suas práticas junto aos

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os aspectos negativos da política indigenista de base militar-positivista tiveram grande

repercussão nacional e internacional, estando registrados no histórico — e até poucos anos

desaparecido — documento que ficou conhecido como Relatório Figueiredo (1968).

Paralelamente às reflexões e inovações epistemológicas que vinham tendo lugar na

Antropologia nacional desde meados da década de 1940, esse documento foi elaborado no

contexto em que os desmandos e descaminhos de grande parte dos funcionários do SPI

alcançavam maior repercussão quanto às crescentes evidências de seus aspectos prejudiciais

aos povos indígenas nos rincões do país, sujeitos não apenas à cobiça de agentes nacionais

sobre os recursos de seus territórios e a força de trabalho dessas populações, mas também à

corrupção de funcionários governamentais e a um arcabouço jurídico ambíguo e

majoritariamente desfavorável aos seus interesses imediatos no âmbito das relações

interétnicas.

Acompanhando a análise de Carlos Frederico Marés de Souza Filho (1998) sobre a

evolução da presença indígena no quadro jurídico nacional durante o século XX, temos que as

contradições a partir das quais os povos indígenas foram tratados pelo Estado brasileiro

revelam um longo processo de transformação, mas que a essa época ainda teria muito a se

transformar até que se pudesse constatar “o renascimento dos povos indígenas para o Direito”.

Do ponto de vista mais específico das ações práticas do Estado, as análises feitas por Ribeiro

(1962; 1970) sobre a evolução da política indigenista sob os auspícios do SPI são ainda mais

claras no que diz respeito aos avanços e sobretudo às limitações de sua atuação junto a essas

populações, de tal forma que é a partir das reflexões desse autor que procuramos iniciar uma

análise mais detalhada do indigenismo brasileiro a partir da incorporação do SPI pela

Fundação Nacional do Índio, estabelecida pela Lei n° 5.371, de 1967. Para tanto, nos

apoiamos também nas análises que João Pacheco de Oliveira Filho e Antônio Carlos de Souza

Lima, dentre outros antropólogos, realizaram a partir da década de 1980 sobre os resultados

da política indigenista nacional após o advento da FUNAI e o processo de redemocratização

que culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988.

povos junto aos quais atuavam, enquanto o habitus estaria relacionado com os elementos comuns da atuação dos

sertanistas em geral, comportando “um grau maior de generalidade [e] caracterizando o que é invariável,

constante” em tais práticas e discursos. Nesse sentido, as práticas indigenistas de Francisco Meirelles e dos irmãos

Villas Boas entre as décadas de 1940 e 1960, por exemplo, podem ser compreendidas referencialmente como

expressões de duas tradições sertanistas distintas que, a partir de uma adesão comum ao discurso de integração

presente no indigenismo nacional desde os tempos rondonianos, diferenciam-se quanto às estratégias de atração, à

velocidade e à intensidade do contato, como veremos adiante.

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Esse esforço se situa na linha que viemos discutindo ao longo desse capítulo sobre as

interações entre a Antropologia e a conformação da política indigenista brasileira, entendida

como expressão de um processo mais geral que se vinha desenvolvendo em toda a América

Latina na metade do século XX. Com isso, procuramos entender de que formas os debates

intelectuais e a mobilização internacional em torno da temática influenciaram a definição de

novos marcos jurídicos e institucionais, com base nos quais se buscaria não mais incorporar

os povos indígenas à civilização nacional, tais quais estrangeiros em suas próprias terras, mas

integrá-los como índios mesmos, na acepção genérica e moderna do termo, às sociedades

nacionais e suas dinâmicas econômicas e sociais a partir da década de 1970. Indo além,

observaremos também o percurso que levou a pauta indígena a se tornar um tema de

crescentes debates políticos em torno da participação e da liberdade política no contexto do

Regime Militar e nos anos seguintes, congregando as nascentes organizações indígenas e

outros movimentos sociais que se expandiram nacionalmente e contribuíram nos processos

políticos que levaram à redemocratização do país.

2.2.1. Entre o desenvolvimento e a proteção: discursos e práticas estatais frente às

vulnerabilidades indígenas em sistemas interétnicos

Do estabelecimento do SPI como instituição governamental responsável pela proteção

dos povos indígenas — a partir da relativa superação do debate entre as posições de

extermínio como solução aos conflitos interétnicos nos sertões do país, expressa em artigo

publicado pelo então diretor do Museu Paulista, Hermann Von Ihering, em 1908, e de

intervenção protecionista do Estado nessas mesmas situações, de que nos falam Ribeiro

(1970) e muitos outros autores — até os discursos e práticas de um Estado crescentemente

comprometido com os esforços de desenvolvimento regional e nacional, em detrimento das

questões morais e ideológicas que davam suporte à proteção dos povos indígenas de base

positivista, a política indigenista brasileira parece jamais ter deixado de procurar respostas a

um dilema fundamental: de que formas seria possível conciliar, e até que ponto relativizar, as

obrigações legais e, mais profundamente, morais que se impunham aos esforços de

consolidação da soberania nacional sobre a diversidade étnica, entendida em seus aspectos

culturais, econômicos e políticos?

Como viemos discutindo até agora, a política indigenista nacional surgiu no início do

século XX como uma intervenção protecionista diante das frentes de expansão da sociedade

nacional sobre os territórios tradicionais de povos indígenas historicamente isolados das

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dinâmicas vinculam o país à economia global. As fronteiras da civilização brasileira foram

expandidas a partir de atividades extrativistas na Amazônia, da penetração militar e da

abertura de novas regiões às atividades pastoris e agrícolas desde a primeira metade do século

XX (RIBEIRO, 1970: 21), e nesse contexto as motivações humanitárias de “melhoramento” e

integração dos povos indígenas à civilização nacional representavam um esforço

reconhecidamente nobre, ainda que árduo e aparentemente interminável.

Nesse contexto, a indução do desenvolvimento regional pelo Estado se dava com base

em ações indiretas de promoção da colonização, como a concessão de terras a imigrantes, a

interligação de centros urbanos do interior pelas vias telegráficas e a realização de obras de

infraestrutura em transporte, sobretudo em regiões ainda próximas aos núcleos urbanos do

litoral. Esses estímulos à interiorização, como nos mostra Ribeiro (1970), foram responsáveis

pela catalisação de dezenas de conflitos e, não raro, massacres dos povos indígenas que ainda

mantinham algum grau de autonomia e independência em relação à sociedade nacional, como

os Kaingang e os Xokleng nas regiões Sul e Sudeste do país, ainda que em um nível que se

revelaria bastante reduzido quando comparado a episódios de violência que tiveram lugar no

Centro-Oeste e na Amazônia nas décadas subsequentes.

Em que pesem as mudanças institucionais havidas com a incorporação dos quadros do

SPI pela FUNAI, a persistência de certas contradições inerentes àquela organização e suas

práticas e discursos de proteção dos povos indígenas contribuiu para o aprofundamento da

situação de sujeição e dominação desses povos no âmbito da sociedade nacional. Ao mesmo

tempo em que se desloca definitivamente a motivação da assimilação indígena por meio de

seu “melhoramento cultural” e incorporação às dinâmicas econômicas regionais como

trabalhadores nacionais para aquela voltada à integração de seus territórios ao ordenamento

fundiário mais amplo do país, especialmente pelos esforços mais enfáticos de integração da

região amazônica e das novas fronteiras agrícolas ao sistema econômico nacional,

intensificam-se também os aspectos autoritários de atuação política do Estado sobre a

população nacional. Essa contradição do indigenismo oficial brasileiro é posta por Luciano

(2012) nos seguintes termos:

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“(...) O SPI e a FUNAI, desde a concepção que os originou, sempre conviveram com essa

contradição: proteger e tutelar para dominar, integrar e emancipar. Ainda hoje, a missão da

FUNAI é dúbia e contraditória, pois, ao mesmo tempo [em] que se coloca como protetora e

aliada dos índios, discrimina povos que conseguiram sair, a duras penas, de suas asas

tutoras.” (LUCIANO, 2012: 208).

A repressão da ditadura militar instaurada em 1964 e que viria a se prolongar por

quase duas décadas, ao passo em que se manifestava no contexto urbano pela repressão aos

movimentos sociais de resistência política, o fazia no interior e na Amazônia a partir da

interface entre as motivações de integração regional e os grandes projetos de

desenvolvimento, colonização e exploração econômica. Do ponto de vista da questão

indígena, a integração das populações indígenas se dava pelo reforço da noção de

“incapacidade” e pela intensificação dos discursos e práticas de dominação que viriam a ser

compreendidas como parte de um “regime tutelar” estabelecido a partir de, entre outras

motivações, o desenvolvimento de uma política de proteção pela “atração” – enquanto parte

de um processo de integração que, na melhor das hipóteses, logrou o estabelecimento de

relações de dependência entre os índios “amansados” e membros da sociedade nacional

(RAMOS, 1998: 149-50), quando não a quase completa dizimação física e desestruturação

sociocultural de povos e grupos “seduzidos e abandonados” pelas vanguardas indigenistas de

nossa sociedade. De um ponto de vista mais geral e menos antropológico, o jornalista Rubens

Valente – em obra sobre a relação de agentes do Estado brasileiro e os povos indígenas

durante o período militar, escrita após um profundo trabalho investigativo nos até poucos anos

secretos arquivos do Serviço Nacional de Informações (SNI) e outras fontes documentais –

sobre o período muito assertivamente pontua que:

“Se a trajetória dos povos indígenas na ditadura fosse considerada apenas um aterrador caso

sobre vidas desperdiçadas, creio que seria um bom resumo. Mas ela é muito mais complexa

do que isso. Repleta de tragédias, derrotas e também vitórias, é uma das jornadas mais

surpreendentes e dramáticas do século passado no país. É a história de como pequenos

grupos humanos enfrentaram, às vezes com violência, às vezes com estoicismo, uma força

dominante mais poderosa, que pretendeu, com esforço calculado, subjugá-los e empobrecê-

los sob a promessa de uma vida melhor. É também a narrativa de como uma porção de

indígenas, servidores públicos, missionários e antropólogos, muitas vezes em desafio aberto

à ditadura, correu sérios riscos para pôr em dúvida e se possível interromper um avanço

econômico que não considerasse as ricas nuances de culturas e homens diferentes da

maioria da população, a fim de preservá-los da extinção. Por fim, é a descrição de como o

Estado brasileiro, com suas imensas dificuldades, também conseguiu salvar indígenas do

extermínio, ainda que nesse processo tenha manifestado uma incúria e um menosprezo

notáveis, que acabaram por ceifar centenas de preciosas vidas.” (VALENTE, 2017: 12)

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Dessa forma, podemos compreender a evolução do indigenismo oficial brasileiro de

suas bases positivistas para outra de inspiração antropológica e caráter militar como um

movimento pendular, nos termos de Silva (2012: 12) ao classificar os indigenismos latino-

americanos em termos das formas de apreensão e categorização social do “índio”. Nesse

ponto, temos que a perspectiva indigenista brasileira definiu as linhas pelas quais se

compreendia – e em alguns contextos, ainda se compreende – a diferença étnica e a

distribuição geográfica dos povos indígenas no país. Como abordamos no início da seção

anterior, os esforços de classificação dessas populações em “áreas culturais” cotejados por

Galvão (1960) e outros autores posteriores foram refinando aos poucos as suas divisões, a

partir do acúmulo de conhecimento sobre os sistemas interétnicos do país e as relações sociais

neles estruturadas.

Isso ocorre também no campo sociodemográfico, em trabalhos como o de Ribeiro

(1957; 1970), que trazem informações bastante elaboradas sobre as frentes de expansão

econômica da sociedade nacional, bem como sobre a dimensão e distribuição demográfica

desses povos, incluindo estimativas sobre os grupos tidos como isolados naquela época. Para

complementar os mapas de áreas culturais e etnográficas que apresentamos anteriormente (p.

23-4), trazemos alguns dos dados reunidos por Ribeiro (1977: 229-41) nas tabelas a seguir,

com o intuito de evidenciar a relevância dessas iniciativas de compreensão mais gerais do

“problema indígena” no país para a configuração de uma “cartografia etnográfica” que

favorecesse a operacionalização do indigenismo oficial em suas bases antropológicas18

.

18

As tabelas que apresentamos foram elaboradas por Darcy Ribeiro a partir de seu trabalho no Serviço de

Proteção ao Índio, e devem ser compreendidas a partir de suas limitações práticas no levantamento populacional

dos povos indígenas do país que, à época, se encontravam em relativo isolamento das frentes de expansão da

sociedade nacional, como podemos observar ao comparar suas informações com aquelas presentes em estudos

demográficos posteriores, como o de AZEVEDO (2013). A título de exemplo, essa autora estima que a população

indígena do país diminuiu de um total de 200.000 para 70.000 indivíduos, entre 1940 e 1957, quando teria atingido

a sua menor dimensão relativa e absoluta. De lá para cá, com as mudanças da política indigenista e o

aprimoramento das práticas e instrumentos censitários desde o início do século XX, dentre outros fatores, a

população que se autodeclara indígena no país tem registrado índices de crescimento demográfico

consideravelmente superiores às médias nacionais.

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Tabela 2.2 – Número de grupos indígenas que se encontravam em 1957 nas diferentes etapas de

integração à sociedade nacional em relação à distribuição dos mesmos em 1900.

Grau de Integração

Totais

Em

1900

1957

Isolados Contato

Intermitente

Contato

Permanente Integrados Extintos

Isolados 105 33 23 13 3 33

Contato Intermitente 57 - 4 29 10 14

Contato Permanente 39 - - 3 8 28

Integrados 29 - - - 17 12

Totais (1957) 230 33 27 45 38 87

Fonte: Ribeiro, 1970: 239

Tabela 2.3 – Comportamento dos grupos indígenas brasileiros que defrontaram com

diferentes fronteiras de expansão econômica da sociedade nacional de 1900 a 1957.

Graus de

Integração

Áreas de economia Totais

Agrícola Pastoril Extrativista Inexplorada

1900 1957 1900 1957 1900 1957 1900 1957 1900 1957

Isolados 6 - 6 - 50 13 43 20 105 33

Contato Intermitente - - 5 2 43 6 5 19 57 27

Contato Permanente 2 - 14 9 23 36 - - 39 45

Integrados 2 4 18 19 9 15 - - 29 38

Extintos - 6 - 13 - 59 - 9 - 87

Totais 10 43 129 48 230

Fonte: Ribeiro, 1970: 243

Tabela 2.4 – Comportamento dos grupos indígenas brasileiros por troncos linguísticos, de

1900 a 1957, quanto ao grau de integração à sociedade nacional e quanto à extinção.

Graus de

Integração Tupi Aruak Karib Jê Outros Totais

1900 1957 1900 1957 1900 1957 1900 1957 1900 1957

Isolados 37 6 13 6 17 5 11 5 27 1 105 33

Contato

Intermitente 8 6 11 3 9 11 4 3 25 4 57 27

Contato

Permanente 3 8 7 8 3 3 8 3 18 23 39 45

Integrados 4 6 6 6 3 3 4 7 12 16 29 38

Extintos - 26 - 14 - 10 - 9 - 28 - 87

Totais 52 37 32 27 82 230

Fonte: Ribeiro, 1970: 250

Tabela 2.5 – Populações indígenas brasileiras – 1957 (adaptada pelo autor).

População Indígena Isolados Contato

Intermitente

Contato

Permanente Integrados Totais

População População População População População

Mín Max Mín Max Mín Max Mín Max Mín Max

Contabilizada/Registrada 11.250 15.600 5.800 10.750 11.150 21.200 23.400 35.650 61.600 83.200

Ignorada (Estimativa) 10.500 10.500 2.000 2.000 2.000 2.000 2.000 2.000 16.500 16.500

Totais 21.750 26.100 7.800 12.750 13.150 23.200 25.400 37.650 68.100 99.700

Fonte: Ribeiro, 1970: 258

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62

Darcy Ribeiro pode ser caracterizado por várias de suas facetas, que o permitiam

transitar entre os meios intelectuais, políticos e burocráticos, sendo notáveis as contribuições

que realizou em todos os campos nos quais se inseriu como figura de destaque. O fôlego e a

qualidade de suas obras literárias e antropológicas, principalmente, as distinguem de tal forma

que é possível supor que apenas a convergência de tantas qualidades em um intelectual,

pesquisador, político e educador como tal poderia tornar possível o nível de seus trabalhos

sobre os povos indígenas do Brasil e tantas outras áreas. Tendo sido funcionário do SPI ente

1947 e 1957 e, inclusive, um dos criadores do Museu do Índio no âmbito daquela instituição,

sua história de vida se confunde com a do indigenismo em sua interação com a Antropologia,

pois foi justamente nas zonas de contato e sobreposição dos campos da etnografia e do

indigenismo oficial em que desenvolveu suas reflexões e análises sobre “a integração das

populações indígenas no Brasil Moderno”. Como vimos na seção anterior, a abrangência dos

estudos e dos levantamentos de dados que faz sobre a temática ao longo das décadas de 1960

e 70, principalmente, o situam como uma das principais referências acadêmicas – mas não

somente – na compreensão da política indigenista oficial ao longo do século XX, e mesmo

para o funcionamento desta a partir daquela época, como observamos na clara referência que

o Estatuto do Índio, de 1973, faz às suas categorias-etapas da integração.

Entretanto, é preciso observar alguns aspectos sobre os dados sobre os povos

indígenas brasileiros reunidos por Ribeiro, naquilo que diz respeito ao caráter essencialmente

limitado que informações desse tipo podem ter na plena compreensão do fenômeno étnico que

a existência dessas populações representa para o exercício de um poder estatal pretensamente

ubíquo e para qualquer esforço de sua apreensão intelectual como tal. Primeiramente, temos

as dificuldades inerentes aos nomes que designam as diferentes identidades étnicas, as suas

transformações ao longo do tempo, e a limitação prática para a realização de levantamentos

demográficos mais precisos. Em segundo lugar, as próprias categorias de Ribeiro sobre as

etapas do contato interétnico se revelam incapazes de apreender plenamente a evolução da

realidade demográfica dos povos indígenas ao longo da segunda metade do século XX,

passando a haver um crescente descompasso entre as realidades a que se referiam quando de

sua proposição e a atual conformação da população indígena do país. De nosso especial

interesse, temos que, quando realizou esse levantamento populacional, Ribeiro descreveu a

categoria de “índios isolados” da forma que se apresenta em 1970, qual seja:

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63

“1. Isolados: São os grupos que vivem em zonas não alcançadas pela sociedade brasileira, só

tendo experimentado contatos acidentais e raros com ‘civilizados’. Apresentam-se como

simplesmente arredios ou como hostis. Nesta categoria se encontram as tribos mais

populosas e de maior vigor físico e, também, as únicas que mantém completa autonomia

cultural.” (RIBEIRO, 1970: 342).

Considerando as transformações econômicas, sociais e ambientais que ocorreram no

país ao longo das mais de quatro décadas em que essa definição se consolidou nos campos

antropológico e indigenista – bem como a alteração do perfil demográfico das comunidades e

grupos considerados isolados naquela época e nos anos mais recentes, levando a certa

sobreposição com as categorias de contato intermitente e contato permanente delineadas pelo

autor e, posteriormente, adotadas pelo indigenismo oficial –, temos que a elaboração dessas

categorias a partir de uma gradação entre o isolamento e o contato vem sendo questionada a

partir da década de 1970 em sua capacidade explicativa da complexidade do fenômeno étnico

e das formas de resistência sociocultural dos povos indígenas no país.

Como veremos no próximo capítulo, somam-se ao desenvolvimento da Etnologia

entre as décadas de 1970 e 1980 os processos de organização e mobilização política dos

chamados movimentos indígenas e indigenistas no país, em um contexto de progressiva,

porém lenta abertura política que se consolidaria formalmente a partir de 1985, com o fim do

Regime Militar e a mobilização social em torno dos debates pele elaboração de uma nova

Constituição Federal, que seria promulgada em 1988 com importantes mudanças no

emolduramento jurídico da “questão indígena”. Antes disso, porém, vejamos como as

definições administrativas sobre o isolamento voluntário de povos indígenas se transformaram

a partir da crescente conscientização, nos campos antropológico e indigenista, sobre a relação

entre o direito à autodeterminação e a adoção do isolamento por algumas dezenas de grupos

indígenas, que se localizam especialmente na Amazônia.

2.2.2. Regime tutelar e a consciência do indigenismo: a emergência do princípio

do não-contato no Encontro de Sertanistas da FUNAI (1987)

Historicamente, o conceito jurídico e antropológico de tutela da população indígena

foi elaborado a partir de questões ideológicas e políticas que expressam as contradições do

processo de formação da identidade nacional no país, levando-se em conta a centralidade da

presença dos povos indígenas nesse processo e as formas como a sua integração à sociedade

nacional foi compreendida pelos diversos atores que a compõem em termos de negação da

autonomia e subordinação política dessas coletividades aos difusos interesses nacionais.

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64

Nesse contexto e como vimos na parte anterior desta seção, o rechaço de diversos povos

indígenas ao contato com agentes da sociedade nacional foi um fenômeno que, ainda que se

tenha reduzido drasticamente ao longo do século XX, em termos demográficos relativos,

esteve permanentemente presente como uma questão aos núcleos institucionalizados de poder,

colocando-se como uma questão central para os debates jurídicos, políticos e antropológicos

em torno da tutela enquanto conceito e expressão política da soberania nacional sobre a

autodeterminação indígena.

Do ponto de vista da área do Direito, existem diversos trabalhos a esse respeito, dentre

os quais o estudo de Carlos Frederico Marés de Sousa Filho (1998) sobre a evolução das

ordens constitucionais e dos marcos jurídicos nacionais desde o período colonial, com ênfase

no século XX e no contexto posterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, que

tomamos como guia ao longo desse processo de produção jurídica da realidade dos povos

indígenas, desde sua caracterização como sujeitos de direitos individuais e coletivos, até o

reconhecimento legal de suas especificidades culturais, sociais e políticas em um movimento

político de desenvolvimento do pluralismo jurídico no país. Temos assim que a tutela dos

povos indígenas, a partir da adaptação de mecanismos já existentes da tutela chamada

orfanológica, ocorre com o advento do Código Civil de 1916 — no qual se positivaram a

incapacidade civil relativa dos indígenas e a consequente invalidade dos atos jurídicos que

pudessem realizar, considerando a tutela de seus interesses diretos pelo órgão indigenista e a

possibilidade de sua emancipação civil, atendidas certas condições que atestassem sua

integração e conhecimento dos códigos da sociedade nacional, conforme seu art. 6º (MARÉS

DE SOUSA, 1998: 100).

O autor segue descrevendo a trajetória jurídica do conceito de tutela no início do

século XX destacando outras normas especificamente direcionadas às populações indígenas e

sua progressiva integração à “comunhão nacional”, como o Decreto nº 5.484, de 1928,

considerado avançado pelos juristas da época por romper com a tutela orfanológica, então

adaptada do Direito Privado à realidade indígena por falta de mecanismos jurídicos mais

apropriados, e trazer a previsão de um regime tutelar de natureza pública, em que a “abertura

que altera a natureza jurídica da relação [entre os povos indígenas e a sociedade nacional permitiu

à] lei brasileira ir acrescentando conceitos mais nitidamente públicos aos interesses jurídicos

indígenas” (1998: 101). De fato essa possibilidade de desenvolvimento do Direito Público em

torno dos direitos específicos dos povos indígenas apenas muito timidamente teve avanços

nas décadas seguintes, sendo a Lei 6.001, de 1973, o chamado Estatuto do Índio, a primeira

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65

grande iniciativa de realizá-lo, porém, na perspectiva desse autor, de forma negativa ao dar

um passo contrário a esse processo de absorção da temática indígena pelo Direito Público. No

Estatuto, o legislador apontou, em sua regulamentação do Código Civil e consequente

revogação do Decreto de 1928, que a tutela do Estado sobre os povos indígenas deveria

seguir, via de regra, as normas de Direito Privado e de Família.

Já no campo da Antropologia, a discussão acerca da tutela do Estado sobre os povos

indígenas tem se dado em termos mais gerais e que vão além do conceito jurídico e da ênfase

na capacidade civil dos indivíduos indígenas que ela representa, entendendo suas relações

com outros aspectos dos modos tradicionais de vida desses povos, tais como o território, a

capacidade política, os direitos coletivos, a educação e outros direitos sociais, dentre outros

correlacionados. Nesse sentido, o conceito jurídico se amplia em conceitos sociológicos e

antropológicos que auxiliam na compreensão mais profunda de suas implicações, como

aquelas relacionadas ao exercício do “poder tutelar”. A emergência de uma vertente da

Antropologia menos comprometida com a racionalização dos processos de integração

interétnica capitaneados pelo indigenismo estatal e mais crítica quanto aos resultados da

expansão nacional, a partir do final da década de 1960, poderia ser entendida como parte de

um processo de redefinição da política indigenista similar àquele que viu o indigenismo de

base positivista e militar sucumbir, em termos, juntamente com o SPI que o corporificava,

para a emergência de discursos e práticas indigenistas de cunho antropológico, mais

claramente voltados à integração dos povos indígenas, a partir da década de 1970.

Segundo Villa (2018: 61-63), a incorporação das estruturas administrativas do SPI e

outras instituições do indigenismo estatal pela FUNAI significou a continuidade de práticas

de atração e contato como formas de dominação interétnica, a partir de um discurso de

desenvolvimento nacional e integração da Amazônia de caráter sumamente prejudicial à vida

e aos modos de organização social dos povos indígenas, como ela observa no caso específico

dos povos que habitam a região do Posto Indígena Guaporé, onde hoje se localiza a Terra

Indígena Massaco, em Rondônia.

“A Funai, quando de sua criação em 1967, reuniu e incorporou os recursos materiais e

humanos do SPI, da Fundação Brasil Central e do Parque do Xingu (Possuelo, 2015:

219), de forma que as práticas indigenistas do novo órgão em muito pouco se

diferenciassem daquelas executadas pelos seus antecessores. [...] Segundo Possuelo

(ibid.), a região [do Posto Indígena Guaporé, em Rondônia] contava com uma forte

demanda [...] pela remoção dos indígenas que se encontravam nas nascentes dos

igarapés, de modo que várias etnias foram concentradas em um só lugar, liberando o

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66

espaço necessário para as “estradas” utilizadas pelos seringueiros e seringalistas. Foram

os emissários desses seringalistas que, em grande medida, realizaram os primeiros

contatos com os povos dessas terras. [...] Muitos desses grupos foram atraídos, também,

pelo SPI, para que servissem de mão de obra no seringal São Luís, [...] onde [se] estima

que cerca de 400 indígenas de diversas etnias tenham contraído doenças e falecido.”

(VILLA, 2018: 61)

Essa interação entre agentes econômicos e representantes do órgão indigenista para a

exploração da força de trabalho e ocupação dos territórios tradicionais indígenas ocorreu

historicamente em diversos contextos regionais, sendo interessante observar, juntamente com

a autora, que, em que pese a centralidade da figura e do ideário de Rondon no indigenismo

brasileiro, desde a década de 1960 se estabeleceram entre os funcionários do órgão indigenista

divergências significativas quanto às formas, níveis de intensidade e de velocidade de

integração dos povos indígenas, enquanto alternativas para sua proteção frente à expansão das

dinâmicas nacionais, sem que, contudo, a estratégia de proteção dos povos indígenas por meio

de sua atração e submissão ao regime tutelar fosse problematizada.

“Internamente aos funcionários, sertanistas e indigenistas, houve, ao longo dos anos,

divergências a respeito do modus operandi empregado em suas ações. Herdeiro direto

das ideias e práticas inauguradas por Rondon, a quem, aliás, boa parte das bases e

postos da Funai ainda faz referência através de frases e imagens, o sertanismo da

segunda metade do século XX foi fracionado entre as visões dos irmãos Villas Boas e

as de Francisco Meirelles. As duas linhas são distinguidas por Possuelo (op. cit.:220-

221) a partir da velocidade que apontavam como ideal para que a “integração” dos

povos ainda em isolamento ocorresse. Embora ambas tivessem como objetivo central a

defesa dos povos indígenas, condizente com seus “papéis heroicos” (cf. Freire, 2005),

os servidores adeptos da vertente disseminada por Meirelles acreditavam que a

integração deveria ocorrer de forma rápida, enquanto a visão dos Villas Boas apoiava

uma absorção pela sociedade envolvente em longo prazo, defendendo uma lenta

adaptação às novas situações.” (2018: 62).

Somam-se às considerações da antropologia crítica do indigenismo naquela época,

como fatores dessa transformação, as evoluções dos debates sobre o direito à

autodeterminação dos povos indígenas, que abordaremos no capítulo seguinte, mas que já

podemos preliminarmente indicar como um fator importante nas transformações que viriam a

ocorrer na política indigenista voltada à proteção dos povos indígenas não-contatados. Com o

transcurso de duas décadas desde a criação da FUNAI, a perspectiva dos funcionários que

realizavam a política indigenista de atração e integração dos povos indígenas, por meio do

estabelecimento de relações de dependência e dominação decorrentes do contato,

acompanhou o crescente entendimento crítico dos campos sociais que mencionamos. Nesses

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67

contextos, a subordinação das ações de proteção desses povos aos interesses econômicos

regionais e nacionais trazia, em seu âmago, contradições que não poderiam ser

negligenciadas, sob pena de multiplicação de conflitos e de situações de violações tais como

as que viveram os Panará, os Waimiri-Atroari e os Cinta Larga entre as décadas de 1960 e 80.

“Em ambos os métodos, entretanto, o contato ou a “pacificação” involuntária não

eram colocados em questão: tratava-se de uma necessidade demandada por muitas

frentes, uma realidade encarada como inevitável. Toda a história do indigenismo

brasileiro desde sua origem estava cerceada pela atração, através das frentes de

contato, e era disso que se tratava a principal função a ser executada. Desde pelo

menos o início dos anos 1970, no entanto, o panorama desastroso das pacificações

vinha sendo denunciado (...), ainda que de forma sufocada por um discurso que

promove a liberação de áreas para fins de exploração econômica.” (2018: 62-3)

Todos esses fatores contribuíram para que houvesse uma mudança de posicionamento

de parte dos técnicos da FUNAI sobre as políticas de atração a partir de 1987, quando se

realizou em Brasília a reunião que ficaria conhecida como o “I Encontro de Sertanistas”.

Quando se reuniram em junho daquele ano, poucos meses após a publicação de regimento

interno19

que previa a criação da Coordenadoria de Índios Arredios sobre bases voltadas à

integração desses povos, os sertanistas da Fundação Nacional do Índio tinham por objetivo

refletir conjuntamente sobre a realidade vivida junto aos povos indígenas em diversas regiões

do país, notando a situação de penúria em que se encontravam e a falência do modelo da

atração como forma de integração dos povos indígenas à sociedade nacional. Considerando o

histórico das atrações nas décadas anteriores, a territorialidade indígena e a evolução do

direito internacional sobre a autodeterminação desses povos, que analisaremos no próximo

capítulo, propõem que o enfoque da proteção de isolados passe a ser a interdição e o controle

de acesso às áreas onde vivem esses povos.

A centralidade da figura de Sidney Possuelo nesse processo de transformação no

campo do indigenismo não pode ser ignorada, pois foi a partir de sua projeção política no

interior das instituições (FREIRE, 2005: 111-2), a partir de uma visão de contato mais

próxima daquela representada pelos irmãos Villas Bôas, que essa disputa política em torno

das práticas administrativas e objetivos da política do contato, como nos contam Villa (2018)

e outros autores referenciais.

“Descendente da ‘linhagem’ de Orlando Villas Boas, também Sidney Possuelo defendia

que os povos indígenas não deveriam ser forçosamente integrados à sociedade

19

Decreto nº 99, de 31/03/1987 - Diário Oficial da União (DOU) de 06/04/1987, seção 1, p. 4920.

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68

envolvente, e relata seu incômodo, desde cedo, com as estratégias de transferência dos

povos de suas terras para outras (cf. Possuelo, 2015); neste citado Encontro, porém, teve

a oportunidade de propor estratégias que buscavam evitar o contato e atribuíam aos

sertanistas funções que diziam respeito mais estritamente à proteção e vigilância das

terras em que os indígenas em isolamento se encontrassem, resguardando ações de

contato para situações em que fosse identificado risco à sobrevivência desses povos.

A proposta [...] contou com o apoio de outros indigenistas experientes, como Afonso

Alves da Cruz, Fiorello Parisi e Wellington Gomes Figueiredo, fartos das inúmeras

mortes noticiadas a respeito tanto dos indígenas contatados quanto dos servidores e, em

menor número, dos colonos nas cercanias, interessados por aquelas terras ou

trabalhadores de diversos empreendimentos nas áreas em questão (cf. Milanez, 2015).

Contudo, para que a nova diretriz de não-contato fosse implementada, era necessário

conceber seu modo de ação, a exemplo da realização de um levantamento de todas as

referências de índios isolados existentes no Brasil [...]”. (2018: 64).

Essa proposta de reorganização administrativa para proteção dos “povos arredios” por

meio da adoção de práticas voltadas à preservação do isolamento, conforme as 13 conclusões

do encontro, foram encaminhadas à Presidência da FUNAI, ocupada pelo jovem Romero

Jucá, considerado representante de interesses anti-indígenas os mais diversos que orbitavam

em torno da questão étnica no país, como a expansão agropastoril, a mineração e o

extrativismo em larga escala na Amazônia, mas que decidiu pela anuência à proposta de

Possuelo e os demais sertanistas do Encontro.

“01. O contato é prejudicial aos índios;

02. Os índios que não estão ameaçados devem ser protegidos, reformulando-se “o

conceito de proteção ao índio isolado”;

03. O contato se daria “quando compulsões incontroláveis ocorrerem”, estando

ameaçada a sobrevivência física do grupo;

04. O levantamento de todos os grupos isolados era necessário;

05. Devem ser interditados, para vigilância e proteção, os territórios habitados pelos

índios isolados;

06. Definido o contato, ele deverá ser prioritário pois trata-se de um povo ameaçado de

extinção que temos a obrigação legal e moral de resgatar e manter intacto;

07. Reconhecer os grupos isolados como patrimônio cultural, humano, histórico da

humanidade;

08. O contato deverá ocorrer naturalmente, valorizando-se a preocupação com a saúde.

O documento dos sertanistas afirmava que tinham milhares de exemplos de grupos

inteiros mortos (...) por gripes, sarampos, coqueluche, etc.;

09. O contato deverá educar o índio para ser auto-suficiente, fugindo do paternalismo

sem critérios que desestrutura;

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69

10. O documento reivindica a renovação dos “quadros de sertanistas” da FUNAI já que

o trabalho com isolados era de “alta responsabilidade”, requeria “conhecimento

especializado (...) executado por servidores devidamente preparados, com equipes

adequadas e com todo o equipamento necessário à segurança da equipe e dos índios

isolados”;

11. A FUNAI devia ter “força e poder” político e financeiro para executar seu trabalho;

12. Os índios eram, “em sua essência, guardiães para o país, de imensas riquezas

florestais, hídricas, da fauna, da flora”;

13. Como a sociedade brasileira também era responsável pelos índios isolados, os

sertanistas estavam dispostos a receber colaborações, mas com um senão: a “autoridade

de decisão” não podia ser “maculada”, mesmo envolvendo a academia nesse trabalho”.

(FREIRE, 2005: 114-5)

A partir de sua definição jurídica por meio das portarias nº 1.900/1987 (criação da

CII), nº 1.901/1987 (estabelecimento do Sistema de Proteção ao Índio Isolado) e nº

1.047/1988 (regulamentação do SPII), a tarefa de proteção dos povos isolados passa a ser de

competência exclusiva da FUNAI, sendo qualquer atividade de exploração econômica em

seus territórios proibida, tendo em vista a atuação das equipes de vigilância, não mais de

atração, para a fiscalização dessas áreas e a confirmação de informações sobre povos isolados

com vistas à demarcação territorial. Como observaremos na conclusão deste trabalho, a partir

da política inaugurada em 1987, os funcionários do órgão indigenista passam a ser

compelidos a elaborar novas estratégias de trabalho não apenas “no que diz respeito a uma

proteção à distância dos indígenas em isolamento, mas também ao convencimento – especialmente

do Estado – de que essas vidas (e sociedades) realmente existiam.” (2018: 65), enfrentando as

crescentes pressões econômicas sobre os territórios de povos isolados na Amazônia e uma

série de novos desafios às políticas de proteção pelo não-contato.

* * *

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70

3. FRONTEIRAS DO ISOLAMENTO:

O direito à autodeterminação indígena

e a globalização do indigenismo

A aproximação entre a Antropologia e o Indigenismo no contexto latino-americano,

do ponto de vista ideológico e prático das políticas de integração nacionais, percorreu

singulares caminhos no Brasil ao longo do século XX e, como em outros países, revelou a

base das contradições entre os processos políticos nacionais e os direitos de suas populações

indígenas. Em nome da soberania, do desenvolvimento e de interesse difusos chamados

nacionais, a autonomia dos povos indígenas, enquanto populações etnicamente diferenciadas,

historicamente e no mais das vezes foi relegada ao segundo plano das mais altas aspirações

das coletividades representadas pelos Estados Nacionais.

Como vimos no capítulo anterior, as transformações da política brasileira voltada aos

povos definidos como isolados se transformou discursivamente a partir de 1987, no contexto

da redemocratização e de uma abertura política que se traduziria em um novo enquadramento

constitucional da “questão indígena”. Esse processo também favoreceu efeitos práticos, como

o reconhecimento e a demarcação de considerável parte das terras indígenas do país ao longo

da década de 1990, sobretudo na Amazônia, que podem ser entendidos como avanços na

garantia dos direitos coletivos desses povos. Entretanto, é importante notar que muitos

desafios permanecem nos dias atuais, com o aprofundamento da violência interétnica em

contextos regionais onde a regularização territorial não pode ser plenamente realizada, e as

dificuldades operacionais e políticas de fiscalização e garantia da posse plena dos territórios

regularizados na maior parte dessas localidades.

Nesse contexto, a emergência de movimentos indígenas ainda sob a tutela do

autoritarismo do regime militar se deu a partir de sua articulação em torno de estratégias de

mobilização e constrangimento em níveis nacionais e internacionais, contribuindo para as

transformações jurídicas e políticas que teriam lugar a partir da década de 1980, e dialogando

com o crescente movimento global em torno da “questão étnica”. Para Rodolfo Stavenhagen,

o conceito tradicional de direitos humanos (tanto os direitos civis e políticos quanto os

direitos sociais, culturais e econômicos):

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71

“(...) se aplica predominantemente a indivíduos. Por outro lado, os direitos coletivos se

aplicam primordialmente aos Estados e em alguns casos excepcionais aos povos que lutam

pela libertação nacional e assim são reconhecidos pela comunidade internacional. Entretanto,

entre os direitos individuais e os direitos dos Estados existem milhões de seres humanos

em dezenas de países em todos os cantos do mundo que reivindicam sua própria

identidade, seu direito à existência conforme seus próprios valores e formas de

organização e, muitas vezes, o seu direito à autodeterminação.” (Stavenhagen, 1990: 71 –

grifos do autor).

Nessa linha de pensamento, procuraremos ao longo deste capítulo compreender

inicialmente como a noção de isolamento voluntário deixa de ser um conceito político-

jurídico estrutural praticamente exclusivo de agências e agentes dos indigenismos nacionais, e

passa a ser ressignificado a partir da atuação dos movimentos indígenas em espaços

internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU). Assim, analisaremos mais

detidamente o processo de evolução conceitual e jurídica do direito à autodeterminação, desde

as vagas primeiras menções em tratados internacionais até sua instrumentalização na

promoção da autonomia e dos direitos de minorias étnicas existentes no seio dos Estados

Nacionais, e passando pelos debates latino-americanos havidos entre as décadas de 1960 e

1970 sobre as contribuições e críticas da Antropologia na elaboração de políticas de

integração dos povos indígenas às sociedades nacionais, no âmbito do Instituto Indigenista

Interamericano.

3.1. O conceito de isolamento como categoria antropológica,

jurídica e política

O que nas últimas décadas se tem convencionado chamar de isolamento voluntário

encontra na realidade diversas expressões concretas, que vão de sua adoção por determinados

povos e grupos indígenas, como uma estratégia autônoma de relacionamento com os seus

entornos, ao seu tratamento como categoria política por atores sociais e instituições alheias à

sua realidade imediata, manejada pelas políticas indigenistas, por exemplo, em seus esforços

históricos de integração do índio aos ordenamentos jurídicos e sociais dos Estados. Nessa

perspectiva mais ampla, o isolamento se reflete como uma expressão concreta e autônoma por

excelência da identidade étnica, adquirindo contornos e significações variados que embasam

as diferentes práticas políticas que o afetam direta ou indiretamente.

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72

Conforme discutimos no capítulo anterior, a ideia de isolamento teve importância

central nos processos mais recentes de consolidação e desenvolvimento da Etnologia Indígena

e do Indigenismo no país, tendo ambos esses campos sociais se influenciado mutuamente na

obtenção de informação, construção de conhecimento e atuação política junto a e sobre os

“índios”. Nessa interação, a (re)construção ideológica da figura do “índio”, associada a ideias

de vulnerabilidade, pureza, primitivismo, selvageria, dentre muitas outras (RAMOS, 1998:

13-59), aparece como uma das formas de comunicação entre tais campos, sendo que a

ampliação conceitual e ressignificação do isolamento como categoria por outros atores e

campos sociais nos permite intuir que a sua importância como conceito de análise seja ainda

mais significativa, na medida em que transita por outros contextos sociais além dos que

mencionamos.

Assim, pretendemos nesta seção desenvolver uma breve discussão sobre a ampliação

do conceito de isolamento no contexto em que ascendem as questões e os movimentos sociais

internacionais de base indígena, analisando alguns de seus reflexos sobre as interações entre o

indigenismo, a antropologia e os direitos humanos, agora do ponto de vista das relações

internacionais. Nesse conjunto, as trocas que observamos existir entre esses campos podem

ser percebidas como parte de sistemas globais, em que as interações sociais que ocorrem a

níveis nacionais muitas vezes estão relacionadas com dinâmicas de alcance transnacional.

Com isso, embora não seja possível simplesmente transpor os campos antropológico e

político-indigenista nacionais para suas possíveis projeções a nível internacional (especialistas

internacionais, representantes diplomáticos ou organizações internacionais, digamos),

entendemos que uma abordagem dos percursos discursivos que o isolamento traça

globalmente, baseada em uma análise comparativa entre esses dois planos – o nacional e o

internacional –, pode nos ajudar a compreender as especificidades deste na forma como nele

se elabora subjetiva e objetivamente o isolamento voluntário.

3.1.1. A ampliação da conceituação política do isolamento

Do ponto de vista da conceituação política do isolamento voluntário e de sua

operacionalização por meio das políticas indigenistas, a mudança do paradigma de proteção

partiu da evolução epistemológica da Etnologia nacional e dos desdobramentos das ações

estatais junto aos povos indígenas para reconhecer e responder de formas específicas as

situações de vulnerabilidade próprias dos grupos indígenas que se mantem distanciados física

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73

e socialmente de membros da sociedade nacional. Historicamente, as formas pelas quais essa

vulnerabilidade é discursivamente elaborada e determina as ações de agentes diversos do

indigenismo estão na base da produção jurídica e administrativa do conceito de povos

indígenas e, para nosso maior interesse, da ideia de isolamento voluntário. Como observa

Oliveira (2002), ao analisar a discussão sobre as condicionantes socioambientais de projetos

apoiados pelo Banco Mundial:

"A ideia de vulnerabilidade (...) evidencia o paradigma implícito na noção de 'povos

indígenas'. Aí podem ser situadas indiscutivelmente sociedade em pequena escala, com

tecnologia simples e que vivem em áreas relativamente isoladas. Dentre esse perfil, contudo,

existem no Brasil apenas cerca de três dezenas de povos isolados, que são objeto de uma

atuação especial do órgão indigenista, por meio da Coordenação de Índios Isolados. No caso

desses grupos, tão flagrantemente vulneráveis, torna-se evidente aos técnicos a necessidade

de estudos e avaliações prévios, circunstanciados de impactos socioambientais, para a

elaboração de qualquer programa de desenvolvimento (...) em regiões limítrofes ou

adjacentes; as medidas de proteção e assistência são naturalmente consideradas

urgentes e avalia-se como imprescindível e necessária a elaboração de um plano detalhado

que deve vir a fazer parte do projeto." (OLIVEIRA, 2002: 110).

Vimos no capítulo anterior que a preocupação intelectual e política sobre a condição

socioeconômica e cultural dos povos indígenas nos processos de integração à sociedade

nacional esteve presente na base de praticamente todas as iniciativas de reflexão e atuação

junto a essas populações, desde o indigenismo rondoniano até suas vertentes antropológica e

socioambiental, como evidenciado pela própria existência de políticas públicas voltadas à

integração desses povos e pelas reflexões de cunho sociológico, histórico e antropológico que

se voltaram a essa questão. Em todos esses campos, a vulnerabilidade sociocultural foi

paulatinamente cedendo lugar como objeto a outros níveis, tais como o territorial, o

epidemiológico e o assistencial, nos termos que esses aspectos adquirem modernamente. Esse

movimento de ampliação conceitual das vulnerabilidades dos povos indígenas, especialmente

daqueles que se encontram em situação de isolamento voluntário, que poderia ser entendido

como uma decorrência do acúmulo de experiências negativas ao longo dos processos de

integração interétnica que tiveram lugar ao longo do século XX, não apenas no Brasil20

, bem

como do surgimento do chamado movimento indígena, que se fortalece e projeta

20

Para aprofundar sobre essa questão, ver os trabalhos de Robert Jaulin sobre o conceito de etnocídio

(1970) e sua coletânea sobre os processos de etnocídio nas Américas (1976), além das já mencionadas obras de

Ribeiro (1968) sobre os processos históricos de integração dos povos indígenas no Brasil e no continente americano

de forma geral.

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74

internacionalmente com crescente relevância nos debates políticos sobre direitos individuais e

coletivos dessas populações a partir da década de 1970.

O rompimento com a perspectiva de “naturalização da sociedade” proposto por

Oliveira (1988) significa, nesse contexto, a adoção de um ponto de vista teórico em que as

relações sociais entre grupos detentores de identidades étnicas diferenciadas são vistas não

somente como partes de um sistema interétnico naturalizado, mas como reflexos elas mesmas

de uma forma de poder estrutural e estruturante, para nos referirmos à terminologia de

pensadores como Michel Foucault e Pierre Bourdieu sobre as relações de poder e dominação

existentes nas sociedades modernas. Nesse sentido, o indigenismo tomado pelos autores em

termos de suas expressões tutelares (regime e poder tutelar) passa a ser compreendido para

além de seus aspectos organizacionais, e adquire caráter mais difuso de dominação

interétnica, como analisa Silva (2012) ao propor uma abordagem comparativa dos

indigenismos latino-americanos a partir desse aspecto político, e também Verdum (2018) em

significativo esforço de traçar uma perspectiva histórica sobre os processos de transformação

e internacionalização de determinadas configurações do indigenismo continental.

Ao longo desse panorama, Verdum destaca as mudanças que levaram o indigenismo

latino-americano, em suas expressões nacionais, a se ampliar a partir do rompimento do

monopólio estatal sobre a “questão indígena”, na medida em que esta vai sendo ressignificada

pelos movimentos indígenas e novos atores, como as organizações não-governamentais que

passam, no contexto brasileiro, a se envolver na temática especialmente a partir da década de

1970. Nesse sentido, o antropólogo Baniwa Gersem Luciano (2016) realiza um esforço

próprio de compreensão das etapas desse processo histórico, relacionando as mudanças do

indigenismo republicano desde o seu surgimento no país até a quebra de sua hegemonia com a

diversificação de atores sociais, discursos e práticas voltados à diferença étnica no país, que

entendemos ser de grande auxílio na compreensão da ampliação conceitual do isolamento

indígena nas últimas décadas.

Em primeiro lugar, destaca o Indigenismo Governamental Tutelar, cujo período de

duração histórica pode ser definido entre 1910 e 1988, quando a adoção de novos princípios

constitucionais relacionados com o pluralismo étnico e jurídico teria indicado uma nova

perspectiva de promoção dos direitos dos povos indígenas, a partir do reconhecimento de suas

especificidades sociais e direitos coletivos. Sobrepondo-se às décadas finais desse primeiro

período, o autor define o período do Indigenismo Não-Governamental, iniciado por volta de

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75

1970, em que setores da Igreja Católica e organizações indigenistas do terceiro setor

começam a romper a hegemonia estatal na temática e, com isso, contribuem para o

fortalecimento dos processos de organização própria dos povos indígenas em movimentos

sociais e organizações não-governamentais próprias, voltadas à mobilização e atuação política

no campo do indigenismo e outros relacionados com a atuação governamental sobre suas

comunidades e direitos. Com isso, define ainda a terceira fase do indigenismo no país,

intitulado Indigenismo Governamental Contemporâneo, em que a retração estatal e a

dispersão de atores e de práticas políticas governamentais sobre os povos indígenas passam a

desafiar a coerência dos resultados para a efetiva garantia de seus direitos, no contexto em que

o país adota uma nova Constituição e uma série de normativas de direitos humanos

relacionadas com o tema.

Esse sucinto panorama do desenvolvimento do indigenismo oficial no país e no plano

internacional não pretende descrever a realidade como uma sucessão de tendências estanques

de configuração do poder institucionalizado, mas partir de semelhante compreensão de

dinâmicas que ocorreram nas sobreposições desses momentos históricos e influenciaram os

campos sociais do indigenismo, da antropologia e dos debates internacionais sobre os direitos

humanos, para compreender as formas pelas quais a ideia de isolamento é politizada com base

em suas diversas configurações e descrições do ponto de vista desses campos. Os índios

isolados, como uma categoria genérica, podem ser chamados por diversos outros atributos,

como bravos, hostis e arredios, para enfatizar a ferocidade de sua resistência ao contato;

livres, autônomos ou independentes, destacando-se a liberdade com que determinam sua vida

e seus territórios; primitivos, pré-históricos, vulneráveis, ameaçados ou em vias de extinção,

todas formas de se referir do ponto de vista externo à realidade de povos tão distintos quanto

as possibilidades de descrição de suas formas de vida e organização social. Para Lino Neves

(2011: 52), os vários “apelidos” dados aos povos isolados são “como os etnônimos aplicados

aos diferentes povos indígenas, palavras estrangeiras que na maior parte das vezes não têm

nenhum sentido étnico para aqueles povos aos quais pretendem designar”. Esses nomes

utilizados para se referir ao isolamento, por se originarem nos campos sociais do indigenismo

e da antropologia, dentre outros, “estão carregados de conceitos que contribuem, cada um deles e

no todo, para construções desfavoráveis [e favoráveis] aos ‘isolados’”, como temos discutido até

o momento.

Dessa forma, podemos compreender o processo de elaboração e implementação da

política brasileira de proteção territorial baseada na garantia do isolamento como um

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76

desenvolvimento da ideia de isolamento sobretudo a partir de seus aspectos de

vulnerabilidade física, antes mesmo da potencial desagregação sociocultural frente aos

processos de contato que marcavam a política de atração da FUNAI, abandonada no final da

década de 1980. Como declaram os sertanistas presentes no encontro de 1987, “estamos na

verdade sendo pontas de lança de uma sociedade complexa, fria e determinada; que não perdoa

adversários com tecnologia inferior. Estamos invadindo terras por eles habitadas, sem seu convite,

sua anuência. Estamos lhes incutindo necessidades que jamais tiveram. Estamos desordenando

organizações sociais extremamente ricas. Estamos lhes tirando o sossego. Estamos os lançando

num mundo diferente, cruel e duro. Estamos muitas vezes os levando à morte”, de forma que a

caracterização desses povos em termos de sua fragilidade física e simplicidade cultural

contribuiu para o fortalecimento institucional das ações governamentais, na medida em que

atraia uma nova onda de atenção e apoio mundial à questão da proteção desses povos

(Declaração do I Encontro de Sertanistas da FUNAI apud FREIRE, 2005: 114).

Nos termos da matriz que esboçamos na Figura 2.1 (pg. 44), poderíamos descrever

esse processo de mudança como uma reconfiguração dos termos e das práticas de proteção do

Estado brasileiro no lado direito da imagem, em que o isolamento é entendido ora como

conceito, ora como situação, do ponto de vista da soberania nacional, restando pendente uma

análise mais profunda das implicações práticas dessas mudanças institucionais sobre a vida

dos povos a que se refere a categoria de isolados, uma vez que nos voltamos mais

decididamente a uma análise dos percursos conceituais dessa ideia nos campos do

indigenismo e dos debates jurídicos nacional e internacional.

Pelo outro lado, da autonomia indígena, temos no atual contexto de

internacionalização do indigenismo que o conceito de isolamento pode ser tomado tanto do

ponto de vista material, a partir das situações históricas em que esses povos decidem pelo

rechaço ou controle das formas de contato interétnico que estabelecem com seus entornos,

quanto como ideia-valor21

que expressa os anseios de autodeterminação dos povos e

movimentos indígenas nos contextos políticos nacionais e internacionais, definindo a

21

Segundo Cardoso de Oliveira (1988: 58), “Louis Dumont assinala que a separação entre ideia e valor

é, em certa medida, falaciosa representando uma herança do pensamento kantiano. Assevera que ‘não separando

a priori ideias e valores, permaneceremos mais pertos da relação real nas sociedades não modernas, entre o

pensamento e o ato, ainda que uma análise intelectualista ou positivista tenda a destruir essa relação’ (1983: 221).

Essa aparente ingenuidade do pensamento nas sociedades tradicionais, mostra-se capaz de totalizações que o

pensamento analítico moderno deixa escapar.”

Page 81: Isolamento voluntário de povos indígenas no Brasil: Do conceito ...€¦ · Mudanças institucionais do indigenismo brasileiro entre o surgimento da FUNAI e a redemocratização

77

interação indireta entre os campos sociais em contextos tão distintos quanto o sistema

interétnico do Vale do Javari, no Amazonas, e a sede da Nações Unidas, em Nova Iorque.

3.1.2. Autodeterminação, isolamento e resistência: Contextos políticos globais e a

internacionalização dos movimentos indígenas nacionais

Assim, a ideia de isolamento de povos indígenas adquire, para os movimentos

indígenas que especialmente a partir da década de 1980 se projetam nesses debates políticos e

jurídicos, um significado essencial na mobilização de outras ideias e imagens para as quais

“os indígenas aparecem (...) como máxima expressão do que muitos desejam encontrar, na forma

de imagens intrinsicamente opostas à ‘civilização ocidental’” (VILLA, 2018: 64-65), formas

cristalizadas da pureza étnica frente a um processo civilizatório criticamente compreendido.

Na medida em que o isolamento desses povos se transforma no estandarte simbólico de

movimentos políticos de afirmação da diferença étnica e reivindicação dos direitos individuais

e coletivos a ela relacionados, as suas manifestações enquanto expressão de autodeterminação

podem ser percebidas como parte de um gradiente da resistência política dos povos indígenas

no contexto global.

Isso significa que a categoria de isolamento, outrora e em outros contextos elaborada

em torno das noções de vulnerabilidade e evolução sociocultural das populações indígenas, é

ressignificada não apenas pela realidade objetiva dos povos que se enquadrariam na categoria

administrativa de mesmo nome, mas pelos movimentos indígenas em sua atuação política.

Mais que isso, o apelo da ideia de isolamento, seja para a opinião pública, seja em organismos

internacionais, e sua compreensão em termos de autonomia mais que de pura vulnerabilidade,

formam a linha condutora que nos motivou a refletir acerca das relações que existem entre

essa ideia e outros conceitos, como o de autodeterminação dos povos indígenas, e seu

enquadramento no marco do sistema internacional de direitos humanos. O questionamento

que a cientista política norte-americana Alison Brysk faz sobre como os movimentos

indígenas, representativos dos setores mais marginalizados nas sociedades nacionais, foram

capazes de reverter essa posição por meio de estratégias de empoderamento pela atuação

global (1996: 38) é o mesmo que nos serve de ponto de partida para refletir sobre o processo

de ressignificação do isolamento como bandeira política desses movimentos em suas lutas

pelo direito à autodeterminação dos povos indígenas em termos mais amplos.

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78

“Por que e como alguns movimentos sociais agem globalmente, e por que alguns

o fazem mais do que outros? Que características do sistema internacional e dos

próprios movimentos influenciam a receptividade aos apelos e alianças dos

movimentos sociais? Aqui também, o movimento de direitos indígenas é

esclarecedor neste caso, pois apresenta um paradoxo. Os direitos indígenas

representam um caso menos provável de internacionalização de um movimento

social, uma vez que os povos indígenas são geralmente impotentes e

marginalizados dentro de seu próprio Estado” (BRYSK, 1996: 39 – tradução do

autor22

).

O significado da relevância internacional dos movimentos indígenas reside, para essa

autora, justamente no fato de que, por representarem setores nacionalmente marginalizados e

entendidos como uma nova espécie de movimento social baseado na consciência e afirmação

de identidades étnicas, em detrimento de aspectos materiais relacionados com questões

próprias de classes sociais, acabam por adquirir uma posição de maior destaque nos contextos

políticos globais, apoiados em uma expressão política internacional da etnicidade enquanto

forma de informação que contribui para o empoderamento dos grupos étnicos nesses espaços

institucionalizados.

Nesse sentido, ela contextualiza o processo de surgimento e ascensão desses

movimentos e outros aliados nos contextos nacionais que os originaram a partir da década de

1970 em toda a América Latina, mas não apenas nesse continente, de forma que os

desenvolvimentos globais em torno dessas disputas ocorreram paralelamente em diversos

sentidos, da formação de organizações não-governamentais comprometidas com o

desenvolvimento das condições de vida dessas populações ao surgimento de espaços em

contextos de organismos internacionais outrora mais voltados à perspectiva estatal, como a

Organização Internacional do Trabalho (OIT). Com isso, ela observa que temas específicos

como os direitos territoriais e o acesso a recursos naturais, outrora centrais nos debates entre

os movimentos indígenas e as instâncias estatais e, por isso, geralmente obstruídos pela

afirmação da perspectiva da soberania dos Estados nacionais, vão convergindo para o debate

sobre a autodeterminação dos povos indígenas como uma forma de superação do debate

22

“Why and how do some social movements act globally, and why do some do so more than

others? Which characteristics of the international system and the movements themselves influence

receptivity to social movement appeals and alliances? Here too, the Indian rights movement is illuminating

in this case, because it presents a paradox. Indian rights represent a least likely case for internationalization

of a social movement, since Indian peoples are generally powerless and marginalized within their own

state.”

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79

excessivamente focado na sobrevivência cultural pela perspectiva da reivindicação da

autonomia e do “etnodesenvolvimento”.

“O tema mais abrangente da autodeterminação abarcou esses objetivos dentro de um

quadro de autonomia local, sobrevivência cultural e "etnodesenvolvimento":

autogestão capacitada e informada da mudança cultural e social (Bonfil Batalla,

1982). A sobrevivência cultural no sentido da preservação das culturas indígenas pré-

contato e de baixa tecnologia não é viável nem desejada pela maioria dos grupos. A

maioria dos povos indígenas nas Américas já encontrou e foi influenciada pela cultura

ocidental; em qualquer caso, as culturas indígenas não são estáticas ou primitivas, mas

evoluem como todas as outras. Mesmo os grupos isolados de terras baixas geralmente

optam por um amortecimento em seu contato com colonos latinos, missionários e outros

forasteiros intrusivos em vez de uma autarquia cultural. A questão então se torna quem

gerencia o ritmo e o conteúdo do desenvolvimento para que os povos indígenas

possam exercer a autodeterminação.” (BRYSK, 1996: 41 – tradução e grifos do

autor23

).

Assim, a aparente contradição entre a marginalização política dos povos indígenas nos

contextos nacionais e a sua projeção na arena política internacional na verdade é uma leitura

que obscurece as formas como a instrumentalização da identidade étnica, seja pela adoção

estratégica de traços diferenciais dessas coletividades, seja pela afirmação da diferença

cultural e da luta pela autonomia frente aos desígnios de colonialismos internos, se projeta

como uma nova forma de participação política. Dessa forma, o isolamento voluntário

enquanto ideia-valor desses movimentos indígenas que passam a ocupar crescentemente os

espaços internacionais pode ser entendido como uma chave central para se compreender a

dicotomia a partir da qual os povos indígenas são percebidos nos diversos contextos políticos:

nacionalmente como sub-humanos, invisíveis ou ameaças à ordem social vigente,

internacionalmente como exóticos e fascinantes (BRYSK, 1996: 46).

23

“The overarching theme of self-determination encompassed these goals within a framework of local

autonomy, cultural survival, and "ethnodevelopment": empowered and informed self-management of cultural

and social change (Bonfil Batalla, 1982). Cultural survival in the sense of the preservation of precontact, low-

technology indigenous cultures is neither viable nor desired by most groups. Most indigenous people in the

Americas have already encountered and been influenced by Western culture; in any case, Indian cultures are not

static or primordial but evolve like all others. Even isolated lowland groups generally seek a buffer in their

contact with Latino settlers, missionaries, and other intrusive outsiders rather than cultural autarky. The question

then becomes who manages the pace and content of development so that indigenous peoples can exercise self-

determination.”

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80

3.2. Autodeterminação e a internacionalização do indigenismo

Há séculos a autodeterminação tem se inscrito nos mais importantes documentos e

tratados de direito internacional como um princípio central que rege as relações entre os

Estados, sendo objeto de múltiplas interpretações e utilizações políticas acerca de seus

significados. Das filosofias clássica ocidental e orientais ao pensamento escolástico presente

no tratado De regia potestate (1571) sobre os direitos dos povos indígenas americanos nos

primórdios da colonização europeia no continente, escrito pelo padre espanhol Bartolomé de

las Casas24

, a ideia de autodeterminação aparece como um elemento bastante presente nas

reflexões sociais e políticas ao longo da história humana25

.

Mais recentemente, a autodeterminação figura como princípio jurídico internacional

que expressa, após o fim da 1ª Guerra Mundial, a especificação basilar de que o exercício da

soberania dos povos e nações não deve estar sujeito aos ímpetos de dominação por outros

estados. A sua relevância, como veremos nesta seção, pode ser avaliada justamente por seus

efeitos práticos, elaborados a partir de sua abrangência conceitual e de significação na enorme

diversidade que se concebe a partir da estimativa de que existem cerca de 5 mil grupos étnicos

e nacionais em todo o planeta (STAVENHAGEN apud MCCORQUORDALE, 1994: 857).

Nos termos do professor de Direito e antigo Relator Especial sobre os Direitos dos Povos

Indígenas (2008-2014), S. James Anaya:

“Enquanto os seres humanos são os beneficiários da autodeterminação, os objetos da

norma são as instituições de governo sob as quais vivem. A autodeterminação é

extraordinária entre as normas de direitos humanos em sua preocupação com o

caráter essencial das estruturas de governo, uma preocupação que pode estender-

se até o ponto de ordenar-lhes que cedam sua autoridade ou território.

24

Tendo delineado a autodeterminação a partir da abordagem do direito natural e das gentes, Las

Casas pode ser considerado possivelmente o primeiro e mais destacado defensor da autonomia indígena no

contexto da nascente ordem global que emerge com a colonização da América e a Modernidade.

25 Anaya (1993) inicia a sua elaboração de uma conceituação contemporânea da norma

internacional da autodeterminação observando que o conceito emerge no direito internacional no âmbito

das discussões sobre direitos humanos, a partir da ideia de que todos os seres humanos devem ser

igualmente livres para transformar seus impulsos e desejos em ação (1993: 134). Para ele, embora

usualmente se vincule a emergência desse conceito a suas elaborações ocidentais, como aquela de

Woodrow Wilson, presidente dos EUA durante a 1ª Guerra Mundial, em que associa a ideia aos ideais

democráticos liberais e aos nacionalistas europeus, outros contextos não-ocidentais também produziram

suas próprias leituras do conceito de autodeterminação.

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81

Quando articulada pela primeira vez como um princípio das relações internacionais em

torno da Primeira Guerra Mundial, a autodeterminação justificou a dissolução dos

impérios alemão, austro-húngaro e otomano e serviu como um veículo prescritivo para

a redivisão da Europa na sequência da queda dos impérios. Na sua manifestação

moderna mais proeminente dentro do sistema internacional, a autodeterminação

promoveu o desaparecimento das instituições coloniais de governo e a emergência de

uma nova ordem política para os povos subordinados. Além disso, a comunidade

internacional através das Nações Unidas declarou ilegítima a ordem institucional

governante da África do Sul, com o seu sistema arraigado de apartheid, com base na

autodeterminação.

Em cada um destes contextos, os valores ligados à autodeterminação constituíam

um padrão de legitimidade em relação ao qual as instituições de governo eram

avaliada. (...) [Portanto,] a autodeterminação diz respeito tanto aos procedimentos

pelos quais as instituições governantes se desenvolvem como à forma que assumem

para o seu funcionamento contínuo. (ANAYA, 1993: 136-137 – tradução, grifos e

quebras de parágrafos do autor26

).

Com isso, temos que o princípio, e posteriormente direito de autodeterminação (dos

povos), destaca-se como um conceito político que está entranhado nas normas de direito

internacional e, mais especificamente, de direitos humanos, algo que se reforça ao longo do

século XX e passa a abranger outros pontos de vista que não somente aqueles da soberania

dos Estados ou da primazia da liberdade individual, segundo o pensamento liberal ocidental

que está na base do sistema internacional contemporâneo, mas também o de coletividades e

minorias que vivem marginalizadas ou oprimidas em países da ONU. A inclusão desse

princípio na Carta das Nações Unidas e os desdobramentos seguintes do conceito em outros

documentos internacionais avançaram consideravelmente no sentido de estender, ao menos de

forma declaratória, o direito à autodeterminação aos povos mas também a todos os seres

26

“While human beings are the beneficiaries of self-determination, the norm's objects are the

institutions of government under which they live. Self-determination is extraordinary among human rights

norms in its concern with the essential character of government structures, a concern which may extend to

the point of enjoining them to yield authority or territory.

When first articulated as a principle of international relations around World War I, self-determination

justified the breakup of the German, Austro-Hungarian, and Ottoman empires and served as a prescriptive

vehicle for the re-division of Europe in the wake of the empires' downfall. In its most prominent modern

manifestation within the international system, self-determination has promoted the demise of colonial

institutions of government and the emergence of a new political order for subject peoples. Also, the

international community through the United Nations has declared illegitimate South Africa's governing

institutional order, with its entrenched system of apartheid, on grounds of self-determination.

In each of these contexts, values linked with self-determination comprised a standard of legitimacy against

which institutions of government were measured. (…) [Therefore,] self-determination concerns both the

procedures by which governing institutions develop and the form they take for their ongoing functioning.”

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82

humanos, como um atributo universal a ser observado pelos Estados, e não apenas utilizado

como fonte de legitimação política externa e interna (ANAYA, 1993: 135-136).

3.2.1. O conceito de autodeterminação e o sistema internacional de direitos

humanos

Uma série de análises históricas e jurídicas sobre sua definição e implicações foi feita

por pensadores de diversas áreas, e procuramos remeter a alguns deles, como James Anaya,

Rodolfo Stavenhagen e Ronald Niezen, para obter uma visão histórica de sua constituição, e

de que forma os debates sobre a sua definição contribuíram para o desenvolvimento de leis e

políticas nacionais voltadas à promoção dos direitos dos povos indígenas, tendo como base o

entendimento da autodeterminação dos povos como um direito humano coletivo por

excelência.

Essencialmente, esse princípio obteve reconhecimento internacional no contexto

posterior à Primeira Guerra Mundial e à desintegração dos impérios russo, austro-húngaro e

otomano, em que as negociações de paz se basearam na especificação de que o exercício da

soberania dos povos e nações não deveria estar sujeito aos ímpetos de dominação por outros

estados (ANAYA, 1993: 134-136). Entretanto, a primeira vez em que o termo foi

formalmente empregado no contexto internacional das Nações Unidas é considerada a

menção na Carta das Nações Unidas (1945), nos Artigos 1 e 55, onde é apresentado como um

dos princípios sobre os quais se baseariam as relações entre as nações no âmbito da nascente

organização, mas ainda não compreendido como um direito coletivo (DAES, 1996: 47).

“Artigo 1 – Os propósitos das Nações Unidas são: (...) 2. Desenvolver relações amistosas

entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de

autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz

universal; (...)

Artigo 55 – Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações

pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de

direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a. níveis mais altos

de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b. a

solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação

internacional, de caráter cultural e educacional; e c. o respeito universal e efetivo raça, sexo,

língua ou religião.” (ONU, 1945).

É interessante ainda observar que, no mesmo documento, a declaração sobre os

territórios coloniais introduz ainda a noção de “medidas de autogoverno”, que estaria na base

da restrição da autodeterminação aos povos dessas regiões e da justificação da dominação

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83

colonial pelos países europeus por ainda quinze anos. Os processos políticos de

descolonização que tiveram lugar na África, Caribe e Ásia, principalmente, após a Segunda

Guerra Mundial anteciparam e foram, nesse aspecto, essenciais para que o direito

internacional se adequasse a uma nova configuração do sistema internacional, baseado na

ascensão de regimes democráticos (liberais ou socialistas) como paradigmas da organização

política e econômica dos estados nacionais.

O embate entre as perspectivas sobre a autodeterminação que a entendem quer seja

como princípio político, quer seja como norma de direito internacional, se desenvolveu ao

longo da segunda metade do século XX, com definições importantes de seu significado para a

evolução do sistema internacional de direitos humanos, destacando-se a Declaração de

Garantia da Independência dos Países Coloniais e dos Povos, adotada pela Assembleia Geral

da ONU em dezembro de 1960, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais (1966) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966) por

apresentarem uma elaboração objetiva desse princípio como um direito humano

internacionalmente reconhecido de que todos os povos são coletivamente detentores.

“1. A sujeição dos povos a uma subjugação, dominação e exploração constitui uma

negação dos direitos humanos fundamentais, é contrária à Carta das Nações Unidas e

compromete a causa da paz e da cooperação mundial; 2. Todos os povos têm o direito de

livre determinação; em virtude desse direito, determinam livremente sua condição

política e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.”

(ONU, 1960 – grifos do autor).

Artigo 1 – 1. Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito,

determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu

desenvolvimento econômico, social e cultural; 2. Para a consecução de seus objetivos, todos

os povos podem dispor livremente se suas riquezas e de seus recursos naturais, sem prejuízo

das obrigações decorrentes da cooperação econômica internacional, baseada no princípio do

proveito mútuo, e do Direito Internacional. Em caso algum, poderá um povo ser privado de

seus meios de subsistência; 3. Os Estados Partes do presente Pacto, inclusive aqueles que

tenham a responsabilidade de administrar territórios não-autônomos e territórios sob

tutela, deverão promover o exercício do direito à autodeterminação e respeitar esse

direito, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas.” (ONU, 1966 –

grifos do autor).

A vinculação do direito de autodeterminação aos princípios de direitos humanos que

norteiam o sistema internacional constituído no âmbito das Nações Unidas para promoção

desses ideais e normas junto aos Estados Nacionais foi, dessa forma, um processo lento e que

se estende até os dias de hoje, mas que se mostrou essencial ao reconhecimento e à promoção

dos direitos coletivos dos povos indígenas nos contextos nacionais. Em que pese a existência

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84

de distintas abordagens da autodeterminação pelos representantes dos países nesses espaços

internacionais – que vão de abordagens conservadoras que objetivam resguardar a integridade

territorial dos estados nacionais existentes por meio da equalização das soberanias nacionais e

dos direitos de “minorias étnicas” até a pressão de movimentos indígenas e de direitos

humanos pelo avanço dos mecanismos de proteção e promoção dos direitos humanos

individuais e coletivos –, temos que ela se tornou a base do sistema de direitos humanos

universais, permitindo assim a evolução da abordagem de temáticas específicas, tais como a

dos povos indígenas e outros grupos ditos tribais ou minoritários.

Essa crescente proeminência do direito de autodeterminação no plano internacional

deve, porém, ser matizada em termos conceituais, considerando suas múltiplas possibilidades

de interpretação e significação e os desdobramentos políticos que estas podem ensejar nos

contextos nacionais. Partindo do ponto de vista dos Estados Nações, temos que a

autodeterminação seria composta pelas vertentes externa e interna, que são complementares

na medida em que, respectivamente, objetivar resguardar a integridade territorial e autonomia

política frente a possíveis agressões estrangeiras e garantir a autoridade interna e legitimidade

da dominação política no interior dos sistemas políticos nacionais. (MCQUORDALLE, 1994:

866-871).

Ainda acerca dessa dicotomia, a emergência de tais ordens políticas, legitimadas

internacionalmente por seu reconhecimento enquanto expressões da autodeterminação, é

compreendida por Anaya (1993: 145-157) como um dos aspectos substantivos da

autodeterminação, que lhe permite constituir-se como expressão politicamente

institucionalizada da liberdade e igualdade de grupos e indivíduos, do ponto de vista dos

Direitos Humanos e dos saltos diferenciais no sentido de estabelecer padrões mínimos de

equilíbrio da autodeterminação.

“No aspecto constitutivo da autodeterminação, os valores fundamentais da liberdade e

da igualdade traduzem-se na exigência de se conceder aos indivíduos e aos grupos

uma participação significativa, proporcional aos seus interesses, nos procedimentos

conducentes à criação ou à mudança das instituições de governo sob as quais vivem.

A autodeterminação constitutiva não dita por si mesma o resultado de tais

procedimentos, mas onde eles ocorrem impõe requisitos de participação tais que

o resultado final na ordem política possa ser considerado como reflexo da vontade

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85

coletiva do povo, ou povos, interessados.” (ANAYA, 1993: 145 – tradução e grifos

do autor27

).

De forma complementar a esse elemento, ele destaca outro aspecto da

autodeterminação que, um pouco mais sutil, chama de “em curso” (ongoing), e que estaria

relacionado com o usufruto permanente e significativo do direito à autodeterminação por

indivíduos e grupos no interior dos estados nacionais. O enfoque nesse aspecto nos leva a uma

reflexão a respeito do constante desafio que a existência e resistência dos povos indígenas,

como grupos etnicamente diferenciados, colocam à ideia de “um povo, um estado-nação” (one

people, one [nation] state), que ele aborda de uma forma bastante ilustrativa.

“(...) uma vez que os diversos grupos culturais são reconhecidos e valorizados,

seus padrões associativos e aspirações comunitárias tornam-se fatores que devem

ser refletidos na ordem institucional governante para que as noções de

autodeterminação prevaleçam. Assim, a tendência global contemporânea é a de

assegurar aos grupos culturais e aos seus membros acomodações contextualmente

apropriadas na ordem de governo. Uma série de grupos, particularmente os povos

indígenas, estão buscando esferas de autonomia em uma série de questões políticas e

administrativas, ao mesmo tempo em que aumentam sua participação efetiva em todas

as decisões que os afetam, deixadas para as instituições maiores de governo. Embora

não haja uma fórmula única de acomodação estrutural nessa tendência global - e,

na verdade, o próprio fato da diversidade de culturas e das circunstâncias que as

cercam desmente uma fórmula singular - a premissa subjacente e cada vez mais

difundida é a de promover o livre desenvolvimento de diversas culturas.

A norma da autodeterminação, portanto, promove uma condição permanente de

liberdade e igualdade entre e dentro dos povos em relação às instituições de governo

sob as quais vivem, condição hoje substancialmente definida pelos preceitos da

democracia e do pluralismo cultural". (ANAYA, 1993: 154-155 – tradução e grifos do

autor28

).

27

“In self-determination's constitutive aspect, core values of freedom and equality translate into a

requirement that individuals and groups be accorded meaningful participation, commensurate with their

interests, in procedures leading to the creation of or change in the institutions of government under which

they live. Constitutive self-determination does not itself dictate the outcome of such procedures; but where

they occur it imposes requirements of participation such that the end result in the political order can be said

to reflect the collective will of the people, or peoples, concerned.”

28 “(…) once diverse cultural groupings are acknowledged and valued, their associational patterns

and community aspirations become factors that must be reflected in the governing institutional order if self-

determination notions are to prevail. Accordingly, the contemporary global trend is toward securing for

cultural groups and their members contextually appropriate accommodations in the governing order. A

number of groups, particularly indigenous peoples, are pursuing spheres of autonomy over a range of

policy and administrative matters, while at the same time enhancing their effective participation in all

decisions affecting them left to the larger institutions of government. Although there is no one formula of

structural accommodation in this global trend – and indeed the very fact of the diversity of cultures and

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86

O progressivo refinamento da norma de autodeterminação no contexto internacional

contemporâneo, que permite a sua análise nos termos em que estes e outros autores têm

procurado analisar a questão, entretanto, não é autoaplicável nos contextos em que as

violações a esse princípio se manifestam com clarezas variáveis acerca dos dois aspectos que

Anaya aponta, mas ainda segundo esse autor, podem favorecer a busca por “remédios” para

situações de violação desse direito. Este “tratamento” da falta de autodeterminação pela

construção de novas ordens políticas e institucionais que sejam mais adequadas ao exercício

desse direito, ainda que um permanente desafio, revela-se como um embate político e

ideológico de longo alcance, conforme veremos na próxima seção. Nela abordamos o

processo regional latino-americano que, paralelamente aos debates internacionais sobre a

autodeterminação e os direitos humanos, afetou e foi por eles afetado.

3.2.2. O Instituto Indigenista Interamericano e a Declaração de Barbados (1971):

aproximações político-antropológicas e a integração dos povos indígenas no

indigenismo latino-americano

Como vimos no capítulo anterior, o desenvolvimento de análises e perspectivas

teóricas sobre as relações interétnicas no Brasil e nos demais países latino-americanos até a

década de 1970 propiciou, a partir de maiores evidências técnicas e científicas, uma maior

aproximação entre os campos antropológicos e indigenistas nacionais, no sentido de

denunciar e propor políticas de enfrentamento às situações de dominação, violência e

integração assimétrica dos povos indígenas às sociedades nacionais em todo o continente.

Naturalmente, os desdobramentos nacionais desses processos guardam semelhanças e

disparidades, relacionadas com a proeminência que instituições estatais, eclesiásticas e

acadêmicas, dentre outras, tiveram nos processos de consolidação dos indigenismos nacionais,

que ajudam a entender suas dinâmicas de um ponto de vista mais geral.

No México, por exemplo, a forte proeminência da Antropologia se deu em um

contexto de crescente politização das temáticas indígenas, que estiveram na base da

Revolução Mexicana de 1910, levando a questão das relações interétnicas a se destacar como

their surrounding circumstances belies a singular formula – the underlying and increasingly widespread

premise is that of promoting the free development of diverse cultures.

The norm of self-determination, therefore, promotes an ongoing condition of freedom and equality

among and within peoples in relation to the institutions of government under which they live, a condition

today substantially defined by precepts of democracy and cultural pluralism.”

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87

um tema de interesse nacional, do ponto de vista ideológico e político, com a projeção de

pensadores como Manuel Gamio e Moisés Saenz, em um primeiro momento, e Gonzalo

Aguirre Beltrán e Guillermo Bonfil Batalla, entre outros, a partir da década de 1950. Da

mesma forma no Peru, onde a perspectiva indigenista produziu intelectuais como Luis

Valcarcel, José Carlos Mariátegui e José María Arguedas, assim como movimentos políticos

importantes, como aqueles que estiveram na base da resistência política manifestada pelo

Sendero Luminoso e o Movimento Revolucionário Túpac Amaru entre as décadas de 1960 e

1990, muito embora a significância política desses movimentos e da proporção demográfica

dos povos indígenas no país não se tenham refletido suficientemente na institucionalização de

uma política indigenista até o passado recente.

É de grande importância didática para compreendermos a diversidade dos

indigenismos latino-americanos também o esforço de sua classificação feito por Silva (2008),

em que divisa três categorias que situam as práticas e discursos sobre os povos indígenas ao

longo da história dos países. Em sua conclusão, o autor realiza uma interessante interpretação

a respeito do conceito de “índio” e das sobreposições transformações entre as categorias de

indigenismo na América Latina.

“Se considerarmos, por exemplo, que cada tradição indigenista emprega em seu interior

imagens do ‘índio’ presentes em outras tradições indigenistas, mesmo que com outras

finalidades ou propósitos, notaremos que essas imagens apresentam em cada tradição uma

estrutura pendular, na qual o ‘índio’ nunca é percebido e tratado apenas como ‘selvagem’,

‘força de trabalho’ ou ‘minoria étnica’. As definições de ‘índio’ oscilam entre dois

extremos ideológicos que ora os definem como nacionais (índio-força de trabalho e índio-

arqueológico), ora os definem como antinacionais (índio-selvagem), sendo o ponto médio

um lugar subnacional (índios-minorias étnicas). Isso quer dizer que cada definição do

‘índio’ na imaginação nacional não é sucedida pelas demais. A imagem de ‘selvagem’ não é

substituída pela do ‘índio’ como ‘força de trabalho’ ou pela do ‘índio arqueológico’, que

tampouco é superada pela definição dos índios como ‘minorias étnicas’. Essas definições se

justapõem enquanto imagens-nação e cada uma delas acarretam usos estéticos e

ideológicos e práticas indigenistas particulares no processo de construção nacional e

formação dos Estados latino-americanos.” (SILVA, 2012: 10 – grifos do autor).

Se concordarmos com a aproximação feita por ele do indigenismo brasileiro ao

indigenismo militar, característico de países como Argentina, Colômbia e, em certa medida,

dos EUA, em que as práticas e discursos sobre os povos indígenas cumprem uma função

destacada de consolidação das soberanias territoriais nos processos de formação nacional,

temos que é muito específico o caso do Brasil, onde a política indigenista oficial se

estabeleceu no início do século XX, com a emergência do SPILTN, posteriormente SPI, em

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1910, sobre a ideologia positivista de integração e civilização dos povos indígenas do país,

produzindo uma institucionalidade que daria base para uma atuação estatal bastante

significativa nos contextos das relações interétnicas, ainda que pontuada de críticas e

resultados desastrosos na grande maioria das situações de contato. O progressivo

desenvolvimento das perspectivas e análises antropológicas que ocorreram ao longo do

período republicano e que descrevemos anteriormente contribuiu, nesse sentido, para a

transformação das práticas e discursos que emanavam daquela agência indigenista, até sua

incorporação pela Fundação Nacional do Índio, criada em 1967.

Do ponto de vista continental, essas experiências e desenvolvimentos dos

indigenismos nacionais, em que pesem suas diferenças objetivas e programáticas, não

ocorreram isoladamente, de tal forma que iniciativas de aproximação intelectual e política

ocorreram em diversos contextos, com dificuldades e avanços variáveis que refletem a

complexidade da questão indígena e de esforços de convergência política em todos os países.

Nesse contexto, em 1940 foi realizado o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, na

cidade de Pátzcuaro, no México, com o intuito de reunir especialistas e pensadores para, a

partir de uma perspectiva pan-americana da temática indígena, promover reflexões mais

gerais sobre o assunto e o desenvolvimento de políticas indigenistas nacionais, voltadas à

integração social e ao desenvolvimento dessas populações.

De acordo com a Convenção de Pátzcuaro, o Instituto Indigenista Interamericano

(daqui em diante referido simplesmente como Instituto) foi criado como uma organização

internacional para coordenação e fortalecimento das políticas indigenistas nacionais em todo o

continente americano. Embora essa instituição não tenha chegado a se consolidar no longo

prazo como outras iniciativas de cooperação continental, tais como a Organização dos Estados

Americanos, de 1948, ou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de 1959, em

virtude de uma série de dificuldades políticas e orçamentárias, diversos pensadores analisam

que ela representou um esforço importante de internacionalização do indigenismo como

campo político e social no continente, congregando sobretudo intelectuais e oficiais de

governos, mas também representantes indígenas e organizações não-governamentais, em

torno dos debates sobre a chamada “questão indígena”.

Considerando que na época de seu surgimento a proporção entre povos indígenas

integrados e aqueles ditos sem contato, ou isolados, era muito maior e geograficamente mais

disseminada pelos países, é interessante observar que os entendimentos e recomendações aos

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89

países emanadas do Instituto estavam voltadas sobretudo a esforços de integração dos povos

indígenas às sociedades nacionais. Com isso, temos que o caso brasileiro, marcado pelo

estabelecimento pioneiro de uma política indigenista de alcance nacional e pelas dificuldades

e contradições inerentes às diversas perspectivas a partir das quais era compreendida a

presença indígena no gigantesco território nacional, se projeta como referência importante

nesse contexto internacional, assim como o de países como o México, cada qual com suas

motivações e características demográficas específicas.

O discurso do presidente mexicano à época, Lázaro Cardenas (1934-1940), na abertura

do Congresso de Pátzcuaro, indica a motivação que o indigenismo carregava em sua projeção

latino-americana como uma ideologia de atuação política dos Estados para integração dos

povos indígenas do continente, em contraposição aos esforços anteriores de aculturação e

civilização voltados a essas populações. Para ele, as iniciativas que se realizavam até então

ocultavam a desigualdade existente entre os grupos sociais etnicamente diferenciados e as

sociedades nacionais, tomando-os como estrangeiros em suas próprias terras e ignorando os

efeitos da aculturação sobre suas condições de vida. A via de integração pelo indigenismo de

base antropológica viria, nesse sentido, como uma alternativa de inclusão dos povos indígenas

nas sociedades nacionais que não lhes negasse a distinção étnica, mas que lhes permitisse uma

maior e mais equilibrada interação com as dinâmicas econômicas e sociais mais gerais que

existiam nas regiões por eles habitadas. Assim, o “problema indígena” mexicano não residiria

em simplesmente conservar a persistente diferença étnica em suas formas puras, ou em adotá-

la como base da nacionalidade, mas em “mexicanizar al índio”, compreendendo que a

pluralidade étnica, quando respeitada pela atuação do Estado em vertentes como a

regularização fundiária, a promoção da saúde e os estímulos a atividades produtivas dos

povos indígenas, dentre outras, fortaleceria o sentimento nacional a partir de suas raízes

originariamente indígenas e baseada na noção de mestiçagem.

Esse discurso, tomado como referência para entendermos inclusive a experiência de

outros países e do Brasil no desenvolvimento de suas políticas indigenistas a partir da segunda

metade do século XX, encontra respaldo nos trabalhos de antropólogos e intelectuais de várias

regiões do continente, como aqueles que apresentamos na seção anterior deste capítulo e do

mexicano Gonzalo Aguirre Beltrán, que viria a influenciar as primeiras décadas de existência

do Instituto Nacional Indigenista do México (INI) e inclusive ocupar a sua direção entre 1970

e 1976, favorecendo a perspectiva de integração dos povos indígenas à sociedade nacional.

Em um de seus principais trabalhos (1966), esse antropólogo traçou uma metodologia para a

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integração desses povos, afirmando que os indígenas mexicanos viviam atomizados em

pequenas comunidades relativamente independentes, localizadas, em sua maioria, em zonas

remotas e ilhadas — as quais conceitua como “regiões de refúgio”. Para ele, essas regiões se

caracterizariam pelo atraso cultural e pelo isolamento geográfico, linguístico e econômico em

relação aos núcleos mestiços regionais. Entende, assim, que é a partir desses centros urbanos

que seria possível a indução do desenvolvimento regional pela atuação coordenada das

agências governamentais e, por conseguinte, da modernização que se pretendia fomentar

nacionalmente a partir da política indigenista de integração.

“Qualquer processo de formação nacional implica necessariamente a assimilação de grupos

heterogêneos, por um deles, que adquire o caráter de nacionalidade dominante;

conseqüentemente, há a perda das particularidades culturais dos diferentes grupos em favor

de uma cultura de natureza geral que possibilite a emergência de um espírito nacional. A

absorção da personalidade e dos valores de cada grupo é um processo permanente de

inclusão, exclusão e conclusão na estruturação da cultura nacional, sempre à custa da

aniquilação das culturas regionais, naqueles aspectos incompatíveis com a convivência.”

(AGUIRRE BELTRÁN, 1966: 34 – tradução do autor29

)

O projeto indigenista de Aguirre Beltrán, calcado em esforços de desenvolvimento

regional e inclusão dos povos indígenas às dinâmicas produtivas e à ideologia nacional,

expressou algumas das contradições do indigenismo latino-americano no período, em que a

atenção às regiões de refúgio e suas relações com seu entorno se direcionava à considerável

parcela das populações indígenas que se encontravam em situações de relativo isolamento e

de patentes subdesenvolvimento e subordinação aos interesses econômicos de elites mestiças

locais, por meio de políticas de integração que visavam, em última instância, sua

modernização cultural e incorporação subalterna às dinâmicas econômicas nacionais

(GOMES, 2012; 2013; 2014).

Nesse contexto, iniciativas de mudança cultural como aquelas desenvolvidas não

apenas no México, mas também no Peru e no Brasil, pela conhecida organização Summer

Institute of Linguistics, originária dos Estados Unidos a partir de um caráter híbrido de

29

“Todo proceso de formación nacional implica necesariamente la asimilación de los grupos

heterogéneos, por uno de ellos, que adquiere el carácter de nacionalidad dominante; se produce,

consecuentemente, la pérdida de las particularidades culturales de los distintos grupos en favor de una

cultura de índole general que hace posible la emergencia de un espíritu nacional. La absorción de la

personalidad y los valores propios de cada grupo es un proceso permanente de inclusión, exclusión y

conclusión en la estructuración de la cultura nacional, a costa siempre de la aniquilación de las culturas

regionales, en aquellos aspectos que son incompatibles con la coexistencia”.

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pesquisa no campo das línguas indígenas e ação missionária voltada à educação e

evangelização das populações indígenas (BARROS, 2004), podem ser entendidas como partes

de uma política mais geral de integração subalterna e transformação cultural dos povos

indígenas do continente.

Em que pese a centralidade da noção de integração dos povos indígenas nos

primórdios do Instituto, na atuação de organizações que ali tinham assento, como o Summer

Institute, e no contexto mexicano do surgimento do INI, em 1948, até a década de 1970

(MARROQUÍN, 1971), outros intelectuais, como Pablo González Casanova (1963),

Guillermo Bonfil Batalla (1970; 1985) e Rodolfo Stavenhagen (1972) matizaram a discussão

antropológica e sociológica mexicana mediante a inclusão de outros pontos de vista teóricos

sobre os resultados práticos da política de integração baseada na promoção do

desenvolvimento regional dos chamados “centros urbanos mestiços”. Noções como a de

“colonialismo interno” e a da etnicidade como expressão de resistência política, apresentadas

pelos dois primeiros, assim como as aproximações entre os conceitos de etnia e classe

propostas pelo terceiro, revelam nuances dos processos de integração social e econômica dos

povos indígenas que, embora se refiram sobretudo ao contexto mexicano e sua específica

conformação populacional e cultural, contribuíram para a elaboração da “questão indígena” a

partir da década de 1970 em todo o continente30

.

Do ponto de vista intelectual brasileiro, a centralidade dos processos de integração

estaria associada ao progressivo abandono das análises antropológicas baseadas nos conceitos

de aculturação dos povos indígenas, que marcaram a produção acadêmica na primeira metade

do século XX. Com o deslocamento da ênfase dos estudos sobre mudança cultural para o das

relações interétnicas, pensadores como Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira e João

Pacheco de Oliveira Filho realizaram importantes debates que culminaram em uma

compreensão mais ampla das situações de contato, pensadas do ponto de vista nacional pelos

agentes do Estado. Dessa forma, a ascensão e as posteriores abordagens críticas dos esforços

de integração dos povos indígenas às sociedades nacionais tiveram, a partir do crescente

avanço das frentes de desenvolvimento na Amazônia, na década de 1970, o relevante papel de

30

Ver também Silva (2015) para uma discussão sobre as elaborações da antropologia e da sociologia

latino-americanas a respeito das dinâmicas de dominação e subordinação da diferença étnica, em termos de raça e

da atuação dos Estados nacionais.

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permitir uma reflexão mais profunda sobre a proteção dos povos indígenas no país por meio

de políticas marcadamente autoritárias características do período militar (1964-1985).

Dessa forma, entre o surgimento do Instituto como espaço de interação das

perspectivas antropológicas e indigenistas dos países latino-americanos e a década de 1970,

em que se assistiu à emergência de divergências intelectuais e políticas quanto aos processos

de integração dos povos indígenas encampados pelos estados nacionais nas décadas

anteriores, tem-se que o avanço da reflexão antropológica e as contradições políticas internas

estiveram no centro dos debates e da emergência de uma perspectiva crítica quanto aos

resultados das políticas indigenistas nacionais, refletida na I Declaração de Barbados, de

janeiro de 1971. Nesse documento, seus signatários manifestaram uma avaliação crítica sobre

os papéis de instituições estatais, missionárias e acadêmicas, que havia resultado no

aprofundamento das situações de dominação e aculturação dos povos indígenas do continente.

Literalmente, o documento traz em seu preâmbulo um entendimento sociológico muito mais

crítico quanto às relações interétnicas no âmbito dos países, relacionando a dominação dos

povos indígenas com o caráter dual das sociedades nacionais latino-americanas e de seu

subdesenvolvimento, calcado na noção de colonialidade e na vinculação subalterna dos povos

indígenas aos desdobramentos do sistema global.

"O domínio colonial sobre as populações nativas faz parte da situação de dependência

externa que a maioria dos países latino-americanos conserva diante das metrópoles

imperialistas. A estrutura interna de nossos países dependentes leva-os a atuar de

maneira colonialista na sua relação com as populações indígenas, colocando as

sociedades nacionais no duplo papel de explorados e exploradores. Isto gera uma falsa

imagem das sociedades indígenas e de sua perspectiva histórica, assim como uma

autoconsciência deformada da sociedade nacional.

Esta situação expressa-se em agressões reiteradas contra as sociedades e culturas indígenas,

tanto em ações intervencionistas supostamente protetoras, como nos casos extremos de

massacres e deslocamentos compulsórios, não ficando alheios o exército e outros órgãos

governamentais. As próprias políticas indigenistas dos governos latino-americanos

visam à destruição das culturas indígenas e são usadas para a manipulação e o controle

dos grupos indígenas em benefício da consolidação das estruturas existentes. Isto

impede os indígenas de se libertarem da dominação colonialista e decidirem seu próprio

destino.

Ante tal situação, os Estados, as missões religiosas e os cientistas sociais, principalmente os

antropólogos, devem assumir posturas inequívocas em vista de uma ação imediata para

acabar com esta agressão e assim contribuir para favorecer a libertação do indígena.” (I

Declaração de Barbados, 1971: Preâmbulo – grifos do autor).

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A relevância do conceito de colonialidade para apreendermos as contradições e os

mecanismos de estruturação da dominação interétnica nos países latino-americanos, mais do

que uma tentativa de abordagem teórica da chamada “questão indígena” a partir de aspectos

sociais e ideológicos mais gerais das sociedades nacionais, dá-se mediante o aumento do

volume e do acúmulo crítico das análises sobre o tema. Assim, a perspectiva crítica em

relação às possibilidades de integração dos povos indígenas às sociedades nacionais, que

emerge na década de 1970 e se faz presente no documento, ainda que tenha sido referendada

por Ribeiro, um de seus signatários e cujo pensamento antropológico pode ser considerada um

dos principais sustentáculos da política indigenista de base antropológica (SILVA;

LORENZONI, 2014), divergia radicalmente dos aspectos basilares do indigenismo oficial que

vinha até aquele momento sendo praticado em países como Brasil e México. Assim, a

Declaração de Barbados desempenha um papel de convergência das perspectivas

antropológicas críticas do indigenismo que se desenvolviam à época acerca das fricções

interétnica e outras questões relacionadas às identidades étnicas e sua incorporação pelos

Estados, seja pela assimilação cultural, seja pela integração socioeconômica.

É importante mencionar ainda que a centralidade da noção de “fricção interétnica”,

cunhada por Roberto Cardoso de Oliveira (1964) e presente no título do encontro em que se

deu a elaboração do documento, traduzia a conflitividade existente nesses processos de

integração, em que os contextos sociais de interação entre as sociedades nacionais e os povos

indígenas de diversas regiões se revelavam danosos às culturas, às condições de vida e ao

crescente protagonismo político dessas populações nos contextos regionais e internacionais,

como abordamos brevemente na seção anterior. Os avanços e desafios da autonomia indígena

abrigada sob o direito da autodeterminação, entendido a partir de sua relação com as

convenções de direitos humanos, seguem em transformação, em um processo que se

desenvolve conforme discutiremos a seguir.

3.2.3. Afirmação e negação da autodeterminação dos povos indígenas no contexto

internacional

Ao longo do século XX, a evolução da política indigenista nos países latino-

americanos, mesmo com todas suas contradições e idiossincrasias, não pode ser dissociada de

sua projeção nos debates sobre os direitos das minorias e dos povos, tal qual ela se

desenvolveu no contexto internacional. Como observamos na parte anterior desta seção, a

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experiência do Instituto Indigenista Interamericano na aproximação dos governos e

intelectuais para aprofundar o conhecimento e as possibilidades de respostas políticas a seus

desafios no continente foi uma iniciativa pioneira que procurou fazer frente a tais

dificuldades, com avanços e retrocessos variáveis, mas inegável mérito na evidenciação do

tema como uma questão de dimensões supranacionais.

Entretanto, os debates que tiveram lugar no contexto regional não ocorreram de forma

isolada das discussões mais gerais sobre o direito internacional, sendo profundamente

influenciados por seus desenvolvimentos, e ao mesmo tempo contribuindo com perspectivas

ideológicas e políticas que fariam avançar os consensos sobre o reconhecimento dos direitos

individuais e também coletivos dos povos indígenas em todo o mundo. Além do conceito de

povos indígenas, que emerge desse contexto para definir as populações autóctones e

etnicamente diferenciadas existentes no seio dos Estados Nacionais, a matização do princípio

de autodeterminação e sua consolidação como um direito não apenas de povos que

reivindicam a formação de novos Estados, mas também de minorias no interior dos países na

construção de sua cidadania diferenciada, são aspectos relevantes para entender as

implicações desse campo para o indigenismo e para os contextos políticos dos Estados

nacionais latino-americanos.

A Convenção nº 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), intitulada

“Convenção sobre as Populações Indígenas e Tribais” e aprovada em 1957, pode ser

considerada o primeiro documento internacional voltado especificamente aos povos

indígenas, ainda entendidos em termos de minorias étnicas dos estados nacionais, e se inspira

nas experiências do indigenismo latino-americano. A perspectiva de integração das

populações indígenas e tribais nela presente, que discutimos dos pontos de vista

antropológicos e políticos no capítulo anterior, não impede que reconheçamos a sua

importância em colocar esses grupos como pessoas jurídicas detentoras de direitos e deveres

do ponto de vista internacional, gerando obrigações e limitações ao poder dos estados em

expressar soberanamente a vontade coletiva de seus povos, naquilo que diz respeito à relação

das sociedades nacionais com as populações autóctones.

A evolução das discussões antropológicas e políticas havidas ao longo da segunda

metade do século XX, como vimos, contribuiu para a transformação das leis e políticas

indigenistas implementadas pelos países latino-americanos, mas também para o avanço das

discussões internacionais sobre os direitos humanos. A trajetória de lideranças de movimentos

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indígenas e de direitos humanos na estrutura das Nações Unidas, por exemplo, indica a

interação entre esses campos sociais, de forma que as instâncias de discussão que surgiram ao

longo dessas décadas e se avolumaram a partir da década de 1990 foram progressivamente

ocupadas por representantes de organizações não-governamentais, de forma a expressar suas

perspectivas sobre os assuntos de seus interesses de forma mais horizontal em relação aos

representantes estatais.

Nesse contexto, podemos mencionar o Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas

(WGIP, em inglês), cujo estabelecimento foi referendado em 1982 pelo Conselho Econômico

e Social das Nações Unidas (ECOSOC), congregando uma diversidade de atores e

movimentos sociais que até então se encontravam apartados do contexto multilateral da ONU,

de forma que suas reivindicações e contribuições para o refinamento das normas de direito

internacional e das práticas nacionais voltadas a essas populações. A esse respeito, a

especialista em Direitos Humanos Erica-Irene Daes indicou o seguinte:

“De acordo com seu mandato, o WGIP revisaria os atuais desenvolvimentos que afetam os

direitos das populações indígenas e elaboraria normas relacionadas ao reconhecimento,

promoção e proteção dos direitos e liberdades dos povos indígenas do mundo. Pela primeira

vez, os povos indígenas tiveram acesso ao seu próprio fórum da ONU, que se tornou um

fórum mundial para os movimentos dos povos indígenas. Foi o lugar onde todos se

reuniram e coordenaram seus esforços mundiais: os cinco membros do WGIP, representantes

dos povos indígenas do mundo, observadores governamentais, membros de organizações não

governamentais (ONGs), acadêmicos e representantes do Escritório do Alto Comissariado

para os Direitos Humanos (ACNUDH) e sua Secretaria. Em cada uma das suas reuniões,

houve um diálogo livre, liberal, democrático e construtivo entre todas as partes interessadas,

nomeadamente no que se refere às questões definidas no seu mandato. Posteriormente, o

WGIP tornou-se o organismo mais aberto do sistema da ONU e um importante fórum

internacional. No entanto, o WGIP não tinha poderes adjudicatórios e estava no nível

mais baixo do sistema da ONU. Suas recomendações tinham que ser submetidas à

Subcomissão, à antiga Comissão de Direitos Humanos e ao ECOSOC. No entanto, o WGIP

(...) se tornou uma 'comunidade de ação'.” (DAES, 2009: 48 – tradução e grifos do autor31

).

31

“According to its mandate, the WGIP would review current developments affecting the rights of

indigenous populations and draft standards related to the recognition, promotion and protection of the rights

and freedoms of the world’s indigenous peoples. For the first time, indigenous peoples had access to their

own UN forum, which became a world forum for indigenous peoples’ movements. It was the place where

everyone met and coordinated their world-wide efforts: the five members of the WGIP, representatives of

the world’s indigenous peoples, government observers, members of non-governmental organizations

(NGOs), academics and representatives of the Office of the High Commissioner for Human Rights

(OHCHR) and its Secretariat. A free, liberal, democratic and constructive dialogue between all concerned

took place, related in particular to issues outlined in its mandate, at every one of its meetings. Subsequently,

the WGIP become the most open body in the UN system and a significant international forum. However,

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96

A importância desta “comunidade de ação” para a articulação dos movimentos

indígenas e indigenistas que se multiplicaram desde a década de 1970 nos contextos nacionais

e também internacionais, apontada por uma de suas fundadoras e mais destacadas

representantes, dentre outros especialistas, reflete-se nos avanços que as discussões a respeito

da temática indígena alcançaram a partir da década de 1980, em torno dos debates sobre a

proposta de uma declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas. Apesar

desses avanços, cabe notar que desde o surgimento do WGIP até sua substituição, durante a I

Década dos Povos Indígenas da ONU, em 2002, pelo Foro Permanente de Questões Indígenas

das Nações Unidas (UNPFII, também em inglês), as limitações de eficácia desses espaços em

alterar, de fato, a realidade de dominação vivida por grande parte dos povos indígenas em

todo o mundo foi notada pelos movimentos indígenas e pelos especialistas envolvidos em

seus trabalhos.

“O discurso com o qual os representantes indígenas têm avaliado os resultados da Década

muitas vezes encerra elementos distintos de ceticismo, decepção, desilusão e frustração. Esses

elementos são direcionados, acima de tudo, para a contínua ausência de reconhecimento claro

e consistente, por parte dos Estados e instituições, da governança global dos direitos de

autodeterminação dos povos indígenas.” (NIEZEN, 2005: 585 – tradução do autor32

).

Enquanto opiniões desse tipo apontam para as limitações que as instâncias

internacionais e o próprio direito internacional teriam para garantir os direitos individuais e

coletivos desses povos, o que não chega a ser uma exclusividade diante da multiplicidade de

violações de direitos humanos que ocorrem aos milhares diariamente em todo o planeta, é

importante observar que a instrumentalização desses mecanismos pelos movimentos

indígenas e de direitos humanos para avançar em sua garantia pelos Estados Nacionais

consiste em uma importante estratégia de avanço pelo constrangimento moral dos governos

frente à opinião pública e ao ambiente internacional. Como observa Niezen (2005: 586-587),

dentre outros autores, a crescente participação indígena nesses foros teve grande impacto na

evolução das normas internacionais e em sua posterior introdução nos sistemas jurídicos

the WGIP did not have adjudicatory powers and was at the lowest level of the UN system. Its

recommendations had to be submitted to the Sub-Commission, the former Commission on Human Rights

and ECOSOC. However, the WGIP, as (…) became a ‘community for action’.”

32 “The discourse with which indigenous representatives have assessed the results of the Decade

often contains distinct elements of skepticism, disappointment, disillusionment and frustration. These

elements are directed, above all, toward the ongoing absence of clear and consistent recognition by states

and institutions of global governance of indigenous peoples' rights of self-determination”.

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nacionais, tal qual ocorre com documentos voltados a outras temáticas, como as de direitos

humanos em geral, meio ambiente e desenvolvimento econômico.

Do ponto de vista das temáticas indígenas, além dos avanços trazidos pelos pactos e

declarações de direitos humanos que indiretamente lhes dizem respeito e que mencionamos na

parte anterior desta seção, temos que os principais documentos que emergiram a partir do

final da década de 1980 foram a Convenção nº 169 da OIT (1989) – que substituiu a de 1957

e é considerada uma das pedras angulares do indigenismo internacional contemporâneo –, a

Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP, em inglês),

cujos debates e trâmites na burocracia da ONU se estenderam por mais de vinte anos até sua

adoção pela Assembleia Geral, em 2007, além da Declaração Americana dos Direitos dos

Povos Indígenas (2016), fruto da mobilização de movimentos indígenas e países latino-

americanos, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), pela implementação

da Declaração da ONU pelos Estados Nacionais. Todos esses documentos se sustentam por

uma aplicação específica do direito à autodeterminação aos povos indígenas, trazendo

elementos importantes para orientar os países nas relações políticas e sociais com essas

parcelas de suas sociedades nacionais, como o Direito à Consulta Livre, Prévia e Informada

(YAMADA; AMORIM, 2016).

Com esses avanços normativos, a efetivação desses e outros direitos dos povos

indígenas ainda depende da adoção e regulamentação interna dessas normas pela grande

maioria dos países, o que situa os debates políticos e jurídicos no centro das atuais discussões

havidas no indigenismo global. Especificamente, o tema do isolamento voluntário de povos

indígenas adquire significância a partir de sua interpretação como uma expressão por

excelência do direito à autodeterminação desses povos, na medida em que se evidencia

historicamente o caráter de violação dos direitos humanos básicos que os discursos e as

práticas de integração forçada dessas populações pelas sociedades nacionais significam, na

teoria e na prática cotidiana dos agentes e agências envolvidas em sua proteção.

A resistência política dos Estados e seus agentes ao reconhecimento e garantia do

direito à autodeterminação dos povos indígenas e suas diversas formas de manifestação, que

vão do isolamento voluntário à articulação de organizações em níveis políticos nacionais e

internacionais, expressa-se de diversas formas, que incluem as dificuldades para

implementação de documentos internacionais de direitos humanos, mas passam também pela

marginalização do próprio debate nos contextos internacionais, valendo também a recíproca

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em relação à participação de coletividades não-estatais, como os povos indígenas, em espaços

de debate e deliberação mais gerais entre os países

Nesse contexto de disputas políticas, que se expressam em todos os níveis de interação

social que envolvam direta ou indiretamente os povos indígenas, está longe de ser consensual

qualquer opção política que defina a manutenção e fortalecimento da política de proteção pelo

não-contato, por um lado, ou da retomada de ações voltadas à integração dos povos isolados,

por meio da atuação sistemática de equipes multidisciplinares, pelo outro.

A publicação de volume da reconhecida revista Science, editada desde 1880 pela

Associação Americana pelo Avanço da Ciência (AAAS, em inglês) sobre a temática dos

povos em isolamento voluntário na Amazônia, por exemplo, é uma das expressões dessa

dificuldade em se propor uma abordagem geral e definitiva sobre o assunto. Ainda que os

artigos presentes no referido volume, publicado em junho de 2015, tenham se baseado em um

relevante esforço de elaboração a partir de pesquisas de campo e entrevistas com especialistas

e agentes governamentais que trabalham com o tema, sobretudo no Brasil e no Peru, as

conclusões a que chegaram seus organizadores no editorial da publicação nos parecem ser

imprecisas em seu arremate, pois levantam uma possibilidade que, ao menos no contexto da

antropologia e do indigenismo brasileiro, não representa uma inovação no debate sobre a

“necessidade” de integração de povos indígenas em detrimento da autodeterminação.

“Uma vez que as populações isoladas não são viáveis a longo prazo, os contatos bem

organizados hoje em dia são ao mesmo tempo mais humanitários e éticos. Sabemos

que, logo após o contato pacífico com o mundo exterior, as populações indígenas

sobreviventes se recuperam rapidamente dos colapsos populacionais, com taxas de

crescimento superiores a 3% ao ano. Quando ocorre um contato pacífico sustentado,

torna-se muito mais fácil proteger os direitos indígenas do que seria para as populações

isoladas. Deixar grupos isolados, mas ainda expostos a interações perigosas e

descontroladas com o mundo externo, é uma violação da responsabilidade

governamental. Ao recusar contatos autorizados e bem planejados, os governos estão

simplesmente garantindo que contatos acidentais e desastrosos ocorram.”

(WALKER; HILL, 2015: 1072 – tradução e grifos do autor33

).

33

“Given that isolated populations are not viable in the long term, well-organized contacts are today

both humane and ethical. We know that soon after peaceful contact with the outside world, surviving indigenous

populations rebound quickly from population crashes, with growth rates over 3% per year. Once a sustained

peaceful contact occurs, it becomes much easier to protect native rights than it otherwise would be for isolated

populations. Leaving groups isolated, yet still exposed to dangerous and uncontrolled interactions with the

outside world, is a violation of governmental responsibility. By refusing authorized, well-planned contacts,

governments are simply guaranteeing that accidental and disastrous contacts will take place instead.”

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99

A polêmica em torno dessa recomendação motivou um debate global sobre o tema,

como podemos ver na íntegra da correspondência do antropólogo norte-americano John

Bodley, publicada na edição seguinte da revista ao lado de outra análise crítica por Feather

(2015). Nela, constam os principais pontos de reflexão que, em sintonia inclusive com as

opiniões correntes de especialistas brasileiros e outros acadêmicos sobre os resultados do

trabalho investigativo da revista, indicam que a conclusão de que seria necessário o fim da

política de não-contato não atende aos pontos mais sensíveis da realidade desses povos e,

além disso, ignora os riscos e as consequências históricas de uma atuação proativa dos

Estados para a realização do contato, em detrimento da expressão da autonomia e dos direitos

humanos à sobrevivência cultural desses povos que se busca “idealisticamente” promover por

meio dos instrumentos de direitos humanos que mencionamos anteriormente, dentre outros.

“Parabenizo a cobertura de tribos isoladas na edição de 5 de junho e concordo que os

esforços de proteção governamental precisam ser bem organizados e financiados

("Protecting isolated tribes", Editorial, R. S. Walker e K. R. Hill, p. 1061; "Making contact",

A. Lawler, News Feature, p. 1072; "In danger", H. Pringle, News Feature, p. 1080). No

entanto, a seção fornece uma visão incompleta de um debate político complexo que tem

colocado 'realistas' contra 'idealistas' desde o século 19 sobre a sobrevivência de povos

indígenas independentes. A questão é mais sobre direitos humanos à sobrevivência

cultural do que sobre "isolamento".

Os realistas políticos têm sustentado consistentemente que os povos tribais não

poderiam sobreviver autonomamente. Apenas recentemente este debate foi

enquadrado de forma idealística sobre como defender os direitos humanos básicos dos

povos tribais à autonomia cultural. Em 2005, a Assembleia Geral da ONU exigiu um

"mecanismo global" para amparar os povos tribais que vivem em isolamento voluntário; em

2007, adotou a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Em 2012, o Alto

Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos emitiu diretrizes para a

proteção dos povos isolados na América do Sul; o escritório acrescentou recomendações

específicas para o Peru em 2014.

A situação melhorou substancialmente desde que visitei pela primeira vez a

Amazônia peruana em 1964. Naquela época, não havia organizações políticas indígenas, e a

maioria de seus territórios ainda era oficialmente vista como "desabitada" e aberta ao

desenvolvimento. Ativistas indígenas começaram a se organizar no Peru para pressionar por

direitos à terra e autonomia cultural na década de 1980, e em 2012, 1270 comunidades

indígenas possuíam títulos de 106.585 km2 de território como reservas comunitárias. Isso

representou quase 14% da Amazônia peruana, e outros 67.889 km2 estavam em reservas

territoriais propostas ou designadas. As tribos isoladas estão legalmente protegidas no Peru

desde 2006. Essa política idealista é apoiada por organizações indígenas [como a

Associação Interétnica para o Desenvolvimento da Floresta Tropical Peruana (AIDESEP)] e

organizações não-governamentais internacionais (como o Grupo de Trabalho Internacional

para Assuntos Indígenas e a Survival International). Certamente Walker e Hill não quiseram

caracterizar esses avanços dos direitos humanos como uma política conceitualmente falha de

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"deixá-los em paz". As políticas de proteção baseadas em direitos ainda não estão sendo

implementadas adequadamente, mas sua existência é crucial e não são falhas em

princípio.

A viabilidade a longo prazo das tribos isoladas é uma questão em aberto, assim

como a viabilidade do mundo mercantil. Da mesma forma, ninguém sabe se o "contato"

seria, em última análise, uma boa escolha, especialmente quando poderia significar o

ingresso nas fileiras dos pobres globais. Rejeitar as políticas idealistas constituiria um

retorno às políticas "realistas" defeituosas que aceitam como inevitáveis as políticas

que degradam a Amazônia em nome do desenvolvimento, o que obriga algumas tribos

isoladas a buscarem a sobrevivência fora de seus territórios de origem.” (BODLEY,

2015 – tradução, grifos e quebras de parágrafos do autor34

)

O embate entre o realismo e o idealismo político na seara internacional se revela,

assim, como um conflito político que, em detrimento da escolha autônoma desses povos pelo

isolamento ou pelo contato intermitente, busca equilibrar o reconhecimento idealista da

34

“I applaud the coverage of isolated tribes in the 5 June issue and agree that government

protection efforts need to be well organized and funded (“Protecting isolated tribes,” Editorial, R. S.

Walker and K. R. Hill, p. 1061; “Making contact,” A. Lawler, News Feature, p. 1072; “In peril,” H.

Pringle, News Feature, p. 1080). However, the section provides an incomplete view of a complex policy

debate that has pitted ‘realists’ against ‘idealists’ since the 19th century over the survival of independent

indigenous peoples. The issue is more about human rights to cultural survival than it is about ‘isolation.’

Policy realists have consistently maintained that tribal peoples could not survive autonomously.

Only recently has this debate been idealistically framed as how to defend the tribal peoples’ basic human

rights to cultural autonomy. In 2005, the UN General Assembly called for a “global mechanism” to support

tribal peoples living in voluntary isolation; in 2007, it adopted the Declaration on the Rights of Indigenous

Peoples. In 2012, the UN High Commissioner for Human Rights issued guidelines for the protection of

isolated peoples in South America; the office added specific recommendations for Peru in 2014.

The situation has improved substantially since I first visited the Peruvian Amazon in 1964. At that

time, there were no indigenous political organizations, and most of their territories were still officially

viewed as “uninhabited” and open for development. Indigenous activists began organizing in Peru to press

for land rights and cultural autonomy in the 1980s, and by 2012, 1270 indigenous communities held titles

to 106,585 km2 of territory as communal reserves. This was nearly 14% of the Peruvian Amazon, and

another 67,889 km2 was in proposed or designated territorial reserves. Isolated tribes have been legally

protected in Peru since 2006. This idealist policy is supported by indigenous organizations [such as the

Interethnic Association for the Development of the Peruvian Rainforest (AIDESEP)] and international

nongovernmental organizations (such as International Work Group for Indigenous Affairs and Survival

International). Surely Walker and Hill did not mean to characterize these human rights advances as a

conceptually flawed ‘leave them alone’ policy. Rights-based protection policies are not yet being

adequately implemented, but their existence is crucial, and they are not flawed in principle.

The long-term viability of isolated tribes is an open question, as is the viability of the commercial

world. Likewise, no one knows whether ‘contact’ would ultimately be a good choice, especially when it

could mean joining the ranks of the global poor. Rejecting idealist policies would constitute a return to the

flawed ‘realist’ policies that accept as inevitable the politics that are degrading Amazonia in the name of

development, which then forces some isolated tribes to forage outside their reserves to survive.”

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autodeterminação em convenções internacionais de direitos humanos com o realismo fatalista

de que, diante das dificuldades ou mesmo da impossibilidade de garantia desse direito, dever-

se-ia priorizar ações políticas de integração desses povos, ressalvadas as necessidades

específicas de estratégias desenhadas para tanto.

É dizer que, diante das dificuldades políticas de proteção e garantia dos direitos desses

povos, os argumentos a favor do abandono desses “esforços em vão” se apegam a argumentos

soberanistas e a uma suposta ineficiência das ações de proteção, negligenciando-se a

elaboração que, na base da política brasileira de não-contato, buscou responder a esse embate

pela produção de equilíbrios específicos no que diz respeito à proteção dos povos isolados do

ponto de vista nacional.

* * *

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102

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O isolamento voluntário de povos indígenas

nas encruzilhadas do indigenismo global

Do entrelaçamento de debates políticos, acadêmicos e jurídicos, o conceito de

isolamento se encontra na encruzilhada de certos caminhos que poderíamos muito

metaforicamente chamar de civilizatórios, do ponto de vista que projetamos nos povos

isolados. De onde proveem e para onde seguem estas sendas é algo que os isolados talvez não

possam conceber, mas é fato que perpassam suas vidas e, direta ou indiretamente, produzem

alterações significativas na forma como se relacionam com seus territórios e os arredores.

Como vimos nos capítulos anteriores, em grande parte do século XX a principal

função do indigenismo foi a de integração subalterna dos povos indígenas, para liberação de

suas terras às frentes de expansão econômica, em uma história marcada pelo genocídio e pela

marginalização. A interação desses processos com o campo antropológico se deu, então, a

partir do acúmulo e troca de conhecimentos sobre os povos indígenas do país, alterando a

ambos na medida em que o saber antropológico foi de certas formas incorporado pela técnica

governamental e, ao mesmo tempo, se refinando em conhecimentos críticos e mais complexos

quanto ao fenômeno étnico e ao próprio indigenismo, que passa a ser um objeto de estudo

antropológico sobre o Estado. No contexto em que avança o reconhecimento internacional do

direito à autodeterminação de povos indígenas, mobilizações políticas de “parentes” estão

lado a lado com processos de reconhecimento jurídico das formas próprias de organização

social dos povos indígenas. Esta ideia está, ainda que de forma conservadora, consagrada na

Constituição Federal de 1988, sendo a base das práticas administrativas de proteção de povos

isolados desenvolvidas desde aquela época pela FUNAI.

Ainda que vejamos o conceito de isolamento se movimentar por esses campos sociais

e transmitir elementos e problemáticas entre eles, o debate sobre o destino desses povos nos

parece estar ainda muito marcado pelas dicotomias presentes em cada campo. Em nossa

análise sobre o indigenismo, por exemplo, vimos a centralidade da oposição “isolamento x

contato” e sua reconfiguração até o estabelecimento de uma política de não-contato pelo

Estado brasileiro, restando ainda uma série de questões a resolver no sentido de garantir o

pleno usufruto de direitos por esses povos. Do ponto de vista jurídico e de seus

desenvolvimentos nos planos nacionais e internacionais, percebemos igualmente que o

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permanente embate em torno das ideias de soberania nacional e de autonomia indígena faz

com que retrocessos e avanços se expressem concomitantemente nos esforços políticos de

garantia dos direitos dos povos isolados. Notamos ainda que a categoria de isolamento,

cunhada na interação entre os campos antropológico, indigenista e jurídico, designa uma

realidade étnica específica, que não é plenamente apreendida por nenhum desses campos em

suas expressões mais recentes, oscilando entre sua caracterização ora como conceito, ora

como situação, conforme a Figura 2.1 (pg. 44). Ao passo em que a análise do isolamento

enquanto conceito revela usos muito distantes da realidade imediata dos povos indígenas que

vivem em situação de isolamento, eles ocorrem em campos que estão diretamente ligados ao

contexto social mais próximos dos territórios desses povos.

A definição política de um conceito de cunho antropológico, por meio de instrumentos

normativos do direito, tal como ocorre com o isolamento, evidencia as relações que existem

entre tais campos sociais, em torno deste termo. Em que medida, porém, a centralidade desse

conceito nas interações entre campos tão específicos deixa de fora justamente o mais

importante, que é o objeto a que se referiria semelhante categoria? Nos contextos em que a

realidade objetiva emergente do reconhecimento do direito desses povos à autodeterminação

se impõe, a aceitação dessa categoria sem críticas pode ensejar um entendimento enviesado da

realidade desses povos, que lhes reduz, na prática, a autodeterminação, quando não o

reconhecimento da existência.

Nesse sentido, embora a ideia de isolamento possa indiretamente afetar a realidade

objetiva dos povos isolados, por meio de sua instrumentalização nos campos do indigenismo e

do direito internacional, para ficarmos em apenas dois exemplos, temos que o conceito em si,

por não ser capaz de abranger as expressões das estratégias de isolamento dos povos que as

adotam como forma de sobrevivência física e cultural, revela-se insuficiente para garantir a

proteção desses grupos no contexto de expansão da economia capitalista sobre a Amazônia.

Do ponto de vista antropológico, propusemos esse modelo para compreensão do

conceito de isolamento a partir da interseção dos campos antropológico, indigenista e jurídico,

no qual é possível compreender a diversidade de práticas e dinâmicas de produção de

significados do termo isolamento, com referência às expressões da soberania nacional e da

autonomia indígena. Esse modelo foi pensado a partir das contribuições que esses três campos

trouxeram à compreensão das relações interétnicas e seus desenvolvimentos específicos em

cada um desses campos. De modo sumário, temos que dos estudos sobre a aculturação

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indígena até aqueles voltados à análise das relações sociais em sistemas interétnicos, inclusive

em suas expressões críticas mais recentes, a partir da década de 1980, a questão do isolamento

voluntário emerge como tema de interesse mais recente, que se relaciona com os debates

sobre os direitos humanos e, mais especificamente, a autodeterminação dos povos indígenas,

o que nos leva ao campo dos debates internacionais e sua interação com os campos

indigenistas nacionais.

O enfoque nesse contexto de interseção entre os debates internacionais e os

desenvolvimentos políticos de cada país ao lidarem com a “questão étnica” não é uma

novidade na Antropologia, mas, no caso do estudo sobre o isolamento voluntário, ele permite

levantar uma série de questões que elucidam a especificidade das situações históricas vividas

pelos povos que adotam essa estratégia de relacionamento com seus entornos. O conceito de

poder tutelar, aplicado a esses povos, evidencia algo que já é patente, no sentido em que as

relações de dominação que ele engendra não se expressam tão claramente no caso dos

isolados, como consequência do rechaço ou do controle das relações interétnicas, mas estão

na base da própria expressão de autonomia desses povos em se manterem isolados. Ou seja, a

adoção do conceito de isolamento pelo indigenismo é responsável por sua produção enquanto

situação histórica, mantendo a subordinação da autodeterminação desses povos aos desígnios

políticos da soberania nacional.

Essa é uma perspectiva que, ainda que não seja contrária à política de proteção

territorial executada pela FUNAI desde finais da década de 1980, permite que ela seja

analisada de um ponto de vista crítico quanto à forma como ela se estruturou discursivamente

ao longo dos últimos trinta anos. Se tomarmos a multiplicidade de sentidos atribuídos ao

conceito moderno de povos isolados, como fizemos no Capítulo 2, e destacarmos aqueles que

dizem respeito à sua autonomia, mais que sua vulnerabilidade, veremos que os discursos

governamentais voltados à proteção territorial elaboram uma imagem distorcida de sua

realidade, favorecendo a interdição territorial e o controle das relações interétnicas como

práticas administrativas de proteção desses povos, sim, mas também a acomodação da

autonomia indígena dos povos isolados sob a tutela governamental.

O embate entre as perspectivas dos povos indígenas e dos Estados nacionais, que

ocorre nos contextos domésticos de cada país, mas também nos debates internacionais, se dá

em torno do estabelecimento de (instáveis) equilíbrios entre o étnico e o nacional. O

paralelismo entre contextos tão fisicamente distantes quanto semanticamente próximos como

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o Foro de Questões Indígenas da ONU (UNPFII) e o Vale do Javari, no Amazonas, ajuda-nos

a perceber que a autodeterminação indígena, embora esteja discursivamente presente, é

limitada, em última instância, pelas idiossincrasias do Estado e da sociedade nacional.

De que outras formas poderíamos ver os esforços governamentais para articular as

instituições em prol de ações indigenistas de proteção territorial, de atenção à saúde e de

assistência social? Da pulverização das ações indigenistas no âmbito do Estado brasileiro e do

enfraquecimento institucional da FUNAI, o que resta patente é a insuficiência de mecanismos

institucionais que permitam efetivar uma mudança que se projetou quando da adoção da

política de não-contato e do reconhecimento do caráter pluriétnico do país na CF/88. Naquela

época, a política do isolamento propunha o respeito à decisão autônoma de povos indígenas

em se manterem isolados e a atuação de equipes multidisciplinares de elite do indigenismo

para garantia dessa forma de proteção, utilizando-se da experiência de sertanistas e de

estratégias de mobilização e sensibilização política da opinião pública como instrumentos de

promoção de suas atividades. O estabelecimento da antiga CII dentro da FUNAI, no contexto

em que a instituição deixa de ser responsável pelas atividades de atenção à saúde e de

educação dos povos indígenas, acaba assim por definir uma compartimentalização da

proteção de povos isolados em relação aos demais assuntos da agenda indigenista, com base

em financiamentos de organismos internacionais e uma especial, ainda que relativa atenção ao

tema por parte do Estado brasileiro.

A inversão da lógica que propunha a integração dos povos indígenas por meio de sua

absorção produtiva nos contextos regionais, abrindo espaço para outra em que o Estado e a

sociedade brasileira trabalhariam em prol do índio isolado, torna-se, assim, um ponto de vista

interessante para observamos as dificuldades da proposta de proteção pelo isolamento, e os

caminhos para sua ampliação enquanto forma de garantia do direto à autodeterminação.

De 1988 até o momento, podemos apontar avanços na proteção dos povos isolados e

de recente contato, considerando a quantidade de terras indígenas plenamente regularizadas,

inclusive para o usufruto exclusivo de povos isolados, e a implementação do chamado

Sistema de Proteção de Índios Isolados da FUNAI. A metodologia de proteção de que nos

falam mais profundamente Vaz (2011) e Amorim (2016) – envolvendo a restrição de acesso

para confirmação de referências e a posterior demarcação territorial enquanto etapas da

proteção territorial – revela-se bem sucedida no sentido de garantir a escolha autônoma desses

povos em se manterem isolados em um território relativamente protegido, para que possam se

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reproduzir física e culturalmente e “assegurar livremente seu desenvolvimento econômico,

social e cultural”, nos termos dos pactos de direitos humanos da ONU (1966). Nestes casos, o

estabelecimento de comunicações não-verbais entre povos isolados e agentes da sociedade

nacional, como nos fala Valle (2018), se dá em ambos os sentidos, ainda que instável e

provisoriamente. Em ambos os casos, a questão que fica no ar é aquela que diz respeito ao

equilíbrio entre autonomia indígena e soberania nacional, tendo em vista a incapacidade

institucional da FUNAI e outros órgãos governamentais em garantir os direitos que lhes

caberia promover, e o preço da negligência ou da inércia do Estado frente às situações de

vulnerabilidade vividas por esses povos. A pura previsão normativa e mesmo administrativa

de execução de determinadas ações de proteção, ainda que indique o caminho para a

promoção da autodeterminação pelo indigenismo, esbarra em aspectos contraditórios das leis

e das políticas públicas em geral.

Com isso, a adoção do termo “povos indígenas de recente contato” pela FUNAI e em

outros países, no contexto dos diálogos regionais havidos no âmbito da OTCA e outros

organismos internacionais, parece apontar para um maior equilíbrio entre a autonomia e a

vulnerabilidade desses povos, ainda que se aplique a grupos distintos daqueles que são

administrativamente classificados como “referências de isolados”. Obviamente, ambos os

termos não se confundem, mas se sobrepõem parcialmente na medida em que a

vulnerabilidade específica de cada coletividade demanda formas singulares e proativas de

ação por parte do Estado, em conformidade com os compromissos internacionais assumidos

pelo país. Ou seja, as mudanças políticas que estão na base da expansão do campo de atuação

indigenista junto a povos especialmente vulneráveis (considerando a intensidade ou o tempo

desde o estabelecimento do contato) têm o mérito de evidenciar a necessidade de políticas

públicas próprias para esses povos, da proteção territorial até formas específicas de assistência

social que reconheçam como legítimas e vinculantes as expressões de sua autonomia, na

aplicação nacional de protocolos internacionais de consulta prévia, por exemplo.

Semelhante desdobramento precisa ser amparado pela reorganização do indigenismo

em termos de suas premissas originárias, em que o isolamento e o contato aparecem como

conceitos fundantes de um processo de civilização que visa a integração dos povos indígenas

às dinâmicas nacionais. Ao abandonar o objetivo integracionista e efetivamente reconhecer a

autonomia dos povos indígenas, conforme preveem a CF/88 e os diversos tratados de direito

internacional de que o país é signatário, a atuação do Estado deveria aprofundar o caminho de

garantir o direito à autodeterminação como uma forma de proteção superior, em se

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considerando todas as suas dimensões (territoriais, ambientais, de saúde, de assistência e de

promoção do etnodesenvolvimento). Para tanto, é o fortalecimento institucional da FUNAI

para as ações de proteção territorial e licenciamento de projetos em terras indígenas, além do

papel de coordenação das ações de assistência do Governo Federal, que deve ser enfatizado na

relação indigenista com os povos mais vulneráveis e as populações de seus entornos.

As tendências políticas conservadoras, entretanto, têm se projetado em todo o mundo a

partir de discursos nacionalistas e de afirmação das soberanias nacionais, favorecendo práticas

governamentais e de outros setores das sociedades nacionais que são desfavoráveis às

minorias étnicas de diversas naturezas, seja de migrantes, negros ou indígenas. A

subordinação da autodeterminação de coletividades infranacionais, como poderíamos chamar

genericamente esse conjunto de grupos socialmente marginalizados, aos desígnios das

maiorias nacionais é, nesse sentido, um aspecto fundamental a ser revertido, a partir do

desafio que os povos e movimentos indígenas, ao manifestarem sua autonomia, impõem aos

estados, ao sistema capitalista e à ordem global.

Nesse contexto, a discussão que fizemos de forma panorâmica no Capítulo 3 sobre os

desenvolvimentos internacionais dos debates sobre a ampliação conceitual do princípio de

autodeterminação como um direito coletivo que transborda os limites das perspectivas

estatais, em paralelo à crescente participação de organizações indígenas e indigenistas não-

governamentais nesses espaços, ajuda também a definir alguns aspectos importantes para

situar a questão do isolamento voluntário como um tema global de interesse multidisciplinar.

Das discussões sobre os direitos dos povos indígenas em termos de vulnerabilidade

física e cultural, que marcaram boa parte dos debates indigenista e jurídicos do século XX, até

a cristalização das discussões em termos da autodeterminação, percebemos uma convergência

entre o que observamos nos debates nacionais havidos no Brasil sobre os direitos desses

povos e instâncias internacionais várias – dos contextos de cooperação intergovernamental,

em organizações como a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e

mesmo o próprio Mercosul (em menor escala e com resultados menos significativos), até

esforços de cooptação e controle das articulações dos movimentos indígenas em contextos

internacionais, como é possível observar em diversas situações de participação desses

movimentos e de representantes governamentais, como o Foro Permanente de Questões

Indígenas e a Conferência Mundial dos Povos Indígenas da ONU, realizada em 2015 na sede

da organização em Nova Iorque.

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Assim, é possível observar que os debates sobre a autodeterminação e as décadas em

que os movimentos indígenas se projetaram internacionalmente para reivindicar mudanças

nas formas como se dão as relações interétnicas nos contextos nacionais tiveram grande

importância no avanço de seus direitos, como se pode inferir muito superficialmente da

melhoria de seus índices de reconhecimento e proteção territorial, de crescimento

demográfico e de desenvolvimento humano em geral, ressalvadas as especificidades que a

diversidade étnica enseja na análise desse tipo de informações sobre povos indígenas e as

populações nacionais em geral. Ainda assim, a reversão dessa associação entre a projeção

internacional dos movimentos indígenas e o fortalecimento da perspectiva da autonomia

indígena (que inclui o reconhecimento e a garantia do isolamento voluntário como forma de

proteção dos povos que o adotam como estratégia de sobrevivência), encampada pela

perspectiva estatal das soberanias nacionais é uma tendência política recente que, para além

da ameaça às conquistas indígenas obtidas nas últimas três décadas, pode trazer novas velhas

questões aos povos indígenas e seus aliados globais.

* * *

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118

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ANEXO I:

Um breve panorama metodológico e orçamentário da

política brasileira de proteção territorial de povos

indígenas isolados no início do século XXI

Ao longo deste trabalho, procuramos analisar o percurso do conceito de isolamento de

povos indígenas pelos campos da Antropologia e do Indigenismo no Brasil, e nos debates

internacionais sobre os direitos humanos e o direito à autodeterminação dos povos, de forma a

evidenciar a sua cristalização como um conceito político-antropológico e sua transformação

ao longo da segunda metade do século XX.

Como pudemos observar, esse conceito, tomado como categoria administrativa pelo

indigenismo brasileiro desde a sua institucionalização no âmbito das agências governamentais

dedicadas à proteção e integração de povos indígenas no país, esteve na base de discursos e

práticas políticas que, em menor ou maior proporção, contribuíram para a conformação de

instáveis equilíbrios entre a dominação da diferença étnica pelo Estado Nação e o

reconhecimento da autonomia desses povos perante a sociedade nacional.

Nesse contexto, esta parte do presente trabalho foi pensada como um guia rápido de

referência sobre a política pública que se estabeleceu a partir da mudança de paradigma na

proteção dos povos classificados pelos agentes e instituições governamentais como isolados e

do regime constitucional posterior à redemocratização política do país, no final da década de

1980. Esse esforço se baseia nas informações e reflexões que pudemos coletar e desenvolver

em nossa experiência de quase dez anos como funcionário da FUNAI, bem como na

referência a trabalhos sobre a metodologia de proteção territorial, publicados por dois

servidores da instituição que dedicaram boa parte de suas carreiras como servidores públicos à

labuta sobre a temática de proteção dos povos indígenas em isolamento voluntário (VAZ,

2011; AMORIM, 2016).

Ademais, destacamos que a análise orçamentária desta política, que aqui apresentamos

de forma muito breve, baseou-se em informações públicas e em alguns dos trabalhos de

Ricardo Verdum (VERDUM, 2011; 2014; 2017) sobre a evolução dos recursos federais

destinados a sua execução no âmbito da política indigenista mais ampla desenvolvida pelas

agências governamentais do país, ponderando que, por questões de tempo e também de

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ausência de dados sistematizados sobre a totalidade dos vinte primeiros anos do século XXI,

realizamos essa análise quantitativa de forma panorâmica, e de certa forma indireta, do

orçamento público federal, considerando que informações específicas sobre a dotação de

recursos para proteção de povos indígenas isolados e de recente contato não necessariamente

se encontram disponíveis nas bases de informação acessadas.

Como vimos anteriormente, o Encontro de Sertanistas da FUNAI ocorrido em 1987 é

percebido, no contexto do indigenismo, como um momento simbólico de transformação da

política de proteção dos povos indígenas, a partir do qual a mudança de paradigma na

proteção de povos isolados foi incorporada administrativamente nas normas que atualmente

norteiam a atuação governamental junto a esses povos. Nesse contexto, uma metodologia

específica para aplicação das normas mais amplas de proteção e demarcação de terras

indígenas aos casos dos povos isolados começou a ser desenvolvida com o respaldo legal das

Portarias nº 1.900/1987, 1.901/1987 e 1.047/1988, subsidiárias nos processos administrativos

de demarcação de terras indígenas, regidos primeiramente pelos Decretos nº 94.945/1987 e

94.946/1987, depois pelo Decreto nº 22/1991, e finalmente pelo Decreto nº 1.775/1996.

O antropólogo Fabrício Amorim (2016: 25-26), que até poucos meses atuou como

funcionário da FUNAI no setor de índio isolados, assim descreveu a metodologia corrente de

proteção territorial desses povos.

“(...) um dos maiores diferenciais da política brasileira em relação aos outros países da

América do Sul ocorre pelo forte enfoque metodológico em campo. Essa sistemática de

campo é herdeira das práticas expedicionárias realizadas historicamente pelo Serviço

de Proteção aos Índios (1910-1967), pela Fundação Brasil Central (1943-1967) e pela

própria Funai (criada em 1967). Entretanto, apesar das muitas similaridades com as

expedições atuais, as antigas geralmente tinham como único objetivo de estabelecer

contatos com os grupos isolados e integrar economicamente extensas áreas “inóspitas”.

Atualmente, as expedições realizadas pelas Frentes de Proteção Etnoambiental

objetivam comprovar a existência desses povos e desencadear mecanismos de

proteção de seus territórios, sem quaisquer intervenções de contato com os povos

indígenas isolados.”

Desse ponto de vista, a demarcação da Terra Indígena Massaco, em 1996, no estado de

Rondônia (Mapa 5.1), foi a primeira experiência de aplicação da metodologia de localização e

confirmação de informações (ou referências) de povos indígenas em situação de isolamento

voluntário que levou à execução dos procedimentos administrativos para demarcação de um

território para usufruto exclusivo de povos isolados e consequente retirada de invasores da

região (VILLA, 2018).

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O minucioso trabalho de levantamento e sistematização de informações diante dos

indícios de existência de um ou mais grupos isolados na região, feito pela equipe de

localização da FUNAI ao longo dos anos, estabeleceu uma forma inovadora de diálogo por

meio da comunicação não-verbal com um povo indígena que rechaçava o contato com agentes

externos, buscando assim reconhecer e garantir a expressão da autonomia daquela

coletividade frente às ameaças externas.

Mapa 5.1 – Terra Indígena Massaco e seu entorno (VILLA, 2018)

Com isso, o desenvolvimento da metodologia a partir da experiência da Equipe de

Localização Guaporé nesse caso posteriormente viria a ser aplicada com sucesso por outras

equipes em outras regiões, contribuindo para a regularização territorial de outras áreas

habitadas por povos indígenas isolados, tais como a Terra Indígena Himerimã, na bacia do rio

Purus, no Acre; e Kawahiva do Rio Pardo35

, localizada no noroeste do Mato Grosso, assim

como no desenvolvimento de ações de monitoramento e vigilância territorial em terras

indígenas onde há informações sobre a presença de isolados a serem confirmadas ou naquelas

que são compartilhadas por povos isolados e contatados. Atualmente, esse trabalho é

35

Ainda segundo Amorim (2016), cabe destacar que o processo de demarcação da TI Kawahiva do

Rio Pardo não foi concluído, tendo ela sido apenas declarada por meio da Portaria nº 481, de 20/04/2016, e

estando ainda pendente de homologação pela Presidência da República (Lenin, 2016).

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realizado por onze equipes, chamadas de Frentes de Proteção Etnoambiental, que estão

vinculadas administrativamente a coordenações regionais da FUNAI em diversas regiões da

Amazônia e atuam com recursos e em consonância com as diretrizes da Coordenação-Geral

de Índios Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC).

Tabela 5.1 – Frentes de Proteção Etnoambiental da FUNAI e sua localização

Frente de Proteção Etnoambiental Localização Algumas TIs Jurisdicionadas

FPE Cuminapanema Norte do Pará Zo’é

FPE Envira AC Kampa e Isolados do Rio Envira

FPE Vale do Javari Oeste do Amazonas Vale do Javari

FPE Guaporé RO Massaco

FPE Uru Eu Wau Wau RO Uru Eu Wau Wau

FPE Madeira-Purus Sul do Amazonas Himerimã

FPE Madeirinha-Juruena MT Kawahiva do Rio Pardo

FPE Awá-Guajá Oeste do Maranhão Awá

FPE Médio Xingu Centro-Sul do Pará Araweté do Rio Ipixuna

FPE Yanomami Ye’kuana Oeste de Roraima e AM Yanomami

FPE Waimiri Atroari Sul de Roraima e AM Waimiri Atroari

Fonte: AMORIM, 2016: 29

Em termos procedimentais, a referida metodologia de proteção de povos isolados

consiste na formação de acervos de informações e dados georreferenciados a partir de

pesquisas documentais, da qualificação de relatos de terceiros, de expedições em campo, de

sobrevoos e análises de satélite, entre outras ações subsidiárias à confirmação e identificação

de referências de povos isolados, especialmente naquilo que diz respeito à compreensão das

dinâmicas de uso e ocupação e características socioculturais desses povos, sem que sejam

feitas intervenções externas que lhes imponham o contato (AMORIM, 2016: 27). Segundo

ele, os dados coletados em campo são organizados em “Registros”, vinculados a referências

geográficas e entendidos como a unidade base no processo de sistematização de dados sobre o

reconhecimento institucional da existência de povos indígenas isolados, sendo classificados

em três categorias de acordo com a quantidade e nível de sistematização de informações:

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Registro de Informação: Poucas informações, provenientes de terceiros e pouco

sistematizadas;

Registro de Referência em Estudo: Quantidade expressiva e bem sistematizada

de informações, que demandam a realização de expedições e investigações in loco

para confirmação da presença de isolados;

Referência Confirmada: Informações confirmadas da presença de isolados, por

meio da atuação em campo das equipes das FPEs e a localização de indícios

irrefutáveis.

A execução desses procedimentos de estudo e confirmação de informações sobre a

presença de povos isolados em diversas regiões da Amazônia é um permanente desafio

técnico e logístico que se coloca ao órgão indigenista brasileiro, sobretudo se considerarmos

os avanços obtidos mesmo diante da evolução orçamentária dessas ações, que discutiremos a

seguir. Por ora, cabe ainda observar que esses procedimentos consistem em uma das partes do

que se convencionou chamar de Sistema de Proteção de Índios Isolados e Recém Contatados.

Para uma visão mais geral dessa metodologia, nos apoiamos nos trabalhos do sertanista

Antenor Vaz, o qual, ao longo de seus mais de 30 anos de experiência no trabalho com a

temática de proteção de povos isolados, foi um dos funcionários da FUNAI que atuaram no

processo de identificação e proteção territorial na TI Massaco, durante a década de 1990, e

tem contribuído na sistematização, no fortalecimento e na sensibilização de outros países

sobre a importância dessa metodologia, mesmo após seu desligamento da instituição. Em uma

de suas publicações sobre o assunto (2011: 36-41), ele divide o sistema de proteção dentro das

seguintes categorias.

Subsistema de Localização: Corresponde à metodologia que descrevemos

anteriormente com base no trabalho de Amorim, sendo que Vaz a descreve em

minúcias que serviriam de orientação aos trabalhos de campo a serem realizados

pelas equipes especializadas;

Subsistema de Vigilância: Inclui ações voltadas à garantia do isolamento dos

povos isolados, considerado como expressão da autodeterminação, e à luz de suas

vulnerabilidades específicas (epidemiológica, demográfica, territorial e política),

que demandam a permanente execução de ações de monitoramento territorial, de

educação ambiental e saúde com as populações do entorno, dentre outras.

Subsistema de Contato: Envolvem as possíveis respostas das FPEs, enquanto

partes do Estado a que cabem as ações de proteção de povos isolados, às situações

de contato, seja por iniciativa dos próprios grupos indígenas, pela sua imposição

por agentes externos ou pela necessidade de indução estatal dessa interação.

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Com tudo isso, é possível observar consideráveis avanços na confirmação da presença

e na proteção territorial de povos isolados que, na ausência de políticas específicas baseadas

na garantia de seu isolamento, foram historicamente invisibilizados ou mesmo

silenciosamente dizimados nos processos de expansão das fronteiras econômicas sobre seus

territórios tradicionais. Ao longo dos últimos trinta anos, esse trabalho realizado pela FUNAI

alcançou reconhecimento em diversas instâncias políticas, ainda que seja em grande medida

desconhecido nos debates mais gerais que se travam nacional e internacionalmente sobre a

chamada “questão indígena”. O Mapa 5.2 dá uma dimensão espacial desse desafio, e a Tabela

5.2 evidencia o seu crescimento como um tema que, mesmo sendo objeto de permanente

atenção por parte do Estado, torna-se cada vez mais complexo e disseminado no contexto de

avanço da expansão econômica e de projetos de infraestrutura na Amazônia brasileira.

Mapa 5.2 – Localização das referências de povos isolados na Amazônia (FUNAI, 2006)

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Tabela 5.2 – Evolução do reconhecimento oficial sobre a presença de isolados no Brasil

Registros 2006 2011 2016

Confirmados (ou contatados entre 2014 e 2015) 21 23 28

Informação ou em estudo 41 47 77

Fonte: AMORIM, 2016: 28

Observa-se ainda que as ações de proteção de povos isolados se inserem na política

indigenista brasileira mais ampla de forma mais ou menos independente, tendo em vista a

diversidade de iniciativas desenvolvidas pelo órgão indigenista junto aos povos indígenas do

país, que vão da assistência social e da promoção de atividades produtivas aos processos de

demarcação territorial, passando também por ações de preservação do patrimônio cultural.

Essa ampla variedade de ações exige das equipes da FUNAI uma especialização técnica em

diversos temas que, dadas as especificidades e dificuldades operacionais, nem sempre

permitem que a execução acompanhe a evolução orçamentária destacada na Figura 5.1

abaixo.

Figura 5.1 – Gráfico de evolução orçamentária da FUNAI (2000 a 2017)

Fonte: Instituto Socioambiental, 2017 (SIOP/Ministério do Planejamento)

No caso específico da política de proteção de povos isolados, observamos que sua

evolução é semelhante à do orçamento geral da FUNAI, mas alcançou seu pico já em um

contexto de decréscimo da disponibilidade de recursos da instituição. Dentre vários possíveis

motivos para que isso ocorresse, os quais teriam de ser analisados profundamente com base

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em dados mais completos e detalhados para melhor compreensão, podemos mencionar o fato

de que a ascensão orçamentária da FUNAI entre 2006 e 2011 coincide com o período em que

a instituição passou por um processo de reestruturação e recomposição de pessoal, o que se

refletiu inclusive na aquisição de equipamentos, estabelecimento e organização das equipes

das Frentes de Proteção Etnoambiental, que saltaram de seis para doze unidades no período, o

que ajuda a explicar o aumento significativo do número de registros de povos isolados com os

quais a CGIIRC passou de 2006 a 2016 (Tabela 5.2).

O desalinhamento entre as evoluções orçamentárias da FUNAI e da política de

proteção de povos isolados (Figura 5.2) também pode ser entendido à luz do aumento de

fatores de ameaça aos territórios desses povos, o que naturalmente ensejaria uma maior

destinação de recursos e a atuação em termos emergenciais em mais contextos de possível

conflito interétnico e de intensificação da vulnerabilidade desses povos.

Figura 5.2 – Gráfico de evolução orçamentária da política de proteção

de povos isolados (2000 a 2017)

Fonte: Instituto Socioambiental, 2017 (SIOP/Ministério do Planejamento)

Seja por motivações econômicas relacionadas com a crise fiscal pela qual o país vem

passando desde 2013, seja por aspectos políticos que incluem as instabilidades do Governo

Federal no contexto do impeachment da Presidente Dilma Rousseff e as disputas político-

ideológicas em torno da questão indígena, que se manifestam localmente e a nível nacional, é

evidente o processo de asfixia por que passa a política indigenista nacional, de que nos fala

Verdum (2016).

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Esse processo de estrangulamento orçamentário e político do órgão indigenista, para

além de suas motivações baseadas em interesses ou no desconhecimento de temáticas tão

sensíveis quanto desconhecidas, como a da proteção de povos isolados, revela que todo o

trabalho estruturado em torno da metodologia que brevemente descrevemos neste anexo, e

cujas bases conceituais abordamos ao longo de todo o trabalho, se encontra gravemente

ameaçado, colocando em risco a integridade física e cultural de povos indígenas que, em

busca de sua sobrevivência, expressam a sua resistência aos processos de dominação

interétnica de que secularmente foram vítimas.

* * *