escola de herÓis” os cursos de formação dos técnicos de indigenismo da fundação nacional do...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS FACULDADE DE HISTÓRIA TRABALHO MONOGRÁFICO DE CONCLUSÃO DO CURSO DE BACHARELADO DE HISTÓRIA DA UFRJ “ESCOLA DE HERÓIS” Os cursos de formação dos técnicos de indigenismo da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) de 1970 até 1985 Aluna: LUIZA SALDANHA Orientador: Professor Doutor ANTONIO CARLOS DE SOUZA LIMA

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ESCOLA de HERÓIS” Os Cursos de Formação Dos Técnicos de Indigenismo Da Fundação Nacional Do Índio (FUNAI) de 1970 Até 1985

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS FACULDADE DE HISTRIA

    TRABALHO MONOGRFICO DE CONCLUSO DO CURSO DE BACHARELADO DE HISTRIA DA UFRJ

    ESCOLA DE HERIS Os cursos de formao dos tcnicos de indigenismo da Fundao Nacional do ndio (FUNAI) de 1970

    at 1985

    Aluna: LUIZA SALDANHA Orientador: Professor Doutor ANTONIO CARLOS DE SOUZA LIMA

  • 2

    Segundo semestre de 1996.

  • 3

    ndice:

    Agradecimentos......................................................................................3

    Introduo..............................................................................................6

    Captulo1. O curso de tcnico de indigenismo e seus objetivos................21

    Captulo 2. Porque ser um indigenista.......................................... ...........35

    captulo 3. A percepo do curso...........................................................46

    captulo 4. A FUNAI..............................................................................61

    Captulo 5. Heris Isolados ............................................................... 76

    Concluso.............................................................................................112

    Anexo 1. Roteiro de entrevistas..............................................................115

    Anexo 2. Quadro dos entrevistados........................................................119

    Fontes consultadas.................................................................................126

    Bibliografia............................................................................................126

  • 4

    AGRADECIMENTOS:

    Talvez eu esteja errada em comear a monografia escrevendo os

    agradecimentos, fao isto, talvez, pela falta de coragem de comear a

    escrever a primeira pgina de um trabalho, que sei, vai me absorver

    intensamente, mas acho que mais do que isso uma forma de dizer que

    antes de mais nada tudo que ser escrito nas prximas pginas tem muito a

    ver com estas pessoas de quem estarei falando aqui.

    Quero ainda dizer que o que aqui escrevo fruto da necessidade que

    sinto de fazer jus a todo apoio que recebi durante o processo de elaborao

    do trabalho, e, muito pelo contrrio, no pretende cumprir formalidades

    implcitas, mas sim a desejos explcitos de fazer reconhecida toda a

    colaborao que tive.

    Queria agradecer primeiramente a uma pessoa que me ajudou muito

    durante a minha formao enquanto pessoa e enquanto estudante, Luiza

    muito obrigada.

    Ao Luiz que foi fundamental para que meus horizontes fossem

    ampliados, obrigada por ter me ajudado a ver o mundo de uma outra forma.

    Agradeo ainda a v Idalina que me ofereceu muito carinho e infra-

    estrutura para botar em prtica muitos dos meus projetos. De quebra ainda

    agradeo a Helena, minha prima, que acompanhou de perto todas as minhas

    angstias e os meus impasses.

    Gostaria ainda de falar dos meus irmos, e por que no? Que sempre me

    deram muita fora e acreditaram na minha capacidade.

  • 5

    Um grande beijo para o Marcelo, meu marido, que sempre me deu

    muito apoio e estabilidade para que eu pudesse com tranquilidade

    desenvolver este trabalho.

    Queria falar de algumas pessoas que me deram muita fora, mesmo que

    talvez sem nem saber: a Gergia pelo apoio burocrtico, a Ana Maria pelo

    estmulo, a Patrcia pelos toques e a galera do IFCS pelo companheirismo.

    No posso esquecer de algum que veio acompanhando passo a passo

    este trabalho, no s por obrigao, j que o orientador desta monografia,

    mas por gostar do que faz. Antonio Carlos te agradeo pela pacincia, pelas

    dicas, pela paixo contaminante que tem pela pesquisa, por ter me aturado

    como bolsista durante trs anos e por ter me presenteado com a

    possibilidade de realizar esta pesquisa.

    Algumas pessoas foram to indispensveis que sem elas esse trabalho

    no teria se realizado, estou falando daqueles que muito gentilmente

    concederam as entrevistas que em grande parte serviram de base para a

    realizao desta monografia. Gostaria ainda de agradecer especialmente a

    Ana Lang e ao Xar que me hospedaram e me deixaram a vontade em uma

    cidade que me pareceu to fria.

    ***

    Agora depois de j ter escrito grande parte deste trabalho

    ele me parece superficial diante de todo material coletado, mas

    gostaria de deixar claro que independente dos resultados, ele no foi

    fcil e exigiu que eu transformasse muita coisa na minha forma de

    pensar e ser. Ele abriu portas para mim antes cerradas, me

    possibilitando enfrentar minha falta de disciplina e concentrao.

    Devo agradecer a possibilidade de exercitar a arte da investigao

    histrica a UFRJ e ao CNPq, duas instituies sem as quais este trabalho

  • 6

    enfrentaria muito mais dificuldades. Por fim, devo destacar que foi graas a

    recursos da FINEP, atravs do Projeto de Pesquisa em Antropologia

    Social, do qual Antonio Carlos de Souza Lima integrante, dentro do

    (PPGAS/MUSEU NACIONAL), e de seu projeto integrado de pesquisas ao

    CNPq A Administrao Pblica e os Povos Indgenas no Brasil: A

    Fundao Nacional do ndio (FUNAI), de 1968 a 1992, ao qual), ao esta

    monografia se filia e por meio do qual a documentao utilizada foi

    majoritariamente levantada, que pude viajar e entrevistar os informantes

    deste trabalho e contar com material para pesquisa.

    Valeu Galera!!!

  • 7

    INTRODUO

    Comeo a introduo desta monografia dizendo que finalmente

    me encontro pronta a expor publicamente as reflexes que durante cerca

    de um ano e seis meses fizeram parte de meu dia-a-dia. Talvez esta no seja

    a forma mais indicada de comear a escrever um trabalho destinado

    avaliao de concluso do curso de bacharelado em Histria da UFRJ.

    Sinto-me porm vontade de o fazer assim, por saber que no sendo neste

    espao talvez no tenha outra oportunidade de expor certas nuances deste

    primeiro ensaio de pesquisa. Posso ento iniciar por a. Durante todo o curso

    de histria rondou sobre mim e alguns dos meus colegas a sombra da

    fatdica monografia. Assumir que este processo doloroso talvez no seja a

    melhor maneira de comear um dilogo com aqueles que sero os meus

    avaliadores, afinal, antes de mais nada aqui cabe ressaltar o papel

    burocrtico que tem esta monografia, sem a qual afinal eu no poderia

    nem pensar em pleitear o ttulo de graduada em histria.

    Gostaria de mencionar algumas das dificuldades encontradas

    durante o percurso deste trabalho e que dizem respeito no s a mim como

    prpria forma como se tem dado o ensino na nossa faculdade. Antes de

    faz-lo, porm, gostaria de esclarecer que sem ter um tom politiqueiro isto

    muito mais um desabafo. Bom, vamos ao que interessa. Entendo que o

    trabalho cientfico se constitui antes de tudo em um grande plenrio onde

    so colocadas as mais diversas contribuies a respeito de um determinado

    assunto. Sendo desta forma creio que atravs do debate destas idias que

    se pode aparar as arestas e corrigir supostos desvios. Como aluna do curso

    de histria no entanto fui treinada a concordar, ou no, com contribuies

    consagradas da historiografia. O que estou querendo dizer que a reflexo

    crtica se limitou a um julgamento do que se tinha produzido pelos

  • 8

    HISTORIADORES.1 Portanto a ns, alunos, e futuros historiadores, foi

    reservado pouco espao para a iniciao na pesquisa. Digo isto, claro,

    considerando que no apenas por meio do incentivo financeiro que se deve

    estimular a aproximao da produo cientfica. Os laboratrios cumprem

    um papel importante na instituio, mas limitar este mergulho queles que

    esto vinculados a uma pesquisa especfica tem trazido grande perda ao

    conjunto dos alunos da faculdade. atravs do que oficialmente oferecido

    que deveria haver a propagao de uma formao voltada para a pesquisa,

    os cursos oferecidos nas mais diversas reas deveriam possibilitar ao aluno

    iniciar experimentaes no sentido de aproxim-lo do que o ofcio maior

    do historiador.

    Hoje estando diante da necessidade de produzir, e criar algo

    que de certa forma seja particular, me sinto limitada e tendo exercitado

    pouco a reflexo terica e a pesquisa emprica imprescindvel produo de

    uma monografia. Junta-se a estas questes a minha prpria limitao de

    levar a cabo de forma mais eficaz a confeco deste trabalho. O que de certa

    forma estou tentando esclarecer que os pecados deste trabalho se devem

    essencialmente a estes dois fatores: o primeiro, que diz respeito minha

    formao; e o segundo, que diz respeito ao meu desenvolvimento pessoal.

    Por estes motivos peo aos meus juzes licena para aqui

    expor o que foi resultado de um trabalho intenso, que teve seus momentos

    de altos e baixos, mas que sobretudo sobreviveu a todas as dificuldades

    enfrentadas durante este percurso to doloroso e ao mesmo tempo

    1 Para complementar o sentido desta reflexo gostaria de citar Bourdieu quando fala acerca da desmistificao do investigador: (...) entre as vrias atitudes que eu desejaria poder incultar, se acha a de ser capaz de apreender a pesquisa como uma actividade racional -e no como uma espcie de busca mstica, de que se fala com nfase para se sentir confiante- mas que tem tambm o efeito de aumentar o temor ou a angstia: esta postura realista -o que no quer dizer cnica- est orintada para a maximizao do rendimento dos investimentos e para o melhor aproveitamento possvel dos recursos, a comear pelo tempo de que dispe. Sei que esta maneira de viver o trabalho cientfico tem qualquer coisa de decepcionante e faz correr o risco de pertubar a imagem que de si prprios muitos investigadores desejam conservar. Mas talvez a melhor e a nica maneira de se evitar decepes muito mais graves -como a do investigador que cai do pedestal, aps bastante anos de automistificao, durante os quais despendeu mais energia a tentar conformar-se com a idia exagerada que faz da pesquisa, isto , de si mesmo como investigador, do que a exercer muito simplismente o seu ofcio. Bourdieu 1989:18.

  • 9

    satisfatrio. Claro, sinto-me satisfeita por perceber que de alguma forma, se

    esta no for uma contribuio relevante para a comunidade cientfica, pelo

    menos o foi para que a minha formao se tornasse mais completa e para

    que, atravs do exerccio de pesquisa, eu tenha me aproximado do que tem

    sido reservado a uma pequena parcela da populao, ou seja, pensar e

    refletir sobre um problema de forma organizada e tendo uma finalidade

    especfica. Posso dizer at que dentro destas circunstncias eu at tive

    sorte por durante trs anos ter feito parte do projeto de pesquisa A

    Administrao Pblica e os Povos Indgenas no Brasil: A Fundao

    Nacional do ndio (FUNAI), de 1968 a 1992, sob a orientao do Professor

    Doutor Antonio Carlos de Souza Lima, resultado do qual, entre outros,

    temos a elaborao deste trabalho monogrfico.

    Talvez aqui tenha de certa forma esbarrado no que foi o tema

    desta pesquisa, digo isto porque a questo da qual me aproximei trata da

    formao oferecida pela FUNAI aos candidatos a tcnico de indigenismo.2

    O trabalho a ser desenvolvido visa estudar, numa perspectiva

    histrica, a administrao pblica indigenista brasileira, analisando a

    formao de um segmento burocrtico administrativo especfico: os

    chamados tcnicos indigenistas da FUNAI. Num primeiro momento antes

    mesmo de ter claro qual seria exatamente o objeto de pesquisa foi iniciado

    um estudo relativo a matrias de jornal acerca do que tem sido veiculado a

    respeito da administrao pblica com relao s comunidades indgenas3.

    Este trabalho nos colocou diretamente em contato com os chamados

    indigenistas, que em sua maioria faziam ou j tinham feito parte do quadro

    de funcionrios da FUNAI. A partir desta aproximao abriu-se a

    2Comunico neste momento que passarei a escrever na primeira pessoa do plural por considerar que este trabalho fruto no s da minha pesquisa como tambm do que vem sendo feito neste sentido. 3Atravs deste trabalho foi possvel perceber que a FUNAI aparece na imprensa, de uma forma geral, como uma instituio desarticulda, que no consegue implementar seus planos de ao (quando os tem), que sempre est atrasada para a resoluo de quase todos os problemas, que no se faz presente nos problemas que se encontram em localidades de pequeno porte, que mexe com verbas altas controlando um territrio bastante extenso e que, por isso mesmo, plenamente corruptvel.

  • 10

    possibilidade de aprofundar a questo tendo agora como foco principal a

    formao especfica recebida pelos indigenistas da FUNAI.

    Foi com este intuito que nos aproximamos da documentao

    existente sobre os cursos de tcnico de indigenismo oferecidos pela FUNAI

    no perodo que vai de 1970 at 1985. Esta documentao, que diz respeito

    aos dez cursos realizados com o intuito de capacitar funcionrios para

    exercer principalmente a funo de chefe de posto, encontrava-se

    reproduzida em sua maioria, aos cuidados de Antonio Carlos de Souza

    Lima, orientador desta monografia, no Museu Nacional. Estes documentos

    foram fornecidos pela FUNAI/Braslia no ano de 1994. Posteriormente, em

    meados de 1995, tivemos oportunidade de complementar este material

    atravs de uma consulta biblioteca da FUNAI em Braslia. De uma forma

    geral pudemos perceber que o material se encontrava bastante desordenado

    e que no houve uma preocupao em preservar de forma mais enftica a

    documentao acerca do curso, o que houve foi um agrupamento por curso

    do material que sobrou. Neste acervo encontramos documentos referentes

    s seguintes temticas: documentos administrativos - encaminhamento de

    documentos, prestao de contas, convocao de fiscais para a realizao

    das provas etc; material terico - textos e apostilas utilizados no curso;

    provas do concurso para seleo de alunos para o curso; avaliao interna;

    provas; relatrios de estgio; programas dos cursos; edital para concurso etc.

    Este material, apesar das lacunas, contribuiu de forma decisiva para que

    pudssemos dar suporte as idias trabalhadas aqui nesta monografia.

    Quando comeamos a pesquisar sobre este tema no tnhamos

    noo de quanto rico e empolgante seria ter contato com este universo. As

    possibilidades de trabalho estavam limitadas inexistncia de uma

    bibliografia especfica sobre o assunto no Brasil. Partimos ento para a

    leitura de obras que versam sobre poltica indigenista. Aqui destacaremos

  • 11

    apenas aquelas que esto mais estritamente vinculadas ao desenvolvimento

    da monografia.

    Aos Feitichistas Ordem e Progresso, dissertao de mestrado

    de Antonio Carlos de Souza Lima4, que realiza um estudo da constituio do

    espao a que chama campo indigenista a partir de uma anlise do SPILTN

    (Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais)

    em 1910, para tanto, parte da crtica da viso oficial deste processo. Verso

    esta, que quase sempre acaba por ser reproduzida, mesmo por aqueles que se

    colocam como opositores aos que se dizem herdeiros de Rondon.

    Nesta dissertao o autor procura, tambm, relacionar os

    condicionantes de uma formao escolar especfica com certas tomadas de

    posio intelectuais e polticas5, para analisar o personagem Cndido M. S.

    Rondon. Em um trabalho posterior O Santo e o Soldado6o autor parte para

    a realizao de um estudo a respeito da trajetria social (no mais como uma

    temtica especfica) de Cndido Mariano da Silva Rondon em relao ao

    texto escrito por Esther de Viveiros intitulado Rondon conta sua vida,

    publicado em 19587. O trabalho realizado por Lima procurou, antes de mais

    nada, aprofundar a anlise da Mitologia construda em torno de Rondon

    pensando o que significa especificamente o texto de Esther de Viveiros.

    Defendeu durante seu trabalho que a obra se trata de uma hagiografia:

    Rondon conta sua vida relata a existncia do que um santo na viso do

    positivismo ortodoxo, algum que seguiu exemplarmente o dogma bsico da

    religio da humanidade -o amor por princpio, a ordem por base, o

    progresso por fim. Algum que venerando a mulher, serviu a humanidade

    ao servir sobretudo ptria (intermedirio necessrio entre o indivduo e o

    ser supremo) sendo um elo entre os dois estabelecido pela famlia ...8

    4Lima, 1985. 5Lima, 1990:1. 6Lima , 1990. 7VIiveiros, esther de. 1985 - Rondon conta sua vida. RJ, livraria So Jos. 8Lima, 1990:4.

  • 12

    Com a leitura de A Marcha para o Oeste9dos irmos Villas-

    Boas, que relata a experincia da expedio Roncador-Xingu10 na forma de

    um dirio, pudemos ter contato com uma construo que coloca o trabalho

    com comunidades indgenas como algo que est ligado a uma opo de vida.

    Este trabalho, no tem uma preocupao especial com a pesquisa e procura

    traar, em linhas gerais, o significado e o sentido do que se chamou

    Marcha para o Oeste. Esta leitura nos permitiu tomar contato com o

    universo herico de homens que dizem agir por humanismo e tem no bom

    senso seu principal guia. Interessante notar que durante a narrativa no

    mencionada nenhuma dificuldade pessoal, deslize ou dvida. A forma

    narrativa colabora para que a expedio seja vista como algo que vai alm

    do trabalho formal, passa a ser uma aventura, uma saga, que tem como

    tarefa fazer com que a nao exista.

    A tese de mestrado de Maria Lcia Pires Menezes Parque

    indgena do Xingu: A contrao de um territrio Estatal11 aborda a mesma

    temtica procurando entender como se deu a apropriao do espao do atual

    Parque Indgena do Xingu pelo Estado -por meio de seus aparelhos e atravs

    da administrao- como forma de territorializao de poder, e como a

    prtica indigenista colaborou para este processo. Este trabalho traz uma

    abordagem que percebe os ndios como os maiores excludos do processo,

    ao mesmo tempo que aparecem como suposto foco principal.

    No seu livro Os ndios e Civilizao12 Darcy Ribeiro relata

    (es)histrias de abnegao e sofrimento de uns poucos indivduos

    excepcionais, contra as oligarquias locais. As intempries polticas, a

    escassez de recursos movida por perseguies, as florestas inspitas e os 9Villas Boas, Cludio & Orlando, 1994. 10(...) a Expedio Roncador -Xingu (ERX) oficializada pela protaria n- 77, de 3 de junho de 1943. O ato oficial previa um roteiro, cujo ponto de partida era a cidade de Leoplodina, sobre o rio Araguaia em Goias (...) a marcha atravessaria a Serra do Roncador, procurando o lugar mais adequado para fundar um ncleo de povoao e construir um campo de pouso. (...) A fixao dos objetivos da expedio era presidida por consideraes que incluam: a criao de vias de comunicao com o Amazonas; explorar e povoar o macio central do pas nas regies das cabeceiras do Xingu (...) Menezes, 1990:6. 11Menezes, 1990.

  • 13

    prprios ndios, muitas vezes em estado de guerra, estes foram alguns dos

    obstculos que tiveram a enfrentar. Este grupo, ainda que dotado de uma

    ideologia equivocada segundo a viso de Darcy Ribeiro, conseguiria

    enormes feitos.13

    um pouco sobre estas (es)histrias de abnegao que vamos

    falar em nossa monografia, tendo em conta porm que trabalharemos com

    uma anlise crtica desta viso herica do processo de contato com as

    comunidades indgenas. O iderio que permeia a construo acerca do que

    seria o indigenista estar permeando o desenvolvimento desta monografia.

    A nossa noo do que seja indigenismo vai estar pautada na

    formulao ainda provisria que considera indigenismo como: (...) o

    conjunto de idias (e leis, i.e., aquelas elevadas qualidade de metas a

    serem atingidas em termos prticos) relativas insero de povos indgenas

    em sociedades subsumidas a Estados nacionais, com nfase especial na

    formulao de mtodos para o tratamento das populaes nativas, operados ,

    em especial, segundo uma definio do que seja ndio. A expresso poltica

    indigenista designaria as medidas prticas formuladas por distintos poderes

    estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indgenas.14

    Foi tendo em conta estas questes e nos baseando na idia de

    que atravs da identificao da formao destes tcnicos de indigenismo

    poderamos contribuir para o debate ainda incipiente acerca da ao

    articulada em defesa dos povos indgenas que nos propomos a estudar o que

    se delineava para ns como sendo nosso objeto. Pretendamos demonstrar

    como pessoas de diferentes origens sociais e de diferentes graus de

    conhecimento sobre os trabalhos realizados pela FUNAI, tornaram-se, a

    partir da formao oferecida pelo curso, tcnicos de indigenismo tendo certo

    grau de recorrncia no discurso e nas prticas. Como a partir da formao

    12Ribeiro, 1979. 13Lima, 1995. 14Lima, 1995:14-15.

  • 14

    recebida, o grupo de tcnicos de indigenismo passa a ter motivos ideais,

    considerando-se a formao recebida, para assumir determinado papel sendo

    enquadrado em um modelo, baseado no senso comum do que deveria ser um

    bom indigenista. A partir do contato com a questo a transformao ocorrida

    representada de maneira basicamente uniforme e segue um padro que

    se configura no perfil geral do bom tcnico de indigenismo. E finalmente

    que a FUNAI, na inteno de formar um agente que tenha uma ao

    planificada e coordenada cria o que denominamos heri isolado, que no se

    percebe como representante da poltica geral da instituio e passa a ter uma

    atuao individual considerada por ele como salvacionista.

    O que objetivamos com este trabalho acima de tudo

    identificar o processo de constituio de identidades scio-funcionais.

    Caracterizar a categoria de tcnicos em indigenismo de modo a retraar sua

    auto-representao enquanto tal. Perceber como se deu, atravs da

    documentao referente aos cursos de formao de indigenistas da FUNAI,

    o uso de contedos antropolgicos nestes cursos, bem como a mudana

    desse sistema de formao ao longo do tempo. Ainda seria nosso objetivo

    analisar como e porque se d a composio deste grupo procurando delinear

    suas caractersticas bsicas.

    Para trilhar este caminho nos apoiamos em duas frentes

    distintas de documentos. A primeira que j mencionamos, diz respeito

    fonte escrita oficial da FUNAI, compulsamos os documentos encontrados

    respeito do curso e realizamos uma leitura crtica, seguida da classificao e

    anlise deste material. Juntou-se a estes documentos um outro tipo de

    evidncia: histrias de vida construdas por meio de entrevistas realizadas

    com 12 tcnicos de indigenismo que freqentaram o curso da FUNAI e

    posteriormente foram enquadrados em alguma atividade na Fundao. Estas

    entrevistas nos ofereceram a possibilidade de trabalhar com uma perspectiva

    mais ampla. Para realizao destas entrevistas elaboramos um roteiro (anexo

  • 15

    1) que nos permitiu posteriormente traar comparaes entre as diversas

    verses. Dos entrevistados dez so residentes no Distrito Federal, um do

    Par e um de Gois. No houve uma seleo prvia dos entrevistados, o

    nico critrio adotado foi a participao em um dos cursos de formao em

    tcnico de indigenismo. As entrevistas foram realizadas no ms de julho de

    1995 uma em Goinia e as outras em Braslia, onde pudemos desenvolver

    uma parte essencial do trabalho para a realizao da presente monografia.

    A histria oral seria, portanto, o cerne da nossa metodologia de

    trabalho, considerando-a como inevitavelmente social e tendo condies de

    responder aos anseios da pesquisa. A importncia deste trabalho, entre

    outras coisas, o de trazer tona um discurso que se diferencia do oficial

    revelando um histria subterrnea como parte integrante de uma cultura

    muitas vezes relegada. De uma forma geral, a histria de vida (memria

    individual) aparece como parte reveladora e indissocivel da histria social.

    Entendemos que a histria de vida estaria necessariamente apoiada em uma

    memria social, pois toda histria de vida faz parte de uma histria mais

    geral15. Mesmo a nvel individual o trabalho da memria indissocivel da

    organizao social mais ampla.

    Para ns foi de estrema importncia a realizao destas

    entrevistas, em primeiro lugar porque ampliou nosso horizonte em termos

    das possibilidades de construo histrica, e segundo porque tornou possvel

    um mergulho ainda mais profundo no objeto em questo. Esta tcnica nos

    permitiu tambm estar lidando de forma latente com uma idia que por

    muitas vezes fica apenas no discurso: a histria feita por homens, pela

    viso de mundo construda, que antes de mais nada fruto do processo pelo

    qual eles passaram enquanto agentes histricos.

    O fato que a oposio evidncia oral baseia-se muito mais

    em sentimentos do que em princpios. Os historiadores da gerao antiga,

    15Halbwachs, 1990:53

  • 16

    que detm as ctedras e as chaves do cofre, ficam instintivamente

    apreensivos com o advento de um novo mtodo. Isso implica que no

    dominam mais todas as tcnicas de sua profisso. Da os comentrios

    despropositados a respeito de jovenzinhos perambulando pelas ruas com

    um gravador na mo, e a preocupao com detalhes insignificantes para

    justificar seu ceticismo: geralmente, uma (note bem) reminiscncia da

    impreciso da sua memria ou da de alguma outra pessoa. Alm disso,

    existe - e no somente entre os estudiosos mais velhos - um medo da

    experincia social da entrevista, da necessidade de sair do gabinete e de

    falar com gente comum. Mas o tempo abrandar a maioria destes

    sentimentos: o antigo ser substitudo; e um nmero cada vez maior

    desejar conhecer pessoalmente a experincia social e intelectual positiva

    da Histria Oral.16

    Para ns a histria oral serviu antes de mais nada como

    facilitador, no sentido de possibilitar a nossa insero em um grupo e a

    partir deste contato possibilitar uma anlise deste universo: A abordagem

    de histria de vida representa tambm o melhor caminho para se chegar

    mais perto da experincia vivida do ator - sua ideologia e sua prxis -,

    possibilitando a compreenso dos significados implcitos de suas aes, isto

    , permitindo que se esclaream as determinaes inconscientes da vida

    social17

    Pode ser que os prprios tcnicos de indigenismo que venham a

    ter oportunidade de ler esta monografia no se reconheam nas concluses a

    que chegamos, assim como na anlise feita. Por isso gostaria de deixar

    claras as limitaes deste trabalho que no pretende ser conclusivo, estando

    explcita a necessidade de um prosseguimento das pesquisas nesta direo.

    Aqui apenas pretendemos dar conta de determinados aspectos relacionados

    ao curso e ao grupo de tcnico de indigenismo.

    16Thompson, 1992:103 17Camargo, 1984:16

  • 17

    Ainda se faz necessrio salientar que todo tipo de observao

    feita parte de uma anlise global da documentao recolhida, portanto, no

    nos prendemos a casos especficos, principalmente com relao aos

    entrevistados. Gostaramos tambm de afirmar que optamos por no tratar

    os entrevistados pelo nome exatamente para no individualizar a questo,

    procurando torn-la ampla, sem no entanto despersonificar, por ser esta uma

    das grandes vantagens de se trabalhar com a histria oral, onde se constri

    um trabalho pautado na vivncia de cada entrevistado, tornando mais latente

    a noo de que qualquer homem um agente histrico e tem um certo grau

    de contribuio relativo a dar para a construo de uma leitura histrica da

    vivncia humana.

    O tema trabalhado nos deu possibilidade de ter uma experincia

    singular, a de pesquisar um assunto que no est distante historicamente de

    nossos dias. Confessamos que isto trouxe dificuldades no esperadas.

    Primeiro, porque no encontramos trabalhos cientficos que abordassem a

    questo, nosso estudo bibliogrfico, como j foi dito, ficou limitado a

    publicaes que enfocassem de forma ampla a poltica indigenista. Segundo,

    porque no nos embrenhamos s em um debate historiogrfico, mas tambm

    em um problema que est sendo vivido e em torno dele se colocam

    diferentes pontos de vista. Neste sentido, temos nossa frente o desafio de

    trabalhar com uma questo que ter a crtica no s da academia, mas

    tambm dos prprios atores deste processo. Esta experincia deixou a nu a

    necessidade, que nem sempre explcita no curso de histria, de um

    compromisso com o que dito. Por favor no interpretem mal, estamos

    apenas querendo dizer que como os mortos no ressurgem para reclamar as

    suas opinies, geralmente ficamos mais vontade para fazer valer o nosso

    ponto de vista.

    Sabemos que a histria do tempo presente, mais do que

    qualquer outra, por natureza uma histria inacabada: uma histria em

  • 18

    constante movimento, refletindo as comoes que se desenrolam diante de

    ns e sendo portanto objeto de uma renovao sem fim. Alis, a histria por

    si mesma no pode terminar (...)18

    claro no pretendo dar conta de uma realidade que com

    certeza foi e muito mais complexa do o que pudemos perceber, por isso,

    acrescentamos a importncia de se olhar este trabalho como apenas uma das

    possveis interpretaes acerca do que foi o curso de tcnico de indigenismo

    da FUNAI.

    Como instrumental de anlise das fontes utilizamos

    principalmente a perspectiva da representao teatral, trabalhada por

    Goffman em A representao do eu na vida cotidiana19, onde se presume

    que na vida real quando o indivduo se apresenta diante de outros procura

    controlar a impresso que estes recebem da sua atuao, assim como

    importante que acreditem que o personagem que se apresenta possui os

    atributos que aparenta ter.

    A inteno seria ter elementos para estudar a FUNAI, enquanto

    estabelecimento social, do ponto de vista da manipulao da impresso,

    onde um determinado grupo de atores, os tcnicos de indigenismo, procura

    apresentar uma dada definio da situao, tendo por base o princpio de

    que qualquer indivduo que possua certas caractersticas sociais tem o

    direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira

    adequada.

    Portanto, procuraremos estudar a formao deste grupo de

    modo a retraar sua auto-representao tendo em conta que quando um

    indivduo se apresenta diante de outros tem muitos motivos para controlar a

    impresso que estes recebem da situao.

    Entendemos grupo social como uma determinada articulao

    que mantm uma forma de interao esperada entre si e tem como objetivo 18Bdarida, 1999:229. 19Goffman, 1975.

  • 19

    atingir metas e resolver problemas comuns. Esta forma de organizao seria

    fruto portanto no s de uma necessidade prtica no sentido de atender a

    interesses prprios como tambm de uma opo moral.

    Apenas pelo fato deste corpo de funcionrios ser composto por

    pessoas que primeiro fizeram um concurso e depois um curso j justificaria

    um estudo com enfoque na forma e tipo de grupo resultante deste processo.

    Acrescente-se a isto uma questo bastante relevante que diz respeito ao

    monoplio de formao exercido pela FUNAI, j que a instituio no

    considera outros meios de formao que no o seu prprio. Isto fica

    explcito quando deparamos com uma outra situao: quando temos um

    concurso para professor de histria do municpio temos que ter uma

    formao prvia em histria conferida por uma das tantas faculdades

    espalhadas pelo pas. O curso de indigenismo por sua vez tem como nico

    pr-requisito a concluso do 2- grau e no exige nenhuma formao anterior

    especfica, nem faz uma anlise curricular, ela simplesmente exige uma

    formao tida como universal. A partir da temos duas questes: primeiro,

    o no reconhecimento/no existncia de um outro tipo de formao.

    Formalmente no existe este tipo de requisito para ser tcnico de

    indigenismo, ela durante muito tempo veio se dando a partir de uma

    vivncia prtica, de um contato com uma determinada realidade e com a

    possibilidade, ditada por diversas especificidades, de ter contato com a rede

    informal de atores envolvidos com a questo. O curso tem um carter

    especial por trazer no seu bojo a possibilidade de qualificao, colocao

    profissional e realizao pessoal. Ou seja, em apenas quatro meses estas

    pessoas fazem um concurso, freqentam um curso e participam de um

    estgio, a partir da tm uma qualificao especial: a de indigenistas.

    Este trabalho de pesquisa se justifica tambm pela necessidade

    de conhecimento da administrao pblica no Brasil, em especial no tocante

    a um aparelho de abrangncia nacional que manipula, pelo seu papel de

  • 20

    tutor legal, recursos vultuosos e largas pores de terra sob a posse

    indgena.

    A pesquisa tanto mais importante pela possibilidade de

    contribuir para o estudo da camada especfica, que a partir da formao

    oferecida pela FUNAI, teve como responsabilidade colocar em prtica a

    poltica indigenista da instituio, quando esta existia, enfrentando inmeras

    contradies e dificuldades por estar em uma situao especial: a de

    mediadores em um conflito, ora velado, ora aberto, entre as comunidades

    indgenas e a sociedade brasileira.

    Duas ltimas justificativas podem ser colocadas: primeiro,

    porque pretende ser uma anlise cientfica sobre uma questo que vem at

    hoje se desenrolando tendo por base o bom senso; e, segundo, por ser um

    problema atual de bastante relevncia, considerando-se que no h uma

    poltica governamental estabelecida no sentido de qualificar funcionrios

    para atuarem diretamente nas aldeias indgenas.

    CAPTULO 1

    O CURSO DE TCNICO DE INDIGENISMO E SEUS

    OBJETIVOS

  • 21

  • 22

    Os cursos de tcnico de indigenismo comearam a ser

    organizados em 1970, pouco tempo depois da extino do Servio de

    Proteo ao ndio (SPI) 20 e em seguida a criao da nova instituio que

    estaria encarregada de tratar do problema indgena, Fundao Nacional do

    ndio (FUNAI). Este curso, que a princpio piloto, ou seja, estava sujeito a

    mudanas, pretendia formar funcionrios para atender a uma necessidade

    que no era nova, mas que porm se perpetuava h muito tempo sem ser

    resolvida, ou seja, a relao direta entre instituies governamentais e os

    povos nativos. Esperava-se atravs do curso superar os entraves colocados

    por uma atuao que at ento tinha se pautado em um voluntarismo, tendo

    por base uma ao paternalista ou autoritria com relao aos ndios.

    A situao em que se encontrava o trabalho direto com as

    comunidades indgenas era a de uma falta de planejamento que orientasse a

    atuao dos chefes de postos. Mais do que isso: considerava-se esse pessoal

    desqualificado para exercer as funes para as quais haviam sido

    designados, o que podemos verificar na seguinte citao:

    O nosso chefe de PI elemento em geral recrutado na

    regio, compromissado com a estrutura da sociedade envolvente e de nvel

    cultural igual ao das frentes pioneiras. Numa chefia de PI, com o mnimo

    de instrumentos, condies materiais e apoio, esse elemento entra em

    estado de hibernao. Alm de transformar-se num parasita para a

    comunidade, le se torna vulnervel a influncias estranhas ao trabalho

    indigenista. Qualquer elemento que chegue melhor aparelhado (como os

    missionrios, pesquisadores, etc.) assume de imediato a liderana. Vale a

    20 O SPI, ainda como SPILTN, desde 1910 vinha sendo a instituio responsvel pela tutela dos povos indigenas; em 1967 este servio foi extinto e criou-se ento a FUNAI (Fundao Nacional do ndio)

  • 23

    pena ressaltar, que o silvcola muito sensvel a todo aparatus, e formas

    que traduzam prestgio.21

    Analisando esta citao para ns fica claro o pano de fundo da

    inteno de certos grupos da FUNAI em criar o curso de tcnico de

    indigenismo, ou seja, ocupar um espao que at ento estava vulnervel

    penetrao de idias no comprometidas com a viso da instituio a cerca

    de como deveria ser o trabalho com as comunidades indgenas. Esta falta

    de ideologia daqueles que trabalhavam junto as comunidades indgenas no

    fazia mais do que refletir a falta de uma linha clara de atuao da prpria

    instituio, que no tinha tal viso codificada. Mais do que isso fica claro

    tambm a necessidade declarada de exercer o seu papel plenamente,

    ocupando de forma efetiva o espao poltico e fsico para qual o rgo havia

    sido criado. Portanto, atravs do curso pretendia-se mais do que apenas

    formar novos agentes para ocupar uma determinada funo: pretendia-se

    tornar-se a FUNAI efetivamente tutora das comunidades indgenas,

    justificando de forma prtica a sua criao.

    Diante desta situao, e pretendendo criar novas bases de

    atuao, a instituio toma para si a responsabilidade de selecionar,

    capacitar e dar orientao para os novos agentes estatais que iriam estar em

    contato direto com as populaes indgenas, para tanto decide organizar um

    curso que atendesse a essa demanda.

    O curso parte assim de uma crtica atuao que vinha se tendo

    com relao s comunidades indgenas mais especificamente atuao dos

    chefes de posto, que era o funcionrio incumbido de estar em contato

    permanente com as comunidades indgenas, morando com estas

    comunidades e prestando o atendimento necessrio e, mais do que isso,

    sendo l um representante da instituio governamental incumbida da tutela

    dos povos indgenas. Assim como, da necessidade de ocupar a unidade base

    21Ramalho, Edson. 1969, p6.

  • 24

    da instituio afim de salvaguardar a integridade do rgo e da poltica

    indigenista governamental.

    A criao do curso neste sentido procura se justificar pela

    necessidade de acabar com o empirismo e o paternalismo, a ausncia de uma

    atuao planejada, considerados entraves para o desenvolvimento. Partindo

    da necessidade de reestruturar sua unidade base, a chefia de posto indgena

    -tida como ponto de estrangulamento da estrutura administrativa da poca -

    o curso visava capacitar recursos humanos nas tcnicas de Desenvolvimento

    Comunitrio. Nesta parte das instrues gerais do curso de 1978 temos um

    exemplo disto:

    A atividade do Tcnico em Indigenismo, deve ser exercida

    visando, principalmente, a ascenso do indgena junto sociedade

    envolvente, capacitando-o a gerir seus prprios bens e interesses,

    respeitando-se suas lideranas e as diferentes normas culturais dos

    diversos grupos.

    A orientao aos indgenas baseia-se na Antropologia

    Aplicada, que, atualmente constitui uma das mais importantes metas da

    FUNAI.22

    A tentativa, portanto, girava em torno da busca de racionalizar

    o trabalho e torn-lo compatvel com o desenvolvimento econmico

    pretendido. Desejava-se regulamentar uma atuao, criar um corpo de

    funcionrios que estivesse altura da funo, capacitar pessoal para uma

    atuao de forma planificada, que, pretendia-se, fosse regida por uma nova

    tica, um princpio que levasse em conta a especificidade de cada

    comunidade, atendendo a uma orientao centralizada e transformasse uma

    realidade confusa em algo articulado. A partir do curso pretendia-se no s

    22Documento sem ttulo do Departamento de Planejamento Comunitrio. 1978, p3.

  • 25

    formar novos agentes mas, mais do que isso, tornar vivel um projeto mais

    amplo que passava por um novo tipo de relacionamento com as

    comunidades indgenas. O mtodo anterior, tido como simplrio, estaria

    desta forma superado.

    ` Segundo a avaliao de um dos entrevistados o processo se deu

    da seguinte forma:

    (...) ns entramos numa poca que era um regime militar

    aonde a palavra era desenvolvimento, desenvolver, fazer grandes projetos

    agropecurios, aquela coisa. Eles tinham essa coisa dentro da FUNAI, que

    era uma coisa tambm geral do Brasil, o milagre, o desenvolvimento e a

    gente foi formado para isso, (...). Uma das matrias mais fortes do curso

    era o tal desenvolvimento comunitrio, quer dizer como que a gente ia

    pegar uma comunidade que propenamente primitiva e transforma-la em

    produtora de alimentos, de gros, criadores de gado e tal (...).

    (entrevistado B)

    Ao todo foram realizados 10 cursos entre 1970 e 1985, e no

    houve um intervalo uniforme entre eles. Como critrios para que se

    freqentasse o curso tinha-se como norma bsica a escolaridade mnima de

    2 grau e a aprovao em um concurso pblico realizado especificamente para cada curso. Alm destes candidatos tambm freqentavam o curso

    funcionrios da FUNAI alocados na funo de chefe de posto mas que no

    tinham a qualificao especfica para o cargo, estes funcionrios eram

    escolhidos pelo administrao local e, aps terem feito um exame

    psicotcnico, eram encaminhados para Braslia, onde assistiriam as aulas.

    O concurso de seleo era realizado a nvel nacional,

    constavam dele provas que nos cursos de 1970 a 1981 foram de portugus,

    matemtica, histria e geografia. As provas por serem de mltipla escolha

  • 26

    limitavam a possibilidade de percepo do candidato, no oferecendo meios

    para uma avaliao aprofundada de um possvel desenvolvimento mais

    elaborado.

    Especificamente no ltimo curso que foi realizado em 1985,

    houve uma alterao na forma de avaliao, dando-se maior nfase

    redao com tema sobre a problemtica indgena. Neste sentido, percebesse

    uma preocupao que passa, no s pela educao formal, mas tambm por

    um aprofundamento em direo a identificao da formao moral e social

    do candidato, alm desta redao tambm havia uma prova de

    conhecimentos gerais.

    Cabe ressaltar que o curso de 1985 teve determinadas

    especificidade que sero posteriormente desenvolvidas. Aqui nos deteremos

    ao que foi norma bsica da maioria dos cursos. Para ns, por hora, basta ter

    claro que o concurso obedecia s normas formais de seleo, no sentido de

    avaliar a educao formal, isto , o curriculum oficial das escolas. Alm

    desta avaliao tambm eram realizados os testes psicotcnicos, que atravs

    de provas individuais, pretendiam traar o perfil do candidato, procurando

    perceber se este se encaixava nos padres estabelecidos como normais.

    Tambm constava da seleo a realizao de uma entrevista que ao nosso

    ver tinha como objetivo bsico um conhecimento mais aprofundado do

    candidato procurando perceber quais suas aspiraes ao se candidatar a uma

    funo que acarretaria tantas transformaes no seu modo de vida e exigiria

    dele uma dedicao profissional extrema.

    Ultrapassada esta etapa o candidato se deslocava para Braslia

    onde ento receberia a formao para atuar como tcnico de indigenismo da

    FUNAI, podendo exercer as mais diferentes funes, que na maioria das

    vezes se limitava de chefe de posto. Neste momento o aluno era avaliado

    especificamente em cada uma das matria oferecidas e tendo recebido grau

    de aprovao suficiente em todas era ento encaminhado para o estgio.

  • 27

    A) OS CURSOS

    Os cursos, at 1981, seguem, em linhas gerais, o mesmo

    padro, tendo nas matrias Antropologia Aplicada, sade Desenvolvimento

    Comunitrio o seu principal eixo. Visavam transformar as comunidades

    indgenas em produtoras agrcolas e pecurias, resguardando alguns de seus

    traos culturais e garantindo sua integridade fsica. A justificativa dos

    cursos, assim como, as matrias oferecidas sofrem pequenas alteraes de

    um curso para outro e no justificam uma anlise retida de cada um deles,

    alm do que, isso acarretaria um desvio do fio condutor da monografia e

    principalmente por no ser imprescindvel ao tipo de abordagem pretendida.

    Portanto, optamos por englobar estes nove cursos em um nico bloco.

    De um modo geral os cursos foram estruturados com o intuito

    de formar um tcnico indigenista completo, no sentido de que este

    funcionrio deveria estar preparado para atender a toda gama de

    necessidades surgidas no exerccio da chefia de posto. Neste sentido o curso

    tinha uma estrutura que pretendia oferecer uma formao ampla, tornando o

    aluno apto a enfrentar problemas relacionados aos mais diversos campos de

    atuao. Eram oferecidas matrias que atendiam tanto a uma formao mais

    terica, quanto matrias que enfocavam questes mais prticas. Em um

    curto espao de tempo, apenas dois meses, o aluno recebia noes de

    etnologia, operao de rdio, saneamento bsico, primeiros socorros,

    burocracia interna da FUNAI etc. Atravs do quadro que apresentamos

    abaixo pretendemos dar um panorama do que constitua, de um modo geral,

    o cursos:

  • 28

    DISCIPLINAS CARGA HORRIA

    1) Antropologia Aplicada - 45 horas - 30 aulas

    2)Desenvolvimento Comunitrio - 39 horas - 26 aulas

    3) Legislao - 06 horas - 4 aulas

    4)Introduo Adm. Geral - 12 horas - 8 aulas

    5) Telecomunicaes - 09 horas - 8 aulas

    6) Educao - 09 horas - 6 aulas

    7) Palestras - 05 horas - 3 palestras

    8) Sade - 42 horas - 28 aulas

    ( Programa Referente ao curso de 1975.)

    Cada uma destas disciplinas tinha um contedo bastante

    diversificado sendo o de antropologia aplicada, por exemplo, o seguinte: a

    antropologia aplicada e a compresso das culturas indgenas; o ndio

    brasileiro em perspectiva histrica e geogrfica; a diversidade lingstica;

    ecologia e explorao do meio-ambiente; sistemas de relaes sociais;

    organizao poltica; sistemas de crena e conhecimento; contato intertribal;

    o impacto da civilizao e a ao indigenista. Pretendia-se com toda esta

    gama de informaes fazer com que a pessoa preparada pelo curso fosse

    capaz de, mesmo estando isolada, sem qualquer tipo de apoio oferecido pela

    FUNAI, atender a demanda de um trabalho que era multifacetrio. O aluno

    alm de lidar com uma srie de informaes, supostamente novas, tomava

    contato com uma forma de pensar a questo indgena. Recebia no s uma

    preparao prtica como tambm um aparato ideolgico que tinha como

    finalidade dar sustentao s atividades subseqentes e munir moralmente o

  • 29

    aluno para enfrentar uma srie de adversidades a que estaria sujeito. Neste

    momento pretendia-se contagi-lo com a idia da necessidade de um

    sacrifcio pessoal em prol da questo indgena. Alm disso eram delimitadas

    as regras de participao da instituio e de um procedimento moral tido

    como correto.

    Este curso ainda fazia parte da seleo e o candidato que no

    correspondesse s exigncias formais era desligado do processo. Para

    proceder esta avaliao o aluno era submetido a provas especficas de cada

    disciplina. Em termos pedaggicos o princpio do curso era regido pela idia

    bsica de que o tcnico teria que ser incentivado a exercer uma liderana

    democrtica, por isso pretendia-se no tolhe-lo com exigncias autoritrias,

    o objetivo maior era ensinar o aluno a aprender. Como se fosse haver

    oportunidade de continuar os estudos era oferecida ao aluno uma srie de

    referncias bibliogrficas.

    Alm das aulas expositivas, conferidas por professores

    convidados pela instituio ou por funcionrios da FUNAI, o curso ainda

    contava com o recurso da utilizao de textos que em sua maioria eram

    bsicos, oferecendo apenas um suporte s idias desenvolvidas em sala.

    Eram tambm distribudas apostilas que objetivavam uma explicitao

    simplificada de questes relativas s doenas, obras sanitrias etc.

    O curso de 1985 sofre algumas modificaes com relao aos

    demais. A prova de seleo, como j foi dito anteriormente, passava a dar

    mais nfase aos conhecimentos tidos como no formais, fruto disto as

    provas centravam-se em conhecimentos gerais e o aluno teria que fazer uma

    redao com um tema preestabelecido que possibilitasse que fosse feita uma

    avaliao de fundo ideolgico a respeito do posicionamento do candidato

    sobre as questes indgenas. Questes relativas ao aspecto prtico foram

    menos enfatizadas e as questes relativas a um entendimento da situao

    indgena, bem como, a valorizao da sensibilidade prpria do aluno para

  • 30

    entender e respeitar as culturas indgenas, foram privilegiadas. Pretendia-se

    com isso fornecer ao aluno um embasamento que o capacitasse para assumir

    um posto de forma autnoma tendo condies prprias de discernimento e

    adaptao em situaes cotidianas e extremas. Este curso trazia tambm em

    linhas gerais uma nova perspectiva para o que deveria ser a funo do chefe

    de posto, quando em seu folheto explicativo dizia:

    Em linhas gerais caber ao indigenista a coordenao dos

    trabalhos assistncias desenvolvidos na rea indgena e o assessoramento

    da comunidade no seu contato com a sociedade envolvente. Eventualmente

    poder vir a exercer atividades de coordenao especficas, ligadas as

    reas de educao, sade ou outras, dependendo sobretudo de sua

    formao e aptido.23

    Neste sentido h uma mudana formal do eixo do curso que

    deixava de dar nfase a uma transformao necessria das comunidades

    indgenas em produtoras. O que se pretendia era tirar o foco do chefe de

    posto, que passaria a atender a uma demanda ditada pelas comunidades,

    sendo assim um assessor que pudesse oferecer sustentao as decises das

    comunidades.

    interessante tambm notar como os cursos aparecem como

    mais um expoente da briga interna entre os diversos grupos da FUNAI.

    Especificamente no curso de 85 ocorre uma crise interna na FUNAI que

    atribuda a uma tentativa de um destes grupos em, a partir do curso de

    indigenismo, formar os novos indigenistas de acordo com a viso deste

    grupo. A partir da se instaura uma crise que, entre outras coisas, fez com os

    aprovados neste curso tivessem dificuldades em serem efetivamente

    contratados pela instituio. Notamos aqui um outro aspecto relativo ao

    curso e as transformaes que nele foram ocorrendo ao longo de sua

    23FUNAI e Ministrio do Interior. Folheto explicativo do curso de 1985.

  • 31

    existncia: a possibilidade de a partir desta formao inicial, onde os alunos

    ainda no tem uma concepo formada do que seja o trabalho indigenista,

    forjar adeptos de uma determinada forma de pensar a FUNAI e problemtica

    indgena.

    B) O ESTGIO

    O estgio, que durava cerca de 2 meses, tinha como objetivo

    complementar a formao recebida na parte terica do curso, o aluno era

    ento deslocado para um posto indgena escolhido pela FUNAI. Estando l,

    a princpio, o aluno encontraria um chefe de posto que iria orient-lo neste

    perodo. Nesta ocasio ele teria a possibilidade de conhecer e praticar as

    mais diversas atividades do chefe de um posto indgena. Fruto disto, o

    estagirio tinha que redigir um relatrio sobre esta experincia, obedecendo

    determinados pontos preestabelecidos, para sua observao.

    Estes pontos davam conta de um levantamento, que talvez nem

    a prpria FUNAI tivesse, e pretendia diagnosticar a situao geral do posto

    respondendo, em geral, aos seguintes aspectos:

    1 Terras: localizao, rea e aspecto jurdico;

    2- Comunicao: externa e interna;

    3- Aspectos Naturais: clima, topografia, hidrografia, vegetao e fauna.

    4- Sede

    5- Benfeitorias

    6- Pessoal: encarregado e auxiliares (professores)

    7-Atividades administrativas: (saneamento bsico, obras, melhorias e

    conservao) gua, lixo, fossa e habitao

    8- Populao da rea

  • 32

    9- Atividades: escolar, coleta e caa, lavoura, criao, artesanato, regime

    de trabalho e contato com a civilizao.

    (Planejamento de relatrio do curso realizado em 1973, que durou de 1/11/73 at

    31/12/73)

    Enfim, o estagirio era incumbido de traar em pormenores o

    quadro da regio, assim como da comunidade e da atuao da FUNAI.

    Analisando os pontos centrais que norteavam este relatrio percebemos que

    a FUNAI, que como j foi dito anteriormente, tinha sido criada h pouco

    tempo, procurava atravs do relatrio esquadrinhar a realidade dos postos. O

    candidato para tanto no recebia nenhum preparo metodolgico especifico

    para proceder estas observaes. Consideramos provvel a possibilidade de

    que a escolha de posto atendesse antes a uma necessidade de averiguao da

    realidade do local, do que, de um possvel exemplo a ser seguido.

    interessante notar que este foi um critrio de avaliao de todos os cursos e

    que os aspectos a serem codificados eram os mesmos.

    No queremos dizer com isso, no entanto, que o aluno, ao

    observar os pontos estabelecidos, no pudesse extrapolar o que havia sido

    dado como orientao bsica no curso terico, o que talvez o possibilitasse a

    atentar para determinados pontos bsicos de um posto, mas consideramos

    que este no era o objetivo central do pr-estabelecimento de determinados

    aspectos a serem observados.

    Vale enfatizar que o estgio, a princpio, era o momento de

    primeiro contato do aluno com os indgenas e com a nova atividade que por

    eles seria desenvolvida. Na prpria data do estgio realizado no curso de

    1973 temos clara a pretenso de se testar o desprendimento do candidato de

    relaes sociais prprias da sua cultura, o aluno iria passar o Natal e o Ano

  • 33

    Novo entre os ndios, no como se estivesse de frias, mas sim, tendo

    dimenso de qual seria o tipo de sacrifcio exigido durante sua atuao como

    chefe de posto.

    O objetivo de se fazer um estgio neste caso atende ao que

    normalmente se tem como princpio: dar uma complementao prtica a

    uma formao terica anterior. Tendo isto como base e acrescentando que

    especificamente neste caso tratamos de um conhecimento disperso que no

    conta com uma formulao, anterior e precisa, do que seria uma prtica

    ideal, gostaramos de acrescentar que o estgio para este curso tem uma

    caracterstica mpar, qual seja, a de colocar o aluno em contato com o chefe

    de posto que estaria atuando no local do estgio, segundo suas prprias

    convices, para que a partir deste contato tivesse possibilidade de,

    confrontando os conhecimentos tericos do curso com esta prtica,

    desenvolver uma percepo prpria do que seria um possvel trabalho com

    as comunidades indgenas.

    Este pequeno painel de como eram realizados os

    cursos atende necessidade de se ter em conta a estrutura filosfica bsica

    que serviu de alicerce para a formao de uma mentalidade tpica do tcnico

    de indigenismo, claro que a isso juntaram-se outros fatores, mas

    gostaramos de deixar claro o papel que teve este primeiro contato formal

    com a questo indgena para os alunos do curso. Enfim este momento

    aparece como uma forma de rito de iniciao, onde so delineados dois

    aspectos fundamentais: a insero do candidato em um corpo de

    funcionrios especfico e a definio dos parmetros de um perfil ideal para

    o tcnico de indigenismo.

  • 34

    CAPTULO 2

    PORQUE SER UM INDIGENISTA

  • 35

    necessrio comear este captulo procurando explicar a sua

    importncia para o restante do trabalho a ser desenvolvido. Um primeiro

    aspecto que gostaramos de destacar que a partir da motivao inicial

    para se fazer o curso que o candidato vai comear a travar um contato com a

    instituio, ou seja, o tnus do princpio desta relao estar pautado neste

    primeiro modo de ver a possibilidade de trabalhar na FUNAI. Em segundo

    temos a conseqente comparao entre os diversos fatores de motivao

    estabelecendo a partir da um dos elementos do perfil deste grupo de

    homens. O terceiro aspecto que gostaramos de destacar que a partir deste

    ponto teremos como estabelecer possveis diferenas entre a concepo

    inicial do que seria este trabalho em seu significado mais imediato e o

    discurso assumido a posteriori que j traz a carga da formao assim como

    os anos de prtica dentro da FUNAI.

    Antes de falarmos propriamente da motivao para se fazer o

    concurso vamos fazer um breve parnteses para procurarmos perceber as

    origens destas pessoas que so distintas e que num determinado momento

    parecem trilhar numa mesma direo. J na localizao geogrfica temos

    uma diversidade enorme principalmente por se tratar de um concurso a nvel

    nacional, quanto ao nvel de formao a variao vai do segundo grau

    tcnico ao mestrado passando por graduaes em: jornalismo, economia,

    arquitetura e engenharia. Alm destes aspectos j mencionados temos

    tambm a grande diferena de atividades desenvolvidas na poca do curso

    que tambm eram bastante distintas: segurana, jornalista, professor,

    pesquisador, desempregado etc. claro que esta disparidade a nvel de

    formao e informao cria uma grande controvrsia: ao mesmo tempo que

    gera uma situao difcil de contornar no sentido de procurar diminuir a

    heterogeneidade da turma afim de que houvesse um caminhar conjunto,

    cria-se tambm uma situao bastante favorvel no sentido de possibilitar

  • 36

    uma troca de experincias bastante construtiva. Estes fatores vo depender

    sobretudo da forma como o curso era encaminhado, mas avaliamos que, de

    um modo geral, e principalmente por ser esta turma acrescida de

    funcionrios que j vinham desempenhando o papel de chefes de posto,

    alm da exiguidade de tempo em que o curso era realizado, o curso tinha um

    desenrolar nem sempre satisfatrio para toda a turma.

    Como exemplo disto destacamos o depoimento de um dos

    entrevistados que ressalta esta dificuldade. Ele j vinha exercendo a

    atividade de chefe de posto h cerca de 5 anos e por ter apenas a formao

    de tcnico agrcola, considerada insuficiente, foi convocado a fazer o curso.

    Por estar enfrentando problemas jurdicos na sua rea de atuao com

    relao a disputas de terra e por j ter uma gama de informaes que

    permitia refletir sobre o que estava sendo colocado, ele, junto com outros

    alunos-funcionrios, monopolizavam as discusses procurando solues

    para problemas que estavam em pauta no trabalho que vinha sendo

    desenvolvido:

    (...) j que 50% das vagas foram reservadas para

    funcionrios, foi excelente porque tinha muitas pessoas que a gente j ...

    Foi uma oportunidade de rever amigos que a gente j conhecia, foi uma

    oportunidade, talvez uma oportunidade impar, porque ns tivemos

    oportunidade de trocar informaes, porque nesse curso, j que 50% das

    vagas eram para funcionrios da FUNAI. Ento l voc tinha por exemplo

    de Roraima, como tinha de Amap, So Paulo, Mato Grosso do Sul,

    Rondnia, ento aquele pessoal que j era funcionrio voc ... A gente

    sempre ficava ali, o relacionamento foi timo, foi excelente, principalmente

    a convivncia que foi boa, mas principalmente essa oportunidade de trocar

    experincia. E eu acho que foi ainda melhor para aqueles 50% que estavam

    entrando na FUNAI porque, alm das aulas que eram ministradas no curso

  • 37

    para preparao do curso, eles tiveram tambm oportunidade de conviver

    com pessoas que j estavam na rea, que j tinham uma experincia.

    (entrevistado J)

    Aqui temos dois problemas que vo perpassar no s o curso

    como as atividades posteriores dos chefes de posto: a prpria forma do

    curso com a dificuldade decorrente disto e a no continuidade de um

    trabalho de formao/informao realizado depois desta formao inicial.

    A informao anterior ao curso do que seria indigenismo passa

    por graus diferentes. Metade dos entrevistados no tinha uma opinio

    formada sobre o assunto. O que tinha ouvido falar vinha de jornais e

    revistas. De uma forma geral eram indiferentes questo indgena. Alguns

    deles justificam sua ligao com a questo indgena como uma coisa

    intuitiva como por exemplo neste primeiro caso:

    ... via filmes de ndios e alguma coisa dentro de mim me

    chamava a ateno para o ndio, no sei o que era, acho que o ndio

    muito descriminado pela sociedade, eu tambm fui como menino, como

    pobre e falei: um dia se eu tivesse oportunidade de trabalhar com um povo

    para compensar aquilo que eu passei, que ningum pode me ajudar, a veio

    a oportunidade, deu certo e eu fui luta, fui ajudar os caras...

    (entrevistado H)

    E neste outro:

    ... quando era Hippie usava roupas de ndio e meu apelido

    era estrela vermelha, sempre brinquei de ndio tinha uma ligao astral

    com ndio. Mas no sabia se existia ndio, como era, porque no tinha

    notcias como hoje sobre a questo. (entrevistado M)

  • 38

    Apenas um dos entrevistados tinha uma certa averso aos povos

    indgenas por ter tido familiares trucidados por ndios da regio do Gurupi

    no Par. Superou esta dificuldade de relacionamento com as comunidades

    indgenas quando comeou a freqentar a escola e em uma visita ao Museu

    Geldi, quando passou a entender que eles eram produto de um processo

    histrico. Os cinco restantes j tinham tido algum contato com a questo

    antes de entrarem para a FUNAI. Estes, principalmente por se considerarem

    aventureiros e preocupados com as questes sociais, procuraram pelos mais

    diferentes meios tomar contato com um mundo diferente, onde se vivia no

    mato e se tinha outra perspectiva de uma vida em sociedade.

    De uma forma geral antes do curso os entrevistados no tinham

    uma militncia poltica organizada. Somente dois deles j tinham

    participado de agremiaes estudantis no curso universitrio, e apenas um

    deles prosseguiu na militncia tendo sido ativista de dois partidos polticos

    de esquerda.

    A forma como estas pessoas ficaram sabendo do concurso

    demonstra a casualidade com que se deu este primeiro contato com a

    instituio. A grande maioria dos entrevistados ficou sabendo, quase

    que por acaso, atravs de amigos, anncios em jornais, cartazes etc. Apenas

    trs dos entrevistados demonstraram j ter um interesse anterior em atuar

    especificamente como tcnico de indigenismo da FUNAI, buscando desta

    forma efetivar profissionalmente a experincia anterior que j tinham com

    relao as comunidades indgenas.

    A noo do que seria a atividade a ser desenvolvida tambm se

    restringia a um grupo menor que j tinha tido algum tipo de aproximao

    com a instituio ou com pessoas que atuavam nela.

    As motivaes para se fazer o curso de tcnico de indigenismo,

    dentre os entrevistados, so bastante variveis. Giraram em torno de

  • 39

    questes que vo de uma falta de motivao geral para com qualquer outra

    atividade, atrao pelo salrio que era considerado bom ou uma forma de

    institucionalizar uma experincia anterior de trabalho.

    Podemos neste sentido dividir em subgrupos os entrevistados

    tendo em conta o foco da motivao para se fazer o concurso para tcnico de

    indigenismo.

    Num primeiro momento falaremos daquele grupo que se

    mostrou majoritrio entre os entrevistados que teve como sua principal

    motivao a questo salarial. Neste grupo encontramos pessoas que estavam

    desmotivadas profissionalmente ou que no tinham uma colocao

    profissional definida. Para estas pessoas o contato inicial com a questo

    passou por uma necessidade prtica de busca de uma remunerao decente e

    fixa. Isto fica claro quando analisando os depoimentos encontramos

    referncias explcitas ao ganho que possivelmente se teria, um dos tcnicos

    de indigenismo diz:

    ... Eu ia ganhar oito vezes mais do que eu ganhava em

    Braslia. (entrevistado H)

    Aliada a esta remunerao, considerada como atraente, temos a

    baixa necessidade de gastos na atividade a ser desempenhada j que em uma

    aldeia indgena muito pouco se gastava, a economia conseguida

    possibilitava a realizao de uma poupana que em outras condies no

    seria possvel. Alm disto temos um aspecto de no menor importncia que

    diz respeito estabilidade no emprego, j que se tratava de um cargo

    pblico conquistado atravs de concurso, que certamente traria tambm

    outras vantagens.

    Dentre os entrevistados temos um outro grupo com

    caractersticas bem demarcadas. Estas pessoas j tinham de alguma forma

  • 40

    tido contato com a questo indgena e mais do que isso, em graus diferentes,

    j tinham trabalhado concretamente com comunidades indgenas. Neste

    grupo encontramos exemplos interessantes como o caso do entrevistado

    que j vinha trabalhando com os irmos Villas-Boas h cerca de quatro

    anos. Este trabalho, que era no era remunerado, vinha se desenvolvendo de

    forma continua e serviu como experincia prtica de trabalho:

    Eu tomei contato (com a questo indgena) atravs dos

    Villas-Boas, o Orlando e Claudio Villas-Boas, eles eram, na poca em que

    eu era muito jovem, eram os sertanistas mais famosos que tinha dentro do

    Brasil. Eu tinha uma tendncia muito grande, chegava em poca de frias,

    essas coisas, todo mundo gosta de baile, e meu negcio era ir tentar pescar,

    ir caar, eu gostava de mato. (...) De forma que atravs do Orlando, que em

    1961 mais ou menos, um ano depois da criao do parque, quando a pela

    primeira vez eu fui ao parque do Xingu, tomei contato com a realidade

    indgena. E a eu passei muitos anos auxiliando o Orlando (...).

    (entrevistado E)

    O entrevistado considerava o curso irrelevante para sua

    formao, pensava e continuou pensando aps o curso, que ele nada

    acrescentaria na sua formao. Neste caso, e no de mais dois entrevistados,

    temos a situao que chamamos de ratificadora, porque estas pessoas

    procuraram atravs do concurso apenas profissionalizar a atividade que j

    vinham desenvolvendo. O concurso aparece assim como possibilitador de

    insero efetiva na instituio responsvel pela guarda dos povos indgenas.

    Aqui, voltamos a abordar uma questo que foi levantada no captulo 1 e que

    diz respeito ao objetivo da FUNAI de tornar efetiva a sua atuao

    monopolizadora da ao tutelar. Para colocar em ao tal tarefa, consegue

    captar uma mo-de-obra que j vinha atuando de forma dispersa, ou seja,

  • 41

    sem uma orientao/controle direto do rgo que, afinal de contas, deveria

    ser o responsvel por este trabalho. Neste caso, podemos enquadrar tambm

    a reciclagem dos j funcionrios da FUNAI (SPI) -utilizo a palavra

    reciclagem entre aspas porque na verdade estes funcionrios nunca foram

    efetivamente preparados para ocuparem a funo de Chefe de Posto, e nem

    to pouco participaram de um plano especifico de reciclagem, eles apenas

    fizeram parte do curso dirigido para uma turma de iniciantes que tinham

    feito um concurso para assumir o cargo de chefe de posto.

    Para os entrevistados que j tinham uma prtica anterior, no

    institucional, o curso aparece como a forma, mesmo no sendo a ideal, de

    continuar uma atividade de forma auto-sustentada. O concurso traz a

    possibilidade de continuar a desenvolver o trabalho que j vinha sendo

    realizado s que contando agora com uma infra-estrutura, mesmo que fosse

    mnima.

    Um outro aspecto mencionado, foi a ligao deste trabalho com

    questes sociais, consideramos este um aspecto que revela alguns aspectos

    fundamentais deste grupo, que tem uma conotao mais existencial. Num

    primeiro plano aparece a forte conotao relacionada ao fator aventura.

    Temos a uma marca bastante aguada do perfil do tcnico de indigenismo:

    a busca por uma realizao profissional que estivesse aliada ao desejo de

    trabalhar com algo diferente, que fugisse dos padres convencionais de

    emprego e que oferecesse a possibilidade de realizao de um trabalho que,

    em uma poca em que o pas se encontrava submetido a um regime

    ditatorial, pudesse ser transformador, o que conferia tambm um aspecto

    poltico/social a esta atuao. Aliado a estes fatores, temos tambm como

    forte motivao a falta de perspectiva de outra colocao profissional.

    Temos entrevistados que mesmo tendo uma qualificao especfica no se

    identificavam com a funo que vinham desempenhando ou iriam

    desempenhar. Existia at mesmo uma dificuldade em se encaixar na

  • 42

    sociedade da qual faziam parte. Como exemplo disto destacamos o

    depoimento seguinte:

    Eu tinha uma conscincia poltica, eu tinha uma vontade de

    fazer alguma coisa e me sentia totalmente perdido, totalmente fora do

    esquema ... talvez tenha sido isto, uma maneira de sair fora, de tentar

    alguma coisa nova, que me desse um novo horizonte.... (entrevistado D)

    Tendo apresentado os subgrupos divididos de acordo com a

    motivao preponderante para se procurar o concurso como forma de

    colocao profissional podemos agora partir para uma anlise que procure

    generalizar o que serviu de alavanca para o primeiro passo em direo a esta

    profisso que exigiria tantas transformaes na forma de viver destas

    pessoas.

    claro todos estes fatores de motivao no aparecem isolados

    uns dos outros. Neste sentido, podemos procurar delinear algumas

    generalizaes. Primeiro: notamos a ntida procura de um emprego, aqui

    independente do subgrupo temos reafirmada a necessidade de, seja por

    salrio, por identificao ou falta de perspectiva, atravs deste concurso,

    buscar uma colocao profissional. Mas o que nem todos consideraram de

    imediato que este no era um concurso qualquer, a aprovao nele

    desencadeava uma srie de mudanas no s na forma de vida, que agora

    estaria vinculada a uma outra sociedade, a uma outra forma de viver, como

    tambm na forma de pensar e conceber certas questes que antes passavam

    desapercebidas. A questo indgena requeria um engajamento que a

    princpio nem todos tinham se dado conta de que seria necessrio.

    somente com o curso que alguns dos entrevistados vo

    perceber o significado do trabalho que por eles iria ser realizado. Muitos

    deles nem ao menos sabiam o que significava ser tcnico de indigenismo,

  • 43

    por isso tiveram no curso o seu primeiro contato com este novo universo,

    com esta nova forma de encarar as comunidades indgenas, e por isso

    atribuem ao curso grande parte da sua formao.

    Independente do tipo de motivao que levou estas pessoas a se

    interessarem por um anncio de jornal ou um cartaz que dizia Jovem a

    FUNAI precisa de voc, temos que considerar tambm o que de mais

    estimulante trazia o concurso, ou seja, a conferncia de uma certa dignidade

    para estas pessoas que ou estavam desestimuladas pessoalmente, ou

    profissionalmente. Afinal o concurso no iria oferecer apenas uma

    colocao profissional, mais um cargo a ser ocupado, mais um burocrata

    que ficaria encastelado entre os seus papeis. Este concurso trazia com ele

    um novo ttulo o de indigenista, algum que estaria legalmente apto a atuar

    tendo por base um conhecimento que iria ser adquirido atravs de um curso

    terico e prtico com autoridades no assunto. A partir dali ele teria uma

    nova colocao, um novo status. Ele estaria finalmente encaixado, mas ao

    mesmo tempo estaria desencaixado por continuar ou comear a lidar com

    uma questo que vinha na contramo de tudo que era julgado convencional.

    Estaria unindo a possibilidade de trabalhar com algo transformador dentro

    do que poderamos chamar de seguro. A FUNAI apesar de no ser o

    considerado ideal ainda era o que poderia oferecer suporte material e

    ideolgico para que aquelas pessoas estivessem atuando com a questo

    indgena. A sede de aventura, de mudana, de vontade de transformar estaria

    assegurada por aquela instituio, mesmo que apenas de forma terica, j

    que nem sempre a realidade se dava desta forma. Mas necessrio que fique

    claro que o que contava era mais o fato de estar dentro, de fazer parte, de ser

    integrante, enfim de estar inserido em um grupo, do que propriamente o fato

    de tudo dar certo, ou ocorrer da forma ideal.

    Este idealismo que j estaria presente em alguns e que por

    outros foi adquirido no curso ou com o passar do tempo, aparece nas

  • 44

    motivaes mesmo que camuflado por tantos outros aspectos de forma

    bastante latente, seja na vontade de viver de forma aventureira, na vontade

    de encontrar um caminho diferente para viver em sociedade.

    Neste captulo que ainda encaramos de forma introdutria, ou

    seja, ele esta apenas criando base de sustentao para o que ser o cerne da

    monografia procuramos apenas deixar claro o que foi o incio da experincia

    destas pessoas para que elas viessem a vivenciar todo este processo que

    atualmente nosso foco de pesquisa. Para ns era essencial passar por estes

    preliminares para que o restante do trabalho tenha um sentido mais amplo e

    que possa se aprofundar nas questes centrais com mais tranqilidade. Aos

    que ainda vo nos acompanhar prometemos ser mais instigantes.

  • 45

    CAPTULO 3

    A PERCEPO DO CURSO

  • 46

    Trabalharemos neste captulo o que consideramos o mago

    desta monografia. Vemos as coisas desta forma por aqui pretendermos

    desenvolver as questes relativas ao curso em si, trabalhando aspectos que

    antes ficaram sombreados pelas temticas j desenvolvidas. Para explorar

    todos os meandros possveis vamos proceder a diviso entre os

    entrevistados: num primeiro momento vamos analisar os entrevistados que

    tiveram uma viso mais crtica do curso e num segundo momento vamos

    tratar daqueles que de uma forma geral acharam o curso vlido, conferindo a

    ele uma importncia fundamental.

    Antes de iniciar necessrio esclarecer que este captulo ser

    desenvolvido basicamente tendo nas entrevistas o seu principal ponto de

    anlise. Isto se deve a algumas questes que j foram devidamente

    exploradas na introduo deste trabalho, mas que aqui retomamos para que

    no decorrer da argumentao no haja dvida a respeito da opo feita.

    Para analisar como se deram os cursos contvamos com duas fontes, a

    documentao interna da FUNAI relativa aos cursos que foi mais

    amplamente explorada no primeiro captulo e as entrevistas realizadas com

    os indigenistas. Aqui neste captulo trabalharemos mais especificamente

    com as entrevistas, a partir delas pretendemos desenvolver toda a anlise

    relativa viso que os entrevistados tiveram do processo de realizao do

    curso bem como da repercusso deste nas suas prprias vidas, na prtica a

    ser desenvolvida j como empregados da FUNAI, e na formao ideolgica

    adquirida ou complementada a partir daquele momento.

    Os entrevistados, exceto dois deles, consideraram o curso bom.

    Estes dois candidatos no consideraram a experincia do curso relevante

    principalmente por serem pessoas que j tinham uma vivncia anterior com

    relao questo indgena. Um deles trabalhou durante quatro anos com os

    irmos Villas-Boas tendo neste tempo a oportunidade de ter um amplo

  • 47

    contato com as comunidades indgenas e considerava essa experincia como

    suficiente para que sua prtica nas comunidades fosse satisfatria:

    (...) Eu estava bem, eu tava onde eu queria, fazia o que eu

    queria. Eu ia para o Xingu, subia rio, descia, no ganhava nada , mas

    tambm no gastava nada. Nem pensava em gastar dinheiro ou qualquer

    coisa. Dinheiro era uma coisa que no passava pela cabea e ... a veio o 1

    curso, comeou a aparecer o 1 curso de indigenismo. A o Orlando falou

    para mim Vai, vai fazer. A eu falei no, no vou. Que curso de

    indigenismo vai me dar maior prtica do que a que eu tenho aqui? E

    continuei trabalhando (...). A ele falou voc tem que fazer e tal, etc. E

    por insistncia dele eu fui fazer.(...) Era simplesmente a prpria

    argumentao do Orlando para mim. Porque para mim eu no pensava, eu

    no era noivo, no era casado, era um homem livre. E ele chegava e me

    falava: Rapaz voc precisa ter um recurso regular. Ento eu me recordo

    que um dos poucos dinheiros que ele me dava era para comprar cigarro, eu

    fumava, e ele falava vai comprar cigarro pra ns a chegava l comprava

    cigarro, a gente almoava, eu ia embora para casa almoar, coisas assim.

    Uma vez ou outra quando sobrava dinheiro ele me dava alguma coisa eu

    assinava um recibo. (entrevistado E)

    O outro entrevistado teve uma experincia anterior como

    funcionrio do SPI tendo ampla convivncia com a questo j que seu pai

    havia feito parte da expedio Roncador-Xingu. Esta experincia lhe valeu

    de base para esta atuao futura e lhe conferiu certa autoridade em meio aos

    demais tcnicos de indigenismo.

    Para eles o curso no acrescentou nada, as matrias no

    trouxeram contedos novos, assim como toda a parte terica do curso. O

  • 48

    curso apenas cumpre o papel proforme de validar uma experincia anterior

    de modo a possibilitar a sua entrada na instituio.

    Para os candidatos que j tinham estas informaes o concurso

    foi a maneira encontrada para continuar realizando este tipo de trabalho s

    que agora tendo a remunerao e a estabilidade como base, nem sempre

    slida, para prosseguir com a atuao. interessante notar que estes

    entrevistados j no curso despontam como lideranas que vo se afirmar no

    decorrer do seu histrico dentro da FUNAI. Para eles o curso serve mais

    como forma de penetrar em uma estrutura fechada, que possibilitava ter

    contato com uma ampla camada de antigos e futuros funcionrios da

    instituio e a partir dali fazer um trabalho que procurasse, atravs de uma

    atuao articulada em um grupo j existente ou criado, transformar

    determinados procedimentos tidos como problemticos. Aqui identificamos

    um outro fator que caracterizava os cursos de indigenismo: ele possibilitava

    que se travassem contatos e novos recrutamentos para esta ou aquela

    posio. O que o curso trazia em si era um momento, que no fosse por

    ocasio do concurso era bastante incomum na FUNAI, de conjuno entre

    novos e antigos quadros da instituio, em que o que estava em pauta era a

    questo indgena sendo discutida nos seus mais diversos aspectos. fruto

    disto que muitas vezes o feitio virou contra o feiticeiro j que nem

    sempre a proposta oficial era a que acabava predominando na formao

    dos novos funcionrios. Por ser a nica atividade que congregava tantos

    indigenistas e futuros indigenistas ela tambm se tornava um momento de

    disputa de espao entre os diferentes grupos, um exemplo claro disto estaria

    na realizao do curso de 1985, que foi planejado e organizado com o

    intuito de deixar explcita uma crtica forma como a questo vinha sendo

    encaminhada dentro da FUNAI. As pessoas formadas por este curso

    posteriormente tiveram dificuldades de serem contratadas, sendo necessria

  • 49

    uma luta em torno do direito que eles tinham de serem efetivados como

    funcionrios da instituio.

    (...) Eu acho que esse curso que a gente fez ele, acho que j,

    pelo menos na minha cabea, eu acho que a formao no para esse tipo

    de prtica que a FUNAI vem propondo at agora, essa prtica do

    clientelismo, de uma forma de manipulao total dos ndios. Eu acho que

    esse curso seria para comear a repensar, pelo menos foi o que passou,

    comear a repensar essas relaes, tanto que eu acho que eu no consigo

    me enxergar executando esse tipo de trabalho, fazendo esse tipo de

    trabalho, se for para mim executar esse tipo de trabalho jamais eu estaria,

    eu no estaria na FUNAI, porque a no tem sentido, porque voc

    perpetuar um sistema que no tem como funcionar, no sentido de que os

    ndios possam realmente ter um objetivo mais claro, enquanto mudana,

    enquanto proposta de dinamismo at cultural na vida deles.(...) Eu acho que

    esse curso me deu embasamento para pensar essa questo com uma nova

    sensibilidade com outra sensibilidade, ampliando os horizontes e tendo

    idia de uma outra possibilidade, eu acho que esse curso foi muito

    importante para isso, que ele no formou para fazer isso da continuar

    executando aqueles mesmos tipos de trabalho. (entrevistado I)

    Para os que no tinham contato com a questo indigenista, o

    curso aparece como um momento de iniciao, que gera uma simpatia pela

    questo indgena e que confere uma nova qualificao ao indivduo:

    (...) Ele me deu possibilidade de ver realmente conceitos de

    antropologia, conceitos de lingstica, conceitos da questo histrica do

    ndio, ele me deu essa possibilidade, dever conceitos com pessoas realmente

    qualificadas passando essas coisas, de lingistica de toda essa questo, A

    Berta Ribeiro, voc ter uma aula com a Berta Ribeiro sobre cultura

  • 50

    material, isso uma coisa fantstica no meu ver, que realmente voc tem

    um aprendizado muito grande com essas pessoas. (entrevistado I)

    (...) Eu adoro o curso de indigenismo, foi o que eu mais

    aprendi, aprendi mais no curso de indigenismo nesses meses poucos do que

    o que eu fiz na universidade, do que eu fiz na minha vida eu acho que eu

    aprendi mais no curso de indigenismo (...) (entrevistado M)

    (...) Me despertou essa simpatia pela questo indgena, por

    aquele tipo de situao, no curso mesmo eu comecei a, digamos, a ver com

    bons olhos, a ter uma certa afinidade com a coisa . Ento eu destaco isso.

    (entrevistado G)

    Para os que tinham algum contato anterior com a questo

    indgena, o curso serve para complementar, conferir e formalizar um

    conhecimento que at ento era desorganizado principalmente por ser fruto

    de uma atuao voluntarista.

    Eu gostei demais do curso, eu adorei o curso, eu lembro que

    eu gostei porque teve noes de antropologia e lingistica, que para mim

    foi uma revelao, como era importante esse negcio, eu fiquei

    impressionada com as aulas de lingistica, me abriu um mundo.(...) Eu

    acho que como curso, como conceitos bsicos ele nos deu conceitos

    excelentes de antropologia, uma informao histrica bem boa, uma base

    bem boa de formao histrica para gente poder se situar e ento... de

    antropologia, lingistica e histria foi muito legal (entrevistado E)

    O meu curso de indigenismo foi excelente, foi uma das

    melhores coisas que eu fiz na minha vida, porque ele me preparou para...

  • 51

    antes eu no tinha noo de medicina preventiva, curativa, no tinha, eu

    tinha aquilo porque eu tava no mato, apliquei, aprendi a aplicar injeo

    porque tava l convivendo, aquela coisa toda... as informaes por exemplo

    da legislao, a legislao fundamental que um servidor da FUNAI,

    principalmente um chefe de posto, tenha pleno conhecimento do Estatuto do

    ndio, e eu como tcnico agrcola entrei para a FUNAI no tinha nenhuma

    preparao para isso. Ento eu acho que esses ensinamentos, essas.... o

    curso em si ele muito abrangente, noes de antropologia... Eu no

    entendia nada, eu tinha ido, fui, gostei, me identifiquei, comecei a trabalhar

    e fui aprendendo ali com os ndios (...). (entrevistado J)

    .

    As turmas dos cursos, como j dissemos, eram bastante

    heterogneas, com diversidade de formao, de vivncia (urbana ou rural) e

    principalmente de experincia com relao ao trabalho com os ndios. A

    mdia de idade era em torno de 20 a 28 anos. No seguinte depoimento temos

    apresentada uma das vrias vises sobre as turmas e que se prope a fazer

    uma diviso da turma em grupos:

    (...) eu poderia dizer que ns tnhamos os seguintes grupos:

    aquelas pessoas que nasceram e se criaram na cidade que s ouvia falar do

    ndio pela televiso, pelo cinema, ento era uma oportunidade que tinha de

    conhecer ndio, ver essa outra coisa desconhecida, ele mais romntico, ele

    desperta maior ateno, esse era um grupo. O outro grupo era aquele

    grupo que gostaria de estudar, de continuar os estudos mas o mercado de

    trabalho na cidade... e tambm a famlia no tinha, ento ele queria

    (amealhar) alguns materiais, alguns bens materiais para que depois ele

    continuasse a estudar. Existia um outro grupo, isso a minha viso, o meu

    entendimento, de que sempre, mesmo que a famlia tivesse determinadas

    posses e tudo, mas ele no tinha aquela liberdade, a famlia impe

    restries, principalmente quando uma famlia estruturada e que tem bom

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