invocaÇÃo, sÚplica, poder e submissÃo - homens e deuses na literatura latina

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ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 42 INVOCAÇÃO, SÚPLICA, PODER E SUBMISSÃO - HOMENS E DEUSES NA LITERATURA LATINA Arlete José Mota 1 Podemos observar a formação de uma literatura latina propriamente dita a partir de elementos distintos na forma e no conteúdo, mas que têm pontos de convergência no que diz respeito a uma maneira de ver o homem em sociedade. Valores que marcavam um perfil dito romano, presentes até hoje no imaginário popular estão presentes. Contar feitos considerados históricos, ressaltando boas campanhas militares, fazem sobressair personagens heroicos, dignos de uma suposta ascendência divina. Além disso, contextos de batalha, em que se intercalam, se contrapõem ou se unem lutas corporais (e mentais), busca de sobrevivência em regiões inóspitas, fadiga... podem servir de terreno fértil não só a anseios por um vida material melhor, mas, principalmente de palco à imaginação ou de busca de um plano divino. Há outros caminhos que merecem nossa atenção e que de alguma forma se relacionam com o que dissemos: se perfis de heróis são delineados, não há como separá-los dos seus opositores. Atitudes de certa forma contrastivas apontam com maior nitidez as qualidades do herói. É nesse momento que surge, por exemplo, o personagem risível, como o miles gloriosus. É a partir daí que se constroem os alicerces de gêneros essencialmente ligados ao riso na literatura latina. Tem-se o homem mais frágil (recorde-se que o próprio Enéias, uma espécie de herói nacional, se apresenta por vezes em atitudes de enfrentamento de monstros que habitam seu interior). E se o personagem se apresenta mais frágil: eis o lugar da comédia, da sátira, do epigrama. Eis também, mais evidente, o lugar do comum, dos hábitos cotidianos, da vida. O homem romano desnudo, mesmo que envolto do talento de poetas como Horácio, mestre da forma e do equilíbrio, ao eviscerar comportamentos inaceitáveis. Desnudar o homem é contemplar seus vícios e vicissitudes, 1 Professora Adjunta do Setor de Latim da Faculdade de Letras da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da UFRJ. Pesquisa atual: “O Asno de ouro, de Apuleio: um estudo introdutório”. E-mail: [email protected]

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  • ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    NCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIO

    MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO

    & IX FRUM DE DEBATES EM HISTRIA ANTIGA

    2010

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    INVOCAO, SPLICA, PODER E SUBMISSO - HOMENS E DEUSES NA

    LITERATURA LATINA

    Arlete Jos Mota 1

    Podemos observar a formao de uma literatura latina propriamente dita a partir de

    elementos distintos na forma e no contedo, mas que tm pontos de convergncia no que

    diz respeito a uma maneira de ver o homem em sociedade. Valores que marcavam um

    perfil dito romano, presentes at hoje no imaginrio popular esto presentes. Contar feitos

    considerados histricos, ressaltando boas campanhas militares, fazem sobressair

    personagens heroicos, dignos de uma suposta ascendncia divina. Alm disso, contextos de

    batalha, em que se intercalam, se contrapem ou se unem lutas corporais (e mentais), busca

    de sobrevivncia em regies inspitas, fadiga... podem servir de terreno frtil no s a

    anseios por um vida material melhor, mas, principalmente de palco imaginao ou de

    busca de um plano divino.

    H outros caminhos que merecem nossa ateno e que de alguma forma se

    relacionam com o que dissemos: se perfis de heris so delineados, no h como separ-los

    dos seus opositores. Atitudes de certa forma contrastivas apontam com maior nitidez as

    qualidades do heri. nesse momento que surge, por exemplo, o personagem risvel, como

    o miles gloriosus. a partir da que se constroem os alicerces de gneros essencialmente

    ligados ao riso na literatura latina. Tem-se o homem mais frgil (recorde-se que o prprio

    Enias, uma espcie de heri nacional, se apresenta por vezes em atitudes de

    enfrentamento de monstros que habitam seu interior). E se o personagem se apresenta mais

    frgil: eis o lugar da comdia, da stira, do epigrama. Eis tambm, mais evidente, o lugar

    do comum, dos hbitos cotidianos, da vida. O homem romano desnudo, mesmo que

    envolto do talento de poetas como Horcio, mestre da forma e do equilbrio, ao eviscerar

    comportamentos inaceitveis. Desnudar o homem contemplar seus vcios e vicissitudes,

    1 Professora Adjunta do Setor de Latim da Faculdade de Letras da UFRJ e do Programa de Ps-Graduao

    em Letras Clssicas da UFRJ. Pesquisa atual: O Asno de ouro, de Apuleio: um estudo introdutrio. E-mail:

    [email protected]

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    mas tambm observar as suas relaes (supostas ou no) com crenas e valores religiosos.

    Servimo-nos do texto literrio, reconhecendo que h diferentes leituras apontadas pelas

    mais diversas metodologias de anlise textual. E sobre as relaes entre texto literrio e

    religio, por exemplo, comenta Eduardo Gross2:

    ...A relao entre literatura e religio de forma alguma

    monoplio de textos a que se atribui algum tipo de sacralidade.

    Tambm desde sempre os textos considerados profanos

    espelharam a religiosidade que os envolvia. Pode-se pensar, em

    primeiro lugar, nas grandes epopias da antiguidade textos nos

    quais arte, histria e religio aparecem entrelaadas de um modo

    que s artificialmente podem ser analisadas de forma separada.

    Por outro lado, em tempos mais recentes as tradies religiosas e

    suas divindades personificadas continuaram fornecendo vasto

    material para a produo literria basta citar o classicismo e o

    romantismo como exemplos. Talvez torne-se ainda mais

    intrigante notar que este poder inspirador termo, alis,

    notoriamente religioso da religio se mostrou tanto de forma

    direta quanto de forma sublimada, como se observa nas odes

    lricas dedicadas natureza. Parece, pois, que as belas letras tm

    representado de uma forma toda particular a sacralidade. Se a

    representao do que sagrado exige a beleza formal como

    nico veculo digno, por outro lado a riqueza esttica por si s

    parece ter sido vista como uma pretenso]ao de revelar algo que

    transcende a mera formalidade. Evidentemente que por belo,

    neste contexto, deve-se entender um conceito que transcende o

    simples gosto- uma vez que o trgico e o grotesco, por exemplo,

    tanto fazem parte da constituio do belo quanto tm sido

    utilizados para a caracterizao do sagrado.

    2 GROSS, 2002: 7-8.

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    Percebermos em poetas de diferentes fases (e gneros) da literatura latina relaes

    entre o homem romano e um chamado plano divino. Falamos em prticas de religiosidade.

    Como salienta Pedro Paulo Funari3,

    Os romanos eram muito religiosos, mas num sentido muito

    especial da palavra: consideravam o respeito aos rituais como

    fundamental para a manuteno da vida em sociedade. Esse tipo

    de religiosidade significava a crena na origem fabulosa de ritos

    cuja observncia era de importncia vital.

    Para falar da observao de prticas religiosas nos textos literrio convm, mesmo

    que sucintamente, observar algumas questes. Em primeiro lugar salientamos que o espao

    do texto, preenchido pelo escrito e pelo no escrito (dito/no dito), pode reduzir e at

    deixar incompletos certos aspectos dos atos vividos e de crenas. No poderamos deixar

    de citar, em termos conceituais, o que se refere especificamente prtica religiosa: as

    atitudes do indivduo, sejam mentais ou corporais. Curiosamente, sob o ponto de vista

    etimolgico, os vocbulos relacionados no latim aos conceitos de splica e invocao, nos

    fornecem elementos importantes para o conhecimento de um pensamento religioso

    romano.

    Quanto splica e suplicar, h os vocbulos: obsecratio (preces pblicas; rogos;

    splicas; juramento com imprecaes); obsecrare (suplicar, rogar, pedir com insistncia-

    podemos notar neste vocbulo a ideia de repetio); obtestatio (splica em que os deuses

    so tomados por testemunha); supplicium (no plural: preces pblicas, oferendas;

    presentes para obter alguma coisa de algum - h tambm a acepo de: suplcio, pena,

    castigo); supplex (suplicante - com respeito s coisas e s pessoas); suplicare (pedir,

    suplicar aos deuses; sacrificar aos deuses).

    Quanto invocao e invocar: imploratio (ao de implorar; invocao); invocatio

    (ao de invocar); precatio (ao de pedir -no plural: imprecaes, pragas); invocare

    (chamar; tomar os deuses por testemunha; chamar em socorro); implorare (implorar,

    3 FUNARI, 1993: 15.

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    pedir, solicitar); postulare (ser autor; requerente; pedir; solicitar); obtestari (tomar por

    testemunha; suplicar).

    Com um olhar mais atento a valores puramente lingusticos relativos origem dos

    termos temos a possibilidade de relacion-los intrinsecamente a aspectos jurdicos, a

    posturas mentais e fsicas do suplicante e ao estabelecimento de uma forma de contato

    entre os homens e os deuses.

    Devemos destacar que as relaes estabelecidas entre suplicante e objeto de invocao

    (no sentido amplo do termo), tangenciam situaes de poder e submisso. E a fora do

    ritual presente nessas relaes decisiva. Acentua Mariza Peirano4,

    ...partindo do princpio de que uma sociedade possui um

    repertrio relativamente definido (embora flexvel),

    compartilhado e pblico de categorias, classificaes, formas,

    valores etc., o que se encontra no ritual tambm est presente no

    dia-a-dia e vice-versa. Consideramos o ritual um fenmeno

    especial da sociedade, que nos aponta e revela representaes e

    valores de uma sociedade, mas o ritual expande ilumina e

    ressalta o que j comum a um determinado grupo. (...) Rituais

    so bons paras transmitir valores e conhecimentos e tambm

    prprios para resolver conflitos e reproduzir as relaes sociais.

    Na leitura da obra literria podemos observar a descrio de certos smbolos e ainda

    devemos levar em conta questes pertinentes a estudos que se fazem interdisciplinares,

    anlises estilstico- literrias dos textos e uma sria observao a respeito do contexto-

    levando em considerao as inseparveis correlaes entre texto e contexto. E mais uma

    vez a fora do ritual presente.

    Qualquer abordagem a respeito da literatura latina deve levar em conta certos

    conceitos como mos maiorum, fides, virtus e pietas. Seguir o costume dos antepassados

    tambm estar ligado a ideais que se destacam nos homens que habitaram os primeiros

    4 PEIRANO, 2003: 10.

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    ncleos populacionais que deram origem a Roma, como as concepes de res publica e a

    noo de liberdade. As chamadas virtudes desejadas, forjadas, e, talvez, mais prximas do

    heri Enias do que de um romano contemporneo de Virglio, mostram com clareza a

    mundividncia romana. O que ser romano, como ele se v e como v o outro. As

    manifestaes religiosas se estabelecem, claro, a partir dessa viso de mundo, o que no

    descarta um sentimento maior de crena verdadeira. O obrigatrio comparecimento a

    cultos pblicos e as prticas de uma espcie de sacerdcio domstico realizada pelo

    dominus mostram um pouco desse homem e de prticas de religiosidade. Se observarmos

    atentamente certas produes literrias, do Sculo de Ccero e da fase seguinte em

    especial, h, por exemplo, homens em busca de lenimento para dores de amor, como em

    Catulo; h indescritvel quantidade de referncias a prticas rituais e splicas ao jovem

    Augusto, para que, em meio a tormenta que se abate sobre os romanos aps a morte de

    Csar, o princeps tome as rdeas da repblica, como em Horcio - talvez o mais grandioso

    vate.

    Mas no s em textos considerados de gnero elevado que ocorrem tais fatos: o

    avarento Euclio, fina ironia de Plauto, pede proteo (ao seu tesouro) a Bona Fides. O

    asno-filsofo de Apuleio pede pela sua volta forma humana.

    Passamos a comentar sucintamente poemas expressivos, de gneros literrios

    diferentes, seguindo a ordem cronolgica da produo. No podemos deixar de citar aqui,

    entretanto, os elementos relacionados ao olhar romano para as suas crenas e rituais e sua

    ligao a ideia de do ut des. Como afirma Walter Burkert5,

    O fenmeno da ddiva, o princpio da reciprocidade e a sua

    importncia para os sistemas sociais tm obtido a ateno dos

    investigadores(...) A ddiva de presentes regula os padres de

    justia, a prtica das associaes e a circulao de bens. Sob

    uma perspectiva moderna, o aspecto econmico pode bem ter-se

    tornado preponderante, ao passo que a troca de presentes tem

    sido relegada para condio de base das economias arcaicas de

    5 BURKERT, 2001: 174.

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    todos os tipos. Fundamenta-se numa expectativa sem exceo ou,

    at, numa obrigao de recompensa. Todo presente exige um

    contra-presente.

    Ressaltamos, antes de tudo, que os poetas podem ser piedosos, irnicos, podem ser

    chamados de filsofos, mas antes de tudo so observadores. Afinal, basta pensarmos nos

    valores semnticos de carmen e vates, em lngua latina, para compreendermos o que

    representava o poder do conhecimento da palavra e as relaes entre o vate e a forma

    criadora da poesia. Sobre carmen: canto, cantiga, som da voz ou de instrumento, canto das

    aves, palavras cadenciadas, verso, poesia, poema, diviso de uma poesia, pressgio,

    predio, vaticnio, profecia, palavras mgicas, encantamento, artigo, disposio de uma

    lei. Quanto a vates: adivinho, orculo, agoureiro, ministro de um deus, profeta, vidente,

    poeta, vate, mestre em uma arte.

    E a respeito do tema relativo fora criadora da poesia, destacamos o verbete O

    texto: relato da experincia criadora, escrito por Max Bilen6

    Se admitirmos que a criao literria o meio pelo qual o

    escritor cr atingir um descondicionamento e uma autonomia de

    criao, o texto literrio que permitiu o acesso a tanto deveria ser

    suscetvel de prestar-se ao desvendamento de uma experincia

    especfica que atestasse um saber, uma tica, uma salvao. Se

    assim fosse, aquilo a ser transmitido pelo texto literrio teria

    menos a ver com o que ele conta de meramente anedtico do que

    com a experincia de um comportamento particular. Como

    aquela do mito, essa experincia anuncia a emergncia de um

    saber inefvel, supes uma lenta e dolorosa metamorfose de

    condio que permite recriar-se, transcender a condio humana,

    atingir a unicidade de uma linguagem original de tal ordem que

    todo escrito nascido dessa linguagem aparece como fundador

    num tempo tornado reversvel. Se acrescentarmos a essas

    aspiraes (que so aquelas que gostaramos de descobrir numa

    obra de arte) as provas descritas pelos prprios escritores a

    6 BRUNEL, 2005: 587

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    disperso antes da restruturao, o caos antes da coeso, a

    alienao antes da autonomia, a ausncia e a falta antes da

    alegrias e do extravasamento, o extravio e a angstia antes do

    xtase, a perda de si antes da relao da unidade formada como

    mundo, a ruptura e a separao antes do acordo e da

    comunicao - haveremos de convir que se trata, sem dvida, de

    um rito de passagem do estatuto da condio humana ao

    estatuto de uma vocao exemplar.

    Serve de exemplo a essa afirmao a ode II, 20, de Horcio, em que o poeta se

    metamorfoseia em cisne.

    Quanto aos poemas selecionados como exemplos do tema proposto em nosso

    trabalho, passaremos a cit-los, em breves comentrios, obedecendo a critrios relativos

    extenso do texto. Iniciemos com Plauto.

    H uma possvel abordagem que relaciona mecanismos do riso, como a ironia, a

    uma espcie de comportamento religioso, na fala do avarento Euclio (na Aulularia, de

    Plauto, versos 608-615), quando o protagonista pede a deusa Bona Fides a proteo para

    seu tesouro. Afinal, o velho pede Fidelidade algo que no faz parte de seu

    comportamento usual: a fides e a pietas no esto entre as suas virtudes.

    Catulo, o poeta novus do Sculo de Ccero, se apresenta, no poema 76, como pius

    (v.2) e miser (infeliz, v. 19). Suplica aos deuses que o curem da doena terrvel (taetrum

    morbum, v. 25) que o acomete: a paixo. Afinal seu comportamento para com os deuses

    (e com os homens) o faz merecedor.

    Do vate Horcio, podemos reconhecer uma quantidade expressiva de poemas,

    lembrando que daremos destaque especial aos inseridos nas Odes, em que so observados

    certos elementos ligados a crenas, rituais, magia, religiosidade. Porm, observamos

    tambm que poderamos pensar em negao de um carter religioso, como na stira I, 9

    (includa em suas Stiras), onde dialogam o poeta e o conhecido importuno falador, nos

    versos 67-71:

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    Certe nescio quid secreto uelle loqui te

    aiebas mecum. _ Memini bene, sed meliore

    tempore dicam; hodie tricensima, sabbsta; uin tu

    curtis Iudaeis oppedere? Nulla mihi inquam

    religio est At mi; sum papaulo infirmior, unus

    multorum; ...

    Sem dvida dizias que querias falar no sei qu comigo.

    lembro-me bem, mas eu direi numa ocasio melhor; hoje o

    trigsimo dia e sbado; acaso queres ultrajar os judeus

    circuncidados?. Eu no tenho religio, eu disse. Mas eu tenho;

    sou um pouco mais inseguro, um dentre muitos...

    Poderamos destacar em Horcio o carter poltico do Canto Secular, mas nenhum

    poema exemplifica melhor o tema que a ode I, 2, em que o suplicante sequer sabe a que

    deus ou deusa deve se dirigir para aplacar a verdadeira tormenta que atinge os romanos

    aps o assassinato de Csar. Otvio (o novo Csar) surge como aquele que, como princeps

    e dux, abolir o medo.

    Reflexes sobre cultos e espaos geogrficos delimitados e sobre a funo

    sacerdotal podem ser feitas a partir das odes I, 19 e I, 30, de Horcio. Na ode I, 19 tambm

    se distingue o uso de vocbulos que imprimem certa sensualidade, alm de expor relaes

    fsicas entre o poeta e seu objeto de desejo. Observemos os poemas completos:

    I, 19

    Mater saeva Cupidinum

    Thebanaeque iubet me Semelae puer

    et lasciva Licentia

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    finitis animum reddere amoribus.

    Vrit me Glycerae nitor

    splendentis Pario marmore purius,

    urit grata protervitas

    et voltus nimium lubricus adspici.

    In me tota ruens Venus

    Cyprum deseruit nec patitur Scythas

    et versis animosum equis

    Parthum dicere nec quae nihil attinent.

    Hic vivum mihi caespitem, hic

    verbenas, pueri, ponite turaque

    bimi cum patera meri:

    mactata veniet lenior hstia

    A me furiosa dos Desejos, o filho da tebana Smele e a lasciva

    Licena me mandam voltar-me para os amores terminados.

    Queima-me a beleza de Glicera, que resplandece mais puramente

    que o mrmore de Pario; inflamam-me a audcia agradvel e o

    rosto sensual de se olhar. Vnus toda se precipita sobre mim. Ela

    abandonou Chipre e no permite que eu cante os Citas e o corajoso

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    Persa dos cavalos fugitivos nem aquelas coisas que dizem respeito

    a esse tema. Ponde aqui, meninos, para mim, o altar florido, as

    verbenas, os incensos, junto com a ptera de vinho de dois anos:

    sacrificada a vtima, Vnus vir mais afvel.

    I, 30

    O Venus regina Cnidi Paphique,

    sperne dilectam Cypron et vocantis

    ture te multo Glycerae decoram

    transfer in aedem.

    Fervidus tecum puer et solutis

    Gratiae zonis properentque Nymphae

    et parum comis sine te Iuventas

    Mercuriusque.

    Vnus, rainha de Cnido e Pafos, despreza a amada Chipre e vai

    para o templo enfeitado de Glicera, que te invoca, com uma grande

    quantidade de incenso. Que, contigo, se precipitem o menino

    violento, as Graas de cintos soltos e as ninfas; sem ti, a juventude

    pouco afvel e Mercrio.

    Quanto questo da delimitao espacial do local de culto, que se destaca nas duas

    odes anteriores, destacarmos a afirmao de Zeny Rosendahl7, ao comentar os limites entre

    o espao sagrado e o espao profano:

    7 ROSENDAHL, 2002: 29-30.

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    O homem religioso sente necessidade de viver numa atmosfera

    impregnada do sagrado; por essa razo que se elaboram

    tcnicas de construo do sagrado. Esse trabalho humano de

    consagrar um espao, essa necessidade de construir ritualmente o

    espao sagrado, nos revela que o mundo , para o homem

    religioso, um mundo sagrado. Da uma contnua sacralizao do

    mundo, uma religio csmica, uma santificao da vida. O

    pensamento religioso do homem e sua situao num mundo

    carregado de valores religiosos permitem que o homem

    identifique espaos qualitativamente diferentes de outros. Espao

    sagrado, qualitativamente forte, demarcado, diferenciado. De

    acordo com a experincia religiosa h uma oposio entre o

    espao sagrado e todo o resto que o cerca.

    Na ode IV, 3 o poeta do meio-termo invoca a musa e reconhece-se como tocador de

    lira, o que significa que no o distingue um talento especial para cantar feitos gloriosos

    (como nas epopeias), mas, sim, um ingenium (talento) que se volta para o sentimento.

    H outras odes que devem ser citadas: a ode I, 10 onde invocado Mercrio, deus

    mensageiro, intrprete; a famosa metfora do navio na ode I, 14, que nos leva a crer numa

    certa hesitao em relao aos rumos que a poltica romana deveria tomar; a ode III, 13,

    fonte de Bandsia, plena de simbolismos.

    Um outro poeta a ser destacado Virglio, na Eneida, espcie de canto de louvor ao

    homem romano - e temos que recordar que uma das caractersticas do texto pico uma

    espcie de contato entre um plano humano e um plano divino. O piedoso Enias em

    nenhum momento deixa de reverenciar seus deuses, com elementos rituais e com splicas,

    como, por exemplo, no canto X, vv. 18-19:

    O pater, o hominum divumque aeterna potestas!

    Namque aliud quid sit, quod iam implorare queamus!...

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    meu pai! eterno poder dentre os homens e os deuses! Pois,

    no h outro poder que possamos invocar!

    No chamado perodo da decadncia, Apuleio, em O asno de ouro, nos fornece uma

    multiplicidade de caminhos interpretativos, que vo desde um olhar para as ruelas da Roma

    dos subrbios at uma relao do texto com os estudos filosficos a que se dedicou o autor.

    Samos do mbito da poesia, mas no poderamos deixar de citar a splica de Lcio (no

    livro 11), o protagonista, que procura retornar a sua forma humana, no s pela beleza do

    texto, mas principalmente pelas relaes estreitas com valores relativos a questes

    filosfico-religiosas. O asno suplica a uma regina caeli (rainha do cu)- qualquer que seja

    o nome e as atribuies da deusa que o socorrer. Salientamos que o asno assim se

    descreve naquele momento: laetus et alacer deam praepotentem lacrimoso vultu sic

    adprecabar (alegre e bem disposto, assim suplicava, com o rosto em lgrimas, deusa

    muito poderosa).

    Para concluir, voltamos poesia e citamos os versos de Juvenal, stira X, versos 1-

    8 e 356, que podem representar muito mais que um clamor indignado do rhetor que viveu

    nos tempos de Domiciano. Podem mostrar uma prtica religiosa, uma prtica filosfica,

    uma tentativa de pelo menos na imaginao- voltar simplicidade dos tempos da

    formao da Vrbs:

    Omnibus in terris, quae sunt a gadibus usque

    Auroram et Gangen, pauci dinoscere possunt

    uera bona atque illis multum diuersa, remota

    erroris nbula. Quid enim ratione timemus

    aut cupimus? Quid tam dextro pede concipis, ut te

    conatus non paeniteat uotique peracti?

    Euertere domos totas optantibus ipsis

    di faciles (vv. 1-8)

  • ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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    Em todas as terras, de Gdis aos Ganges e Aurora, poucos

    homens, dissipadas as nuvens da ignorncia, podem discernir os

    verdadeiros bens daqueles que lhes so contrrios. De fato, h algo

    que desejemos ou temamos utilizando a razo? O que pedes com o

    p direito, para que tu no te arrependas do esforo e do voto

    proferido? Os deuses muito favorveis, por sua vontade,

    destruiriam casas inteiras...

    E, no verso 356: orandum est ut sit mens sana in corpore sano (deve-se orar

    para que se tenha uma mente s num corpo sadio).

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