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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ CENTRO DE PESQUISAS AGGEU MAGALHÃES DOUTORADO EM SAÚDE PÚBLICA Sheila Sotelino da Rocha INVISIBILIDADE DE SITUAÇÕES DE RISCO BIOLÓGICO NO CAMPO DA SAÚDE PÚBLICA: DESAFIOS DE BIOSSEGURANÇA E BIOSSEGURIDADE RECIFE 2011

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FUNDAO OSWALDO CRUZ CENTRO DE PESQUISAS AGGEU MAGALHES

DOUTORADO EM SADE PBLICA

Sheila Sotelino da Rocha

INVISIBILIDADE DE SITUAES DE RISCO BIOLGICO

NO CAMPO DA SADE PBLICA:

DESAFIOS DE BIOSSEGURANA E BIOSSEGURIDADE

RECIFE

2011

SHEILA SOTELINO DA ROCHA

Invisibilidade de situaes de risco biolgico no campo da Sade Pblica: desafios de

biossegurana e biosseguridade

Orientadoras: Alzira Maria Paiva de Almeida

Lia Giraldo da Silva Augusto Theolis Costa Barbosa Bessa

Recife 2011

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Sade Pblica do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes, Fundao Oswaldo Cruz para a obteno do grau de doutor em Cincias.

Catalogao na fonte: Biblioteca do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes

R672i

Rocha, Sheila Sotelino da.

Invisibilidade de situaes de risco biolgico no campo da Sade Pblica: desafios de biossegurana e biosseguridade. / Sheila Sotelino da Rocha. - Recife: [s.n.], 2011.

122 p. : tab, ilus., 30 cm. Tese (Doutorado em Sade Pblica) - Centro de

Pesquisas Aggeu Magalhes, Fundao Oswaldo Cruz, 2011.

Orientadoras: Alzira Maria Paiva de Almeida, Lia Giraldo da Silva Augusto, Theolis Costa Barbosa Bessa.

1. Exposio a agentes biolgicos. 2. Controle de

doenas transmissveis. 3. Sade ambiental. I. Almeida, Alzira Maria Paiva de. II. Augusto, Lia Giraldo da Silva. III. Bessa, Theolis Costa Barbosa. IV. Ttulo.

CDU 57.08

SHEILA SOTELINO DA ROCHA

Invisibilidade de situaes de risco biolgico no campo da Sade Pblica: desafios de

biossegurana e biosseguridade

Aprovado em: 25/11/2011

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________ Prof. Dr. Lia Giraldo da Silva Augusto

Orientadora Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes- CPqAM/Fiocruz

_________________________________________________________

Prof. Dr. Gabriel Eduardo Schutz Universidade Federal do Rio de janeiro - UFRJ

_________________________________________________________

Prof. Dr. Ide Gomes Dantas Gurgel Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes- CPqAM/Fiocruz

________________________________________________________

Prof. Dr. Janaina Campos de Miranda Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes- CPqAM/Fiocruz

________________________________________________________

Prof. Dr. Maria Betnia Melo Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Sade Pblica do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes, Fundao Oswaldo Cruz para a obteno do grau de doutor em Cincias.

AGRADECIMENTOS

So tantos os agradecimentos que corro o risco de ser trada por minha memria e

deixar de citar algum que de alguma forma contribuiu com esse trabalho. Por esta razo,

desde j peo minhas desculpas e apresento meu sincero muito obrigada.

Registro agradecimentos s instituies que me apoiaram na construo desse estudo:

ao Ncleo de Biossegurana/DSSA/ENSP/Fiocruz, local de trabalho que me ofereceu suporte

para fundamentar e praticar a Biossegurana; ao CPqGM, Escola Bahiana de Medicina e

Sade Pblica e Universidade Federal da Bahia, locais que deram suporte logstico a parte da

pesquisa realizada no Estado da Bahia; ao CPqAM pelo suporte a pesquisa realizada em suas

dependncias e pelo acolhimento durante minha permanncia no Estado de Pernambuco.

As Profs. Drs. Alzira Almeida, Theolis Barbosa e Lia Giraldo por seus

conhecimentos, dedicao e estmulo, muito mais que orientadoras amigas que no mediram

esforos para a concretizao deste trabalho.

A todos os professores e colegas de curso com quem tive a oportunidade de conviver e

trocar valiosas experincias, que alm de conhecimento trouxeram significativas lies de

vida.

A todos os profissionais da Secretaria Acadmica do CPqAM pela sempre gentil

colaborao.

Ana Maria Fiscina Vaz Sampaio, bibliotecria do CPqGM, pelo prestativo apoio nos

ajustes necessrios s normas para as publicaes.

Janaina Campos de Miranda e Gabriel Eduardo Schutz que muito contriburam para o

enriquecimento do estudo no momento da qualificao do projeto e como membros da Banca

Examinadora deste produto final.

Ana Carvalho, Maria Isabel L. Perez e Amanda Sampaio pela grande amizade e

incansvel apoio nos momentos difceis desta jornada.

Fabiano e Sophia que com suas manifestaes de carinho trouxeram alegria aos

poucos momentos livres no decurso desse ciclo.

A toda minha famlia pelo incentivo. A minha querida me pela compreenso de meus

longos perodos de ausncia e a meu irmo Fbio que tantas vezes leu e releu o texto, trazendo

contribuies importantes mesmo no pertencendo rea do estudo.

A todos que com seu apoio tornaram possvel a concretizao desse trabalho.

O mundo um lugar perigoso de se viver, no por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer.

...

Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado at que seja enfrentado.

...

Uma pessoa inteligente resolve um problema, um sbio o previne."

Albert Einstein

ROCHA, Sheila Sotelino. Invisibilidade de situaes de risco biolgico no campo da Sade Pblica: desafios de biossegurana e biosseguridade. 2011. Tese (Doutorado em Sade Pblica) Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes, Fundao Oswaldo Cruz, Recife, 2011.

RESUMO

Esta Tese aborda a problemtica da invisibilidade de situaes de risco biolgico refletida no mbito individual, institucional e da sociedade. Os resultados so apresentados em quatro publicaes cientficas que respondem a seus objetivos. A primeira um artigo que descreve a trajetria da construo do campo da biossegurana destacando sua aplicao como ferramenta de controle emergncia e reemergncia de doenas, resultantes de interferncias humanas sobre a natureza, estando a invisibilidade de situaes de risco biolgico, em nvel da sociedade, associada a estas interferncias. A segunda um informe tcnico que analisa evento realizado em instituio de pesquisa guardi de acervo de colees de agentes biolgicos. A anlise, que abrange as narrativas dos pesquisadores curadores dos acervos e a observao in loco das condies de biossegurana (indicadores de qualidade) e biosseguridade (aspectos de segurana), apontou inadequaes que configuram invisibilidade de situaes de risco biolgico em nvel institucional. A terceira publicao analisa caractersticas associadas no adeso de estudantes de cursos da rea de sade ao teste tuberculnico, em cidade com alta endemicidade da doena. Status socioeconmico, gnero e escolha de carreira foram aspectos associados aos grupos de no adeso ao teste, que est inserido em programas de biossegurana e recomendado para o controle da tuberculose. Este descuido com a prpria sade configura invisibilidade de situaes de risco biolgico em nvel individual. A quarta publicao, artigo submetido a avaliao, faz uma discusso sntese das publicaes anteriores, chamando a ateno para a importncia em perceber a inobservncia dos preceitos de biossegurana e biosseguridade para possibilitar tomada de deciso, evitando danos sade humana e ao ambiente. Conclui-se que debates so necessrios para ampliar a percepo desta questo pelas redes scio-tcnicas, pelas scio-institucionais e scio-humanas.

Palavras chaves: Exposio a agentes biolgicos, Controle de doenas transmissveis, Sade ambiental.

ROCHA, Sheila Sotelino. Invisibility of biohazard situations in the field of. public health: challenges of biosafety and biosecurity. 2011. Thesis (Doctorate in Public Health) Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes, Fundao Oswaldo Cruz, Recife, 2011.

ABSTRACT

This thesis addresses the problem of the invisibility of biohazard situations at the individual, institutional and society levels. The results are presented in four scientific publications which address these objectives. The first article describes the building of the field of biosafety, highlighting its application as a tool to control the emergence and reemergence of diseases resulting from human intervention on nature, to which the invisibility of biological risk is associated at the level of the society. The second article is a technical report which focuses an event held at a research institution, depositary of collections of biological agents. The analysis that covers the speeches of researchers and curators of these collections and the in loco evaluation of biosafety (quality indicators) and bio-security (security aspects) conditions has allowed the detection of inadequacies characterizing the invisibility of biological risk situations at the institutional level. The third paper assesses features associated with the non-compliance of students from health care areas to the tuberculin test, in a city considered highly endemic for tuberculosis. It shows that student groups who have skipped any step of that test, which is part of biosafety programs and recommended for the tuberculosis control, had similar socioeconomic status, gender and career choice. This neglectfulness of their own health characterizes the invisibility of biological risk situations at the individual level. The fourth publication, a submitted article, summarizes and discusses the abovementioned publications, calling attention to the importance of recognizing the situations of inobservance of biosafety and biosecurity principles in order to facilitate decision-making and avoid harm to human and environmental health. In conclusion, further debate is needed to increase the perception of these issues within socio-technical, socio-institutional and socio-humans networks.

Keywords: Biological agents exposure, Communicable diseases control, Environmental

health.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AMS Assemblia Mundial de Sade CBS Comisso de Biossegurana em Sade CDB Convnio sobre a Diversidade Biolgica CDC Centers for Disease Control and Prevention CGLAB Coordenao Geral de Laboratrios de Sade Pblica CIBios Comisso Interna de Biossegurana CICT Centro de Informao Cientfica e Tecnolgica CIPA Comisso Interna de Preveno de Acidentes CIPR Comit Interno de Preveno de Riscos CNB Conselho Nacional de Biossegurana CPqAM Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes CQB Certificado de Qualidade em Biossegurana CTBio Comisso Tcnica de Biossegurana CTNBio Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria ENSP Escola Nacional de Sade Pblica EPA USA Agencia de Proteo Ambiental dos Estados Unidos FAPESB Fundao de Amparo Pesquisa do Estado da Bahia FIOCRUZ Fundao Oswaldo Cruz FUNASA Fundao Nacional de Sade HIV Vrus da Imunodeficincia Humana INCQS Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Sade MS Ministrio da Sade NB Nvel de Biossegurana

NCID National Center of Infectious Desease NECT Ncleo de Estudos em Cincia e Tecnologia NIH National Institute of Health NUBio Ncleo de Biossegurana OGM Organismos Geneticamente Modificados ONU Organizao das Naes Unidas OMS Organizao Mundial da Sade PNCBLM Programa Nacional de Capacitao em Biossegurana laboratorial PP Princpio da Precauo RSI Regulamento Sanitrio Internacional SIDA Sndrome da Imunodeficincia Adquirida SRAG Sndrome Respiratria Aguda Grave SVS Secretaria de Vigilncia em Sade

SUMRIO

1 ASPECTOS INTRODUTRIOS 13

1.1 Entendendo o objeto do estudo 16

1.2 O problema do estudo 19

1.3 Pressupostos assumidos na abordagem do objeto de estudo 19

1.4 Perguntas Condutoras 19

1.5 Objetivos 20

1.5.1 Objetivo Geral 20

1.5.2 Objetivos Especficos 20

2. MARCO TERICO 21

2.1 Biossegurana e Biosseguridade: Campos Complementares 22

2.1.2 Indicadores de qualidade em biossegurana 24

2.1.3 Condies de biosseguridade: exigncias de segurana 27

2.1.4 Aspectos Legais 29

2.1.5 Biossegurana e Biosseguridade: ferramentas estratgicas na preveno da disseminao de doenas

32

2.2 O conceito de risco e suas implicaes 34

2.2.1 Dimenses e Abordagens do risco 36

2.2.2 Percepo de risco 40

2.2.3 Anlise e avaliao de risco 44

2.2.4 A situao de risco biolgico: a relao vulnerabilidade -

invisibilidade

46

3 PERCURSO METODOLGICO 50

4 PUBLICAES 52

4.1 Publicao 1 - Biossegurana, Proteo Ambiental e Sade: compondo o mosaico

54

4.2 Publicao 2 - Colees biolgicas do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes da Fundao Oswaldo Cruz: anlise de um Workshop

62

4.3 Publicao 3 Non-compliance with health surveillance is a matter of biosafety a survey of latent tuberculosis infection in a highly endemic setting

76

4.4 Publicao 4 Invisibilidade de situaes de risco biolgico no campo da sade pblica: desafios de biossegurana e biosseguridade

85

5 CONSIDERAES FINAIS 103

5.1 Concluses 104

5.2 Recomendaes 105

REFERNCIAS 108

APNDICES 114

Apndice A Relatrio Visita Tcnica as reas destinadas a

guarda de Colees Biolgicas do Centro de Pesquisas Aggeu

Magalhes

116

ANEXOS 117

Anexo A Carta convite para realizao de visita tcnica e

participao no I Encontro de Curadores de Colees Biolgicas

do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes

119

Anexo B Mensagem da Revista Cadernos de Sade Coletiva

confirmando a submisso do trabalho Invisibilidade das

situaes de risco biolgico no campo da sade pblica

121

1 ASPECTOS INTRODUTRIOS

13

1 ASPECTOS INTRODUTRIOS

Embora exista uma farta produo de conhecimento cientfico envolvendo temas como

segurana do trabalho, sade ocupacional, sade do trabalhador, avaliao de risco no

trabalho, controle de qualidade e biotecnologia, h poucos textos disponveis na literatura

nacional e internacional que abordem o tema biossegurana e sua vertente biosseguridade,

sobretudo estudos especficos que enfoquem a traduo desse conhecimento em ao. A

invisibilidade de situaes de risco biolgico, associada inobservncia de preceitos de

biossegurana e biosseguridade por parte dos indivduos e coletivos envolvidos nas prticas

de sade pblica, um problema ainda pouco estudado. Assim que, para fins deste estudo,

foram utilizadas fontes de referncias gerais dos campos trabalho, segurana, sade e, em

especial, aquelas extradas da experincia da prpria autora, por vrios anos no campo da

biossegurana.

Para compreender como surgiram s inquietaes que a levaram optar pelo tema desse

estudo, h que se relatar seu envolvimento com o assunto no decurso de suas atividades

profissionais desenvolvidas na Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituio pioneira na

introduo do tema biossegurana no Brasil.

No inicio dos 80, a autora desse trabalho passou a compor a equipe de profissionais do

recm-criado Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Sade (INCQS), da Fiocruz,

rgo do Ministrio da Sade do Brasil. A misso da nova unidade era de controlar, em nvel

nacional, a qualidade de produtos afetos a vigilncia sanitria a serem consumidos pela

populao brasileira. O foco central daquela instituio, em funo de sua prpria misso,

estava direcionado a gesto da qualidade com grande destaque para os programas de boas

prticas laboratoriais. Nesses programas a preocupao com a questo da segurana do

trabalho fazia emergir com freqncia debates sobre as necessrias prticas preventivas para o

trabalho em conteno laboratorial com agentes patognicos.

A natureza do trabalho ali desenvolvido acabou por provocar a formao da primeira

Comisso Interna de Preveno de Acidentes (CIPA) da Fiocruz, que passou a investigar as

situaes de risco biolgicos inseridas nas rotinas de trabalho do INCQS, de forma a

estabelecer medidas para control-las. Posteriormente, a presidente daquela comisso foi

indicada para participar, como representante brasileira, de um treinamento oferecido pela

Organizao Mundial de Sade (OMS) aos pases latino-americanos, com objetivo de formar

instrutores de biossegurana que pudessem multiplicar o conhecimento sobre o tema. Assim,

14

em 1985, foi realizado pelo INCQS o primeiro curso de biossegurana do setor sade no

Brasil. A partir desse primeiro curso outros treinamentos em biossegurana emergiram na

Fiocruz e tinham, naquele momento, a preocupao central focada em garantir a segurana

das pesquisas laboratoriais.

Por ter participado desses primeiros eventos, no incio do ano de 1995, a autora foi

convidada a integrar o Comit de Identificao e Preveno de Riscos (CIPR), instncia da

recm-criada Comisso Tcnica de Biossegurana da Fiocruz (CTBio). O CIPR realizou um

trabalho intitulado Diagnstico de riscos presentes nas atividades desenvolvidas na Fiocruz,

gerado a partir de um instrumento elaborado pela equipe do comit. Esse diagnstico

possibilitou sistematizar as aes de biossegurana na instituio e o extenso trabalho daquela

equipe teve o mrito de deslanchar uma iniciativa ministerial no campo da poltica de

biossegurana, sendo referncia para o Programa Brasileiro de Capacitao Cientfica e

Tecnolgica em Doenas Emergentes e Reemergentes.

A equipe do CIPR passou a integrar o Ncleo de Estudos em Cincia e Tecnologia

(NECT), que posteriormente tornou-se Departamento de Estudos em Cincia e Tecnologia

(DECT), onde foi criado o Ncleo de Biossegurana (NUBio), ligado ao Centro de

Informao Cientfica e Tecnolgica (CICT) da Fiocruz .

Progressivamente, o tema biossegurana foi ganhando espao nas discusses

institucionais e ministeriais. Em uma oficina de trabalho realizada em meados de 1995, para

debater o Projeto Brasileiro de Capacitao Cientfica e Tecnolgica para Doenas

Infecciosas Emergentes e Reemergentes do Ministrio da Sade, foi consenso que como

fundamento para se avanar no sentido da capacitao das instituies brasileiras naquela

rea, as questes de biossegurana constituam fator prioritrio para progresso de qualquer

processo, tanto no que se referia adequao de infra-estrutura das instituies quanto, e

principalmente, no que se referia mudana de comportamento frente aos riscos. A discusso

que se colocava a seguir era como trabalhar estas questes, seria necessrio conhecer as reais

condies das instituies do pas relativas qualidade em biossegurana (ROCHA, 2000). A

experincia adquirida pelo NUBio, a partir do mapeamento dos riscos das unidades da

Fiocruz, o credenciou para essa misso.

Em 1996, foi criado o Programa de Capacitao Cientfica e Tecnolgica no Campo

da Biossegurana, uma parceria da Coordenao Geral de Desenvolvimento Cientfico e

Tecnolgico do Mistrio da Sade com o NUBio. Este programa constou de duas vertentes

bsicas: um mapeamento de risco, realizado a partir da adaptao do instrumento

15

desenvolvido pelo CIPR, embrio do NUBio, e um curso cuja temtica estava voltada para as

questes identificadas. O resultado desse trabalho gerou o Relatrio sobre as condies de

biossegurana face aos riscos biolgicos referidos por quatro instituies de pesquisa em

sade no Brasil (BRASIL, 1998).

Em 2000, o Mistrio da Sade, atravs da Coordenao Geral de Laboratrios de

Sade Pblica (CGLAB) da Fundao Nacional de Sade (FUNASA), o Center for Disease

Control and Prevention (CDC) e o NUBio/Fiocruz estabeleceram uma nova parceria com

objetivo de implementar o Programa Nacional de Capacitao em Biossegurana Laboratorial

para Multiplicadores (PNCBLM). Esse programa teve como diferencial, em relao a seu

antecessor, o fato de proporcionar a formao de profissionais multiplicadores do tema.

Foram realizados trs cursos regionais e vinte e sete cursos locais, tendo como pblico alvo os

Laboratrios Centrais de todos os estados brasileiros e alguns laboratrios de Referncia

Nacional (Fiocruz, Instituto Pasteur, Instituto Helio Fraga e Instituto Evandro Chagas). A

prioridade dada a essas instituies foi motivada pela grande demanda diagnstica para

doenas sob vigilncia, onde a manipulao de agentes de risco, com grande destaque para os

biolgicos, rotineira.

Em 2005, o Ministrio da Sade atravs da Secretaria de Vigilncia em Sade (SVS)

estabeleceu, no contexto de sua poltica de educao continuada, uma nova parceria entre o

NUBio e a Escola Nacional de Sade Pblica (ENSP) para oferecer aos egressos do

PNCBLM um curso de Especializao em Biossegurana distncia, no qual a autora

participou do grupo coordenador como professora do mdulo Avaliao de Risco.

A questo do risco biolgico esteve no foco de preocupaes da autora ao longo de

seu exerccio profissional na Fiocruz. A oportunidade de observar e avaliar processos de

trabalho em vrias instituies no campo da sade pblica levou-a a considerar que, salvo

alguns honrosos esforos pessoais e institucionais, a efetiva aplicao das prticas de

biossegurana e biosseguridade, principalmente aquelas que envolvem agentes de risco

biolgico, no tem recebido a devida ateno, existindo conforme o contexto, uma

invisibilidade das situaes arriscadas.

Nesse mesmo sentido, Machado, Flor e Gelbcke (2009, p 33) tratam a questo da

invisibilidade sob dois aspectos. Um aspecto relacionado manipulao de microorganismos,

seres estes invisveis a olho nu e que precisam de microscpio para sua visualizao e outro

associado condio do trabalhador de reas com baixa exigncia de qualificao, o que no

16

favorece o reconhecimento e valor social de suas atividades, tornando a prpria atividade e

os riscos nela contidos invisveis.

A identificao de processos e contextos em que os aspectos de biossegurana e

biosseguridade so invisibilizados no campo da sade pblica, como resultado proposto por

esse trabalho, um alerta sobre a importncia em reconhecer as fragilidades na percepo de

risco das redes scio-tcnicas, scio-intitucionais e scio-humanas para essa questo.

fundamental provocar a reflexo sobre essa problemtica de forma a subsidiar a tomada de

decises, j que no ter conscincia do risco no implica em sua inexistncia e muito menos

impede a ocorrncia de seus possveis efeitos deletrios.

1.1 Entendendo objeto do estudo

As ameaas ao mundo em decorrncia do progresso e da modernizao so temas de

discusso em diversos campos do conhecimento, h dcadas. Hoje as situaes de risco se

multiplicaram de forma globalizada envolvendo questes como as mudanas climticas, os

desastres ecolgicos, o terrorismo internacional, dentre outros. A sociedade se reconhece

como geradora desses fenmenos e por essa razo roga pelo controle dos efeitos colaterais

desses eventos que so produzidos a partir de suas prprias decises (ZANIRATO et al.,

2008).

A sociedade contempornea foi cunhada por especialistas como sociedade de riscos,

nela a gerao social de riquezas est associada produo de situaes de risco (BECK,

1992; BECK; GIDDENS; LASH, 1997; GIDDENS, 1998). Essa produo, calcada no ritmo

frentico das inovaes tecnolgicas, tem levado exausto de recursos naturais renovveis e

no renovveis bem como criado produtos e substncias poluentes que contaminam a gua, o

solo e o ar.

Essas situaes de risco so globais, transcendem as fronteiras das naes e colocam

em perigo a vida no planeta nas suas diversas formas de manifestao (BECK, 1992). A estas

situaes de risco atuais somam-se outras, j no to novas, mas, de igual impacto como a

desqualificao profissional, a misria, a fome e a precariedade da sade.

No que se refere a essa ltima, o quadro sanitrio das populaes tem apresentado

rpidas alteraes e surpreendido os tradicionais sistemas de sade pblica. Alteraes de

ordem ambiental, demogrfica, tecnolgica e scio-econmica tm provocado a modificao

e adaptao de agentes patognicos e contribudo para o surgimento e ressurgimento de

17

doenas. Em paralelo, a circulao destes patgenos, propiciada pelo aumento do fluxo

migratrio, das trocas comerciais, de redefinies geopolticas e de aes predatrias sobre a

natureza, vem favorecendo a disseminao crescente de enfermidades.

O advento das doenas emergentes e reemergentes no mundo trouxe novos desafios

sociedade, em especial, a necessidade de buscar novas solues para problemas complexos

que envolvem desde interesses internacionais relacionados conservao da biodiversidade

at como controlar a criao, o uso e a disseminao de armas biolgicas. A possibilidade do

rpido trfego global de patgenos, que em poucas horas podem ser deslocados de um

continente a outro por via area, agravou a preocupao de agentes etiolgicos novos ou

ressurgentes, com alta letalidade, virem a ser intencionalmente ou acidentalmente liberados no

ambiente (INGLESBY, 2000).

A preocupao de cientistas e formuladores de polticas de sade com o fenmeno das

infeces emergentes e reemergentes tornou-se mais intensa a partir do aparecimento de casos

de doenas antes desconhecidas, como a Sndrome da Imunodeficincia Adquirida (SIDA)

causada pelo vrus HIV, e o ressurgimento de outras que se julgava sob controle, como a febre

maculosa, causada por Rickettsias spp. (SCHATZMAYR, 2006). Entretanto, apesar dos

avanos da cincia e tecnologia em sade, voltados para a melhoria dos processos, produtos e

aes de interveno, as estratgias utilizadas para o controle dessas doenas ainda

apresentam limitaes para seu enfrentamento pela sociedade, em escala global (ROCHA,

2003).

Essas questes constituem temas abordados pela biossegurana e sua vertente a

biosseguridade, novos campos do conhecimento cientfico, com enfoque transdisciplinar, que

apontam para a necessidade de serem tomadas medidas destinadas ao conhecimento e

controle de situaes de risco que a liberao de agentes potencialmente perigosos podem

aportar ao ambiente e vida. A biossegurana envolve o debate sobre os princpios de

conteno, tecnologias e prticas a serem aplicadas de forma a evitar a exposio involuntria

ou liberao acidental de agentes patognicos e toxinas, enquanto a biosseguridade abrange

medidas de segurana institucional e pessoal destinadas a evitar a perda, roubo, uso indevido,

desvio ou liberao intencional desses agentes (CARDOSO, 2008).

Realizar a difcil tarefa de conter situaes de risco requer compreender diferentes e

complexos aspectos que envolvem a questo do risco e seus sentidos. Conviver com os riscos

no implica necessariamente compreend-los e sua anlise , ainda, atribuio do seleto

mundo acadmico (ZANIRATO et al., 2008). A comunidade cientfica, nos mais diversos

18

campos do saber, vem discutindo aspectos tericos e aplicao de metodologias de avaliao

que permitam identificar, mensurar e determinar estratgias de preveno de riscos.

O conceito de risco no campo da sade est associado a fatores de risco determinantes

das alteraes no processo sade-doena. So cada vez mais sofisticadas as tcnicas

diagnsticas empregadas no sentido de definir probabilisticamente a causalidade desses

fenmenos. As aes de preveno e controle de situaes de risco empregadas pelos

tradicionais sistemas de sade pblica esto ancoradas na possibilidade de mensurar riscos

atravs dos sistemas de vigilncia epidemiolgica e ambiental. A crtica a esse modelo de

abordagem orienta que a escolha de estratgias preventivas requer que o risco seja tratado

numa perspectiva cultural que inclua os sujeitos (DOUGLAS, 1976).

A despeito dos estudos dedicados a conceituar riscos, a aceitao social das definies

de risco no tem dependido de sua validade cientfica. A adeso a recomendaes e aplicao

prtica de medidas preventivas, indicadas para conter uma determina situao de risco,

necessita ter significao e importncia para aqueles aos quais tais medidas se destinam. Caso

contrrio, tendem a ser ineficazes para as finalidades sociais a que se propem (CASTIEL,

1996).

Os profissionais de sade no exerccio de diferentes atividades esto expostos a

importantes situaes de risco relacionados ao trabalho. Os agentes de risco biolgico por sua

invisibilidade apresentam preocupaes tanto no sentido de sua percepo quanto da

aplicao de estratgias para conteno do risco de infeco. Acidentes envolvendo espcimes

biolgicos so apontados pela literatura sinalizando a no adoo das precaues

preconizadas para execuo segura das atividades (CHIODI; MARZIALE, 2006; PRADO -

PALOS, et al.2006; SIMES et al., 2002) e so, tambm, indicativos de que, apesar da

exposio elevada a materiais infectantes, os preceitos de biossegurana no tm sido

efetivamente valorizados (CHIODI; MARZIALE, 2006; GALLAS; FONTANA, 2010;

MACIEL et al.,2009; MARQUES et al., 2010).

A questo da preveno situaes de risco biolgico como parte do campo de ao

hoje atribudo a biossegurana e biosseguridade envolve inter-relaes complexas entre

situaes de risco tecnolgico, sade humana, sade do ambiente, bioproteo e biotica.

Essas situaes so atravessadas por conflitos de interesses, especialmente os econmicos,

intensificados no mundo globalizado, desafiando a aplicao de atitudes precaucionrias pelas

redes sociais (no nvel individual, institucional e social). Descortinar situaes de risco no

percebidas ou deliberadamente ocultadas pode contribuir para o desenvolvimento de sistemas

19

produtivos e de consumo saudveis que propiciem a efetiva preservao da integralidade da

sade humana e do ambiente.

nesse contexto que se insere este estudo que procura investigar aspectos de

biossegurana e biosseguridade invisibilizados no campo da sade pblica relativos s

situaes de risco biolgico, de forma a possibilitar a reflexo sobre esses eventos e assim

subsidiar a tomada de decises.

1.2 Problema do Estudo

As situaes de risco biolgico no campo da sade pblica tm sido pouco valorizadas

por indivduos e instituies, no que se refere efetiva aplicao de aes preventivas que

envolvem exposio a esses potenciais perigos para a sade humana e do ambiente.

1.3 Pressupostos assumidos na abordagem do objeto de estudo

a) As questes de biossegurana e biosseguridade so estruturantes para o controle da

disseminao de doenas, atribuies do campo da sade pblica.

b) Ferir os preceitos de biossegurana e biosseguridade compromete as medidas

sanitrias para o controle de doenas infecciosas.

1.4 Perguntas condutoras

a) Em que contextos e processos o descumprimento aos preceitos de biossegurana e

biosseguridade vm sendo invisibilizados no campo da sade pblica?

b) Que aspectos relativos aos indicadores de qualidade em biossegurana so

invisibilizados nas situaes de risco biolgico inerentes s atividades no campo da

sade pblica?

c) Que aspectos de biosseguridade inerentes s exigncias de segurana para o manejo de

agentes de risco biolgicos so invisibilizadas no campo da sade pblica?

d) Que caractersticas podem estar associadas aos sujeitos que no tem atitudes

precaucionrias frente a atividades onde esto potencialmente expostos a agentes de

risco biolgico, contribuindo para a invisibilidade desse risco?

20

1.5 Objetivos

1.5.1 Objetivo Geral

Investigar aspectos de biossegurana e biosseguridade invisibilizados no campo das

prticas em sade pblica relativos s situaes de risco biolgico.

1.5.2 Objetivos Especficos

a) Investigar contextos e processos em que os preceitos de biossegurana e

biosseguridade so invisibilizados no campo das prticas de sade pblica;

b) Identificar aspectos relativos aos indicadores de qualidade em biossegurana

invisibilizados nas situaes de risco biolgico inerentes s atividades no campo da

sade pblica;

c) Identificar aspectos de biosseguridade, inerentes s exigncias de segurana para o

manejo de agentes de risco biolgicos, que so invisibilizadas nas prticas de sade

pblica;

d) Analisar caractersticas que podem estar associadas aos sujeitos que invisibilizam o

risco biolgico frente a atividades, inseridas nas prticas de sade pblica, onde esses

esto potencialmente expostos;

e) Sugerir medidas tcnico-cientficas de interveno para soluo de possveis

vulnerabilidades relativas a situaes de risco biolgico.

2 MARCO TERICO

22

2 MARCO TERICO

2.1 Biossegurana e Biosseguridade: campos complementares

A biossegurana hoje considerada um campo do conhecimento cientfico que procura discutir eticamente interfaces entre a adoo de processos laborais seguros e preocupaes ambientais de carter amplo, envolvendo diferentes aspectos relativos segurana do ambiente e da sade humana (ROCHA, 2010 p.1).

A distino conceitual entre biossegurana e biosseguridade reside na intencionalidade

das aes a serem controladas atravs das medidas de conteno de situaes de risco,

propostas por cada um desses campos do conhecimento cientfico. Enquanto a biossegurana

se preocupa com princpios de conteno destinados a impedir a exposio involuntria ou

liberao acidental de agentes de risco, com grande destaque para os biolgicos, a

biosseguridade, igualmente estruturada com base na preveno, visa coibir a liberao

intencional, exposio voluntria, desvio, roubo e uso indevido desses agentes.

O Ministrio do Meio Ambiente brasileiro define biosseguridade como:

o estabelecimento de um nvel de segurana dos seres vivos por intermdio da diminuio do risco de ocorrncia de qualquer ameaa a uma determinada populao. A biosseguridade inclui tanto os riscos biolgicos como tambm questes relacionadas sade pblica ou ainda segurana nacional. Um programa de biosseguridade composto por um conjunto de princpios, normas, medidas e procedimentos de cuidados com a sade e o bem estar de uma populao, o que inclui, naturalmente, o meio ambiente (BRASIL, 2006 a).

Debates que incluem a tentativa de conceituao dos campos admitem que as aes

propostas por ambos so complementares, existindo uma necessria articulao de saberes e

prticas vinculados a cada um deles para a efetiva aplicao de estratgias comuns de

preveno baseadas na avaliao de risco (ROFFEY, 2005). Biossegurana e biosseguridade

so termos traduzidos dos vocbulos da lngua inglesa biosafety e biosecurity, que expressam

os domnios de cada campo. O termo biosafety usado para enunciar condutas que visam

conter a exposio ou liberao acidental de agentes de risco no ambiente. J o termo

biosecurity utilizado quando a liberao do agente de risco no ambiente feita de forma

deliberada.

O campo de ao da biosseguridade apresenta peculiaridades quanto a sua aplicao

prtica, o que, segundo Chaimovich (2005, p. 261), comporta trs definies possveis: uma o

trata como forma de aumentar as medidas nacionais contra as armas biolgicas, outra o v

como medida para aumentar a capacidade internacional de responder, investigar e mitigar os

efeitos do uso terrorista de toxinas e armas biolgicas, e por fim, a que o define como uma

23

forma de aumentar e fortalecer os esforos nacionais e internacionais para investigar se h, ou

no, alguma doena que possa alterar o sistema social.

A primeira e a segunda definies propostas por Chaimovich (2005) envolvem a

crescente preocupao mundial com as doenas infecciosas, em particular com aquelas que

tm caractersticas epidmicas pelo receio da utilizao de seus agentes causadores para fins

blicos. A partir dos ataques terroristas de 11 de setembro, a biosseguridade ganha destaque,

pases como os Estados Unidos passam a intensificar aes para o enfrentamento a esse tipo

de evento. Os sistemas americanos de defesa e de sade so interligados, esse ltimo conta

com instituies tanto para controle das doenas (Centers for Disease Control and Prevention

- CDC) quanto para seu estudo (National Institue of Health - NIH e National Center of

Infectious Disease - NCID), o que contribui para uma rpida interveno.

O uso de agentes biolgicos como armas de destruio em massa no um fato novo;

registros histricos demonstram que a Yersinia pestis, bactria causadora da Peste, doena

com grande potencial epidmico e alta letalidade, j foi utilizada para esse fim. Em 1346, os

trtaros lanavam cadveres de pessoas mortas por peste por sobre os muros da cidade sitiada

de Caffa, territrio da atual Ucrnia (WHEELIS, 2002). Tambm durante a segunda guerra

mundial o exrcito japons lanou pulgas infectadas com peste sobre a China

(BARENBLATT, 2005).

No mundo de hoje o desenvolvimento de armas biolgicas, que no exige muita

sofisticao, um recurso real que pode ser utilizado por pases com menor capacidade

militar. No entanto, o impacto desse uso pode ser amplo e ameaar a humanidade

globalmente. Cardoso (2008, p. 46) refere que os agentes biolgicos encontrados dispersos na

natureza no renem caractersticas que despertem a cobia para fins terroristas, j que seriam

necessrios estudos para sua possvel utilizao, impedindo seu uso imediato. Entretanto,

alerta que essa hiptese no pode ser descartada.

Os agentes biolgicos de grande virulncia, alta letalidade e aqueles para os quais no

so conhecidos tratamentos adequados, constituem focos de grande risco segurana das

populaes e alvo de interesse para emprego em armas biolgicas (ORGANIZAO

MUNDIAL DA SADE, 2006). Darsie et al.(2006) ressaltam que toda a infra-estrutura

representada pelos laboratrios de diagnstico, de investigaes, de colees de culturas

biolgicas e outras instalaes laboratoriais autorizadas a exercer atividades cientficas no

mundo, so alvos importantes para aes bioterroristas. Essas instituies dispem de

amostras viveis de agentes biolgicos, que em geral esto bem caracterizadas e purificadas,

facilitando seu uso imediato.

24

A terceira definio de biosseguridade referida por Chaimovich (2005) refora a idia

da necessria complementaridade entre as aes da biosseguridade e da biossegurana,

particularmente, no que se refere s preocupaes situadas no mbito da sade pblica. Na

hiptese de uma epidemia exigido dos sistemas de vigilncia a orientao das populaes no

que se refere s medidas de controle do agravo. Essas aes, que devem ser rpidas, capazes

de prontamente identificar o agente e rastrear sua trajetria, so afetas ao campo da

biosseguridade. J o atendimento da demanda de diagnstico e pesquisa, ir exigir uma infra-

estrutura laboratorial de apoio, capaz de oferecer suporte ao sistema de vigilncia. Esses

espaos no podem prescindir dos preceitos da biossegurana. Como aponta Sewell (2003) os

programas de biosseguridade em laboratrios assumem um carter da extenso lgica dos

programas de biossegurana, enfatizando as boas prticas.

2.1.2 Indicadores de qualidade em Biossegurana

Indicador um conceito que vem sendo utilizado em diversos campos do

conhecimento tais como a economia, a administrao, a demografia e a sade pblica.

definido como um descritor que permite, dento de um contexto apropriado, representar

aspectos de uma determinada realidade. Em funo dessa propriedade, pode ser utilizado

como ferramenta de avaliao de mudanas dos processos, das demandas e das necessidades e

indicar problemas. Considerado como parmetro representativo, permite medir a diferena

entre uma situao desejada e uma situao atual, ou seja, permite sua quantificao

(FUNDAO PRMIO NACIONAL DE QUALIDADE, 1993; FUNDAO DE

TECNOLOGIA DE SOROCABA, 1993).

Os indicadores no abrangem a totalidade da realidade, apenas simplificam sua

complexidade, permitindo uma referncia quantitativa de parte dela, um recorte de alguns

aspectos previamente selecionados. Ao estabelecer uma referncia comum a todos, os

indicadores permitem a comparabilidade, o que os torna teis como instrumento de

planejamento e gesto por facilitar a avaliao do cumprimento de metas estabelecidas

previamente, alm de possibilitar criar cenrios (retrospectivos, atuais e/ou prospectivos) que

subsidiem a tomada de deciso (AUGUSTO; BRANCO, 2003).

Alguns dos critrios devem ser observados na criao ou seleo de indicadores: a

competncia para descrever o que se prope; a reprodutibilidade segundo padres

metodolgicos estabelecidos; a sensibilidade s mudanas das condies que devem avaliar; a

rpida reao s mesmas mudanas; acessibilidade; comparabilidade; e seu completo

25

entendimento pelos usurios. Sua construo deve partir do processo de agregao de dados

que possam informar, indicar, apontar ou anunciar as tendncias de uma situao ou

fenmeno.

Os indicadores de qualidade em Biossegurana a serem utilizados na avaliao de

instituies de sade pblica devem considerar aspectos relacionados ao cumprimento das

exigncias que permitam afirmar que as atividades por elas desenvolvidas so eficientes,

eficazes e seguras. Esses indicadores devem abranger as medidas de biossegurana

relacionadas a quatro categorias de ao: administrativas, tcnicas, de sade do trabalhador e

educacionais (ROCHA, 2003).

Segundo Rocha (2010, p. 7) essas medidas compreendem:

Medidas Administrativas

Contemplam aspectos relacionados estrutura organizacional da instituio, sua infra-

estrutura predial e equipamentos disponveis, alm de mtodos utilizados e sistemas de

documentao empregados.

a) Estrutura organizacional

Essa estrutura deve estar organizada levando em conta a misso institucional e os

objetivos de cada unidade que a configura. O organograma institucional deve permitir a

identificao dos nveis hierrquicos que a compe de forma a possibilitar a comunicao

para a tomada de decises. As funes e responsabilidades de cada unidade precisam estar

claramente definidas, bem como aquelas inerentes a cada posto de trabalho. A qualificao e

o quantitativo de profissionais devem ser compatveis com as demandas previstas.

b) Infra-estrutura predial e equipamentos

As instalaes fsicas e equipamentos devem ser compatveis com as atividades da

instituio e permitir sua segura realizao. A relao estrutura predial versus atividade a

realizar, fluxo de equipamentos, profissionais, insumos, clientes e outros elementos

necessrios ao trabalho devem ser considerados no desenho institucional de forma a garantir o

desenvolvimento seguro das atividades.

c) Organizao e mtodos

26

A instituio deve contar com procedimentos descritos de forma clara e detalhada e

constarem de manuais de operao. O desenvolvimento das atividades deve ser registrado em

protocolos com todas as etapas do trabalho de forma a permitir a recuperao de todos os

dados de sua realizao.

d) Sistema de documentao

Toda documentao recebida ou gerada na instituio deve estar: em local de fcil acesso,

arquivada em condies de segurana, que evitem a perda, destruio ou violao da

confidencialidade e a rpida recuperao das informaes contidas nos documentos, para fins

legais, de avaliao e/ou estatsticos.

e) Proviso e manuteno de materiais

Insumos e instrumentais de qualidade comprovada devem estar disponveis em quantidade

suficiente para atender as demandas da instituio. Devem existir procedimentos

normatizados de operao de equipamentos e manuteno preventiva peridica, conforme

prescrio de uso.

Medidas tcnicas

A instituio deve contar com programas de qualidade e preveno de acidentes.

a) Programa de Qualidade

O programa de gesto da qualidade deve estabelecer critrios de avaliao do trabalho que

possibilitem detectar os problemas, identificar suas causas e oferecer propostas para adoo

de medidas corretivas. O seu desenvolvimento deve ter um nvel satisfatrio de segurana

diante dos riscos usuais ou especiais que o trabalho apresente tanto para o prprio trabalhador,

como para seus parceiros, a clientela e o meio ambiente.

b) Programa de preveno de acidentes

A instituio deve elaborar um programa especfico de preveno de acidentes que atenda a

legislao vigente e permita a elaborao de propostas preventivas.

27

Vigilncia e Monitoramento da sade do trabalhador

A instituio deve estabelecer, em conformidade com a legislao vigente, um

programa de sade do trabalhador que alm da promoo sade dos trabalhadores tambm

proceda ao monitoramento dos agravos de forma a subsidiar a tomada de decises. Deve

existir um sistema de notificao e investigao de acidentes e incidentes que possibilite

avaliar esses eventos de forma a propiciar a reverso de situaes de risco identificadas.

Medidas educacionais

Contar com equipe consciente dos problemas de segurana, informada sobre os riscos

presentes em seu ambiente de trabalho, constitui um elemento chave na preveno de doenas

e acidentes do trabalho. A instituio deve dispor de um programa de educao inicial que

aborde questes relacionadas com a misso, funo, estrutura organizacional, normas

vigentes, programas de segurana e de gesto da qualidade da instituio, alm de promover a

capacitao continuada das equipes em temas especficos de seu cargo (procedimentos

normatizados de operao e de segurana). Esse programa deve ser amplamente difundido, de

forma a manter as equipes de trabalho conscientizadas, motivadas e atualizadas quanto s

informaes relevantes para o desenvolvimento seguro de suas atividades.

2.1.3 Condies de biosseguridade: exigncias de segurana

Como j referido, as instituies que manejam e/ou dispem de agentes biolgicos de

grande virulncia e alta letalidade constituem focos de grande risco para a segurana das

populaes pela possibilidade de disperso e/ou uso ilcito desses materiais. Cabe considerar

que atualmente medidas para conter esse risco no abrangem apenas o contexto local ou

nacional, mas a preocupao com a segurana no mundo, dado o potencial global de surtos

localmente originados.

As instituies detentoras desses agentes de risco devem estabelecer um programa de

biosseguridade que possibilite controlar os possveis pontos vulnerveis, bem como

elaborar um plano de conteno e contingncia para casos de acidentes que os envolvam. Para

estabelecimento desse plano algumas condies precisam ser atentamente observadas.

Cardoso (2008, p. 56) aponta os componentes desse plano:

28

Segurana dos profissionais/pessoal

Refere-se a procedimentos necessrios para identificao de reas e profissionais que a

elas so permitidos acesso rotineiro ou espordico. Esses procedimentos abrangem controle

de acesso seguro s instalaes e respectivos nveis de conteno, a circulao nos ambientes

de trabalho e acesso a documentos e/ou bases de dados relacionados a informaes

classificadas como reservadas ou sigilosas, cuja divulgao passvel de sanes legais. O

plano deve ainda contemplar procedimentos de emergncia e planos de contingncia

especficos de cada rea de trabalho e os respectivos registros para possibilitar o rastreamento

dessas ocorrncias.

Segurana predial

A instituio deve possuir sistemas de deteco e controle (alarmes, cmeras de

segurana, barreiras fsicas) dos locais onde agentes patognicos com potencial de risco de

uso ilcito estejam depositados. Esses sistemas devem ser monitorados e devem ser

elaborados relatrios sobre esse monitoramento. Os profissionais autorizados a acessar essas

reas devem estar capacitados para realizar procedimentos de emergncia no caso de

acidentes e/ou incidentes.

Segurana dos materiais

Um inventrio dos materiais com potencial para uso ilcito deve ser mantido na

instituio de forma a possibilitar sua rpida localizao. Os nveis hierrquicos de

responsabilizao pelo material inventariado devem ser do conhecimento de todos da

instituio.

Segurana no transporte de agentes de risco

A instituio deve manter controle qualitativo e quantitativo e registros de eventuais

transferncias de agentes de risco e de outros materiais com atratividade para uso ilcito. O

acompanhamento e o monitoramento da movimentao devem contemplar reas protegidas

dentro da instituio e entre instituies. No caso do controle da transferncia e transporte

entre instituies nacionais ou entre pases til dispor de contrato padro restringindo o uso

29

ou transferncia a terceiros, bem como, quando for o caso, manuteno de parte do material

na instituio de origem para contraprova.

Programa de informao e comunicao

A instituio deve manter o controle sobre informaes relativas aos agentes

patognicos, equipamentos, suprimentos com risco potencial para uso ilcito. Para tanto, deve

possuir tecnologias de armazenamento (fotogrfica, meio eletrnico, telefonia, etc.) que

permitam esse controle, bem como, se julgar conveniente, estabelecer uma poltica de

comunicao para o pblico em geral.

Medidas de controle de manipulao e uso de agentes de risco

Sistema de registros para controle da manipulao e uso de agentes de risco devem ser

mantidos pela instituio. Protocolos devem ser elaborados para estabelecimento de plano de

segurana, plano de contingncia, plano de emergncia, registro de acidentes e incidentes,

programa de educao continuada, programa de monitoramento de risco e auditorias internas.

2.1.4 Aspectos Legais

A dcada de 70 foi marcada por preocupaes relacionadas s ameaas ao meio

ambiente derivadas do avano tecnolgico, mediado pelas descobertas cientficas e

impulsionado pelo interesse econmico do capitalismo global. Essas inquietaes levaram a

Organizao das Naes Unidas (ONU) a propor reunies na busca de acordos que

refletissem um compromisso com a conservao do meio ambiente (UNITED NATIONS

ENVIRONMENT PROGRAMME, 2002).

Nessa mesma dcada, a preocupao com possibilidade de manipulao da vida

atravs das pesquisas envolvendo a tecnologia do DNA recombinante, levou as revistas

Science e Nature a publicarem, no ano de 1974, um apelo de um grupo de cientistas

requerendo uma moratria para a manipulao gentica (NAVARRO; CARDOSO, 2007).

Essa iniciativa teve efeito suspensivo por um perodo de nove meses, quando em Asilomar

(Califrnia/EUA) ocorreu uma conferncia de mesmo nome. Naquela conferncia foram

discutidas propostas de regulamentao do uso de tcnicas genticas e seus riscos, com

30

especial enfoque nas questes ticas e de segurana. A proposta concluda em 1976, foi um

marco para a histria da tica em pesquisa.

A partir da Conferncia de Asilomar vrios pases adotaram modelos regulatrios

prprios para o controle da biotecnologia. A Unio Europia, apoiada nas regulamentaes

propostas em Asilomar, publicou no ano de 1990 suas Diretivas sobre o trabalho em

conteno e a liberao voluntria de Organismos Geneticamente Modificados (OGM) no

ambiente.

Em 1992, na Conferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e o

Desenvolvimento foram subscritos documentos considerados marcos pelos compromissos

tratados. Entre esses, destaca-se o Convnio sobre a Diversidade Biolgica ou Biodiversidade

(CDB), que gerou a proposta de redao de um Protocolo Internacional de Biossegurana.

Esse protocolo teve como objetivo a criao de um arcabouo normativo internacional que

assegurasse a conservao da biodiversidade dos pases signatrios, o uso sustentvel e a justa

diviso dos benefcios oriundos do uso econmico dos recursos genticos, respeitada a

soberania de cada nao sobre o patrimnio existente em seu territrio.

Em 1999, o Protocolo Internacional de Biossegurana, teve seu texto finalmente

concludo, entretanto, sua efetiva aprovao s aconteceu em 29 de janeiro de 2000. Nele foi

firmado um contrato ambiental internacional assumido pelos pases signatrios da CDB.

Tambm foram estabelecidas regras mnimas de biossegurana relativas ao manejo seguro de

OGM que cruzam fronteiras, bem como o controle de efeitos adversos na conservao e uso

sustentvel da biodiversidade. O protocolo orienta para o uso do princpio da precauo e

ressalva o direito de cada parte estabelecer normas ou critrios prprios mais rgidos.

Desde ento, vrios pases vm adotando modelos regulatrios prprios para o

controle da biotecnologia, variando de acordo com a tradio ou com caractersticas jurdicas

aplicadas por cada Estado Nao. No Brasil, a regulamentao da tecnologia recombinante

segue o modelo europeu e os limites legais da biotecnologia nacional foram estabelecidos pela

instalao de uma instncia regulatria composta por representantes da comunidade cientfica

e por outros segmentos da sociedade. Essa instncia denominada de Comisso Tcnica

Nacional de Biossegurana (CTNBio), foi prevista na primeira lei brasileira de

Biossegurnaa, Lei de nmero 8974/95 publicada em 5 de janeiro de 1995, para tratar do uso

das tcnicas de engenharia gentica.

Essa Lei foi fruto do esforo conjunto das instituies Fiocruz e Empresa Brasileira de

Pesquisa Agropecuria (EMBRAPA), que aps amplo debate, acompanharam e elaboraram o

texto proposta da Lei, aprovado na ntegra pelo Congresso Nacional com vetos apenas no

31

executivo. Essa lei foi regulamentada em 20 de dezembro de 1995, atravs do Decreto

n.1752, que criou a CTNBio, vinculada ao Ministrio da Cincia e Tecnologia do Brasil.

Nesse decreto foi institudo o Certificado de Qualidade em Biossegurana (CQB) e

determinada a criao de Comisses Internas de Biossegurana (CIBio), em todas as

instituies que manejam OGM.

Essa comisso, em cumprimento determinao proposta na Lei de Biossegurana,

passou a estabelecer instrues para o gerenciamento e normatizao do trabalho com

engenharia gentica e a liberao no ambiente de OGM em todo o territrio nacional. A Lei

de Biossegurana vigorou por dez anos, at ser reavaliada e substituda pela atual

regulamentao, a Lei 11.105 /05 que criou o Conselho Nacional de Biossegurana (CNB),

vinculado a Presidncia da Repblica; reestruturou a CTNBio e disps sobre a Poltica

Nacional de Biossegurana (BRASIL, 2005).

Outro acordo internacional importante associado questo do controle de agravos

sade o Regulamento Sanitrio Internacional (RSI). Esse documento proposto pela OMS foi

adotado em 1969 pelos pases membros, e consta de um pacto, juridicamente vinculante, que

visa prevenir a propagao internacional de doenas e outras ameaas sade pblica. Na 48

Assemblia Mundial da Sade (MAS), realizada em 1995, foi proposta sua alterao em

funo das mudanas sofridas no quadro epidemiolgico mundial da sociedade globalizada. A

sugesto de mudana teve o propsito de permitir uma rpida resposta do setor, evitando

simultaneamente, intervenes nas viagens e no comrcio internacional. Entretanto, levou dez

anos para ter seu texto aprovado, ocorrendo somente no ano de 2005, na 58 AMS, ficando

sua adoo pelos pases membros acertada para entrada em vigor a partir de 15 de junho de

2007.

Essa reviso trouxe significativas alteraes em relao a sua verso anterior, como a

ampliao da notificao de eventos para OMS, antes limitado s doenas: clera, febre

amarela e peste. O novo RSI passou a considerar todos os eventos que possam constituir uma

emergncia de sade pblica de importncia internacional, incluindo danos causados por

agentes qumicos, materiais radioativos e alimentos contaminados. Estabeleceu como

estratgia de ao a criao, em cada pas membro, de um ponto focal com operao por 24

horas para gerenciar as aes e providncias quando necessrias. Disponibilizou uma arvore

de deciso (algoritmo) como parmetro para definio quanto urgncia do evento e seu

carter internacional. Previu a ampliao de mecanismos de colaborao entre a OMS e o pas

afetado, alm de incentivos que estimulem a observncia por parte dos 192 Estados membros.

32

A questo dos agentes infecciosos no transgnicos no esta contemplada pela Lei de

Biossegurana brasileira. As aes de biossegurana destinadas a respaldar a vigilncia de

base epidemiolgica, laboratorial e clnica, foram objeto de discusso em uma oficina de

trabalho realizada em meados de 1995, por ocasio da definio do Projeto Brasileiro de

Capacitao Cientfica e Tecnolgica para Doenas Infecciosas Emergentes e Reemergentes

do Ministrio da Sade. Naquele evento foi apontado que as questes de biossegurana

constituam fator prioritrio para progresso dos processos de capacitao voltados para o

enfrentamento dos riscos inerentes aos agentes infecciosos novos e ressurgentes (MARQUES,

1998). poca foi elaborado um programa de capacitao em biossegurana criado a partir

de um diagnstico realizado nas principais instituies envolvidas em diagnsticos de

doenas sob vigilncia.

Em 2000 a CGLAB/FUNASA, hoje na Secretaria de Vigilncia em Sade (SVS) do

Ministrio da Sade, baseada na experincia de 95 e frente s condies precrias de

biossegurana que se encontravam os laboratrios de sade pblica, estabeleceu um Programa

Nacional de Biossegurana com trs grandes metas: a capacitao em biossegurana para

todos os laboratrios da rede de sade pblica, a implantao de doze reas laboratoriais de

nvel de biossegurana 31 e a elaborao de normas sobre biossegurana para instituies de

sade pblica.

A ausncia de aparato normativo que permitisse regulamentar as aes de

biossegurana nos laboratrio de sade pblica, levou o Ministrio da Sade a criar a

Comisso de Biossegurana em Sade (CBS). Essa comisso, instituda atravs da Portaria n.

343/ MS, de 19 de fevereiro de 2002, teve, entre outras atribuies, a de elaborar normas de

Biossegurana voltadas para instituies de sade pblica. Nesse sentido, a CBS publicou

dois importantes trabalhos: as Diretrizes gerais para o trabalho em conteno com material

biolgico (Brasil, 2004) e a Classificao de Risco dos Agentes Biolgicos (Brasil, 2006

b). As diretrizes estabelecem alguns deveres para a realizao segura de atividades em

instituies de sade pblica, entretanto, sem fora de lei e conseqentemente sem definio

de sanes, na prtica tem sua aplicao comprometida.

2.1.5 Biossegurana e Biosseguridade: ferramentas estratgicas de preveno disseminao

de doenas

1 Foram selecionados para instalao dos laboratrios de Nvel de Biossegurana 3 os estados de So Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Distrito Federal, Bahia, Pernambuco,Cear, Par, Amazonas, Rondnia e Rio Grande do Sul.

33

Prevenir um dos objetivos centrais da biossegurana e est relacionado com

estratgias de controle da transmisso de doenas, sobretudo na investigao e monitoramento

das chamadas doenas emergentes e reemergentes. O advento da circulao de patgenos

novos e ressurgentes tornou visveis as fragilidades das tradicionais prticas de sade pblica,

implicando na intensificao de estratgias para o controle das doenas infecciosas em escala

global.

A partir dessa problemtica, agncias como a OMS e o CDC propuseram a criao de

uma rede internacional de vigilncia epidemiolgica, apoiada por instituies de excelncia,

capazes de assegurar a retaguarda de pesquisa e desenvolvimento tecnolgico (CENTRO DE

CONTROLE E PREVENO DE DOENAS, 2006; ORGANIZAO MUNDIAL DA

SADE, 2002).

Para propiciar o atendimento rpido s demandas no previstas, a formao dessa rede

tem como exigncia a criao de sistemas de vigilncia atuantes e respaldados por

nosocmios e laboratrios de diagnsticos bem estruturados. Esses espaos devem contar com

instalaes adequadas, disponibilidade tecnolgica, agilidade na dinmica das atividades e

recursos humanos capacitados. Esse perfil requer a definio de polticas de impacto voltadas

preveno e controle de doenas, com especial enfoque para as questes de biossegurana e

biosseguridade por seu carter de instrumento tcnico cientfico a servio da promoo da

sade humana e ambiental (ROCHA, 2003).

As bases que fundamentam polticas e programas de preveno tm o fator risco como

principal argumento. a anlise da extenso e da potencialidade do risco que determina as

estratgias da ao preventiva. Na lgica que orienta a preveno, previne-se pela

impossibilidade em asseverar quais as consequncias de iniciar um determinado ato,

prosseguir com ele ou suprimi-lo. Quando uma atividade apresenta a possibilidade de

prejudicar a sade humana e/ou o meio ambiente, uma postura cautelosa deve ser adotada

antecipadamente, mesmo que a extenso total do possvel dano ainda no tenha sido

determinada cientificamente, como sugere o principio da precauo (AUGUSTO; FREITAS,

1998).

O Princpio da Precauo (PP), proposto formalmente na Conferncia das Naes

Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, tambm conhecida como Cpula da

Terra ou ECO-92, realizada no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, foi definido em 14 de

junho de 1992 como:

a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, no podem ser ainda identificados. Este Princpio afirma que

34

a ausncia da certeza cientfica formal, a existncia de um risco de um dano srio ou irreversvel requer a implementao de medidas que possam prever este dano (ECO 92, apud GOLDIM, 2002).

Nesse principio requerida uma ao imediata frente a um perigo presumido, antes

de sua comprovao pela cincia. O desconhecimento sobre os reflexos, conseqncias ou

alcance de uma determinada ao, empreendimento, ou aplicao cientfica no meio ambiente

e na sade humana, implica na aplicao do princpio da precauo. Se h incerteza cientfica

no dirimida, uma medida preventiva deve ser prontamente aplicada. At porque,

reconhecido que em alguns casos pode ser impossvel apresentar a prova cientfica de um

dano at que seja tarde demais para evit-lo ou revert-lo.

Lieber (2008) refere que o tema fartamente abordado em estudos que tratam de

problemas do meio ambiente, no acontecendo da mesma forma em relao a transtornos

sade do trabalhador. Afirma que embora o PP venha ganhando destaque como uma

diretriz de sade nas ltimas dcadas, , ainda, objeto de calorosos debates na comunidade

cientfica, no existindo consenso sobre a validade de seu uso.

O autor alerta que essas diretrizes tm papel menor nas relaes da sade

ocupacional em contraposio realidade trgica do trabalho em pleno sculo XXI

(LIEBER, 2008, p.128). Observa que enquanto no mbito da proteo ao meio ambiente o

nus da prova cientfica ameaa de dano atribudo ao proponente da atividade suspeita

de agravo ambiental, os danos decorrentes de riscos ocupacionais cabem queles que se

submetem ao risco. Aponta que os pressupostos da insuficincia da cincia, foco

conceitual do PP, ora rejeitado, ora assumido, mas no no propsito de proteger a sade

dos trabalhadores sob risco (LIEBER, 2008, p. 129).

As propostas inseridas no campo da biosseguranas e biosseguridade constituem

ferramentas imprescindveis na busca do conhecimento sobre as condies de trabalho e

situaes de risco que expem o trabalhador e o meio ambiente. Esse conhecimento

oferece a possibilidade de avanar na proposio de medidas preventivas de minimizao

ou eliminao desses riscos, contribuindo, assim, para o controle da disseminao de

doenas.

2.2 O conceito de risco e suas implicaes

A palavra risco no dicionrio da lngua portuguesa definida como perigo ou

possibilidade de perigo e tem sua provvel origem atribuda ao termo latino resecare, cujo

significado seria cortar. Outra hiptese possvel da origem do vocbulo o termo risco,

35

proveniente do espanhol, cujo significado penhasco alto e escarpado (FERREIRA, 2004, p.

1764). H ainda uma referncia na lngua inglesa da idade mdia que designa o vocbulo,

referindo-se a linguagem nutica, como sendo recife, escolho, penhasco capaz de cortar

cascos de embarcaes, o que d uma conotao de perigo oculto ou ameaa potencial

(AYRES, 1995).

Para Guzzo (2004, p.58), risco um conceito nmade que orienta mltiplas prticas e

recebe contedos diversos segundo os diferentes campos de saber em que habita: a cincia, a

poltica, a economia, a medicina, o direito, a engenharia, a ecologia e o corpo humano. A

autora parte do pressuposto que risco tem seu duplo nas estratgias de segurana e est

impregnando de ambigidade, revelando-se entre o possvel e o provvel, entre positividade e

negatividade.

O vocbulo risco pode manifestar sentidos antagnicos que ora o relacionam com

desenlaces negativos, como as chances de ganhos e perdas inerentes a apostas em jogos ditos

de azar e ora o apresentam em sua face positiva, [...] supe que tenhamos roubado o futuro

das mos dos deuses, remetendo-nos ao planejamento e a possibilidade de aventurarmo-nos

cultural e cientificamente a control-lo (GUZZO, 2004, p. 58).

Compreender os sentidos do risco requer entender sua historicidade. No mundo pr-

moderno, a ocorrncia eventual de um fato positivo ou catastrfico era entendida como uma

manifestao da providncia divina, para prev-la era necessrio interpretar sinais sagrados

(THEYS, 1987). At o perodo anterior revoluo industrial, eventos reconhecidos como

perigosos representados pelos terremotos, furaces, erupes vulcnicas ou episdios de

epidemias, eram interpretados como manifestaes sobrenaturais.

De acordo com Freitas (2001), a secularizao da noo de risco ocorre com o prprio

processo de constituio das sociedades modernas no incio das revolues cientficas,

quando, em meio reforma religiosa, so produzidas intensas transformaes sociais e

culturais associadas ao forte impulso nas cincias e nas tcnicas, s grandes navegaes e

ampliao e fortalecimento do poder poltico e econmico da burguesia. O desenvolvimento

cientfico e tecnolgico que resultou em transformaes tanto na natureza quanto na

sociedade trouxe tambm alteraes na concepo de evento perigoso (FREITAS; GOMES,

1996).

A questo do risco ganhou relevante espao na rea de engenharia, particularmente, no

decorrer da Segunda Guerra Mundial, quando se buscou estimar os danos afetos a

manipulao de materiais perigosos como os explosivos, os comburentes, os materiais

radioativos, dentre outros. Na rea biomdica, a partir do emprego de novas tecnologias e de

36

novos procedimentos mdicos, atentou-se para necessidade de anlises que possibilitassem

dimensionar os possveis riscos de suas utilizaes (ROCHA, 2003).

A atual conotao probabilstica do risco provm da teoria das probabilidades, sistema

axiomtico oriundo da teoria dos jogos, na Frana do sculo XVII (DOUGLAS, 1987), e

implica a considerao de previsibilidade de determinadas situaes ou eventos por meio do

potencial conhecimento da distribuio de probabilidades.

Nas ltimas dcadas, o tema risco tem sido objeto de constante interesse acadmico e

institucional. A crescente produo cientfica e tecnolgica, favorecida pelas revolues na

informtica, telecomunicaes, transportes e metodologias organizacionais, proporcionaram

significativas mudanas no conceito daquilo que se constitui em risco, assim como,

divergncias entre peritos sobre os mtodos mais apropriados para seu clculo e margens

desejveis de segurana.

No campo da sade, o avano dessa produo sem dvida contribuiu para a reduo da

prevalncia de determinadas doenas relacionadas s pestilncias, entretanto, fizeram surgir

outros agravos oriundos da exposio a novos riscos como os radioativos, os qumicos e os

relativos a agentes etiolgicos emergentes e reemergentes.

A situao de risco gerada a partir da aplicao do conhecimento cientifico vm

requerendo dos governos, das instituies e da sociedade uma maior ateno. Questes que se

encontram em andamento no campo da engenharia gentica, da nanotecnologia, da energia,

dentre outros, vem exigindo dessas instncias a tomada de decises frente a profundas

controvrsias, como as j observadas no campo da tica e do direito em torno da clonagem.

Nas discusses sobre os riscos tecnolgicos no negada existncia de uma

realidade objetiva e tampouco o poder causal independente dos fenmenos naturais, mas

admitida a necessidade da incorporao de processos de negociao sobre a definio desses

riscos e as formas de control-los. Essa discusso no s atinge as relaes entre peritos e

leigos como divide a prpria comunidade cientfica, na definio de aes e condutas relativas

ao controle dos riscos que busquem harmonizar os julgamentos sociais e as evidncias

cientficas.

Beck (1992) afirma que estamos vivendo numa verdadeira sociedade de risco, onde

tudo esta fora de controle, no havendo nada certo alm da incerteza. Na sociedade de risco,

os eventos arriscados so cada vez mais complexos e globalizados. Para tais riscos no

existem limites temporais, na medida em que podem no ter conseqncias durante a vida dos

afetados, mas ser ativadas em seus descendentes. Tambm no existem limites territoriais

37

para suas manifestaes, j que uma determinada situao de risco local pode ultrapassar as

fronteiras nacionais.

2.2.1 Dimenses e Abordagens do risco

A definio tradicional de risco o refere enquanto possibilidade de sofrer uma perda

ou de gerar uma conseqncia negativa a partir de uma ao realizada ou de uma deciso

tomada em busca de outra finalidade. Nesse sentido, uma especial relevncia a ele atribuda

quando a possibilidade se transforma em uma probabilidade certa de dano sade, ao

ambiente ou a bens materiais e simblicos individual ou socialmente valorizados.

A estabilidade social e institucional tem sido reduzida em funo do ritmo acelerado

de mudanas que vm ocorrendo no mundo moderno. Essa reduo tem atingido a capacidade

de planejamento poltico e ampliado as incertezas sobre o futuro. A preocupao com riscos

de carter global (poluio e mudanas climticas), regional (reduo de recursos hdricos),

comunitrio (condies de trabalho) e individual (sexo inseguro) passam a fazer parte do

cotidiano das populaes. Essas mltiplas dimenses do risco e as diferentes formas de

abord-los so constantes fontes de inquietudes para os formadores de polticas pblicas, em

especial os responsveis pela segurana e pela sade pblica (FREITAS; SCHUTZ, 2005).

Para Renn (1985), enquanto expresso de uma realidade objetiva e passvel de

quantificao, o risco (R) pode ser entendido como uma combinao da probabilidade de

ocorrncia de algum evento indesejado ou prejudicial (P), e a quantidade de prejuzo, dano ou

perda que tal evento pode acarretar (D), podendo ser expresso por meio da equao:

R(x) = P(x) X D(x)

Outra forma de significar o risco (R) defini-lo como uma probabilidade decorrente

de um perigo especfico (P) potencializado pela vulnerabilidade (V) do sujeito (individual ou

coletivo) ou objeto sob ameaa; e inversamente proporcional capacidade de resposta (CR)

dos mesmos. Essas relaes esto representadas pela equao:

R(x) = P (x) X V(x) / CR(x).

38

A vulnerabilidade inclui aspectos relativos tanto s condies histricas,

socioambientais, polticas e individuais (gentica, identidade) quanto s aes e decises

concretas que possam vir a diminuir ou aumentar os efeitos adversos dos perigos envolvidos.

A capacidade de resposta, por sua vez, inclui tanto a organizao e planejamento das

organizaes sociais destinadas a prevenir, minimizar, ou reverter os efeitos adversos dos

eventos indesejados associados aos eventos de risco, quanto resilincia individual ou

sistmica para absorver os impactos adversos e para voltar a estabilizar-se sem colapsar.

A abordagem tcnico-quantitativa do risco observa-o como um evento adverso, uma

atividade, um atributo fsico, com probabilidades objetivas de provocar dano, que podem ser

estimados atravs de diferentes mtodos (prognsticos estatsticos, clculo probabilstico,

comparaes risco/benefcio, anlise psicomtrica). Nessa perspectiva, indica um ato com

possibilidade de controle e sua anlise abrange fundamentalmente trs aspectos: o clculo do

risco, sua comunicao e sua gesto (GUIVANT, 1998).

O clculo do risco consiste na identificao e possvel quantificao dos efeitos

adversos potenciais do fenmeno em anlise, na estimativa de sua ocorrncia e na magnitude

de seus efeitos. A comunicao do risco representa o grande desafio para os tcnicos no

sentido de traar estratgias que possibilitem reduzir a distncia entre a percepo dos leigos e

a dos peritos. a inteligibilidade e o volume da informao sobre o fato e suas provveis

conseqncias que possibilita qualificar o risco. A gesto de situaes de risco a condio

onde os elementos quantificveis fornecidos pelos tcnicos permitem diferenciar o que

importante do que trivial. A partir da definio das prioridades que sero estabelecidas

metas para a formulao de polticas publicas, de legislao e regulao de risco.

As explicaes tcnicas sobre o risco, assim como a avaliao de sua relevncia frente

a evidncias cientificas tm sido objeto de crticas pelos estudiosos. Douglas e Wildsky

(1981) argumentam que a anlise do risco envolve conhecimentos incertos e, na

impossibilidade em assegurar que se conhece tudo em relao a eles, no h garantias de que

os riscos que se procura evitar sejam de fato os que, objetivamente, provocam mais danos. Os

autores advertem que a ateno dada a determinados riscos em lugar de outros parte de um

processo scio-cultural. Valores comuns implicam em temores comuns, que possivelmente

no esto relacionados diretamente com o carter objetivo dos riscos.

Para Douglas e Wildsky, a determinao da relevncia do risco resultado de uma

seleo elaborada a partir de sua percepo. Essa percepo influenciada por fatores

histricos e sociais, no bastando conhecimentos cientficos e tcnicos para distinguir a

gravidade de um acontecimento. essa percepo que induz e instrumentaliza

39

institucionalmente a gesto do risco, existindo um perfil particular de risco que merece a

ateno em cada sociedade, possibilitando a superestimao ou subestimao de determinado

risco (DOUGLAS; WILDSKY, 1981). Essa abordagem do risco pelo vis cultural permite

entender como so ou no criadas s estratgias de preveno, j que estas so guiadas pelo

contexto cultural no qual os sujeitos esto inclusos, bem como pelo contexto poltico em que

o perfil do risco foi social e historicamente produzido.

Freitas e Schtz (2005) observam que a problemtica do risco vem ganhando cada vez

mais espao nos debates da sociedade. Essas discusses tm ocorrido tanto no meio cientfico

quanto ao nvel do debate pblico, estimuladas pela divulgao de assuntos que, por sua

abrangncia e magnitude, dizem respeito prpria da vida no planeta, ou ao menos,

continuidade do mundo tal como se lhe conhece at agora.

Por outro lado, segundo os autores, o desenvolvimento histrico das sociedades

industriais modernas tem gerado expectativas de que o progresso contnuo das cincias estaria

conduzindo a sociedade a notveis melhorias nas reas de sade, segurana, produo e

democracia. Porm, a evidncia de impactos ambientais globais (mudana climtica, perda da

biodiversidade) ou localizados (degradao de ecossistemas), acidentes industriais, a

emergncia e reemergncia de doenas (vaca louca, gripe aviria, gripe A) dentre outras

situaes de risco, tm desafiado falibilidade das predies tcnico-cientficas e, gerado

como conseqncia grande inquietao, mal-estar e desconfiana nas populaes (FREITAS;

SCHTZ, 2005).

De forma contraditria, os avanos cientficos e tecnolgicos que contriburam para a

reduo da mortalidade por causas evitveis - um fato comprovado pela crescente expectativa

de vida das pessoas em quase todos os pases tambm fizeram surgir e aumentar riscos j

no atribuveis aos desgnios divinos, mas prpria interveno humana. Dessa maneira, os

riscos tecnolgicos passaram a fazer parte do cotidiano de milhes de pessoas nos alimentos

que consomem; no territrio que habitam; no ar que respiram; na gua que bebem; nos

processos de trabalho que os sustentam (FREITAS; SCHTZ, 2005).

A instalao do debate sobre o risco na agenda social teve implicaes diretas e

indiretas nos custos financeiros do Estado e das empresas, sendo fundamental para que a

anlise de risco, incluindo o seu gerenciamento, emergisse como disciplina cientfica e como

rea de exerccio profissional nos anos de 1980 (OTWAY, 1985).

A idia principal que norteou o desenvolvimento dos mtodos cientficos de anlises de

riscos refletiu tanto uma tendncia para prever, planejar e alertar sobre os riscos, como a

noo de que as decises regulamentadoras sobre eles seriam politicamente menos

40

controversas se pudessem estar baseadas em evidncias rigorosas (FREITAS; SCHTZ,

2005). Essa base deveria ser construda a partir dos dados disponveis, suplementados por

clculos, extrapolaes tericas e anlises estatsticas, de modo a se obter um valor esperado

que fosse utilizado para os processos decisrios, envolvendo a utilizao em larga escala

social para o controle de tecnologias consideradas mais perigosas (OTWAY, 1985; RENN,

1985, 1992; STARR et al., 1976).

Para Augusto, Carneiro e Costa (2005), nas investigaes sobre riscos, ganham

destaque os problemas de sade advindos dos processos de industrializao e urbanizao que

determinam novos padres de consumo e alteram condies sociais, econmicas e culturais

das populaes. Nesse contexto, passa a ser exigido um novo modelo de ateno sade,

com maior nfase na promoo e preveno, ou seja, capaz de atuar sobre os riscos de

acontecer um evento no desejvel e antecipar-se aos efeitos e no apenas atuar sobre eles

(AUGUSTO; CARNEIRO; COSTA, 2005, p. 5).

Na perspectiva da preveno, essas aes devem estar focadas nas condies que

determinam o evento indesejvel. Lieber (1998) alerta para a necessria distino entre risco e

causa. Para o autor, o risco a possibilidade de acontecer um fenmeno que est associado

causa e ao contexto. A causa o que gera o evento, enquanto o contexto constitudo por

fatores que sozinhos no so capazes de promover o fenmeno, entretanto, na sua ausncia o

evento no ocorre. Portanto, segundo Lieber, o importante interferir no contexto (no como)

e no somente na causa (no porque), pois ao enfocar apenas a causa do evento indesejvel

ignora-se o conjunto de circunstncias articuladas que o originaram. preciso ir alm da

causa, identificando fatores (contexto) que contriburam para o acaso perigoso de forma a

permitir aes de interveno.

A partir dessas reflexes possvel compreender que qualquer abordagem sobre o

risco nas suas diferentes dimenses requer uma percepo que ultrapasse as evidncias.

Qualquer processo de interveno em situaes de risco deve considerar os aspectos relativos

sua complexidade, imprevisibilidade e imponderabilidade e ainda admitir que o

conhecimento a ser gerado provisrio e de operao na incerteza.

2.2.2 Percepo de risco

O interesse por estudar cientificamente a percepo de risco, segundo Otway e

Thomas (1982), ocorreu em funo da necessidade de explicar por que o pblico leigo reagia

41

negativamente perante as novas tecnologias, ainda que os peritos e especialistas sobre o

assunto em questo lhes garantissem que as mesmas no ofereciam perigos significativos.

A partir dos anos de 1980, as pesquisas empricas sobre a percepo de risco

emergiram e se consolidaram como uma rea do saber cientificamente organizada. Essas

pesquisas tiveram o intuito de desvelar as razes que acompanhavam as contradies entre o

imaginrio social do pblico leigo e as concluses tcnicas dos especialistas a respeito de

situaes de risco.

Em rigor semntico, define-se percepo de risco como a habilidade de interpretar

uma situao de potencial dano sade ou vida da pessoa, ou de terceiros, baseada em

experincias anteriores e sua extrapolao para um momento futuro; habilidade esta que varia

de uma vaga opinio a uma firme convico (WIEDEMANN, 1993).

A psicologia explica que as experincias, as reaes e as condutas humanas dependem

de apropriaes / adaptaes subjetivas da realidade. Por isso, a percepo do risco est

atravessada por determinantes de natureza diversa, as que incluem a intuio pessoal;

experincias subjetivas e intersubjetivas; antecedentes histricos (distantes e recentes); juzos

de valor; tradies morais e culturais dentre outras (FREITAS; SCHTZ, 2005). Contudo,

visando dar inteligibilidade aos estudos cientficos e acadmicos da percepo de risco, foi

preciso elaborar esquemas tericos que facilitassem abordagem de um objeto to complexo,

com destaque aos modelos psicomtrico e sociocultural.

Modelo Psicomtrico

um enfoque qualitativo baseado na psicologia cognitiva que busca determinar as

causas psicolgicas das discrepncias detectadas entre as avaliaes tcnicas e as avaliaes

subjetivas sobre um determinado risco. O modelo envolve a pesquisa de uma grande

variedade de consideraes psicossociais, buscando explicaes sobre a aceitabilidade ou

rejeio do risco em termos de preferncias reveladas (FREITAS; SCHTZ, 2005).

Starr (1976), em um trabalho realizado em 1969, considerado pioneiro nesta

abordagem, aplicou um questionrio para explorar de que maneira as pessoas entrevistadas

revelavam suas preferncias ao se expressarem sobre riscos causados pela tecnologia e os

potenciais benefcios sociais da mesma. Posteriormente, esse mtodo foi aperfeioado nos

anos de 1970, buscando formular questionrios que, ao serem respondidos, expressassem

representaes sociais do risco percebido nas atividades e tecnologias analisadas. A partir de

anlises multi-variadas dos resultados obtidos nos questionrios, seriam produzidas

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representaes quantitativas das atitudes e percepes diante de diversas situaes de risco,

sentidas como ameaas (hazards) (SLOVIC et al., 1985).

O mtodo tem trs metas bsicas (SLOVIC et al., 1980):

a) Descobrir, por meio da anlise das representaes, os principais fatores que se

encontram por trs de um discurso sobre risco / segurana;

b) Desenvolver uma teoria que seja capaz de predizer como as pessoas iro responder

perante novos perigos e/ou estratgias de segurana; e

c) Desenvolver tcnicas para avaliar as complexas e sutis opinies que as pessoas tm

acerca dos riscos aos quais esto potencialmente expostas.

Depois de analisar os resultados de numerosas pesquisas psicomtricas, foi possvel

classificar os fatores que, em princpio, mais influenciam a percepo de risco, dentre os quais

se destacam:

a) Magnitude do perigo (catstrofe fora de controle);

b) Incerteza ou ignorncia sobre a natureza do perigo (desconhecimento do que pode

ainda estar por vir); e

c) Relevncia moral dos expostos ao perigo (quem, de fato, sofrer as conseqncias

adversas).

necessrio apontar que nem todos os parmetros associados a uma determinada

percepo do risco apresentam a mesma relevncia, nem seria possvel equacion-los

linearmente como equivalentes. Esse fato justificado em funo das mltiplas correlaes

entre os diferentes fatores que motivam essa percepo em um momento determinado, para

certa populao (GARDNER; GOULD, 1989). No entanto, os pesquisadores que defendem

esta linha exploratria da percepo garantem que a abordagem contribui para melhorar a

comunicao entre os tomadores de decises e a populao exposta, antecipando as respostas

desse coletivo social, de modo a direcionar esforos de educao e sensibilizao sobre

riscos (SLOVIC et al., 1980; 1985).

Modelo Sociocultural

O modelo sociocultural uma derivao do modelo psicomtrico, que emergiu a partir

de pesquisas desenvolvidas com objetivo de estudar os riscos, levando em conta aspectos

culturais e identitrios, por meio de um enfoque pluralista. As pesquisas buscavam responder

inquietudes relacionadas abordagem do modelo psicomtrico, que tem sua base num modelo

43

prescritivo de comportamento e objetiva prescrever sociedade um modo racional de

perceber e aceitar os riscos, sendo esse modo, em ltima instncia, definido pelos

especialistas e no como sntese dialtica emergente de contradies sociais.

Segundo Freitas e Schtz (2005), o modelo plural questiona a distino entre risco

objetivo e risco subjetivo, ao mesmo tempo em que favorece a busca de parmetros sociais

que orientem um processo menos tcnico e, portanto, mais inclusivo de tomada de decises.

Nesta perspectiva, inscrevem-se a abordagem cultural e a sociolgica do risco.

Douglas e Wildavsky (1981) publicaram o livro intitulado Risk and Culture: an essay

on selection of technological and environmental dangers (Risco e Cultura: um ensaio sobre a

seleo de perigos tecnolgicos e ambientais), onde procuraram explicar, a partir de um

enfoque cultural, por que as pessoas privilegiam alguns riscos enquanto negligenciam outros.

Para os autores, a escolha dos riscos relevantes para uma dada sociedade no um simples

reflexo de preocupaes da populao com sua prpria sade e segurana. O perfil dos riscos

selecionados reflete tambm outros aspectos, tais como as crenas e valores sociais, as

instituies e as percepes da natureza, da justia e da moral, sendo todos esses fatores

coadjuvantes na superestimao ou subestimao de determinados riscos.

Nessa perspectiva, o risco no uma rea