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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA ROSÉLIA JOSÉ DA SILVA CARVALHO INVESTIGANDO A APROPRIAÇÃO DOS NEXOS CONCEITUAIS DO SISTEMA DE NUMERAÇÃO DECIMAL NO CLUBE DE MATEMÁTICA GOIÂNIA, 2017

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO EM CINCIAS E

    MATEMTICA

    ROSLIA JOS DA SILVA CARVALHO

    INVESTIGANDO A APROPRIAO DOS NEXOS CONCEITUAIS DO SISTEMA

    DE NUMERAO DECIMAL NO CLUBE DE MATEMTICA

    GOINIA, 2017

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO EM CINCIAS E

    MATEMTICA

    ROSLIA JOS DA SILVA CARVALHO

    INVESTIGANDO A APROPRIAO DOS NEXOS CONCEITUAIS DO SISTEMA

    DE NUMERAO DECIMAL NO CLUBE DE MATEMTICA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Educao em Cincias e

    Matemtica da Universidade Federal de Gois,

    como requisito parcial obteno do ttulo de

    mestre em Educao (rea de Concentrao:

    Educao em Cincias e Matemtica).

    Orientador: Prof. Dr. Wellington Lima Cedro

    GOINIA, 2017

  • Ficha de identificao da obra elaborada pelo autor por meio do Programa de Gerao Automtica do Sistema de Bibliotecas da UFG

    CARVALHO, Roslia Jos da Silva.

    INVESTIGANDO A APROPRIAO DOS NEXOS CONCEITUAIS DO SISTEMA DE NUMERAO DECIMAL NO CLUBE DE MATEMTICA [manuscrito] / Roslia Jos da Silva Carvalho - 2017. 267 f.: il.

    Orientador: Prof. Dr. WELLINGTON LIMA CEDRO. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Gois, Pr-

    Reitoria de Ps-Graduao (PRPG), Programa de Ps-Graduao em Educao em Cincias e Matemtica, Goinia, 2017.

    Bibliografia. Anexos. Apndice. Inclui siglas, tabelas, lista de figuras, listas de tabelas.

    1. Educao Matemtica nos anos iniciais. 2. Nexos Conceituais. 3. Sistema de Numerao Decimal. 4. Clube de Matemtica. 5. OBEDUC. I. CEDRO, WELLINGTON LIMA, orient. II. Ttulo.

    CDU 51:37

  • ROSLIA JOS DA SILVA CARVALHO

    INVESTIGANDO A APROPRIAO DOS NEXOS CONCEITUAIS DO SISTEMA

    DE NUMERAO DECIMAL NO CLUBE DE MATEMTICA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Educao em Cincias e Matemtica

    da Universidade Federal de Gois, como requisito

    parcial obteno do ttulo de mestre em Educao

    (rea de Concentrao: Educao em Cincias e

    Matemtica).

    Orientador: Prof. Dr. Wellington Lima Cedro.

    Aprovada em 06 de setembro de 2017.

    Banca Examinadora

    ______________________________________________

    Orientador: Prof. Dr. Wellington Lima Cedro

    Universidade Federal de Gois

    ______________________________________________

    Examinadora: Prof. Dra. Anemari Roesler Luersen Vieira Lopes

    Universidade Federal de Santa Maria RS UFM/RS

    ______________________________________________

    Examinadora: Prof. Dra. Neusa Maria Marques de Souza

    Universidade Federal de Gois UFG

  • Dedicatria

    Aos meus pais, Joaquim e Tomzia, pelo amor

    incondicional, por me apoiarem e por me ensinarem,

    durante toda a vida, a importncia da busca pelo

    conhecimento.

    Ao meu esposo, Ildcio, por compreender minha ausncia,

    por abraar meus sonhos, por me incentivar a estudar, por

    cuidar de mim e de nossos filhos com carinho e dedicao.

    Aos meus filhos, Gabriel e Brbara, por me ensinarem

    todos os dias o que o verdadeiro amor e o que realmente

    importante na nossa caminhada aqui nesta terra.

    Amo vocs!

  • Agradecimentos

    A Deus, por dar-me vida, sade e propsitos; por cuidar de mim em todos os momentos,

    inspirar-me, renovar-me, fortalecer-me e permitir-me aprender em todas as circunstncias, e

    pela oportunidade de crescer.

    Aos meus pais, irm, meu esposo e filhos, por compreenderem minha caminhada, minhas

    angstias e apoiar minhas escolhas, mesmo sabendo das dificuldades e dos sacrifcios.

    Ao meu orientador, professor Wellington, pela pacincia com meu falatrio, por confiar e

    acreditar em mim quando nem mesmo eu acreditava. Pelo compartilhamento de tantos saberes

    e tantas contribuies nesse perodo de formao.

    s professoras Anemari Roesler Luersen Vieira Lopes e Neusa Maria Marques de Souza, por

    aceitarem o convite para a banca examinadora e por todas as contribuies dadas.

    Aos professores do programa, em especial queles com quem tive oportunidade de conviver e

    compartilhar experincias nas aulas no planetrio: Agustina, Dalva, Juan, Jos Rildo, Jos

    Pedro, Mrlon, Rogrio, Simone e Wellington.

    Aos amigos do PPOE/OBEDUC, GEMAT/UFG, CluMat/UFG, GEPEMat/SM, por tantas

    contribuies.

    s minhas amigas inseparveis Adriane Sardinha, Renata Matos e Rosimary Zanetti, porque

    sem elas tudo teria sido muito mais difcil. Sou grata pelo ombro amigo, pelas oraes, pelas

    palavras de incentivo, pelo compartilhamento das dvidas e dos saberes, pelas brincadeiras,

    pelas bobagens, viagens, lgrimas, risos, e, em especial, pelo amor e tempo dedicado a cada

    dia todos os dias, incansavelmente. Vocs so minhas parceiras e irms.

    Kamila Ribeiro Batista, Daniela Oliveira, Gabriela Salazar e Maria Marta, pelas

    palavras de incentivo e por cada contribuio.

    Ao amigo e companheiro de orao Natal Jos Mendanha, por todo cuidado com a minha vida

    espiritual.

    Ao casal Vanessa e Emerson, mais que amigos irmos , obrigada pela cumplicidade, pela

    presena em cada momento de alegria ou de tristeza; nossos happy hours semanais com

    certeza melhoraram meus dias e me deram fora para seguir.

    Aos companheiros de trabalho e aos estudantes da Escola Municipal Jardim Nova Esperana e

    a SME, que permitiram desenvolver esta pesquisa.

    FAPEG pelo apoio financeiro.

    Muito obrigada!

  • RESUMO

    CARVALHO, Roslia Jos da Silva. Investigando a apropriao dos nexos conceituais do

    Sistema de Numerao Decimal no Clube de Matemtica. Dissertao Programa de Ps-

    Graduao em Educao em Cincias e Matemtica Universidade Federal de Gois,

    Goinia, 2017.

    A presente pesquisa discute as relaes entre o modo de organizao do ensino de matemtica

    para os anos iniciais do Ensino Fundamental por meio de Situaes Desencadeadoras de

    Aprendizagem (SDAs) e a apropriao dos nexos conceituais do Sistema de Numerao

    Decimal (SND) por estudantes participantes do Clube de Matemtica (CluMat). O objetivo

    investigar os indcios de apropriao de nexos conceituais do SND por estudantes do 4 ano

    do Ensino Fundamental de uma escola pblica municipal de Goinia, com o desenvolvimento

    de SDAs no CluMat. Adotam-se como base terica os pressupostos da Teoria Histrico-

    Cultural, da Teoria da Atividade, do Ensino Desenvolvimental e da Atividade Orientadora de

    Ensino, por acreditar-se que so orientadores de um processo de educao para a

    humanizao e o desenvolvimento dos sujeitos e, nesse contexto, podem auxiliar na

    compreenso dos processos de organizao de ensino como meio de superao do

    encapsulamento da aprendizagem escolar. Para apreender o objeto de estudo, organizou-se

    um experimento didtico no qual foram implementadas as SDAs do mdulo SND no CluMat

    em uma escola pblica municipal de Goinia, com doze estudantes. Os relatos orais e escritos

    dos estudantes participantes do experimento didtico subsidiaram a busca por respostas

    pergunta de pesquisa, qual seja: Quais os indcios de que a organizao do ensino de

    matemtica por meio de SDAs contriburam para a apropriao de nexos conceituais do SND

    por estudantes participantes do CluMat? Para desvelar o fenmeno, realizou-se a anlise com

    base no conceito de unidades proposto por Vigotski (2001). Deste modo, fez-se uso de trs

    unidades, a saber: 1) as aes e reflexes coletivas no espao de aprendizagem; 2) a

    ludicidade como caracterstica na organizao das situaes desencadeadoras de

    aprendizagem e 3) os indcios de apropriao do conhecimento acerca do SND por meio de

    SDAs. O movimento de anlise permitiu compreender que os elementos compartilhamento e

    ludicidade, presentes no modo de organizao das SDAs do mdulo SND, mobilizaram os

    estudantes ao estudo, discusso, reflexo, ao compartilhamento de dvidas e

    conhecimentos e sntese coletiva das ideias. Esse processo ainda incentivou os estudantes a

    desenvolverem, em cooperao com seus pares, estratgias, operaes e aes na busca pela

    resoluo dos problemas, o que contribuiu para uma mudana qualitativa em suas aes. De

    modo geral, inferimos que a forma de organizao e a dinamizao das SDAs contriburam

    para que os estudantes participantes do CluMat atingissem um novo nvel de

    desenvolvimento.

    Palavras-chave: Educao Matemtica nos anos iniciais. Nexos Conceituais. Sistema de

    Numerao Decimal. Clube de Matemtica. OBEDUC.

  • ABSTRACT

    CARVALHO, Roslia Jos da Silva. Investigating the appropriation of Decimal Number

    Systems conceptual nexus in the Mathematics Club. Masters Degree Dissertation

    Postgraduate Program in Science and Mathematics Education Federal University of Gois,

    Goinia city, Brasil, 2017.

    The present research discusses the relationships between the mathematics teachings way of

    organization for the early years of elementary school through the Learning Trigger Situations

    (LTSs) and the appropriation of the Decimal Number Systems (DNS) conceptual nexus by

    participating students of Mathematics Club (CluMat). The objective is to investigate the

    clues of appropriation of DNS conceptual nexus by students in the 4th year of Elementary

    School of a Municipal Public School in Goinia/GO (Brazil), by developing LTSs in

    CluMat." The assumptions of Historical-Cultural Theory, Activity Theory, Developmental

    Teaching and Teaching Guiding Activity are adopted as theoretical basis, believing they guide

    the education process for the students humanization and development, and, in this context,

    may help to understand the teachings organization processes as a way of overcoming the

    "encapsulation of school learning". In order to understand the studys object, a didactic

    experiment was organized in which Learning Trigger Situations (LTSs) of the SND module

    in CluMat were implemented in a public school in Goinia, with twelve students. The oral

    and written reports of participating students in the didactic experiment subsidized the search

    for answers to the research question: "What are the indications that the mathematics teaching's

    organization through LTSs contributed to the appropriation of DNS conceptual nexus by

    participating students in CluMat "? To unveil the phenomenon, the analysis was performed

    based on the concept of units proposed by Vigotski (2001). In this context, three units were

    used: 1) the collective actions and reflections in the learning space; 2) the playfulness as a

    characteristic in the organization of learning trigger situations and 3) the evidence of SNDs

    knowledge appropriation through LTSs. The analysis movement made it possible to

    understand that the elements 'sharing and playfulness', present in the LTSs organization

    mode of SND module, mobilized students to the study, discussion, reflection and to doubts

    and knowledge sharing and to the collective synthesis of ideas. This process also encouraged

    students to develop, in cooperation with each other, strategies, operations and actions in the

    search for problem solving, which contributed to a qualitative change in their actions. In

    general, its possible to infer that LTSs organization and dynamization contributed to

    CluMat students achieving a new level of development.

    Keywords: Mathematics education in the initial years. Conceptual nexus. Decimal Numbering

    System. Mathematics Club. OBEDUC.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Esquema de representao de uma ao mediada na relao homem-

    mundo .......................................................................... .................................................................

    30

    Figura 2 Esquema de representao da atividade ...................................................................... 37

    Figura 3 Esquema do desenvolvimento do psiquismo na criana...................................... 40

    Figura 4 Zona de Desenvolvimento Iminente ............................................................................. 46

    Figura 5 Relao entre atividade de ensino e atividade de aprendizagem..................... 60

    Figura 6 Organizao das aes do PPOE/OBEDUC ncleo Goinia........................ 79

    Figura 7 A organizao das aes dos membros do ncleo Goinia na elaborao

    das SDAs......................................................................................................................................

    81

    Figura 8 Estudantes desenvolvendo uma atividade coletiva durante o CluMat ....... 88

    Figura 9 Elementos constitutivos das SDAs mdulo SND.................................................... 108

    Figura 10 Movimento de aes no desenvolvimento de uma SDA .................................... 115

    Figura 11 Movimento das aes na perspectiva vygotskyana ............................................... 116

    Figura 12 Estudo do movimento lgico-histrico do SND...................................................... 119

    Figura 13 Tanteira e envelopes com pistas ...................................................................................... 134

    Figura 14 Folha de registro da SDA Tanteira.................................................................................. 135

    Figura 15 Orientaes sobre o perodo de maturao dos frutos ......................................... 136

    Figura 16 Material usado no jogo Conquista de Territrios.................................................... 138

    Figura 17 Folha de registro da SDA Conquista de Territrios............................................... 139

    Figura 18 Pontuao e pedras coloridas ............................................................................................ 142

    Figura 19 Folha de registro da SDA Junta Pedras........................................................................ 142

    Figura 20 Sistema de numerao de Orizes...................................................................................... 143

    Figura 21 Folha de instrues da SDA Caldeiro das Emoes............................................ 146

    Figura 22 Escala Cuisenaire..................................................................................................................... 147

    Figura 23 Caldeires coloridos............................................................................................................... 147

    Figura 24 Folha de registro da SDA Caldeiro das Emoes................................................. 148

    Figura 25 Material do jogo, boliche, tampinhas e caixas.......................................................... 150

    Figura 26 Folha de registro da SDA Atividade Boliche ........................................................... 151

    Figura 27 Smbolos impressos nas cartas do jogo e tabela de converso.......................... 154

    Figura 28 Folha de registro da SDA Baralho dos Smbolos.................................................... 154

    Figura 29 Blocos retangulares para formar a Torre Encantada.............................................. 158

  • Figura 30 Folha de registro da SDA Torre Encantada................................................................ 158

    Figura 31 Estrutura de organizao da anlise de dados........................................................... 163

    Figura 32 Unidade 1.................................................................................................................................... 168

    Figura 33 Unidade 2..................................................................................................................................... 183

    Figura 34 Unidade 3..................................................................................................................................... 199

    Figura 35 Algarismos tirados por Cssio........................................................................................... 202

    Figura 36 Cssio l vinte e trs.......................................................................................................... 202

    Figura 37 Sistema de Numerao Floristo........................................................................................ 207

    Figura 38 Pontuao agrupada do primeiro grupo........................................................................ 207

    Figura 39 Representao de Vincius para o "amor" (flash).................................................... 211

    Figura 40 Outros modos de compor a "esperana" na viso de Janaina............................ 212

    Figura 41 Concluso de Vincius sobre a SDA Caldeiro das Emoes........................... 213

    Figura 42 Concluso de Anita sobre a SDA Caldeiro das Emoes................................. 213

    Figura 43 Tnia explicando a quantidade de estrelas no quadrado...................................... 218

    Figura 44 Movimento de sntese da anlise dos dados............................................................... 222

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Os elementos da Atividade Orientadora de Ensino............................................. 64

    Quadro 2 Os contedos e objetivos das SDAs mdulo SND ............................................. 120

    Quadro 3 Organizao das aes no CluMat............................................................................... 128

    Quadro 4 Dinmica de realizao dos encontros do CluMat............................................... 129

    Quadro 5 Estrutura das atividades Teia da Cooperao e Tubaro.................................. 130

    Quadro 6 Estrutura da atividade Tanteira...................................................................................... 133

    Quadro 7 Pistas dos galhos da Tanteira.......................................................................................... 134

    Quadro 8 Estrutura da atividade Conquista de Territrios.................................................... 137

    Quadro 9 Estrutura de organizao da atividade Junta Pedras............................................ 141

    Quadro 10 Estrutura da atividade Caldeiro das Emoes...................................................... 146

    Quadro 11 Estrutura da Atividade Boliche...................................................................................... 150

    Quadro 12 Pontos do Boliche................................................................................................................. 151

    Quadro 13 Estrutura da atividade Baralho dos Smbolos......................................................... 153

    Quadro 14 Estrutura da atividade a Torre Encantada................................................................. 157

    Quadro 15 Sntese da Unidade 1........................................................................................................... 180

    Quadro 16 Sntese da Unidade 2........................................................................................................... 196

    Quadro 17 Sntese da Unidade 3........................................................................................................... 221

  • LISTA DE SIGLAS

    AOE Atividade Orientadora de Ensino

    BDTD Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertaes

    BNCC Base Nacional Curricular Comum

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    CEFPE Centro de Formao de Profissionais da Educao

    CEP/UFG Comit de tica em Pesquisa Universidade Federal de Gois

    CluMat Clube de Matemtica

    CNE Conselho Nacional de Educao

    FAPEG Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Gois

    FFCLRP/USP Faculdade de Filosofia, cincias e Letras de Ribeiro Preto da Universidade

    de So Paulo

    FEUSP Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    FSP Funes Psicolgicas Superiores

    GEPAPe Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Atividade Pedaggica

    GEPEMat Grupo de Estudos e Pesquisas em Educao Matemtica

    IDEB ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica

    IES Instituio de Ensino Superior

    IME/UFG Instituto de Matemtica e Estatstica da Universidade Federal de Gois

    INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira

    LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

    LEMAT/UFG Laboratrio de Matemtica da Universidade Federal de Gois

    MEC Ministrio da Educao

    MECM/UFG Mestrado em Educao em Cincias e Matemtica da Universidade Federal de

    Gois

    OBEDUC Observatrio da Educao

    PCN Parmetros Curriculares Nacionais

    PPGR/CE/UFSM Programa de Ps-graduao em Educao do Centro de Educao da

    Universidade Federal de Santa Maria/RS

    PPOE/OBEDUC Observatrio da Educao Educao Matemtica nos anos iniciais do

    Ensino Fundamental: Princpios e Prticas da Organizao do Ensino

    PPP Projeto Poltico Pedaggico

    SAEB Sistema de Avaliao da Educao Bsica

  • SDA Situao Desencadeadora de Aprendizagem

    SME Secretaria Municipal de Educao

    SND Sistema de Numerao Decimal

    THC Teoria Histrico-Cultural

    UEG Universidade Estadual de Gois

    UFG Universidade Federal de Gois

    UFSM/RS Universidade Federal de Santa Maria Rio Grande do Sul

    ZDI Zona de Desenvolvimento Iminente

    ZDP Zona de Desenvolvimento Proximal

  • SUMRIO

    PARA COMEO DE CONVERSA .................................................................................... ....... 17

    1 A TEORIA HISTRICO-CULTURAL COMO BASE DO NOSSO

    ESTUDO............................................................................................................................. ...........................

    27

    1.1 DESENVOLVIMENTO HUMANO, ENSINO E APRENDIZAGEM..................... 27

    1.2 A ORGANIZAO DO ENSINO PARA O DESENVOLVIMENTO..................... 47

    1.2.1 A atividade pedaggica estruturada a partir da AOE........................................................ 56

    2 A ORGANIZAO DO ENSINO DE MATEMTICA NOS ANOS

    INCIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL..............................................................................

    66

    2.1 OS PRINCPIOS QUE ORIENTAM O ENSINO DE MATEMTICA PARA

    O ENSINO FUNDAMENTAL ......................................................................................................

    66

    2.2 A ORGANIZAO DO ENSINO DE MATEMTICA NA PERSPECTIVA

    PPOE/OBEDUC ....................................................................................................................................

    72

    2.2.1 PPOE/OBEDUC ncleo Goinia................................................................................................... 77

    2.3 O CLUBE DE MATEMTICA ........................................................................................................ 82

    3 O CONTEDO DAS SDAS A PARTIR DA PERSPECTIVA LGICO-

    HISTRICA........................................................................................ .......................................................

    90

    3.1 O SISTEMA DE NUMERAO DECIMAL: O CONTEDO DAS SDAS ........ 90

    3.1.1 Afinal, de onde vm os nmeros?...................................................................................................... 93

    3.2 AS CARACTERSTICAS DAS SDAS MDULO SND .................................................... 108

    3.3 O CONTEDO DAS SDAS MDULO SND .......................................................................... 117

    4 A PESQUISA EM MOVIMENTO .............................................................................................. 122

    4.1 EM BUSCA DOS DADOS ................................................................................................................. 122

    4.2 O EXPERIMENTO DIDTICO EM DESENVOLVIMENTO........................................ 127

    5 O MOVIMENTO DE APREENSO DA REALIDADE.......................................... 161

    5.1 O FENMENO EM MOVIMENTO ............................................................................................. 161

    5.2 UNIDADE 1 AS AES E REFLEXES COLETIVAS NO ESPAO DE

    APRENDIZAGEM ................................................................................................................................ ..

    166

    5.2.1 Episdio 1: Indcios de transformao das aes individuais em estratgias e

    aes de cooperao entre os sujeitos .............................................................................................

    168

    5.3 UNIDADE 2 A LUDICIDADE COMO CARACTERSTICA NA

  • ORGANIZAO DAS SDAS .......................................................................................................... 181

    5.3.1 Episdio 1: O movimento das aes dos estudantes mediante os recursos ldicos,

    a histria virtual e o jogo .......................................................................................................................

    183

    5.3.2 Episdio 2: A ludicidade como instrumento de superao dos conflitos pessoais

    na concretizao do CluMat ................................................................................................................

    188

    5.4 UNIDADE 3 OS INDCIOS DE APROPRIAO DO CONHECIMENTO

    ACERCA DO SND POR MEIO DE SDAS ...............................................................................

    197

    5.4.1 Episdio: A organizao do ensino de matemtica por meio de SDAs: indcios de

    um salto qualitativo no desenvolvimento de estudantes participantes do CluMat...

    199

    CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... .................... 223

    REFRENCIAS ...................................................................................................................................... 227

    APNDICES ................................................................................................................... .......................... 238

    ANEXOS ........................................................................................................................ .............................. 242

  • 17

    PARA COMEO DE CONVERSA

    A complexa rede que envolve o ensino e a aprendizagem no espao escolar tem sido

    alvo de investigao no decorrer dos anos. Questionamentos mais frequentes esto ligados

    forma como o conhecimento compartilhado, os motivos que geram o desenvolvimento da

    aprendizagem nos educandos e a verificao da aprendizagem adquirida em intervalos de

    tempo de estudo, por meio de algum instrumento de avaliao (BERNARDES, 2009).

    Discutir o processo de ensino e de aprendizagem coloca em evidncia aspectos legais e

    diretrizes educacionais, problemas relativos formao de professores, organizao do

    ensino, os resultados do ensino para o desenvolvimento dos estudantes, entre outras questes.

    No contexto da organizao do ensino e da aprendizagem matemtica, o fazer

    pedaggico, consolidado nas aes e concepes de ensino daquele que organiza

    intencionalmente os processos educativos, muitas vezes no atende s efetivas necessidades

    de aprendizagem dos estudantes e pouco influencia no seu desenvolvimento, uma vez que o

    que ensinado no tem relao com seus problemas e com sua realidade, tampouco o leva a

    transformar sua vida, por meio de prticas conscientes, a partir da apropriao dos

    conhecimentos adquiridos ao longo de sua jornada nas instituies de ensino (OLIVEIRA;

    CEDRO, 2016).

    Assim, ao considerarmos1 as mudanas econmicas, sociais, tecnolgicas, cientficas e

    tantas outras, percebemos que as necessidades relativas aprendizagem, apresentadas pelos

    estudantes, so diversificadas; entretanto, as diretrizes que orientam o ensino e a

    aprendizagem, tanto no que diz respeito legislao quanto a outros documentos

    orientadores do ensino no Brasil, como currculos e programas de ensino do sistema

    educacional, h muito tempo no atendem s necessidades elementares de aprendizagem dos

    alunos.

    Ainda que nas escolas diversas aes pedaggico-metodolgicas sejam utilizadas com

    o intuito de motivar os estudantes a aprenderem os vrios componentes curriculares expressos

    nos planos de curso dos sistemas educacionais, essas aes, por vezes, esto pautadas no

    ensino tradicional e mecanicista, que prioriza o saber fazer em detrimento da compreenso

    e da apropriao dos conceitos.

    1 Ao longo do trabalho, fao uso da conjugao verbal na primeira pessoa do singular para apresentar questes

    que refletem posicionamentos ou experincias mais individuais, alternando com o uso da conjugao verbal na

    primeira pessoa do plural, por entender que o movimento de pesquisa parte do olhar da pesquisadora e , ao

    mesmo tempo, decorrente de um processo coletivo, razo pela qual o uso do verbo no impessoal como de

    praxe acabaria, nessas situaes, por se distanciar do pretendido.

  • 18

    Esse tipo de educao que privilegia os processos empricos de ensino-aprendizagem

    no se configura como uma educao humanizadora2, uma vez que priorizam a transmisso

    de contedos a partir do treino e da repetio, em detrimento da formao de conhecimentos

    cientficos que permitiro aos alunos o seu pleno desenvolvimento. Segundo Davydov (1987),

    o ensino organizado a partir de processos empricos prepara as pessoas para o trabalho,

    refora a formao de competncias e habilidades prticas e no contribui para a superao

    dos conhecimentos espontneos e formao de conhecimentos cientficos.

    O mercado de trabalho, em virtude do veloz avano tecnolgico, fomenta e justifica

    este sistema de ensino imediatista e utilitarista, que visa adaptar as pessoas s situaes

    emergenciais do sistema produtivo, no possibilitando aos sujeitos a apropriao de conceitos

    que promovam seu desenvolvimento (SFORNI, 2004). Catanante e Arajo (2014) confirmam

    que este modo de ensino se legitima nas exigncias do sistema produtivo e capitalista que visa

    preparao dos indivduos para as demandas do mercado de trabalho. Deste modo, a

    insuficincia de mo de obra qualificada cobrada do sistema educativo, todavia o papel da

    educao formal no se restringe a preparar os sujeitos para o trabalho, mas em promover o

    pleno desenvolvimento do estudante, conforme podemos observar no artigo 2 da Lei n

    9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional:

    A educao, dever da famlia e do Estado, inspirada nos princpios de

    liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno

    desenvolvimento do educando, seu preparo para o exerccio da cidadania e

    sua qualificao para o trabalho (BRASIL, 1996).

    Desta maneira, no podemos incorrer no equvoco de concordar e pressupor que ao

    sistema educativo est atribuda, direta e exclusivamente, to somente a misso de preparar

    mo de obra para o mercado de trabalho, pois o pleno desenvolvimento do educando no est

    relacionado apenas ao desenvolvimento e aptido dos sujeitos para exercer a atividade

    produtiva, mas tambm capacidade de, a partir de suas aquisies cognitivas: satisfazer suas

    necessidades profissionais, sociais e individuais, sejam elas bsicas ou no, imediatas ou

    permanentes; elaborar meios materiais e simblicos para solucionar situaes cotidianas, e

    possibilitar o desenvolvimento. Nesse sentido, aprender implica a possibilidade de intervir no

    meio social, de compreender-se como sujeito social, participante ativo de sua comunidade,

    apto a tomar decises e preparado para os desafios diversos impostos pela vida (MOURA,

    2007).

    2 Entendemos por educao humanizadora o processo de ensino pautado na Teoria Histrico-Cultural, que

    possibilita aos sujeitos a apropriao dos conhecimentos historicamente construdos. (OLIVEIRA; CEDRO,

    2016, p. 75).

  • 19

    Nesse contexto, a aprendizagem de conceitos cientficos de diversas reas contribui

    para o desenvolvimento humano, e, nesta perspectiva, o conhecimento matemtico, em

    particular, apontado como uma rea importante na formao e no desenvolvimento dos

    indivduos (SOUSA; PANOSSIAN; CEDRO, 2014).

    Calha registrar que, quando nos referimos ao desenvolvimento, estamos partindo do

    conceito apresentado por Leontiev (1978), para quem a necessidade humana de sobrevivncia

    gera o motivo para o homem atuar no meio circundante e modific-lo; nesse movimento ele

    modifica a si prprio e se desenvolve, cria instrumentos que facilitam sua existncia,

    transformam suas aes concretas em expresses do pensamento. Esse processo que passa

    pelo desenvolvimento da comunicao e, mais especificamente, da linguagem possibilita a

    outros homens o acesso aos produtos elaborados histrica e culturalmente. Deste modo, o que

    antes era assimilado pela observao ou pelo fazer junto, torna-se um conceito, materializado

    nas vrias formas de comunicao social.

    O desenvolvimento dos conceitos matemticos um exemplo de como o

    conhecimento repassado de gerao em gerao supera as formas concretas de suas

    representaes e caminha para uma construo simblica abstrata. Isso demonstra que o

    desenvolver das vrias formas de conhecimento, inclusive os matemticos, no so frutos de

    gnios que, de repente, num insight, o criaram. Diferente disto, a matemtica surgiu da

    necessidade humana coletiva, evoluiu dos modelos materiais e dos instrumentos elaborados

    pelo homem para facilitar sua relao com a natureza e com os outros homens; para controlar

    as quantidades e o tempo e para estabelecer uma organizao contbil para sua vida em

    comunidade (MOURA, 2007). No entendimento de Moura,

    [a] matemtica um destes instrumentos que capacitam o homem para

    satisfazer a necessidade de relacionar-se para resolver problemas, em que os

    conhecimentos produzidos a partir dos problemas colocados pela relao

    estabelecida entre os homens e com a natureza foram-se especificando em

    determinados tipos de linguagem que se classificaram como sendo

    matemtica (MOURA, 2007, p. 48).

    No entanto, o ensino atualmente preponderante acerca dos conhecimentos

    matemticos, alm de abarcar as limitaes citadas com relao aos sistemas de ensino, est

    carregado de dogmas que apresentam a matemtica como algo difcil de aprender, ou que

    pode ser compreendida somente por pessoas que j nasceram com talento e aptido para a

    cincia dos nmeros (ATTIE, 2013).

    Entendemos que algumas dificuldades de aprendizagem dos estudantes perpassam por

    sua iniciao na vida escolar, pelo modo como o ensino organizado e apresentado de

  • 20

    forma abstrata, linear e sistematizada , negligenciando as estruturas lgicas e histricas de

    formao dos conceitos matemticos. Para Attie (2013, p. 21) assumir os mtodos como

    invariantes, historicamente tem sido a norma nas prticas pedaggicas, desconsiderando os

    fatos de que os procedimentos empregados atualmente sofreram alterao ao longo da

    histria. Segundo esse autor, a questo no desconsiderar o uso de mtodos e tcnicas no

    ensino de matemtica, como, por exemplo, a utilizao de algoritmos; a crtica do autor acerca

    dos procedimentos tcnicos e metdicos em relao ao ensino de conceitos matemticos

    assenta-se na forma como a sua evoluo histrica no considerada nesses procedimentos.

    Esse modelo de ensino privilegia, em geral, a percepo dos aspectos mais aparentes

    do objeto sem atentar-se para a sua totalidade e estimula a memorizao e a reproduo de

    infinitas tarefas, at que o estudante comprove que aprendeu porque sabe repetir como lhe

    foi ensinado. Logo, o ensino de matemtica conforme est posto tambm no prioriza o

    desenvolvimento pleno, mas o saber fazer.

    As autoras Dias e Moretti, ao discorrerem sobre a organizao do ensino dos conceitos

    matemticos a partir do movimento lgico-histrico, destacam a sua importncia. Para elas,

    [r]econhecer esse movimento lgico-histrico de construo no linear do

    conhecimento matemtico, que se contrape ao que por vezes apresentado

    tradicionalmente no ensino, e conceb-lo como parte de seu trabalho na

    organizao do ensino, entendemos ser o desafio do professor que ensina

    matemtica. (DIAS; MORETTI, 2011, p. 11).

    Com efeito, vivenciamos um sistema educativo disposto de forma tradicional que,

    alm de omitir os elementos histricos e sociais que ocasionaram a formao dos conceitos

    matemticos, no apresentam relaes com a vida dos estudantes e suas necessidades e no

    lhes fornece os elementos necessrios para seu desenvolvimento cognitivo, o que ocasiona o

    desinteresse pelo ensino oferecido pela escola e desmotiva o trabalho dos professores. Esse

    modelo de ensino inviabiliza a apropriao do conhecimento e impe barreiras aos sujeitos

    para agir e transformar sua vida, pois,

    [o] acesso ao conhecimento matemtico sistematizado tem sido

    imprescindvel para a prpria transformao da vida cotidiana. Alijar os

    indivduos desse acesso alij-los das condies bsicas para o usufruto dos

    avanos tecnolgicos que modificam a prpria estrutura da vida dessas

    pessoas e que permitem o acesso aos demais produtos das objetivaes

    humanas. Em outras palavras, o prprio conhecimento que cada indivduo

    elabora para sua vida cotidiana no d conta de responder s necessidades de

    sua prpria vida cotidiana. Esse indivduo precisa constantemente estar

    reelaborando esse conhecimento porque as exigncias so cada vez mais

    colocadas. Portanto, a prpria vida cotidiana necessita de interferncias do

    no cotidiano (GIARDINETTO, 1999, p. 7).

  • 21

    Do mesmo modo que os modelos educacionais tm desvinculado o ensino de

    matemtica das construes histricas e sociais do conhecimento, desvinculam tambm a

    matemtica da vida dos estudantes, limitando o seu desenvolvimento medida que restringem

    o ensino manipulao algortmica e ao estudo de regras operacionais (CEDRO, 2004, p.

    25), tornando, para aqueles, a aprendizagem matemtica desnecessria, enfadonha e

    repetitiva, sem relao com a sua vida, tampouco com suas necessidades de aprendizagem.

    Essa dissociao entre o ensino escolar e a vida fora da escola foi classificada por Engestrom

    (1998) como Encapsulamento da aprendizagem escolar.

    Destarte, em virtude da insatisfao com a forma como o ensino est posto e

    pensando em alternativas para a organizao do ensino de matemtica para os anos iniciais do

    Ensino Fundamental que contribuam para o desenvolvimento cognitivo dos estudantes, para a

    superao do encapsulamento da aprendizagem escolar que compreendi a necessidade de

    uma anlise mais acurada sobre o tema e, para tanto, de uma busca por uma capacitao

    profissional mais aprofundada. Compreendo, ainda, que minhas necessidades de

    aprendizagem acerca da organizao do ensino de matemtica para o Ensino Fundamental

    suscitaram em mim inquietaes que emergiram no processo de busca por aprimoramento,

    que se converteram nos motivos desta pesquisa e culminaram nas aes e operaes

    desenvolvidas em busca de nosso objeto, colocando-nos em atividade de estudo e pesquisa.

    Desta forma, admito que o movimento desse estudo originou-se de uma crescente

    preocupao com a organizao do ensino de Matemtica para os anos iniciais do Ensino

    Fundamental, mais precisamente a partir do ano de 2010, quando me tornei professora efetiva

    de matemtica na Rede Municipal de Ensino da cidade de Goinia. Embora com mais de dez

    anos de experincia de sala de aula com o ensino de matemtica, eu ainda no havia

    trabalhado com estudantes na faixa etria de seis a onze anos. Minha rotina de trabalho como

    professora concentrava-se nos anos finais do Ensino Fundamental. Esse perodo de transio

    gerou muitas angstias e inquietaes acerca da forma de organizar o ensino, quais os

    contedos a serem trabalhados, os mtodos de avaliao, entre outras preocupaes.

    Com muitas perguntas e nenhuma resposta, a sada foi procurar na Secretaria

    Municipal de Educao de Goinia (SME) alguma orientao sobre como organizar as

    prticas pedaggicas para essa faixa etria de ensino. Por indicao da SME, fui encaminhada

    a um curso no Centro de Formao de Profissionais da Educao (CEFPE). De maro a

    novembro de 2011, participei do curso Pr-letramento Matemtica Programa de formao

    continuada dos professores dos anos Iniciais do Ensino Fundamental, ambiente no qual pude

    constatar que a preocupao no era s minha: as salas de aula do CEFPE estavam cheias de

  • 22

    professoras, com as mesmas perguntas, as mesmas angstias. Assim como eu, procuravam

    uma receitinha para organizar a aula de matemtica, uma lista com os contedos para cada

    ano do ensino, algumas estratgias que chamassem a ateno dos alunos e, ainda, resolvessem

    as questes de indisciplina.

    Enquanto participava do curso, fui informada de um processo seletivo da Universidade

    Federal de Gois (UFG) para o preenchimento de vagas disponibilizadas a professores da

    Rede Municipal de Ensino de Goinia que se interessassem em participar de uma pesquisa no

    mbito da organizao do ensino de matemtica para os anos iniciais do Ensino Fundamental.

    Deste modo, em setembro de 2011, aps passar pelo processo seletivo da UFG,

    integrei o grupo de pesquisadores do projeto OBEDUC (PPOE/OBEDUC)3 ncleo Goinia

    intitulado Educao matemtica nos anos iniciais do Ensino Fundamental: princpios e

    prticas da organizao do ensino (MOURA et al., 2010)4, vinculado ao Programa

    Observatrio da Educao (Programa OBEDUC)5 da Coordenao de Aperfeioamento de

    Pessoal de Nvel Superior (CAPES).

    Participar deste projeto foi um divisor de guas em minha postura enquanto

    profissional da educao, uma vez que tive acesso a um novo olhar sobre o modo de

    organizao do ensino pautado no estudo, na pesquisa e em aes de ensino a partir de uma

    orientao terica consistente a Teoria Histrico-Cultural (THC), a Teoria da Atividade e a

    Atividade Orientadora de Ensino (AOE), como premissas para uma educao humanizadora.

    O envolvimento e a troca de experincias com os integrantes desse projeto permitiram

    o movimento reflexivo acerca das aes realizadas e foram contribuindo para o movimento de

    formao dos envolvidos, mobilizando aes mentais que me levaram a outras inquietaes.

    Essas novas inquietaes desencadearam em mim a necessidade de aprofundar o estudo

    acerca das contribuies das aes efetivadas no mbito do PPOE/OBEDUC.

    Dentre as aes realizadas ao longo do projeto, a elaborao de Situaes

    Desencadeadoras de Aprendizagem (SDAs) desenvolvidas no Clube de Matemtica (CluMat)

    com os estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental me chamou a ateno, de modo

    especial, uma vez que o objetivo dessas aes era o de organizar o ensino de matemtica de

    modo que ele pudesse contribuir para a apropriao do conhecimento, minha preocupao

    precpua com o processo de ensino e aprendizagem de matemtica.

    3 PPOE/OBEDUC (Observatrio da Educao Educao Matemtica nos anos iniciais do Ensino Fundamental:

    princpios e Prticas da Organizao do Ensino) utilizaremos esta sigla, conforme Pozebon (2014), quando

    nos referirmos especificamente a esse projeto (vide nota de rodap n 5). 4 Projeto submetido CAPES Edital 038/2010 proposto pela Universidade de So Paulo/Faculdade de

    Educao (FEUSP) e Coordenado em Rede pelo Prof. Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura FEUSP. 5 Programa OBEDUC utilizaremos este termo quando nos referirmos ao programa CAPES.

  • 23

    Destarte, nesta pesquisa de Mestrado so investigadas as possibilidades de apropriao

    do conhecimento acerca dos nexos conceituais do Sistema de Numerao Decimal (SND)

    matemtico por meio das SDAs elaboradas pelos integrantes do PPOE/OBEDUC,

    dinamizadas no CluMat e implementadas na Escola Municipal Jardim Nova Esperana, onde

    trabalho como professora efetiva de matemtica. Embora as referidas SDAs tenham sido

    desenvolvidas com os estudantes no perodo de vigncia do projeto, permanecia a dvida

    acerca das suas contribuies no sentido de possibilitar-lhes a apropriao dos conhecimentos

    matemticos.

    Neste contexto, surgiram as seguintes indagaes: estariam as SDAs centradas nos

    conceitos do SND contribuindo para a sua apropriao dos nexos conceituais e promovendo

    um salto qualitativo na aprendizagem do aluno? A proposta de organizao do ensino pautada

    na THC e na AOE propiciaram o desenvolvimento de atividades de ensino e de aprendizagem

    que indicam possibilidades de superao do encapsulamento da aprendizagem escolar?

    Partindo dessas e de outras indagaes, o objetivo da pesquisa investigar os indcios

    de apropriao de nexos conceituais do Sistema de Numerao Decimal por estudantes do 4

    ano de uma escola pblica municipal de Goinia, com o desenvolvimento de SDAs no

    CluMat. Analisaremos, por meio dos relatos orais e escritos dos participantes do CluMat, as

    possveis evidncias de que estes se apropriaram de nexos conceituais do SND com a

    contribuio das SDAs.

    Compreendemos que o processo de pesquisa dentro do CluMat, ancorado na teoria que

    sustenta esse estudo, proporcionar condies de analisar e compreender, a partir das

    manifestaes orais e escritas dos alunos, se as aes de ensino organizadas pelos

    participantes do PPOE/OBEDUC em relao ao MDULO SND6 converteram-se em aes

    de aprendizagem pelos estudantes participantes do CluMat, contribuindo para a apropriao

    dos conhecimentos matemticos expressos no mdulo, e, deste modo, responder pergunta de

    pesquisa que mobilizou este estudo, qual seja: Quais os indcios de que a organizao do

    ensino de matemtica por meio de SDAs contriburam para a apropriao de nexos

    conceituais do SND por estudantes participantes do CluMat?

    Nesse contexto, o objeto de estudo desta investigao reside na busca pela

    compreenso das relaes entre o modo de organizao do ensino de matemtica para os anos

    6 Todas as vezes que nos referimos ao MDULO SND, estamos nos reportando ao conjunto de SDAs

    estruturadas a partir do movimento lgico-histrico e dos nexos conceituais do SND, elaborado por integrantes

    do projeto PPOE/OBEDUC ncleo Goinia.

  • 24

    iniciais do Ensino Fundamental por meio de SDAs e a apropriao dos nexos conceituais do

    SND por estudantes participantes do CluMat.

    Na inteno de conhecer o que foi desvelado por pesquisas anteriores nossa, que

    guardam relao com nosso objeto de estudo e se sustentam na perspectiva terica da THC e a

    AOE, realizamos uma reviso bibliogrfica na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e

    Dissertaes (BDTD), em busca de trabalhos publicados e disponveis at o ms de outubro

    de 2015.

    Na primeira busca no banco de dados, utilizamos o termo Clube de Matemtica.

    Foram encontrados 15 trabalhos, dos quais 11 compartilham o nosso referencial terico,

    porm vinculados rea de pesquisa no mbito da formao de professores. Ainda fazendo

    uso do mesmo termo, foram encontrados 3 trabalhos, fundamentados, porm, em outros

    pressupostos tericos. E, por fim, encontramos 1 trabalho relacionado THC e AOE de

    Oliveira, D. C. (2014) relacionado rea de pesquisa no mbito do ensino-aprendizagem.

    Refinando a busca, procuramos por trabalhos que se relacionassem com o termo

    Situao Desencadeadora de Aprendizagem. Foram encontrados quatro, dos quais dois so

    concernentes linha de pesquisa de formao de professores e dois relacionados linha de

    pesquisa que trata do processo de ensino-aprendizagem.

    Entre essas duas pesquisas que tratam do ensino-aprendizagem, deparamo-nos com o

    trabalho desenvolvido por Cavalcante (2015). Ela discorre acerca das Situaes Emergentes

    do Cotidiano como uma das caractersticas da SDA, que, no seu estudo, so indicadas como

    metodologia para permitir que crianas de quatro anos resolvam situaes-problemas e

    desenvolvam noes matemticas. Pontuamos, no entanto, que esta pesquisa no trata

    especificamente dos nexos conceituais do SND e no so dinamizadas no Clube de

    Matemtica.

    A segunda pesquisa de Oliveira, D. C. (2014), que tambm apareceu na busca com a

    o termo Clube de Matemtica. Essa pesquisadora investigou os Indcios de apropriao

    dos nexos conceituais da lgebra simblica por estudantes do Clube de Matemtica, levando

    em considerao os relatos orais e escritos de alunos que participaram do CluMat,

    desenvolvendo SDAs acerca do contedo de lgebra. Portanto, investigaes acerca de SDAs

    que contemplem os nexos conceituais do SND dinamizadas no CluMat no foram

    encontradas.

    Vale ressaltar que a presente investigao se aproxima de Oliveira, D. C. (2014) no

    sentido de que busca encontrar indcios de que as SDAs elaboradas no perodo de vigncia do

    PPOE/OBEDUC podem contribuir para a apropriao do conhecimento matemtico,

  • 25

    diferindo-se, contudo, em relao aos contedos, uma vez que o presente estudo se concentra

    nos indcios de apropriao centrados nos nexos conceituais do SND.

    Diante disso, acreditamos que nossa pesquisa vai alm de promover a reflexo acerca

    dos processos da organizao do ensino e da aprendizagem de matemtica e de fomentar o

    debate sobre a forma linear, emprica e formalmente organizada que o ensino est posto. Ela

    pode, ainda, contribuir para que aes diferenciadas no mbito da organizao do ensino

    sejam pensadas, visando o desenvolvimento cognitivo dos alunos e a superao da

    dissociao do conhecimento escolar e a vida.

    A partir dessas consideraes, nos enveredamos na pesquisa e procuramos elementos

    que nos possibilitasse desvelar o fenmeno, com o objetivo de alcanar o objetivo desta

    investigao. Compartilhamos, assim, nos captulos que se seguem, os elementos

    estruturantes do trabalho, embasados nos pressupostos tericos que sustentam a pesquisa e na

    anlise dos dados produzidos no campo de investigao. Acreditamos que o movimento de

    pesquisa permitir apontar ou no indcios de que as SDAs referentes aos conceitos do

    SND, organizadas no mbito de pesquisa do PPOE/OBEDUC para o ensino de matemtica,

    podem ou no contribuir para apropriao de conhecimento matemtico por estudantes do

    Ensino Fundamental. No intuito de produzir os dados empricos deste estudo, organizou-se

    um experimento didtico em que as SDAs relacionadas ao SND mais especificamente as

    voltadas concepo de nmero natural foram desenvolvidas com alunos dos anos iniciais

    do Ensino Fundamental.

    Para tanto, estruturamos nossa pesquisa em cinco captulos, alm das consideraes

    finais.

    No primeiro captulo apresentamos os pressupostos tericos da THC e os elementos

    concernentes formao e desenvolvimento humano; as concepes de educao e os

    contributos da Teoria Psicolgica da Atividade do Ensino Desenvolvimental e da Organizao

    do Ensino pautados na AOE.

    No segundo captulo discorremos sobre a organizao do ensino de matemtica para

    os anos iniciais do Ensino Fundamental, conforme os apontamentos do documento

    Parmetros Curriculares Nacionais (PCN), e a proposta de organizao de ensino do

    PPOE/OBEDUC. Apresentamos, ainda neste captulo, as inter-relaes entre o

    PPOE/OBEDUC e as SDAs; para isso apresentamos a estrutura legal e operacional do

    Programa OBEDUC do ncleo Goinia, vinculado ao PPOE/OBEDUC, e o CluMat como

    palco de desenvolvimento das SDAs.

  • 26

    No terceiro captulo apontamos questes relacionadas organizao do ensino de

    matemtica, com nfase no movimento lgico-histrico de formao dos nexos conceituais,

    elaborados a partir do estudo da sntese histrica do conceito que estrutura as SDA do mdulo

    SND, e a inveno dos nmeros naturais (IFRAH, 2005), expondo, por fim, o modo de

    organizao das SDAs.

    No quarto captulo descrevemos o experimento didtico realizado enquanto percurso

    metodolgico investigativo, utilizado com o propsito de apreenso do nosso objeto.

    Apresentamos o movimento da pesquisa em busca dos dados necessrios anlise,

    caracterizando os sujeitos das aes e descrevendo cada encontro do CluMat e o

    desenvolvimento das SDAs.

    No quinto captulo, procedemos anlise dos dados ancorados nos pressupostos

    tericos que sustentam essa investigao, com base nos relatos orais e escritos dos estudantes

    participantes do CluMat. Apresentamos trs unidades de anlise, que acreditamos oferecer as

    condies necessrias para a compreenso do fenmeno investigado, tendo como pano de

    fundo o materialismo histrico-dialtico.

    As consideraes finais encerram a pesquisa, apontando, de modo sucinto, os

    resultados obtidos e as ponderaes necessrias sua interpretao.

  • 27

    1 A TEORIA HISTRICO-CULTURAL (THC) COMO BASE DO NOSSO ESTUDO

    O presente estudo est assentado na Teoria Histrico-Cultural, de Lev Semenovich

    Vygotsky7 (1896-1934); na Teoria da Atividade, de Alexei Nikolaievich Leontiev (1904-

    1979) e, ainda, nas contribuies de Vasili Vasilievich Davydov (1930-1998) acerca do

    Ensino Desenvolvimental. Esses trabalhos so os princpios norteadores da Atividade

    Orientadora de Ensino (AOE), de Manoel Oriosvaldo de Moura (1996), na qual se

    fundamentam as Situaes Desencadeadoras de Aprendizagem (SDAs), organizadas pelo

    grupo PPOE/OBEDUC ncleo Goinia e so elementos constituintes de nossa pesquisa.

    Nesse sentido, os pressupostos da THC so assumidos como fundamento desta

    pesquisa, uma vez que acreditamos, conforme Vigotsky (2007), que no movimento de

    formao humana e a partir do meio social que o homem se humaniza e se desenvolve. Neste

    captulo so abordados os elementos tericos que fundamentam esta dissertao, que trata das

    possveis contribuies de aes de ensino desenvolvidas no Clube de Matemtica (CluMat)

    com as SDAs, que, de sua feita abordam nexos conceituais do Sistema de Numerao

    Decimal e os indcios de sua contribuio na apropriao de conhecimentos por estudantes

    participantes.

    1.1 DESENVOLVIMENTO HUMANO, ENSINO E APRENDIZAGEM

    Nossa concepo de desenvolvimento humano est assentada nos pressupostos da

    Teoria Histrico-Cultural de Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934), Alexis Nikolaevich

    Leontiev (1903-1979) e Alexander Romanovich Luria (1902-1977). Estes e outros autores

    dedicaram-se aos estudos da psicologia histrico-cultural e contriburam, deste modo, com o

    estudo do desenvolvimento humano, buscando superar a concepo tradicional de

    desenvolvimento, at ento compreendido como um processo ligado maturao cerebral

    ou orgnica, no levando em conta os fatores histricos, culturais e a interao social como

    elementos que interferem no desenvolvimento (FACCI, 2004).

    Desta feita, a Teoria Histrico-Cultural relaciona os processos de desenvolvimento

    considerando a cultura e a interao social como elementos que influenciam na constituio

    7 Em virtude das diferentes formas traduzidas do nome de Lev Semenovich Vygotsky nas obras consultadas,

    ser utilizada a grafia Vygotsky (original) nas menes genricas ao autor (em que no haja referncia a obras);

    nas situaes em que houver citaes a obras, a grafia do nome dar-se- conforme constante da ficha

    catalogrfica.

  • 28

    das funes psicolgicas superiores (PIRES ZANETTI, 2015). Segundo esta concepo, a

    essncia do desenvolvimento humano individual um processo que tem origem na interao

    entre o homem biolgico e o meio social, em uma relao no direta entre sujeito-objeto,

    sendo uma atividade humana essencialmente mediada por instrumentos8 materiais e

    simblicos (CEDRO, 2004).

    A atividade humana mencionada baseia-se nos pressupostos da Teoria Psicolgica da

    Atividade de Leontiev (1978), em cuja perspectiva tal atividade assumida como tentativa de

    satisfazer uma necessidade do sujeito por meio de aes ou grupos de aes coletivas em

    busca de um objetivo. nesse movimento dinmico de interao com o outro que o homem

    genrico se humaniza e se desenvolve, na juno do homem genrico biologicamente

    constitudo com o homem histrico e cultural, socialmente humanizado.

    Leontiev (1978), influenciado pelo marxismo, postula que o trabalho detm o papel

    central no processo de humanizao, uma vez que seu carter intencional e dirigido a um

    objeto que pode satisfazer a necessidade humana. Para este autor, o trabalho o elemento

    que motiva o homem a agir e, por meio de suas aes, ele transforma a natureza e transforma

    a si mesmo (atividade interna). Todo este processo se configura como um dos pressupostos

    fundamentais da Teoria Histrico-Cultural.

    Ao fazer a distino entre as aes individuais e coletivas, o mesmo autor coloca no

    centro da atividade humana o desenvolvimento adquirido por meio da interao social. Com

    efeito, segundo esse autor, aquela (atividade humana) o reflexo das relaes sociais e se

    concretiza nas relaes humanas, no trabalho e na diviso das operaes e aes para atingir

    um objetivo comum. Para Rigon, Asbahr e Moretti,

    [u]m dos pressupostos fundamentais da teoria histrico cultural, advindo da

    teoria marxista, o papel central do trabalho, atividade humana por

    excelncia, no desenvolvimento humano. Nesta perspectiva o trabalho

    aquilo que fundamentalmente humaniza e possibilita o desenvolvimento da

    cultura (2010, p. 16).

    Essa mesma ideia explicitada por Moura, Sforni e Arajo (2011, p. 41):

    Embora o homem tambm busque na natureza a satisfao de suas

    necessidades, diferencia-se do animal medida que deixa de agir

    individualmente e de forma direta, imediata. Passando a faz-lo de forma

    coletiva, utiliza instrumentos (meios exteriores) que potencializam sua ao

    8 Os instrumentos so uma construo elaborada pelo homem para mediar o processo de apropriao da

    realidade e transformar a natureza; os instrumentos materiais medeiam a atividade externa, os instrumentos

    simblicos medeiam a atividade interna, psquica do homem (BERNARDES, 2010).

  • 29

    sobre o meio. Essa forma de agir para satisfazer necessidades denominada

    trabalho, pois, alm de satisfazer suas necessidades, os homens produzem os

    meios para isso.

    Deste modo, compreendemos que nas relaes laborais e no envolvimento do

    indivduo com outros humanos que se torna possvel a formao das estruturas mentais mais

    elaboradas, uma vez que, por meio do trabalho, o homem constri intencionalmente os

    instrumentos que sero agentes mediadores entre sua ao e a natureza, e, neste movimento,

    alm de produzir os instrumentos, ele tambm produz conhecimentos acerca destes

    instrumentos que so transmitidos socialmente (SFORNI, 2004). A criao de instrumentos

    mediadores se assentou na necessidade do homem em lidar com a natureza para facilitar o seu

    trabalho, conforme se observa em Facci (2004, p. 204):

    A forma como o homem foi interagindo na sociedade e com a natureza

    conduziu necessidade de criar mediadores os instrumentos e signos ,

    cuja utilizao caracteriza o funcionamento dos processos psicolgicos

    superiores. Por meio da mediao que essas funes se desenvolvem.

    No entendimento da citada autora, o funcionamento de processos mentais mais

    elaborados mobilizado e desenvolvido medida que (i) o homem vai se utilizando e se

    apropriando dos instrumentos mediadores de suas aes e (ii) que vo ocorrendo, nas prticas

    sociais, os processos de transmisso dos conhecimentos produzidos de uma gerao outra.

    Conforme se v em Sforni (2004, p. 34), a apropriao dos conhecimentos acerca dos

    mediadores ocorrem inicialmente, no compartilhamento das aes na prpria atividade, por

    meio de seu uso e pela comunicao entre os usurios:

    Diferentemente dos outros animais, o homem, alm de poder construir

    intencionalmente os instrumentos, transmite socialmente suas funes. Cada

    membro da espcie recebe do seu meio social um legado de

    desenvolvimento histrico e cultural que est plasmado nos instrumentos

    disponveis. Estes permitem novas aes sobre novos objetos e a criao de

    novos instrumentos. Essa dinmica, somente verificada nos seres humanos,

    faz com que o desenvolvimento das relaes do homem com a natureza seja

    tambm o desenvolvimento de cada homem em particular e que, ao mesmo

    tempo, a mediao do homem com o mundo seja cada vez mais complexa.

    Desta maneira, a diferena fundamental entre o ser humano e os demais animais a

    ao intencional e consciente do homem, que tem por objetivo no apenas garantir sua

    existncia biolgica, mas, principalmente, sua existncia cultural (RIGON; ASBAHR;

    MORETTI, 2010, p. 16). Segundo esses autores, o modo de ao do homem com vistas

    manuteno de sua existncia fez com que este organizasse sua atividade de maneira

  • 30

    consciente e, por meio do trabalho, permitisse a reproduo e a transmisso a outros

    indivduos dos processos de desenvolvimento formados no decorrer da evoluo de sua

    espcie.

    Esse movimento permitiu aos sujeitos a apropriao histrica e cultural do material j

    produzido pelas geraes anteriores e, assim, a partir desta base, reproduzir, elaborar ou

    (re)criar os meios e instrumentos que garantissem sua vida, diferentemente dos demais

    animais, que apresentam uma atividade adaptativa ao meio (RIGON; ASBAHR; MORETTI,

    2010).

    Significa dizer que a aquisio do objeto por meio da ao humana no acontece de

    forma linear e direta na relao sujeito-objeto, conforme postulava a psicologia experimental.

    Os elementos mediadores vo configurar, conforme Vigotsky (2007), o suporte para o

    desenvolvimento humano. Para este autor, esse processo tem origem na infncia e se

    consolidam a partir de duas formas fundamentais de mediao: o uso de instrumentos e a fala

    humana (VIGOTSKY, 2007, p. 42). Na figura 1, h um esquema representativo acerca da

    ao de mediao por instrumentos postulada por Vygotsky.

    Figura 1 Esquema de representao de uma ao mediada na relao homem-mundo

    Fonte: adaptada de Cedro (2008).

    Essa trade, segundo Cedro (2008), representa a relao no direta do sujeito rumo ao

    objeto. Na figura, observa-se o vrtice de intermediao na relao homem-mundo os

    instrumentos, que medeiam as aquisies sociais e, posteriormente, individuais na prtica

    social. De acordo com Facci, a utilizao de mediadores amplia as possibilidades humanas

  • 31

    de transformar a natureza e, consequentemente, transformar a prpria conscincia humana

    (FACCI, 2004, p. 205).

    Moura, Sforni e Arajo explicam que os instrumentos materiais ou simblicos

    inseridos na relao homem-mundo constituem um arranjo tipicamente humano, intencional e

    planejado.

    Tal artefato inexiste entre os demais animais. Por isso, afirma-se que as

    aes humanas so mediadas. Nelas h planejamento, j que muitas delas

    no satisfazem diretamente uma necessidade, so apenas meios para se

    alcanar uma finalidade, isto , alm de mediadas, as aes humanas so

    intencionais. A possibilidade de planejamento das aes e o uso adequado de

    instrumentos mediadores envolvem a participao do sujeito em uma

    atividade coletiva, na qual o sentido e o significado das aes so

    partilhados. Ou seja, a ao humana mediada, intencional e tambm

    coletiva (MOURA; SFORNI; ARAJO, 2011, p. 41).

    Assim, a aquisio do conhecimento impresso nos instrumentos por conta de seu

    significado social vai sendo internalizada pelos indivduos; o conhecimento, antes expresso na

    atividade prtica, vai se desprendendo da necessidade manual e se corporificando nos objetos

    e na linguagem9, cuja forma principal a fala, instrumento (elemento simblico geralmente

    apropriado na infncia) de comunicao e um dos mediadores das aes compartilhadas nas

    atividades humanas. A fala foi considerada por Vigotski (1998) como elemento essencial na

    aprendizagem e na formao de conceitos. Para ele, a inteligncia prtica (relacionada ao uso

    de instrumentos materiais) e o uso de signos10

    (entre eles a linguagem) esto inter-

    relacionados e atuam no desenvolvimento de novas formas de comportamento humano

    (VIGOTSKY, 2007).

    Por meio da linguagem, o homem explica a experincia acumulada e faz

    generalizaes mediante a apropriao dos conceitos materializados na interao social. por

    meio da linguagem que a organizao mental expressa a realidade do mundo circundante; ela

    (a linguagem) um instrumento simblico do pensamento e se concretiza a partir das

    generalizaes e abstraes conceituais (SFORNI, 2004). Facci igualmente pontua:

    a partir da linguagem que se formam os complexos processos de regulao

    das prprias aes do ser humano. No comeo a linguagem uma forma de

    comunicao entre a criana e o adulto, mas gradualmente vai

    transformando-se em uma forma de organizao da atividade psicolgica da

    criana (FACCI, 2004, p. 211).

    9 Dentre os instrumentos psicolgicos caraterizados por smbolos ou signos, Vygotsky dedicou maior ateno

    linguagem, sendo esta um elemento de mediao entre a criana e o adulto como meio de comunicao e

    colaborao e, posteriormente, como elemento de controle de sua prpria atividade (CEDRO, 2004). 10

    Os signos, segundo Vigotsky (2007, p. 52), agem como instrumento da atividade psicolgica de maneira

    anloga ao papel do instrumento no trabalho.

  • 32

    O pensamento manifesto em conceitos se exterioriza no somente pela linguagem, mas

    por outros signos, como a escrita, o clculo, o desenho etc.; entretanto, a linguagem

    convertida em signos (palavras) se configura como um smbolo mais amplamente utilizado

    para materializar os conceitos formados no pensamento (FACCI, 2004).

    Deste modo, para se chegar ao conceito, o pensamento organiza e desenvolve

    processos mentais, mobilizando funes psquicas que conduzem formao do pensamento

    terico. neste campo que atua a ao intencional do professor, uma vez que ele por meio

    do ensino formalmente organizado e materializado, a princpio, na escola elabora situaes

    que promovam, durante o processo de ensino-aprendizagem, a formao do pensamento

    terico e a generalizao de conceitos de forma que permitam ao estudante aplic-las a

    problemas especficos (LIBNEO; FREITAS, 2015).

    O desenvolvimento humano, conforme concebe a THC, est assentado na transio do

    homem genrico para o sujeito individual, ou seja, a formao de sua singularidade,

    influenciada pelo meio social, a constituio da individualidade humana mediada pelo

    conjunto dos bens produzidos historicamente (BERNARDES, 2010, p. 311). neste

    contexto que o homem forma sua personalidade, sua individualidade, ou seja, o homem

    humaniza-se na relao social pela apreenso do conhecimento.

    A formao da individualidade do sujeito apresentada por Bernardes (2010) na

    relao singular-particular-universal. Para a autora, o homem genrico (universal), dotado de

    caractersticas naturais e biolgicas, se constitui humano (singular), com suas caractersticas

    especficas e individuais, conforme vai atuando nas atividades coletivas sociais (particular).

    Oliveira concebe a relao singular-particular-universal postulada por Bernardes da seguinte

    forma:

    Esta relao [...] objetivada pela participao ativa dos sujeitos em

    situaes (particular) que permitam a ele constituir-se humano (singular) por

    meio das inter-relaes com a generacidade humana (universal). Esta relao

    singular-particular-universal configura-se na prpria realidade dos

    indivduos, por meio da organizao de vivncias que possibilitem aos

    sujeitos compreender o movimento lgico-histrico das geraes anteriores.

    (OLIVEIRA, D. C., 2014, p. 23).

    No nosso entendimento, no movimento de formao da individualidade que o sujeito

    se apropria dos bens culturais, dos conhecimentos socialmente produzidos pelas geraes

    anteriores, humaniza-se e se desenvolve durante todo o seu ciclo de vida, uma vez que a

    produo humana dinmica.

  • 33

    Diante do exposto, pode-se inferir que o ser humano no nasce pronto e apto ao

    desenvolvimento, e que esse desenvolvimento no depende exclusivamente da maturao

    biolgica dos sujeitos; antes, um processo que envolve o homem biolgico (dotado das

    caractersticas de natureza fsica herdadas de sua espcie humana filognese), bem como a

    sua interao com a histria e a cultura (sociognese), mediado por instrumentos na prtica

    social que atuam durante o seu ciclo de vida e suas etapas de desenvolvimento (ontognese).

    Esses trs aspectos contribuem para a formao das funes psicolgicas superiores do

    homem, correspondentes ao seu desenvolvimento mental individual (OLIVEIRA, M. K.,

    2010).

    Deste modo, Facci postula que o desenvolvimento humano se estabelece na juno do

    desenvolvimento orgnico com o desenvolvimento histrico-cultural: os planos animal e

    humano unificam-se (FACCI, 2004, p. 204) e propiciam o desenvolvimento do psiquismo.

    De acordo com essa autora, nesse movimento de apropriao da cultura que se formam os

    diferentes modos de conduta, e a funo psquica modificada, promovendo novos nveis de

    desenvolvimento. Ainda segundo Facci (2004), foi a interao do homem com a sociedade

    que conduziu a criao e o uso dos instrumentos simblicos ou materiais.

    Ao apresentar o processo de apropriao do conhecimento a partir da mediao com

    os instrumentos simblicos e materiais, Sforni (2004) esclarece que tais instrumentos tm

    funes reguladoras diferentes.

    Os instrumentos materiais (externos) regulam as aes sobre os objetos, enquanto os

    instrumentos simblicos (internos) so mediadores do psiquismo; quando combinados,

    mobilizam os meios de apropriao primeiro material e depois mental promovendo um

    movimento de transformao interna a partir da ao do homem com o meio externo.

    Desta forma, a aquisio de instrumentos um dos mecanismos fundamentais de

    desenvolvimento humano, visto que aqueles regulam o comportamento e a interao do

    indivduo com o mundo material e com os outros indivduos. Segundo Moura, Sforni e Arajo

    (2011, p. 43), a aquisio de instrumento consiste na apropriao das operaes fsicas ou

    mentais que nele esto incorporadas por meio de uma atividade terico-prtica. Esse

    processo est diretamente relacionado ao modo como o indivduo se desenvolve (ontognese)

    e faz a passagem entre o no saber e o saber (micrognese) na prtica social.

    De acordo com os estudos de Oliveira, M. K. (2010), a passagem entre o saber e o no

    saber se denomina processos de aprendizado (2010, p. 57). A autora explica, baseada nos

    estudos de Vygotsky, que o termo aprendizado mais abrangente porque envolve a

    interao social, ponto fundamental da THC.

  • 34

    Assim, na prtica social que os instrumentos mediadores da ao do homem so

    transmitidos de gerao em gerao,

    Quando um instrumento transmitido socialmente, transmitem-se com ele

    signos e processos mentais que acompanharam a sua criao e uso, ou seja,

    na interao entre as pessoas e na ao fsica e mental sobre o instrumento

    carregado de signos, realiza-se o processo de internalizao. Inmeras so as

    situaes em que se verifica como o ambiente cultural, mediante signos e

    instrumentos, vai conferindo propriedade e pertinncia s aes individuais,

    permitindo, nesse processo, o desenvolvimento de funes psicolgicas

    superiores. (SFORNI, 2004, p. 35).

    Dito de outro modo, de acordo com a Teoria Histrico-Cultural, as funes

    psicolgicas superiores uma das linhas do processo geral de desenvolvimento humano

    desenvolvem-se medida que o homem vai se apropriando dos bens culturais produzidos por

    outros homens (FACCI, 2004). Outra linha so os processos elementares, que, para Facci, so

    as bases para as formas superiores de conduta:

    Toda forma superior de conduta est ancorada nos processos psicolgicos

    elementares. Os processos psicolgicos elementares tais como reflexos,

    reaes automticas, associaes simples, memria imediata etc. so

    determinados fundamentalmente pelas peculiaridades biolgicas da psique;

    j os processos psicolgicos superiores tais como a ateno voluntria,

    memorizao ativa, pensamento abstrato, planejamento nascem durante o

    processo de desenvolvimento cultural, representando uma forma de conduta

    geneticamente mais complexa e superior (FACCI, 2004, p. 205).

    Desta feita, compreende-se que o processo de desenvolvimento humano, conforme

    aponta Facci, conecta as duas linhas principais: os processos psicolgicos elementares e as

    funes psicolgicas superiores.

    Conforme j acenado, os processos psicolgicos elementares da psique humana so

    naturalmente desenvolvidos e se configuram como uma base para que o desenvolvimento

    histrico e cultural, associado ao envolvimento dos sujeitos no meio social e as suas aes

    com o mundo material, promovam o desenvolvimento dos processos psicolgicos superiores

    (FACCI, 2004). exatamente nessa relao frisa-se que o sujeito se apropria de

    conhecimentos mais gerais, a partir das atividades coletivas, e os reelabora para suas

    demandas individuais.

    Gladcheff (2015), apoiada em Vygotsky, assinala que, nesse movimento de evoluo

    dos processos elementares para processos psicolgicos superiores, as atividades coletivas, que

    envolvem as operaes externas materiais rumo aquisio do objeto, se convertem em

  • 35

    atividade psquica interna possibilitando a transformao do contedo material em aquisies

    psquicas, concretizando o processo de internalizao.

    Com base em Vigotsky (2007), entende-se a internalizao, de sua feita, como um

    processo que ocorre quando as representaes mentais (intrapsicolgicas) substituem os

    objetos do plano material (interpsicolgicos), ou seja, quando o processo de internalizao

    est concretizado, a manipulao material de objetos no mais necessria e as aes, agora,

    tornam-se mentais, podendo ser planejadas, simuladas e adaptadas em um esquema que aqui

    chamaremos de regulao. A internalizao das aes desenvolvidas pelo humano genrico

    nas prticas sociais vo se concretizando no homem individual por meio das formaes de

    suas estruturas mentais superiores, uma vez que

    [...] o processo de internalizao consiste numa srie de transformaes. a)

    uma operao que inicialmente representa uma atividade externa

    reconstruda e comea a ocorrer internamente. de particular importncia

    para o desenvolvimento dos processos mentais superiores a transformao da

    atividade que utiliza signos, cuja histria e caractersticas so ilustradas pelo

    desenvolvimento da inteligncia prtica, da ateno voluntria e da memria.

    b) um processo interpessoal transformado num processo intrapessoal.

    Todas as funes no desenvolvimento da criana aparecem duas vezes:

    primeiro entre pessoas (interpsicolgica) e, depois, no interior da criana

    (intrapsicolgica). (VIGOTSKY, 2007, p. 57-58).

    De acordo com a Teoria da Atividade, o processo de internalizao interdependente

    e resultante das relaes entre as atividades interna e externa desenvolvidas no meio social e

    mediadas por instrumentos e, assim, no podem ser compreendidas se analisadas

    isoladamente (LEONTIEV, 1978).

    O conceito de mediao por instrumentos na atividade humana, cunhado por

    Vygotsky, foi a base para Leontiev (1978) na elaborao da Teoria Psicolgica da

    Aprendizagem, que inseriu o contexto social no conceito de atividade mediada. No

    entendimento de Lopes,

    [e]ssa teoria se embasa na ideia de que o homem sente necessidade de

    estabelecer um contato ativo com o mundo exterior e, para conseguir

    manter-se nele, precisa produzir meios de sobrevivncia. Sua atividade est

    sempre direcionada a satisfazer suas necessidades, o que o leva a atuar e

    influir no espao em que vive, transformando-o; porm, assim, tambm se

    transforma. Por isso, a atividade do indivduo que determina o que ele ,

    porque est vinculada ao nvel de desenvolvimento de seus meios e suas

    formas de organizao (LOPES, 2009, p. 83).

  • 36

    Cabe ressaltar que Leontiev, desta forma, apresentou avanos no conceito de atividade

    mediada na relao homem-mundo quando postulou que a totalidade das aes

    compartilhadas nas atividades humanas no contexto social so fundamentais para explicar a

    ao individual do homem direcionada a um objeto. Ou seja, a atividade humana est

    diretamente ligada satisfao de suas necessidades; para satisfaz-las, o homem atua no

    meio exterior em conjunto com outros homens visando atingir um objetivo comum com aes

    ora individuais, ora coletivas.

    Nesse movimento, medida que algumas necessidades vo sendo satisfeitas, outras

    vo surgindo em um nvel de exigncia mais complexo, sendo necessrias novas aes ou um

    novo modo de ao com particularidades qualitativas (LOPES, 2009).

    Entretanto, somente a necessidade no capaz de mobilizar sujeito. Com efeito, de

    acordo com Leontiev, s a necessidade no estimula a atividade humana rumo ao objeto

    material ou ideal. Para este autor a fora motriz da atividade compreende necessidades e

    motivos, que so os processos psicologicamente caracterizados por aquilo a que o processo,

    como um todo, se dirige (seu objeto), coincidindo sempre com o objetivo que estimula o

    sujeito a executar esta atividade, isto , o motivo (LEONTIEV, 2006, p. 68). Assim, para que

    o sujeito entre em atividade preciso que exista um motivo que o mobilize a executar uma ou

    mais aes que o dirijam ao objeto material ou ideal que coincida com suas necessidades e as

    satisfaam (LOPES, 2009).

    Para Libneo,

    [o] ciclo que vai de necessidades a objetos se consuma quando a necessidade

    satisfeita, sendo que o objeto da necessidade ou motivo tanto material

    quanto ideal. Para que estes objetivos sejam atingidos, so requeridas aes.

    O objetivo precisa sempre estar de acordo com o motivo geral da atividade,

    mas so as condies concretas da atividade que determinaro as operaes

    vinculadas a cada ao (LIBNEO, 2004).

    Nesse sentido, Leontiev (2006) esclarece que a atividade e sua relao com as

    necessidades, motivos e aes so os fatores que realmente mobilizam o sujeito em direo ao

    seu objeto. No entendimento do autor, no podemos chamar qualquer processo de atividade:

    por esse termo designamos apenas aqueles processos que, realizando as relaes do homem

    com o mundo, satisfazem uma necessidade especial correspondente a ele (LEONTIEV,

    2006, p. 86).

    Em outras palavras, uma ao que no desencadeada por um motivo que coincida

    com a necessidade no ser, de acordo com a perspectiva da Teoria Psicolgica da Atividade,

  • 37

    uma atividade. Para se caracterizar uma atividade, a necessidade deve coincidir com o motivo

    e, assim, estimular uma ao ou conjunto de aes em busca do objeto que a satisfaa.

    Assim, a atividade determinada pelas necessidades e motivos, e o objetivo a ser

    alcanado demandar aes especficas. Portanto, necessidades e motivos so a base de

    preparao para as aes, que, por sua vez, sero executadas por meio de operaes11

    e

    culminaro ou no na satisfao da necessidade. No esquema (figura 2) a seguir, demonstra-se

    o nosso entendimento acerca dos elementos constitutivos da atividade.

    Figura 2 Esquema de representao da atividade

    Fonte: elaborada pela autora (2017).

    A relao entre os elementos da atividade caracterizada pela interdependncia entre

    eles; em outros termos, os motivos esto atrelados a uma necessidade existente no sujeito da

    ao, que, para alcanar seu objetivo e satisfazer sua necessidade iminente, caminha (atua) em

    direo ao objeto de satisfao; para tanto, aes so desenvolvidas (LOPES, 2009). Assim, o

    modo prtico de execuo da ao denominado de operaes. Leontiev (2006) esclarece a

    relao entre aes e operaes por meio de um exemplo:

    Por operaes, entendemos o modo de execuo de um ato. Uma operao

    o contedo necessrio de qualquer ao, mas no idntica a ela. Uma

    mesma ao pode ser efetuada por diferentes operaes e, inversamente,

    numa mesma operao podem-se, s vezes, realizar diferentes aes: isso

    ocorre porque uma operao depende das condies em que o alvo da ao

    dado, enquanto uma ao determinada pelo alvo. Se tomarmos um

    11

    As formas de realizao da ao so denominadas de operaes. [...] Toda operao o resultado da

    transformao da ao, de sua tecnificao[...] (LOPES, 2009, p. 90).

  • 38

    exemplo muito simples, podemos esclarecer isto da seguinte maneira:

    admitamos que eu tenha concebido o objetivo de decorar versos. Minha ao

    consistir, ento, em uma ativa memorizao deles. Todavia, como farei

    isso? Em um caso, por exemplo, se no momento eu estiver sentado em casa,

    eu talvez prefira escrev-los; em outras condies eu recorrerei a repetio

    dos versos para mim mesmo. Nos dois casos, a ao ser a memorizao,

    mas os meios de execut-la, isto , as operaes de memorizao sero

    diferentes (LONTIEV, 2006, p. 74).

    A atividade, no decorrer do desenvolvimento humano, passa por etapas. Para Vigotsky

    (2007), duas dessas etapas so muito relevantes por se referirem ao aprendizado, mais

    especificamente ao das crianas.

    A primeira etapa, denominada pr-escolar, ocorre no meio social familiar e com

    pessoas mais prximas, sem a necessidade de se frequentar a escola (VIGOTSKY, 2007).

    Trata-se de um perodo em que ocorre a aquisio de conceitos espontneos, assistemticos,

    relacionados aquisio do material social externo do dia a dia, como os hbitos, as

    habilidades, os costumes, as crenas etc.

    A segunda etapa, denominada de aprendizagem escolar, acontece quando a criana

    comea a frequentar a escola e a participar de um processo de aprendizagem que se

    caracteriza pela organizao sistematizada, intencional e planejada da transmisso do

    conhecimento. Nesse ambiente, o aprendizado escolar est voltado para a assimilao de

    fundamentos do conhecimento cientfico12

    (VIGOTSKY, 2007, p. 94), da a importncia da

    aprendizagem escolar para a formao dos conceitos cientficos e o desenvolvimento

    cognitivo dos sujeitos inseridos no processo de escolarizao.

    Leontiev tambm entende que o desenvolvimento do psiquismo se divide em etapas

    relacionadas s atividades desenvolvidas pelos sujeitos em cada estgio da vida: cada estgio

    do desenvolvimento psquico caracteriza-se por uma relao explcita entre a criana e a

    realidade principal naquele estgio e por um tipo preciso e dominante de atividade

    (LEONTIEV, 2006, p. 64).

    As atividades dominantes presentes em cada estgio do desenvolvimento so

    nomeadas pelo autor de atividades principais e no esto necessariamente relacionadas aos

    afazeres realizados com mais frequncia ou em que h mais tempo despendido. Para esse

    autor, a atividade principal se modifica quando a criana passa de um estgio de

    desenvolvimento a outro. Segundo Leontiev (2006), a atividade principal se caracteriza por

    trs atributos principais, quais sejam:

    1. aquela que faz surgir no seu interior outros tipos de atividades;

    12

    Os conceitos cientficos e espontneos sero abordados com mais profundidade na prxima seo.

  • 39

    2. Por meio dela se organizam ou se formam os processos psquicos particulares;

    3. a atividade da qual dependem, de forma ntima, as principais mudanas psicolgicas

    evidenciadas na personalidade da criana em determinado perodo de seu

    desenvolvimento. Deste modo, a atividade principal pressupe mudanas substanciais

    nos processos psquicos e na personalidade da criana durante certo estgio de seu

    desenvolvimento.

    Destacam-se, ainda, os estgios de desenvolvimento elencados por Leontiev (1978):

    A infncia pr-escolar, de 3 a 6 anos, quando o contato da criana restrito famlia e

    a outras pessoas prximas; nesta fase a atividade dominante ou principal da criana

    ldica e sua predominncia consiste em brincadeiras e jogos que, em muitos casos,

    imitam as aes dos adultos.

    O perodo escolar, de 6 a 11 anos, quando os horizontes sociais da criana so

    ampliados pela sua insero na vida escolar e no convvio social fora do crculo

    familiar; nesta etapa, so inseridas na sua atividade dominante atualmente consolidada

    (o brincar) as atividades escolares, bem diferentes das obrigaes anteriormente

    requeridas.

    A adolescncia, a partir dos 11 anos, quando ocorre a insero da criana na vida

    adulta; neste perodo que ocorre o desenvolvimento de atitudes crticas e a atividade

    dominante se concentra na preparao para o trabalho (LOPES, 2009). Assim,

    A mudana da atividade dominante acontece quando ocorrem contradies

    entre o modo de vida j superado pela criana e suas potencialidades, ou

    seja, medida que a criana cresce, tambm crescem suas capacidades e ela

    percebe que tem condies de mudar o lugar que ocupa na sociedade. Assim,

    sua atividade se reorganiza, levando passagem para outro estgio (LOPES,

    2009, p. 86).

    Convm esclarecer, portanto, que no qualquer atividade que garante ou promove o

    desenvolvimento da criana, tampouco a mudana de lugar que ela ocupa; seu

    desenvolvimento, por sua vez, depende de suas condies reais de vida (LEONTIEV, 2006,

    p. 63). Citam-se, por exemplo, as atividades de estudo inseridas na vida das crianas aps a

    sua entrada na escola. Estas atividades no garante