investigações sobre o entendimento humano_seções de i a viii_resumo

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Resumo do livro homônimo.

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  • 1. Das diferentes espcies de filosofia.

    [1] Nesta seo Hume traa a distino entre duas espcies de filosofia, uma

    fcil e descomplicada e outra acurada e profunda, argumentado a favor desta

    ltima. A primeira enfoca o homem como um ser voltado para a ao, e

    procura influenciar sua conduta pela exposio de exemplos de virtude e

    vcio, utilizando recursos poticos e imaginativos, que tocam o seu corao e

    sentimento.

    [2] O segundo tipo de filosofia enfoca o homem como um ser eminentemente

    racional, esforando-se para formar o seu entendimento. Isso faz pelo estudo

    criterioso da natureza humana, na busca de conhecimento preciso dos modos

    de operao da mente, dos princpios que regulam o entendimento e as

    paixes, e daqueles que forneam moral uma fundamentao objetiva.

    [3-7] Aps considerar que a filosofia simples contar sempre com a

    preferncia da maioria da humanidade, sendo aquela que efetivamente tem

    assegurado fama duradoura aos seus expoentes, Hume apresenta alguns

    argumentos em defesa da filosofia complexa e precisa, visto que tem sido no

    apenas desfavorecida mas tambm condenada e desprezada:

    [8-9] A filosofia acurada e abstrata oferece precioso auxlio simples e

    humana, conferindo exatido s suas opinies e preceitos, contribuindo

    tambm para o aperfeioamento das artes e ofcios.

    [10] A filosofia profunda atende ao nosso desejo de conhecimento,

    proporcionando-nos um dos poucos prazeres seguros e inofensivos.

    [11-12] Considerando agora a objeo de que a filosofia complexa fonte

    inevitvel de erro e incerteza, Hume traa interessante distino entre duas

    espcies de metafsica: Uma verdadeira e outra falsa e adulterada, que engloba os sistemas racionalistas tradicionais e as supersties. O terceiro argumento a favor da filosofia profunda exatamente o de que permite,

    quando bem conduzida, desmascarar esses redutos da ignorncia e do

    obscurantismo.

    [13-14] A filosofia profunda tem, ademais, vantagens positivas que decorrem

    de um exame minucioso dos poderes e faculdades da natureza

    humana: a) possibilita estabelecer uma geografia mental, ou delineamento das diferentes partes e poderes da mente, que, como Hume diz explicitamente no Abstract, deve estar na base de quase todas as demais

    cincias;

  • [15] b) pe-nos na rota de progressos ulteriores na compreenso da mente,

    pela reduo sempre maior de suas operaes e princpios a princpios ainda

    mais gerais, a exemplo do que j vinha se dando na filosofia natural.

    [16] Quanto a esses raciocnios sobre a natureza humana parecerem abstratos

    e difceis, isso no indica que sejam falsos. Quaisquer sejam os esforos que

    requeiram, valer a pena examin-los, no apenas por prazer mas por sua

    utilidade no incremento de nosso conhecimento.

    [17] Por fim, Hume expressa a esperana de que as duas espcies de filosofia

    possam se unir, especialmente no objetivo comum de solapar as bases de uma

    m filosofia, subserviente superstio, e favorecedora de erros e absurdos.

    2. Da origem das idias

    [1-3] Inicialmente, Hume divide todas as nossas percepes em impresses,

    que so as percepes fortes e vvidas, e idias (ou pensamentos), que so as

    percepes mais fracas.

    [4-5] Nota, em seguida, que embora nada parea mais ilimitado do que o

    pensamento, seu poder criador est restrito composio, transposio,

    aumento e diminuio dos materiais fornecidos pela experincia (externa ou interna). Esses materiais so as impresses. Prope, assim, como princpio fundamental, que todas as idias so cpias de impresses. Para

    prov-lo, fornece dois argumentos:

    [6] 1o. Quando submetemos nossas idias a anlise, vemos que sempre se

    compem de idias simples que foram copiadas de uma impresso precedente.

    (Isso d conta dos aparentes contra-exemplos de idias complexas que, como

    a de uma montanha de ouro, no foram copiadas prontas de nenhuma

    impresso.) Hume transfere ao adversrio a tarefa de encontrar uma idia

    cujos elementos no sejam provenientes de impresses.

    [7] 2o. Quando, devido a um defeito do rgo sensorial ou falta do objeto do

    sentido, algum nunca teve determinada impresso, verifica-se que tambm

    no possui a idia correspondente.

    [8] Hume reconhece que pode haver uma exceo ao princpio geral proposto:

    a formao, pela imaginao, da idia de determinada tonalidade de azul (no

    exemplo considerado) a partir da impresso da srie de todas as demais

    tonalidades dessa cor. Acredita, no entanto, que essa exceo seja to singular

    que no compromete a utilidade geral do princpio.

  • [9] Conclui a seo indicando brevemente um uso importante de seu

    princpio: ele permite identificar as palavras sem significado distinto,

    responsveis por grande parte das disputas em filosofia. Quando suspeitarmos

    que determinada palavra inclui-se nessa classe, devemos nos inquirir acerca

    de que impresso poderia ter dado origem idia supostamente designada

    pela palavra. No sendo possvel encontrar nenhuma tal impresso, a suspeita

    se confirmar.

    Esse assunto no Tratado

    No Tratado da Natureza Humana, 1.1.1, Hume analisa a origem das idias de

    forma mais detalhada e rigorosa do que o faz na Investigao:

    [1] Enfatiza que a distino entre idias e impresses exclusivamente

    de grau de vivacidade (ver tambm T 1.1.7.5).

    [2] Divide todas as percepes (idias e impresses) em simples e complexas,

    definindo as primeiras como aquelas que no admitem distino ou separao de partes (critrio analtico de Locke). [3] Quanto s qualidades e relaes das percepes, Hume trata inicialmente

    da relao de semelhana que h entre impresses e idias. [4] Observa que no universalmente verdadeiro que idias e impresses

    sempre se correspondam por semelhana exata, pois h idias complexas (e.g.

    a de Nova Jerusalm) que no correspondem a nenhuma impresso, e

    impresses complexas (e.g. a de Paris) que no so representadas

    precisamente por nenhuma idia.

    [5] No entanto, entre as idias e impresses simples sempre h uma relao de

    correspondncia por semelhana exata. Hume desafia o adversrio a apontar

    contra-exemplos.

    [6] Em seguida, procura estabelecer que, alm de se corresponderem, idias e

    impresses simples esto ligadas por uma relao causal.

    [7] Todas as nossas idias simples so, em sua primeira apario, derivadas de impresses simples que lhes correspondem, e que

    representam de forma exata. Os argumentos para esse princpio geral so dois:

    [8] 1o. H uma conjuno constante de idias e impresses simples. Isso mostra que h uma grande conexo entre elas, e que a existncia de umas tem considervel influncia sobre a existncia das outras. Notando agora a ordem temporal em que aparecem pela primeira vez na mente, conclui que as nossas impresses so as causas de nossas idias, e no o contrrio. [9] 2o. O segundo argumento aquele que reaparecer na Investigao:

    faltando a algum uma determinada impresso, por defeito do rgo do

    sentido ou por ausncia de seu objeto, tambm lhe faltar a idia

    correspondente.

  • [10] Quanto universalidade do princpio de que as idias simples provm de

    impresses simples, Hume aponta duas restries: 1) a da tonalidade de azul

    (ver acima);

    [11] 2) a possibilidade de formao de idias secundrias, ou seja, idias que foram copiadas diretamente de outras idias, e apenas indiretamente de

    impresses. por isso que ao formular o princpio Hume tem o cuidado de

    acrescentar as palavras ... em sua primeira apario. [12] Hume conclui a seo dizendo que o princpio exposto no pargrafo 7 o primeiro princpio que estabelece na cincia da natureza humana, e que expressa, em palavras diferentes, o debatido princpio da inexistncia de idias

    inatas.

    3. Da associao de idias.

    [1] Hume assevera que h certos princpios segundo os quais as idias, em sua apario na memria ou imaginao, introduzem-se umas s outras com

    certo grau de mtodo e regularidade.

    [2-3] Esses princpios so apenas trs: semelhana (um retrato leva naturalmente nossos pensamentos para o original), contigidade em tempo ou lugar (a meno de um cmodo em um edifcio introduz naturalmente uma investigao ou discurso sobre os demais cmodos) e causa ou efeito (se pensamos em um ferimento, dificilmente podemos deixar de refletir sobre dor que o segue). Para nos convencermos de que essa enumerao dos princpios de associao de idias completa no h outra

    forma, diz Hume, seno percorrer diversos casos de idias associadas.

    [4-18] Hume recorre aqui literatura e s narrativas histricas, como

    fornecedoras de numerosos exemplos do uso dos princpios de associao de

    idias.

    Esse assunto no Tratado

    No Tratado, 1.1.4, o assunto das associaes de idias analisado de forma

    diferente, com variaes conceituais e com mais detalhes. Cumpre destacar os

    seguintes pontos:

    a) Hume esclarece que o princpio que une as idias na imaginao no deve ser considerado uma conexo inseparvel, pois que ela tem sempre o poder de separar e unir idias livremente, mas apenas uma fora suave, que comumente prevalece [1].

    b) Embora os efeitos dos princpios de associao de idias sejam patentes,

    Hume diz que suas causas so em grande parte desconhecidas, e tm de ser

  • atribudas s qualidades originais da natureza humana, que no pretendo

    explicar. [6]

    c) O objeto de estudo mais restrito: a associao de

    idias simples na imaginao, e no de idias quaisquer na imaginao e

    memria, como na Investigao. Veja-se, por exemplo, esta passagem do

    penltimo pargrafo: Esses so, portanto, os princpios de unio ou coeso de nossas idias simples, que na imaginao ocupam o lugar da conexo

    inseparvel pela qual so unidas em nossa memria. [6; grifo meu]

    4. Dvidas cticas sobre as operaes do entendimento.

    Parte 1

    [1] Todos os objetos da razo ou investigao humana podem ser divididos

    em relaes de idias e questes de fato. Proposies sobre relaes de idias

    so aquelas cuja verdade pode ser determinada por intuio ou demonstrao,

    como por exemplo o princpio de que o todo maior do que as partes, ou o

    teorema de Pitgoras. Proposies desse tipo podem ser descobertas pela mera operao do pensamento, sem dependncia daquilo que exista em algum

    lugar do Universo.

    [2] J as proposies sobre questes de fato no so intuitiva ou

    demonstrativamente certas, sendo conhecidas apenas por observao. Elas

    nunca so necessrias, e suas negaes so concebveis e possveis. Que

    Napoleo foi derrotado na batalha de Waterloo uma questo de fato;

    expressa o que de fato aconteceu no mundo; mas o mundo poderia ser

    diferente, de modo que tal proposio fosse falsa.

    [3] Hume dedica-se a examinar como possvel, se que possvel, obter

    conhecimento acerca de questes de fato que no caem, nem caram, sob

    nossa observao; ou, usando suas palavras, como podemos fundamentar os

    nossos raciocnios sobre questes de fato.

    [4] A primeira afirmao feita por Hume que todos os raciocnios ou

    inferncias sobre questes de fato parecem fundar-se na relao de causa e efeito. Inferiremos, por exemplo, que numa ilha presentemente deserta j estiveram seres humanos (causa) se nela acharmos um relgio ou algum outro

    objeto artificial (efeito); ou que um pedao de cera se fundir (efeito) ao ser

    aproximado do fogo (causa).

    [5] importante pois investigar como obtemos o conhecimento de causas e

    efeitos.

  • [6] A segunda assero de Hume que o conhecimento da relao de causa e

    efeito no , em nenhum caso, alcanado por raciocnios a priori, mas provm inteiramente da experincia, quando encontramos que objetos

    particulares quaisquer apresentam uma conjuno constante uns com os

    outros. Defrontando-nos com um objeto ou evento, jamais poderemos, a partir de suas qualidades sensveis, inferir racionalmente quais outros objetos ou eventos so suas causas, ou sero seus efeitos. Um homem perfeito

    quanto s suas faculdades cognitivas, mas sem nenhuma experincia (como

    teria sido o caso de Ado, logo ao ser criado), no poderia inferir que a gua

    tem o poder causal de sufocar ou o fogo de queimar. O mesmo vale para

    qualquer outra inferncia acerca de existncia ou questo de fato.

    [7] Que causas e efeitos no podem ser descobertos pela razo, mas

    unicamente pela experincia, mais fcil de admitir no caso de objetos que

    nos so inteiramente desconhecidos (as duas placas de mrmore polido), que

    so pouco comuns (plvora, m), ou cujos efeitos aparentemente dependem

    de uma estrutura muito complexa (o leite e o po, com relao ao poder

    nutricional em homens e felinos).

    [8] Quando, porm, se trata de objetos familiares a ns desde o nosso

    nascimento, que tm analogia com o curso comum da natureza ou que se

    supe depender de qualidades simples, somos propensos a imaginar que

    podemos descobrir seus efeitos pela mera operao da razo (ex. comunicao

    de movimento por impacto). Isso porm uma iluso, devida influncia do

    costume.

    [9] Mas para nos convencer que o princpio exposto no pargrafo 6 no

    tem nenhuma exceo basta atentarmos no seguinte: Se tivermos de nos

    pronunciar sobre o que resultar de um objeto (seus efeitos) sem consultar a

    experincia passada nosso nico recurso ser inventar ou imaginar algo; essa

    inveno inteiramente arbitrria.

    [10] E se o efeito tem de ser arbitrariamente inventado, o mesmo vale, e com

    mais razo ainda, para o suposto vnculo ou conexo entre a causa e o efeito.

    Mesmo quando nossa inveno do efeito por acaso se mostra correta, nada nos

    impede de conceber que um outro efeito poderia ter ocorrido. Portanto a

    ligao entre a causa e o efeito no de natureza necessria.

    [11] Resumo de 9 e 10.

    [12] Hume extrai disso tudo uma moral: nenhum filsofo que seja racional e

    modesto deve alimentar a pretenso de conhecer as causas ltimas das

    operaes dos corpos. O mximo alcanvel pela razo humana a reduo

    dos princpios da ao dos corpos a algumas causas mais simples e gerais

  • (elasticidade, gravidade, coeso de partes, comunicao de movimento por

    impulso).

    [13] A geometria no pode suprir nossas limitaes quanto a isso. O mesmo

    vale para a matemtica mista em geral, que apenas auxilia na aplicao das leis naturais descobertas empiricamente.

    Parte 2

    [14] Todas as inferncias sobre causas e efeitos sendo, assim, inteiramente

    dependentes da experincia, o passo seguinte investigar qual o fundamento de todas as nossas concluses da experincia, ou seja, como podemos justificar as inferncias feitas a partir da experincia. Tendo, por

    exemplo, observado 21 vezes que a cera se fundiu ao ser aproximada da

    chama, conclumos que ela se derreter de novo na vigsima segunda ocasio,

    ou mesmo que se derreter sempre. Qual a natureza dessa concluso?

    [15] A resposta de Hume tem uma parte negativa e outra positiva. Nesta seo

    limita-se a afirmar, negativamente, que mesmo aps havermos tido a experincia das operaes de causa e efeito [pela observao da conjuno

    constante dos fenmenos], nossas concluses a partir dessa experincia no se

    fundam em raciocnios, ou qualquer processo do entendimento.

    [16] Hume comea notando a grande limitao de nosso conhecimento dos

    segredos da Natureza. Ela nos fornece apenas o conhecimento de umas poucas qualidades superficiais dos objetos, ocultando-nos os poderes e

    princpios dos quais a influncia desses objetos depende inteiramente. No obstante essa ignorncia dos poderes e princpios naturais, sempre

    presumimos, quando vemos qualidades sensveis semelhantes, que tero

    poderes secretos semelhantes, e esperamos que sero seguidas de efeitos

    semelhantes aos que j experimentamos... Agora este um processo da mente

    ou pensamento cujos fundamentos gostaria muito de conhecer. Todos

    concordam que no h conexo conhecida entre as qualidades sensveis e os

    poderes secretos; e que, por conseqncia, a mente no levada a formar

    concluses acerca de sua conjuno constante e regular a partir de nada que se

    saiba de sua natureza. Quanto experincia passada, pode-se conceder que d

    informao direta e certa apenas e precisamente dos objetos e perodos de

    tempo que caram sob sua cognio: Mas por que tal experincia deva se

    estender a tempos futuros e outros objetos que, por tudo que sabemos, podem

    ser similares [aos outros] apenas na aparncia, essa a questo central em que

    insistiria. Agora essa extenso da experincia de uma conjuno constante de fenmenos para casos no observados no intuitiva; necessrio um meio, ou seja, uma demonstrao. Mas Hume confessa que esse meio lhe escapa completamente.

  • [17] Para estabelecer sua tese principal, de que de fato esse meio no existe,

    ou, mais geralmente, que no h nenhum raciocnio ou processo do

    entendimento envolvido nessa transio, Hume procura armar um dilema.

    [18] Conforme j mostrou, todos os raciocnios podem ser divididos em

    demonstrativos (sobre relaes de idias) e morais ou provveis (sobre questes de fato). Agora evidente que no caso presente no h argumentos

    demonstrativos, pois no h nenhuma contradio na suposio de que o curso

    da Natureza possa se alterar, invalidando a extrapolao da experincia

    presente e passada.

    [19] Por outro lado, tambm no intervm aqui nenhum argumento moral ou provvel. Como Hume j havia mostrado, todos os argumentos desse tipo, i.e., sobre questes de fato, baseiam-se na relao de causa e efeito, cujo

    conhecimento, a seu turno, depende inteiramente da experincia. Alegar, pois,

    que as concluses ou inferncias a partir da experincia se justificam por argumentos morais equivale a alegar que elas se baseiam em si prprias. Isso circular, e portanto vazio; assume-se como certo o prprio ponto em

    questo.

    [20] Hume esclarece que no est pondo em dvida a autoridade da

    experincia; somente um louco o faria. O que pretende , como filsofo,

    examinar o princpio da natureza humana capaz de dar essa poderosa autoridade experincia. Para reforar o ponto j exposto, considera agora que se se tratasse de uma concluso formada pela razo, seria tirada de forma

    perfeita j no primeiro caso.

    [21] Aps desenvolver mais esse argumento, Hume retoma o argumento sobre

    a petio de princpio: impossvel, portanto, que argumentos a partir da experincia provem [a] semelhana do futuro com o passado, visto que todos

    esses argumentos fundam-se [justamente] na suposio dessa semelhana.

    [22] Poderia parecer arrogncia algum concluir que no existe um certo

    raciocnio porque no foi capaz de encontr-lo.

    [23] No presente caso, porm, Hume pondera que, se as inferncias sobre

    questes de fato fossem feitas por algum raciocnio, ele deveria ser muito

    simples, pois que crianas e mesmo animais so capazes de aprender da

    experincia. Mas ento o raciocnio no poderia escapar s mais cuidadosas

    buscas filosficas, como de fato ocorre.

  • 5. Da soluo ctica dessas dvidas.

    Parte 1

    [1] A nica filosofia que no favorece a exacerbao de nossas tendncias e

    preconceitos a acadmica ou ctica. Nenhuma mais contrria nossa

    indolncia, arrogncia, presuno e credulidade.

    [2] No se deve temer que essa filosofia perturbe nossas aes, j que a

    Natureza sempre prevalecer sobre quaisquer raciocnios abstratos. Assim,

    embora em nossas inferncias experimentais haja, como j foi visto, um passo

    que a mente d sem o apoio de nenhum raciocnio ou processo do

    entendimento, isso no pe em risco tais inferncias, das quais depende quase todo o nosso conhecimento. Se a mente no levada a efetuar esse

    passo por argumentos, tem de ser induzida por algum princpio de igual peso e

    autoridade.

    [3] Uma pessoa completamente sem experincia verificaria, se chegasse ao

    mundo repentinamente, apenas uma sucesso contnua de objetos. No

    formaria de imediato, apenas pelo raciocnio, a idia de causa e efeito, e nem

    mesmo inferiria a ocorrncia de um evento a partir da apario de outro.

    [4] Quando passasse, no entanto, a observar a conjuno regular de objetos ou

    eventos, comearia a fazer essas inferncias, mas nenhum processo de

    raciocnio lhe daria conhecimento do poder secreto pelo qual um objeto produz o outro. Apesar disso, a pessoa estaria determinada a fazer tais inferncias, por algum outro princpio.

    [5] Esse princpio o Costume ou Hbito. Dizendo isso, Hume no pretende haver dado a causa ltima da propenso que temos de extrapolar a experincia

    passada; apenas indica um importante princpio da natureza humana, bem

    conhecido por seus efeitos. Hume classifica essa sua proposta como uma

    hiptese, capaz de explicar, entre outras coisas, por que as inferncias causais no so extradas a partir de um nico caso, mas apenas de uma

    multiplicidade de casos semelhantes. (Ver porm T 1.3.8.14 para uma

    qualificao importante dessa afirmao.)

    [6] O costume , pois, o grande guia da vida humana. apenas ele que torna a nossa experincia til para ns, e nos faz esperar, no futuro, uma seqncia

    de eventos similar s que nos apareceram no passado. Sem a influncia do

    costume seramos totalmente ignorantes acerca de toda questo de fato que se

    estenda alm do que est imediatamente presente memria e aos sentidos.

    Nunca saberamos como ajustar os meios para os fins, ou empregar nossos

    poderes naturais na produo de qualquer efeito.

  • [7] No entanto, para que o hbito produza as inferncias causais algum fato

    deve estar presente aos sentidos.

    [8] Aps resumir a teoria exposta, Hume observa que a operao da mente que

    nos leva, a partir do hbito, a crer em certas questes de fato uma espcie de instinto natural, que nenhum raciocnio ou processo do pensamento ou

    entendimento capaz quer de produzir, quer de evitar. Esse instinto comparado s paixes.

    [9] Embora as investigaes filosficas desse assunto pudessem, segundo ele,

    parar neste ponto, ele anuncia que prosseguir detalhando sua teoria acerca da

    natureza da crena, recorrendo a algumas analogias.

    Parte 2

    [10] Quanto natureza dessa crena que resulta da conjuno costumeira de

    objetos, Hume nota, inicialmente, que a diferena entre algo que

    simplesmente imaginamos e algo em que acreditamos no pode residir em

    nenhuma idia particular que anexemos s concepes que pedem o nosso

    assentimento. Se assim fosse, dada a autoridade que a mente tem sobre as

    idias, ela poderia acreditar no que quisesse, anexando voluntariamente essa

    suposta idia a qualquer fico.

    [11] Segue-se portanto que a diferena entre fico e crena encontra-se em algum sentimento ou sensao [sentiment or feeling] que se anexa segunda

    mas no primeira, e que no depende da vontade nem se pode convocar

    quando se queira. Como todo outro sentimento [sentiment], deve ser

    provocado pela Natureza, e provir da situao particular em que a mente se

    encontra em uma determinada ocasio. Sempre que um objeto qualquer

    apresentado memria ou aos sentidos, imediatamente leva, pela fora do

    hbito, a imaginao a conceber aquele objeto que a ele est usualmente

    associado, e essa concepo acompanhada de uma sensao ou sentimento

    que difere dos devaneios soltos da fantasia. Nisso consiste toda a natureza da

    crena.

    [12] Afirmo, portanto, que a crena no nada mais que uma concepo de um objeto mais vvida, vigorosa, enrgica, firme, constante do que a

    imaginao por si s jamais capaz de atingir. A crena o ato da mente que torna as realidades, ou o que tomado como tal, mais presentes para ns

    do que as fices, fazendo-as pesar mais no pensamento, e dando-lhes uma

    influncia superior sobre as paixes e imaginao.

    [13] Aps recapitular o que estabeleceu sobre a natureza da crena, Hume diz

    que vai procurar outras operaes da mente anlogas que produz as crenas

    causais, a fim de enquadrar esse fenmeno sob princpios ainda mais gerais.

  • [14] Em particular, Hume investiga se os princpios de associao de idias,

    por semelhana, contigidade e causa e efeito, so capazes de levar a mente a

    uma concepo mais forte e estvel dos objetos relacionados, como ocorre na

    relao de causa e efeito. (Note-se que ao colocar a questo Hume

    inadvertidamente inclui essa relao, para a qual a questo j havia sido

    respondida. Essa generalizao ser corrigida nos exemplos; ver pargrafos 19

    e 20.)

    [15] O primeiro experimento evocado por Hume refere-se semelhana. Considera inicialmente o caso da semelhana de um retrato com a pessoa

    retratada.

    [16] Depois, toma o exemplo das cerimnias da religio catlica romana,

    destinadas a avivar, por semelhana, a crena nos personagens e eventos que

    integram esse tipo de superstio.

    [17] O segundo experimento referente contigidade: a viso das coisas que

    ficam perto de sua casa aviva a idia dessa casa.

    [18-19] Nestes pargrafos Hume considera o caso da causao, e d os

    exemplos das relquias dos santos e do filho de um pai ausente. Na verdade, a

    considerao desse caso redundante, visto que j havia sido tratado

    detalhadamente antes, e estava agora justamente vendo se encontrava

    analogias com ele, para reforar a sua teoria sobre a crena causal. Essa

    aparente confuso prossegue na afirmao que abre o pargrafo seguinte.

    [20] Hume nota que nos fenmenos considerados nos pargrafos precedentes

    a crena no objeto correlativo est sempre pressuposta; sem ela, a relao no pode ter nenhum efeito. Ora, isso no pode valer para o caso da relao causal. Houve pois aqui uma afirmao demasiadamente generalizante por

    parte de Hume. O que disse deve ser entendido somente com relao s

    relaes de semelhana e contigidade, como o restante do pargrafo, alis,

    indica. A tese de Hume de que essas duas relaes por si ss no constituem

    fonte de crena, embora a vivacidade das idias delas decorrente seja de natureza similar, e [surja] de causas similares s daquela que deriva da experincia da conjuno constante de eventos. (Nas sees 8 e 9 da parte 3

    do livro 1 do Tratado Hume explica melhor por que a a crena surge apenas da causao, embora a semelhana e a contigidade auxiliem a causao no avivamento da idia relacionada; quando separadas dela, porm, essas

    relaes tm uma influncia fraca e incerta.)

    [21] Hume conclui a seo expondo dois pontos que s parecem fazer sentido

    dentro de um referencial realista. Primeiro, dada a usual correo de nossas

    extenses da experincia, afirma que existe uma espcie de harmonia preestabelecida entre o curso da Natureza e a sucesso de nossas idias; e,

  • embora desconheamos inteiramente os poderes e foras que governam o

    primeiro, constatamos que nossos pensamentos e concepes ainda assim

    prosseguiram na mesma direo das demais obras da Natureza. O hbito o

    princpio pelo qual veio a se produzir essa correspondncia, to necessria

    sobrevivncia de nossa espcie e ao acerto de nossa conduta, em todas as

    situaes e ocorrncias da vida humana.

    [22] Por fim, quanto ao fato de as inferncias experimentais no se apoiarem

    em processos do entendimento, observa que mesmo mais de acordo com a costumeira sabedoria da Natureza que uma atividade mental to necessria

    seja garantida por algum instinto ou tendncia mecnica, capaz de mostrar-se

    infalvel em suas operaes, de manifestar-se desde o primeiro aparecimento

    de vida e pensamento, e de conduzir-se independentemente de todas as

    laboriosas dedues do entendimento. Hume considera esse fato uma comprovao de sua teoria.

    6. Da probabilidade.

    Nesta seo Hume aplica sua teoria sobre a natureza da crena aos casos em

    que a experincia da conjuno de objetos ou eventos no constante. Neles,

    a vivacidade que o hbito comunica idia associada impresso presente

    ser menor e, por conseqncia, tambm ser menor a crena em seu objeto.

    Tentaremos expressar em outras palavras o que Hume diz sobre isso.

    [1-3] Quando uma causa aparentemente tem mais do que um efeito, ou seja,

    quando o objeto C foi observado seguir-se ora por E, ora por E, a presente observao de C levar a mente a crer na ocorrncia de E com uma crena

    proporcional freqncia relativa com que se observou no passado C seguir-

    se de E (o mesmo vale para E, mutatis mutandis). Tal fenmeno ilustrado por Hume com o caso do lanamento de um dado que possui uma mesma

    marca em quatro de seus lados e outra marca nos outros dois. A maior crena

    na ocorrncia da primeira marca explica-se pela convergncia de um maior

    nmero de vises [views] em torno da idia desse evento. Assim, esperamos com segurana, por uma inferncia causal, que um dos seis lados ficar para

    cima, mas esperamos cada um deles com a mesma crena: a vivacidade

    repartida igualmente entre os seis lados. Mas como h quatro lados com

    uma mesma marca e apenas dois com outra, a crena na ocorrncia da

    primeira ser maior do que a crena na ocorrncia da segunda. (Poderamos

    dizer que a probabilidade da primeira marca 4/6 e a da segunda 2/6; mas

    Hume no quantifica essas probabilidades.)

    Percebe-se que probabilidades so, para Hume, medidas de nossas crenas;

    seu conceito de probabilidade subjetivo. Ele afirma, sem nenhuma

  • justificativa explcita, que o acaso no existe no mundo; resulta de nossa ignorncia da causa real de certos eventos. [1] Curiosamente, no registra que,

    segundo a cincia de seu tempo, o lanamento do dado seria uma situao

    inteiramente determinista.

    [4] Considerando agora que o ruibarbo nem sempre purga e que o pio nem

    sempre faz dormir, Hume diz que as probabilidades aqui so probabilidades de causas (probabilities of causes). [2] Assevera que embora o vulgo creia que se trate de fenmenos aleatrios, os filsofos no atribuem essas

    irregularidades Natureza, mas a causas secretas nas estruturas particulares das partes das substncias envolvidas.[3] Mas enquanto tais causas no forem

    descobertas, no plano epistemolgico tudo se passar como se de fato

    houvesse acaso, ou seja, regulamos nossas crenas da forma descrita acima.[4]

    7. Da idia de conexo necessria.

    Parte 1

    [1-2] Hume inicia apontando as vantagens e desvantagens relativas das

    cincias matemticas e das cincias morais. A principal dificuldade das primeiras a extenso das inferncias requeridas para que se chegue s concluses; a das segundas a obscuridade das idias e a conseqente ambigidade dos termos.

    [3] Dado que nas cincias morais no h idias mais obscuras e incertas do que as de poder, fora, energia ou conexo necessria, Hume tentar nesta seo fixar, se possvel, o significado desses termos.

    [4-5] Aps expor novamente a proposta da seo 2, ou seja, esclarecer as

    idias pela apresentao das impresses que lhes deram origem, Hume lana-

    se na busca de impresses das quais poderia derivar a idia de conexo

    necessria.

    [6-8] A primeira fonte possvel dessa idia so os objetos externos. Quando olhamos para os objetos ao nosso redor e consideramos a operao das causas, jamais somos capazes de identificar, em um nico caso singular,

    qualquer poder ou conexo necessria, qualquer qualidade que ligue o efeito

    causa e torne o primeiro uma conseqncia infalvel da segunda. Descobrimos

    apenas que, de fato, o efeito se segue efetivamente causa. O impulso da

    primeira bola de bilhar acompanhado do movimento da segunda, e isto

    tudo o que aparece a nossos sentidos externos. [...] Jamais podemos conjeturar

    qual efeito resultar de um objeto quando ele nos aparece pela primeira vez.

    Ora, se o poder ou energia de uma causa qualquer fosse discernvel pela

  • mente, seramos capazes de prever o efeito mesmo sem nenhuma experincia,

    e poderamos desde o primeiro momento pronunciarmo-nos sobre ele com

    segurana pelo simples recurso ao pensamento e raciocnio.

    [9] Como as operaes dos objetos externos no podem, em casos

    particulares, fornecer-nos nenhuma idia de poder ou conexo necessria,

    Hume passa a examinar se tal idia proviria das operaes de nossas prprias mentes, que podem ser de dois tipos: a ao da vontade sobre os rgos corporais e sobre as prprias idias. Algum poderia dizer que estamos a todo instante conscientes de um poder interno, ao sentirmos que,

    por um simples comando de nossa vontade, podemos mover os rgos de

    nosso corpo ou direcionar as faculdades de nosso esprito. Hume replica, fornecendo, em cada caso, trs argumentos contra a possibilidade de derivar

    dessa fonte a idia de conexo necessria.

    [10] Caso 1: ao da vontade sobre o corpo. inegvel que a vontade tem

    uma influncia sobre os movimentos corporais. A experincia nos informa

    que tais e tais vontades se fazem acompanhar por tais e tais movimentos.

    Mas os meios pelos qual isto se realiza, a energia pela qual a vontade executa uma operao to extraordinria, disso estamos to longe de ter uma

    conscincia imediata que de se supor que deve para sempre escapar s

    nossas mais diligentes investigaes. Isso porque:

    1. [11] Se percebssemos pela conscincia algum poder ou energia na vontade, deveramos conhecer esse poder, deveramos conhecer sua conexo com o

    efeito, deveramos conhecer a unio secreta da alma e do corpo e a natureza

    dessas duas substncias que torna uma delas capaz de operar sobre a outra em

    um nmero to grande de casos. Mas isso est completamente fora de nosso alcance.

    2. [12-13] Nem todos os rgos do corpo podem ser movidos pela vontade. Se estivssemos conscientes do poder que a mente tem sobre o corpo, esse fato no

    nos seria inexplicvel, como o . Perceberamos ento, independentemente da experincia, por que a autoridade da vontade sobre o rgo do corpo est

    circunscrita a esses particulares limites. Alm disso, as pessoas amputadas ou afetadas por paralisias saberiam, antes de tentar, que no mais possuem o poder

    de mover seus membros.

    3. [14-15] Finalmente, a anatomia nos mostra que, nos movimentos voluntrios, o objeto imediato do poder no so os membros movidos, mas os msculos,

    nervos, espritos animais ou algo ainda mais desconhecido. Mas se o poder original [sobre os movimentos dos membros] fosse sentido, ele teria de ser

    conhecido, e se fosse conhecido seu efeito tambm teria de s-lo, dado que todo

    poder relativo a seu efeito. E vice-versa: se o efeito no conhecido, o poder

    no pode ser conhecido, nem sentido. Como, na verdade, podemos estar

    conscientes do poder de mover nossos membros se no temos tal poder, mas

    apenas o de mover certos espritos animais que, embora produzam ao fim e ao

    cabo o movimento de nossos membros, operam no obstante de uma maneira

    que est totalmente fora do alcance de nossa compreenso?

  • [16] Caso 2: ao da vontade sobre a mente. igualmente inegvel que por

    nossa vontade podemos fazer com que as idias apaream na mente,

    desapaream etc. Mas esse comando da vontade no nos d nenhuma idia real de fora ou energia. Pois:

    a) [17] (Argumento formalmente anlogo a (1).) Da mesma forma que a

    nossa completa ignorncia acerca da natureza da alma e do corpo e sua

    unio prova que no temos conscincia do poder da vontade sobre o

    corpo, nosso desconhecimento da natureza da alma e das idias prova

    que no temos conscincia do poder da vontade sobre as idias.

    Quando conhecemos um poder, conhecemos a exata circunstncia na causa que a capacita a produzir o efeito, pois estes, supe-se, no

    passam de sinnimos. Temos portanto de conhecer tanto a causa quanto

    o efeito, bem como a relao entre eles. Mas alegaremos porventura

    estar familiarizados com a natureza da alma humana e com a natureza

    de uma idia, ou com a capacidade que tem uma de produzir a outra?

    [...] Tudo o que experimentamos a ocorrncia do resultado a saber, a presena de uma idia seguindo-se ordem da vontade; mas a maneira pela qual se realiza essa operao, o poder pelo qual ela se produz, isso

    est completamente alm de nossa compreenso. b) [18] (Argumento formalmente anlogo a (2).) Se percebssemos o

    poder que a mente tem sobre as idias, saberamos, anteriormente a

    qualquer experincia, que ele limitado, bem como quais so seus

    limites.

    c) [19-20] O comando da mente sobre as idias varivel, segundo a

    condio de sade, a hora do dia etc. Podemos dar alguma razo para essas variaes exceto a experincia? Onde, ento, est esse poder do

    qual alegamos estar conscientes? No haveria aqui, seja na substncia

    material, seja na espiritual, ou em ambas, algum secreto mecanismo ou

    estrutura de componentes de que o efeito depende e que, sendo-nos

    inteiramente desconhecido, torna igualmente desconhecido e

    incompreensvel o poder ou energia da vontade?

    [21] Os homens do povo nunca se admiram das operaes ordinrias da

    Natureza; so apenas os fenmenos incomuns que os deixam perplexos,

    levando-os a imaginar certos princpios ocultos como sendo suas causas. Os

    filsofos, porm, percebem que a energia da causa dos eventos mais comuns to ininteligvel quanto a dos extraordinrios, e que apenas aprendemos, pela experincia, a Conjunofreqente dos objetos, sem jamais

    sermos capazes de compreender algo como a Conexo entre eles. por isso que vrios filsofos conceberam teorias curiosas sobre as operaes das

    causas em geral. Hume examina, em especial, o ocasionalismo de

    Malebranche e alguns de seus desdobramentos. Segundo essa doutrina, a fonte

    exclusiva e imediata de todo o poder Deus; nem os corpos nem os espritos

    criados so capazes de produzir coisa alguma.

  • [22-23] Aps notar que, ironicamente, os defensores de tal sistema acabam

    rebaixando a Divindade, ao invs de real-la, Hume apresenta duas objees

    filosficas.

    [24] Primeiro, ao transcender completamente a esfera da experincia, esse

    sistema transporta-nos a uma terra de fadas, onde os mtodos argumentativos usuais perdem toda aplicao.

    [25] Depois, inquirindo sobre a origem da idia de Deus, conclui que, no

    provindo ela seno da reflexo sobre nossas prprias faculdades, somos

    obrigados a confessar, em vista do que j foi estabelecido, que no

    conhecemos o poder do Ser Supremo. Portanto, se nossa ignorncia acerca de

    algo fosse uma boa razo para rejeit-lo, como argumentam os ocasionalistas

    quanto ao poder dos corpos e das almas, teramos que rejeitar igualmente que

    Deus possua algum poder.

    Parte 2

    [30] O contedo principal dessa parte bem resumido pelo prprio Hume no

    pargrafo final: Em todos os casos isolados de operao de corpos ou mentes, no h nada que produza qualquer impresso, e, conseqentemente,

    nada que possa sugerir qualquer idia de poder ou de conexo necessria. Mas

    quando uma grande quantidade de casos uniformes se apresenta, e o mesmo

    objeto seguido sempre pelo mesmo resultado, a noo de causa e de conexo

    comea a surgir nossa considerao. Experimentamos [feel] ento um novo

    sentimento [sentiment] ou impresso, a saber, uma conexo habitual, no

    pensamento ou imaginao, entre um objeto e seu acompanhante usual, e

    esse sentimento que constitui o original que estamos buscando para aquela

    idia. Pois, dado que essa idia se produz a partir de um certo nmero de

    casos semelhantes e no a partir de qualquer um dos casos tomado

    isoladamente, ela deve ter origem naquela particularidade que faz com que

    uma multiplicidade de casos se distinga de cada um dos casos individuais.

    Mas essa conexo habitual ou transio da imaginao a nica circunstncia

    que os distingue: em todos os outros aspectos so semelhantes. O primeiro

    caso que observamos de movimento transmitido pelo choque de duas bolas de

    bilhar (para retomar esta ilustrao bvia) exatamente igual a qualquer outro

    caso que nos venha a ser apresentado neste momento, com a nica diferena

    que, na primeira vez, no ramos capazes de inferir um acontecimento de

    outro, e agora, aps uma longa sucesso de experincias uniformes, podemos

    faz-lo.

    Vejamos agora alguns outros pontos, comeando por uma famosa passagem

    do pargrafo 28 (grifei):

  • [28] Quando dizemos, portanto, que um objeto est conectado a outro, queremos apenas dizer que eles adquiriram uma conexo em nosso

    pensamento, e do origem a essa inferncia pela qual se tornam provas da

    existncia um do outro; uma concluso um tanto extraordinria mas que

    parece fundamentada em suficiente evidncia. O que Hume diz aqui e em outros trechos semelhantes, especialmente noTratado, foi tradicionalmente

    apontado como evidncia a favor da tese de que ele considerava sem

    sentido afirmar a existncia de poderes nos corpos. No entanto, essa

    interpretao tem sido questionada, com base em outras passagens. Vejamos,

    por exemplo, este trecho da nota ao pargrafo 30:

    [30, nota] Quanto ao freqente uso das palavras fora, poder, energia etc., que ocorrem por toda parte tanto na conversao ordinria como na

    filosofia, isso no constitui uma prova de que estejamos familiarizados, em

    algum caso, com o princpio de conexo entre causa e efeito, ou de que uma

    explicao conclusiva da produo de uma coisa por outra esteja ao nosso

    alcance. Essas palavras, tais como comumente empregadas, tm um

    significado muito vago, e as idias a elas associadas so muito incertas e

    confusas. Nosso destaque salienta que Hume admite que aqueles termos possuem algum sentido, quando ordinariamente os empregamos de forma

    realista, para designar poderes existentes nos corpos ou nas almas, mas que

    esse sentido confuso, porque no temos nenhuma idia dessa conexo, nem uma noo distinta do que que desejamos saber quando nos esforamos para

    conceb-la [29].

    [29] Nesse pargrafo aparecem as duas controversas definies humeanas

    de causa (destaques no original):Nossos pensamentos e investigaes esto, portanto, ocupados a todo instante com essa relao [de causa e efeito]. E,

    contudo, to imperfeitas so as idias que fazemos dela que impossvel

    fornecer uma definio exata de causa, salvo as que provm de algo que lhe

    extrnseco e alheio. Objetos similares esto sempre conjugados a objetos

    similares; disso temos experincia. Podemos, portanto, de forma apropriada a

    essa experincia, definir uma causa como sendo um objeto, seguido de outro,

    tal que todos os objetos similares ao primeiro so seguidos de objetos

    similares ao segundo. Ou, em outras palavras, tal que, se o primeiro objeto

    no existisse, o segundo jamais teria existido.[5] O aparecimento de uma

    causa sempre conduz a mente, mediante uma transio habitual, idia do

    efeito; disso tambm temos experincia. De forma apropriada a essa

    experincia podemos, portanto, formular uma outra definio de causa, e

    cham-la um objeto seguido de outro, e cujo aparecimento sempre conduz o

    pensamento quele outro. Mas embora ambas essas definies tenham sido

    extradas de circunstncias estranhas causa, no podemos remediar essa

    inconvenincia nem obter uma definio mais perfeita que possa apontar

    aquela circunstncia na causa que lhe atribui uma conexo com seu efeito.

    No temos nenhuma idia dessa conexo, nem uma noo distinta do que

  • que desejamos saber quando nos esforamos para conceb-la. Dizemos por

    exemplo que a vibrao desta corda a causa deste particular som. Mas que

    queremos dizer com essa afirmao? Ou bem queremos dizer que esta

    vibrao seguida por este som, e que todas a vibraes semelhantes tm

    sido seguidas por sons semelhantes; ou bem que esta vibrao seguida por

    este som e que no momento em que a primeira aparece a mente antecipa os

    sentidos e forma imediatamente a idia do segundo. Podemos considerar a

    relao de causa e efeito sob qualquer dessas perspectivas, mas, para alm

    delas, no temos nenhuma idia dessa relao.

    8. Da liberdade e necessidade.

    A tese principal desta seo que a vontade encontra-se sujeita ao mesmo

    tipo de necessidade que Hume acredita existir nas operaes dos corpos

    materiais. No final da parte 1 Hume argumenta tambm que isso no tem

    ligao com a questo da liberdade de nossas aes, que depende

    exclusivamente da inexistncia de restries externas. Na parte 2, sustenta que

    essas teses no tm repercusses negativas para a moral.

    Parte 1

    [1-3] Hume prope, inicialmente, que as disputas acerca desses tpicos so,

    no fundo, sobre o significado dos termos.

    [4-6] Reafirma, em seguida, que a matria est sujeita necessidade (ver

    seo 6). Em vista da teoria estabelecida na seo 7, o contedo emprico

    dessa afirmao parece resumir-se uniformidade observada na Natureza e na

    conseqente determinao da mente de inferir um objeto a partir da apario

    de outro.

    [7-9] A sujeio da vontade necessidade deve ser entendida de modo

    semelhante, ou seja, em termos do suposto fato de que, nos seres humanos,

    tem-se observado que os mesmos motivos sempre produzem as mesmas aes. [...] Ambio, avareza, amor-prprio, vaidade, amizade, generosidade,

    esprito pblico: essas paixes [...] tm sido, desde o incio do mundo, a fonte

    de todas as aes e empreendimentos do homem.

    [10] Hume esclarece que ao dizer que as aes humanas so uniformes no

    est afirmando que todos os homens agem exatamente da mesma forma,

    quando colocados nas mesmas situaes: seus caracteres, prejuzos e opinies

    levam a uma diversidade de aes. Quando, porm, tais fatores so levados

    em conta, recobra-se a uniformidade.

  • [11-14] Quanto s aes que, depois de tudo, ainda no aparentam conexo

    regular com nenhum motivo conhecido, Hume lembra que algo semelhante

    ocorre no domnio da matria. Embora o vulgo veja a a ao do acaso, os

    filsofos tm sido bem sucedidos na identificao de diversas causas ocultas,

    cuja especificao permite recuperar a uniformidade das operaes dos

    corpos. Generalizando-se, chega-se mxima de que a conexo de todas as causas e efeitos igualmente necessria.

    [15] O mesmo raciocnio, sustenta Hume, deve, por consistncia, ser aplicado conexo dos motivos e determinaes da vontade.[6]

    [16-20] Todo homem comum e todo filsofo efetivamente reconhece esse

    ponto, baseando nele suas inferncias sobre o comportamento humano.

    [21-22] Sua freqente rejeio por palavras liga-se ao fato de que,

    erradamente, acredita-se perceber uma conexo necessria nas operaes dos

    corpos. Como nenhuma conexo semelhante entre os motivos e aes

    sentida, infere-se que no esto ligados por necessidade. Mas quando se est

    convencido que tudo o que de fato sabemos sobre a causao a conjuno

    constante de objetos e a conseqente inferncia mental de um objeto para

    outro, a existncia da necessidade, nesse sentido idealista, tem de ser admitida

    em ambos os casos.

    [23-25] Quanto liberdade das aes voluntrias, ela no pode significar que

    tais aes no guardam conexo com os motivos, inclinaes e circunstncias.

    Ausncia de conexo causal no liberdade, masacaso (que universalmente se admite no ter existncia; 25). Por liberdade, ento, podemos apenas significar um poder de agir ou no agir, segundo as determinaes da

    vontade, que todo aquele que no se encontre ligado a cadeias desfruta.

    Parte 2

    [26-27] No h mtodo de raciocnio mais comum e, apesar disso, mais censurvel do que procurar, em disputas filosficas, refutar uma hiptese pela

    pretenso de que traz conseqncias perigosas para a religio e a moral. Hume dispe-se, no entanto, a submeter sua doutrina sobre a necessidade e a

    liberdade at mesmo a esse critrio: ela no pe em risco nem a moral nem a

    religio.

    [28-31] Hume sustenta que se no houvesse necessidade nas aes

    voluntrias, no haveria responsabilidade moral: as aes seriam atribudas ao

    acaso, e no ao carter do agente.[7] Igualmente, a existncia de

    responsabilidade pressupe liberdade.

  • [32-33] Hume trata agora de uma objeo teolgica: se a vontade estivesse

    sujeita uma lei de necessidade, haveria uma cadeia contnua de causas necessrias, pr-ordenadas e pr-determinadas remontando causa original, Deus. Colocar-se-ia, pois, um dilema: ou nenhuma ao moralmente torpe,

    por proceder sempre de uma causa to boa; ou, se alguma o for, o Criador ser

    responsvel por ela, na condio de sua causa ltima.

    [34-35] A essa objeo Hume replica, inicialmente, observando que a resposta

    ao primeiro ramo do dilema parece fcil e convincente: a anlise do conjunto da criao revela que tudo aquilo ocorre bom. Mas embora

    sublime, essa tese no se mostra efetiva na prtica: nada convence algum que esteja sofrendo penas fsicas ou morais de que elas de fato so boas. [8]

    [36] Quanto ao segundo ramo do dilema, Hume assevera no ser possvel

    explicar como Deus pode ser a causa mediata de todas as aes humanas sem

    ser autor do pecado e da torpeza moral.

    Em suma, a doutrina da necessidade das aes voluntrias leva a um dilema

    bloqueado. No entanto, Hume no parece disposto a rejeitar sua doutrina.

    Insinua, ao contrrio, que a concluso a ser tirada que, de fato, no se pode

    manter que a causa ltima de todas as aes seja moralmente impoluta. [9]