introduÇÃo À filosofia a filosofia não é...

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1 INTRODUÇÃO À FILOSOFIA Observação: os textos aqui disponibilizados são escritos em português de Portugal. A filosofia não é "adversarial" - Richard E. Creel. Tradução de Desidério Murcho. Thinking Philosophically, Blackwell, Oxford, 2001, p. 88 1. Porque em filosofia argumentamos uns com os outros sobre questões filosóficas é natural pensar que a filosofia é um processo "adversarial" [antagónico] como dois advogados (o de acusação e o de defesa) que argumentam um contra o outro num tribunal. Contudo, há duas razões pelas quais esta comparação dos filósofos com os advogados não é boa. Em primeiro lugar, o objectivo de cada advogado é ganhar a causa do seu cliente quer o seu cliente esteja inocente quer não. Pelo contrário, o objectivo de dois filósofos que se encontrem a argumentar um com o outro é chegar à verdade seja ela qual for e seja quem for que tenha razão. Como um estudante afirmou, eloquentemente, o objectivo de cada advogado é ganhar a causa, quer ele tenha a verdade quer não, ao passo que o objectivo de cada filósofo é chegar à verdade, quer ele ganhe o argumento quer não. (Sendo os filósofos seres humanos, nem sempre são assim tão imparciais, mas o ideal é este.) 2. Em segundo lugar, num julgamento há uma autoridade (o juiz ou o júri) que os advogados tentam persuadir, e que em última análise determina se o acusado está ou não inocente. Em filosofia, pelo contrário, não há qualquer juiz ou júri com autoridade para tornar uma posição incorrecta e a outra correcta. Só existimos nós. Claro que alguns de nós sabem mais do que outros sobre questões filosóficas, e o mais sábio é ficar atento e aprender com quem sabe mais do que nós, mas quando chega o momento de tomar decisões relativamente a um tema filosófico somos todos igualmente responsáveis pelas nossas crenças e devemos por isso tomar, cada um de nós, as suas próprias decisões. De onde surge a filosofia? - Colin McGinn.Tradução de Célia Teixeira. Retirado de Como se faz um Filósofo, de Colin McGinn (Lisboa: Bizâncio, 2007) 1. Mesmo os nossos conceitos mais básicos não são claros para nós; usamo-los sem grandes problemas, mas não temos qualquer compreensão articulada do que envolvem. É aqui que a filosofia entra. E isto mostra que é um erro pensar que todas as questões genuínas são científicas ou empíricas. Na verdade, a própria ciência levanta probletTmas filosóficos. 2. O mesmo acontece com a literatura, a história, a economia, as ciências da computação, a matemática e assim por diante. Na matemática, por exemplo, há a questão de saber de onde vieram os números: será que são apenas marcas num papel, ou ideias na mente dos matemáticos? Será que são, como Platão pensava, entidades objectivas e independentes da mente que existem fora do espaço e do tempo? Nada daquilo que aprendemos numa aula normal de matemática nos pode dar a preparação necessária para responder a tais perguntas (apesar de os nossos professores de matemática poderem ter as suas ideias filosóficas sobre estas questões). Nas ciências empíricas, as teorias são criadas para explicar os dados que foram observados, e consideramos muitas vezes que estas teorias fornecem descrições correctas da realidade. Mas note-se que esta caracterização banal da ciência usa vários conceitos que precisam urgentemente de ser elucidados: o que é uma teoria? O que é uma explicação? O que distingue uma observação da teoria usada para a explicar? O que é a

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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

Observação: os textos aqui disponibilizados são escritos em português de Portugal.

A filosofia não é "adversarial" - Richard E. Creel. Tradução de Desidério Murcho. Thinking

Philosophically, Blackwell, Oxford, 2001, p. 88

1. Porque em filosofia argumentamos uns com os outros sobre questões filosóficas é natural

pensar que a filosofia é um processo "adversarial" [antagónico] como dois advogados (o de

acusação e o de defesa) que argumentam um contra o outro num tribunal. Contudo, há duas

razões pelas quais esta comparação dos filósofos com os advogados não é boa. Em primeiro

lugar, o objectivo de cada advogado é ganhar a causa do seu cliente — quer o seu cliente

esteja inocente quer não. Pelo contrário, o objectivo de dois filósofos que se encontrem a

argumentar um com o outro é chegar à verdade — seja ela qual for e seja quem for que

tenha razão. Como um estudante afirmou, eloquentemente, o objectivo de cada advogado é

ganhar a causa, quer ele tenha a verdade quer não, ao passo que o objectivo de cada filósofo

é chegar à verdade, quer ele ganhe o argumento quer não. (Sendo os filósofos seres

humanos, nem sempre são assim tão imparciais, mas o ideal é este.)

2. Em segundo lugar, num julgamento há uma autoridade (o juiz ou o júri) que os advogados

tentam persuadir, e que em última análise determina se o acusado está ou não inocente. Em

filosofia, pelo contrário, não há qualquer juiz ou júri com autoridade para tornar uma

posição incorrecta e a outra correcta. Só existimos nós. Claro que alguns de nós sabem mais

do que outros sobre questões filosóficas, e o mais sábio é ficar atento e aprender com quem

sabe mais do que nós, mas quando chega o momento de tomar decisões relativamente a um

tema filosófico somos todos igualmente responsáveis pelas nossas crenças e devemos por

isso tomar, cada um de nós, as suas próprias decisões.

De onde surge a filosofia? - Colin McGinn.Tradução de Célia Teixeira. Retirado de Como se

faz um Filósofo, de Colin McGinn (Lisboa: Bizâncio, 2007)

1. Mesmo os nossos conceitos mais básicos não são claros para nós; usamo-los sem grandes

problemas, mas não temos qualquer compreensão articulada do que envolvem. É aqui que a

filosofia entra. E isto mostra que é um erro pensar que todas as questões genuínas são

científicas ou empíricas. Na verdade, a própria ciência levanta probletTmas filosóficos.

2. O mesmo acontece com a literatura, a história, a economia, as ciências da computação, a

matemática e assim por diante. Na matemática, por exemplo, há a questão de saber de onde

vieram os números: será que são apenas marcas num papel, ou ideias na mente dos

matemáticos? Será que são, como Platão pensava, entidades objectivas e independentes da

mente que existem fora do espaço e do tempo? Nada daquilo que aprendemos numa aula

normal de matemática nos pode dar a preparação necessária para responder a tais perguntas

(apesar de os nossos professores de matemática poderem ter as suas ideias filosóficas sobre

estas questões). Nas ciências empíricas, as teorias são criadas para explicar os dados que

foram observados, e consideramos muitas vezes que estas teorias fornecem descrições

correctas da realidade. Mas note-se que esta caracterização banal da ciência usa vários

conceitos que precisam urgentemente de ser elucidados: o que é uma teoria? O que é uma

explicação? O que distingue uma observação da teoria usada para a explicar? O que é a

2

verdade? O que é a realidade? A ciência opera com estes conceitos, mas não tem recursos

para os explicar. O mesmo acontece com as ciências sociais: também usam os conceitos que

acabámos de referir, mas também invocam conceitos como o de razão ou motivo, assim

como conceitos normativos como o de correcto e obrigatório — e estes conduzem-nos à

filosofia moral e política, assim como à filosofia da mente. As artes empregam conceitos

estéticos como os de beleza e representação, que levantam questões filosóficas: é a beleza

subjectiva ou objectiva? Será que toda a representação artística é fundamentalmente do

mesmo tipo? O que determina o valor estético de uma obra de arte? Depois há os conceitos

extremamente gerais que surgem de súbito em todo o lado — tempo, causalidade,

necessidade, existência, objecto, propriedade, identidade. Nenhuma disciplina científica nos

pode dizer o que estes conceitos envolvem porque são pressupostos por quaisquer destas

disciplinas; precisamos da filosofia para compreender estes conceitos. Por exemplo: é a

causalidade simplesmente uma questão de simples conjunção constante de acontecimentos

— de "um raio de coisa que se segue a outra", como A. J. Ayer costumava dizer — ou será

que envolve um elemento de conexão necessária? E que tipo de necessidade poderá ser?

Será qualquer coisa como a verdade necessária de "os solteiros não são casados"?

3. Estas são as perguntas que os seres humanos fazem naturalmente e acerca das quais têm

estados perplexos desde que se registou pela primeira vez o pensamento articulado. As

crianças fazem perguntas filosóficas espontaneamente, para grande frustração de seus pais

— uma vez que os pais estão muitas vezes tão filosoficamente perdidos como os seus filhos.

O filósofo é apenas alguém com interesses particularmente fortes sobre estas velhas

questões universais; é a encarnação de um género de curiosidade humana — o género que

procura o geral, e não o particular, que procura o abstracto e não o concreto. Claro que é

fácil ficar impaciente com estas questões, pois não admitem resolução científica. Mas na

verdade esta é uma resposta de filisteu combinada com fetiche científico. A ciência é sem

dúvida uma tarefa importante e nobre, mas não é a única forma de investigação intelectual

com valor. Não devemos abraçar a ideia de que uma pergunta ou é científica ou coisa

nenhuma.

Filosofia e crítica - Bertrand Russell. Tradução de Desidério Murcho. Retirado de Os

Problemas da Filosofia, de Bertrand Russell (Oxford: Oxford University Press, 1912; trad.

portuguesa: Lisboa, Edições 70, em preparação)

1. A característica essencial da filosofia, que a torna um estudo diferente da ciência, é a crítica.

A filosofia examina criticamente os princípios usados na ciência e na vida quotidiana;

procura inconsistências que possam existir nestes princípios, e só os aceita quando, em

resultado de um inquérito crítico, não surgiu qualquer razão para os rejeitar. [...]

2. Contudo, quando falamos da filosofia como uma crítica do conhecimento, é necessário

impor uma certa limitação. Se adoptamos a atitude do céptico completo, colocando-nos

completamente fora de todo o conhecimento, e pedindo, desta posição exterior, para sermos

obrigados a regressar ao interior do círculo do conhecimento, estamos a exigir o impossível,

e o nosso cepticismo nunca poderá ser refutado. Pois toda a refutação tem de começar com

algum pedaço de conhecimento que os contendores partilham; nenhum argumento pode

começar da dúvida nua. Logo, para que algum resultado se alcance, a crítica do

conhecimento que a filosofia usa não pode ser deste tipo destrutivo. Contra este cepticismo

absoluto nenhum argumento lógico se pode avançar. Mas não é difícil ver que o cepticismo

deste tipo não é razoável. A "dúvida metódica" de Descartes, que inaugura a filosofia

moderna, não é deste tipo, sendo antes o tipo de crítica que estamos a dizer que é a essência

3

da filosofia. A sua "dúvida metódica" consistia em duvidar de tudo o que parecesse

duvidoso; em parar, perante cada pedaço de aparente conhecimento, para perguntar a si

próprio se, depois de reflectir, poderia estar certo de que o sabia realmente. Este é o tipo de

crítica que constitui a filosofia. Algum conhecimento, como o conhecimento da existência

dos nossos dados dos sentidos, parece deveras indubitável, por mais que reflictamos calma e

meticulosamente sobre ele. Com respeito a tal conhecimento, a crítica filosófica não exige

que nos abstenhamos da crença. Mas há crenças — como, por exemplo, a crença de que os

objectos físicos se assemelham exactamente aos nossos dados dos sentidos — que têm

abrigo em nós até começarmos a reflectir, mas descobre-se que se evaporam quando são

submetidas a um inquérito aturado. Tais crenças a filosofia irá convidar-nos a rejeitar, a não

ser que uma nova linha de argumentação se encontre que as sustente. Mas rejeitar as crenças

que não parecem abertas a quaisquer objecções, por mais cuidadosamente que as

examinemos, não é razoável, e não é o que a filosofia advoga.

3. A crítica que se tem em vista, numa palavra, não é a que, sem razão, aposta em rejeitar, mas

a que considera os méritos de cada pedaço de conhecimento aparente, retendo o que

continua a parecer conhecimento uma vez terminada esta consideração. Tem de se admitir

que permanece algum risco de erro, uma vez que os seres humanos são falíveis. A filosofia

pode afirmar justamente que diminui o risco de erro, e que em alguns casos torna o risco tão

pequeno que na prática é negligenciável. Fazer mais que isto não é possível num mundo em

que os erros têm de ocorrer; e mais que isto nenhum defensor prudente da filosofia afirmará

ter conseguido.

Filosofia - objecto e método - Cornman, Leher e Pappas. Pilosophical Problems and

Arguments: An introduction,New York, Macmillan Publishing Co., Inc., 19823, pp. 1-3

(tradução de Vasco Casimiro). http://www.terravista.pt/aguaalto/5159/PAPPAS.htm

1. «Ainda não há muito tempo, todas as matérias científicas eram consideradas parte da

filosofia. A filosofia da natureza [philosophy of matter] compreendia o que agora chamamos

química e física; a filosofia do espírito [philosophy of mind] cobria as matérias da

psicologia e áreas adjacentes. Em suma, a filosofia era concebida de forma tão lata que

cobria qualquer campo da investigação teórica. Qualquer assunto em relação a cujo

conteúdo fosse possível apresentar uma teoria explicativa tornar-se-ia um ramo da filosofia.

Contudo, quando uma certa área de investigação atingia um ponto em que uma teoria

principal dominava e, por conseguinte, se desenvolviam métodos uniformizados de crítica e

confirmação, essa área era separada da árvore mãe da filosofia e tornava-se independente.

2. Por exemplo, os filósofos avançaram em tempos uma série de teorias para explicar a

natureza da matéria. Um deles afirmou que todas as coisas eram constituídas por água;

outro, de alguma maneira mais próximo das concepções actuais, propôs a teoria de que a

matéria era composta de pequenos átomos homogéneos e indivisíveis. Tendo-se certas

teorias acerca da matéria, bem como os métodos experimentais para as testar, tornado

aceites entre a comunidade científica, a filosofia da natureza deu origem às ciências da física

e da química. Outro exemplo de um problema filosófico convertido em problema científico

é o da natureza da vida. Numa determinada altura, a vida foi concebida como uma entidade

espiritual que entrava no corpo no momento do nascimento e o abandonava no momento da

morte; noutra altura, foi concebida como uma força vital especial que activava o corpo.

Hoje, a natureza da vida é explicada em termos de bioquímica.

3. Assim, é uma peculiaridade da filosofia que, tendo a argumentação e a disputa conduzido à

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aceitação de uma certa teoria, acompanhada de uma metodologia adequada para tratar uma

certa temática filosófica, a teoria e a metodologia se separem da filosofia e sejam

consideradas parte de outra disciplina. Certas temáticas estão actualmente em processo de

transição. Um exemplo disso é o campo da linguística e, em particular, dentro desse campo,

a temática da semântica. Os filósofos construíram uma multiplicidade de teorias para

explicar como podem as palavras ter significado [meaning] e o que constitui o significado

das palavras. As explicações eram em termos de imagens, ideias e outros fenómenos

psicológicos. Actualmente, os filósofos e os linguistas explicam o que é o significado em

termos da função das palavras no discurso e das características semânticas subjacentes, que

desempenham na semântica um papel semelhante ao desempenhado na física pelas

características das partículas atómicas. Neste campo não há uma distinção precisa entre

filósofos e linguistas. Ambos utilizam metodologias recentemente desenvolvidas de análise

gramatical e semântica para articular leis e teorias que permitam explicar a estrutura e o

conteúdo da linguagem. É característico de uma área em processo de transição o facto de

não ser claro se um investigador dessa área é filósofo ou cientista. Em filosofia, o

desenvolvimento de uma área conduz muitas vezes à sua independência e autonomia. É por

esta razão que qualquer especificação da filosofia em termos do seu objecto será, muito

provavelmente, controversa na actualidade e desactualizada no futuro.

4. Contudo, as considerações anteriores explicam uma característica relativamente constante da

filosofia, a saber, o seu estado de incompletude [the unsettled state of the art]. As questões

estudadas em filosofia são tratadas através de métodos dialécticos de argumentação e contra-

argumentação. E um aprendiz [student] pode às vezes sentir que, depois de uma longa e

árdua investigação, nada ficou estabelecido. Esta impressão deve-se, em parte, ao facto de,

num dado momento, a filosofia parecer lidar com aqueles problemas intelectuais que ainda

não foram articulados de modo a permitir que uma única teoria e metodologia lhes seja

aplicada que sirva para a sua resolução. Quando o espírito humano se defronta com algum

problema intelectual complexo, sem que haja um tratamento [approach] experimental

uniforme e estabelecido para a questão, é de esperar que o problema se encontre no domínio

da filosofia. Uma vez que a investigação intelectual tenha conduzido à articulação de uma

teoria uniforme com um método geralmente aceite de investigação experimental, então, com

toda a probabilidade, o problema deixará de ser considerado parte da filosofia. Será, em vez

disso, atribuído a uma disciplina independente. Assim, por causa do seu próprio êxito, a

filosofia vai perdendo algumas das suas temáticas.

5. Contudo, esta caracterização não deve levar-nos a pensar que todos os problemas filosóficos

são potencialmente exportáveis por meio de um processamento bem sucedido. Algumas

questões e problemas resistem a essa exportação em virtude do seu carácter geral e

fundamental. Por exemplo, em todos os campos da investigação, as pessoas procuram o

conhecimento. Mas é em filosofia que se pergunta o que é o conhecimento, ou sequer se tal

coisa é possível [whether there is any such thing at all]. Tais questões pertencem ao ramo da

filosofia chamado epistemologia. Em alguns domínios, na economia e na política [politics],

por exemplo, estudam-se as consequências causais de diversas acções e políticas [policies].

Em filosofia, pergunta-se quais são as características gerais que tornam as acções e as

políticas [policies] justas [right] ou injustas [wrong]. Tais questões pertencem ao domínio da

ética. Finalmente, críticos, literatos, compositores e artistas perguntam se um certo objecto é

uma obra de arte. Os filósofos preocupam-se com a questão mais geral de saber o que torna

uma certa coisa um objecto de arte. Estas são as questões da estética. Outras questões acerca

da natureza [character] da liberdade, do espírito e de Deus parecem ser objecto perene da

filosofia porque são questões simultaneamente muito básicas e muito gerais.

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6. Além disso, um tratamento bem sucedido de um problema dentro de determinada área pode

gerar novos problemas. Por exemplo, uma explicação de fenómenos físicos em termos de

leis e teorias levanta a questão de se saber se o movimento dos corpos humanos, que fazem

parte do universo físico, tem lugar de maneira puramente mecânica, o que poria em causa a

nossa impressão de sermos agentes livres que determinam o seu próprio destino por

deliberação e decisão. Da mesma forma, o sucesso da neurofisiologia na explicação do

nosso comportamento levanta a questão de se saber se os pensamentos e os sentimentos não

serão senão processos físicos. Não temos maneira de responder a estas perguntas através de

um apelo directo à experiência ou de uma teoria firmemente estabelecida. Em vez disso,

temos de confiar nos métodos da investigação filosófica - o exame cuidadoso de argumentos

apresentados em defesa de posições divergentes e a análise dos termos importantes neles

contidos.

7. Não há que recear a escassez de temas filosóficos. O objecto [subject matter] da filosofia

apenas é limitado pela capacidade do espírito humano de colocar novas questões e de

reformular as antigas segundo um novo ponto de vista [in some novel way]. Ao fazê-lo,

fornecem-se novos conteúdos à única área que recebe de braços abertos todos os órfãos

intelectuais rejeitados pelas outras disciplinas por causa da sua estranheza e dificuldade. A

filosofia é o lugar de acolhimento [home] dos problemas intelectuais com os quais as outras

disciplinas são incapazes de lidar. Em consequência disso, está cheia do interesse intelectual

da controvérsia e da disputa que têm lugar nas fronteiras da investigação racional.»

O carácter conceptual da filosofia - Desidério Murcho. (2000). O que é a filosofia?

http://www.intelectu.com/arquivo.html

Pensemos outra vez numa afirmação como ‘Nenhum objecto pode viajar mais depressa do

que a luz’. As afirmações das ciências empíricas são afirmações do género desta: afirmações que se

referem ao mundo que podemos observar pelos sentidos ou que podemos inferir a partir de

observações e medições complicadas realizadas com instrumentos como um espectrómetro ou um

radiotelescópio. Mas por mais que façamos medições e observações não iremos descobrir se os

animais têm direitos, nem se Deus existe, nem se há números.

1. Ao contrário da física e da biologia, a filosofia não tem um carácter empírico; é um estudo

conceptual. Neste aspecto, a filosofia é mais parecida com a matemática, que também não é

uma disciplina empírica. Mas a filosofia distingue-se da matemática por várias razões. Em

primeiro lugar, não dispõe de métodos formais de demonstração, como a matemática; em

segundo lugar, não se ocupa do tipo de problemas de que se ocupa a matemática. Mas de

que tipo de problemas se ocupa afinal a filosofia?

2. Uma vez mais, o melhor é dar exemplos e apontar algumas das características mais salientes

dos problemas filosóficos típicos. Pensemos, por exemplo, em Deus. Os cristãos têm uma

dada concepção de Deus, os muçulmanos outra e os hindus outra ainda. E há muitas mais,

tantas quantas as religiões. As religiões partem de certas verdades reveladas pelos seus

profetas e inscritas nos seus livros sagrados; procuram descobrir a verdadeira natureza de

Deus e encontrar o caminho da salvação. Mas nada disso são problemas filosóficos. A

filosofia não cultiva dogmas, como a religião; a filosofia faz o contrário: procura destruir

dogmas. Os cristãos, muçulmanos e hindus, partem do princípio de que existe Deus. A

filosofia pergunta: mas que razões temos para pensar que existe Deus? E, admitindo que

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existe um deus sumamente bom e criador, omnisciente e omnipotente, como se explica a

existência do mal? A filosofia faz as perguntas difíceis que muitas pessoas gostariam de

calar, e que efectivamente têm muitas vezes conseguido calar ao longo da infeliz história

humana. Podemos dizer, poeticamente, que a filosofia é um grito de liberdade contra a

opressão do dogma. E nisto, uma vez mais, a filosofia é semelhante à ciência.

3. O que distingue os problemas da filosofia dos problemas da ciência é o seu carácter

conceptual, a sua generalidade e a inexistência de fronteiras precisas. Os problemas da

matemática são também bastante gerais e em grande medida conceptuais – mas têm

fronteiras muito precisas. Não se pode determinar matematicamente se os animais têm

direitos; não se pode determinar matematicamente se Deus existe – e nem sequer se pode

determinar matematicamente se os números existem independentemente de nós. Qualquer

problema com suficiente generalidade, de carácter conceptual e para a solução do qual não

exista qualquer ciência pode ser um problema filosófico. Os problemas da matemática têm

fronteiras muito claras: têm de poder ser resolvidos pelos métodos formais da matemática.

Em filosofia, pelo contrário, não há métodos formais para resolver problemas.

4. [...]

5. Uma das características da filosofia é o facto de não ser uma investigação empírica, como já

sublinhei; para saber se os animais têm direitos ou se Deus existe, não tenho de fazer

trabalho científico de campo, não tenho de fazer experiências em laboratórios, nem tenho de

elaborar inquéritos, nem tenho de fazer estatísticas; limito-me a pensar. Posso ter de usar

dados empíricos fornecidos pelas ciências; mas não compete à filosofia fazer o levantamento

desses dados.

6. Este modo de proceder tradicional da filosofia, que resulta da sua natureza conceptual, acaba

por contribuir para pseudo-investigações de quem não sabe distinguir os problemas

susceptíveis de serem estudados pela filosofia dos problemas que só com alguma

investigação empírica podem ser abordados de forma respeitável.

7. Repare-se na seguinte distinção crucial. Todos nós temos opiniões sobre vários aspectos do

mundo que nos rodeia. Eu vou a um país estrangeiro e formo uma ideia intuitiva sobre o

carácter das pessoas desse país, comparando-as com as pessoas do meu próprio país. A

formação deste tipo de opiniões é inevitável; mas não se pode confundir isto com ciência.

Ninguém pode dizer, só porque visitou durante 3 anos a Índia, que os indianos são em geral

mais honestos do que os portugueses. Este resultado não oferece quaisquer garantias; é

suficiente para animar conversas de café com os nossos amigos; mas basear um estudo sério

sobre estas observações não sistemáticas é uma tolice.

8. Se temos de basear uma reflexão filosófica sobre dados empíricos, esses dados empíricos

têm de ser fidedignos; não podem resultar da mera observação de senso comum.

O que é estudar filosofia? - Nigel Warburton. Tradução de Desidério Murcho. Original:

http://www.open.ac.uk/Arts/philos/whatis.htm.

1. A filosofia é diferente de muitas outras disciplinas das Letras porque para estudar filosofia é

necessário fazer filosofia. Para ser um historiador de arte, não é necessário pintar; para

estudar poesia, não é necessário ser um poeta; e podemos estudar música sem tocar um

instrumento. Contudo, para estudar filosofia é necessário que nos entreguemos à

argumentação filosófica (argumentar é apresentar razões ou indícios que conduzem a uma

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conclusão). Não se trata de operar ao nível dos grandes filósofos do passado; mas quando se

estuda filosofia faz-se o mesmo tipo de coisa que eles fizeram. Podemos jogar futebol sem

chegar ao nível do Pelé, e podemos obter muita satisfação intelectual filosofando sem a

originalidade ou o brilhantismo de Wittgenstein. Mas em ambos os casos será necessário

desenvolver algumas das competências usadas pelos grandes praticantes. Essa é uma das

razões pelas quais a filosofia pode ser uma área de estudos imensamente compensadora.

2. A palavra "filosofia" deriva do grego "amor da sabedoria". Mas isto não é particularmente

útil para a compreensão do modo como a palavra é agora usada. A filosofia é um disciplina

nuclear relativamente à maior parte dos cursos de humanidades. Centra-se em questões

abstractas como "Será que Deus existe?", "Será o mundo realmente como nos parece que

é?", "Como devemos viver?", "O que é a arte?", "Teremos uma liberdade de escolha

genuína?", "O que é a mente?", e assim por diante.

3. Estas questões muito abstractas podem surgir na nossa experiência quotidiana. Algumas

pessoas fazem uma caricatura da filosofia como se fosse uma disciplina sem relevância para

a vida, uma disciplina para estudar em casa unicamente por satisfação intelectual, o

equivalente académico de fazer palavras cruzadas. Mas isto é uma representação gravemente

errada de grande parte da disciplina. Por exemplo, o caloroso debate sobre se o boxe deve

ser proibido só pode responder-se enfrentando questões abstractas importantes. Quais são os

limites aceitáveis da liberdade individual num país civilizado? Quais são as justificações

para o paternalismo, para forçar as pessoas a comportar-se de uma certa forma para o seu

próprio bem? Por outras palavras, este debate não é apenas sobre reacções emocionais ao

boxe; depende antes de pressupostos filosóficos fundamentais (um pressuposto é uma

afirmação a favor da qual não se avança qualquer argumento; uma afirmação que se aceita

para permitir a argumentação).

4. A análise de razões e argumentos é uma área própria da filosofia. De facto, se a filosofia tem

um método distintivo, é este: a construção, crítica e análise de argumentos. As competências

filosóficas são aplicáveis em qualquer área em que os argumentos sejam importantes, e não

apenas nos domínios da especulação abstracta. São particularmente úteis quando se escreve

ensaios, dado que se espera habitualmente que se defenda conclusões, e não apenas que as

afirmemos. Por esta razão, uma formação básica em filosofia é extremamente importante,

seja qual for a disciplina académica que se tenha em mente seguir.

O que é a filosofia? - WARBURTON, Nigel (1998). Elementos básicos de filosofia. Lisboa:

Gradiva, páginas 19 – 27.

1. O que é a filosofia? Esta é uma questão notoriamente difícil. Uma das formas mais fáceis de

responder é dizer que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem, indicando de seguida os

textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Russell, Wittgenstein, Sartre e de

outros filósofos famosos. Contudo, é improvável que esta resposta possa ser realmente útil

se o leitor está a começar agora o seu estudo da filosofia, uma vez que, nesse caso, não terá

provavelmente lido nada desses autores. Mas mesmo que já tenha lido alguma coisa, pode

mesmo assim ser difícil dizer o que têm em comum, se é que existe realmente uma

característica relevante partilhada por todos. Outra forma de abordar a questão é indicar que

a palavra «filosofia» deriva da palavra grega que significa «amor da sabedoria». Contudo,

isto é muito vago e ainda nos ajuda menos do que dizer apenas que a filosofia é aquilo que

os filósofos fazem. Precisamos por isso de alguns comentários gerais sobre o que é a

filosofia.

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2. A filosofia é uma actividade: é uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua

característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. A actividade dos filósofos é,

tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras

pessoas ou fazem as duas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. A

palavra «filosofia» é muitas vezes usada num sentido muito mais lato do que este, para

referir uma perspectiva geral da vida ou para referir algumas formas de misticismo. Não irei

usar a palavra neste sentido lato: o meu objectivo é lançar alguma luz sobre algumas das

áreas centrais de discussão da tradição que começou com os gregos antigos e que tem

prosperado no século XX, sobretudo na Europa e na América.

3. Que tipo de coisas discutem os filósofos desta tradição? Muitas vezes, examinam crenças

que quase toda a gente aceita acriticamente a maior parte do tempo. Ocupam-se de questões

relacionadas com o que podemos chamar vagamente «o sentido da vida»: questões acerca da

religião, do bem e do mal, da política, da natureza do mundo exterior, da mente, da ciência,

da arte e de muitos outros assuntos. Por exemplo, muitas pessoas vivem as suas vidas sem

questionarem as suas crenças fundamentais, tais como a crença de que não se deve matar.

Mas por que razão não se deve matar? Que justificação existe para dizer que não se deve

matar? Não se deve matar em nenhuma circunstância? E, afinal, que quer dizer a palavra

«dever»? Estas são questões filosóficas. Ao examinarmos as nossas crenças, muitas delas

revelam fundamentos firmes; mas algumas não. O estudo da filosofia não só nos ajuda a

pensar claramente sobre os nossos preconceitos, como ajuda a clarificar de forma precisa

aquilo em que acreditamos. Ao longo desse processo desenvolve-se uma capacidade para

argumentar de forma coerente sobre um vasto leque de temas -- uma capacidade muito útil

que pode ser aplicada em muitas áreas.

4. A filosofia e a sua história

5. Desde o tempo de Sócrates que surgiram muitos filósofos importantes. Já referi alguns no

primeiro parágrafo. Um livro de introdução à filosofia poderia abordar o tema

historicamente, analisando as contribuições desses grandes filósofos por ordem cronológica.

Mas não é isso que farei neste livro. Ao invés, abordarei o tema por tópicos: uma abordagem

centrada em torno de questões filosóficas particulares e não na história. A história da

filosofia é, em si mesma, um assunto fascinante e importante; muitos dos textos filosóficos

clássicos são também grandes obras de literatura: os diálogos socráticos de Platão, as

Meditações, de Descartes, a Investigação sobre o Entendimento Humano, de David Hume e

Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, para citar só alguns exemplos, são todas magníficos

exemplos de boa prosa, sejam quais forem os padrões que usemos. Apesar de o estudo da

história da filosofia ser muito importante, o meu objectivo neste livro é oferecer ao leitor

instrumentos para pensar por si próprio sobre temas filosóficos, em vez de ser apenas capaz

de explicar o que algumas grandes figuras do passado pensaram acerca desses temas. Esses

temas não interessam apenas aos filósofos: emergem naturalmente das circunstâncias

humanas; muitas pessoas que nunca abriram um livro de filosofia pensam espontaneamente

nesses temas.

6. Qualquer estudo sério da filosofia terá de envolver uma mistura de estudos históricos e

temáticos, uma vez que se não conhecermos os argumentos e os erros dos filósofos

anteriores não podemos ter a esperança de contribuir substancialmente para o avanço da

filosofia. Sem algum conhecimento da história, os filósofos nunca progrediriam:

continuariam a fazer os mesmos erros, sem saber que já tinham sido feitos. E muitos

filósofos desenvolvem as suas próprias teorias ao verem o que está errado no trabalho dos

filósofos anteriores. Contudo, num pequeno livro como este, é impossível fazer justiça às

9

complexidades da obra de filósofos individuais. As leituras complementares, sugeridas no

fim de cada capítulo, ajudam a colocar num contexto histórico mais vasto os assuntos aqui

discutidos.

7. Porquê estudar filosofia?

8. Defende-se por vezes que não vale a pena estudar filosofia uma vez que tudo o que os

filósofos fazem é discutir sofisticamente o significado das palavras; nunca parecem atingir

quaisquer conclusões de qualquer importância e a sua contribuição para a sociedade é

virtualmente nula. Continuam a discutir acerca dos mesmos problemas que cativaram a

atenção dos gregos. Parece que a filosofia não muda nada; a filosofia deixa tudo tal e qual.

9. Qual é afinal a importância de estudar filosofia? Começar a questionar as bases

fundamentais da nossa vida pode até ser perigoso: podemos acabar por nos sentir incapazes

de fazer o que quer que seja, paralisados por fazer demasiadas perguntas. Na verdade, a

caricatura do filósofo é geralmente a de alguém que é brilhante a lidar com pensamentos

altamente abstractos no conforto de um sofá, numa sala de Oxford ou Cambridge, mas

incapaz de lidar com as coisas práticas da vida: alguém que consegue explicar as mais

complicadas passagens da filosofia de Hegel, mas que não consegue cozer um ovo.

A vida examinada

10. Uma razão importante para estudar filosofia é o facto de esta lidar com questões

fundamentais acerca do sentido da nossa existência. A maior parte das pessoas, num ou

noutro momento da sua vida, já se interrogou a respeito de questões filosóficas. Por que

razão estamos aqui? Há alguma demonstração da existência de Deus? As nossas vidas têm

algum propósito? O que faz com que algumas acções sejam moralmente boas ou más?

Poderemos alguma vez ter justificação para violar a lei? Poderá a nossa vida ser apenas um

sonho? É a mente diferente do corpo, ou seremos apenas seres físicos? Como progride a

ciência? O que é a arte? E assim por diante.

11. A maior parte das pessoas que estuda filosofia acha importante que cada um de nós examine

estas questões. Algumas até defendem que não vale a pena viver a vida sem a examinar.

Persistir numa existência rotineira sem jamais examinar os princípios na qual esta se baseia

pode ser como conduzir um automóvel que nunca foi à revisão. Podemos justificadamente

confiar nos travões, na direcção e no motor, uma vez que sempre funcionaram suficien-

temente bem até agora; mas esta confiança pode ser completamente injustificada: os travões

podem ter uma deficiência e falharem precisamente quando mais precisarmos deles.

Analogamente, os princípios nos quais a nossa vida se baseia podem ser inteiramente

sólidos; mas, até os termos examinado, não podemos ter a certeza disso.

12. Contudo, mesmo que não duvidemos seriamente da solidez dos princípios em que baseamos

a nossa vida, podemos estar a empobrecê-la ao recusarmo-nos a usar a nossa capacidade de

pensar. Muitas pessoas acham que dá demasiado trabalho ou que é excessivamente

inquietante colocar este tipo de questões fundamentais: podem sentir-se satisfeitas e

confortáveis com os seus preconceitos. Mas há outras pessoas que têm um forte desejo de

encontrar respostas a questões filosóficas que representem um desafio.

Aprender a pensar

13. Outra razão para estudar filosofia é o facto de isso nos proporcionar uma boa maneira de

aprender a pensar mais claramente sobre um vasto leque de assuntos. Os métodos do

pensamento filosófico podem ser úteis em variadíssimas situações, uma vez que, ao analisar

10

os argumentos a favor e contra qualquer posição, adquirimos aptidões que podem ser

aplicadas noutras áreas da vida. Muitas pessoas que estudam filosofia aplicam depois as

suas aptidões em profissões tão diferentes quanto o direito, a informática, a consultoria de

gestão, o funcionalismo público e o jornalismo - áreas onde a clareza de pensamento é um

grande trunfo. Os filósofos usam também a perspicácia que adquirem acerca da natureza da

existência humana quando se voltam para as artes: alguns filósofos foram também

romancistas, críticos, poetas, realizadores de cinema e dramaturgos de sucesso.

[...]

14. A filosofia é difícil?

15. A filosofia é muitas vezes descrita como uma disciplina difícil. Há vários tipos de

dificuldades associadas à filosofia, algumas delas evitáveis.

16. Em primeiro lugar, é verdade que muitos dos problemas com os quais os filósofos

profissionais lidam exigem efectivamente um nível bastante elevado de pensamento

abstracto. Contudo, o mesmo se aplica a praticamente todas as actividades intelectuais: a

esse respeito, a filosofia não é diferente da física, da teoria literária, da informática, da

geologia, da matemática ou da história. Tal como acontece com estas e outras áreas de

estudo, a dificuldade em dar um contributo substancialmente original na área respectiva não

deve ser usada como desculpa para negar às pessoas comuns o conhecimento dos avanços

dessas áreas, nem para as impedir de aprender os seus métodos básicos.

17. Contudo, há um segundo tipo de dificuldade associada à filosofia que pode ser evitada. Os

filósofos nem sempre são bons prosadores. Muitos têm fracas capacidades para comunicar

claramente as suas próprias ideias. Por vezes, isto acontece porque só estão interessados em

atingir uma pequeníssima audiência de leitores especializados; outras vezes, porque usam

uma gíria desnecessariamente complicada que se limita a confundir os que com ela não

estão familiarizados. Os termos especializados podem ser úteis para evitar explicar certos

conceitos sempre que são usados. Contudo, há entre os filósofos profissionais uma tendência

infeliz para usar termos especializados como um fim em si; muitos usam expressões latinas

apesar de existirem equivalentes portugueses perfeitamente aceitáveis. Um parágrafo cheio

de palavras desconhecidas e de palavras conhecidas usadas de forma desconhecida pode

intimidar. Alguns filósofos parecem falar e escrever numa linguagem inventada por eles.

Isto pode fazer que a filosofia pareça muito mais difícil do que na verdade é.

18. [...]

Os limites do que a filosofia pode fazer

19. Alguns estudantes têm expectativas excessivamente altas em relação à filosofia. Esperam

que a filosofia lhes forneça uma imagem acabada e detalhada dos dilemas humanos. Pensam

que a filosofia lhes irá revelar o sentido da vida e explicar todas as facetas das nossas com-

plexas existências. Ora, apesar de o estudo da filosofia poder iluminar algumas questões

fundamentais relacionadas com a nossa existência, não oferece nada que se pareça com uma

imagem acabada, se é que de facto pode existir tal coisa. Estudar filosofia não é uma alter-

nativa ao estudo da arte, da história, da psicologia, da antropologia, da sociologia, da

política e da ciência. Estas diferentes disciplinas concentram-se em diferentes aspectos da

vida humana e oferecem diferentes tipos de esclarecimentos. Alguns aspectos da vida das

pessoas resistem à análise filosófica e até talvez a qualquer outro tipo de análise. É por isso

importante não esperar demasiado da filosofia.

11

O que é a filosofia? - Thomas Nagel. (1997). Que quer dizer tudo isto? Lisboa: Gradiva,

páginas 7 – 9.

1. As nossas capacidades analíticas estão muitas vezes já altamente desenvolvidas antes de

termos aprendido muita coisa acerca do mundo, e por volta dos catorze anos muitas pessoas

começam a pensar por si próprias em problemas filosóficos — sobre o que realmente existe,

se nós podemos saber alguma coisa, se alguma coisa é realmente correcta ou errada, se a

vida faz sentido, se a morte é o fim. Escreve-se acerca destes problemas desde há milhares

de anos, mas a matéria-prima filosófica vem directamente do mundo e da nossa relação com

ele, e não de escritos do passado. É por isso que continuam a surgir uma e outra vez na

cabeça de pessoas que não leram nada acerca deles.

2. [...] Não discutirei os grandes escritos filosóficos do passado nem o contexto cultural desses

escritos. O núcleo da filosofia reside em certas questões que o espírito reflexivo humano

acha naturalmente enigmáticas, e a melhor maneira de começar o estudo da filosofia é

pensar directamente sobre elas. Uma vez feito isso, encontramo-nos numa posição melhor

para apreciar o trabalho de outras pessoas que tentaram solucionar os mesmos problemas.

3. A filosofia é diferente da ciência e da matemática. Ao contrário da ciência, não assenta em

experimentações nem na observação, mas apenas no pensamento. E ao contrário da

matemática não tem métodos formais de prova. A filosofia faz-se colocando questões,

argumentando, ensaiando ideias e pensando em argumentos possíveis contra elas, e

procurando saber como funcionam realmente os nossos conceitos.

4. A preocupação fundamental da filosofia é questionar e compreender ideias muito comuns

que usamos todos os dias sem pensar nelas. Um historiador pode perguntar o que aconteceu

em determinado momento do passado, mas um filósofo perguntará: «O que é o tempo?» Um

matemático pode investigar as relações entre os números, mas um filósofo perguntará: «o

que é um número?» Um físico perguntará o que constitui os átomos ou o que explica a

gravidade, mas um filósofo irá perguntar como podemos saber que existe qualquer coisa

fora das nossas mentes. Um psicólogo pode investigar como as crianças aprendem uma

linguagem, mas um filósofo perguntará: «Que faz uma palavra significar qualquer coisa?»

Qualquer pessoa pode perguntar se entrar num cinema sem pagar está errado, mas um

filósofo perguntará: «O que torna uma acção boa ou má?»

5. Não poderíamos viver sem tomar como garantidas as ideias de tempo, número,

conhecimento, linguagem, bem e mal, a maior parte do tempo; mas em filosofia

investigamos essas mesmas coisas. O objectivo é levar o conhecimento do mundo e de nós

um pouco mais longe. É óbvio que não é fácil. Quanto mais básicas são as ideias que

tentamos investigar, menos instrumentos temos para nos ajudar. Não há muitas coisas que

possamos assumir como verdadeiras ou tomar como garantidas. Por isso, a filosofia é uma

actividade de certa forma vertiginosa, e poucos dos seus resultados ficam por desafiar por

muito tempo.

O que é um filósofo? - Mary Warnock. Tradução de Desidério Murcho. Retirado de Mulheres

Filosóficas (1996), pp. Xxix-xxx.

1. "O que faz de alguém um filósofo, além de ser considerado como tal pela universidade?"

Primeiro, penso que um autor tem de dar atenção a questões com um alto grau de

12

generalidade, e tem de se sentir à vontade com as ideias abstractas. Não é suficiente procurar

a verdade, pois podemos estabelecer a verdade com respeito a factos particulares; isso pode

ser o objectivo dos historiadores, ou dos romancistas que procuram dizer de forma

imaginativa como as coisas são, num certo sentido. Um filósofo diria também sem dúvida

que procura a verdade, mas está interessado em seja o que for que está por detrás dos factos

particulares da experiência, dos pormenores da história; um filósofo ocupa-se do significado

subjacente da linguagem que nós usamos habitualmente e sem pensar, as categorias em

função das quais organizamos a nossa experiência. Assim, esse filósofo ou filósofa diria não

apenas que procura a verdade, mas que procura uma verdade, ou teoria, que explique o

particular e o pormenor e o quotidiano.

2. Um grande filósofo que exemplifica estas características foi o escocês David Hume. Nunca

desempenhou quaisquer funções académicas (apesar de uma vez o ter tentado

infrutiferamente); a maior parte dos seus escritos pertencia a esse tipo particularmente

escocês, o ensaio; e os seus ensaios tratavam de vários temas sociais, políticos e

económicos. Mas a sua grande obra filosófica, o Tratado da Natureza Humana, que ele

terminou quando tinha apenas 26 anos, foi concebida para estabelecer os fundamentos de

uma ciência empírica genuína da natureza humana. A partir destes fundamentos Hume

esperava que se pudesse construir uma elucidação de todo o conhecimento humano,

incluindo o conhecimento científico, e de toda a moral, incluindo a moral política. Aqui

temos generalidade, e de facto uma enorme ambição explicativa.

3. Hume satisfaz também outro critério pelo qual medimos um verdadeiro filósofo: ocupava-se

não apenas de apresentar as suas ideias, mas também de argumentar a seu favor. Esta atitude

tem conduzido quase sempre, entre os filósofos, a um interesse apaixonado pelas ideias uns

dos outros; e tem levado os filósofos a discordar, e se possível a refutar, os argumentos dos

outros filósofos; e também a expor teorias por meio de diálogos, falados ou escritos. Por

vezes, como no caso de Platão, Berkeley ou Hume, estes diálogos são ficcionais; por vezes

são reais, e tomaram a forma de respostas a objecções, como no caso de Descartes, ou de

troca de correspondência. Os filósofos são por natureza faladores e epistolares; só raramente

preferem sentar-se e pensar, isolados dos seus pares.

O valor da filosofia - Bertrand Russell (Tradução de Álvaro Nunes). Os Problemas da

Filosofia, Oxford University Press, Oxford, 2001, pp. 89-94.

1. Tendo agora chegado ao fim da nossa análise breve e muito incompleta dos problemas da

filosofia, será vantajoso que, para concluir, consideraremos qual é o valor da filosofia e

porque deve ser estudada. É da maior necessidade que examinemos esta questão, tendo em

conta que muitas pessoas, sob a influência da ciência ou de afazeres práticos, se inclinam a

duvidar de que a filosofia seja algo melhor do que frivolidades inocentes mas inúteis,

distinções demasiado subtis e controvérsias sobre matérias acerca das quais o conhecimento

é impossível.

2. Esta visão da filosofia parece resultar em parte de uma concepção errada dos fins da vida e

em parte de uma concepção errada do género de bens que a filosofia procura alcançar. A

física, por meio de invenções, é útil a inúmeras pessoas que a ignoram completamente, pelo

13

que seu o estudo é recomendado, não apenas, ou principalmente, devido ao efeito no

estudante, mas sim devido ao efeito na humanidade em geral. A filosofia não tem esta

utilidade. Se o estudo da filosofia tem algum valor para os que não estudam filosofia, tem de

ser apenas indirectamente, por intermédio dos seus efeitos na vida daqueles que a estudam.

Portanto, se o valor da filosofia deve ser procurado em algum lado, é principalmente nestes

efeitos.

3. Mas mais, se não queremos que a nossa tentativa para determinar o valor da filosofia

fracasse, temos de libertar primeiro as nossas mentes dos preconceitos daqueles a que se

chama erradamente homens "práticos". O homem "prático", como se usa frequentemente a

palavra, é aquele que reconhece apenas necessidades materiais, que entende que os homens

devem ter alimento para o corpo, mas esquece-se da necessidade de fornecer alimento à

mente. Mesmo que todos os homens vivessem desafogadamente e que a pobreza e a doença

tivessem sido reduzidas ao ponto mais baixo possível, ainda seria necessário fazer muito

para produzir uma sociedade válida; e mesmo neste mundo os bens da mente são pelo

menos tão importantes como os do corpo. É exclusivamente entre os bens da mente que

encontraremos o valor da filosofia; e somente aqueles que não são indiferentes a estes bens

podem ser convencidos de que o estudo da filosofia não é uma perda de tempo.

4. Como todos os outros estudos, a filosofia, aspira essencialmente ao conhecimento. O

conhecimento a que aspira é o que unifica e sistematiza o corpo das ciências e o que resulta

de um exame crítico dos fundamentos das nossas convicções, dos nossos preconceitos e das

nossas crenças. Mas não se pode dizer que a filosofia tenha tido grande sucesso ao tentar dar

respostas exactas às suas questões. Se perguntarmos a um matemático, a um mineralogista, a

um historiador ou a qualquer outro homem de saber, que corpo exacto ma questão a um

filósofo, se for sincero terá de confessar que o seu estudo não chegou a resultados positivos

como aqueles a que chegaram outras ciências. É verdade que isto se explica em parte pelo

facto de que assim que se torna possível um conhecimento exacto acerca de qualquer

assunto, este assunto deixa de se chamar filosofia e passa a ser uma ciência separada. A

totalidade do estudo dos céus, que pertence actualmente à astronomia, esteve em tempos

incluído na filosofia; a grande obra de Newton chamava-se "os princípios matemáticos da

filosofia natural". Analogamente, o estudo da mente humana, que fazia parte da filosofia, foi

agora separado da filosofia e deu origem à ciência da psicologia. Assim, a incerteza da

filosofia é em larga medida mais aparente do que real: as questões às quais já é possível dar

uma resposta exacta são colocadas nas ciências, e apenas aquelas às quais não é possível, no

presente, dar uma resposta exacta, formam o resíduo a que se chama filosofia.

5. Contudo, esta é apenas uma parte da verdade sobre a incerteza da filosofia. Há muitas

questões ― entre elas aquelas que são do maior interesse para a nossa vida espiritual ― que,

tanto quanto podemos ver, continuarão sem solução, a menos que as capacidades do

intelecto humano se tornem de uma ordem completamente diferente da actual. O universo

tem uma unidade de plano ou de propósito, ou é uma confluência fortuita de átomos? A

consciência é um componente permanente do universo, dando a esperança de que a

sabedoria aumente indefinidamente, ou é um acidente transitório num pequeno planeta no

qual a vida tem por fim de se tornar impossível? O bem e o mal são importantes para o

universo ou apenas para o homem? Estas são questões que a filosofia coloca e a que

diferentes filósofos responderam de diferentes maneiras. Mas, quer seja ou não possível

descobrir respostas de outro modo, parece não ser possível demonstrar que alguma das

respostas sugeridas pela filosofia é verdadeira. No entanto, por muito pequena que seja a

esperança de descobrir uma resposta, a filosofia tem o dever de continuar a examinar estas

questões, a consciencializar-nos da sua importância, a examinar todas as respostas que lhes

14

são dadas e a manter vivo o interesse especulativo pelo universo, que pode ser destruído se

nos limitarmos ao conhecimento que podemos verificar com exactidão.

6. É verdade que muitos filósofos defenderam que a filosofia pode estabelecer a verdade de

determinadas respostas a estas questões fundamentais. Eles acreditaram ser possível provar

por demonstrações rigorosas que o mais importante nas crenças religiosas é verdadeiro. Para

que possamos julgar estas tentativas, é necessário examinar o conhecimento humano e

formar uma opinião quanto aos seus métodos e às suas limitações. Seria insensato

pronunciarmo-nos dogmaticamente sobre um assunto destes, mas se as investigações dos

capítulos anteriores não nos induziram em erro, somos forçados a renunciar à esperança de

encontrar provas filosóficas das crenças religiosas. Não podemos, portanto, incluir como

parte do valor da filosofia qualquer conjunto de respostas exactas a essas questões. Por esta

razão, mais uma vez, o valor da filosofia não depende de qualquer pretenso corpo de

conhecimentos que podemos verificar com eTradução de Álvaro Nunes

7. Bertrand Russellxactidão e que aqueles que a estudam adquiram.

8. Na verdade, o valor da filosofia tem de ser procurado sobretudo na sua própria incerteza. O

homem que não tem a mais pequena capacidade filosófica, vive preso aos preconceitos

derivados do senso comum, das crenças habituais da sua época ou da sua nação, e das

convicções que se formaram na sua mente sem a cooperação ou o consentimento reflectido

da sua razão. Para um tal homem o mundo tende a tornar-se definido, finito, óbvio; os

objectos vulgares não levantam quaisquer questões e as possibilidades invulgares são

desdenhosamente rejeitadas. Assim que começamos a filosofar, pelo contrário, verificamos,

como vimos nos capítulos iniciais, que mesmo os objectos mais comuns levam a problemas

a que apenas podemos dar respostas muito incompletas. Embora a filosofia seja incapaz de

nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira às dúvidas que levanta, é capaz de sugerir

muitas possibilidades que alargam os nossos pensamentos e os libertam da tirania do

costume. Assim, embora diminua o nosso sentimento de certeza quanto ao que as coisas são,

a filosofia aumenta muito o nosso conhecimento do que podem ser; elimina o dogmatismo

um tanto arrogante daqueles que nunca viajaram na região da dúvida libertadora e, ao

mostrar as coisas que são familiares com um aspecto invulgar, mantém viva a nossa

capacidade de admiração.

9. Para além da sua utilidade na revelação de possibilidades insuspeitadas, a filosofia adquire

valor ― talvez o seu principal valor ― por meio da grandeza dos objectos que contempla e

da libertação de objectivos pessoais e limitados que resulta desta contemplação. A vida do

homem instintivo está fechada no círculo dos seus interesses privados. A família e os amigos

podem estar incluídos, mas o mundo exterior não é tido em conta excepto na medida em que

possa auxiliar ou impedir o que entra no círculo dos desejos instintivos. Numa vida assim há

algo de febril e limitado, comparada com a qual a vida filosófica é calma e livre. O mundo

privado dos interesses instintivos é um mundo pequeno no meio de um mundo grande e

poderoso que, mais cedo ou mais tarde, reduzirá o nosso mundo privado a ruínas. A menos

que consigamos alargar os nossos interesses de modo a incluir todo o mundo exterior, somos

como uma guarnição numa fortaleza sitiada, que sabe que o inimigo impede a sua fuga e que

a rendição final é inevitável. Numa vida assim não há paz, mas uma luta constante entre a

persistência do desejo e a incapacidade da vontade. De uma forma ou doutra, se queremos

que a nossa vida seja grande e livre, temos de fugir desta prisão e desta luta.

10. Uma forma de fugir é por intermédio da contemplação filosófica. Na sua perspectiva mais

ampla, a contemplação filosófica não divide o universo em dois campos hostis ― amigos e

inimigos, prestável e hostil, bom e mau ― vê o todo com imparcialidade. Quando é pura, a

15

contemplação filosófica não procura provar que o resto do universo é semelhante ao homem.

Toda a aquisição de conhecimento é um alargamento do Eu, mas alcança-se melhor este

alargamento quando ele não é directamente procurado. É obtido quando o desejo de

conhecimento é apenas operativo, por um estudo que não deseja antecipadamente que os

seus objectos tenham esta ou aquela característica, mas adapta o Eu às características que

encontra nos seus objectos. Este alargamento do Eu não é obtido quando, aceitando o Eu

como é, tentamos mostrar que o mundo é de tal modo semelhante a este Eu que é possível

conhecê-lo sem ter de admitir o que parece estranho. O desejo de provar isto é uma forma de

auto-afirmação e, como toda a auto-afirmação, é um obstáculo ao crescimento do Eu que ela

deseja e de que o Eu sabe ser capaz. Na especulação filosófica como em tudo o mais, a auto-

afirmação vê o mundo como um meio para os seus próprios fins; considera, assim, o mundo

menos importante do que o Eu e o EuTradução de Álvaro Nunes

11. Bertrand Russell limita a grandeza dos seus bens. Na contemplação, pelo contrário, partimos

do não-Eu e por intermédio da sua grandeza alargamos os limites do Eu; por intermédio da

infinidade do universo a mente que o contempla participa da infinidade.

12. Por esta razão, as filosofias que adaptam o universo ao Homem não promovem a grandeza

de alma. O conhecimento é uma forma de união do Eu e do não-Eu e, como todas as uniões,

é prejudicado pelo domínio e, portanto, por qualquer tentativa de forçar o universo a

conformar-se ao que encontramos em nós. Há uma ampla tendência filosófica para o ponto

de vista que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas, que a verdade é feita pelo

homem, que o espaço, o tempo e o mundo dos universais são propriedades da mente e que,

se existir algo que não tenha sido criado pela mente, é incognoscível e não tem qualquer

importância para nós. Se as nossas discussões anteriores estavam correctas, este ponto de

vista é falso; mas para além de ser falso, tem o efeito de despojar a contemplação filosófica

de tudo o que lhe dá valor, uma vez que a confina ao Eu. Aquilo a que chama conhecimento

não é uma união com o não-Eu, mas um conjunto de preconceitos, de hábitos e de desejos,

que constituem um véu impenetrável entre nós e o mundo fora de nós. O homem que

encontra prazer numa teoria do conhecimento destas é como o homem que nunca deixa o

círculo doméstico por receio de que a sua palavra possa não ser lei.

13. A verdadeira contemplação filosófica, pelo contrário, encontra satisfação em todo o

alargamento do não-Eu, em tudo o que engrandeça os objectos contemplados e, por essa via,

o sujeito que contempla. Tudo o que na contemplação seja pessoal ou privado, tudo o que

dependa do hábito, do interesse pessoal ou do desejo, deforma o objecto e, por isso,

prejudica a união que o intelecto procura. Ao criarem desta forma uma barreira entre o

sujeito e o objecto, estas coisas pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O

intelecto livre verá como Deus pode ver, sem um aqui e agora, sem esperanças nem temores,

sem o empecilho das crenças vulgares e dos preconceitos tradicionais, calmamente,

desapaixonadamente, no desejo único e exclusivo de conhecimento ― conhecimento tão

impessoal e tão puramente contemplativo quanto o homem possa alcançar. Também por este

motivo, o intelecto livre dará mais valor ao conhecimento abstracto e universal, no qual os

acidentes da história privada não entram, do que ao conhecimento originado pelos sentidos e

dependente, como este conhecimento tem de ser, de um ponto de vista exclusivo e pessoal e

de um corpo cujos órgãos dos sentidos deformam tanto quanto revelam.

14. A mente que se habituou à liberdade e à imparcialidade da contemplação filosófica

conservará alguma desta mesma liberdade e imparcialidade no mundo da acção e da

emoção. Encarará os seus propósitos e desejos como partes do todo, com a falta de

persistência que resulta de os ver como fragmentos minúsculos num mundo no qual nada

16

mais é afectado por qualquer acção humana. A imparcialidade que, na contemplação, é o

desejo puro da verdade, é a mesma qualidade da mente que, na acção, é a justiça e na

emoção é o amor universal que pode ser dado a tudo e não apenas aos que consideramos

úteis ou dignos de admiração. Por conseguinte, a contemplação alarga não apenas os

objectos dos nossos pensamentos, mas também os objectos das nossas acções e das nossas

afecções; faz-nos cidadãos do universo e não apenas de uma cidade murada em guerra com

tudo o resto. A verdadeira liberdade humana e a sua libertação da sujeição a esperanças e

temores mesquinhos consiste nesta cidadania do universo.

15. Assim, resumindo a nossa discussão sobre o valor da filosofia, a filosofia deve ser estudada,

não por causa de quaisquer respostas exactas às suas questões, uma vez que, em regra, não é

possível saber que alguma resposta exacta é verdadeira, mas antes por causa das próprias

questões; porque estas questões alargam a nossa concepção do que é possível, enriquecem a

nossa imaginação intelectual e diminuem a certeza dogmática que fecha a mente à

especulação; mas acima de tudo porque, devido à grandeza do universo que a filosofia

contempla, a mente também se eleva e se torna capaz da união com o universo que constitui

o seu mais alto bem.

Para que serve a filosofia? -Desidério Murcho( 2000). O que é a filosofia?

http://www.intelectu.com/arquivo.html.

1. A filosofia, diz-se por vezes, não serve para nada. [...]

2. Mas será verdade que a filosofia não serve para nada? Claro que não. A filosofia, como a

ciência, como a arte e como a religião, serve para alargar a nossa compreensão do mundo.

Em particular, a filosofia oferece-nos uma compreensão da nossa estrutura conceptual mais

básica, oferece-nos uma compreensão daqueles instrumentos que estamos habituados a usar

para fazer ciência, para fazer religião e para fazer arte, assim como na nossa vida quotidiana.

A filosofia é difícil porque se ocupa de problemas tão básicos que poucos instrumentos

restam para nos ajudarem no nosso estudo. Os matemáticos fazem maravilhas com os

números; mas são incapazes de determinar a natureza última dos próprios números -- têm de

se limitar a usá-los, apesar de não saberem bem o que são. Todos nós sabemos pensar em

termos de deveres, no dia a dia; mas a filosofia procura saber qual é a natureza desse

pensamento ético que nos acompanha sem nós darmos muitas vezes por isso.

3. Para compreendermos melhor as dificuldades da filosofia é conveniente pensar numa

metáfora. Imagine-se que eu estou a fazer uma casa. Preciso de usar vários instrumentos,

como a pá de pedreiro, e vários materiais, como o cimento. Mas quando quero fazer uma pá

de pedreiro, ou quando quero fazer o cimento, terei de usar outros instrumentos mais

básicos. E depois terei de ter instrumentos para fazer os instrumentos com que faço a pá de

pedreiro ou o cimento. E por aí fora. Experimente ir para uma ilha deserta fazer uma casa,

sem levar nada da civilização. Será extremamente difícil: não terá instrumentos à sua

disposição para fazer nada, excepto as suas mãos e a sua inteligência.

4. Num certo sentido, é esta a dificuldade da filosofia: estamos a tentar estudar os próprios

instrumentos que usamos habitualmente para pensar. Por esse motivo, falta-nos

instrumentos, falta-nos apoio. Mas não estamos completamente desamparados; temos a

argumentação para nos ajudar. São os argumentos que fazem a diferença. São os argumentos

que nos permitem ir mais longe na compreensão da nossa estrutura cognitiva mais profunda,

que nos permitem compreender melhor os conceitos que usamos no pensamento quotidiano,

17

científico, artístico e religioso.

5. É agora claro que a filosofia serve para alguma coisa. Serve para compreendermos melhor a

estrutura conceptual que usamos no dia-a-dia, na ciência, nas artes e na religião. Claro que a

filosofia não serve para distrair o "povo", como o futebol ou a tourada. Mas também a

matemática não serve para isso, nem a religião, nem a arte em geral. Para que serve "Os

Maias" de Eça de Queirós? Para que serve a teoria da evolução de Darwin? Para que nos

serve saber que só na nossa galáxia há tantas estrelas quantos os segundos que existem em 3

mil anos? Serve para sabermos mais sobre nós próprios e sobre o universo em que

habitamos. Tal como a filosofia.

Por que razão há filósofos? - David Stove. Tradução de Desidério Murcho. Originalmente

publicado na revista Quadrant (Julho, 1985).

1. Todas estas questões indescritivelmente esquisitas sobre números, propriedades, indivíduos,

espaço, tempo, causalidade, mentes, possibilidade, probabilidade, necessidade, obrigação,

razões, leis, Deus... Não só são as questões individualmente esquisitas, como em conjunto

não formam mais do que um caos, desafiando qualquer tentativa de as reduzir a uma

sequência racional. E para mais nenhuma das questões parece alguma vez chegar a ser

finalmente respondida. É realmente uma cena perturbadora, quando nos afastamos e

contemplamos o todo. O mais penoso é o contraste que apresenta relativamente à ciência,

tomada como um todo. Na verdade, dificilmente é possível a alguém [...] não se perguntar

por que razão há-de haver filósofos, de todo em todo; ou pelo menos perguntar-se por que

razão há-de haver tantos, pagando-se a todos grandes quantidades de dinheiro retirando-o a

outras pessoas mais úteis.

2. A última questão é absolutamente irrespondível, na minha opinião. Mas a primeira penso

que consigo responder. A pista vital para ter em mente é que as pessoas, incluindo os

cientistas, são apenas pessoas, no final de contas: pobres criaturas cindidas e complicadas

como o leitor. Tome-se o Professor AB, o nosso distinto geneticista, membro do tal-e-tal,

que ganhou o prémio tal: que homem esperto ele deve ser! Bem, é verdade, de certo modo,

mas ele não é uma essência vítrea de conhecimento genético; ele é também muitas outras

coisas, e uma delas é que ele por acaso é um metodista cabeça de vento. Ou tome-se CD, um

físico dos melhores; mas acontece que ele leva Yuri Geller a sério, ou acredita que a última

física vindica a filosofia espiritualista de Berkeley. O Professor EF de matemática pura, à

beira da reforma, começa a fazer os seus muito ocupados colegas perder a cabeça

perguntando coisas como "Mas, no final de contas, o que raio é afinal um número?" GH

acabou a sua carreira como economista mas a mola real da sua vida foi uma visão que ele

apanhou de alguns filósofos do séc. XIX, de um paraíso no qual "as massas operárias" se

emancipam. (Ele não se deu conta de que, onde ele vive, as massas deixaram há muito de ser

operárias.) O Professor de História, IJ, nem sempre consegue calar as suas perplexidades

sobre a inevitabilidade histórica, e dá consigo a perguntar, como os filósofos, quais são as

condições de verdade de uma afirmação como "Hitler teria ganho a guerra se não tivesse

atacado a Rússia". KL, o Professor de Medicina, ainda que nada mais o empurre nessa

direcção, é levado pela sua nova tecnologia a enfrentar deliberações agonizantes sobre os

deveres de um médico para com os seus doentes. E assim por diante. Por outras palavras, as

pessoas inteligentes, entregues a si mesmas, acabarão por filosofar, mais tarde ou mais cedo,

seja qual for o campo de trabalho intelectual a que se entreguem, ou mesmo que a nenhum

se entreguem. O impulso para a filosofia é de facto tão natural e tão forte que nada se

conhece, excepto o terror totalitarista, que consiga reprimi-lo em absoluto. Numa sociedade

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não totalitarista, pois, a filosofia será feita, e a única questão prática que resta é como haverá

melhores hipóteses de ser bem feita, ou por quem.

3. E eis que chega o último facto. Há filósofos que pensaram durante mais tempo e melhor

sobre a ética da medicina do que o professor de medicina alguma vez teve tempo de fazer.

Há filósofos que pensaram durante mais tempo e melhor sobre a experiência das duas fendas

do que os físicos. Há filósofos que pensaram mais tempo e melhor sobre os fundamentos da

matemática do que alguma vez será provável que um matemático o faça. E assim por diante.

Tenho consciência de que um filósofo não pode dizer isto da sua profissão sem trair uma

certa arrogância. Contudo, é a verdade literal. E é uma justificação suficiente para a

existência de uma classe de pessoas especialmente formadas em filosofia. Como classe, os

filósofos nunca são bem vistos pelos seus colegas universitários. A acusação que nos

lançavam costumava ser a de que andávamos perdidos em generalidades nebulosas. Hoje em

dia a acusação é habitualmente ao contrário: que negligenciámos "as grandes questões" a

favor de tecnicismos minuciosos e despropositados. Esta acusação é falsa, mas é

inteiramente compreensível que a façam. O padrão de rigor em filosofia subiu imenso neste

século, e este facto, só por si, é suficiente para explicar a fragmentação das grandes questões

únicas em muitas questões mais pequenas, e o consequente abrandamento de todo o

processo. A quem observa de fora, não podendo ver a floresta por causa das árvores, a coisa

parece naturalmente como se jamais pudesse ter a mais remota conexão seja com o que for

de interesse, de modo que um químico teórico, por exemplo, olhará provavelmente para nós

pensando "Lá vai mais um maldito filósofo: para que é que os alimentamos?" Bom, estes

pensamentos não são irracionais; mas estão errados. Ao mesmo tempo que nos desprezam,

os nossos colegas têm também medo de nós. Também isto não é falho de fundamento

racional! Em qualquer tipo de argumentação os filósofos são homens tenazes (alguns dos

quais são mulheres), e a maior parte das pessoas não querem atravessar-se no nosso caminho

mais do que uma ou duas vezes.

Os problemas da filosofia - Desidério Murcho(2000). O q ue é a

filosofia?. http://www.intelectu.com/arquivo.html.

1. Eis, então, alguns exemplos de problemas da filosofia. A filosofia desenvolveu ao longo da

sua vida milenar várias disciplinas distintas. Por vezes, alguns problemas surgem em mais

do que uma disciplina. Mas é bom ter uma ideia dos diferentes tipos de problemas estudados

por algumas disciplinas da filosofia.

2. Comecemos pela ética. A ética não estuda os preconceitos comportamentais - preconceitos

como a ideia católica de que os homossexuais não podem casar e que ninguém deve ter

relações sexuais antes do casamento. A ética nada tem a ver com este tipo de coisas. Este

tipo de coisas emana de um certo cdigo religioso de comportamentos, que pouco se

relaciona na verdade com a ética - é apenas uma manifestação de uma certa visão religiosa

do mundo. Faz-se por vezes uma distinção entre "moral" e "ética" querendo reservar para

esta última a acepção filosófica, ao passo que a primeira se referiria aos costumes sociais.

Mas esta distinção é artificiosa e caiu em desuso desde há muito tempo.

3. A ética ocupa-se de vários tipos de problemas bastante distintos. Os mais fáceis de

compreender são os da ética aplicada, que se ocupa de problemas como o aborto e a

eutanásia. Será o aborto um mal que deve ser proibido? Repare-se que não se trata de saber

se o aborto é um mal aos olhos de Deus ou do Papa ou de qualquer confissão religiosa; trata-

se de saber se o aborto é, eticamente, e à luz da nossa razão, algo que deve ser proibido, tal

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como o assassínio é proibido independentemente das religiões. O que ocupa a reflexão

filosófica não é apenas a tentativa de dizer "Sim, o aborto é um mal" ou "Não, o aborto não

é um mal". O que distingue a reflexão filosófica é a fundamentação racional: os argumentos

que sustentam as nossas posições. O que importa são os argumentos que se apresentam para

dizer que sim ao aborto ou para dizer que não. O trabalho da filosofia consiste em estudar

esses argumentos e avaliá-los criticamente. A filosofia é algo que cada um faz com a sua

própria cabeça, em diálogo crítico com os outros. A filosofia não consiste em ler textos e

"comentar" o que esses textos dizem. A filosofia consiste em pensar nos mesmos problemas

que são tratados nesses textos, o que é muito, muito diferente.

4. Mas a ética ocupa-se de outras questões menos óbvias. Por exemplo, o que quer dizer

"Matar inocentes é um mal" ou "Não devemos matar inocentes"? O que quer realmente dizer

a palavra "dever"? Este tipo de problema é enfrentado pelo que se chama "metaética". A

metaética ocupa-se da questão de saber qual é a natureza do juízo ético. É a área mais geral

e conceptual da ética. Há várias teorias que tentam responder a este problema, algumas delas

tecnicamente bastante complexas e precisas.

5. A epistemologia é outra disciplina da filosofia. Neste caso, trata-se de investigar vários

problemas relacionados com o nosso conhecimento. Uma vez mais, o carácter conceptual da

filosofia obriga a distinguir os problemas filosóficos do conhecimento dos problemas

psicológicos ou sociológicos do conhecimento. Por exemplo, a psicologia cognitiva tem

vindo a conduzir várias investigações sobre o modo como os seres humanos estruturam

vários aspectos do conhecimento. Piaget, por exemplo, procurou estabelecer etapas

diferenciadas no desenvolvimento cognitivo dos seres humanos. Os seus estudos estão hoje

ultrapassados por investigações mais recentes, mas tanto os seus estudos como os estudos

mais recentes não são estudos filosóficos nem têm interesse para a filosofia. Os problemas

estudados pela epistemologia ou pela filosofia do conhecimento não se referem de modo

algum ao fenómeno do conhecimento tal como ele ocorre realmente nos seres humanos; os

problemas da epistemologia e da filosofia do conhecimento são mais gerais e de carácter

conceptual.

6. Um dos problemas da epistemologia mais simples de apresentar é este: o que é o

conhecimento? O conhecimento distingue-se da mera opinião porque o conhecimento é

factivo -- isto é, não podemos conhecer falsidades, apesar de podermos pensar falsidades.

Mas o que é realmente o conhecimento? Não ser trata apenas de opinião, porque as opiniões

podem ser falsas mas o conhecimento não. Será então que o conhecimento é apenas a

opinião verdadeira? Mas será que podemos dizer que os atomistas gregos sabiam realmente

que tudo é composto por átomos? Eles tinham realmente essa opinião, e essa opinião veio a

verificar-se séculos depois ser verdadeira; mas, de algum modo, parece que eles não sabiam

realmente que tudo era composto de átomos -- apenas tinham essa opinião que, por acaso,

acabou por coincidir com a realidade. O que está em causa neste problema é a definição de

conhecimento -- algo que não pode determinar-se recorrendo a estudos de natureza

empírica.

7. Outro problema importante na área da epistemologia é a questão da justificação do

conhecimento - perante um fragmento particular de pretenso conhecimento, como podemos

saber que se trata realmente de conhecimento e não de uma ilusão? Por exemplo, todos

pensamos que o mundo exterior é independente de nós; mas que razões teremos para pensar

isso? E não haverá razões para pensar o contrário?

8. Reserva-se por vezes o termo "epistemologia" para a filosofia do conhecimento científico,

usando-se o termo "gnosiologia" para a filosofia do conhecimento em geral. Mas esta

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terminologia não é usada hoje em dia nas grandes universidades do mundo inteiro, nem

corresponde à realidade do que se estuda quando se estuda epistemologia. A epistemologia é

o estudo filosófico de vários problemas relacionados com o conhecimento -

independentemente de se tratar de conhecimento científico ou de outro qualquer tipo de

conhecimento. É a filosofia da ciência que se ocupa de vários problemas relacionados com o

conhecimento científico.

9. Outra disciplina filosófica é a metafísica, que se ocupa de outro tipo de problemas. Que tipo

de coisas existem no mundo? Admitindo que existem árvores e mesas e pessoas, será que os

números também existem? E as cores? E os conceitos, como a justiça? Quantos tipos de

existência há, se há mais do que um? E quais são as categorias mais gerais da realidade?

Como poderemos pensar a identidade? Se ao longo de 10 anos formos substituindo as tábuas

todas de um bote de madeira, o bote de hoje será ainda o mesmo do que o bote de há 10

anos? Mas se não é o mesmo, para onde foi o bote de há 10 anos e quando deixou ele de

existir?

10. É claro que há muitos, muitos mais problemas da filosofia. Os problemas da filosofia têm

esta característica em geral: não se podem resolver recorrendo aos métodos estabelecidos

das ciências e implicam um uso forte da argumentação. Os problemas da filosofia

interpelam-nos e exigem-nos argumentos. É claro que eu acho que o mundo exterior existe

independentemente de mim; mas como posso eu justificar esta opinião? A filosofia é um

pedido sistemático de justificações e essas justificações são argumentos - argumentos de

carácter conceptual e não argumentos de carácter empírico.

Por que razão há filósofos? David Stove. Tradução de Desidério Murcho. Originalmente

publicado na revista Quadrant (Julho, 1985).

1. Todas estas questões indescritivelmente esquisitas sobre números, propriedades, indivíduos,

espaço, tempo, causalidade, mentes, possibilidade, probabilidade, necessidade, obrigação,

razões, leis, Deus... Não só são as questões individualmente esquisitas, como em conjunto

não formam mais do que um caos, desafiando qualquer tentativa de as reduzir a uma

sequência racional. E para mais nenhuma das questões parece alguma vez chegar a ser

finalmente respondida. É realmente uma cena perturbadora, quando nos afastamos e

contemplamos o todo. O mais penoso é o contraste que apresenta relativamente à ciência,

tomada como um todo. Na verdade, dificilmente é possível a alguém [...] não se perguntar

por que razão há-de haver filósofos, de todo em todo; ou pelo menos perguntar-se por que

razão há-de haver tantos, pagando-se a todos grandes quantidades de dinheiro retirando-o a

outras pessoas mais úteis.

2. A última questão é absolutamente irrespondível, na minha opinião. Mas a primeira penso

que consigo responder. A pista vital para ter em mente é que as pessoas, incluindo os

cientistas, são apenas pessoas, no final de contas: pobres criaturas cindidas e complicadas

como o leitor. Tome-se o Professor AB, o nosso distinto geneticista, membro do tal-e-tal,

que ganhou o prémio tal: que homem esperto ele deve ser! Bem, é verdade, de certo modo,

mas ele não é uma essência vítrea de conhecimento genético; ele é também muitas outras

coisas, e uma delas é que ele por acaso é um metodista cabeça de vento. Ou tome-se CD, um

físico dos melhores; mas acontece que ele leva Yuri Geller a sério, ou acredita que a última

física vindica a filosofia espiritualista de Berkeley. O Professor EF de matemática pura, à

beira da reforma, começa a fazer os seus muito ocupados colegas perder a cabeça

perguntando coisas como "Mas, no final de contas, o que raio é afinal um número?" GH

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acabou a sua carreira como economista mas a mola real da sua vida foi uma visão que ele

apanhou de alguns filósofos do séc. XIX, de um paraíso no qual "as massas operárias" se

emancipam. (Ele não se deu conta de que, onde ele vive, as massas deixaram há muito de ser

operárias.) O Professor de História, IJ, nem sempre consegue calar as suas perplexidades

sobre a inevitabilidade histórica, e dá consigo a perguntar, como os filósofos, quais são as

condições de verdade de uma afirmação como "Hitler teria ganho a guerra se não tivesse

atacado a Rússia". KL, o Professor de Medicina, ainda que nada mais o empurre nessa

direcção, é levado pela sua nova tecnologia a enfrentar deliberações agonizantes sobre os

deveres de um médico para com os seus doentes. E assim por diante. Por outras palavras, as

pessoas inteligentes, entregues a si mesmas, acabarão por filosofar, mais tarde ou mais cedo,

seja qual for o campo de trabalho intelectual a que se entreguem, ou mesmo que a nenhum

se entreguem. O impulso para a filosofia é de facto tão natural e tão forte que nada se

conhece, excepto o terror totalitarista, que consiga reprimi-lo em absoluto. Numa sociedade

não totalitarista, pois, a filosofia será feita, e a única questão prática que resta é como haverá

melhores hipóteses de ser bem feita, ou por quem.

3. E eis que chega o último facto. Há filósofos que pensaram durante mais tempo e melhor

sobre a ética da medicina do que o professor de medicina alguma vez teve tempo de fazer.

Há filósofos que pensaram durante mais tempo e melhor sobre a experiência das duas fendas

do que os físicos. Há filósofos que pensaram mais tempo e melhor sobre os fundamentos da

matemática do que alguma vez será provável que um matemático o faça. E assim por diante.

Tenho consciência de que um filósofo não pode dizer isto da sua profissão sem trair uma

certa arrogância. Contudo, é a verdade literal. E é uma justificação suficiente para a

existência de uma classe de pessoas especialmente formadas em filosofia. Como classe, os

filósofos nunca são bem vistos pelos seus colegas universitários. A acusação que nos

lançavam costumava ser a de que andávamos perdidos em generalidades nebulosas. Hoje em

dia a acusação é habitualmente ao contrário: que negligenciámos "as grandes questões" a

favor de tecnicismos minuciosos e despropositados. Esta acusação é falsa, mas é

inteiramente compreensível que a façam. O padrão de rigor em filosofia subiu imenso neste

século, e este facto, só por si, é suficiente para explicar a fragmentação das grandes questões

únicas em muitas questões mais pequenas, e o consequente abrandamento de todo o

processo. A quem observa de fora, não podendo ver a floresta por causa das árvores, a coisa

parece naturalmente como se jamais pudesse ter a mais remota conexão seja com o que for

de interesse, de modo que um químico teórico, por exemplo, olhará provavelmente para nós

pensando "Lá vai mais um maldito filósofo: para que é que os alimentamos?" Bom, estes

pensamentos não são irracionais; mas estão errados. Ao mesmo tempo que nos desprezam,

os nossos colegas têm também medo de nós. Também isto não é falho de fundamento

racional! Em qualquer tipo de argumentação os filósofos são homens tenazes (alguns dos

quais são mulheres), e a maior parte das pessoas não querem atravessar-se no nosso caminho

mais do que uma ou duas vezes.