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56 Física na Escola, v. 17, n. 1, 2019 Introdução U m dos caminhos para a consoli- dação da educação inclusiva é o respeito às diferenças, reco- nhecendo e valorizando a diversidade étnica-racial, de gênero, sexual, religiosa e de faixa geracional [1]. Sendo assim, pa- ra que ela se efetive deve haver algumas adaptações curriculares que possibilitem a atuação frente às necessidades educa- cionais dos alunos. Diante disso, salienta que essas adaptações curriculares são mudanças operacionalizadas para atender às necessidades das pessoas com deficiên- cia inclusas na escola regular [2]. Dado o exposto, fica evidenciada a necessidade de os professores, juntamente com a equipe pedagógica da escola, elaborarem novas estratégias didáticas a fim de tornar significativo o aprendizado para toda diversidade. Particularmente no ensino de física, existem dificuldades que afetam diretamente o processo de ensino e aprendizagem, tais como aprender e ensi- nar física de modo significativo e consis- tente [3], dificuldades que se agravam ainda mais quando os sujeitos envolvidos são estudantes cegos, pois as atividades de ensino, em sua maioria, são baseadas nos alunos videntes, centradas em repre- sentações visuais [4]. Nessa perspectiva, a atividade experi- mental surge como uma das estratégias didáticas práticas de ensino, pois permite aos estudantes vivenciar de forma real o que está sendo observado no fenômeno estudado, e sua utilização no ensino de fí- sica, seja ela de caráter qualitativo ou quan- titativo, possibilita a aprendizagem do dis- cente [5]. Essa estratégia de ensino tem sido apontada por professores e alunos de forma satisfatória por minimizar as dificuldades Simonalha Santos França Departamento de Ciências Exatas e Tecnológicas, Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, BA, Brasil E-mail: [email protected] Maxwell Siqueira Departamento de Ciências Exatas e Tecnológicas, Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, BA, Brasil E-mail: [email protected] Este estudo tem como objetivo propor a construção de uma maquete tátil de um circuito elétrico e indicar os limites e desafios da elaboração desse material didático pedagógico. Para tanto, é elaborada uma atividade com o uso dessa maquete, voltada para o ensino das leis de Kirchhoff para alunos com deficiência visual, visando diminuir as dificuldades tanto por parte dos professores em ensinar assuntos de física, quanto por parte dos alunos em compreender os fenômenos estudados. O ma- terial foi implementado em uma sala de aula de uma escola pública contendo duas alunas com deficiência visual (uma com perda total e a outra, parcial) e 20 alunos videntes (16 com deficiência intelectual e 4 sem). Por meio da implementação percebeu-se que o material contribui para a discussão e compreensão de circuitos elétricos simples, bem como os conceitos das leis de Kirchhoff. em aprender e em ensinar física de forma significativa e consistente [3]. Entendendo que o conhecimento dos alunos cegos se dá principalmente por meio da audição e do tato, para compre- ender o mundo ao seu redor [6], é preciso que sejam apresentados materiais que possam ser tocados e manipulados; por meio da observação tátil desses materiais, o aluno poderá conhecer suas proprie- dades físicas. Essa experiência visual tende a unificar o conhecimento desses alunos em sua totalidade [7]. Embora existam trabalhos que des- crevem propostas de atividades abordando conteúdos de física voltados para o ensino e aprendizagem de alunos cegos [7-14], ainda são poucos os materiais que permitem trabalhar o ensino de circuito elétrico com ênfase no ensino dos concei- tos de corrente elétrica, potencial elétrico e resistência. Contudo, existe um estudo desenvolvido que aborda o ensino de ele- trodinâmica para alu- nos com deficiência visual [15], permitin- do tratar de conceitos fundamentais como corrente, tensão e resistência elétrica. Porém, tratam de cir- cuitos elétricos simples, sem discutir as leis de Kirchhoff. Com base nessa discussão, este artigo apresenta a produção de uma maquete voltada para o ensino das leis de Kirchhoff para alunos com deficiência visual, bus- cando sanar as dificuldades tanto por parte dos professores em ensinar assuntos de física, quanto por parte dos alunos em compreender os fenômenos estudados. Além da construção, há também uma dis- cussão sobre os limites e desafios da elaboração desse material didático-peda- gógico. Diante disso, o presente estudo poderá contribuir para a dinâmica de práticas pedagógicas por meio de mate- As leis de Kirchhoff para estudantes com deficiência visual As dificuldades na compreensão dos fenômenos físicos estudados pelos deficientes visuais podem ser amenizadas pela produção de materiais adaptados

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Page 1: Introdução em aprender e em ensinar física de forma Simonalha … · 2020-07-20 · Lei de Kirchhoff e sua importância para o ensino de física na edu-cação básica As leis

56 Física na Escola, v. 17, n. 1, 2019

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Introdução

Um dos caminhos para a consoli-dação da educação inclusivaé o respeito às diferenças, reco-

nhecendo e valorizando a diversidadeétnica-racial, de gênero, sexual, religiosae de faixa geracional [1]. Sendo assim, pa-ra que ela se efetive deve haver algumasadaptações curriculares que possibilitema atuação frente às necessidades educa-cionais dos alunos. Diante disso, salientaque essas adaptações curriculares sãomudanças operacionalizadas para atenderàs necessidades das pessoas com deficiên-cia inclusas na escola regular [2].

Dado o exposto, fica evidenciada anecessidade de os professores, juntamentecom a equipe pedagógica da escola,elaborarem novas estratégias didáticas afim de tornar significativo o aprendizadopara toda diversidade. Particularmente noensino de física, existem dificuldades queafetam diretamente oprocesso de ensino eaprendizagem, taiscomo aprender e ensi-nar física de modosignificativo e consis-tente [3], dificuldadesque se agravam aindamais quando os sujeitos envolvidos sãoestudantes cegos, pois as atividades deensino, em sua maioria, são baseadas nosalunos videntes, centradas em repre-sentações visuais [4].

Nessa perspectiva, a atividade experi-mental surge como uma das estratégiasdidáticas práticas de ensino, pois permiteaos estudantes vivenciar de forma real oque está sendo observado no fenômenoestudado, e sua utilização no ensino de fí-sica, seja ela de caráter qualitativo ou quan-titativo, possibilita a aprendizagem do dis-cente [5]. Essa estratégia de ensino tem sidoapontada por professores e alunos de formasatisfatória por minimizar as dificuldades

Simonalha Santos FrançaDepartamento de Ciências Exatas eTecnológicas, Universidade Estadual deSanta Cruz, Ilhéus, BA, BrasilE-mail: [email protected]

Maxwell SiqueiraDepartamento de Ciências Exatas eTecnológicas, Universidade Estadual deSanta Cruz, Ilhéus, BA, BrasilE-mail: [email protected]

Este estudo tem como objetivo propor aconstrução de uma maquete tátil de um circuitoelétrico e indicar os limites e desafios daelaboração desse material didático pedagógico.Para tanto, é elaborada uma atividade com ouso dessa maquete, voltada para o ensino dasleis de Kirchhoff para alunos com deficiênciavisual, visando diminuir as dificuldades tantopor parte dos professores em ensinar assuntosde física, quanto por parte dos alunos emcompreender os fenômenos estudados. O ma-terial foi implementado em uma sala de aulade uma escola pública contendo duas alunascom deficiência visual (uma com perda total ea outra, parcial) e 20 alunos videntes (16 comdeficiência intelectual e 4 sem). Por meio daimplementação percebeu-se que o materialcontribui para a discussão e compreensão decircuitos elétricos simples, bem como osconceitos das leis de Kirchhoff.

em aprender e em ensinar física de formasignificativa e consistente [3].

Entendendo que o conhecimento dosalunos cegos se dá principalmente pormeio da audição e do tato, para compre-ender o mundo ao seu redor [6], é precisoque sejam apresentados materiais quepossam ser tocados e manipulados; pormeio da observação tátil desses materiais,o aluno poderá conhecer suas proprie-dades físicas. Essa experiência visual tendea unificar o conhecimento desses alunosem sua totalidade [7].

Embora existam trabalhos que des-crevem propostas de atividades abordandoconteúdos de física voltados para o ensinoe aprendizagem de alunos cegos [7-14],ainda são poucos os materiais quepermitem trabalhar o ensino de circuitoelétrico com ênfase no ensino dos concei-tos de corrente elétrica, potencial elétricoe resistência. Contudo, existe um estudodesenvolvido que aborda o ensino de ele-

trodinâmica para alu-nos com deficiênciavisual [15], permitin-do tratar de conceitosfundamentais comocorrente, tensão eresistência elétrica.Porém, tratam de cir-

cuitos elétricos simples, sem discutir asleis de Kirchhoff.

Com base nessa discussão, este artigoapresenta a produção de uma maquetevoltada para o ensino das leis de Kirchhoffpara alunos com deficiência visual, bus-cando sanar as dificuldades tanto porparte dos professores em ensinar assuntosde física, quanto por parte dos alunos emcompreender os fenômenos estudados.Além da construção, há também uma dis-cussão sobre os limites e desafios daelaboração desse material didático-peda-gógico. Diante disso, o presente estudopoderá contribuir para a dinâmica depráticas pedagógicas por meio de mate-

As leis de Kirchhoff para estudantes com deficiência visual

As dificuldades nacompreensão dos fenômenos

físicos estudados pelosdeficientes visuais podem seramenizadas pela produção de

materiais adaptados

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riais táteis, colaborando para o ensino-aprendizado de alunos videntes e não-videntes.

Lei de Kirchhoff e sua importânciapara o ensino de física na edu-cação básica

As leis de Kirchhoff foram formuladasem 1845 e são utilizadas em uma asso-ciação de resistores para se adquirir umvalor equivalente ao circuito resistivo. Sãonecessárias para equacionar um circuitoelétrico que descreve o comportamento datensão e da corrente elétrica em circuitoscompostos por ramificações (malhas enós). Ao trabalhar essas leis dentro de umcircuito fechado é preciso utilizar-se deuma outra ferramenta chamada força ele-tromotriz.

Sendo assim, as leis de Kirchhoff sãode fundamental importância para traba-lhar com circuitos elétricos mais comple-xos, como por exemplo circuitos com maisde um resistor, que podem estar em sérieou em paralelo, pois o comportamentodesses circuitos é governado pelas leisbásicas de Kirchhoff, as quais decorremdiretamente das leis de conservação decarga e da energia. As leis de Kirchhoffestabelecem relações entre as tensões ecorrentes entre os diversos elementos doscircuitos, servindo assim como base parao equacionamento matemático dos circ-uitos elétricos.

Diante disso, o ensino dessas leis tor-na-se importante no ensino de física naeducação básica, pois é onde começam osprimeiros contatos entre os alunos e oscircuitos dentro da escola. Além disso, essesconceitos, presentes na eletrodinâmica,estão inseridos no cotidiano dos alunos,fazendo parte de seu senso comum [15].

A atividade

A atividade consiste na montagem deum circuito que permita a “visualização”e percepção dos elementos relevantes paraa discussão das leis de Kirchhoff, sendoem forma de uma maquete tátil que via-biliza aos estudantes cegos analisar ocircuito e observar o conceito dos com-ponentes envolvidos. Isso porque sãoindispensáveis para a aprendizagem doestudante cego o desenvolvimento de apa-ratos táteis e novas metodologias queauxiliem no ensino de diversos conteúdosda física [6].

A maquete foi construída levando emconsideração alguns critérios didáticos,tais como: uso de material que faça refe-rência à função de alguns componentes,sem oferecer risco de danos físicos aos alu-nos; produção de uma maquete acessívelcom a utilização de legendas em tinta e

Braille [10].Assim, a atividade tem como objetivo

a visualização de um circuito elétrico, per-mitindo a discussão de conceitos relevan-tes para sua compreensão, como o casode malhas e nós, que são conceitos im-portantes para o entendimento das leis deKirchhoff. Além disso, permite discutirsobre corrente e seu sentido em um cir-cuito, analisar os circuitos elétricos e veri-ficar a validade dessas leis na divisão decorrentes e de tensão, compreender o con-ceito de força eletromotriz e, por fim, rela-cionar as leis de Kirchhoff com o cotidianodos alunos.

Para que haja compreensão dosassuntos por parte dos estudantes, a ma-quete utiliza a identificação dos elementos,seus significados e suas funções em umcircuito.

Materiais utilizados

Nesta seção são descritos os materiaisque foram utilizados para a confecção damaquete:

• Uma folha de isopor (25 mm);• Folha de papel camurça;• Lixa;• Cola de isopor;• Cola relevo;• Tinta guache;• Tesoura;• Estilete;• Régua milimetrada;• Fita adesiva;• Caneta hidrográfica.

Componentes e procedimentospara a construção da atividade

A maquete foi confeccionada compeças encaixáveis (módulos), facilitandoseu transporte e montagem, tornando-amais prática e possibilitando que novoselementos pudessem ser incorporados ounão. Com os materiais descritos anterior-mente, os componentes foram confeccio-nados como a seguir (Figs. 1 a 4).

• Fonte de tensão: Desenhe uma fontecom 6 cm de largura e 10 cm decomprimento e recorte. Trace umalinha no meio da fonte e corte aoutra metade, deixando um lado al-to e o outro baixo para dar a ideiade diferença de potencial. Em segui-da, pinte a fonte da cor que preferir(na atividade, foram aplicadas tintaazul e vermelha). Depois que a tintasecar, com o auxílio de uma tintarelevo, desenhe o lado positivo (+)e o negativo (-) da fonte, para indi-car a polaridade.

• Resistências: Recorte as resistênciasno formato usado na representaçãosimbólica de um circuito. Desenhe

no isopor três resistências na mes-ma proporção da fonte (6 cm de lar-gura x 10 cm de comprimento).Após desenhá-las no isopor, recorteas resistências e use como molde pa-ra traçar a forma em uma lixa (issopermitirá perceber a função da resis-tência num circuito, que é o de regu-lar a passagem da corrente elétrica),depois recorte e cole na resistênciafeita com isopor.

• Condutores: Com o lápis e a régua,desenhe na folha de isopor oito re-tângulos com aproximadamente4 cm de largura por 10 cm decomprimento e três retângulos com4 cm de largura x 30 cm compri-mento e recorte-os. Com a folha depapel camurça, meça a folha com osrecortes dos desenhos de forma quea folha os cubra, corte o papel e coleno isopor. No final do procedimentoserão encaixados uns nos outros eaos componentes do circuito, per-mitindo assim a montagem e depoisa análise de malha e de nó.

• Correntes elétricas: Corte o isopor noformato de pequenas setas (pararepresentar tanto a corrente comoseu sentido), cubra com o papelcamurça e pinte com a cor que pre-ferir; após a secagem, faça os núme-ros em Braille, com valores diferen-tes, para que ocorra diferenciação eidentificação entre as correntes, eenvolva a parte de baixo da seta comfita adesiva para facilitar o desliza-mento quando passar pelos fios eas resistências, permitindo que sesinta a diferença na textura dos ma-teriais.

Depois de confeccionados todos oselementos (Figs. 1 a 4), use palitos de dentepara unir uns aos outros, conforme a fi-gura a seguir (Fig. 5), deixando as cor-rentes (Fig. 4) soltas para poder manuseá-la no circuito.

Observações: Esta maquete tem72 cm de comprimento x 30 cm de largu-ra. Essas dimensões foram pensadas paraque a maquete pudesse ser transportadacom facilidade, além de permitir umamontagem rápida e possibilitar o manu-

As leis de Kirchhoff para estudantes com deficiência visual

Figura 1: Recorte do desenho da fonte noisopor e desenho da parte (+ e -) com acola relevo. Fonte: acervo do autor.

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seio pelos alunos.

Análise da escolha do material

Cada material foi pensado com umafunção. O isopor foi usado por ser ummaterial leve e fácil de manusear (traba-lhar e cortar), além de permitir o encaixecom palitos e uma fácil colagem. A folhade camurça é um papel liso, aveludado,que proporciona “suavidade” ao se deslizara mão sobre ele, permitindo aos alunoscegos notarem a diferença de um mate-rial para o outro sem que haja atritoperceptível entre os elementos, relacionan-do assim com a passagem das correntespelos fios condutores. A lixa foi usada porter graduações que permitam diferenciarsua aspereza, possibilitando relacionarcom a função do elemento ao qual elarepresenta, no caso, os resistores. A colaem relevo permite uma secagem rápida esobressai com relação às demais, propor-cionando uma elevação, o que permitesenti-la ao manuseá-la. A tinta guache éfácil de ser trabalhada, além de ser encon-

trada com facilidade e baixo custo; alémdisso, melhora a estética do material.Como a atividade poderá ser trabalhadatambém com alunos videntes, as diferen-tes cores ajudarão esses alunos a diferen-ciar os elementos do circuito. Os demaismateriais, tais como a tesoura, o estilete,a régua e a hidrocor são usados para con-feccionar os elementos da atividade.

O desenvolvimento de aparatos inclu-sivos, usando materiais como os descritosacima, busca estimular os estudantes,facilitando a compreensão dos conceitos,uma vez que o processo de ensino e apren-dizagem possui mais eficácia quandoexiste motivação para a aprendizagem eavaliações frequentes para constantesaprimoramentos, sendo necessário o en-volvimento de múltiplas visões na avalia-ção [16].

Valores dos materiais usados

Encontram-se na Tabela 1 os preçosdos materiais que foram utilizados naconfecção das maquetes.

Limites e possibilidade da proposta

Pensar em elaborar uma propostadidática requer conhecimento para quepossibilite discussão e possível apreensãodas ideias que estão contidas nas leis deKirchhoff, demandando tempo paradesenvolvê-la. Uma dificuldade encontra-da era não possuir formação adequada,principalmente na escrita em Braille, ebases metodológicas voltadas para o en-sino de alunos cegos, aspectos que sãofundamentais para o desenvolvimento daproposta. Diante disso, concordamos quefaltam ainda, ao educador em formação,conteúdos, disciplinas e programas queapresentem bases metodológicas e queincorporem em suas ações pedagógicas aexperiência de ter um aluno cego ou comqualquer outra deficiência [6]. Também énecessário que a instituição de ensino,além de proporcionar a formação do pro-fessor, também lhe dê apoio, disponibi-lizando materiais didáticos e recursos edu-cacionais voltados para esse público,configurando uma educação continuadade professores.

Durante o processo da elaboração da

proposta, uma outra dificuldadefoi encontrar materiais que pudes-sem fazer relação com as leistratadas, permitindo sua visuali-zação, além de facilitar o enten-dimento dos alunos. Um exemploé o uso da lixa, pois suas gradua-ções permitem diferentes percep-ções com relação à textura. Poisentendemos que objetos confec-cionados com materiais diversos

que se aproximam da representação realdiminuem o verbalismo das aulas eaumentam o conteúdo experimental [17].

Diante disso, é possível pensar edesenvolver atividades que possibilitem aaprendizagem de alunos videntes e não vi-dentes, desde que sejam levados em con-sideração os apontamentos da literatura,especialmente os que descrevem atividadesque possibilitam a educação inclusiva noensino de física.

Contexto da implementação

A escola escolhida foi uma estadual,localizada em um bairro da capital baiana,que funciona com as modalidades do En-sino Fundamental II (anos finais - 6° ao9° ano), Ensino Médio e Educação Espe-cial. Nessa escola havia alunos videntes ecom deficiência visual, além de alunoscom outras deficiências, como a intelec-tual. A escola é dividida em dois blocos:um de ensino regular e o outro com recur-sos multifuncionais para atendimento dosalunos com Necessidades EducacionaisEspeciais (NEE) e deficientes. O local de im-plementação da atividade foi o bloco como ensino regular. A sala escolhida foi umasala de aula inclusiva, na qual os alunoscom deficiência visual (duas alunas)assistem às aulas juntamente com os de-mais alunos. No período da manhã, umadas alunas frequentava o instituto de

As leis de Kirchhoff para estudantes com deficiência visual

Tabela 1: Preços dos materiais.

Materiais Preço (R$)

Folha de isopor (25 mm) 7,80Estilete 4,90Papel camurça 1,50Cola para isopor 4,00Cola relevo 4,50Tinta guache 0,60Lixa 0,80Fita adesiva 3,50Caneta hidrográfica 3,00Régua 2,00Total 32,60

Obs.: Nem todos os materiais foramusados completamente. Houve sobras dafolha de isopor, da cola em relevo e dastintas guache.

Figura 4: Correntes elétricas enumeradasda esquerda para a direita (1, 2 e 3). Fonte:acervo do autor.

Figura 3: Recorte da sobra do papel eretângulo de isopor já colado na folha depapel. Fonte: acervo do autor.

Figura 2: Desenho e recorte da resistênciana lixa e resistência pronta. . . . . Fonte: acervodo autor.

Figura 5: Maquete do circuito pronta. Fonte:acervo do autor.

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cegos, aprendendo o Braille. No períododa tarde, as alunas tinham aula na salaregular.

Sendo assim, desenvolvemos um ma-terial de apoio ao estudo das leis deKirchhoff para alunos com deficiência vi-sual, possibilitando a avaliação do mate-rial e sua eficácia.

Foram realizados dois encontros, cadaum com cerca de 4 horas/aula (aulas de50 minutos), totalizando 8 horas/aula,divididas da seguinte maneira:

No primeiro encontro (dia 1) foiusado o material de[15] com uma leveadaptação nas resis-tências, pois no ma-terial desses autoresusa-se o feltro simbo-lizando as resistências e no adaptado paraa implementação o feltro foi substituídopor lixas de diferentes graduações, quepermitiram diferenciar a aspereza. Esse es-tudo foi usado como base porque permitea discussão de conceitos que antecedemas leis de Kirchhoff. Com essa adaptaçãoos alunos perceberam que as lixas nãoeram iguais, que uma era mais áspera quea outra, de modo que o circuito apresen-tava diferentes resistências que dificulta-vam a passagem da corrente. Assim,começaram a perceber que quanto maiora resistência, menor seria a passagem decorrente pelo resistor.

No segundo encontro (dia 2) foi usadaa maquete tátil descrita acima para o estu-do das leis de Kirchhoff. Nesse encontrofoi possível tratar os conceitos de malhase nós, buscando verificar o que os alunosentendiam desses conceitos no seu coti-diano para que pudessem fazer relaçãodesse conhecimento com o conhecimentocientífico, visando uma melhor compre-ensão. Assim, as maquetes foram entre-gues em partes para que o alunos anali-sassem, descrevessem o material e, apósessa descrição, fizessem relação com osconceitos. Todos os alunos (com deficiên-cia visual e videntes), ao entrarem em con-tato com as maquetes e após a explicaçãodos conceitos estudados, conseguiramexplicar como se definia um circuito e co-mo se comportavam os elementos dentrodo circuito (ex.: sinal real e convencionalda corrente, resistências diferentes, relaçãoquanto maior resistência, menor a cor-rente), quantos nós e malhas havia no cir-cuito montado, como se comportava acorrente percorrendo o circuito (antes deentrar e ao sair do nó). Sendo assim, diantedas análises do entendimento dos alunos,observou-se que houve aquisição deconhecimento.

Embora tenham ocorrido dois encon-

tros, descreveremos o segundo, pois omesmo trata dos assuntos abordados coma maquete em questão (leis de Kirchhoff).Esse encontro foi dividido em dois mo-mentos e teve como participante umaaluna com deficiência visual (parcial -enxerga 20% com o olho direito e vultoscom o olho esquerdo), 13 alunos com defi-ciência intelectual - DI (duas alunas tam-bém tinham deficiência auditiva - DA - eeram acompanhadas por uma intérpretede libras) e um vidente; os demais alunosnão compareceram ao encontro por mo-

tivos pessoais. Essesalunos foram divi-didos em grupos, dei-xando-os à vontadepara escolher comquem queriam for-

mar seu grupo. Assim, tivemos 4 grupos,cada um com duas maquetes, exceto ogrupo 2, que só tinha uma. No grupo 1estava a aluna com deficiência visual emais duas alunas com DI e DA associadas.No grupo 2, três alunos com DI. No grupo3, uma aluna sem deficiência mais quatroalunos com DI. No grupo 4, quatroalunos com DI. Além desses alunos e oaplicador da atividade, estavam na salade aula uma intérprete de libras e os pro-fessores das disciplinas que seriamensinadas nos dias da implementação (ca-da professor acompanhava a atividadedentro de seu horário).

O registro dos momentos para a aná-lise posterior foi realizado por meio de gra-vações em vídeo e áudio e registro foto-gráfico.

1° momento: Foram estudados osconceitos de malhas e nós, devido aos alu-nos terem abstraído osconceitos de circuitoelétrico, corrente, re-sistência e tensão dis-cutidos na oficina an-terior. Para a introdução de uma novadiscussão, os alunos foram questionadossobre o que entendiam por “nó” e“malha”. Esses questionamentos foramnecessários para saber a compreensão dosconceitos prévios dos alunos e relacionaresses conceitos com o científico. Assim,pôde ser explicada a definição desses con-ceitos concebidos pela ciência e consequen-temente as definições e explicações das leisde Kirchhoff.

2° momento: Em nova situação (cir-cuito maior), os alunos (com deficiênciavisual e sem) relatavam a quantidade demalhas e nós, bem como o comportamen-to das correntes ao passar pelo nó e astensões nas malhas.

Essa descrição pode ser percebida nafala de uma das estudantes com deficiência

visual (DV). Restringimo-nos a essa alunadevido à maquete ter sido construídavisando ensinar o público em que ela seinsere (DV) e, além disso, essa aluna parti-cipou dos dois encontros. Assim ela des-creve:

i1 entra no nó e i2 e i3 sai donó. i2 mais i3 tem que serigual a i1

Foram dados os elementos do circuitopara os alunos montarem. A aluna (DV)montou o circuito e, quando perguntadasobre sua montagem, ela respondeu que:

ligou os fios no lado positivoe negativo da bateria.

Ao ser questionada sobre o compor-tamento da corrente elétrica na descriçãoda malha 1, a aluna conseguiu analisarque nessa malha havia a fonte, a correntei1 e a i2 que passava pelo resistor r1 evoltava para a fonte:

a corrente entra no nó... divi-de e essa passa aqui... sai echega na bateria. É... i2 é po-sitivo com r1 e... a bateria...entra negativo.

E tem que ser igual a?

igual a ... zero

A aluna usa a palavra essa indicandoa corrente i2 e a palavra aqui indicandor1. Percebe-se que na análise da malha 1feita pela aluna, saindo de um ponto pelolado positivo da fonte (sentido convencio-nal da corrente) ela percebeu que na qu-eda de tensão a corrente era positiva,passando por r1 e chegando na fonte

(bateria), entrandopelo lado negativo.Todo esse somatórioela disse que tinhaque ser igual a zero.

Pela lei das malhas, o somatório dastensões em cada malha tem que ser iguala zero.

Considerações finais

O material instrucional produzidoproporcionou à aluna com deficiência vi-sual maior envolvimento, motivação einteresse pelo assunto abordado nassessões de aprendizagem. Esse interesse foievidenciado pelo número de perguntas eo tempo despendido por ela manuseandoos artefatos mesmo após o término da ses-são.

Uma avaliação mais bem fundamen-tada do uso da tecnologia educacionalproposta neste trabalho requer desenvol-vimento de mais pesquisas no ensino defísica para deficientes visuais. No presente

As leis de Kirchhoff para estudantes com deficiência visual

A ausência da visão não torna-se um empecilho à

aprendizagem

Conhecer as concepçõesprévias dos alunos com

deficiência visual favorece oensino dos conceitos científicos

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Referências

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de Pesquisa em Educação em Ciência, n. 5, Bauru, 2005.

As leis de Kirchhoff para estudantes com deficiência visual

caso, foi possível perceber que a aluna cegaestá em processo de apropriação de con-ceitos básicos da eletrodinâmica discutidosno Ensino Médio, sem que a ausência devisão se tornasse um empecilho à apren-dizagem. Essa conclusão pode ser perce-bida pelas falas dela.

Podemos concluir, ao final dessa expe-riência educacional, que os artefatos pro-duzidos mostraram-se eficazes na com-preensão dos conceitos básicos, bem comodas leis de um circuito elétrico simples.

A atividade desenvolvida proporcio-nou aos estudantes maior envolvimento,

motivação e interesse pelos assuntos queforam abordados na sala de aula por meiodas maquetes táteis. Isso pode ser perce-bido nas relações aluno–aluno e aluno–professor, assim como nos relatos delessobre a atividade.

Embora na sala de aula em que ocor-reu a implementação da atividade houves-se alunos com outras deficiências além davisual, e os resultados terem de certa for-ma sido interessantes, estes precisam seranalisados cuidadosamente com o viésdessas limitações. Contudo, a análise feitacom mais detalhes está associada à aluna

com baixa visão, que compareceu aos doisencontros, além de que o material foidesenvolvido pensado nos alunos comdeficiência visual.

Sendo assim, pode-se observar que aaluna com deficiência visual começou acompreender os conceitos sobre as leis deKirchhof e que sua deficiência não foi umabarreira à aprendizagem. Assim, concluí-mos que as maquetes e a comunicaçãoentre professor e aluno mostraram-seeficazes na compreensão dos conceitos decircuito e seus componentes, bem comodas leis de Kirchhoff.

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