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A.V.GAZZIA.V.GAZZIA.V.GAZZIA.V.GAZZI

1º edição

Santo André - SP Edição do Autor

2013

Introdução aoIntrodução aoIntrodução aoIntrodução ao Estudo do PentateucoEstudo do PentateucoEstudo do PentateucoEstudo do Pentateuco

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Introdução ao Estudo do Pentateuco Categoria: Teologia / Antigo Testamento / Pentateuco Publicação do Autor. Santo André, SP, Brasil – 2013. Primeira Edição Para adquirir este livro pela internet acesse:

www.clubedeautores.com.br

Visite o website do autor para matérias relacionadas e diversos conteúdos gratuitos: www.portaldeteologia.xpg.com.br.

No mesmo website você pode acompanhar as palestras que são ministradas por este autor deste e de outros assuntos teológicos no link: www.portaldeteologia.xpg.com.br/agenda.

Mantenha-se atualizado e acompanhe também o blog: http://portaldeteologiaxpg.blogspot.com

Você pode também opinar sobre este e outros materiais enviando um e-mail diretamente ao autor no endereço: [email protected].

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Os textos das referências bíblicas foram extraídos da Edição Corrigida e Revisada, Fiel ao Texto Original da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil.

SUMÁRIO

Assunto Pg. Apresentação 09 Prefácio 11 INTRODUÇÃO 13

1. Conceito de Antigo Testamento 13 2. Classificação dos Livros do Antigo Testamento 16 3. Barreiras para o Estudo do Antigo Testamento 19 4. Instrumentos de Auxílio ao Estudo do Antigo

Testamento 21

I – Panorama Histórico do Pentateuco 25

1. Retrospecto da História de Israel no Período Patriarcal (2000 a 1750 a.C.)

25

2. Os Hebreus no Egito (1750 a 1300 a.C.) 27 3. O Êxodo, a Peregrinação e a Conquista de Canaã

(1300 à 1200 a.C.) 35

II - Instituições Familiares, Civis, Militares e Religiosas de Israel

41

1. Instituições Familiares 41 2. Instituições Civis e Militares 45 3. Instituições Religiosas 46

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Assunto Pg. III - Introdução ao Pentateuco 63

1. Introdução 63 2. Septuaginta 63 3. Autor e Data 67 4. Unidade 88 5. Ambiente do Mundo Bíblico 89 6. Tema 91

IV - O Livro de Gênesis 93

1. Título 93 2. Fundo Histórico 94 3. Autoria 95 4. Data 96 5. Cronologias do Livro 97 6. Características Literárias 99 7. Estrutura Teológica 100 8. Contribuições Singulares do Livro 106 9. Propósito 110 10. Esboço 112

V - O Livro de Êxodo 115

1. Título 115 2. Fundo Histórico 115 3. Autoria 120 4. Data 121 5. Cronologias do Livro 122 6. Características Literárias 124 7. Estrutura Teológica 126 8. Contribuições Singulares do Livro 131 9. Propósito 132 10. Esboço 135

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Assunto Pg. VI - O Livro de Levítico 139

1. Titulo 139 2. Fundo Historico 139 3. Autoria 141 4. Data 142 5. Características Literárias 142 6. Estrutura Teológica 143 7. Contribuições Singulares do Livro 146 8. Propósito 156 9. Esboço 159

VII - O Livro de Números 161

1. Título 161 2. Fundo Histórico 162 3. Autoria 164 4. Data 164 5. Cronologias do Livro 165 6. Características Literárias 166 7. Estrutura Teológica 168 8. Contribuições Singulares do Livro 178 9. Propósito 184 10. Esboço 192

VIII - O Livro de Deuteronômio 195

1. Titulo 195 2. Fundo Historico 196 3. Autoria 196 4. Data 198 5. Características Literárias 199 6. Estrutura Teológica 200 7. Contribuições Singulares do Livro 208 8. Propósito 213 9. Esboço 224

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Anderson Vicente Gazzi

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Apresentação:

Este projeto nasceu de um sonho de Deus em meu coração.

Entendo desta forma porque os objetivos dele vão muito além de alcançar um status. Para quem conhece ou mesmo já teve algum contato com a situação teológica no Brasil, tomando por base as congregações que estão espalhadas em diversas denominações e em diversas localidades, podemos constatar que o nível de conhecimento teológico da Palavra de Deus é muito raso. Poderíamos salientar aqui diversos fatores que contribuem para isso, no entanto, não é objetivo por enquanto nesta apresentação.

O objetivo deste material é “tentar” fundamentar as bases teológicas de questões fundamentais da fé cristã a novos convertidos, servos de Deus em geral, professores de Escola Bíblica Dominical, liderança, alunos de escolas teológicas e professores (a estes dois últimos mais como material de apoio), a uma condição acessível e de maneira a abrir pontos de discussões sobre este e mais assuntos. Desta forma, nasceu este projeto, que visa proporcionar educação teológica e material teológico ao alcance de todos e a um preço acessível. Tendo em vista as dificuldades que a grande maioria de nós tem de adquirir materiais teológicos que são muito caros se considerarmos a realidade brasileira, este projeto nasce dispondo esses materiais das seguintes formas:

• Publicação de livros; • Publicação de e-books (uma nova forma de estudar no próprio

microcomputador a preços mais acessíveis); • Publicação do mesmo conteúdo do livro em apostilas (assim o

leitor não precisa comprar “todo” o livro e sim partes dele);

O material pode ser adquirido diretamente pelo site www.clubedeautores.com.br onde haverá um campo de busca e nele você pode digitar o nome do autor ou o nome do livro. A compra poderá ser feita através de cartão de débito ou crédito e também através de boleto bancário.

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Introdução ao Estudo do Pentateuco

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Esperamos através desse ministério, proporcionar conhecimento teológico a todos de uma forma barata e simples. A Deus seja dada toda a Glória!

A.V.Gazzi Setembro de 2013

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Anderson Vicente Gazzi

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Prefácio:

“Introdução ao Estudo do Pentateuco”? Bem, sei que para

muitos não é um tema atrativo e soa muito acadêmico. Para qualquer iniciante no estudo das Sagradas Escrituras o Pentateuco parece um pouco distante, arcaico e muitos teólogos liberais nem o consideram com tanta seriedade ou o consideram como mito e outras tantas definições. É importante àquele que está “chegando agora” compreender que toda a base teológica neotestamentária (do Novo Testamento) possui sua base veterotestamentária (no Antigo Testamento).

Se desconsiderarmos o Antigo Testamento, perdemos “as bases” do Novo Testamento, pois o mesmo testifica sobre o que foi falado (através dos profetas) anteriormente. A necessidade em se aprender sobre o Antigo Testamento é primeiro porque conforme nos diz as Escrituras em 2Tm.3.15-16: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, convencer, corrigir e educar na justiça [...]”. Considerando que Deus é o autor de todas as Escrituras (de Gênesis a Apocalipse) é indiscutível a sua real necessidade de estudo. Segundo, o próprio Cristo fez diversas citações do Antigo Testamento como podemos verificar entre uma delas a passagem de Mt.4.1-11: “Examinem as Escrituras, pois achais ter a vida eterna através delas, e elas testemunham sobre Mim.”. E para finalizar, os apóstolos e toda a igreja primitiva se utilizava do Antigo Testamento para pregar a Cristo e Este ressuscitado como vemos em Atos 1: “Homens irmãos, convinha que se cumprisse a Escritura que o Espírito Santo predisse pela boca de Davi”; “Porque no livro dos Salmos está escrito: Fique deserta a sua habitação, E não haja quem nela habite, Tome outro o seu bispado”.

Assim, temos que se considerarmos apenas o Novo Testamento ou mesmo apenas parte do Antigo Testamento é ter uma “meia verdade” ou uma “verdade incompleta”. Ambos os Testamentos (o Antigo e o Novo) se completam e formam a verdade de Deus.

Agradeço a Deus por me permitir realizar este trabalho e a toda a minha família e a igreja do Senhor Jesus (que posso considerar como também minha família).

“Introdução ao Estudo do Pentateuco” é apenas um projeto dos diversos que virão, ou até onde Deus assim permitir. Gostaria de deixar

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Introdução ao Estudo do Pentateuco

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como reflexão uma leitura que obtive como exemplo na Escola Bíblica Dominical e tem falado comigo todos os dias desde a minha mocidade: Provérbios 9.9.: “Dá instrução ao sábio, e ele se fará mais sábio; ensina o justo e

ele crescerá em entendimento”.

Que Deus transborde os vossos corações com a Sua Palavra e que todos os dias venhamos a temer o Senhor, o Deus de Israel até a sua vinda!

A.V.Gazzi Setembro de 2013

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Anderson Vicente Gazzi

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INTRODUÇÃO

1. Conceito de Antigo Testamento:

a. Conceito e Definição:

O conceito de Teologia do Antigo Testamento está amarrado ao conceito de “teologia”. Por definição, se entendermos “teologia” como sendo “o estudo de Deus e de sua revelação ao homem”, consequentemente a Teologia do Antigo Testamento será “o estudo de Deus e de sua revelação ao homem no Antigo Testamento”. Entretanto, o título “Antigo Testamento”, possuiu uma identidade especial, pois se reconhece o “Antigo Testamento” como uma unidade na Escritura Sagrada na qual os cristãos combinam e contrastam com o Novo Testamento. Portanto, Teologia do Antigo Testamento “é o estudo de Deus e de sua revelação ao povo eleito segundo os escritos desse mesmo povo e que, por conseguinte, se difere da revelação de Deus por meio de Cristo”.

Sabe-se, porém, que o Antigo Testamento é um conjunto de 39 livros no cânon cristão, escritos em épocas distintas por diferentes hagiógrafos (escritores que escreveram sob inspiração divina). Quanto à literatura, o Antigo Testamento possui diversificadas características literárias que vão desde a prosa até ao gênero apocalíptico. Consequentemente, uma Teologia do Antigo Testamento deve contemplar todas essas extensões quer sejam temporais, culturais ou literárias.

O propósito da Teologia Bíblica, segundo Ladd “é de expor a teologia encontrada na Bíblia em seu próprio contexto histórico, com seus principais termos, categorias e formas de pensamentos”. Isto posto, uma teologia bíblica do Antigo Testamento deve considerar os graus de desenvolvimento da revelação divina no Antigo Testamento e ser mais descritiva do que prescritiva, isto é, descrever o conteúdo teológico do Antigo Testamento e, não diretamente ocupar-se de sua aplicação, atualização ou acomodação bíblica.

O encadeamento lógico dessas proposições leva-nos a seguinte definição: “Teologia do Antigo Testamento é a disciplina da Teologia Bíblica que

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Introdução ao Estudo do Pentateuco

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estuda a pessoa, atributos, revelação de Deus, e sua aliança com o povo eleito considerando a progressividade da revelação, os escritos e estilos literários do cânon judaico do Antigo Testamento”.

Embora redundante, vale ressaltar que a Teologia do Antigo Testamento difere-se do estudo denominado de Introdução ao Antigo Testamento. Enquanto o primeiro se ocupa da teologia bíblica nos livros antes do Novo Testamento, o segundo trata dos aspectos pertinentes ao cânon, texto, data, autoria, composição, estrutura e comentário descritivo de cada livro sem deter-se em sua teologia específica. As duas disciplinas são igualmente necessárias para a compreensão das Escrituras.

b. Definição e Conceito Segundo Alguns Teólogos:

O Dr. Asa Routh Crabtree define a Teologia do Antigo Testamento como: “A Teologia do Velho Testamento é o estudo dos atributos de Deus e o propósito das suas atividades na história e na vida do povo de Israel, de acordo com a doutrina da revelação divina nos livros sagrados deste povo”.

R. K. Harrison, professor de Antigo Testamento do Wycliffe College, define a disciplina nos seguintes termos: “A Teologia do Antigo Testamento esforça-se para expor, do modo mais ordenado possível, as grandes declarações da verdade divina que ocorrem nesses escritos. Tais afirmações podem incluir revelação direta ou proposicional da parte de Deus a respeito da Sua natureza e Seus propósitos, proclamações feita por profetas e outros de temas ou aspectos específicos da Torá e do seu significado para os receptores”.

Segundo Paul Francis Porta, a Teologia Bíblica do Antigo Testamento “enfatiza a importância teológica de diversos livros ao revelarem-se no desenrolar gradual da mensagem redentora”.

Outros autores que tratam da Teologia do Antigo Testamento preferem definir Teologia Bíblica em vez de considerar especificamente o título, pois existem muitas controvérsias a respeito do tema. Ralph L. Smith afirma que a literatura básica da disciplina nos últimos 50 anos tem demonstrado pouca concordância quanto à natureza, tarefa e metodologia dessa disciplina. De acordo com John McKenzie, na obra “A Teologia do Antigo Testamento” a Teologia bíblica é a única disciplina ou subdisciplina no campo da teologia que carece de princípio,

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métodos e estrutura que recebam aceitação geral. Nem mesmo existe uma definição geral de seu escopo. Concernente a definição, escopo e metodologia, o teólogo Gerhard von Rad, afirma que a Teologia do Antigo Testamento ainda é uma ciência jovem, uma das mais jovens dentre as ciências bíblicas. (...) Predomina a característica de não ter ainda havido um acordo perfeito quanto ao domínio que lhe é próprio. Essa falta de consenso entre os teólogos a respeito do assunto têm suscitado calorosas disputas. Um exemplo vislumbra-se no “Prefácio da Quarta Edição” de von Rad onde ele justifica o seu método diacrônico (método histórico-crítico) e responde ao teólogo W. Eichrodt e F. Baumgärtel as críticas ao seu método. Consequentemente, a delimitação e definição do tema conduzem a outra controvérsia não menos importante: o método empregado para se chegar a uma Teologia do Antigo Testamento.

c. Excurso sobre os Métodos de Teologia do Antigo Testamento:

De acordo com o teólogo K.H. Harrison uma teologia do

Antigo Testamento para ser formulada com sucesso precisa considerar: O significado que as palavras e os escritos tinham para aqueles

que os receberam originalmente; Deve estar firmemente baseada numa tradição tão fiel ao texto

original quanto possível, considerando os problemas de transmissão textual e o fato de algumas palavras hebraicas ainda terem significados desconhecidos;

Manter o devido equilíbrio entre um método de investigação histórico e objetivo e o conceito de uma revelação autorizada e definitiva de Deus em forma escrita;

Por fim, o pensamento dos escritores do Antigo Testamento não deve restringir-se aos interesses que dizem respeito à religião ou à vida dos hebreus antigos. Deve considerar parte da revelação contínua de Deus que chega ao seu ponto culminante na proclamação neotestamentária da Sua graça redentora em Cristo.

Segundo o teólogo Kaiser Jr. a teologia do Antigo Testamento é a disciplina mais exigente dos estudos do novo testamento, e que o

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escopo dessa disciplina tem desencorajado a maioria dos estudiosos, até mesmo aqueles que estão no fim das suas carreiras acadêmicas.

2. Classificação dos Livros do Antigo Testamento:

A. As Escritas Sagradas dos Judeus:

A Bíblia dos judeus era e ainda hoje é formada pelos livros do Antigo Testamento. Ela é dividida em três partes: Lei, Profetas e Escritos. Inclusive esta divisão foi citada pelo próprio Cristo: “...São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: Convinha que se cumprisse tudo que de mim estava escrito na Lei de Moisés, e nos Profetas, e nos Salmos”. Os Salmos aí é a tradução da palavra “Escritos”.

B. O Arranjo dos Livros do Antigo Testamento Hebraico:

A organização dos livros do Antigo Testamento na literatura hebraica é diferente da nossa, pois nela é feita inclusive a união de alguns livros, que na nossa são separados. São eles: os doze profetas menores, os dois livros de Samuel, os dois livros de Reis, os dois livros das Crônicas, como também é feito a junção entre os livros de Neemias e Esdras, chegando ao total de 24 livros e não 39, como acontece em nossa tradução. É importante, porém esclarecer que, só é mudado o lado estético, a organização, porém o conteúdo é o mesmo.

Vejamos na página seguinte:

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DIVISÃO DOS LIVROS DO ANTIGO TESTAMENTO JUDAICO

A Lei 5 Livros (A Torah)

Os Proféticos 8 Livros

(Os Neviym)

Os Escritos 11 Livros

(Os Kethuvym) 1 - Gênesis 2 - Êxodo 3 - Levítico 4 - Números

5 - Deuteronômio

a. Profetas Anteriores 1 - Josué 2 - Juizes 3 - Samuel 4 - Reis

b. Profetas Posteriores 1 - Isaias

2 - Jeremias 3 - Ezequiel 4 - Os doze

a. Livros Poéticos 1 - Salmos

2 - Provérbios 3 - Jó

b. Cinco rolos (Megiloth)

1 - O Cântico dos Cânticos 2 - Rute

3 - Lamentações 4 - Ester

5 - Eclesiastes

c - Livros Históricos 1 - Daniel

2 - Esdras - Neemias 3 - Crônicas

C. O Cânon ratificado pelo Senhor Jesus:

Jesus, durante todo o seu ministério, sempre fez questão de

demonstrar que as Escrituras tinham origem divina, e que tinha vindo a este mundo exatamente para cumpri-las, por serem elas a verdade de Deus. Este testemunho de Jesus e suas diversas manifestações de reconhecimento da autoridade das Escrituras são plenamente suficientes para que reconheçamos ser o Antigo Testamento, tal qual ele se apresentava no meio do povo judeu, como sendo a Palavra de Deus (Mt.15.6; Mc.7.13; Jo.10.35). Mas o que Jesus considerava como sendo as Escrituras inspiradas? Quando Jesus acusou os escribas de serem culpados da morte de todos os profetas que Deus enviara a Israel, desde Abel até Zacarias (Lc.11.51), Ele, de certa forma, delimitou o que

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considerava ser a extensão dos livros canônicos. O relato da morte de Abel está no primeiro livro, Gênesis; o da morte de Zacarias, se acha em 2 Crônicas, que é o último livro das disposição da Bíblia hebraica (em lugar do nosso Malaquias). Assim sendo, é como se Jesus tivesse dito: a culpa de vocês está registrada em toda Bíblia, de Gênesis a Malaquias.

D. O Cânon judaico mencionado por Josefo:

Como já vimos no quadro, todos os nossos livros do Antigo Testamento eram reconhecidos pelo povo judeu e considerados como divinamente inspirados, inclusive pelo próprio historiador Flávio Josefo, que apresenta uma divisão não de 24 livros, mas de 22; isto porque a divisão mencionada por Josefo, é um costumeiro arranjo de livros feito pelos judeus, para que haja uma perfeita associação entre os livros e cada uma das letras do alfabeto hebraico, que também somam um total de 22. Na divisão de 22 livros, adotada por Flávio Josefo, o livro de Rute está junto com o de Juízes e o livro de Lamentações ao de Jeremias.

E. Quando o Cânon do Antigo Testamento se estabeleceu?

A formação do Cânon do Antigo Testamento foi algo gradual, atingindo um espaço de mais de mil anos (1255 anos aproximadamente) - de Moisés a Esdras. Isto vai desde o período em que Moisés esteve entre os midianitas (quando, segundo a tradição judaica, teria escrito o livro de Jó), por volta de 1.700 a.C., até Esdras (445 a.C.). Esdras não foi o último escritor na formação do Cânon do Antigo Testamento; os últimos foram Neemias e Malaquias, porém, de acordo com os escritos históricos, foi ele que, na qualidade de escriba sacerdote, que reuniu os rolos bíblicos, ficando assim o Cânon encerrado em seu tempo. Os profetas e os homens de Deus que compuseram os livros do Antigo Testamento, não tinham consciência de como suas contribuições se enquadrariam a uma unidade global, formando assim o Antigo Testamento.

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F. O Proto-Cânon.

Apesar da tradição rabínica apontar Esdras como sendo o organizador dos livros do Antigo Testamento, isto, por hipótese alguma, significa dizer que somente a partir deste fato é que os livros passaram a ser reconhecidos e obedecidos. Ao lermos a Bíblia, vemos que, desde o início de seus escritos isto já vinha sendo observado. Assim, a expressão “proto-cânon” dar-nos a idéia de que os livros do Antigo Testamento, já possuíam a qualidade de Canônico antes mesmo de se formarem os Cânones.

G. O Sínodo de Jâmnia ou Yavne:

Yavne, em Gaza, havia se tornado o principal centro de estudos das Escrituras após a destruição do templo de Jerusalém, por volta do ano 90 d.C. Nesta cidade, aconteceu por volta do ano 100 d.C., uma reunião de rabinos judeus, que, inclusive, ficou conhecida como sendo o “Concílio Judaico de Yavne”. Lá foi debatida a permanência ou não dos livros de: Provérbios, Eclesiastes, Cantares, Ester e Ezequiel no Cânon Sagrado, porém, nada foi alterado, muito pelo contrário, esta reunião apenas serviu para confirmar a relação dos livros que já eram adotados pelos Judeus há muitos séculos.

3. Barreiras para o estudo do Antigo Testamento:

A. Problema Hermenêutico:

Acontece quando se interpreta uma passagem do “Antigo Testamento” deslocando-a do seu contexto original e do seu sentido histórico.

B. Problema Doutrinário:

Em decorrência do problema hermenêutico, surge o problema doutrinário. Duas questões devem ser levantadas aqui:

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I. O fato de que determinadas palavras, conceitos, dogmas, costumes, práticas encontram-se escritos na Bíblia significa que eles são ordinariamente “bíblicos”? (Por exemplo: Pitonisa de Em-dor, Eliseu e as ursas do campo).

II. É salutar construir doutrinas alicerçadas em fatos isolados ou em costumes do Antigo Testamento?

C. Problemas da Redução:

Alguns afirmam que, sendo o Novo Testamento o cumprimento

do Antigo, o estudo das escrituras judaicas é de pouco valor. Nesse caso, o Antigo Testamento é reduzido ao Novo.

D. Problema da Dissociação:

Alguns têm dificuldades em associar o Deus do Antigo Testamento (compreendido como um Deus guerreiro, vingativo, sádico) ao Deus do Novo Testamento (compreendido como um Deus gracioso, amoroso, conforme visto na pessoa e mensagem de Jesus Cristo). Marcião, um dos pais apostólicos do Séc. II d.C. foi um dos ardorosos defensores desta posição, criando uma lista de livros do Novo Testamento que excluía qualquer relação com o Antigo Testamento.

E. Problema de Linguagem:

A linguagem oriental antiga, extremamente criativa e sem abstrações, carece de uma interpretação adequada em virtude da distância que nos separa desse mundo cheio de símbolos, números e hipérboles. Muitos traços peculiares conhecidos como hebraísmos e aramaísmos também merecem igual atenção.

F. O Conflito entre a Bíblia e as Ciências Naturais:

A tentativa de uso da Bíblia como um livro de orientação científica tomando-se como base sua inspiração divina pode criar um clima de desprezo pela Escritura Sagrada, colocando-a numa posição

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constrangedora, na medida em que se lhe confere um papel para o qual não foi destinada. (Por exemplo: Js.10.12-14 (limitação do autor humano com relação ao conhecimento dos movimentos da terra em torno do sol).

G. Problemas Morais:

Quando se lê a Bíblia como quem lê um livro de história percebe-se uma série de incongruências entre os homens e Deus, e determinadas posturas éticas. Abraão parece mentir para preservar sua vida (Gn.12.10-12); Jacó rouba o direito de primogenitura do seu irmão (Gn.27); Jefté mata sua filha em consequência de um juramento (Jz.11); Davi é cruel e mentiroso (1Sm.27.7-11); ao contrário do que nos é apresentado, Jó é rebelde e blasfemo (Jó.9.23); a guerra santa é uma prática difícil de se aceitar nos dias atuais (Dt.20.12.16).

H. Problemas Teológicos:

O principal deles é a crença na Eleição de Israel. Como entender a predileção de Deus por um povo em detrimento de outro.

4. Instrumentos de Auxílio ao Estudo do Antigo Testamento:

A. O Contexto:

Aqui se torna necessário dois níveis do aprendizado do domínio cognitivo: o conhecimento e a compreensão da posição histórica do autor, isto é, do seu contexto, ou seja, a sua situação histórica, política, social, etc. Deve.se considerar que a Bíblia foi produzida num ambiente bem diferente do nosso, refletindo maneiras e formas peculiares. Não se pode simplesmente “lançar” um versículo, tirando-o da realidade em que estava inserido para utilizá-lo nos dias atuais a título de contextualização ou aplicação.

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B. A Língua:

Esse instrumento tem relações com o contexto, mas merece um estudo à parte. O linguajar oriental tinha características de ordem antropológica e gramatical bem diferente da nossa. O uso de hebraísmos era constante e o simbolismo dos números era significativo.

C. O Antigo Testamento tem um aspecto profundamente humano:

Miguel de Cervantes disse: “A verdade é mais divina quanto mais

esconde o humano”; esse pensamento não vale para o Antigo Testamento. Nele, Deus ama o ser humano como ele é com seus defeitos e paixões. Poder-se-ia aqui relacionar muitos exemplos.

D. O Encontro da Palavra de Deus com a palavra do Homem:

No Antigo Testamento o homem treme diante da Palavra de Deus, ao mesmo tempo em que torna nítida a sua marca humana. Ambas cooperam no processo de revelação ou no “mostrar-se” divino.

E. A Moral do Antigo Testamento não é Perfeita:

A revelação definitiva nos chega através de Jesus Cristo. Ele mesmo se viu obrigado a distinguir claramente as normas ensinadas às gerações antigas e a nova moral, típica do cristão (Vide Sermão da Montanha).

F. O Antigo Testamento como Fruto do Desenvolvimento de Reflexão Teológica:

Não se identifica apenas uma forma do pensar teológico no

Antigo Testamento, formando uma unidade, mas diversas tendências que se desenvolveram num período de 1200 anos de história, aproximadamente (por exemplo: o conceito de monoteísmo absoluto – reta final da reflexão em torno de Yahweh).

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BIBLIOGRAFIA: - LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. 2. ed., Rio de Janeiro: JUERP, 1985, p.25. - CRABTREE, A.R. Teologia do Velho Testamento. Rio de Janeiro:JUERP, 1977,p.32 - HARRISON, R.K. Teologia do Antigo Testamento. In ELWELL, Walter A. (ed.) Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1990, V.III (N-Z), p. 458. - PORTA, Paul Francis. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: EETAD, FAETAD, 1989, p.18. - SMITH, Ralph L. Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem. São Paulo:Vida Nova, 2001, p.67. - McKENZIE, John. A Theology of the Old Testament, Garden City: Doubleday, 1974, p.15 apud SMITH, Ralph L. Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem. São Paulo:Vida Nova, 2001, p.67. - RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento: teologia das tradições históricas de Israel. São Paulo: ASTE, 1986, p.11. - RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento: teologia das tradições históricas de Israel. São Paulo: ASTE, 1986, p.14-7. - HARRISON, R.K. Teologia do Antigo Testamento. In ELWELL, Walter A. (ed.) Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1990, V.III (N-Z), p. 458. - KAISER JR., Walter C. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1984, p.vii. - AFONSO, Caramuru. Introduão bíblica, VIDA. - A Bíblia Através dos Séculos, CPAD; - A origem da Bíblia, CPAD; - H. E. Alexander; B. E. P. Introdução bíblica, CPAD.

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I – PANORAMA HISTÓRICO DO PENTATEUCO

1. Retrospecto da História de Israel no Período Patriarcal (2000 à 1750 a.C.):

De acordo com a Bíblia, a história de Israel começa com a

migração dos patriarcas hebreus da Mesopotâmia para a Palestina. Essas narrativas são encontradas no livro de Gênesis caps. 12 a 50. De acordo com Bright, as narrativas do Gênesis são em preto e branco numa tela simples, sem nenhuma perspectiva de profundidade. Esse livro nos pinta certos indivíduos e suas famílias movimentando-se dentro de um mundo, como se vivessem sozinhos nele. Os grandes impérios, mesmo o pequeno povo de Canaã, se são mencionados, não passam de vozes que se ouvem de fora do palco. Se os faraós do Egito têm uma modesta parte nas narrativas, eles não são identificados pelos nomes; não sabemos quem eram eles; tampouco, nenhum antepassado hebreu mencionado no Gênesis foi revelado ainda em nenhuma inscrição contemporânea. Em conseqüência de tudo isso se torna impossível dizer em termos exatos quando Abraão, Isaque e Jacó realmente viveram; tampouco podemos subestimar a evidência arqueológica. O testemunho da Arqueologia é indireto. Ele tem dado ao quadro das origens de Israel um sabor de probabilidade e tem fornecido o “background” ou pano-de-fundo para o entendimento desse quadro, mas não tem provado que as histórias são verdadeiras em seus pormenores. Ao mesmo tempo não apareceu ainda nenhuma evidência que contradiga a tradição bíblica.

Segundo Bright, as origens de Israel não eram tão simples fisicamente. Teologicamente eram todos descendentes de Abraão; fisicamente eles provinham de outros troncos diferentes, clãs que imigraram na Palestina no começo do segundo milênio antes de Cristo e aí se misturaram e proliferaram com o passar do tempo. Muitos desses clãs se estabeleceram onde puderam encontrar terra e se organizaram em cidades-estado segundo o padrão feudal. A maior parte desses clãs veio da Mesopotâmia, onde reinava um ambiente de confusão política gerando a desintegração da cidade de Ur com dinastias rivais lutando entre si. No Egito, sob os faraós do Médio Império (de Tebas a Menfis), instalava-se uma época de prosperidade. Os faraós da 12ª dinastia

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empreenderam projetos ambiciosos, sistema de canais e de fortificações, desenvolvendo-se ainda a Medicina e a Matemática. Os patriarcas propriamente ditos seriam os chefes de clãs consideráveis.

A. Costumes e Características Patriarcais:

Muitos fatos mencionados no Gênesis são provados pelo conhecimento da cultura de reinos na Mesopotâmia dessa época. Segue abaixo algumas das diversas características desses clãs. Outras características serão consideradas na unidade seguinte quando estudaremos as instituições israelitas do tempo do Antigo Testamento.

� O patriarca tinha influência decisiva na escolha de cônjuges para seus filhos;

� Os casais sem filhos adotavam um filho que os servia durante toda a vida e seria o herdeiro. Mas se nascesse um filho natural, o filho adotivo tinha que ceder seu direito de herdeiro;

� Os contratos nupciais obrigavam a mulher estéril a providenciar uma substituta para o seu marido

� Se nascesse um filho dessa união ficava proibido o desprezo à esposa escrava e ao seu filho;

� A aparência desses patriarcas era semelhante à dos seminômades do segundo milênio na Palestina; vestidos com roupas multicoloridas, deslocando-se a pé com todos os seus pertences e filhos em lombo de burro;

� Habitavam em tendas.

B. A Religião dos Patriarcas:

A Bíblia considera Moisés como fundador da religião de Israel (Êxodo 3). Apesar disso, a narrativa bíblica liga a religião javista com a religião dos patriarcas (Êx.3.6-13; 6.3). O quadro que se tem dos patriarcas é que eles adoravam a Deus sob vários nomes; esses nomes estavam ligados a um feito de Deus no passado e em local especial. Os descendentes dos patriarcas adorariam na memória do nome do

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patriarca, o Deus que esse patriarca legou, sob diversos nomes. A Bíblia menciona alguns deles, a saber:

� ‘El Shaddai (Gn.17.1; 43.14) – “Deus Todo-Poderoso”. � ‘El Elyon (Gn.14.18-24) – “Deus Altíssimo”. � ‘El Olam (Gn.21.33) – “Deus Eterno”. � ‘El Roy (Gn.16.13) – “Deus que me vê”.

Na narrativa do Gênesis, cada patriarca é representado adorando

ao seu Deus por livre e pessoal escolha e entregando-se, depois a este seu Deus “O Deus de Abraão”, em Gn.28.13; 31.42-53; “O Temido de Isaque” em Gn.31.42-53; “O Poderoso de Jacó” em Gn.49.24. O quadro do Gênesis de uma relação pessoal entre o indivíduo e seu Deus fundamentada por uma promessa e selada por uma aliança é da maior autenticidade. A fé na promessa divina representa o elemento original da fé dos antepassados seminômades de Israel.

2. Os Hebreus no Egito (1750-1300 a.C.):

A. Contexto Histórico:

Antes do conhecimento das circunstâncias que levaram os descendentes dos patriarcas a se instalarem no Egito, é necessária uma compreensão do contexto histórico dos impérios que cercavam a Palestina. Por exemplo, no Egito, durante o Séc. XVIII a.C., o poder do Médio Império estava sendo enfraquecido. Com as migrações dos povos asiáticos para as bandas do sul da Palestina, as portas do delta egípcio estavam sendo abertas para a dominação estrangeira. Nessa época, o Egito sofreu a invasão dos soberanos estrangeiros chamados de hicsos (chefes estrangeiros – 1720 a 1540 a.C.), os quais efetuaram sua conquista em duas fases:

a. Entrincheiraram-se no Delta, consolidando posições (1720 a.C.); b. Iniciaram o domínio político propriamente dito. Os hicsos

foram expulsos do Egito em 1540 a.C. pelo faraó nacionalista Amósis. A presença dos hicsos no Egito representa um período

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de franca abertura para a entrada de estrangeiros, inclusive hebreus.

Outro importante império foi o da Babilônia. Durante essa

época encontrava-se ameaçado pela Assíria ao norte e Larsa ao sul. Porém, com a ascensão do rei Hamurabi ao trono essa situação de inferioridade se reverteu e a Babilônia resistiu a todas as ameaças, vencendo os seus inimigos. Através de Hamurabi a Babilônia gozou um grande florescimento cultural. Desse período temos uma riqueza de textos: cópias de épicos antigos (por exemplo, narrativas babilônicas da criação e do dilúvio), listas de palavras, dicionários, tratados de matemática e de astronomia, etc. Contudo a mais importante de todas as realizações de Hamurabi foi o seu famoso código de leis, publicado no final de seu reinado.

B. Como os Hebreus foram para o Egito:

O período de 1750 a 1300 a.C. representa uma época na história de Israel onde a Bíblia é a nossa única fonte. Os registros egípcios nunca fizeram menção de uma presença de Israel. Uma explicação para isso é que, ocorrendo essa passagem dos hebreus pelo Egito durante o período dos soberanos hicsos, os egípcios teriam considerado essa época vergonhosa demais para ser descrita. O fato é que a narrativa bíblica tem o seu valor e, de acordo com o pensamento de Bright, exige uma fé a priori: “uma tradição dessa espécie nenhum povo poderia inventar. Não se trata de nenhum episódio épico e heróico da migração, mas da recordação de uma servidão vergonhosa da qual somente o poder de Deus poderia livrar”. Um argumento muito forte que reforça a historicidade da passagem de Israel pelo Egito são os nomes egípcios comumente encontrados entre os israelitas nessa época, por exemplo: Moisés, Ofiní, Finéias, Merarí, etc.

Duas perguntas devem ser colocadas aqui:

1) O que levou os israelitas a se instalarem no Egito? 2) Sob que circunstâncias viveram?

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Primeiramente, todos os teólogos e estudiosos do Antigo Testamento concordam em afirmar que os israelitas chegaram ao Egito através das migrações dos seminômades que habitavam o sul da Palestina. Nos tempos de fome e carestia esses iam buscar uma vida melhor no Vale do Nilo, que era fértil e não dependia das chuvas. Esta situação é pressuposta em algumas passagens do Gênesis (Gn.12.10; 20.1; 26.1; 42.1, 43.1, 46.1). Essa era uma situação repetida todos os anos e muitos desses grupos seminômades fixaram residência no Egito. Ora, na medida em que se compreende que o período de dominação hicsa foi favorável à entrada de grupos estrangeiros no Egito, compreende-se também que, a partir do momento em que os mesmos foram banidos e expulsos, deu-se início uma política nacionalista xenofobista (aversão ou medo aos estrangeiros) que inclui a perseguição às etnias estrangeiras (Êx.1.9-10). A partir daí muitos desses grupos seminômades foram convocados pelos egípcios para determinados serviços, sendo inclusive recrutados contra a vontade como trabalhadores braçais, mão-de-obra barata pra atividades na área da construção e olarias. De acordo com a Bíblia (Êx.12.40), o período de permanência dos hebreus no Egito foi de 430 anos.

C. O Problema do Conflito de Datas do Êxodo:

No caso específico dos faraós da opressão e do êxodo temos um problema histórico visto que dois grupos de historiadores e teólogos têm discordado quanto à datação da escravidão israelita, em virtude de interpretações diferentes para as evidências históricas e arqueológicas. As discussões concentram-se entre os faraós da 18ª e 19ª dinastias. Vejamos, primeiramente, um quadro histórico aproximado desses faraós:

Dinastias / Faraó Período de Reinado Hicsos dominam o Egito 1720-1570 a.C.

18º Dinastia

Amósis 1570-1546 a.C. Amenófis I 1546-1526 a.C. Tutmósis I 1526-1512 a.C. Tutmósis II 1512-1504 a.C. Hatshepsut 1503-1483 a.C.

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Continuação...

Dinastias / Faraó Período de Reinado

18º Dinastia

Tutmósis III 1504-1450 a.C. Amenófis II 1450-1425 a.C. Tutmósis IV 1425-1417 a.C. Amenófis III 1417-1379 a.C. Amenófis IIIV (Akenaton)

1379-1362 a.C.

Semenca 1364-1361 a.C. Tutankamon 1361-1352 a.C. Aí 1352-1348 a.C. Horembeb 1348-1320 a.C.

19º Dinastia

Ramsés I 1320-1318 a.C. Set I 1318-1304 a.C. Ramsés II 1304-1236 a.C. Merneftá 1236-1223 a.C.

O primeiro grupo de teólogos e historiadores considera que os

faraós da opressão e do êxodo estão na 18ª dinastia. Partem do princípio da literalidade de 1Reis 6.1 que informa que o êxodo aconteceu cerca de 480 anos antes da fundação do templo de Salomão, fato que ocorreu em aproximadamente 966 a.C, o que colocaria a datação da saída de Israel do Egito por volta de 1446 a.C., época de Amenófis II (1450-1425). Essa articulação, estando correta, colocaria o nascimento de Moisés para o período de transição entre Amenófis I (1546-1526) e Tutmósis I (1526 a 1512), visto que, de acordo com Êx.7.7, Moisés estava com 80 anos pouco antes do êxodo. Moisés teria sido adotado pela filha de Tutmósis I, Hatshepsut (1503-1483), a qual, por sua vez, teria se casado com seu meio-irmão, Tutmósis II (1512-1504), bem mais jovem que sua meia-irmã. Tendo morrido cedo em virtude de doença misteriosa, deixou Tutmósis III (1504-1450) ainda menino como rei, estando o Egito nesse momento regido ainda que não oficialmente por Hatshepsut. Tutmósis III teria sido o mais ilustre e poderoso dos faraós da 18ª dinastia, tendo realizado cerca de 16 campanhas militares na Palestina, consolidando o

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domínio egípcio nessa região. Hatshepsut, por sua vez, enquanto esteve no poder, caracterizou-se por grande autoridade e tato político. Merrill (2002, p.54) argumenta que o jovem Moisés teria sido uma ameaça para Tutmósis III, visto que ele era “filho da filha de faraó” (Hb.11.24), o que teria justificado a fuga de Moisés depois deste ter matado um egípcio. O raciocínio aqui é que depois que os hicsos foram expulsos do Egito, Amósis (1570-1546), o faraó mencionado em Êx.1.8 como o rei “que não conhecera a José”, teria iniciado uma política de trabalhos forçados (Êx.1.11-14) em olarias e na construção civil aos estrangeiros que ficaram no país, aproveitados como mão de obra escrava, dentre eles, descendentes da Jacó. Como se não bastasse essa política escravizante, um dos faraós seguintes, Amenófis I (1546-1526) ou Tutmósis I (1526-1512), teria praticado um genocídio (Êx.1.15-16). Assim, pesquisadores como Merrill (ibid, p.55.56) colocam Amenófis II (1450-1425) como o faraó do êxodo, visto que duas de suas campanhas militares na Palestina (Em 1450 e 1446) combinariam com uma possível perseguição a um povo em fuga, tendo seu exército sido desmoralizado numa tentativa frustrada de passagem pelo Mar dos Juncos.

O outro grupo de teólogos e historiadores defende que os faraós da opressão e do êxodo estão situados na 19ª dinastia. Partem dos princípios da interpretação simbólica de 1Rs.6.1 e da contribuição da ciência histórica e arqueológica para elucidar essa discordância.

Primeiro, porque segundo alguns (BRIGHT, 1978, p.158), a idéia de 480 anos seria simbólica, resultante da multiplicação de 40 vezes 12, harmonizando com 1Cr.6, texto que contaria cerca de 12 gerações no período em discussão. Uma geração ideal abrangeria 40 anos. Mas torna-se simbólica, porque uma geração durava de 20 a 25 anos, o que colocaria a datação do êxodo para os meados do XIII Século antes de Cristo, época dos faraós da 19ª dinastia.

Segundo, porque segundo alguns estudos (ALLEN, 1987, p.376), no período da 19ª dinastia, a capital do Egito foi mudada de Tebas, no “Alto-Egito”, para Mênfis, no “Baixo-Egito”, na época de Set I (1318-1304), ocorrendo nesse período intensa atividade na área da construção civil. Tendo residido no Alto Egito, os faraós da 18ª dinastia teriam se preocupado pouco com a construção civil nessa região. Isso coaduna com a localização geográfica da escravidão na região de Gosén,

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bem próxima a Sucot, local de onde partiria o povo de Israel em fuga, e Ramsés, uma das cidades reconstruídas pelos escravos hebreus. Aliás, argumentam ainda que sendo o nome da cidade “Ramsés”, um nome de um faraó da 19ª dinastia, por si só isso já seria um argumento decisivo. A outra cidade, chamada “Pitom”, significa “Casa de Tom”, o deus-sol, uma lembrança de Akenaton (Amenófis IV, 1379-1362).

Outros argumentos a favor dessa teoria (GLUECK, 1987, p.387) defendem que os reinos famosos invadidos pelos israelitas na época da conquista só teriam sido fundados depois do 13º século visto que antes os moradores da Palestina viviam como nômades. Da mesma forma, os reinos de Edom e Moabe, citados em Números 20 e 21. Afirmam também, à luz da arqueologia, que cidades cananéias como Láquis e Debir, mencionadas na conquista, teriam experimentado grande destruição no Século XIII a.C. Nesse sentido, Set I (1318-1304) teria sido o “faraó que não conhecera a José” (Êx.1.8), o faraó da opressão e Ramsés II (1304-1236), o faraó do êxodo.

Ultimamente alguns pesquisadores têm discordado dessa opinião (MERRILL, 2002). Argumentam que os nomes “Pitom” e “Ramsés” aplicado às cidades construídas pelos hebreus podem ser, na verdade, anacronismos. Ou seja, mais tarde, quando os relatos da escravidão foram escritos, as cidades foram identificadas com os nomes posteriormente conhecidos, e não com os seus nomes originais. Assim, “Ramsés” seria o nome posterior para a cidade de Tanes. Um exemplo simples para a compreensão dessa linha de raciocínio é que ao contar a história do Brasil, nenhum historiador afirma que os descobridores chegaram à “Ilha de Vera Cruz”, termo usado por Cabral na época da descoberta. Ou ainda “Terra de Santa Cruz”, termo usado mais tarde quando descobriram que a “ilha” era, na verdade, um continente. Mas os historiadores usam o termo “Brasil”, termo do Século XVI, posterior, portanto, aos termos anteriormente citados.

Um outro grande problema para a datação do êxodo no Século XIII a.C., é que na tentativa de harmonização de Êx.2.15,23 e Êx.4.19 com a cronologia histórica, verifica-se que Moisés não teria retornado ao Egito antes que aquele faraó que tentou tirar-lhe a vida estivesse morto, o que colocaria uma dificuldade para situar os eventos no período de Set I (1318-1304) e Ramsés II (1304-1236), dado o curto período de

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governo de Set I e o longo período de Ramsés II, para que se justificasse uma fuga de Moisés do Egito aos 40 anos de idade e o seu retorno aos 80.

Merril (2002, p.65) cita mudanças de perspectiva no exame dos vestígios encontrados nos sítios arqueológicos palestinenses, após as escavações feitas por Glueck. Outros arqueólogos têm chegado à conclusão de que muitos dos achados remontam à Era do Bronze Recente (1600-1200), ou era até mais antigos, o que comportaria as conquistas dos que saíram do Egito numa época em torno de 1400 anos antes de Cristo. O fato é que os dois lados têm argumentos plausíveis e isso explica a divisão no meio histórico-teológico. Contudo, julgamos mais razoáveis os argumentos a favor de uma datação para a opressão e o êxodo para meados do Século XV a.C..

D. O Problema do Nome Hebreu.

De acordo com Martin Metzger, é por essa circunstância que os israelitas foram chamados de “hebreus”. Isso quer dizer que o nome hebreu não traz boas recordações, pois lembra o sofrimento, vergonha da escravidão (Êx.1.11-14; 2.11-13). Essa reflexão nos remete necessariamente para a origem do nome hebreu ‘ivri, que tem relação direta com a raiz do verbo ‘avar (“atravessar”, “passar para o outro lado”), uma referência aos ancestrais que vieram do outro lado do Eufrates. O termo aparece 34 vezes no Antigo Testamento assim distribuídas:

a. Narrações do êxodo no cenário egípcio: • Êx.1.15,16,19,22 – história das parteiras desobedientes. • Êx.2.6,7,11,13 – nascimento e atuação de Moisés. • Êx.3.18; 5.3; 7.16; 9.1,13; 10.3 – Deus dos hebreus.

b. Leis – Êx.21.2; Dt.15.12; Jr.34.9,14. c. Histórias de José – Gn.39.14,17; 40.15; 41.12; 43.32; d. Narrações das lutas contra os filisteus – 1Sm.4.6,9; 13.3,19;

14.11,21; 29.3; e. Outros (textos tardios) – Gn.14.13; Jn.1.9;

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A análise dos textos acima mostrará que o termo “hebreu” tem relação com uma situação social desfavorável e de submissão sem que isso indique necessariamente uma pertinência ao povo israelita, aparecendo geralmente na boca dos outros povos como forma de depreciação. Mas também aparece como sinônimo de “israelitas”. Essa ambigüidade deve-se à possibilidade de mistura das tradições no andamento da história da formação do povo de Israel. Por exemplo, nas narrações das lutas entre filisteus e israelitas (1Sm.13 e 14) os hebreus fazem parte das tropas militares como uma terceira força e estão presentes em ambos os lados. Hans Trein (Pg.21-22) assim comenta o texto:

“Em 1Sm.13.3-7 Jônatas destruiu a guarnição dos filisteus. Saul fez questão de que os hebreus soubessem disso. Os filisteus se reuniram para combater contra Israel ; o povo de Israel se escondeu em covas e cavernas, nos penhascos e poços, enquanto que alguns dos hebreus atravessaram o Jordão. Aqui os hebreus que atravessaram o Jordão estão distintos dos israelitas que se esconderam nas cavernas e nos penhascos. Em 1Sm.13.19-20, importa para os filisteus impedir que os hebreus fabriquem espadas ou lanças; por isso todo o Israel tinha que ir aos filisteus, amolar seus instrumentos de trabalho agrícola. Aqui hebreus e israelitas são a mesma coisa. Em 1Sm.14.11-12 os filisteus alertam para os hebreus que estão saindo das tocas e provocam Jônatas e seu escudeiro, para dar-lhes uma lição. Aqui mais uma vez hebreus é idêntico a israelitas, o que também confere com os israelitas que tinham se escondido nas cavernas em 1Sm.13.3-7. Em 1Sm.14.21-23 os hebreus que tinham estado junto com os filisteus se ajuntaram aos israelitas que estavam com Saul e Jônatas. Aqui hebreus está distinto de israelitas, e temporariamente até pelejaram contra Israel. Não seriam esses hebreus os mesmos que em 1Sm.13.3-7 tinham atravessado o Jordão (para ajudar os filisteus?) e que agora voltam, pois a batalha tinha se definido vitoriosa para os israelitas? Não seriam esses também os mesmos hebreus que Saul quis informar subversivamente, de que Jônatas tinha derrotado a guarnição dos filisteus em Gibeá, com a segunda intenção de provocar neles, auxiliares dos filisteus, uma deserção?”

Outra vertente no estudo da interpretação sobre a origem do nome está relacionada com a história dos movimentos migratórios já descritos no capítulo anterior. Segundo essa tese, o nome “hebreu” (‘ivri), tem uma íntima relação com o termo aramaico (ap’ru), um termo

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nada elogiável, atribuído por nativos da Palestina aos pastores seminômades que estavam migrando para essa região cerca de 2000 a.C., tratados como “bandoleiros, ciganos ou ladrões ou algo parecido”. Um estudo feito por Hans Alfred Trein mostra que esses grupos cresceram favorecidos pelos conflitos entre os reinos cananeus que se dividiam a favor e contra o domínio egípcio na Palestina antiga, explorada por uma forte exigência tributária dos faraós. Cartas encontradas em Tell El Amarna (1887 d.C) revelam o pedido de ajuda de príncipes cananeus ao faraó Amenófis IV (1360 a.C) para que este enviasse tropas para expulsar os (ap’ru), acusados de pilhagem na Palestina. Para Manfred Weippert (1967) os dois termos são aparentados lingüisticamente, pois as línguas semitas só distinguem entre “b” e “p”. Assim a pesquisa iguala os dois grupos com um único grupo denominado em 1Sm.13 e 14.21 de hebreus pelos filisteus. Parece que esse grupo que, antes servia aos filisteus, tinha desertado para o lado dos israelitas. Mais tarde, em 1Sm.29, os filisteus desconfiarão de Davi e do seu exército de mercenários (que se oferecem para lutar pelos filisteus) temendo que eles também venham a desertar.

3. O Êxodo, a Peregrinação e a Conquista de Canaã (1300 a 1200 a.C.):

A. Contexto e Êxodo:

Baseados em descobertas arqueológicas e em relatos bíblicos do

livro do Êxodo, podemos situar com aproximação o contexto histórico da opressão dos hebreus no Egito, cujas circunstâncias foram estudadas no texto anterior. Nessa época, os egípcios dominavam boa parte do mundo de então, incluindo a Palestina (Canaã), a qual era formada pela aglomeração de cidades-estados, cada uma delas com o seu rei, pagando ao Egito pesados tributos estipulados pelo faraó do momento. Embora a Palestina fosse dividida politicamente, formava uma unidade cultural, pois os povos que lá viviam possuíam língua, costumes e religião semelhantes. No Egito livre, sem a presença do hicsos os hebreus amarguravam uma situação de opressão, forçados ao trabalho nas olarias e na construção das cidades de Pitom e Ramsés (Ávaris, antiga capital dos hicsos), conforme relato de Êx.1.1-14. Os dados concretos de

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Êx.1.11 aliados às escavações arqueológicas permitem-nos concluir que Ramsés II (1301-1234 a.C.) foi o faraó dessa época. O texto bíblico ressalta nesse período duas importantes passagens:

Primeira, a de Moisés como libertador e posteriormente, como legislador. Só a Bíblia tem informado sobre sua história até agora, e tem-se conhecido sobre a sua fina educação na corte egípcia, tendo sido um hebreu salvo da mortandade infantil, nunca negando suas tradições raciais (Êx.2.11-15). Com certeza, além da condução do povo na saída do Egito pelo Mar (Mar dos Juncos – Yam Suf), o ponto alto dessa história é a revelação de Deus a Moisés sob o nome de “Yahweh”, como fundamento para a religião de Israel. A adoração de Yahweh pelos antepassados israelitas pode ter sido assimilada por mediação dos midianitas (Jetro - Êx.18.12) ou dos canitas (descendentes de Caim - Gn.4.15). Mas, Gn.4.25 faz uma afirmação importante sobre Enosh, descendente de Set, como o primeiro a invocar o nome do Senhor. Contudo, existem duas tradições que ligam Moisés tanto aos midianitas (Êx.2.16ss; 18) quanto aos canitas (Jz.1.16 e 4.11), ambas fazendo referencias ao sogro de Moisés, apesar de conservarem nomes diferentes para a mesma pessoa (Jetro/Hobabe). Mais certo é pensar na importância do evento da teofania do Sinai (Êx.3) para a revelação do nome especial de Deus a Moisés, cuja raiz no hebraico é a do verbo “ser”, “estar”, “haver” (hayah). A resposta do Senhor à pergunta de Moisés “qual é seu nome?”, pode significar tanto “Eu sou o que estarei com vocês”, quanto “eu sou o que sou e por isso, o que eu sou não é da sua conta. Creia em mim e deixe o resto comigo!”. Esse sentido do nome do Senhor evidencia-se através das narrativas que acompanham o processo de saída, peregrinação e conquista de Canaã, as quais estão adornadas com molduras sob a forma de epopéia, visto que nessas condições, as tradições seriam mais fortemente assimiladas pelos que as ouviam na compreensão de um Deus que agiu no passado do seu povo e que continuará intervindo para salvar.

Segunda, a referente ao evento das pragas e o endurecimento do coração “Lev” do faraó (Êx.8.32; 7.14). Alguns têm dado interpretações baseadas em fenômenos da natureza para explicar as pragas. O certo aqui é tentar compreender mais a atitude de faraó com relação a essas pragas, uma vez que alguns textos dizem que “Yahweh endureceu o

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coração de Faraó” (Êx.4.21; 7.3; 9.12; 10.1; 10.20; 10.27; 11.10; 14.4,8,17) e outros que “Faraó endureceu seu coração” (Êx.7.13,14,22; 8.15,19,28; 9.7,34,35). Em Êx.14.4 aparece o sentido teológico da obstinação do “Lev” (coração) de acordo com a tradição sacerdotal. Faraó não pode entender o sentido das pragas e não pode atuar a ponto de correspondê-las. Yahweh é quem faz a história. A sua intervenção chega até a capacidade de pensar e entender dos inimigos.

B. Peregrinação no Deserto:

O período no qual o povo hebreu viajou pelo deserto entre a região do Sinai e a região média da Palestina tem duas importâncias básicas:

1. É a época intermediária entre a história de Israel no Egito e a conquista de Canaã.

2. Representa o período quando Israel recebeu a sua religião característica, o Javismo, assumindo com ela a consciência de um povo. Isso não quer dizer que o Javismo não tenha evoluído com o passar dos séculos até ganhar a caracterização da religião pós-exílica conhecida posteriormente pelo nome de Judaísmo. Fato importante é que os profetas fizeram alusões a esse período como o momento e o local onde Israel aprendeu a amar ao Senhor nos moldes de uma relação esposo-esposa (Jr.2.2; Os.2.14).

De acordo com os pesquisadores do Antigo Testamento, a

peregrinação dos hebreus pelo deserto ocorreu em três fases: A primeira fase corresponde à viagem para a cadeia de montes do Sinai (Horebe). Embora a localização do monte seja incerta é pensamento comum que foi lá que Israel recebeu parte da lei de Moisés; a segunda fase corresponde do período da saída do Sinai até a região sul da Palestina conhecida pelo nome de Cades-Barnéia ou Qadesh, onde os israelitas experimentaram uma derrota parcial para o rei de Arad, não podendo assim entrar em Canaã pelo sul; a terceira fase vai da saída de Qadesh à incursão feita pelo flanco oriental, incluindo a instalação na região da

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Transjordânia, região na qual morreu Moisés de acordo com a narrativa bíblica (Dt.34).

C. A Conquista de Canaã:

O pensamento básico que a Bíblia nos apresenta sobre a entrada dos israelitas na Palestina não é a conquista ou invasão feita por um povo estrangeiro, mas o retorno de tribos que num passado distante, lá viveram através dos seus antepassados patriarcas. Dt.26.1 apresenta o pensamento que foi Yahweh quem deu a terra de Canaã a Israel. Martin Metzger descreve essa “reconquista” seguindo duas etapas:

1. Instalação das tribos israelitas nas regiões montanhosas, menos férteis, parcialmente habitadas e pouco guarnecidas (Jz.1.19).

2. Com o crescimento do povo israelita no decorrer dos anos nos territórios cananeus, houve também a conquista de cidades fortificadas tais como Jericó, Hasor e Ai (Js.17.13).

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BIBLIOGRAFIA DO CAPÍTULO I: - BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento. V.1,2. São Paulo: ASTE, 1968. - BÍBLIA – Estudo de Genebra. Tradução Revista e Atualizada no Brasil. São Paulo: Cultura Cristã, 1998. - BÍBLIA – Português. Bíblia Sagrada. Tradução: Escola Bíblica de Jerusalém, nova ed. rev. São Paulo: Paulus, 1985. - ELLISSEN, Stanley. Conheça Melhor o Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2007. - HOFF, Paul. O Pentateuco. São Paulo: Vida, 2002. - PINTO, Carlos Oswaldo. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006. - LASOR, William S.; HUBBARD, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003. - BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1981. - CHARPENTIER, E. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1986. - FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. - GRUEN, Wolfgang. O tempo que se chama hoje: uma introdução ao Antigo Testamento. 11ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1985. - HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1975. - MARTIN.ACHARD, Robert. Como ler o Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1970. - METZGER, Martin. História de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1972. - PURY, Albert de (Org). O pentatêuco em questão. Petrópolis: Vozes, 1996. - RENDTORFF, Rolf. Antigo Testamento: uma introdução. Santo André: Academia Cristã, 2009. - SCHMIDT, H. Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994. - SICRE, Jose Luiz. Introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1995.

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II – INSTITUIÇÕES FAMILIARES, CIVIS, MILITARES E RELIGIOSAS DE ISRAEL

O estudo das estruturas do Antigo Testamento é de vital

importância para o estudo da disciplina. Determinados textos podem ser resolvidos sem o intermédio da exegese, utilizando-se apenas o conhecimento da cultura e das instituições desse tempo, quer sejam elas sociais, familiares, religiosas ou políticas. Do conhecimento dessas estruturas resulta um princípio hermenêutico: não se podem adotar determinadas práticas antigas sob o pretexto de serem bíblicas pelo simples fato de pertencerem ao texto bíblico, mas compreendê-las a partir de um contexto local de caráter transitório. A seguir, as principais instituições do tempo do Antigo Testamento.

1. Instituições Familiares:

A. Família:

A tribo formava a maior unidade sociológica em Israel, seguida pelo clã e, posteriormente, pela família, a menor unidade sociológica. A família israelita é do tipo patriarcal. Em torno do patriarca giram todas as decisões da família, inclusive a escolha da esposa para um filho. Em torno dele existe a submissão de irmãos mais novos, inclusive. Depois de sua morte, assume a liderança o filho mais velho, o qual, sob a égide do pai, dirigirá os destinos de toda a família, que preservará a memória do patriarca (Gn.27.29). A expectativa em torno da família é uma prole, se possível, bem numerosa (Gn.24.60; Sl.127.3-5). A autoridade da mãe cresce de acordo com o número de filhos que ela tem; entretanto, se um homem morrer sem deixar filhos, o seu nome poderá ser redimido pelo seu irmão, o qual deverá casar-se com a viúva para suscitar-lhe descendência, ou seja, os filhos que nascerem dessa união serão considerados filhos do falecido. Quem se negasse a perpetuar o nome do irmão estaria sendo infiel não apenas com as relações de família, mas, sobretudo com o espírito de preservação da comunidade (Gn.38). Esta é a lei do Levirato, conforme Dt.25.5-10.

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B. Matrimônio:

No Oriente antigo, o matrimônio não era um assunto do direito civil ou do direito religioso, mas era um assunto puramente particular entre duas famílias, ou seja, entre o pai do noivo e o pai da noiva (Gn.24.2-11; Jz.14.2-4; Dt.7.3). O amor ocorria “post factum” (Gn.24.67). O pai do noivo pagava ao pai da noiva um dote por ela, a qual passava a partir de então para a situação de propriedade da família do noivo. Porém, existiam também os casos de amor espontâneo (Gn.28.11,20; 1Sm.18.20-22), sobretudo entre camponeses e pastores, onde os jovens se conheciam pelo trabalho diário (Rt.2.7-9; Gn.24.11-20; 1Sm.9.11). A idade para o casamento era para as moças, a partir de 13 anos (a partir da menarca), e para os rapazes, a partir dos 15 anos. A poligamia era aceita e geralmente ocorria em casos de homens mais ricos ou melhor situados financeiramente, uma vez que ter mais de uma mulher significava poder pagar mais dotes e, com isso, aumentar o patrimônio. Com relação ao divórcio, previsto na lei de Moisés, o direito de repudiar o cônjuge pertencia ao homem (Dt.24.1).

C. A Mulher Israelita e os Filhos:

Como já foi colocada à situação da mulher com relação ao marido, esta era de posse, mas isso não significava “escravidão”, uma vez que as famílias tinham servos para tais serviços. À mulher cabia a tarefa de lavar o rosto, as mãos e os pés do marido, além do respeito devido, por conta da própria estrutura patriarcal vigente em todo o Oriente antigo. Do ponto de vista bíblico, a situação da mulher perante o homem no Antigo Testamento tem duas vertentes: a primeira, chamada de “ideal”, está em Gênesis 2.18 (criação – mulher adjutora – ao lado do homem); a segunda, chamada “de fato”, está em Gênesis 3.16 (queda – mulher dominada – submissa ao homem). Da segunda, advém uma postura teológica vista desde os tempos antigos e difundida no rabinismo de que a mulher foi culpada por dar ouvidos à serpente e por seduzir o homem à queda. Assim, é comum localizar no livro de Provérbios textos que exaltam a mulher virtuosa, difícil de ser encontrada. Outro fato importante é que o ensino religioso não podia

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ser administrado às mulheres. Com relação à criança, no Antigo Testamento, a mesma é vista como um dom de Deus (Gn.4.1; 16.3; 33.5), uma recompensa pela fidelidade a Deus (Sl.127.3-5; 128.1-3). A educação dos filhos era feita no lar. Meninos e meninas eram educados pela mãe até uma idade próxima dos doze anos, quando os meninos viveriam sob a orientação paterna. Sabe-se, entretanto que as famílias ricas podiam confiar seus filhos a um educador especial, conforme 2Rs.10.1-5; 1Cr.27.32; Is.49.23.

D. Herança:

No Antigo Testamento, o direito de herança consistia nos bens móveis e imóveis do patriarca. Os herdeiros diretos eram os filhos masculinos, sendo o mais velho o ganhador da maior parte dos bens, conforme Dt.21.15-17. O pai não poderia transferir o direito do primogênito para outro filho (às vezes ocorria – Gn.49.3 e 1Rs.1.13). Caso não houvesse descendentes masculinos, a herança iria pra as filhas (Nm.27.1-11) e, na ausência de uns e de outros, passaria para os irmãos do falecido. Um deles se casaria com a viúva para suscitar descendência ao irmão falecido. Essas leis faziam com que a propriedade privada permanecesse sempre no clã.

E. Escravos:

Na Torah era proibida a escravidão no meio do povo hebreu (Lv.25.42). Os únicos casos de servidão – radicalmente distinto de qualquer modelo das culturas pagãs – eram de punições de criminosos que deveriam restituir o roubo com serviço (Êx.22.3), e de pobreza, quando as pessoas buscavam sustento trabalhando para outras, (Lv.25.39; Ex.21.7). Deve-se salientar também que os hebreus escravos, por motivo de crime ou pobreza, só podiam servir aos seus senhores por seis anos, sendo compulsoriamente libertados. Mesmo no caso dos pobres, a opção de se tornarem servos era deles, a fim de que não morressem de fome. Na verdade, o princípio da escravidão entre hebreus, nada mais era do que ser tratado exatamente como um trabalhador livre, um empregado pago (Lv.25.39,40). A Bíblia distingue

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entre escravo hebreu e escravo estrangeiro. O último podia ser escravo durante toda a vida, mas o escravo hebreu devia, por exemplo, ser libertado no ano sabático, ou seja, a cada sete anos (Lv.25.40). No que concerne aos escravos vindos do mundo pagão, a lei permitia aos hebreus que comprassem tais escravos (Lv.25.44), não para a servidão e opressão, mas como um meio de livrá-los do terrível sofrimento imposto pelas culturas pagãs de origem. Jó usou o argumento da criação para referendar os direitos dos seus servos, (Jó.31.13-15). Que direitos são esses? Os escravos tinham direito a um dia de descanso como qualquer trabalhador comum, (Êx.20.10; 23.12); Havia salário para o escravo, (Lv.25.40); Havia indenização por vexames provocados contra o escravo, (Êx.21.8,10); Os escravos tinham direito de se casarem com filhos ou filhas de seus senhores, tornando-se assim membros da família, (Êx.21.9); Se fugissem de seus senhores não poderiam ser devolvidos para os mesmos, (Dt.23.15,16). Isso era providencial porque os escravos fugiam de senhores que lhes maltratavam, e isso fazia com que seus donos perdessem o direito de seus serviços; A lei proibia todo e qualquer maltrato a um escravo. Se um escravo concordasse em ser um professo fiel ao Deus de Israel, ele tornava-se um membro da família, com privilégios que a outro membro poderia ser negado, (Lv.22.10-13); O ano sabático e o ano do jubileu eram datas de cada senhor dispensar os trabalhos de seus escravos, a menos que tais escravos se recusassem a deixar o serviço, sendo amados pelos seus senhores, se tornariam servos para sempre, (Êx.21.2,5). Havia leis que protegiam os escravos a cada possível circunstância degradante por parte dos senhores malvados, estes, para os quais era previsto punição. Por estes motivos, o mercado escravagista judaico não interessava aos mercadores de escravos, havendo entre eles até mesmo um ditado que dizia “Quem comprar um escravo judeu arranja um senhor para si mesmo.”

F. Morte:

Para o pensamento ocidental e para os gregos a morte é uma separação entre o corpo e o espírito. Já os hebreus antigos não pensavam dicotomicamente. Para eles a morte era uma perda de forças, uma inanição, o fim de toda a vitalidade. O que sobra do homem depois é

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uma sombra. O “Sheol” é o local conhecido como a “a terra de onde não se volta”. Porém, acredita-se que Deus pode tirá-lo de lá. Entretanto, não se sabe que lugar seria a alternativa. Na verdade, a idéia de morte para o hebreu antigo era pavorosa, por conta da dimensão do “momento presente” em que se encontravam. Agora, pode-se entender também uma das dimensões da lei do Levirato. Um homem, ao morrer, poderia sobreviver apenas no seu bom nome. Por isso, seu nome era perpetuado pela participação do seu irmão. Onã se negou a contribuir com esse processo de fidelidade à comunidade. Por isso, foi morto (Gn.38.8-10). O israelita honrava os seus mortos. Eram feitas romarias para os túmulos de antepassados célebrese, até hoje, esse costume existe. Em contrapartida, não havia o costume do embalsamamento como no Egito (Gn.50.26). O cadáver era envolto numa mortalha com perfume, sendo geralmente enterrado no mesmo dia do falecimento.

2. Instituições Civis e Militares:

A. Organização Tribal:

Como já foi visto o sistema tribal não era uma particularidade dos israelitas. Outros povos antigos utilizaram-no seguindo o modelo da Anfictionia. A Tribo era a reunião de vários clãs, os quais, por sua vez, representavam a reunião de várias famílias. Com o crescimento dos israelitas dentro do território palestinense, as tribos foram ocupando partes determinadas na região. Os grupos eram chefiados por um ancião líder com evidência entre os clãs.

B. Organização Militar:

Nos tempos anteriores à Monarquia, Israel não possuía um exército bem organizado. Os chefes das tribos convocavam e armavam os homens pertencentes à tribo para determinadas batalhas. Nessa época, outros povos habitantes da Palestina eram mais evoluídos militarmente. Somente a partir do tempo dos reis é que se formou um exército permanente com soldados profissionais. Apesar de 2Cr.26.11-15 pouca coisa se sabe sobre o tamanho dessa organização ou de

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particularidades tais como quem era considerado obrigado ao serviço militar. O exército era composto de Infantaria (atiradores de funda, flechas e lanças) e, depois de Davi, também de cavalaria com carros de batalha. A lei especificou a idade dos soldados, homens capazes a partir de vinte anos eram elegíveis para o serviço militar (Nm.1.2,3,18,20,45; 26.2,3). As isenções foram dadas a várias classes de homens:

(a) aqueles que haviam construído uma casa nova e não tinha

dedicado nem gostado; (b) aqueles que plantaram uma vinha e ainda não tinham

apreciado o seu fruto; (c) e aqueles que estavam "comprometidos a uma mulher, e não

a havian possuido", os homens ficavam com uma mente dividida em uma batalha;

(d) todos os que estavam "com medo e covardia" eram dispensados como perigo para a moral do exército, "para que seus irmãos não viessem a derreter o coração como o seu coração "(Dt.20.5.9).

A isenção dos homens recém-casados era obrigatório de acordo com Dt.24.5: "Quando um homem tomar uma mulher nova, ele não deve sair no exército, nem ser acusado de qualquer negócio, ele deve ser livre em casa um ano , e deve animar a sua esposa, com quem ele tem tomado. Também isentos do serviço militar eram os levitas (Nm.1.48,49). A partir dessas isenções, um princípio geral aparece: a família tem prioridade sobre a guerra. O jovem esposo não pode servir, a nova casa tem que vir primeiro. O agricultor de novos ganhos de isenção da mesma forma. Importantes como defesa, a continuidade da vida e da reconstrução piedosa são mais importantes.

3. Instituições Religiosas:

A. Santuários:

Com a implantação das tribos na Palestina e a conquista de determinadas regiões, alguns santuários que, antes eram usados pelos

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cananeus, foram “convertidos” para a adoração de Yahweh. Geralmente, esses santuários tinham uma história de origem relacionada com algum evento patriarcal, onde Yahweh, no passado, se revelara de forma especial (Gn.28.10-22). Enquanto não existia o templo em Jerusalém, esses santuários serviram como locais para centralização do culto da liga sacral, representada na Anfictionia. Pode-se dizer que, mesmo depois da construção do templo de Jerusalém, eles continuaram a exercer o seu papel no meio da comunidade. Os principais santuários são os seguintes:

a. Betel – “Casa de Deus”: Local situado entre Jerusalém e Siquém, onde os israelitas introduziram o culto a Yahweh (Gn.12.8 e 13.35). Desde a conquista de Canaã, os israelitas transferiram o nome do santuário para a cidade. Depois da divisão do reino de Israel, Betel ficou sendo o santuário nacional do reino do Norte.

b. Dan – “Juiz”: Cidade situada próxima ao Rio Jordão, na região Sul da Palestina. Recebeu esse nome por causa da tribo do mesmo nome. Foi elevada à categoria de santuário nacional juntamente com Betel pelo Rei Jeroboão I (1Rs.12.29; 2Rs.10.29; Am.8.14), numa tentativa de concorrência para com o templo de Jerusalém.

c. Siló: Cidade de Efraim ao norte de Betel, onde a arca era guardada num templo sob os cuidados da família sacerdotal de Eli (1Sm.1.3, 9, 24). Em virtude da corrupção do ministério que se dedicava à Arca, esse santuário foi destruído pelos filisteus. De acordo com o profeta Jeremias, isso foi um castigo de Deus (Jr.7.12.15).

B. Templo de Jerusalém:

O Templo de Jerusalém merece um estudo à parte. É

interessante notar que alguns defendem uma relação entre o Templo com o Tabernáculo e com a Arca de Noé. A Arca, como local de segurança e de encontro com Deus, prefigurando o culto; o Tabernáculo, como um “templo” móvel, local de sacrifício no deserto, enquanto Israel peregrinava rumo à terra prometida; o Templo, também

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como local de paz e segurança, onde o povo buscava o “totalmente outro” (Yahweh), numa relação de temor e mistério. Havia um significado do Templo para o israelita. Ele era o local escolhido por Yahweh para fazer habitar o Seu nome (2Cr.6.4.6; 7.16, 1Rs.8.27, 43.44) e não como presença substancial de Yahweh, pois Yahweh não cabe dentro do Templo, conforme 1Rs.8.27. Entretanto, a presença de Yahweh através do Seu nome fazia com que Israel sentisse segurança habitando em Jerusalém, criando assim uma espécie de crendice popular em torno de uma cidade indestrutível. Esta crendice foi combatida pelo profeta Jeremias (Jr.7.1.7), o qual tentou incutir uma religião que envolvesse as pessoas numa relação de obediência com implicações éticas. Houve basicamente três “templos”, conforme abaixo descritos:

a. O Templo de Salomão: Construído pelo Rei Salomão (950 a.C.) e destruído pelos babilônios em 586 a.C.

b. O Templo de Zorobabel: Trata-se da reconstrução do primeiro templo sob a liderança do sumo sacerdote Zorobabel, cerca de 18 anos após o retorno dos judeus do cativeiro (entre 520 e 515 a.C.). Esse templo tinha proporções mais modestas. No ano 167 a.C., uma perseguição movida pelos sírios sob Antíoco Epifânio IV, culminou com a humilhação desse santuário com o sacrifício de uma porca e a colocação de uma estátua de Júpiter, com a proibição ao culto judaico por quase quatro anos.

c. O Templo de Herodes: Este templo está mais para o tempo do Novo Testamento, dentro do período de dominação romana. Em 19 a.C., Herodes, o Grande, deu início a ampliação do Templo, que fazia parte de um projeto maior que visava a urbanização de Jerusalém, transformando-a numa arquitetura moderna. Essa reforma só foi concluída bem depois da morte de Herodes, ou seja, em 64 d.C. Impressionante é o fato que 6 anos após a sua inauguração, foi destruído pelo general romano Tito, cumprindo-se assim a palavra de Jesus: “Não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada!” (Mt.24.2b).

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C. Sacerdócio:

O estudo das religiões comparadas mostra que o sacerdócio não era uma exclusividade de Israel, mas fazia parte da religiosidade oriental antiga. Nos povos que cercavam Israel, principalmente na Mesopotâmia e no Egito, a função sacerdotal era exercida pelo rei, existindo uma hierarquia clerical que lhe dava assistência. Entre os patriarcas não havia esse sistema, pois o sacerdócio era familiar, não existindo templos nem sacerdotes especializados, apesar das narrativas sobre Melquisedeque (sacerdote estrangeiro) e os sacerdotes de Faraó. A partir da época de Moisés essa situação muda com o estabelecimento do sacerdócio Aarônico e, tempos depois, a tribo de Leví é eleita e consagrada para o serviço sacerdotal. No período dos juízes, a instituição sacerdotal tem vital importância para a comunidade, tendo sua estrutura abalada com a corrupção no ministério que se dedicava à Arca e com o requerimento de uma monarquia por parte do povo. A partir da Monarquia, o Rei exercerá muitas funções sacerdotais (oferece sacrifícios, abençoa o povo), mas não receberá por isso o título de sacerdote. Agora, a função sacerdotal está bem organizada, principalmente por causa do Templo de Jerusalém, centro do culto em Israel. Destacam-se duas ordens sacerdotais: a de Abiatar, descendente de Elí, e a de Zadoque, de origem desconhecida. Os descendentes deste último terão a primazia do exercício do sacerdócio a partir da reforma do Rei Josias em 621 a.C., juntamente com os levitas. Nesse período a instituição sacerdotal gozou de grande privilégio. Após a destruição do Templo e da Monarquia, os sacerdotes passaram a exercer uma grande influencia sobre o povo, seja na orientação da palavra (como o profeta-sacerdote Ezequiel), seja na reorganização do culto, dos símbolos religiosos e da vida do povo, principalmente no retorno do cativeiro babilônico. Com o desaparecimento dos profetas, a sua autoridade aumenta. Que funções eram da alçada do sacerdote? Em Israel, tinham basicamente duas:

a. Serviço do Culto: O sacerdote era o homem do templo. Lá recebia o povo, guardava a Arca, oferecia sacrifícios (tarefa precípua). Uma vez por ano o Sumo sacerdote (e apenas ele), no dia do Yom Kippur (Dia da Expiação), adentrava ao

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lugar mais reservado do Templo, o “Santo dos Santos”, para oferecer um sacrifício pelos pecados da Nação. Era também responsável por consagrações e purificações. Em sua plenitude, o sacerdote era mediador entre Deus e o povo.

b. Serviço da Palavra: Nos outros povos, o sacerdote exercia a adivinhação e respondia aos fiéis em suas consultas. Em Israel, a função era parecida uma vez que a prática da adivinhação era condenada pelo Deuteronômio. Parece que até a época de Davi ainda usavam o “Urim” e o “Tumim”, dois componentes das vestes sacerdotais utilizados nos “oráculos” sacerdotais. Ora, sabe-se que a Palavra de Deus chegou aos israelitas adaptada às circunstâncias mais variadas, por meio de profetas movidos pelo Espírito Santo, existindo também a forma tradicional que relatava os fatos históricos e a Torah (Lei, enquanto Preceito). Nas festas religiosas havia o ambiente propício para os sacerdotes trabalharem essa função, pois estavam ligadas a uma ação de Deus no passado. Parece que os sacerdotes não cumpriram fielmente essa tarefa, visto que receberam a dura crítica do Profeta Oséias (cap.4). O Profeta Jeremias já anuncia o tempo de um sacerdócio individual (31.34). No tempo do Novo Testamento, as tarefas sacerdotais estavam restritas ao Templo (Culto) e, com o aumento da autoridade dos Escribas, a função de ensino estava cada vez mais ligada a atividade dos Fariseus.

D. Sistema Sacrificial:

Em Israel são encontrados elementos do culto sacrificial

bastante parecidos com formas cananitas, por exemplo. Contudo, o Antigo Testamento, difere mais na essência e no valor do ritual sacrificial. Roland de Vaux (2003, p.489-491) menciona 4 elementos importantes do sacrifício israelita, o que aponta para o caráter ético desse culto. Primeiro, o DOM, ou seja, o reconhecimento de que Deus é soberano e dono de todas as coisas, doador de tudo para seu fiel (1Cr.29.14). O homem tributa a Deus através do sacrifício; Segundo, a

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COMUNHÃO, ou seja, a busca de união com Deus, tipificando a aliança através de uma refeição (Gn.26.28-30; 31.44-54; 1Co.10.18); Terceiro, a EXPIAÇÃO, a necessidade de restauração da aliança quebrada pelo ser humano pelo seu pecado, através dos ritos de sangue (Lv.17.11). A expiação é uma lembrança de que por si só o ser humano não tem condições de reentrar da presença de Deus. Sua culpa é transferida para algo ou alguém que tenha condições de cobrir o seu sangue com outro sangue; Quarto, o caráter de CONSAGRAÇÃO. Ao oferecer um sacrifício do tipo holocausto, um israelita estava simbolicamente “queimando totalmente” a si mesmo para o Senhor; Poderíamos acrescentar ainda outros distintivos do culto sacrificial israelita: Quinto, a SOCIALIZAÇÃO. As ofertas eram condizentes de acordo com a situação social de cada um. Pobres e ricos ofertavam de acordo com suas posses. Sexto, a HUMANIZAÇÃO. O sacerdote podia oferecer sacrifícios por si mesmo, caso viesse a pecar, algo quase que impensável em nossos dias em casos de quedas morais de líderes religiosos. Sétimo, o CARÁTER ÉTICO, visto não só na seriedade dos detalhes das ofertas, mas também na capacidade de reparação de erros contra o próximo e na busca de uma vida pautada por princípios éticos, a partir do sacrifício ofertado, o que implica, em última análise, num princípio de justiça; Oitavo, o caráter TERAPÊUTICO desses sacrifícios. O israelita ficava livre de sua culpa e isso implicava em sua saúde integral.

Segue na sequência um quadro com os principais sacrifícios praticados em Israel no Antigo Testamento: SACRIFÍCIO

LOCALIZ. NO AT

ELEMENTOS FINALIDADE

Holocausto ‘olah

Lv.1; 6.8-13

Boi, cordeiro ou ave do sexo masculino (rolinha ou

pombinho para o pobre). Sem defeito. Totalmente consumido.

Ato voluntário de adoração, completa

submissão e consagração a Deus. Expiação de Pecado por ignorância

em geral.

Oferta Pacífica

Zebah Shelamim

Lv.3; 7.11-34

Qualquer animal sem defeito do rebanho, acompanhado de

uma variedade de pães.

Ato voluntário de adoração c/ações de graças e comunhão (era acompanhada de

uma refeição comunitária).

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Oferta pelo Pecado Hatta’t

Lv.4.1-5,13; 6.24-30; 8.14-17; 16.3-22.

Novilho (sumo sacerdote e congregação); Bode

(príncipe); Cabra (pessoas do povo); Rolinha ou pombinho (pobre); Décima parte de uma efa de flor de farinha (muito

pobre)

Expiação obrigatória para determinados

pecados por ignorância; confissão de pecado; purificação da mácula.

Oferta pela Culpa ou

Sacrifício de Reparação ‘asham

Lv.5.14 a 6.7; 7.1-6.

Carneiro ou cordeiro. Exigia-se 20% de multa sobre o valor do objeto maculado.

Expiação obrigatória para pecados por

ignorância que exigissem restituição; purificação de

máculas.

Oferta de Manjares Minhah

Lv.2; 6.14-23;

Flor de farinha, azeite de oliva, incenso, bolos cozidos, assados ou fritos e sal; nada

de fermento nem mel; Geralmente acompanhava os

holocaustos e as ofertas pacíficas, junto com uma

libação (ofertar vinho no altar, bebendo dele).

Ato voluntário de adoração e de

reconhecimento da bondade e da

providência de Deus; Ato de dedicação a Deus.

Os Pães da Oblação – Segundo Lv.24.5.9 os pães da oblação (sacrifício) ou Lechem Happanim (“pão da face ou da presença”) eram 12 bolos de flor de farinha dispostos em duas fileiras sobre uma mesa que ficava diante do Santo dos Santos; eles eram renovados a cada shabbat. Eram um penhor da aliança das 12 tribos com o Senhor. Esses pães eram comidos pelos

sacerdotes e não iam para o altar. Sobre cada fileira era colocado incenso para ser queimado. As Ofertas de Incenso – Qetoret – A rigor, qualquer sacrifício queimado vira fumaça ou seja Qetoret. Contudo existiam oferendas aromáticas, determinados tipos de pós que recebiam brasas no chamado Altar dos Perfumes, diante do Santo dos Santos (Êx.30.34.38; Lv.10.1.2; Nm.16.1.2; Jr.6.20;41.5). Eram também incorporados aos pães da oblação; Parece que a idéia

do incenso tem relação direta com a “fumaça que sobe”, um ato de submissão a Deus para que ele possa aprovar, uma vez satisfeito; O apocalipse interpreta o incenso no altar como as

orações dos santos que sobem até o Senhor (Ap.5.8).

E. O Calendário e as Festas Religiosas:

Antes de entrarmos no assunto das festas religiosas devemos

trabalhar o calendário judeu no Antigo Testamento. De acordo com Gn.1.14 Deus criou o sol e a lua para fazerem separação entre o dia e a noite, além de serem sinais para marcar as épocas, os dias, os anos e as festas, ou seja, a Bíblia possui uma visão simples e prática da criação dos astros bem diferente da visão mítica dos povos da Mesopotâmia antiga. Quanto ao dia, Roland de Vaux (2003, p.217-218) defende que nos tempos mais antigos de Israel era contado de sol a sol, ou seja, começando com a manhã e indo até a noite (Dt.28.66-67; 1Sm.30.12).

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Entretanto, a partir do exílio babilônico, o calendário judaico sofreu forte influência e começou a contar o dia a partir do por do sol (Gn.1.5b,8b,13,19,23,31b; Ne.13.19; Et.4.16; Dn.8.14; Is.27.3). A semana judaica não é de fácil averiguação. Alguns tentaram propor que nos tempos mais antigos os patriarcas tinham, como os egípcios, 3 semanas de 10 dias por causa de Gn.24.55, Êx.12.3, Lv.16.29, entre outros. Provavelmente, por causa da mudança das fases lunares que ocorria geralmente em 7 dias, a semana judaica seguiu esse padrão. No calendário assírio-babilônico o 15º dia era o “shapattu”, um dia especial que marcava o meio do mês. O interessante é que o termo muito se assemelha ao termo hebraico “shabbat”. Aqui está à grande diferença entre a semana judaica e as dos outros povos: o sétimo dia de uma semana de 7 dias onde todos deviam parar para “respirar”. Já, o mês israelita era lunar, ou seja, começava a partir da aparição do crescente da lua nova e, passando pelas diversas fases da lua (a lua cheia acontecia por volta do 15º dia do mês), alcançava a próxima lua nova 29 dias e 12 horas depois, o que fazia com que os meses tivessem 29 e 30 dias alternadamente. Foram assimilados termos cananeus para designar os meses (abib, etanim, bul) e esses nomes designavam geralmente ciclos agrícolas. Bem depois do exílio foram atribuídos nomes babilônicos. Quanto ao ano judeu, o seu início ocorria com a chegada do mês primaveril da páscoa (mar/abr), de acordo com Êx.12.2; A atual festa de “Rosh Hashaná”(set/out) não possui menção no Antigo Testamento e até mesmo nos textos apócrifos pré-cristãos. Tornou-se mencionada na Mishnah a partir do início do segundo século depois de Cristo. Considerando-se a quantidade de dias num mês, o ano judeu era lunar e chegavam a 354 dias, 11 a menos que o ano solar, que tinha 365 dias. É provável que com o passar do tempo os judeus adaptaram seu ano lunar ao ano solar, que era mais completo, para fazer com que suas principais festas caíssem todos os anos sempre na mesma data.

As festas religiosas do calendário judaico possuíam alguns objetivos: Coincidiam com a mudança das estações e celebravam a colheita, lembrando assim as grandes bênçãos de Deus; Comemoravam os grandes eventos da história israelita, as ocasiões em que Deus tinha intervindo com poder para libertar seu povo. Devemos dividir as festas

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em dois grupos: as mais antigas e as mais recentes. As festas antigas mais significativas para os judeus são as seguintes:

a. A Páscoa (Pesach) e a festa dos Pães Ázimos (Matstsot): Estas duas festividades incluíam elementos pastoris e agrícolas e eram celebradas juntas para comemorar o feito de Yahweh no passado ao liberar a décima praga contra o Egito, com a morte dos primogênitos cujas casas não tinham em seus umbrais o sangue do cordeiro pascal. Daí, o nome da festa, cujo termo vem da raiz do verbo “Pasach” = (coxear, saltar, passar), uma referência ao fato que a morte pulou as casas daqueles que tinham celebrado a festa ordenada por Deus. Mas, também, e com mais propriedade, pode ser uma referência à “passagem” do Senhor (conforme Êx.12.12) pela terra do Egito, ferindo os primogênitos da terra, cujas casas não tinham a mancha de sangue do cordeiro pascal. Esse evento culminou com a saída dos hebreus do Egito (Êx.12.1-20; 23.15). No final do 14º dia (lua cheia) era imolado o cordeiro pascal e a partir do 15º dia se comiam pães sem fermento durante uma semana (março/abril).

b. A Festa das Semanas (Shavuot) ou da Colheita: Conhecida posteriormente pelo nome grego de Pentecostes, pois era celebrada 50 dias (ou 7 semanas) após o início da Páscoa. Era essencialmente uma celebração agrícola, na qual se oferecia a Deus as primícias da colheita (Êx.23.16; Lv.23.15-21). No Novo Testamento, existe um evento importante relacionado a esta festa, ou seja, a descida do Espírito Santo sobre a Igreja de Jerusalém no dia da festa, inaugurando assim o Seu ministério no meio da Igreja (maio/junho).

c. A Festa das Tendas (Sucot): Festa outonal celebrada no fim da colheita. Durante sete dias as pessoas saiam de suas casas com o objetivo de viver em tendas feitas com ramos. Tratava-se essencialmente de uma celebração agrícola de ação de graças, mas ela servia também para recordar os dias de vida e caminhada do povo pelo deserto, período em que o povo morou em cabanas (Lv.23.43). Atualmente é uma das festas que

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mais atrai turistas para Israel, conhecida também como Festa dos Tabernáculos (Êx.23.16 e Lv.23.33-46) (setembro/outubro).

Já as festas mais recentes, aquelas celebradas a partir dos últimos

séculos do Antigo Testamento, são:

a. Dia de Ano Novo (Rosh-hashaná): Como já foi asseverada, essa festa tornou-se mencionada na Mishnah a partir do início do segundo século depois de Cristo. É anunciado pelo Shofar (trompete feito de chifre de carneiro), um chamado ao arrependimento; É celebrada primeiramente na sinagoga e depois com uma refeição em casa. A cor branca é a que predomina nas vestes dos celebrantes e nos panos utilizados tanto na sinagoga quanto nas casas (set/out).

b. O Dia da Expiação (Yom Kippur): Surgiu com base em Lv.16; 23.27.32, provavelmente a partir da época de Esdras e Neemias. Era o dia no qual o sumo sacerdote entrava no local mais reservado do templo, “o santo dos santos”, para realizar um sacrifício pelos pecados da nação. Ocorre geralmente no 10º dia após o Rosh-hashaná. A explicação mais provável é que no Rosh-hashaná cada um pensa no que realizou durante o ano que passou, mas nem sempre consegue lembrar tudo de uma só vez. Por isso são dados mais dez dias para que todos possam assumir consciência de culpa por algum mal cometido e que tenha sido omitido. Atualmente é o dia mais sagrado para o judaísmo, mais importante mesmo que o Shabbat, pois é conhecido por “Shabbat Shabbaton” (comemora-se no mês de setembro/outubro).

c. Purim: Festa baseada no livro de Ester, uma comemoração pela salvação do povo judeu que morava na Pérsia das mãos do perverso Haman. Na sinagoga é feita a leitura completa do livro de Ester, além de festividades populares regadas de bailes à fantasia, troca de presentes, barulho com reco-recos e algumas comidas típicas. É celebrada entre os meses de fevereiro e março.

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d. Festa das Luzes (Chanukah): Baseada em 1Macabeus 4.36-59 e mencionada no Novo Testamento em Jo.10.22 (festa de dedicação), trata-se da comemoração da reconsagração do Templo de Jerusalém, ocorrida após a vitória de Judas Macabeu sobre os sírios por volta de 164 a.C. Sabemos que em 167 a.C. Antíoco Epifânio profanou o templo com o sacrifício de uma porca no altar sagrado e a colocação de uma estátua do deus grego Zeus. Uma tradição conta que para poderem reinaugurar o templo, os judeus precisavam de óleo sagrado para acender a menorah. O óleo que tinham só duraria um dia e para arranjar mais óleo sagrado demoraria ainda oito dias. Assim mesmo agradeceram a Deus e acenderam a menorah, a qual continuou a brilhar por oito dias, o que explica a comemoração da festa durante oito dias. Celebrada nas casas através de velas que são acesas na “chanuquiá” (candelabro de oito braços próprio da Chanukah), geralmente no mês de dezembro.

• Explicação sobre o Shabbat:

Uma pergunta que muitos fazem aqui é: Por que muitos

evangélicos não obedecem ao 4º mandamento da Lei de Deus? A resposta para essa pergunta deve passar primeiramente por uma compreensão sobre o mandamento da “guarda do sábado” ou “shabbat”, começando por sua história. Trata-se de uma das instituições mais antigas de Israel, tão antiga que é quase impossível, através da Bíblia, estabelecer um marco histórico. Preserva-se o testemunho de Êx.16.22-30 e 20.11 que aponta para o descanso sabático de Deus após a criação, como paradigma para o resto da história. Muito se tentou explicar o Shabbat como uma instituição israelita dependente de antecedentes histórico-culturais quer sejam dos babilônios, quer sejam dos cananeus. Até mesmo dos quenitas do deserto de Midian. Mas nenhuma prova concreta foi achada. Pelo contrário, evidências antagônicas surgiram. Por exemplo, textos babilônicos apontam como nefastos o 7º, o 14º, o 21º e o 28º dias do mês, dias onde o rei não deveria oferecer sacrifícios ou vestir roupas limpas, o sacerdote não deveria pronunciar seus oráculos e o médico não deveria tocar no

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doente. Seria um dia para não se fazer qualquer ação desejável. Entretanto, o 15º dia do mês babilônico era o “shappatu”, dia de lua cheia, um dia desejável, mas não um dia de descanso. Apesar de possíveis semelhanças culturais, não podemos reduzir o shabbat israelita ao calendário de outros povos. Cruesemann (1995, p.47-48) vê estreita relação entre o shabbat e a mudança das fases da lua, visto que alguns textos bíblicos fazem essa conexão (Is.1.13; 66.23; 2Rs.4.23; Os.2.11). Contudo, alguns teólogos (DE VAUX, 2003, p.517) rejeitam a idéia da derivação do shabbat das fases da lua que “são irreconciliáveis com as semanas de sete dias plenos sobrepondo-se a meses lunares de 29 dias e 12 horas e uma fração”. Para estes o shabbat tem mais relação com o costume quase universal de reservar dias para repouso, festas ou negócios.

Mas, ”qual dia é mesmo o sábado”, pergunta Chady (1988, p.32). Levando-se em consideração que o calendário judaico antigo se baseava na mudança das fases da lua e não no movimento da terra em torno do sol, então teremos um ano com meses variando de 28 a 29 dias, 12 horas e uma fração (ou no máximo, 30 dias), isto, porque a lua não muda de fase em exatos 7 dias. A necessidade de adaptação do calendário às mudanças de fase lunar fez também oscilar o dia da semana em que seria observado o shabbat, mas não o princípio que regia esses dias. Isso quer dizer que todos os dias de nossa semana no calendário solar já devem ter sido “sábado” no antigo calendário lunar judaico. Qual é literalmente o dia de “sábado”, eis uma pergunta difícil de responder. Julgamos mais importante e evidente no texto bíblico a localização do sentido do shabbat. O Antigo Testamento apresenta algumas motivações:

a. A primeira é que o Shabbat é do (ou para o) Senhor (Lv.23.3,38), um dia consagrado a Yahweh (Êx.31.15). Está no Decálogo e, como os demais mandamentos, não foi revogado. Afinal, mandamentos como “não matarás”, “não furtarás”, “não adulterarás”, entre outros, não foram anulados por causa da Graça de Jesus Cristo. São princípios eternos.

b. A segunda é que o próprio Senhor consagrou o Shabbat (Êx.20.8), sendo ele mesmo ator daquilo que ordenou ao seu

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povo, pois depois de ter trabalhado os 6 dias da criação, descansou no sétimo.

c. A terceira é que o shabbat é um sinal da aliança firmada entre o Senhor e o seu povo e sua observância é uma resposta do povo à salvação, conforme Is.58.13-14. Convém lembrar aqui que o conceito de salvação no Antigo Testamento está ligado à libertação de uma situação aflitiva, quer seja material, moral e também espiritual (Derrota nacional, exílio, fome, medo, pobreza, enfermidade), conforme Smith (2001, p.161). A salvação é um ato de amor misericordioso de Deus (Dt.7.7.8). Espera-se do ser humano uma resposta a esse ato salvífico.

d. A quarta é o grande valor social que o shabbat possuiu no Antigo Testamento (Dt.5.14.15), revelando a distinção de tratamento que o israelita livre deveria dar aos seus servos e servas, até mesmo aos animais que possuía, lembrando-se da situação de escravidão no Egito, onde o hebreu trabalhou de sem parar. É o direito de fazer “respirar” o servo e a serva. Aqui reside o sentido etimológico do shabbat, ou seja, o substantivo aparece com o artigo definido, traduzido, não como “sábado”, mas “o sábado”, mais literalmente “a parada”. Portanto, estamos falando de um “Yom hashabbatah”, “o dia da parada”, ou “o dia do sábado” que, era o sétimo, numa semana de sete dias. Cruesemann (ibid, p.50) interpreta esse mandamento à luz do prólogo de Êxodo 20, o qual informa que Israel foi liberto da terra de escravidão. Para ele existe uma espécie de “liberdade-comunicativa” nos mandamentos que se resume na idéia de que “eu liberto na medida com que fui liberto”. Ao observar o shabbat os israelitas estavam anunciando ao mundo que não fariam aos outros aquilo que lhes fizeram no passado.

O shabbat entrou num período de afunilamento hermenêutico

na medida em que as tradições dos escribas e fariseus próximos da época de Jesus se preocupavam com os detalhes das leis e com a produção de novas interpretações (legislações) para elas. Por isso a Mishnah desenvolvia o tema das 39 atividades que um judeu não podia realizar no shabbat. Jesus levantou-se contra as estreitas interpretações do sábado

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que tornavam o ser humano escravo da instituição. Proibia-se cuidar de doentes, carregar um leito, colher espigas, andar certa distância (Jo.5.10; Mc.3.2; Lc.13.14; Mt.12.12; At.1.12). Jesus proclamou a submissão do shabbat ante a necessidade de amar ao próximo e de salvar vidas. O shabbat foi feito por causa do homem e não o homem por causa do shabbat. Podemos dizer que não é o homem quem guarda o shabbat, mas o shabbat guarda o homem.

Podemos dizer que Jesus Cristo “re-significou” os mandamentos. Ele desceu às instâncias mais profundas do coração do ser humano e trabalhou suas motivações. Assim, quanto ao mandamento “não matarás”, Jesus, no sermão da montanha, trabalhou as raízes do ódio e da vingança, que também podem ser consideradas nessa “re-significação” como instrumentos de morte. Da mesma forma o fez com o “não adulterarás”. Não é bastante apenas o ato físico em si. Basta ao ser humano pensar em fazer, planejar, cobiçar, e já terá desagradado a Deus. Quanto ao mandamento do Shabbat, já vimos acima à interpretação de Jesus Cristo.

Mas, se ainda persiste a pergunta em torno da não obediência ao 4º mandamento da lei por parte dos evangélicos, então segue outro argumento. O apóstolo Paulo, em Colossenses 2.16-17 (e ainda em Rm.14.5-6; Gl.4.10-11) escreve para atacar heresias que se infiltraram na igreja primitiva que ensinavam a justificação dos homens pela obediência às obras da Lei judaica, incluindo a observação de ritos cerimoniais, tais como o shabbat. Não apenas judeus convertidos, mas também gentios deveriam observar os dias religiosos judaicos. De acordo com Pipa (2000, p.103), o que Paulo anulou foi a “observância do sétimo dia, mas não o princípio envolvido na lei do sábado”. Se, por um lado, o cristão do Novo Testamento não é mais obrigado a observar os ritos cerimonais, nem o sétimo dia do Antigo Testamento, por outro lado, permanece o princípio de um dia para o Senhor.

Não obstante a acusação de que foi o imperador Constantino, no século IV d.C., quem instituiu o domingo como dia de adoração (LEWIS apud PIPA, 2000, p.113), percebe-se no Novo Testamento que a Igreja foi migrando, por causa da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, o sentido teológico desse dia para o primeiro dia da semana, conforme Jo.20.1,19,26. Em At.20.7 a Igreja se reuniu para a pregação e

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para celebrar a Ceia do Senhor. Em 1Co.16.1,2 Paulo orienta para que o recolhimento de ofertas seja feito no primeiro dia da semana. Da mesma forma, em Ap.1.10, o apóstolo João recebe suas visões apocalípticas no primeiro dia da semana, chamado “o dia do Senhor”. Já Hb.4.9-10 (contexto em 3.7 a 4.13) serve-se de um trocadilho entre duas palavras gregas, uma significando o “descanso sabático” e outra o “descanso eterno”, mostrando que a obra da salvação foi consumada plenamente em Jesus Cristo e, como Deus descansou de suas obras criadas no sétimo dia, resta um repouso, uma alegoria para a cidade eterna e futura reservada para seu povo. Levando-se em consideração que a Epístola aos Hebreus que “todas as práticas cerimoniais do Antigo Testamento foram cumpridas em Cristo e que por isso estão revogadas” (PIPA, 2000, p.124), da mesma forma que o Israel do antigo pacto tinha uma promessa do descanso futuro juntamente com o seu dia de descanso, o povo de Deus do Novo Testamento, a igreja, tem sua promessa de descanso futuro com o seu dia de descanso, a saber, o primeiro dia da semana.

Eis aqui o grande desafio para uma releitura do shabbat, a saber, o desafio de atualizá-lo não a partir do legalismo tão presente em algumas denominações evangélicas, mas a partir do mandamento divino que nos orienta a sermos mordomos do tempo que o Senhor nos dá, consagrando os dias para Ele e para a família; mordomos de uma nova terapia, a de agradecer a Deus pelo tempo, a de poder curtir o tempo, a de poder parar no tempo e ver o tempo passar e, sobretudo, usar esse tempo para a adoração ao Criador de todas as coisas.

A questão, então, não é pelo porque da não obediência por parte de evangélicos ao shabbat judaico. Reconhecemos dois extremos: de um lado o legalismo fixista; do outro, o afrouxamento e falta de seriedade para com o shabbat cristão. Em um mundo tão agitado como o nosso, devemos pensar nisso.

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BIBLIOGRAFIA DO CAPÍTULO II: - ARENHOEVEL, Diego. Assim se Formou a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1986. - BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento. V.1,2. São Paulo: ASTE, 1968. - BÍBLIA – Português. Bíblia Sagrada. Tradução: Escola Bíblica de Jerusalém, nova ed. rev. São Paulo: Paulus, 1985. - ______. Bíblia Sagrada. Tradução: Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2000. - BORN, A.Van Den (Org). Dicionário enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1977. - BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1981. - BRUEGGEMAN, W. A imaginação profética, São Paulo: Paulinas, 1983. - CHARPENTIER, E. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1986. - DEISSLER, Alfons. O anúncio do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1984. - DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2003. - FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. - GRELOT, Pierre. Homem, quem és ? São Paulo: Paulinas, 1982. - GRUEN, Wolfgang. O tempo que se chama hoje: uma introdução ao Antigo Testamento. 11ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1985. - HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1975. - LAPPLE, Alfred. A Bíblia hoje. São Paulo: Paulinas, 1984. - MARTIN.ACHARD, Robert. Como ler o Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1970. - METZGER, Martin. História de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1972. - PAPE, Dionísio. Justiça e esperança para hoje: a mensagem dos profetas menores. São Paulo: ABU, 1983. - PURY, Albert de (Org). O pentatêuco em questão. Petrópolis: Vozes, 1996. - RENDTORFF, Rolf. Antigo Testamento: uma introdução. Santo André: Academia Cristã, 2009. - SCHMIDT, H. Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994. - SELLIN, Ernst; FOHRER, Georg. Introdução ao Antigo Testamento, v1,2. São Paulo: Paulinas, 1980. - SICRE, Jose Luiz. Introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1995.

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III – INTRODUÇÃO AO PENTATEUCO:

1. Introdução:

Os primeiros cinco Livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), geralmente chamados de “a Lei” ou “o Pentateuco”, integram a primeira e mais importante seção do Antigo Testamento, tanto na Bíblia Judaica como na Cristã. A divisão tripartida da Bíblia Hebraica em Lei, Profetas e Escritos (Salmos) pode ser encontrada no Novo Testamento (Lc.24.44.: “E disse-lhes: São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na Lei de Moisés, e nos Profetas, e nos Salmos.”) e no Prólogo de Siraque (c.180 a.C.). A distribuição dos livros do Antigo Testamento nas Bíblias Cristãs, baseada na do Antigo Testamento Grego (a Septuaginta; c.150 a.C.)*, também concede ao Pentateuco esta primazia.

2. Septuaginta:

Como conseqüência dos setenta anos de cativeiro na Babilônia, e em virtude da forte influência do aramaico, a língua hebraica enfraqueceu-se. Todavia, fiéis à tradição de preservar os oráculos em sua própria língua, os judeus não permitiam ainda que os livros sagrados fossem vertidos para outro idioma. Alguns séculos mais tarde, porém, essa atitude exclusivista e ortodoxa teria de dar lugar a um senso mais prático e liberal. Com o estabelecimento do império de Alexandre o Grande, a partir de 331 a.C., a língua grega popularizou-se a ponto de tornar imprescindível que para ela se fizesse uma tradução das Sagradas Escrituras.

A mais célebre versão das Escrituras do Antigo Testamento hebreu e a mais antiga e a mais completa que se conhece, é a dos Setenta. Deriva este nome, figurado pelos algarismos romanos LXX, por haver sido feita por setenta tradutores que a ela se entregaram no tempo de Ptolomeu Filadelfo entre 285 e 247 a.C. Um sacerdote judaico de nome Aristóbulo, residente em Alexandria, no reinado de Ptolomeu Filometor, 181-146 a.C. referido em 2 Macabeus 1.10 (apócrifo), e citado por Clemente de Alexandria e por Euzébio, diz que, quando as partes

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originais referentes à história dos hebreus haviam sido vertidas para o grego, já os livros da Lei estavam traduzidos para esta língua sob a direção de Demétrio Falero no reinado de Ptolomeu Filadelfo. A mesma tradução, consideravelmente embelezada, se lê em uma carta escrita por Aristeas a seu irmão, tida como espúria pelos modernos doutores. A mesma história de Aristeas repete-a Josefo com ligeiras alterações, que de certo a tinha diante dos olhos. Diz ele que Demétrios Falero, bibliotecário de Ptolomeu Filadelfo, que reinou de 283-247 a.C. desejou adicionar à sua biblioteca de 200.000 volumes um exemplar dos livros da lei dos hebreus, traduzidos para a língua grega, a fim de serem mais bem entendidos. O rei consentiu nisso e pediu a Eleazar, sumo sacerdote em Jerusalém, que lhe mandasse setenta e dois intérpretes peritos, homens de idade madura, seis de cada tribo, para fazerem a tradução. Estes setenta e dois doutores chegaram a Alexandria levando consigo a lei, escrita com letras de ouro em rolos de pergaminho. Foram gentilmente recebidos e os aboletaram em uma solitária habitação na ilha de Faros, situada no porto de Alexandria, onde transcreveram a lei e a interpretaram em setenta e dois dias, Antig. 12.2, 1-13; cont. Apiom 2.4. Estas antigas informações acerca da origem da versão grega são muitas valiosas, se bem que não se possa depositar em seus pormenores absoluta confiança, e bem assim quanto ao escopo da obra. É admissível, não obstante, que a Versão dos Setenta teve sua origem no Egito, que o Pentateuco foi traduzido para a língua grega no tempo de Ptolomeu Filadelfo; que os demais livros foram gradualmente traduzidos e a obra terminada no ano 150 a.C. Jesus, filho de Siraque, no ano 132 a.C. (Prólogo ao Ecclus), refere-se a uma versão grega da lei dos profetas e de outros livros. É provável que a obra tenha sido revista no período dos Macabeus. A versão é obra de muitos tradutores, como se vê pela diferença de estilo e de método. Em várias partes existem notáveis desigualdades e muitas incorporações. A tradução do Pentateuco, exceto lugares poéticos, Gn.49; Dt.22 e 23, é a melhor parte da obra, e o todo revela uma tradução fiel, se bem que não é literal. Os tradutores dos Provérbios e de Jó mostram-se peritos no estilo, mas pouco proficientes em hebraico, que em alguns lugares traduziram um pouco arbitrariamente. Fizeram a tradução dos Provérbios sobre um texto hebreu, muito diferente do atual texto massorético. O sentido geral dos

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Salmos é muito bem reproduzido. O Eclesiastes está servilmente traduzido. A tradução dos profetas é de caráter muito desigual; a de Amós e Ezequiel é sofrível; a de Isaías deixa muito a desejar; a de Jeremias parece ter sido feita sobre outro texto que não o massorético. De todos os livros do Antigo Testamento, o de Daniel é o mais pobremente traduzido, de modo que os antigos doutores, a começar por Ireneu e Hipólito, substituíram-no pela versão de Teodócio. Cristo e os seus apóstolos serviam-se freqüentemente da Versão dos Setenta. Citando o Antigo Testamento, faziam-no literalmente, ou de memória, sem alteração essencial; em outros casos, cingia-se ao texto hebreu. Existem cerca de 350 citações do Antigo Testamento, nos evangelhos, nas epístolas e nos Atos, e somente se encontram umas 50 diferenças materiais da versão grega. O eunuco que Filipe encontrou lendo as Escrituras servia-se do texto grego, At.8.30-33. Fizeram-se três principais revisões dos Setenta: uma no ano 236 a.D. e duas outras, antes do ano 311. A de Orígenes na Palestina, a de Luciano na Ásia Menor e em Constantinopla, e a de Hesíquios no Egito. O manuscrito dos Setenta que existe no Vaticano considera-se o mais perfeito, de acordo com o texto original; presume-se que seja a reprodução do mesmo texto de que se serviu Orígenes e que aparece na quinta coluna da sua Hexapla. A revisão de Luciano foi editada em parte por Lagarde e por Oesterley. Luciano era presbítero de Antioquia e morreu mártir em Nicomédia no ano 311, ou 312. Deu à luz o texto revisto dos Setenta, baseado na comparação do texto grego comum, com o texto hebreu, considerado bom, porém diferente do massorético. Hesíquios era bispo no Egito e sofreu o martírio no ano 310 ou 311; o seu trabalho perdeu-se. Existe, contudo, um códice, assinalado pela letra Q, depositado na biblioteca do Vaticano contendo os profetas que lhe é atribuído.

- Outras versões gregas menores:

Depois da destruição de Jerusalém no ano 70, a versão dos Setenta perdeu muito do seu valor entre os judeus, em parte em conseqüência do modo por que os cristãos a usavam para fundamentar as doutrinas de Cristo, e em parte, porque o seu estilo era falho de

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elegância. Por causa disto, os judeus fizeram três versões dos livros canônicos do Antigo Testamento, no segundo século: (1) A tradução de Áqüila, natural do Ponto e prosélito do judaísmo, viveu no tempo do imperador Adriano, e tentou fazer uma versão literal das Escrituras hebraicas, com o fim de contrariar o emprego que os cristãos faziam dos Setenta para fundamentar as suas doutrinas. A tradução era tão servilmente liberal, que em muitos casos se tornava obscura aos leitores que não conheciam bem o hebreu como o grego.

(2) A revisão dos Setenta por Teodócio, judeu prosélito, natural de Éfeso, segundo Ireneu, e segundo Euzébio, um ebionita que acreditava na missão do Messias, mas não na divindade de Cristo. Viveu no ano 160, porque dele faz menção Justino Mártir. Na revisão que fez dos Setenta, serviu-se tanto da tradução elegante, porém, perifrástica feita por Símaco, samaritano ebionita. Orígenes arranjou o texto hebreu em quatro versões diferentes, em seis colunas paralelas para efeito de estudo comparativo. Na primeira coluna vinha o texto hebreu; na segunda, o texto hebreu em caracteres gregos; na terceira, a versão de Áqüila; na quarta, a de Símaco; na quinta, a dos Setenta; e na sexta, a revisão de Teodócio. Em virtude destas seis colunas tomou o nome de Hexapla. Na coluna destinada ao texto dos Setenta, marcava com um sinal palavras que não encontrava no texto hebreu. Emendava o texto grego, suprindo as palavras do texto hebraico que lhe faltavam, assinalando-as por um asterisco. Conservou a mesma grafia hebraica para os nomes próprios.

Orígenes preparou uma edição de menor formato, contendo as últimas quatro colunas, que se ficou chamando Tétrapla. Estas duas obras foram depositadas na biblioteca fundada por Panfilo, discípulo de Orígenes em Cesaréia. S. Jerônimo as consultou no quarto século e ainda existiam no século sexto. Parece que desapareceram, quando os maometanos invadiram a cidade em 639. Alguns fragmentos da grande obra de Orígenes ainda se conservam nas citações que dela fizeram os santos padres. A coluna dos Setenta foi dada à luz por Panfilo e Euzébio, e vertida para o siríaco por Paulo, bispo de

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Tela em 617-18. Orígenes adotou método infeliz, comparando o texto dos Setenta com o texto hebreu do seu tempo. Uma vez que o desideratum dos sábios é restaurar o texto grego como o deixaram as mãos dos tradutores, porque esse texto iria lançar luz sobre o texto hebreu por eles usado? Ainda mais, os sinais e asteriscos que ele usou, foram muitas vezes negligenciados pelos copistas e talvez mesmo os tivessem empregado sem a devida cautela, de modo que os acréscimos feitos à versão dos Setenta e às porções dela que não encontrou no texto hebreu, nunca mais se puderam descobrir.

3. Autor e Data:

Embora não se afirme no próprio Pentateuco que este haja sido escrito por Moisés em sua totalidade, outros livros do Antigo Testamento citam-no como obra dele (Js.1.7-8; 23.6; 1Re.2.3; 2Re.14.6; Ed.3.2; Ne.8.1; Dn.9.11-13). Certas partes muito importantes do Pentateuco são atribuídas a ele (Êx.17.14; Dt.31.24-26). Os escritores do Novo Testamento estão de pleno acordo com os do Antigo. Falam dos cinco livros em geral como “a Lei de Moisés” (At.13.39; 15.5; Hb.10.28). Para eles, “ler Moisés” equivale a ler o Pentateuco (2Co.3.15.: “E até hoje quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles”). Finalmente, as palavras do próprio Jesus dão testemunho de que Moisés é o autor: (Jo.5.46.: “Porque, se vós crêsseis em Moisés, creríeis em mim; porque de mim escreveu ele”; Mt.8.4; 19.8; Mc.7.10; Lc.16.31; 24.27).

Moisés, mais do que qualquer outro homem tinha preparo, experiência e gênio que o capacitavam para escrever o Pentateuco. Considerando-se que foi criado no palácio dos faraós, (At.7.22.: “foi instruído em toda a ciência dos egípcios; e era poderoso em suas palavras e obras”) foi testemunha ocular dos acontecimentos do êxodo e da peregrinação no deserto. Mantinha a mais íntima comunhão com Deus e recebia revelações especiais. Como hebreu Moisés tinha acesso às genealogias bem como as tradições orais e escritas de seu povo, e durante os longos anos da peregrinação de Israel, teve o tempo necessário para meditar e escrever. E, sobretudo, possuía notáveis dons e gênio extraordinário, do que dá testemunho de seu papel como líder, legislador e profeta.

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• Teoria documentária da Alta Crítica:

Há dois séculos, eruditos de tendência racionalista puseram em dúvida a paternidade mosaica do Pentateuco. Criaram a Teoria Documentária da Alta Crítica, segundo a qual os primeiros cinco livros da Bíblia são uma compilação de documentos redigidos, em sua maior parte, no período de Esdras (444 a.C.). No entender desses autores, o documento mais antigo que se encontra no Pentateuco data do tempo de Salomão. Julgam que o Deuteronômio é uma “fraude piedosa” escrita pelos sacerdotes no reinado de Josias tendo em mira promover um avivamento; que o Gênesis consiste apenas em lendas nacionais de Israel.

Durante os séculos XVIII e XIX, nas universidades alemãs, foram aplicados à Bíblia métodos de investigação e de análise que os historiadores haviam desenvolvido para reconstruir o passado. Procuraram descobrir a data de cada livro, seu autor, seu propósito e os característicos do estilo e da linguagem. Perguntaram-se: Quais são as fontes originais dos documentos bíblicos? São dignas de confiança? Qual é o significado e o fundo histórico de cada um deles? A este movimento deu-se o nome de Alta Crítica.

A Baixa Crítica, por outro lado, é a que se ocupa do estudo do texto em si. Observa os manuscritos existentes para estabelecer qual o texto mais aproximado do original. Suas investigações têm deixado textos muito exatos e dignos de confiança.

A crítica bíblica, tanto a textual como a alta, pode lançar muita luz sobre as Escrituras se aplicada com reverência e erudição. Os pais da Igreja, os reformadores e os eruditos evangélicos têm realizado tais estudos com grande benefício. Não obstante, os críticos alemães, sob a influência do racionalismo daquele tempo, chegaram a conclusões, que comprovadas, poderiam destruir toda a confiança na integridade das Escrituras.

Os críticos alemães aproximaram-se do estudo da Bíblia com certos pressupostos ou preconceitos: 1) Rejeitaram todo o elemento milagroso. Isto é, para eles a Bíblia não é inspirada por Deus, porém um livro a mais, um livro como outro qualquer. 2) Aceitaram a teoria ideada pelo filósofo Hegel de que a religião dos hebreus tinha seguido um

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processo evolutivo. Segundo esta teoria, no princípio Israel acreditava em muitos espíritos, depois foi desenvolvendo a crença em um só Deus, e mais tarde chegou à fase sacerdotal. Também o culto hebreu evoluiu quanto aos seus sacrifícios, suas festas sagradas e seu sacerdócio.

Os críticos racionalistas desenvolveram a teoria de que o Pentateuco não foi escrito por Moisés, mas é uma recompilação de documentos redigidos, em sua maior parte, no século V a.C.. Jean Astruc (1753), professor de medicina em Paris, iniciou esta teoria, notando que se usava o nome “Eloim” (Deus) em algumas passagens do Gênesis, e “Jeová” em outras. Para Astruc, isto era prova de que Moisés havia usado dois documentos como fontes, cada um com sua maneira especial de designar a Deus, para escrever o Gênesis. Mais tarde, os estudiosos alemães descobriram o que lhes pareciam certas repetições, diferenças de estilo e discordância nas narrativas. Chegaram à conclusão de que Moisés não escreveu o Pentateuco; o escritor foi um redator desconhecido que empregou várias fontes ao escrevê-lo.

Para fins do século XIX, Julius Wellhausen e Karl H. Graf desenvolveram a “Hipótese Graf-Wellhausen”, que foi aceita como a base fundamental da Alta Crítica. Usaram a teoria da evolução religiosa de Israel como um dos meios para distinguir os supostos documentos que constituiriam o Pentateuco. Também a utilizaram para datar esses documentos. Por exemplo, se lhes parecia que determinado documento tinha uma teologia mais abstrata do que outro, chegavam à conclusão de que havia sido redigido em data posterior, já que a religião ia ficando cada vez mais complicada. De modo que estabeleceram datas segundo a medida de desenvolvimento religioso que eles imaginavam. Relegaram o livro de Gênesis, em sua maior parte, a uma coleção de mitos cananeus, adaptados pelos hebreus.

Wellhausen e Graf denominaram os supostos documentos da seguinte maneira:

1) O “Jeovista” (J), que prefere o nome Jeová. Teria sido redigido possivelmente no reinado de Salomão e considerado o mais antigo.

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2) O “Eloísta” (E) que designa a Deus com o nome comum de Eloim. Teria sido escrito depois do primeiro documento, por volta do século VIII a.C.

3) O Código Deuteronômico (D) compreenderia todo o livro de Deuteronômio. Teria sido escrito no reinado de Josias pelos sacerdotes que usaram esta fraude para promover um despertamento religioso (2Rs.22.8).

4) O Código Sacerdotal (P) é o que coloca especial interesse na organização do tabernáculo, do culto e dos sacrifícios. Poderia ter adquirido corpo durante o cativeiro babilônico, e forneceu o plano geral do Pentateuco.

Consideraram que os documentos, com exceção do “D”,

correm paralelamente através dos primeiros livros do Pentateuco. A obra final teria sido redigida no século V a.C., provavelmente por Esdras. Esta especulação de Wellhausen e Graf chama-se “A Teoria Documentada, J. E. D. P.”.

Os eruditos conservadores rejeitam de plano a teoria documentária J. E. D. P.. Dizem que os títulos de Deus não estão distribuídos no Gênesis de maneira tal que se possa dividir o livro como sustentam os da teoria documentária. Por exemplo, não se encontra o nome de Jeová em dezessete capítulos, mas os críticos atribuem porções de cada um desses capítulos ao documento “Jeovista”. Além do mais, não deve causar-nos estranheza que Moisés tenha designado a Deus com mais de um título. No Corão (livro sagrado dos mulçumanos), há algumas passagens que empregam o título divino “Alá” e outros “Rabe”, e nem por isso se atribui o Corão a vários autores.

E que dizer então quanto aos relatos duplicados e contraditórios que os críticos supostamente encontram em Gênesis? Os conservadores explicam que alguns são compilações, tais como as ordens de que os animais entrem na arca (Gn.6.19 e 7.2); o primeiro era uma ordem geral e o segundo dá um entalhe adicional. Os dois relatos da criação (Gn.1.1-2.4a. e 2.4b – 2.25) são suplementares. O primeiro apresenta a obra geral da criação, e o segundo dá o enfoque do homem e seu ambiente.

Também, chamam a atenção certas diferenças de linguagem, estilo e ponto de vista entre os diferentes documentos. Contudo, estes

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juízos são muito subjetivos. Não nos deve estranhar que quando Moisés escreveu as partes legais e cerimoniais tenha empregado um vocabulário e estilo um tanto diferentes do que empregou nas partes históricas. Ademais, Gordan Wenham, erudito contemporâneo, versado em Antigo Testamento, diz que as diferenças de estilo, usadas para distinguir as fontes do Pentateuco, já não têm significado à luz das antigas convenções literárias. Diz outro erudito moderno, R. K. Harrison, que inclusive certo defensor da Alta Crítica admite que “as diferenças são poucas e podem ser classificadas como acidentais”.

Os arqueólogos descobriram muitíssimas evidências que confirmam a historicidade de grande parte do livro do Gênesis e por isso já não se pode denominá-lo “uma coleção de lendas cananéias adaptadas pelos hebreus”. Mas, não encontraram prova alguma de supostos documentos que tenham existido antes do Pentateuco.

Um autor evangélico ressalta quão absurdo são as conclusões da Alta Crítica: exige que aceitemos como reais um número de documentos, autores e recopiladores sem o mínimo indício de evidência externa. “Não deixaram atrás de si marca nenhuma, nem na literatura, nem na tradição hebraica, tão tenaz para com a lembrança de seus grandes nomes”. De modo que o estudioso evangélico não deve crer que o Pentateuco seja obra de um redator da época de Esdras. Parece que os documentos J.E.D.P. existem somente na imaginação dos eruditos que preferem aceitar as especulações dos racionalistas em vez de crer na doutrina da inspiração divina.

Muitos estudiosos conservadores acham provável que Moisés, ao escrever o livro do Gênesis, tenha empregado genealogias e tradições escritas (Moisés menciona especificamente “o livro das gerações de Adão”, em Gn.5.1). William Ross observa que o tom pessoal que encontramos na oração de Abraão a favor de Sodoma, no relato do sacrifício de Isaque, e nas palavras de José ao dar-se a conhecer a seus irmãos “é precisamente o que esperaríamos, se o livro de Moisés fosse baseado em notas biográficas anteriores”. Provavelmente, essas valiosas memórias foram transmitidas de uma geração para outra desde os tempos muito remotos. Não nos cause estranheza que Deus possa ter guiado Moisés a incorporar tais documentos em seus escritos. Seriam igualmente inspirados e autênticos.

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Também é notável haver alguns acréscimos e retoques insignificantes de palavras arcaicas, feitas à obra original de Moisés (Deuteronômio 34) foi escrito por outra pessoa (o Talmude, livro dos rabinos, o atribui a Josué). Gênesis 36.31 indica que havia rei em Israel, algo que não existia na época de Moisés. Em Gênesis 14.14 dá-se o nome “Dã” à antiga cidade de “Laís”, nome que lhe foi dado depois da conquista. Pode-se atribuir isto as notas esclarecedoras, ou a mudanças de nomes geográficos arcaicos, introduzidos para tornar mais claro o relato. Provavelmente foram agregados pelos copistas das Escrituras, ou por algum personagem (como o profeta Samuel). Não obstante, estes retoques não seriam de grande importância nem afetariam a integridade do texto. Assim, pois, são contundentes tanto a evidência interna como a externa de que Moisés escreveu o Pentateuco. Muitos trechos contêm frases, nomes e costumes do Egito, indicativos de que o autor tinha conhecimento pessoal de sua cultura e de sua geografia, algo que dificilmente teria outro escritor em Canaã, vários séculos depois de Moisés. Por exemplo, consideremos os nomes egípcios: Potifar (dom do deus do sol, Ra), Zafnate-Paneá (Deus fala, ele vive), Asenate (pertencente à deusa Neit) e On, antigo nome de Heliópolis (Gn.37.36; 41.45; 50). Notemos, também, que o autor menciona até os vasos de madeira e os de pedra que os egípcios usavam para guardar a água que tiravam do rio Nilo. O célebre arqueólogo W. F. Albright diz que no Êxodo se encontram em forma correta tantos detalhes arcaicos que seria insustentável atribuí-los a invenções posteriores.

Também pelas referências feitas com relação a certos materiais do tabernáculo, deduzimos que o autor conhecia a península do Sinai. Por exemplo, as peles de texugos se referem segundo certos eruditos, às peles de um animal da região do mar Vermelho; a “onicha”, usada como ingrediente do incenso (Êx.30.34) era da concha de um caracol da mesma região. Evidentemente, as passagens foram escritas por alguém que conhecia a rota da peregrinação de Israel e não por um escritor no cativeiro babilônico, ou na restauração, séculos depois.

Do mesmo modo, os conservadores mostram que o Deuteronômio foi escrito no período de Moisés. O ponto de referência do autor do livro é o de uma pessoa que ainda não entrou em Canaã. A forma em que está escrito é a dos tratados entre os senhores e seus

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vassalos do Oriente Médio no segundo milênio antes de Cristo. Por isso, estranhamos que a Alta Crítica tenha dado como data destes livros setecentos ou mil anos depois.

A arqueologia também confirma que muitos dos acontecimentos do livro de Gênesis são realmente históricos. Por exemplo, os pormenores da tomada de Sodoma, descrita no capítulo 14 do Gênesis, coincidem com assombrosa exatidão com o que os arqueólogos descobriram. (Nisto se incluem: os nomes dos quatro reis, o movimento dos povos, e a rota que os invasores tomaram, chamada “caminho real”. Depois do ano 1200 a.C., a condição da região mudou radicalmente, e essa rota de caravanas deixou de ser utilizada.) O arqueólogo Albright declarou que alguns dos detalhes do capítulo 14 nos levam de volta à Idade do Bronze (período médio, entre 2100 e 1560 a.C.). Não é muito provável que um escritor que vivesse séculos depois conhecesse tais detalhes.

Além do mais, nas ruínas de Mari (sobre o rio Eufrades) e de Nuzu (sobre um afluente do rio Tigre) foram encontradas tábuas de argila da época dos patriarcas. Nelas se descrevem leis e costumes, tais como as que permitiam que o homem sem filhos desse sua herança a um escravo (Gn.15.3), e uma mulher estéril entregasse sua criada a seu marido para suscitar descendência (Gn.16.2). Do mesmo modo, as tábuas contêm nomes equivalentes ou semelhantes aos de Abraão, Naor (Nacor), Benjamim e muitos outros. Por isso, tais provas refutam a teoria da Alta Crítica de que o livro do Gênesis é uma coletânea de mitos e lendas do primeiro milênio antes de Cristo. A arqueologia demonstra cada vez mais que o Pentateuco apresenta detalhes históricos exatos, e que foi escrito na época de Moisés. Há razão ainda para duvidar de que o grande líder do êxodo foi seu autor?

• A sólida evidência da autoria mosaica do Pentateuco:

É comum nos círculos liberais ou neo-ortodoxos afirmar que Moisés nada tem a ver com a composição do Pentateuco. A maior parte dos críticos que sustentam essa versão acredita que os ditos livros de Moisés foram escritos por diversos autores anônimos, tendo início no século IX a.C. e terminando com a parte final, o “Código sacerdotal”, por volta de 445 a.C. – a tempo de Esdras lê-lo em voz alta na Festa dos

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Tabernáculos (Ne.8). Outros especialistas, de modo especial os da escola da crítica da forma, acham que só pequeníssima parte do Pentateuco foi escrita até o tempo de Esdras, ainda que algumas partes tenham existido antes sob a forma de tradição oral, durante séculos – talvez remontando ao tempo do próprio Moisés. Tendo em vista o consenso entre os especialistas não-evangélicos de que as vindicações da autoria mosaica são todas especiosas, é bom que façamos uma revisão, pelo menos breve, da evidência sólida e irresistível, tanto interna como externa, de que o Pentateuco todo é obra autêntica de Moisés sob a inspiração do Espírito Santo.

- Testemunho bíblico da autoria mosaica:

O Pentateuco com freqüência se refere a Moisés como seu autor, a começar por Êxodo 17.14: “Então, disse o SENHOR a Moisés: Escreve isto para memória num livro e repete-o a Josué, porque eu hei de riscar totalmente a memória de Amaleque de debaixo do céu”. Em Êxodo 24.4 lemos: “Moisés escreveu todas as palavras do SENHOR...”. Lemos, ainda, no versículo 7: “E tomou o livro da aliança e o leu ao povo...”. Outras referências ao fato de Moisés ter escrito o Pentateuco encontram-se em Êxodo 34.27, Números 33.1,2 e Deuteronômio 31.9, das quais, na última temos: “Esta lei, escreveu-a Moisés e a deu aos sacerdotes...”. Dois versículos adiante encontramos uma exigência severa a respeito do futuro: “...quando todo o Israel vier a comparecer perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que este escolher, lerás esta lei diante de todo o Israel”. Essa norma sabidamente percorre Êxodo, Levítico, Números e a maior parte de Deuteronômio (pelo menos até o capítulo 30 inclusive).

Mais tarde, após a morte de Moisés, o Senhor deu estas instruções a Josué, sucessor de Moisés: “Não cesses de falar deste livro da lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado a fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido” (Js.1.8). Negar a autoria de Moisés significa que todos os versículos acima citados são infundados e indignos de aceitação. Josué 8.32-34 registra que a congregação de Israel estava reunida fora da cidade de Siquém, no sopé do monte Ebal e do monte Gerizim, quando Josué leu em voz alta a lei de Moisés, escrita em tábuas de pedra, e os trechos de Levítico e de

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Deuteronômio referentes às bênçãos e às maldições, como Moisés havia feito anteriormente (Dt.27.28). Se a hipótese documentária estiver correta, esse relato também deve ser rejeitado por se tratar de mera invencionice. Outras referências do Antigo Testamento à autoridade mosaica do Pentateuco são 1Rs.2.3; 2Rs.14.6; 21.8; Ed.6.18; Ne.13.1; Dn.9.11-13 e Ml.4.4. Todos esses testemunhos também deveriam ser totalmente rejeitados por se tratar de erros.

Cristo e os apóstolos igualmente deram testemunho inequívoco de que Moisés foi autor da Toráh (Lei). Em João 5.46,57, Jesus disse: “Porque, se de fato crêsseis em Moisés, também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito. Se, porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?”. Deverás! De maneira semelhante, em João 7.19 Jesus disse: “Não vos deu Moisés a Lei? Contudo, ninguém dentre vós a observa...”. Se a confirmação de Cristo de que Moisés foi de fato o autor do Pentateuco é descartado – como de fato o faz a teoria da crítica moderna – segue-se indubitavelmente a negação da autoridade do próprio Cristo. Pois, se o Senhor estava enganado a respeito de uma verdade factual e histórica desse tipo, poderia enganar-se também a respeito de princípios e doutrinas que estivesse ensinando. Em Atos 3.22 Pedro diz a seus compatriotas: “Disse, na verdade, Moisés: O Senhor Deus vos suscitará dentre vossos irmãos um profeta semelhante a mim; a ele ouvireis em tudo quanto vos disser”. Afirmou Paulo em Romanos 10.5: “Ora, Moisés escreveu que o homem que praticar a justiça decorrente da lei viverá, por ela”. Mas a teoria J.E.D.P., de Wellhausen, e a crítica moderna racionalista negam que Moisés tenha escrito quaisquer destas coisas. Isso significa que Cristo e os apóstolos estavam totalmente enganados ao julgarem que Moisés as tenha escrito de fato. Um erro dessa categoria, tratando-se de fatos históricos que podem ser testados, levanta séria dúvida quanto a poderem os ensinos teológicos que tratam de assuntos metafísicos fora de nossa capacidade de comprovação, ser aceitos como dignos de confiança ou cheios de autoridade. Assim vemos que a questão da autenticidade de Moisés como escritor do Pentateuco é assunto da maior importância para o cristão. A autoridade do próprio Cristo está em jogo nessa questão.

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- Evidência interna da composição mosaica:

Além dos testemunhos diretamente oriundos dos trechos do Pentateuco mencionados acima, temos o testemunho de alusões fortuitas a acontecimentos ou questões da época, a situações sociais ou políticas ou a assuntos relacionados ao clima ou à geografia. Quando todos esses fatores são pesados de modo imparcial e correto, chega-se à seguinte conclusão: o autor desses livros e seus leitores devem ter vivido originariamente no Egito. Além disso, esses fatores revelam que tiveram pouco ou nenhum conhecimento direto da Palestina, dela sabendo apenas por tradições orais, vindas de seus antepassados. Citamos as seguintes evidências:

1. O clima e as condições atmosféricas mencionadas no Êxodo são tipicamente egípcios, não palestinos (com referência a seqüência da colheita, em relação a pratica da saraiva, em Êxodo 9.31,32).

2. As árvores e os animais a que se faz referência de Êxodo a Deuteronômio são todos naturais do Egito ou da península do Sinai, e nenhum deles é peculiar à Palestina. A árvore chamada acácia é nativa do Egito e do Sinai, mas dificilmente se encontra em Canaã, exceto ao redor do mar Morto. Essa árvore forneceu madeira para grande parte do mobiliário do tabernáculo. As peles com que o exterior do tabernáculo foi recoberto eram de um animal chamado “tahâs”, ou dugongo, que é estranho à palestina, mas encontrado nos mares adjacentes ao Egito e ao monte Sinai. Quanto à lista de animais limpos e imundos que encontramos em Levítico 11 e em Deuteronômio 14, alguns são peculiares à península do Sinai, como o “dî’son”, ou ovelha montes (Dt.14.5); o “ya’nah”, ou avestruz (Lv.11.16); e o “ot’o”, ou antílope selvagem (Dt.14.5). É difícil imaginar como uma lista desse tipo poderia ter sido feita nove séculos depois, após o povo de Israel ter vivido todo esse tempo numa terra que não tinha nenhum desses animais.

3. Mais conclusivas ainda são as referências geográficas que anunciam perspectivas de uma pessoa não familiarizada com a Palestina, mas boa conhecedora do Egito. a) Em Gênesis 13.10,

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em que o autor deseja transmitir aos leitores como era verde o vale do Jordão, ele o compara a uma localidade bem conhecida da região oriental do delta do Nilo, perto de Mendes, entre Busiris e Tânis. Declara ele que o vale do Jordão era “como a terra do Egito, como quem vai para Zoar”. Nada poderia ser mais evidente com base nessa referência casual que o fato de o autor estar escrevendo para um grupo de pessoas não familiarizadas com a aparência das regiões da Palestina, mas pessoalmente familiarizadas com a aparência do baixo Egito. Tal familiaridade só poderia crescer no próprio Egito, e isso se enquadra muito bem numa datação mosaica para composição do livro de Gênesis. b) A fundação de Quiriate-Arba (nome pré-israelita de Hebrom, no sul de Judá), segundo Números 13.22, ocorreu “sete anos antes de Zoa no Egito”. Isso implica com toda a clareza que os leitores de Moisés estavam bem cientes da data da fundação de Zoã, mas desconheciam quando foi que Hebrom – que se tornaria uma das mais importantes cidades de Israel após a conquista – havia sido fundada. c) Em Gênesis 33.18 há uma referência a “Salém, cidade de Siquém na terra de Canaã”. Para um povo que havia vivido na palestina mais de sete séculos a partir da conquista (de acordo com a data atribuída a essa passagem pela escola de Wellhausen), parece-nos estranho ser preciso dizer que uma cidade tão importante como Siquém ficava “na terra de Canaã”. Todavia, seria perfeitamente cabível um povo que ainda não se houvesse estabelecido ali – como era o caso do povo conduzido por Moisés.

4. A atmosfera e a ambientação do deserto prevalecem por toda a narrativa, desde Êxodo 16 até o fim de Deuteronômio (conquanto haja algumas referências à agricultura, como previsões das condições da terra que logo o povo haveria de conquistar). A importância atribuída a um grande tabernáculo (tenda) como lugar central de culto e reunião dificilmente teria pertinência a um público leitor que houvesse vivido na Palestina mais de sete séculos, e só estivesse familiarizado com o templo de Salomão ou com o de Zorobabel como santuário central. A explicação de Wellhausen para isso, que o tabernáculo era simplesmente extrapolação artificial do

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templo, não se harmoniza aos fatos reais; o templo era muito diferente em tamanho e no mobiliário em comparação ao tabernáculo, descrito na “Toráh”. Todavia, nem mesmo essa teoria de ficção histórica supre alguma explicação sobre por que os contemporâneos de Esdras teriam estado tão interessados num mero tabernáculo a ponto de a ele devotar tantos capítulos em Êxodo (25-40) e a ele referir-se em quase três quartas partes de Levítico e também com muita freqüência em Números e em Deuteronômio. Não se consegue encontrar em toda a literatura mundial outro exemplo de tamanha atenção dada a uma estrutura que na verdade (segundo Wellhausen) jamais existiu, e nunca exerceu influência sobre a geração para a qual aqueles textos foram escritos.

5. Há grande evidência de natureza técnica e lingüista que se pode reunir em apoio da existência de um contexto egípcio para todo o texto da Toráh. Podem-se encontrar exemplos cheios de minúcias a esse respeito. Basta que se diga que existe um enorme número de nomes egípcios e de palavras tomadas de empréstimo da língua egípcia que se encontram mais no Pentateuco que em qualquer outra seção das Escrituras. Isso é o que se poderia esperar de um autor que houvesse sido educado no Egito e escrevesse para um povo nascido e vivido nesse mesmo ambiente.

6. Se o Pentateuco tivesse sido escrito entre os séculos IX e V a.C., como crê e ensina aquela Escola Documentária, e extrapolasse as práticas religiosas e as perspectivas políticas dos séculos V e VI, indo até os tempos de Moisés (mediante uma mentira piedosa), seria razoável esperar que esse documento espúrio, forjado muito tempo depois de Jerusalém tornar-se capital do reino israelita, ter-se-ia referido a Jerusalém por esse nome em muitas ocasiões. É certo que teria incluído algumas profecias sobre as futuras conquistas dessa cidade e de sua situação privilegiada como localidade permanente do templo de Jeová. Entretanto, um exame minucioso de todo o texto de Gênesis até Deuteronômio leva-nos à espantosa conclusão de que o nome de Jerusalém jamais é mencionado. É certo que o monte Moriá

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aparece em Gênesis 22 como o local em que Abraão tentou oferecer o filho, Isaque, em sacrifício, mas nenhuma idéia há ali de que aquele seria o local do futuro templo.

Em Gênesis 14 há uma referência a Melquisedeque como “rei de Salém” – não de “Jerusalém” –, tampouco temos algum indício de que mais tarde essa cidade haveria de tornar-se a capital política e religiosa da comunidade hebraica. Em Deuteronômio 12.5-18 encontramos referências a um “lugar que o SENHOR, vosso Deus, escolher de todas as vossas tribos, para ali pôr o seu nome e sua habitação; e para lá ireis”. Tais referências, é verdade, são tão genéricas que podem incluir cidades como Siló e Gibeão, em que o tabernáculo foi guardado por longos períodos antes da construção do templo de Salomão; entretanto, é justo presumir que Deuteronômio 12.5 tenha a intenção de prever o estabelecimento do templo de Jerusalém. No entanto, é quase impossível explicar as razões por que essa obra de Moisés, alegadamente espúria, escrita muito mais tarde do que se supõe, deixe de mencionar Jerusalém pelo nome, embora houvesse o máximo de incentivos para que esse nome ali constasse. Só a suposição de que a Toráh foi autenticamente mosaica, ou pelo menos composta muito antes da conquista de Jerusalém no ano 1000 a.C., pode-se explicar a ausência do nome dessa cidade.

7. Ao datar documentos literários, é da maior importância avaliar os termos-chave aparentemente em uso na época em que o autor executou seu trabalho. No caso de um livro religioso, os títulos pelos quais Deus é caracteristicamente chamado assumem grande importância. Durante o período entre 850-450 a.C., encontramos crescente realce atribuído ao título de “YHWH seba’ôt” – IEOVAH Tsvaót – “O SENHOR dos Exércitos”. Esse nome confere especial realce à onipotência do Deus da aliança de Israel, e ocorre cerca de 67 vezes em Isaías (final do séc. VIII a.C.), 83 vezes em Jeremias (final do séc. VII e início do VI a.C.), treze vezes nos dois capítulos de Ageu (final do séc. VI a.C.) e 51 vezes nos catorze capítulos de Zacarias (final do séc. VI e início do V a.C.). Esses profetas cobrem quase todo o tempo durante o qual o texto do Pentateuco esteve sendo

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composto na forma dos manuscritos J, E, D e P. Entretanto, é de se espantar que nem uma única vez o título “IEOVÁH dos Exércitos” se encontre no Pentateuco todo. Da perspectiva da ciência da literatura comparada, esse fato seria considerado o mais forte tipo de evidência de que a Toráh teria sido composta numa época em que o título “IEOVÁH dos Exércitos” não era utilizado. Portanto, toda a Toráh, até mesmo o chamado “Código Sacerdotal”, devem ter sido compostos antes do século VIII a.C.. Caso essa dedução seja válida, toda a hipótese documentária deve ser totalmente abandonada.

8. Se a parte do Pentateuco chamada “Código Sacerdotal” de fato foi composta nos séculos VI e V a.C., seria de esperar que algumas instituições caracteristicamente levíticas e certos valores culturais do povo, introduzidos a partir dos dias de Davi, fossem mencionados com alguma freqüência no Pentateuco. Dentre estes estariam os corais, formados pelos cantores do templo, os quais Davi organizou lançando 24 sortes (1Cr.25), e aos quais tantas referências se fazem nos títulos dos Salmos. No entanto, nenhum coral organizado por cantores levíticos é mencionado uma única vez na Toráh.

A ordem dos escribas certamente teria sido mencionada, pois o grande chefe deles, o próprio Esdras, estaria concluindo grandes porções do Pentateuco a tempo de celebrar-se a Festa dos Tabernáculos em 445 a.C. – segundo a hipótese de Wellhausen. Entretanto, por alguma estranha razão, nenhuma referência se percebe, de modo algum, à ordem dos escribas, nem à função deles, e tampouco um indício profético de que um dia haveria de existir um corpo de guardiões do texto sagrado.

A partir da época de Salomão passou a existir uma importantíssima classe de serviçais no templo, conhecidos como “netinins” (“os que foram dados”, isto é, dados para o serviço do Senhor no templo). O número dos netinins (392) que se uniram aos 42 mil que retornaram da Babilônia em 538 a.C. está incluído nas estatísticas de Esdras 2.58 e de Neemias 7.60, ao lado da contagem dos levitas e dos sacerdotes. No entanto, não existem

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referências a eles ou previsão a respeito deles no “Documento p”. Que estranho!

Desde o tempo de Davi, “o mavioso salmista de Israel” (2Sm.23.1), fazia-se uso abundante de vários instrumentos musicais (de corda, de sopro, de percussão – desses três tipos) em relação ao culto público diante de Deus. É certo que a sansão de Moisés para tão importante característica do culto levítico deveria aparecer na Toráh, tivesse esta sido composta tardiamente, no século X a.C., ou depois. É de surpreender, no entanto, que não exista uma única referência a instrumentos para acompanhamento musical no culto do tabernáculo. É impossível harmonizar esse fato com a data de composição no século V a.C.. Não resta a menor dúvida de que um corpo sacerdotal profissional como esse, descrito pelos autores da Crítica Documentária, teria tido a maior das motivações para incluir tais instituições tão queridas entre as ordenações de “Moisés”.

9. O Pentateuco, especialmente Deuteronômio, contem várias referências à futura conquista de Canaã pelos descendentes de Abraão. O autor de Deuteronômio escreve cheio de confiança em que as hostes hebraicas venceriam toda oposição dentro da terra de Canaã, derrotariam todos os exércitos inimigos e implodiriam todas as cidades que decidissem atacar. Isso se reflete com clareza em todas as repetidas exortações para que destruíssem todos os templos e santuários cananeus, e tudo se reduzisse a pó (Dt.7.5; 12.2,3; Ex.23.24; 34.13).

Visto que todas as nações defendem seus relicários sagrados com a máxima força de que são capazes, a presunção de que Israel seria capaz de destruir todos os santuários pagãos por toda a terra presume a supremacia militar do povo de “IEOVÁH” após a invasão de Canaã. Em que outra circunstância na carreira da nação hebréia poder-se-ia nutrir tão grande confiança senão nos dias de Moisés e de Josué? Aqui, outra vez, a evidência interna aponta com força para uma data de composição nos dias de Moisés. Nada poderia estar mais fora da realidade do que supor que Josias, em 621 a.C., quando Judá era um pequenino estado vassalo sob domínio do Império

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Assírio, pudesse almejar destruir todos os altares idólatras, demolir todos os altos e árvores veneradas e esmagar todas as estruturas de templos, reduzindo-os a pó, de norte a sul, de leste a oeste da Palestina. Como poderia a pequenina colônia que lutava para sobreviver esperar eliminar todos os relicários religiosos de Dã até Berseba?

A única conclusão que se pode tirar das ordens exaradas no Pentateuco para que se destruíssem todos os traços da idolatria é que estava na capacidade militar de Israel o poder de fazer cumprir essas ordens por todo o país. Nada, porém, seria menos cabível nos dias de Zacarias, de Esdras e de Neemias que planejar e executar tão grande extirpação do culto idólatra em toda a Palestina. A grande batalha deles era a sobrevivência, em face das reiteradas más colheitas e grandes hostilidades por parte das nações vizinhas. Nem o “Documento p” do tempo de Esdras, nem o Deuteronômio dos dias de Josias poderiam harmonizar-se com as passagens aqui mencionadas.

10. Deuteronômio 13.2-11 prescreve a pena de morte por apedrejamento para qualquer idólatra ou falso profeta, fosse irmão, esposa, filho. Os versículos de 12 a 17 prosseguem dizendo que até mesmo uma cidade toda que se voltasse para a idolatria deveria ter todos os seus moradores sentenciados à morte. Todas as suas casas deveriam ser reduzidas a pó e cinza, todas as propriedades condenadas a essa excomunhão. Isso não é teoria visionária, mas ordem séria com procedimentos investigadores nela embutidos, o que refletia um programa que deveria ser posto em execução no Israel da época. No entanto, quando examinamos o registro bíblico da situação espiritual de Judá no século VII a.C. (ou, na verdade, no VIII, a partir do tempo de Acaz), descobrimos que a adoração de ídolos era tolerada em quase todos os recantos do reino – exceto durante a reforma religiosa empreendida por Ezequias e por Josias. Isso teria induzido à destruição de todas as cidades e vilas, incluindo-se Jerusalém. Ninguém cria leis cuja implementação seja totalmente impossível de ser executada, por causa das condições reinantes. A única época em que tal legislação poderia ter sido posta em

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vigor foi a dos dias de Moisés e de Josué – e possivelmente nos dias de Davi. (Já nos dias de Salomão, o culto às relíquias nos “lugares altos” estava sendo praticado)

- Qualificações de Moisés como autor do Pentateuco:

Tendo em mente as referências bíblicas da educação acadêmica

de Moisés, torna-se logo patente que ele possuía as qualificações certas para empreender uma obra do porte da Toráh.

1. Moisés recebeu excelente formação como príncipe criado na corte do Egito (At.7.22), num país em que a cultura era superior a de qualquer outra nação do Crescente Fértil. Até mesmo os cabos dos espelhos e das escovas de dente eram adornados com inscrições hieroglíficos, bem como as paredes de todos os prédios da administração pública.

2. De seus ancestrais israelitas, Moisés deve ter recebido as leis orais que eram obedecidas na Mesopotâmia, de onde Abraão tinha vindo.

3. De sua mãe e parentes consangüíneos, Moisés deve ter recebido conhecimento pleno da vida dos patriarcas, desde Adão até José; e, com base nessa riqueza de tradição oral, ele teria recebido todas as informações contidas no livro de Gênesis, por estar sob a orientação do Espírito Santo ao redigir o texto inspirado da Toráh.

4. Tendo residido por muitos anos no Egito e também na terra de Midiã, no Sinai, Moisés teria adquirido conhecimento pessoal sobre o clima, sobre as práticas agrícolas e sobre as peculiaridades geográficas tanto egípcias como da península do Sinai, o que se torna óbvio por todo o texto desses quatro livros (Êxodo até Deuteronômio), que tratam do mundo do século XV a.C., nas vizinhanças do mar Vermelho e do rio Nilo.

5. Sendo designado por Deus para ser o fundador de uma nova nação, nação que deveria ser governada pela lei concedida pelo Senhor, Moisés teria tido o máximo de incentivo para compor sua obra monumental, incluindo-se Gênesis, com todos os

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relatos integrais do trato gracioso de Deus para com os ancestrais dos israelitas antes da migração da família de Jacó ao Egito. E, visto que a jovem nação deveria ser governada segundo as leis de Deus, em vez de por um déspota real, à semelhança das nações pagãs circunvizinhas, Moisés recebeu a responsabilidade de compor (sob inspiração e orientação de Deus) uma lista cuidadosamente pormenorizada de todas as leis que Deus havia concedido a fim de guiar seu povo pelo caminho da justiça, da piedade e do culto. Ao longo do período de quarenta anos de peregrinação no deserto, Moisés tinha tido o tempo e oportunidade de que precisava para esboçar o sistema integral das leis religiosas e civis que Deus lhe havia revelado, as quais serviriam de constituição da nova comunidade teocrática.

Portanto, Moisés tinha todos os incentivos e todas as

qualificações para compor essa obra magnífica.

- A falácia principal em que se baseia a hipótese documentária:

A mais séria de todas as pressuposições falsas subjacentes à

hipótese documentária e à abordagem crítica da forma (a primeira presume que nenhuma parte da Toráh teve forma escrita senão depois de meados do século IX a.C., e a segunda afirma que todo o texto hebraico do Pentateuco só foi redigido depois do exílio), é que os israelitas esperaram durante muitos séculos, após a fundação de sua comunidade, até ver a Toráh na forma escrita. Tal pressuposição desaparece diante de todas as descobertas arqueológicas dos últimos oitenta anos, segundo as quais todos os vizinhos de Israel conservaram registros escritos sobre sua história e religião desde antes dos tempos de Moisés. Talvez as grandes quantidades de inscrições em pedra, barro e papiro exumadas na Mesopotâmia e no Egito poderiam ser questionadas como comprovante necessário do extenso uso da escrita na própria Palestina – até a descoberta em 1887 dos tijolos de barro de Tell el-Amarna, no Egito, que datam de cerca de 1420 a 1380 a.C. (época de Moisés e Josué). Esse arquivo contém centenas de tabuinhas escritas em caracteres cuneiformes babilônicos (nessa época era a língua da

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correspondência diplomática do Oriente Próximo). Eram comunicações à corte egípcia por parte de oficiais e de reis palestinos. Muitas dessas cartas contêm relatos de invasões e ataques dos Há-bi-ru e dos chamados As-gaz (a pronúncia desse logograma pode ter sido “habiru” também) contra as cidades-estados de Canaã.

O próprio Wellhausen chegou à conclusão de que teria de desprezar completamente essa evidência, após a publicação inicial desses tijolos de Amarna, em 1890, mais ou menos. Ele se recusou a considerar as implicações dos fatos descobertos e agora estabelecidos de que Canaã, até mesmo antes da conquista israelita completar-se, possuía uma civilização de elevado nível de instrução literária (ainda que escrevessem na língua babilônica, em vez de em seu próprio idioma). Os proponentes posteriores da hipótese documentária revelaram-se igualmente incapazes de abertura no que concerne às implicações dessas descobertas.

O golpe mais cruel sobreveio, porém, quando decifraram as inscrições alfabéticas de Serabit el-Khadim, na região das minas de turquesa do Sinai, exploradas pelos egípcios durante o II milênio a.C.. Tais inscrições consistiam num novo jogo de símbolos alfabéticos, parecidos com os hieróglifos egípcios, mas escritos num dialeto cananeu muito parecido com o hebraico. Eles continham registros de quotas de mineração e dedicatórias à deusa fenícia Baalat (ao que tudo indica, equivalente da divindade egípcia Hathor). O estilo irregular da execução exclui toda possibilidade de atribuir esses escritos a um grupo seleto de escribas profissionais. Existe apenas uma conclusão possível a ser tirada dessas inscrições (publicadas em “The proto-Sinaitic inscriptions and their decipherment” – Cambridge, Harvard University, 1966). Já nos séculos XVII e XVI a.C., até mesmo as pessoas das camadas sociais mais baixas da população Cananéia, os escravos das minas que trabalhavam sob feitores egípcios, sabiam ler e escrever em sua própria língua.

Uma terceira descoberta importante foi a biblioteca de tabuinhas de barro que estava na região Síria ao norte de Ras es-Shamra, conhecida em tempos antigos como Ugarite, onde havia muitas centenas de tabuinhas escritas por volta de 1400 a.C., num dialeto cuneiforme cananeu, muito parecido com o hebraico. Ao lado de cartas comerciais e documentos do governo (alguns dos quais registrados em caracteres babilônicos cuneiformes), esses tijolos continham muita literatura religiosa, relacionada

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aos amores, às guerras e a aventuras empolgantes de várias divindades do panteão cananeu, como El, Anate, Baal, Asserate, Mote e muitos outros, composta em forma poética, à semelhança da poesia hebraica de paralelismos, como as que se encontram no Pentateuco e nos Salmos de Davi. Temos aqui novamente provas irrefutáveis de que os conquistadores hebreus sob o comando de Josué, tendo emigrado de uma cultura que atribuía grande valor às letras, no Egito, chegaram à outra civilização que usava a escrita com incomum liberdade. Além disso, a alta porcentagem de literatura religiosa encontrada tanto em Ras Shamra como em Serabit el-Khadim nega veementemente a suposição de que, de todos os povos do antigo Oriente Próximo, somente os hebreus não se interessavam nem se esforçaram por dar forma escrita a seus conceitos religiosos, senão mil anos mais tarde. Só a mais inalterável modalidade de desvio mental por parte de estudiosos liberais pode explicar como desprezam e evitam a grande massa de dados objetivos que agora dão apoio à proposição de que Moisés poderia ter escrito e com toda a probabilidade realmente escreveu os livros que lhe são atribuídos.

Uma falácia mais absurda ainda acha-se sob a abordagem moderna da teoria documentária, não só com respeito à autoria do Pentateuco, mas também no que se refere à composição de Isaías 40-66 como obra autêntica do próprio Isaías, que viveu no século VIII a.C., e com respeito à data do século VI para o livro de Daniel. Todas essas teorias racionalistas que atribuem datação muito posterior e natureza espúria a esses livros do Antigo Testamento repousam numa suposição firmemente sustentada: a impossibilidade categórica da profecia bem-sucedida de acontecimentos futuros. Toma-se por absolutamente certa a inexistência da revelação divina autêntica nas Escrituras, de modo que todas as profecias que pela aparência teriam sido cumpridas na verdade foi resultado de mentira piedosa. Noutras palavras, as predições não foram escritas senão depois de “cumpridas” – ou quando prestes a cumprir-se. O resultado é uma falácia lógica conhecida como “petitio principii”, ou “raciocínio em círculo”. Isso significa que a Bíblia dá testemunho da existência de um Deus pessoal que opera milagres e revelou seus propósitos para o futuro a profetas escolhidos para orientação e o estímulo de seu povo. Mediante a abundância de

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predições cumpridas, as Escrituras fornecem a mais impressionante evidência dos fenômenos sobrenaturais, demonstradas por um Deus pessoal que tem cuidado de seu povo o suficiente para revelar-se a ele, e revelar sua vontade quanto à salvação. No entanto, o racionalista aborda essa evidência toda com a mente completamente fechada, presumindo que não existe o chamado sobrenatural, e que, portanto, não é possível que se cumpram as profecias. Existindo esse tipo de desvio, é impossível dar a devida atenção a qualquer evidência que diga respeito ao assunto que estamos investigando.

Após cuidadosa ponderação e estudo da história do surgimento da alta crítica moderna, segundo a prática dos adeptos da doutrina documentária e da escola da crítica da forma, este autor está convicto de que a razão básica para a recusa em aceitar a evidência arqueológica objetiva, que parece hostil ante a teoria desses críticos, que desaprovam o sobrenatural, encontra-se na mentalidade de autodefesa essencialmente subjetiva. Assim é que se torna absolutamente essencial que os documentaristas atribuam as predições do cativeiro babilônico e a subseqüente restauração (como as que encontramos em Levítico 26 e em Deuteronômio 28) a uma época em que tais acontecimentos já pertenciam ao passado. Essa é a verdade filosófica para que se atribuam tais partes (que estão incluídas no “Código dos Sacerdotes” ou “Escola Deuteronômica”) ao século V a.C., ou mil anos depois da época em que as pessoas crêem terem sido escritas. É que, obviamente, nenhum mortal pode predizer com sucesso o que ainda jaz no futuro, ainda que a uns poucos anos.

Visto que um Moisés do século XV a.C. precisaria ter previsto o que haveria de acontecer em 587 a.C. a fim de poder escrever uns capítulos como esses, na verdade ele nunca poderia tê-los escrito. No entanto, o Pentateuco afirma que Moisés apenas escreveu o que o Deus Todo-Poderoso lhe revelou; ele não registrou o mero produto de sua previsão profética. Daí não haver nenhuma dificuldade lógica em supor que Moisés poderia ter previsto, sob inspiração divina, acontecimentos que ainda estavam num futuro longínquo – ou que Isaías no início do século VII poderia saber de antemão do cativeiro babilônico e do subseqüente retorno a Judá, ou que Daniel poderia ter predito os grandes acontecimentos da história ainda por ocorrerem entre seus próprios dias (530 a.C.) e a vinda de Antíoco Epifânio em 170 a.C.. Em

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todos esses casos a profecia foi proveniente de Deus, o Senhor da história, e não de nenhum homem. Portanto, não existe razão lógica por que Deus devesse ignorar o futuro que ele próprio faz acontecer.

Além de tudo, o horizonte profético de Daniel (Dn.9.24-27) na verdade aprofunda-se e vai além do período dos macabeus, que lhe atribuíram estudiosos racionalistas, pois a profecia aponta para 27 d.C. como ano exato em que Cristo nasceu (Dn.9.25,26). O mesmo se deve dizer a respeito da predição de Isaías 13.19,20, da total e permanente desolação da Babilônia, que não aconteceu senão depois da conquista maometana do século VII d.C. Não há esperança alguma em tentar explicar o cumprimento de profecias como essas, tanto tempo depois, mediante a alegação de que os livros que as contêm foram escritos depois dos acontecimentos. Vemos, assim, que esse princípio orientador subjacente à estrutura completa da hipótese documentária, de modo algum pode manter-se em base objetiva e científica. Portanto, essa teoria deve ser abandonada em todas as instituições de ensino superior nas quais ainda é ensinada.

4. Unidade:

O Pentateuco é um documento composto de livros individuais, mas também uma narrativa ininterrupta de uma história completa que vai da criação até a morte de Moisés. Esses dois aspectos são importantes.

Em primeiro lugar, cada um dos livros tem seu próprio interesse e unidade. Gênesis revela sua estrutura literária repetindo dez vezes a fórmula: “esta é a história” ou “estas são as gerações” a respeito do que segue. Êxodo revela sua unidade de diversas maneiras. Por exemplo, a lei promulgada nos capítulos 19 a 40 baseia-se na narrativa do êxodo de Israel do Egito (capítulos 1 a 18; Ex.19.3-6). Sem a narrativa, a lei na o tem fundamento histórico. Deus confirmou seu chamado a Moisés conduzindo a nação para fora do Egito de volta ao Monte Horebe, à montanha onde Moisés, no início, fora comissionado (Ex.3.1,12). Levítico é um manual de liturgia para os sacerdotes. Números relata a marcha de Israel do deserto desde o Sinai até Canaã. Assim como no êxodo lembrado no memorial da Páscoa prefigura a salvação do novo

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Israel através do sacrifício de Cristo, assim a história de Números dramatiza a marcha espiritual de todos os filhos de Deus através do deserto em seu caminho para a Terra Prometida, advertindo-os a não perder a fé. Finalmente, Deuteronômio registra a exposição de Moisés da lei que ele recebera no Monte Sinai.

Ao mesmo tempo, os cinco livros do Pentateuco estão ligados entre si através de uma narrativa contínua. Êxodo continua a história começada em Gênesis sobre os israelitas que foram para o Egito (Gn.46.26-27; Ex.1.1). Moisés cumpre o juramento de José, feito em seu leito de morte, de que levassem seus ossos embora do Egito (Gn.50.25; Ex.13.19). Levíticos 1 a 9 explica os rituais do tabernáculo, como uma espécie de suplemento das instruções para sua construção em Êx.25 a 40. Levítico também mostra como foi realizado o rito para a ordenação de sacerdotes, delineado em Ex.29. Números compartilha muitas conexões com Êxodo e Levítico; extensas porções de todos os três livros ocorrem no deserto do Sinai e compartilham preocupações e regulamentos cerimoniais semelhantes. Em seu primeiro discurso em Deuteronômio, Moisés resume a história de Israel desde o Sinai até a terra de Moabe, conforme registrado em Números. Em seu segundo discurso, ele faz alusões freqüentes ao Êxodo, repetindo com pequenas modificações os Dez Mandamentos e o modo de Israel corresponder a eles (Ex.20; Dt.5).

5. Ambiente do mundo bíblico:

Não é de praxe detalhar a respeito dos povos do Pentateuco, pois redigiríamos outro tratado dentro deste, contudo citaremos um breve resumo para análise e pesquisa posterior. Quando Abraão chegou à Palestina, esta já era uma ponte importante entre os centros culturais e políticos daquela época. Ao norte achava-se o império hitita; ao sudoeste, o Egito; ao oriente e ao sul, Babilônia; e ao nordeste o império assírio. Ou seja, que os israelitas estavam localizados em um ponto estratégico e não isolado geograficamente das grandes civilizações. Veja na próxima página:

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A maioria dos historiadores acha que a planície de Sinar, situada

entre os rios Eufrades e Tigre, foi o berço da primeira civilização importante, chamada suméria. No ano 2800 a.C. os sumérios já haviam edificado cidades florescentes e haviam organizado o governo em cidades-estados; também haviam utilizado metais e tinham aperfeiçoado um sistema de escrita chamada cuneiforme. Quase ao mesmo tempo desenvolvia-se no Egito uma civilização brilhante. É provável que quando Abraão se dirigiu para o Egito, tenha visto pirâmides que contavam mais de 500 anos.

A região onde se desenvolveu a primeira civilização é chamada “fértil crescente” (pela forma do território que abrange). Estende-se de forma semicircular entre o Golfo Pérsico e o Mar Mediterrâneo, até ao sul da Palestina. O território é regado constantemente por chuvas e rios caudalosos, como o Eufrades, o Tigre, o Nilo e o Orontes, o que possibilita uma agricultura produtiva. No interior desta região está o eserto da Arábia, onde há escassas chuvas e pouca população. Ali, no fértil crescente, surgiram os grandes impérios dos amorreus, dos

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babilônios, dos assírios e dos persas. O mais importante para nós, todavia, é que ali habitou o povo escolhido de Deus e ali nasceu o Homem que seria o Salvador do mundo.

Toda a região compreendida entre os rios Eufrades e Tigre chama-se Mesopotâmia (meso: entre; potamos: rio). No princípio denominava-se “Caldéia” à planície de Sinar, desde a cidade de Babilônia, ao sul, até o Golfo Pérsico; mas posteriormente o termo “Caldéia” passou a designar toda a região da Mesopotâmia (a mesma área chamava-se também Babilônia). Abrangia muito do território do atual Iraque, e era provavelmente o local do jardim do Éden e da torre de Babel.

O território da Palestina é relativamente pequeno. Desde Dã até Berseba, pontos extremos no norte e no sul, respectivamente, há uma distância de apenas 250 quilômetros. O território tem desde o mar Mediterrâneo até o mar Morto, 90 quilômetros de largura; e o lago de Genesaré (mar da Galiléia) dista de aproximadamente 50 quilômetros do mar Mediterrâneo. A área total de Canaã equivale, em tamanho, à sétima parte do Uruguai ou a um terço do Panamá. Contudo, nesta porção, tão pequena do globo terrestre, Deus revelou-se ao povo israelita, e ali o Verbo eterno habitou entre os homens e realizou a redenção da raça humana.

6. Tema:

O Pentateuco é uma mistura de história e lei. Ambas estão intimamente relacionadas entre si: a história da narrativa explica as leis. Por exemplo, a lei sobre a circuncisão é incluída na narrativa sobre a aliança de Deus com Abraão e Sara (Gn.17.9-14) e a quebra do sábado torna-se sujeita à pena capital na história sobre juntar gravetos no sábado. (Nm.15.32-36). Mas, conforme observado acima, o principal interesse do Pentateuco é a aliança de Deus com Abraão, Isaque e Jacó; o livramento de seus descendentes do Egito por Deus e a obrigação desses em guardar a lei de Deus a eles no deserto do Sinai.

O propósito de Deus em libertar Israel do Egito é de que os israelitas o adorassem e viessem a ser uma nação santa para ele. Através deles, sua bênção alcançaria todas as nações do mundo. De acordo com Gálatas, essa graciosa promessa anunciada a Abraão é o mesmo

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evangelho pregado por Jesus Cristo e realizado através da sua morte e ressurreição (Gl.3.8,14). O poder permanente do Pentateuco não é um mistério, mas a conseqüência de sua inspiração pelo Espírito de Deus. BIBLIOGRAFIA DO CAPÍTULO III: - BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento. V.1,2. São Paulo: ASTE, 1968. - BÍBLIA – Estudo de Genebra. Tradução Revista e Atualizada no Brasil. São Paulo: Cultura Cristã, 1998. - BÍBLIA – Português. Bíblia Sagrada. Tradução: Escola Bíblica de Jerusalém, nova ed. rev. São Paulo: Paulus, 1985. - ELLISSEN, Stanley. Conheça Melhor o Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2007. - HOFF, Paul. O Pentateuco. São Paulo: Vida, 2002. - PINTO, Carlos Oswaldo. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006. - LASOR, William S.; HUBBARD, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003. - BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1981. - CHARPENTIER, E. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1986. - FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. - GRUEN, Wolfgang. O tempo que se chama hoje: uma introdução ao Antigo Testamento. 11ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1985. - HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1975. - MARTIN.ACHARD, Robert. Como ler o Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1970. - METZGER, Martin. História de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1972. - PURY, Albert de (Org). O pentatêuco em questão. Petrópolis: Vozes, 1996. - RENDTORFF, Rolf. Antigo Testamento: uma introdução. Santo André: Academia Cristã, 2009. - SCHMIDT, H. Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994. - SICRE, Jose Luiz. Introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1995.

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IV – O LIVRO DE GÊNESIS:

É apropriado o lugar que Gênesis ocupa como o primeiro livro do Antigo Testamento, servindo de introdução básica à Bíblia inteira.

Gênesis registra com exatidão a criação, os começos da história da humanidade e a origem do povo hebreu, bem como o concerto entre Deus e os hebreus através de Abraão e os demais patriarcas. O Senhor Jesus atestou no Novo Testamento a fidedignidade histórica de Gênesis como Escritura divinamente inspirada (Mt.19.4-6; 24.37-39; Lc.11.51; 17.26-32; Jo.7.21-23; 8.56-58) e os apóstolos (Rm.4; 1Co.15.21,22,45-47; 2Co.11.3; Gl.3.8; 4.22-24,28; 1Tm.2.13,14; Hb.11.4-22; 2Pe.3.4-6; Jd.7,11). Sua historicidade continua sendo confirmada pelas descobertas arqueológicas modernas. Moisés foi notavelmente bem preparado, pela sua educação (At.7.22) e por Deus, para escrever esse livro da Bíblia.

1. Título:

O título em português do livro é derivado do título adotado pela versão grega do Antigo Testamento, a chamada Septuaginta – (genesis), palavra encontrada em Gn.2.3, (biblos tês genesêos, “livro da geração”). Os israelistas, por sua vez, usam como título a primeira palavra do livro, (beresît, “no princípio”).

“Gênesis”, a despeito de não ser um título abrangente para a totalidade do conteúdo do livro, serve razoavelmente bem ao propósito do livro, pois este pretende ser um livro de origens. Primeiramente, apresenta a origem do mundo; depois, a origem da raça humana e de seu conflito com o mal; por último, embora muito importante, a origem da linhagem eleita de Abraão, por meio da qual todas as nações do mundo seriam finalmente abençoadas.

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2. Fundo Histórico:

a. Data em que foi escrito: (cerca de 1443 a.C.)

� Embora fosse possível Moisés escrever esse livro no exílio de 40 anos em Midiã, é duvidoso que ele tivesse a motivação humana ou a inspiração divina para compor essa monumental obra literária. É mais provável que a tenha escrito num período subseqüente à sua comissão divina junto à sarça ardente que fez dele um profeta de Deus.

� Gênesis foi provavelmente redigido durante a primeira parte da peregrinação pelo deserto, enquanto Moisés procurava instruir Israel sobre as verdades divinas fundamentais e o programa da aliança de Deus para com a nação.

b. Extensão histórica de Gênesis: (2369 anos)

� A história de Gênesis começa com a criação do Universo e

do homem e termina com a morte de José, o último dos patriarcas de Israel.

� O período de tempo está especificado na narrativa como de 2369 anos, aceitando-se o texto hebraico massorético.

c. Extensão geográfica de Gênesis:

� O espaço geográfico do livro é desde o vale da

Mesopotâmia, conhecido como o “berço” da raça humana, até o vale do Nilo, no Egito, o berço da raça hebraica.

� Essa área, com uma configuração crescente, é chamada de “Crescente Fértil”. Três continentes convergem para seu centro, tornando-a de muitas maneiras o “centro da Terra”.

• Cenário Religioso:

� A religião, ou relacionamento pessoal com Deus, figura

proeminentemente em Gênesis. Antes do Dilúvio, o

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monoteísmo prevalece quase universalmente. Os castigos divinos, por ocasião do Dilúvio e da torre de Babel, foram motivados pela insolência e rebelião do povo. Na época de Abraão, a idolatria se tinha alastrado tanto na Caldéia como no Egito. A idolatria motivou o posterior castigo divino ao Egito.

� O movimento religioso de Gênesis 1-11 retrata os inevitáveis resultados do pecado no mundo, subjugando e corrompendo tudo o que toca. Começando com a independência e desejos egoístas, o pecado sai do coração e da vontade e atinge o lar, a família, os descendentes e a sociedade em geral. No Dilúvio, Deus teve de quase destruir a raça humana a fim de salvá-la.

� Na história de Abraão e de sua aliança com Deus, o programa redentor divino é apresentado como a resposta do Criador ao dilema do homem no pecado. De um mundo emaranhado em idolatria (Js.24.2), Deus selecionou Abraão como um homem de fé a fim de que fosse o recipiente de sua graça e de suas alianças, por meio das quais seu programa redentor seria executado.

3. Autoria:

Uma vez que o livro integra o Pentateuco unificado, não é

possível estabelecer sua autoria e data à parte da composição de todo o Pentateuco. As evidências relacionadas ao Gênesis propriamente dito, contudo, sugerem que, como o restante do Pentateuco, Moisés deu ao livro a sua substância essencial e editores posteriores o suplementaram tudo pela inspiração do Espírito Santo.

Seria arbitrário excluir Gênesis do testemunho do Novo Testamento que afirma ser Moisés (século XV a.C.) o autor do Pentateuco. Mais especificamente, nosso Senhor disse “pelo motivo de que Moisés vos deu a circuncisão” (Jo.7.22; At.15.1), a qual é mencionada somente em Gênesis 17. Não surpreende que o fundador da teocracia da Israel tenha lançado este fundamento magistral da lei. A narrativa histórica de Gênesis estabeleceu os fundamentos teológicos e éticos da

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Toráh: o relacionamento ímpar de Israel com Deus mediante a aliança (Dt.9.5) e as suas leis singulares (a lei do sábado). Além do mais, desde que os mitos da criação são básicos nas religiões pagãs, é natural que Moisés tivesse incluído um relato da criação em oposição aos mitos pagãos. Este relato constitui-se, ainda, em alicerce para a lei mediada por Moisés.

O testemunho da própria Bíblia a favor da autoria mosaica é apoiado por informações extrabíblicas. Os onze primeiros capítulos têm paralelos e diferenças propositais com os mitos do Oriente Próximo anteriores a época de Moisés e conhecidos por ele (os relatos da criação mesopotâmicos tais como Enuma Elish e os relatos do dilúvio tais como os encontrados na Epopéia de Atrahasis e na décima primeira tábua da Epopéia de Gilgamesh). Os nomes e os costumes nas narrativas dos patriarcas (capítulos 12 a 50) refletem acuradamente a era em que viveram, sugerindo um autor antigo que dispunha de documentos confiáveis. Os textos de Ebla (século XXIV a.C.) mencionam Ebrium, que pode ser o mesmo Héber de Gn.10.21, e os textos de Mari (século XVIII a.C.) atestam a existência de nomes como Abraão, Jacó e amorreu. A prática de conceder um direito de primogenitura (isto é, de privilégios adicionais para o filho mais velho, Gn.25.5-6, 32-34; 39.3-4; 43.33; 49.3) era difundida no antigo Oriente Próximo. A venda de uma herança (Gn.25.29-34) é documentada em diferentes períodos nesta era. A adoção de um escravo pelo seu senhor (Gn.15.1-3) é encontrada em uma carta de Larsa, na antiga Babilônia, e a adoração de Efraim e Manassés por seu avô (Gn.48.5) pode ser comparada com uma adoção semelhante de um neto em Ugarit (século XIV a.C.). A adoção de uma escrava como parte de um dote e a sua apresentação ao marido pela mulher infértil (Gn.16.1-6; 30.1-3) são mencionadas nas leis de Hamurabi (cerca de 1750 a.C.). Esses e outros fatos semelhantes corroboram a confiabilidade histórica da narrativa de Gênesis.

4. Data:

Considerando as evidências bíblicas e extrabíblicas que relacionam Gênesis e o seu conteúdo a Moisés e a sua era, podemos concluir razoavelmente que o livro remonta ao século XV a.C..

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Indubitavelmente, por exemplo, desde que Davi (cerca de 1000 a.C.) compôs o relato da criação de Gn.1 em música (Sl.8), requer-se uma data de composição no segundo milênio para Gn.1. Os leitores devem observar, porém, que embora ocasionalmente apareçam no texto palavras conhecidas somente a partir da metade do segundo milênio, a gramática do Pentateuco foi ocasionalmente atualizada, assim como alguns nomes de lugares (Gn.14.14). Também a lista de reis em Gn.36.31-43 foi aparentemente acrescentada após a época de Saul.

5. Cronologias do Livro:

As datas foram baseadas no ano de 1445 a.C., como a data do êxodo (John Garstang, Merece confiança o Antigo Testamento? 3ºed, Vida Nova, 1984] e 967 a.C. como a data do princípio da construção do Templo (Edwin R. Thiele, The Mysterious Numbers os the Hebrew Kings) mais ou menos um ano, e 430 anos de permanência no Egito, desde a descida até o êxodo.

Nome

Data do nascimento

Idade quando o filho nasceu

Anos vividos após

Idade ao

morrer

Data da morte

Ano Hom.

a.C. Ano Hom.

a.C.

Adão 0 4173 130 800 930 930 3243 Sete 130 4043 105 807 912 1042 3131 Enos 235 3938 90 815 905 1140 3033 Cainã 325 3848 70 840 910 1235 2938 Maalaleel 295 3778 65 830 895 1290 2883 Jarede 460 3713 162 800 962 1422 2751 Enoque 622 3551 65 300 365 987 3186 Matusalém 687 3486 187 782 969 1656 2517 Lameque 874 3299 182 595 777 1651 2522 Noé 1056 3117 500 450 950 2006 2167

As genealogias de Gênesis parecem ser as únicas dentre as

genealogias bíblicas em que cada elo é datado relacionando à pessoa a idade de seu pai. A compilação é planejada dessa maneira a fim de apresentar uma cronologia com base na leitura do texto de Gênesis.

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Admite-se que poucos eruditos modernos dariam a data do nascimento de Adão em 4173 a.C.. As datas são assim apresentadas como ponto inicial à interpretação do texto.

Nome

Data do nascimento

Idade quando o filho nasceu

Anos vividos após

Idade ao

morrer

Data da morte

Ano Hom.

a.C. Ano Hom.

a.C.

Grande Dilúvio

1656 2517

Jafé Sem

Cam 1558 2615 100 500 600 2158 2015

Arfaxade 1658 2515 35 403 438 2096 2077 Salá 1693 2480 30 403 433 2126 2047 Héber 1723 2450 34 430 464 2187 1986 Pelegue 1757 2416 30 209 239 1996 2177 Reú 1787 2386 32 207 239 2026 2147 Serugue 1819 2354 30 200 230 2049 2124 Naor 1849 2324 29 119 148 1997 2176 Terá

Harã Naor

1878 1948

2295 2225

70 135 205 2083 2090

Abraão 2008 2165 100 75 175 2183 1990 Chamado de Abraão

2083 2090

Isaque 2108 2065 60 120 180 2288 1885 Jacó 2168 2005 91 56 147 2315 1858 José 2259 1914 ? ? 110 2369 1804 Descida de Jacó ao Egito

2298 1875

Moisés 2648 1525 - - - 2768 1405

A aliança segue através de Judá, e não de José. Os 430 anos “no Egito” foram considerados ou a partir de

Abraão recebendo a aliança pela primeira vez, ou a partir da aliança

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sendo confirmada em 1875 a.C. (Gn.12.1-3; 15.13; 46.2-4; Êx.12.40; At.7.6; Gl.3.17).

6. Características Literárias:

• Forma:

Moisés certamente endossaria a idéia de que o meio é a mensagem, pois Gênesis comunic tanto por meio de sua forma quanto por meio de seu conteúdo.

No que diz respeito à forma, esse livro de origens contém os “relatos” do trato de Deus com dez grupos ou entidades diferentes. Esses relatos são marcados pelo uso da palavra hebraica toledôt (Gn.2.4; 5.1; 6.9; 10.1; 11.10; 11.27; 25.12; 36.1,9; 37.2). Cada uma dessas seções relata o que aconteceu à(s) pessoa(s) mencionda(s), ou a seus descendentes (isto é, o toledôt dos céus e da terra (Gn.2.4) descreve o que finalmente aconteceu ao universo recém-criado; o toledôt de Tera (Gn.11.27) trata particularmente de seu filho Abraão).

Os primeiros cinco toledôt formam o que é comumente chamado de história primeva, que se estende da criação do universo à chamada de Abraão (Gn.2.4-11.26), quando Yahweh definiu mais claramente o foco de sua obra redentora (e restauradora de Sua soberania), ao trazer à luz o povo de Sua aliança.

Os outros cinco toledôt tratam da história patriarcal, o desenvolvimento histórico da aliança inicial entre Yahweh e Abraão por intermédio das linhagens escolhidas de Isaque e Jacó (Gn.11.27-50.26).

Moisés, em ambas as divisões, usou o artifício literário de alistar primeiro a linhagem ou genealogia do indivíduo ou grupo que fora, por uma razão ou outra, deixado de lado no processo revelatório, restaurador e redentor de Yahweh. Assim, a genealogia de Caim (Gn.4.17-24) precede a de Sete (Gn.4.25,26); as linhagens de Jafé e Cão (Gn.10.1-8) aparecem antes da de Sem (Gn.10.21,22); a genealogia de Ismael (Gn.25.12-15) antecede a de Isaque (Gn.25.19), e a de Esaú (Gn.36.1-10) precede a de Jacó (Gn.37.2). Este arranjo deliberado e harmonioso é uma evidência notável de unidade de composição.

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• Estilo:

O livro de Gênesis é, primariamente, narrativa em prosa, com passagens poéticas ocasionais, das quais a bênção de Jacó (Gn.49.2-27) é a mais elaborada. A prosa exibe ritmo e paralelismo (como no relato da criação, o questionamento e o juízo seguem-se em ordem inversa; ou na estrutura espelhada do relato da torre de Babel, no capítulo 11, em que encontramos narrativa, discurso, verso eixo, discurso, narrativa), e vários exemplos de paranomásia (isto é, Caim é destinado a ser um “errante” – “nad”, em hebraico) e acaba se estabelecendo na terra de Node (“nod”, que significa “vagar, errar” em hebraico). Encontram-se ainda em Gênesis diversos exemplos de etimologias populares (os “trocadilhos” contidos nos nomes de pessoas, como Jacó e Perez).

Outra característica literária marcante é a predominância do número sete e seus múltiplos. Os sete dias da criação, as sete gerações da genealogia de Caim, os 70 descendentes dos filhos de Noé, a promessa sétupla a Abraão, os sete anos de abundância e escassez no Egito e os 70 membros da família de Jacó ilustram amplamente este fato. O número 10 também parece ser importante, já que há dez toledôt e dez gerações nas genealogias dos capítulos 5 e 11.

Todos estes detalhes de estilo refletem uma elaboração cuidadosa, não o trabalho aleatório de composição a partir de fontes diversas e contraditórias, conforme proposto pelos críticos documentais e da forma.

7. Estrutura Teológica:

• A pessoa e o caráter de Deus:

a. Deus é poderoso:

O poder e a majestade de Deus manifestam-se primeiramente em Seu trabalho de criar, ordenar o universo e torná-lo habitável para o homem (caps. 1 e 2). Seu poder também se evidencia nas forças cataclísmicas que Ele reúne e desencadeia para julgar a humanidade pecadora (caps. 6-8), na maneira simples, mas engenhosa, pela qual Ele

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dispersa a geração pós-diluviana devido à desobediência à ordem divina que se espalhassem e enchessem a terra (cap.11).

O poder de Deus é mais sutilmente demonstrado na capacitação a Abraão e Sara para que, mediante a fé, gerassem a semente prometida depois de ambos haver passado o estágio reprodutivo (caps. 18, 21).

Em contraste com isso, vê-se o poder devastador da ira de Deus no juízo contra Sodoma e Gomorra (cap.19). As palavras de José para seus irmãos em Gênesis 50.19-21 demonstram o ponto de vista mosaico sobre o poder de Deus à luz da história da nação. O que o homem pecador tenciona para o mal, Yahweh é mais do que capaz de suplantar para Seus propósitos de bênção e bem-estar para o povo de Sua aliança.

b. Deus é justo:

A justiça de Yahweh reflete-se não tanto em declarações sobre seu caráter quanto nos meios simples e diretos pelos quais Ele julga a falta de conformidade do homem com o padrão de conduta prescrito pelo Criador. Tal é o caso com Seu padrão de avaliar o relacionamento do homem com Ele no jardim (Gn.2.16), no julgamento imediato contra a rebelião do homem (Gn.3.8-19), em seu trato severo (mas paciente) com o crime de Caim e as justificativas pessoais apresentadas por este (Gn.4.1-16), no juízo do Dilúvio contra um mundo cuja inclinação e ações estavam em flagrante violação de Seu caráter (Gn.6.1-7), na destruição de Sodoma e Gomorra por sua depravação e seu estilo de vida egoísta (Gn.19.1-29), assim como em juízos individuais contra homens como Er e Onã (Gn.38.6-10).

c. Deus é gracioso:

A graça de Deus lança uma luz brilhante sobre algumas das páginas mais sombrias da história humana. Quando Sua bondade original foi desprezada no jardim do Éden em troca da independência que as criaturas queriam Dele, foi Deus quem tomou a iniciativa de buscar o homem (Gn.3.8,9), de prometer a vitória definitiva sobre a serpente pela semente da mulher (Gn.3.15) e de remediar a nudez e a vergonha do primeiro casal (Gn.3.21).

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Quando a corrupção engolfou a humanidade, Noé “... achou graça aos olhos do Senhor”, e quando as águas do Dilúvio ameaçavam destruir os sobreviventes, “Deus lembrou-se de Noé” (Gn.8.1).

A graça intensifica-se quando o pacto de Yahweh com a humanidade se focaliza em Abraão e sua linhagem. Ló é preservado pela graça (Gn.19.1-31), Isaque é poupado pela graça (Gn.22), Jacó é escolhido por graça (Gn.25.19-23; Rm.9.11,12), assim como toda a família patriarcal é libertada da corrupção e miscigenação em Canaã pela provisão graciosa que Yahweh lhes faz de José como vice-regente do Egito (Gn.37-50).

d. Deus é singular:

Há muito que se reconhece em Gênesis uma forte veia polêmica. Israel, depois de 430 anos no Egito, com seu politeísmo grosseiro, e a caminho para Canaã, com sua cosmogonia perversa e religião imoral, precisava entender seu Deus corretamente para não cair presa do animismo e da idolatria.

Assim, Gênesis 1 e 2 apresentam Yahweh como o Deus transcendente que existia antes do universo e dele não dependia para coisa alguma. Ele é senhor absoluto das forças do universo como o sol e a lua, as águas caóticas do oceano primevo, sobre as fontes e cursos de água, e mesmo sobre os grandes animais marinhos. Todos esses elementos tinham alguma conotação mitológica entre os povos do Oriente Médio antigo, particularmente entre os sumérios e os cananeus.

A narrativa do Dilúvio, que tem paralelos épicos sumérios de Gilgamés e Atrahasis, estende o tom polêmico ao descrever não um deus caprichoso e vingativo, que destrói a humanidade devido ao desconforto e à falta de sono causados pelo barulho dos homens, mas Yahweh, um Deus cujo caráter santo e propósitos benevolentes para com o homem eram menosprezados e violados pela conduta pecaminosa da humanidade. Além disso, revela um Deus cuja sabedoria permite ao homem escapar ao juízo por meio de uma embarcação realmente capaz de suportar as intempéries do Dilúvio, em contraste com outras versões antigas do evento, que descrevem embarcações totalmente incapazes de navegar e preservar a vida.

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A singularidade de Yahweh aparece em cores ainda mais brilhantes no fato de que Ele é um Deus que, apesar de transcendente e todo-poderoso, busca um relacionamento com Suas criaturas e a elas Se revela. Ele estabelece alianças (Gn.9.8-17; 15.9-21; 17.1-27) e garante seu cumprimento ao prover e proteger milagrosamente a semente que havia prometido (Gn.18.13-15; 22.15-18; 25.21).

• A Administração dos Propósitos de Deus:

O plano de Deus na história inclui Seu decreto de permitir o mal, Sua promessa e/ou ação de julgar o mal, o livramento do mal por meio de uma semente escolhida e o decreto de abençoar os eleitos a quem libertou. O livro de Gênesis é a sementeira de todas essas idéias nas Escrituras, e elas encontram expressão genuína nesse livro em que as grandes divisões da humanidade são estabelecidas de acordo com seu relacionamento para com o Deus que Se auto-revela.

a. O decreto de permitir o mal:

É forçoso admitir que esse decreto seja uma inferência das narrativas de Gênesis. No entanto, é preciso admitir que embora Deus jamais aceite responsabilidade pela prática do mal, Ele implicitamente afirma ser o autor da possibilidade do pecado pelo simples fato de ter oferecido ao homem uma condição de obediência (Gn.2.8, 9, 15-17) pela qual a santidade de que o homem era dotado como criatura pudesse ser exercida e desenvolvida. A presença de um animal que se rebela contra sua posição na Criação e permite tornar-se um agente de uma vontade oposta à de Deus é indicação de que o mal espreitava a porta da perfeita criação divina, mas não fora de Seu conhecimento ou autoridade (Gn.3).

Assim, um conflito se estabelece, o qual envolverá perenemente a semente da mulher e a semente da serpente. Caim e Abel e, depois, Caim e Sete são parte deste conflito, que se alarga e aprofunda a ponto de incluir toda a humanidade em Gênesis 6. Depois do Dilúvio, o conflito irrompe uma vez mais na linhagem da semente, originando a maldição sobre os cananeus.

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Em última análise, este é um conflito entre a vontade rebelde das criaturas e a vontade soberana do Criador, conforme evidenciado na torre de babel, em que o orgulho humano procura suplantar as intenções divinas para a humanidade na terra.

O fator de desapontamento, que Moisés sem dúvida queria que seus leitores percebessem para levá-los a depender de Yahweh, demonstra-se na maneira pela qual o mal se insinua na linhagem escolhida, primeiro com o incidente de Agar, depois com as trapaças de Jacó e a alienação de Esaú, e finalmente com os vários incidentes de perversão moral, de desonestidade e de ódio dentro do clã de Jacó. Por meio de todas essas circunstâncias, Yahweh apontava para Si mesmo como a única esperança de vitória sobre o mal, pois os patriarcas, na tarefa de dominar o mal, haviam sido tão falhos quanto Adão, Caim e Noé (Gn.4.7).

b. A promessa/ação de julgar o pecado:

Esta linha do plano mestre de Deus encontra seu início no chamado “proto-evangelho” de Gênesis 3.15. Exegeticamente falando, todavia, pode-se argumentar que a própria criação, conforme descrita em Gênesis 1, é um ato de juízo e redenção.

O triunfo prometido da semente da mulher é o tema central, cujo cumprimento é sempre aguardado no desenvolvimento do livro e, no entanto, jamais se realiza, mesmo quando as possibilidades de escolha da semente se limitam a uma das famílias do clã de Jacó.

O juízo de Deus contra o pecado aparece em todo o livro, desde as maldições pronunciadas no jardim do Éden até a disciplina criativa importa por José a seus irmãos trapaceiros. Tal juízo, todavia, é sempre temperado com a misericórdia restauradora de Yahweh, por meio da qual Suas criaturas caídas encontram graça e esperança.

c. Libertação do juízo para os/pelos eleitos:

Vários incidentes em Gênesis ilustram esta parte do programa divino na História. O nascimento de Sete (Gn.4.25) em substituição a Abel aparece como o primeiro exemplo, resultando na preservação do

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verdadeiro culto a Deus no contexto de uma civilização pagã desenvolvida pelos descendentes de Caim (Gn.4.16-24).

O evento seguinte é a chamada de Noé do meio de uma geração incuravelmente corrupta, para que fosse o agente da preservação da raça humana do juízo universal do Dilúvio (Gn.6.8).

Quando a população da terra pós-diluviana se recusa a obedecer aos mandamentos de Deus e é julgada com a divisão das línguas, a chamada de Abraão (Gn.11.27-12.3) oferece uma nova fase no plano redentor de Yahweh, que é desenvolvido por meio de Isaque e Jacó, cuja descendência é salva da miscigenação corruptora com os cananeus pagãos por meio do agente final de libertação em Gênesis, José (a quem o próprio Faraó reconhece como um homem capacitado por Deus – Gn.41.38).

Uma vez que o livro termina com o registro da morte de José e de seu sepultamento no Egito, Moisés tencionava que seus leitores percebessem que a saga da Semente da mulher ainda não acabara e que a tarefa de libertar o mundo do mal seria passada a outros instrumentos, até que a verdadeira Semente surgisse na História.

d. O decreto de abençoar os eleitos:

Gênesis começa com uma progressão do caos (Gn.1.2) à bênção, à medida que toda a criação divina é pronunciada boa, e o homem, como governante mediatório de Deus, é abençoado com vitalidade e fertilidade com as quais deve encher a terra e desfrutar Deus e Sua criação (Gn.1.28-31).

A partir da Queda, bênção e maldição coexistem, nunca pacificamente, e o mal progride a ponto de quase eliminar a possibilidade de bênção. A essa altura, Yahweh intervém graciosamente e seleciona Noé como o canal pelo qual a bênção divina fluirá para uma humanidade renovada (apesar de ainda corrupta).

Gradativamente, o decreto de abençoar vai adquirindo forma mais definida. Sem é declarado herdeiro de um relacionamento especila com Yahweh (Gn.9.26), e sua linhagem é escolhida para receber e mediar a bênção. Essa linhagem passa por Éber a Terá, e deste a Abraão (Gn.11.20-26). A essa altura, chega-se a um ponto culminante, e uma

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promessa específica de bênção é anunciada (Gn.12.1-3); essa promessa é depois ampliada como uma aliança de concessão real (Gn.15.9-21) e uma aliança de suserania e vassalagem (Gn.17.1-27), que prendem a bênção de Yahweh à semente de Abraão, primeiro como recipiente, e depois como canal (Gn.12.3).

8. Contribuições Singulares do Livro:

a. A Soberania de Deus:

A afirmação inicial da Bíblia apresenta Deus como a “Causa Primeira” soberana de todas as coisas. Sua existência é admitida como a fundação incontestável de toda a verdade, não se fazendo necessário apresentar provas dela, pois nesse particular ninguém teria autoridade suficiente para julgar o assunto. Quem assim proceder declara-se tolo (Sl.14). Como Criador soberano, ele não dá satisfação a ninguém, mas exige respeito e obediência de todos os súditos. Ele nada revela acerca de sua origem ou passado, mas simplesmente surge da eternidade misteriosa para iniciar sua obra de criação. Como Criador, é chamado de “Elohim” no capítulo 1, enfatizando sua grandeza ou plenitude, bem como sugerindo a Trindade. Sua soberania é a grande tônica do livro.

b. Único registro autêntico do início:

Apesar de terem sido achados vários documentos antigos com vagos relatos sobre a criação do homem, nenhum deles pode comparar-se, sequer remotamente, com o registro específico, simples e majestoso de Gênesis 1 e 2. O primeiro legislador e historiador de Israel dá instrução explícita com documentos disponíveis e inspiração referente à origem de todas as coisas essenciais à vida. Sem esse registro, não teríamos uma visão objetiva de como o mundo começou, de como as várias formas de vida tiveram início, da origem verdadeira do homem, de como o pecado entrou no mundo, de como as várias raças foram formadas, e porque os idiomas foram diversificados.

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c. A entrada do pecado:

Sem esse registro, seria difícil determinar a origem do pecado ou do mal. Gênesis demonstra claramente que o Criador não criou o pecado ou o mal. Ele surgiu de dentro do coração de Adão e Eva. Sua causa não foi um ambiente ruim, nem a serpente ou o fruto da árvore. Essas não foram às causas, mas a ocasião. A causa estava no uso egoísta da vontade humana de rejeitar a vontade soberana de Deus, desobedecendo-lhe.

Ao entrar no mundo, o pecado começou a multiplicar-se imediatamente. Isso é descrito em Gênesis 4-6. Do coração do primeiro casal passou ao lar, aos filhos e depois a toda a sociedade. O resultado é descrito em Gn.6.11,12: “a terra estava corrompida aos olhos de Deus e cheia de violência” e “a humanidade havia corrompido a sua conduta”.

O pecado não ficou inativo nem permaneceu apenas como um “defeito de menor importância”.

d. O livro dos grandes julgamentos sobrenaturais:

Do mesmo modo que Apocalipse no final da Bíblia, Gênesis ressalta diversos julgamentos sobrenaturais:

(1º) A maldição como resultado da Queda; (2º) O Dilúvio; (3º) A confusão das línguas em Babel; (4º) Fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra;

Cada um desses acontecimentos deu-se por causa de uma rebelião conjunta contra a vontade de Deus, trazendo corrupção. Os julgamentos retratam a intolerância de Deus para com o pecado e a rebelião. Em cada julgamento, porém, vinha à oferta divina de misericórdia e graça no caso de uma reação favorável. Deve-se notar que o Senhor preserva a consequência ou “os destroços” de cada julgamento com o fim de nos lembrar de que sua ira é contra o pecado, mesmo nesta época de graça.

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e. O proto-evangelho ou o “primeiro evangelho”:

A entrada do pecado trouxe julgamento, mas trouxe também a promessa divina de redenção (Gn.3.15). Ele prometeu que o “descendente” da mulher irira ferir a cabeça da serpente, e a serpente iria ferir seu calcanhar (referindo-se a Cristo e ao Demônio, Jo.12.31,32; Ap.12.9). É uma descrição resumida do Reino de Deus e do plano de redenção. A morte de Cristo destruiu potencialmente Satanás e seu reino, ao prover redenção aos descendentes de Adão e Eva. Essa primeira promessa divina é o “João 3.16” do Antigo Testamento, exortando à fé demonstrada pelo derramamento do sangue de animais.

f. A Aliança Abraâmica:

A história de Abraão e sua aliança com Deus é a parte mais importante de Gênesis. Os primeiros 11 capítulos retratam o “dilema do homem” ou o progresso do pecado, e os outros 39 retratam o “livramento de Deus” ou a promessa de salvação. É o fundamento de todo o futuro programa divino para a humanidade. Deus prometeu a Abraão que traria bênçãos pessoais, nacionais, territoriais e espirituais por meio de sua descendência. A vida de Abraão é uma história de dádiva da aliança. Numa série de seis encontros com o patriarca, Yahweh (Deus da aliança): (1º) Estabeleceu a aliança – Gn.12.1-3; (2º) Confirmou-a – Gn.12.7; (3º) Ampliou-a – Gn.13.14-17; (4º) Ratificou-a num ritual – Gn.15.8-18; (5º) Simbolizou-a – Gn.17.10; (6º) Acrescentou seu juramento – Gn.22.16-18;

Garantida apenas por Deus, não podia ser anulada pelas falhas de Abraão ou de sua descendência.

Apesar de parcialmente cumprida na história de Israel, e cumprida espiritualmente na primeira vinda de Cristo, o cumprimento

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absoluto de todos os seus elementos aguarda a segunda vinda do Senhor, que é o “descendente” de Abraão (Gl.3.16).

g. Cristologia em Gênesis:

Esse livro dos princípios também antecipa a vinda de Cristo. Mesmo veladas à mente secular, essas referências sutis alertam os cristãos para aquele que cumprirá a promessa final. Essas referências cristológicas aparecem na forma de profecias ou como tipos velados.

• Profecias específicas:

(1) O “descendente” da mulher no protótipo do evangelho (Gn.3.15). Um vindouro Filho de Eva (ou Maria) fatalmente feriria a “serpente”, ou Satanás, e seria tamporariamente ferido por ela (Gl.4.4).

(2) A “descendência” de Abraão na aliança abraâmica (Gn.12.3). Um descendente de Abraão viria abençoar todas as nações com a oferta da justificação pela fé (At.3.25; Gl.3.7-9).

(3) Um “Leão” da tribo de Judá seria levantado como o Soberano do mundo (Gn.49.9-10; Ap.5.5).

• Tipos velados:

Assim como as profecias foram designadas para a presciência do

Antigo Testamento, os tipos o são especialmente para a percepção posterior do Novo Testamento, de maneira retrospectiva (1Co.10.6,11).

(1) Adão tipificou Cristo como o Cabeça da raça; um só ato realizado por ele afetou toda a raça humana. Como em “Adão” todos morreram, também “todos serão vivificados em Cristo” (Rm.5.12; 1Co.15.21,22).

(2) Abel tipificou Cristo por seu “sacrifício superior” de sangue (Gn.4.4; Hb.11.4).

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(3) Melquisedeque tipificou Cristo como o Sumo Sacerdote especialmente designado por Deus, sendo também um Sacerdote-Rei (Gn.14.18-20; Hb.7.1).

(4) Isaque tipificou Cristo como o “Descendente” longamente esperado, em sua submissão no altar do sacrifício e no recebimento da noiva de um país distante (Gn.21; 22; 24). (Isso aqui está inferido no Novo Testamento, e não afirmado diretamente).

(5) José tipificou Cristo de muitas maneiras: resistiu ao mal, foi traído pelos irmãos e amado pelo pai, sofreu pelos pecados de outros, tomou uma esposa gentia quando estava no exílio, e finalmente tornou-se soberano do mundo depois de redimir seus irmãos (At.7.9-13).

9. Propósito:

Gênesis é verdadeiramente um livro de origens. Moisés tinha

como objetivo oferecer aos israelitas não apenas um conhecimento de seu passado nacional, mas uma percepção de como esse passado se conectava a história primeva da humanidade e até mesmo à origem do universo. O propósito do livro é promover confiança em Yahweh, o Deus da aliança, demonstrando como a nação devia ao Seu fiel amor sua existência e preservação ao longo dos séculos como o veículo pelo qual o conflito básico, iniciado no jardim do Éden, finalmente terminaria, e a humanidade seria abençoada.

O elemento chave no desenvolvimento de Gênesis é a expressão Toledot (hebraico para “gerações” ou “relato”), em torno da qual as narrativas e seus temas teológicos são estruturados.

O registro da história primeva da humanidade indica como a Criação caiu de uma posição de bênção e acabou sob maldição e juízo divinos, estando em contínua necessidade de redenção do pecado.

A criação dos cosmos a partir do caos primevo revela Yahweh como o soberano Deus Criador, cujos propósitos benevolentes para com o homem incluem comunhão com Ele e governo sob Sua autoridade (Gn.1.1-2.3).

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Quando o homem rejeitou sua posição de ceriatura moralmente dependente sob a autoridade de Deus, sofreu alienação do Criador e trouxe a maldição divina sobre toda a Criação (Gn.2.4-3.24).

A história da civilização reflete uma crescente degeneração da conduta humana no conflito entre as duas sementes. Tal degeneração acabou por provocar um juízo divino de dimensões planetárias, no qual apenas a graça de Deus preservou um remanescente (Gn.4.1-9.17).

O relato dos descendentes de Noé revela como a humanidade uma vez mais abandonou uma posição de bênção pactual sob a autoridade de Deus e colocou-se em uma condição de degradação, rebeldia e maldição (Gn.9.18-11.26).

O registro da história patriarcal de Israel indica como Yahweh selecionou uma linhagem dentre a humanidade e comprometeu-se com ela em aliança com o propósito de trazer a luz, por meio dessa linhagem, a redenção do pecado que prometera no jardim do Éden.

A narrativa dos descendentes de Terá descreve como o estabelecimento da Semente prometida por Deus foi marcado por um conflito com o mal, no qual Deus finalmente triunfou à medida que Abraão aprendeu a confiar no deus das promessas (Gn.11.27-25.11).

A genealogia de Ismael apresenta o desenvolvimento da promessa divina de que Abraão teria uma descendência inumerável (Gn.25.12-18).

O relato dos descendentes de Isaque reflete o crescimento do mal dentro da família escolhida à medida que o engano toma o lugar da fé como sua característica principal (Gn.25.19-35.29).

A seguir, o relato dos descendentes de Esaú indica como ele foi abençoado enquanto ainda estava em Canaã, e como seu clã cumpriu a predição de Isaque ao conquistar a terra de Seir (Gn.36.1-43).

O relato dos descendentes de Jacó indica como a graça de Yahweh preservou a família pactual da corrupção externa e da dissenção interna por intermédio de José e de sua peregrinação para o Egito (Gn.37.1-50.26).

Assim, o livro registra a história do homem desde o seu glorioso princípio no Éden até a narrativa bem pouco elogiosa da família escolhida, que deve enfrentar o conflito com o mal, mas que com mais frequência é derrotada pelo mal do que o derrota. Moisés incorporou ao

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seu livro tanto uma sensação de frustração quanto um sentimento de esperança de que surja algo ou alguém capaz de enfrentar adequadamente e, por fim, vencer o mal, sendo, desse modo, capaz de cumprir as promessas da aliança.

Ele ofereceu também o contexto da necessidade de um meio de regular a vida sob a promessa, um tema que será retomado em Êxodo e Levítico.

10. Esboço:

I. O Princípio da História da Humanidade (1.1—11.26) A. A Origem do Universo e da Vida (1.1—2.25)

1. Resumo de Toda a Criação (1.1—2.4) 2. Relato Detalhado da Criação de Adão e Eva (2.5-25)

B. A Origem do Pecado (3.1-24) 1. Tentação e Queda (3.1-6) 2. Conseqüências da Queda (3.7-24)

C. As Origens da Civilização (4.1—5.32) 1. Caim: Cultura Pagã (4.1-24) 2. Sete: Um Remanescente Justo (4.25,26) 3. Registro Genealógico dos Patriarcas Antediluvianos (5.1-32)

D. O Grande Dilúvio: O Julgamento Divino sobre a Civilização Primitiva (6.1—8.19)

1. A Depravação Universal (6.1-8,11,12) 2. A Preparação Mediante Noé para a Salvação de um

Remanescente Justo (6.9-22) 3. As Instruções Finais e o Dilúvio (7.1—8.19)

E. O Novo Começo da Humanidade (8.20—11.26) 1. A Posteridade de Noé (8.20—10.32; destaque: Sem, 11.10-26) 2. A Torre de Babel (11.1-9) 3. Elos Genealógicos entre Sem e Abraão (11.10-26)

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II. Os Começos do Povo Hebreu (11.27—50.26) A. Abraão (11.27—25.18)

1. Os Progenitores de Abraão (11.27-32) 2. A Chamada de Abraão e Sua Viagem pela Fé (12.1—14.24) 3. O Concerto entre Deus e Abraão (15.1-21) 4. Agar e Ismael (16.1-16) 5. O Concerto de Abraão Ratificado Mediante Seu Nome e a

Circuncisão (17.1-27) 6. A Promessa a Abraão e a Tragédia de Ló (18.1—19.38) 7. Abraão e Abimeleque (20.1-18) 8. Abraão e Isaque, o Filho da Promessa (21.1—24.67) 9. A Posteridade de Abraão (25.1-18)

B. Isaque (25.19—28.9) 1. O Nascimento de Esaú e Jacó (25.19-26) 2. Esaú Vende a Sua Primogenitura (25.27-34) 3. Isaque, Rebeca e Abimeleque (26.1-17) 4. Disputa a Respeito de Poços, e a Mudança de Isaque para

Berseba (26.18-33) 5. A Bênção Patriarcal (26.34—28.9)

C. Jacó (28.10—37.2a) 1. O Sonho de Jacó e Sua Viagem (28.10-22) 2. Jacó com Labão em Harã (29.1—31.55) 3. A Reconciliação de Jacó e Esaú (32.1—33.17) 4. Jacó Volta à Terra Prometida (33.18—35.20) 5.A Posteridade de Jacó e Esaú (35.21—37.2a)

D. José (37.2b—50.26) 1. José e Seus Irmãos em Canaã (37.2b-36) 2. Judá e Tamar (38.1-30) 3. José, Suas Provas e Elevação no Egito (39.1—41.57) 4. José e Seus Irmãos no Egito (42.1—45.28) 5. A Mudança para o Egito, do Pai e Irmãos de José (46.1—

47.26) 6. Jacó: Suas Últimas Profecias, Últimos Dias e Morte (47.27—

50.14) 7. José: Final de Sua Vida e Sua Morte (50.15-26)

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BIBLIOGRAFIA DO CAPÍTULO IV: - HILL, Andrew E. e WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento. Belo Horizonte: Vida, 2000. - WALTON, John. O Antigo Testamento em quadros. São Paulo: Vida, 2001. - GOWER, Ralph. Usos e costumes dos tempos bíblicos”. Rio de Janeiro: CPAD, 2002. - DOCKERY, David S. Manual Bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2001. - DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia - BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento. V.1,2. São Paulo: ASTE, 1968. - BÍBLIA – Estudo de Genebra. Tradução Revista e Atualizada no Brasil. São Paulo: Cultura Cristã, 1998. - BÍBLIA – Português. Bíblia Sagrada. Tradução: Escola Bíblica de Jerusalém, nova ed. rev. São Paulo: Paulus, 1985. - ELLISSEN, Stanley. Conheça Melhor o Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2007. - HOFF, Paul. O Pentateuco. São Paulo: Vida, 2002. - PINTO, Carlos Oswaldo. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006. - LASOR, William S.; HUBBARD, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003. - BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1981. - CHARPENTIER, E. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1986. - FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. - GRUEN, Wolfgang. O tempo que se chama hoje: uma introdução ao Antigo Testamento. 11ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1985. - HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1975. - MARTIN.ACHARD, Robert. Como ler o Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1970. - METZGER, Martin. História de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1972. - PURY, Albert de (Org). O pentatêuco em questão. Petrópolis: Vozes, 1996. - RENDTORFF, Rolf. Antigo Testamento: uma introdução. Santo André: Academia Cristã, 2009. - SCHMIDT, H. Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994. - SICRE, Jose Luiz. Introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1995.

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V – O LIVRO DE ÊXODO:

Êxodo dá continuuidade à narrativa iniciada em Gênesis. O livro começa com a descrição do sofrimento dos descendentes de Jacó no Egito, a saber: opressão, escravidão e infanticídio, e termina com a presença, o poder e a glória de Deus manifestos no Tabernáculo, no meio do seu povo já liberto e no deserto. O êxodo de Israel para fora do Egito é declarado em todo o Antigo Testamento como a mais grandiosa experiência de redenção do antigo concerto.

1. Título:

O título hebraico desse livro é (we’ellêh hassemôt) “estes são os nomes de”, a frase de abertura do texto hebraico. Uma vez que a mesma frase ocorre em Gênesis 46.8 em conexão com a lista da família de Jacó, as palavras iniciais de Êxodo (o título hebraico) indicam que êxodo deve ser visto como uma sequência, uma continuação da “saga” nacional apresentada em Gênesis.

Os tradutores gregos da Septuaginta escolheram o título (exodos), “uma partida”, o que também se encaixa bem com o principal incidente histórico do livro, a saída de Israel do Egito. O autor judeu Fílon de Alexandria, as versões siríacas e as traduções latinas retiveram o título, que, na maioria das versões modernas, foi preservado em sua forma transliterada.

2. Fundo Histórico:

a. Data em que foi escrito: (cerca de 1440 a.C.)

� Se Moisés escreveu Gênesis nessa data, deve tê-lo feito durante a primeira parte de sua peregrinação com o povo judeu pelo deserto de Cades-Barnéia.

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b. Data do êxodo: (cerca de 1445 a.C.)

Além desta, outra data também é defendida pelos estudiosos do Antigo Testamento: 1290 a.C.

� Esta última data (1290 a.C.) é hipotética. Está baseada na teoria de que Ramessés II (1292-1234 a.C.) construiu as cidade-celeiros de Pitom e Ramessés no delta do Nilo. Entretanto, esse ponto de vista está em desacordo com a ocupação de Jericó e Canaã no final do século XV a.C.

� A data anterior (1445 a.C.) é a preferida pelas seguintes razões:

- 1Rs.6.1 situa o êxodo 480 anos antes de Salomão começar a construir o templo, o que está fixado em 967 a.C. - Jz.11.26 situa a conquista da Transjordânia 300 anos antes da época de Jefté (que viveu por volta de 1100 a.C.). - At.13.17-20 dá o período aproximado do êxodo a Samuel como de 450 anos. Samuel morreu por volta de 1020 a.C. - A data que o arqueólogo John Garstang deu para a queda de Jericó é a melhor atestada, embora tenha sido posta em dúvida por Kathleen Kenyon (por exemplo, nenhum sepultamento em Jericó poderia ter um data posterior a 1375 a.C.). - Se aceitarmos 1290 a.C. como a data do êxodo, seremos forçados a admitir a ocorrência desse evento entre essa data e 1210 a.C., pois a tribulação e a construção das cidades começaram antes de Moisés nascer, 80 anos antes do êxodo. Todavia, isso é impossível de ser historicamente demonstrado até mesmo por aqueles que advogam aquela data. O nome “Ramessés” deriva do deus-sol “Ra”, e é provável que tenha sido usado muito antes do nascimento desse faraó popular e forte.

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c. A vida de Moisés: Três períodos de 40 anos.

� Os primeiros 40 anos de sua vida, Moisés passou no lar de seus pais e no palácio de faraó. Nascido em Gósen mais ou menos em 1525 a.C., foi o segundo filho de Anrão e Joquebede, da tribo de Levi. No lar paterno, Moisés recebeu sua formação religiosa, e na corte do faraó adquiriu conhecimento intelectual e político, além de treinamento militar.

� Os segundos 40 anos passou exilado em Midiã, fugindo de faraó, meditando e trabalhando como pastor. Casou-se com Zípora, filho de Jetro, o sacerdote, e nasceram-lhe dois filhos, Gérson e Eliezer (Êx.18.34).

� Os últimos 40 anos de sua vida os viveu no Egito e no deserto, na condição de primeiro líder de Israel. Serviu ao Senhor como profeta, sacerdote e rei, muito antes de esses cargos serem estabelecidos entre os judeus. Ensinou a todos como um profeta; como um sacerdote, intercedeu por eles quando caíram na idolatria e, como líder, retirou-os da servidão e os organizou como o povo da aliança de Deus.

d. Geografia do Egito:

� O Egito antigo consistia

em duas partes: Baixo Egito, com a larga região do delta, e o Alto Egito, com sua estreita faixa de terra (mais ou menos 19 km de largura) ao longo do rio Nilo, numa extensão de quase 966 km para o sul. Estava isolado de outros países pelos desertos, mar e cataratas da parte mais alta do rio. Em razão do fato de

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quase não chover naquela região, o Egito dependia inteiramente do Nilo. Este recebia água de diversos rios e lagos do interior da África. Em setembro, o Nilo transbordava, irrigando e fertilizando o vale com os ricos depósitos e águas aluviais, o que tornava o país o “celeiro” do Oriente Médio. Sua posição isolada também contribuiu para a tranqüilidade e o progresso pacífico da nação em muitos períodos da História.

e. Política do Egito:

� A geografia atingiu grandemente a política egípcia. Dividido

administrativamente em duas regiões, Norte e Sul, sua capital teve de ser mudada várias vezes, funcionando ora em Tebas (Nô-Amon), no Alto Egito, ao sul, ora em Mênfis (Nofe ou Ramessés) ou Avaris, no delta do Baixo Egito. O nome bíblico para o país dos faraós é “Mizraim”, que significa “dois Egitos”.

� Ptolomeu II Filadelfo (285 – 247 a.C.) designou Maneto, um sacerdote-historiador da corte, para que escrevesse a história do Egito como parte da atividade científico-literária daquele monarca. Desse modo, tornou-se a fonte principal de informação sobre o Egito antigo. Muitos outros documentos e placas de várias paredes e sepulturas têm sido usados por egiptólogos modernos para reconstruir a história, mas todos admitem que as datas ainda não são muito precisas, especialmente as mais antigas.

� Os faraós do tempo de Moisés: - Amósis I (1580-1558 a.C.) não somente continuou a opressão dos combativos hicsos sobre o povo judeu, mas até aumentou-a, provavelmente por causa da formação estrangeira de Israel e seu crescimento demográfico ameaçador. - Tutmés I (1539-1514 a.C.) ordenou a matança dos meninos na época em que Moisés nasceu.

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- Hatshepsut, a rainha (1504-1482 a.C.), filha de Tutmés I e esposa de Tutmés II (1520-1504 a.C.), usurpou o trono depois da morte deste, e foi provavelmente a filha de faraó que adotou Moisés em 1525. - Foi de Tutmés III (1504-1450 a.C.) que Moisés fugiu para o deserto de Midiã (apesar de Hatshepsut ainda estar viva na época dessa fuga). - Amenófis II (1450-1426 a.C.) foi o faraó com quem Moisés se confrontou e a quem Deus mandou as pragas. O faraó seguinte (Tutmés IV) não era seu herdeiro natural, mas um filho nascido mais tarde, o que sugere que o primogênito tenha morrido.

• Cenário Religioso:

f. As Religiões do Egito:

� Os egípcios antigos eram muito religiosos. Adoravam uma

infinidade de divindades. Tinham deuses nacionais e locais, além de fetiches relacionados a inúmeras manifestações da natureza. Eis alguns de seus deuses principais: Ra e Amom-Ra, deuses do sol; Osíris, deus do Nilo, adorado como Senhor da fertilidade ou da vida; Hórus, também um deus do sol, representado por um falcão; Ptá, deus de Mênfis e dos artistas. Os egípcios acreditavam que em cada ser ou objeto da natureza habitava um espírito que tinha escolhido aquela forma para expressar-se. Essa idéia levou-os à adoração de animais como o gato, o touro, a vaca e o crocodilo.

� As divindades mais importantes tinham imensos templos. Seus sacerdotes exerciam grande poder sobre o povo e os políticos egípcios. A circuncisão era um de seus ritos mais notáveis.

� Todas as religiões praticadas no Egito defendiam a crença na vida após a morte. Tal crença levou o povo egípcio a se preocupar, como nenhum outro, com os preparativos para

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o sepultamento. Os faraós, os governadores e as pessoas ricas construíam grandes túmulos e monumentos com a finalidade de preservar suas múmias. Também guardavam ali seus bens materiais, os quais, na concepção deles, os acompanhariam na vida futura.

g. A Religião de Israel no Egito:

� José exerceu grande influência espiritual sobre Israel até

1804 a.C., data de sua morte. Liderou espiritualmente aquele povo durante 51 anos. O isolamento em Gósen também contribuiu para proteger os israelitas da idolatria do Egito.

� Houve, porém, uma época em que os descendentes de Jacó aderiram aos deuses egípcios, e a corrupção tomou conta de quase todos eles. Moisés não registrou esse fato, mas Ezequiel (Ez.20.6-10). Em razão da idolatria e da corrupção, o Senhor resolveu derramar sobre eles sua ira. Só não fez por fidelidade a sua aliança com os patriarcas. Todavia, isso talvez explique a causa de Israel ter sido tão oprimido no Egito, excluindo-se os motivos políticos. Deus usou a opressão do faraó como instrumento para derramar sua ira sobre a conduta idólatra dos israelitas.

� O ataúde de José, entretanto, era para Israel um lembrete contínuo da promessa de Deus de um dia tirá-los do Egito e levá-los de volta a Canaã.

3. Autoria:

No Novo Testamento, Jesus chama Êxodo de “o livro de

Moisés” (Mc.12.26) e não há razões imperativas para a rejeição da autoria mosaica do livro. (Para maiores detalhes ver o Capítulo 3 – Introdução ao Pentateuco)

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4. Data:

Assumindo a autoria mosaica de Êxodo, devemos datar o livro após o acontecimento do êxodo (cerca de 1450-1440 a.C.) e antes da morte de Moisés, próxima a 1406 a.C.. De acordo com a datação abaixo, o nascimento de Moisés teria ocorrido durante o reinado de Tutmés I. Hatsepsute, a rainha viúva de Tutmés II, usou títulos masculinos e até mesmo uma barba quando reinou a partir de 1504-1483 a.C.. Talvez fosse ela então o Faraó que já havia falecido quando Moisés retornou de Midiã ao Egito.

Êxodo prossegue com o relato do cumprimento da promessa de Deus a Abraão no sentido de abençoá-lo e dele fazer uma grande nação (Gn.12.2). O livro começa com a descida de Israel ao Egito (Êx.1.1-7), o que, em conexão com Gn.46.8-27, vincula o livro às narrativas de Gênesis. A obra termina com Israel no Sinai onde o tabernáculo é concluído. Os acontecimentos registrados no livro podem ser situados no seu contexto histórico.

A ascensão de José ao poder (Êx.1.5) vincula-se melhor às condições favoráveis para a família de Jacó criadas pelo domínio do Egito pelos hicsos, que também eram semitas (cerca de 1700-1550 a.C.). A referência em Êx.1.8 a um novo rei “que não conheceu José” refere-sem provavelmente, à expulsão dos hicsos pelo fundador da décima oitava dinastia, Ahmose (1570-1546 a.C.). Datando o Êxodo em torno de 1450-1440 a.C., o faraó da opressão provavelmente foi Tutmés I (1526-1512 a.C.), enquanto o faraó do Êxodo teria sido Tutmés III (1504-1450 a.C.) ou Amenotepe II (1450-1425 a.C.). Esta datação permitiria uma possível identificação dos imigrantes israelitas com os habiru, um grupo mencionado nas cartas de Tell el-Amarna (correspondência entre o Egito e os seus vassalos siro-palestinos durante o século XIV a.C.). Os habiru eram uma classe social ou ocupacional comumente atestada em textos a partir de 2000 a.C.. Eles tornaram-se párias políticos na Palestina (Gn.14.13).

A aliança do Sinai (Êx.19.1-20.21; 24) assemelha-se, tanto na forma como no conteúdo, à forma dos tratados entre estados do segundo milênio a.C., especialmente os tratados entre os estados hititas. Esses tratados incluíam um preâmbulo (Êx.20.2), estipulações (Êx.20.3-

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17), ratificação (Êx.24.1-11), além de bênçãos e maldições. Uma cópia do tratado era muitas vezes guardada nos santuários de ambas as partes. Igualmente a semelhança do conteúdo das leis casuísticas dos capítulos 21-23 em relação aos códigos do antigo Oriente Próximo (particularmente o Código de Hamurábi da Babilônia, em torno de 1750 a.C.) tem sido frequentemente observada.

5. Cronologias do Livro:

Faraós do Egito relacionados com Israel:

A. Velho Império – Dinastias I – VI – cerca de 2850-2200 a.C. 1. Menés, primeiro rei do Egito (cerca de 2850 a.C.). Reinou

em Tebas no Alto Egito, segundo Maneto, o historiador-sacerdote egípcio, que escreveu em 280 a.C.

2. Zoser (cerca de 2700 a.C.), da terceira dinastia, reinou em Mênfis e ali construiu a Pirâmide do Degrau, a primeira de uma série de 60, construídas de 2700 a 2200 a.C.

3. Quéfren (cerca de 2400 a.C.), da quarta dinastia, construiu a maior das pirâmides (quase 152m de altura), e seu sucessor, Khafre, construiu a Esfinge.

B. O Império Intermediário – Dinastias VII-XI – cerca de 2200-1900 a.C.

C. O Forte Médio Império – Dinastia XII – cerca de 1900-1750 a.C. 4. Amenemá I (cerca de 1900 a.C.) começou a décima segunda

dinastia em Tebas, mas reinou em Mênfis. Seu governo foi marcado por um período de grande desenvolvimento literário e comercial. A Síria e a Palestina estiveram parcialmente sob o governo egípcio nessa época.

5. Senusert (cerca de 1894-1878 a.C.) e Senusert III (1878-1871 a.C.) reinavam quando José esteve no Egito. Um deles

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fez do filho de Jacó primeiro-ministro e acolheu prazerosamente esse patriarca e sua família, instalando-os em Gósen. Construíram o primeiro vanal entre o Mar Vermelho e o delta do Nilo.

D. O Segundo Império Intermediário – Dinastias XIII-XVII – cerca de 1750-1570 a.C. 6. O governo dos hicsos nas dinastias XV-XVI (1720-1150

a.C.) era composto de reis pastores restrangeiros asiáticos. Governaram em Avaris, cidade localizada no delta do Nilo. Ali, estabeleceram um governo de força e introduziram no Egito o cavalo e o carro de guerra.

E. O Novo Império – Dinastias XVIII-XX – cerca de 1570-1150 a.C. 7. Amósis I, da dinastia anterior (1580-1558 a.C.), governando

em Tebas, expulsou os hicsos. Embora a opressão a Israel tenha provavelmente começado com o domínio hicso, os novos faraós naturais do país a intensificaram, receosos diante da presença de uma nação estrangeira no Egito.

8. Tutmés I (1539-1514 a.C.) alargou consideravelmente as fronteiras egípcias. Talvez tenha sido ele quem mandou matar todos os bebês masculinos de Israel, temendo o crescimento do povo hebreu.

9. Rainha Hatshepsut (1504-1482 a.C.) era filha de Tutmés I, Ela usurpou o trono e iniciou um governo forte quando seu meio-irmão e marido, Tutmés II, morreu. Foi evidentemente a filha do faraó que adotou Moisés.

10. Tutmés III (1504-1450 a.C.), embora não tivesse governado até 1482, talvez tenha sido o faraó mais forte do Egito, conquistador e construtor. Grandemente ressentido com a usurpação da Hatshepsut, tentou apagar a memória desta. Tendo derrotado os hititas em Megido em 1482 a.C., governou desde a quarta catarata, ao sul, até o Eufrades. Foi provavelmente o faraó de quem Moisés fugiu em 1485, apesar de a rainha Hatshepsut ainda viver naquela época.

11. Amenófis II (1450-1326 a.C.) ocupou o trono de seu pai Tutmés III com a idade de 18 anos. Alcançou êxito em

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todas as guerras que empreendeu. Reinava no Egito quando o Senhor enviou as pragas e tirou de lá seu povo. O faraó seguinte não foi seu herdeiro natural, mas um filho que lhe nasceu mais tarde, o que sugere que seu primogênito tenha morrido.

12. Ramessés II (1290-1224 a.C.), um dos faraós mais fortes dentre os dez Ramessés que reinaram no Egito durante dois séculos, venceu os hititas da Palestina. Muitos supõem que tenha sido ele o faraó do êxodo.

F. O Império Decadente – Dinastias XXI-XXX – cerca de 1150-332 a.C. 13. Sesaque I (ou Sesonque – 945-924 a.C.) iniciou a dinastia

XXIII, que durou dois séculos. Foi o primeiro de diversos governantes líbios, estabelecendo sua capital no delta leste. Saqueou Jerusalém em 925 a.C.

14. Neco II (609-593 a.C.), da dinastia XXVI, foi o faraó que matou o rei Josias em Megido por este lhe ter feito oposição e apoiado a Assíria na batalha de Carquemis (2Cr.35.20-24). Logo após esse episódio, Nabucodonosor despojou o Egito de todas as suas possessões asiáticas.

15. Ptolomeu I (323 a.C.) iniciou a era ptolemaica no Egito. Era um dos generais de Alexandre. Quando este imperador dividiu o Império Grego entre seus principais auxiliares, coube a Ptolomeu o Egito.

6. Características Literárias:

• Forma:

Ao contrário de Gênesis, Êxodo não possui um arranjo literário

fácil de perceber. O livro contém três narrativas (caps. 1–18, 32–34 e 39.32 − 40.38) e duas seções legais (19.1 − 31.18 e 35.1 − 39.31), caracterizando assim os interesses histórico e legal que deram a Israel sua estrutura nacional básica.

A característica literária mais notável do livro é o uso da estrutura dos tratados de suserania do segundo milênio na composição

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da aliança de Yahweh com Israel. O bem–conhecido capítulo que contém os Dez Mandamentos é estruturado como um tratado de suserania, com um preâmbulo (20.2a), um prólogo histórico (20.2b), e as estipulações pactuais (20.3-17), desenvolvidas no chamado Livro da Aliança. Êxodo 25.16, 21 indica que outro elemento dos tratados de suserania estava presente na ocasião, a provisão para a preservação do tratado.

Outra característica literária notável de Êxodo encontra-se no relato das nove primeiras pragas, em que os seguintes elementos estão presentes:

Pragas 1–3 Pragas 4–6 Pragas 7–9 Padrão narrativo Água feita em sangue [7.14-24]

Enxames de moscas [8.20-32]

Saraiva sobre a colheita [9.13-35]

Moisés aparece perante Faraó junto ao

rio. Rãs cobrem a terra do Egito

[8.1-15]

Peste nos animais [9.1-7]

Gafanhotos cobrem a terra

[10.1-20]

Moisés comparece perante Faraó (na corte

real?) Piolhos

cobrem a terra do Egito [8.16-19]

Úlceras no gado e no povo [9.8-12]

Trevas cobrem a terra do Egito

[10.21-29]

Gesto simbólico de Moisés e Arão longe

de Faraó

A questão de proporção merece ser observada, pois embora

Êxodo 12.41 afirme que o período de cativeiro egípcio havia durado 430 anos, os primeiros doze capítulos cobrem um período relativamente curto anterior à libertação, e os capítulos 19 a 40 cobrem um período de menos de um ano (19.1; 40.17). Isso demonstra que os eventos relacionados à aliança e ao estabelecimento do tabernáculo são a preocupação central do livro.

• Estilo:

O livro de Êxodo consiste, meio a meio, de literatura narrativa e literatura legal. A narrativa pertence ao gênero mais amplo conhecido como tôrâ, instrução, merecendo assim a descrição feita por George

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Knight de “um ensaio teológico em forma de narrativa”. O mesmo Knight chama Êxodo de “saga”, em contraste com “lenda” e “mito”, pois o livro preserva “memórias históricas de acontecimentos que detonaram as emoções do povo que os experimentou”.

A presença da narrativa da quebra da aliança nos capítulos 32 a 34 tem seu valor estilístico, porque, ao interromper a cadência ordenada das leis e preceder a descrição metódica do tabernáculo e sua construção, dramatiza a extrema necessidade que Israel tinha da presença santa e santificadora de Yahweh em seu meio, para impedir que a horda de escravos libertos do Egito deixasse de existir antes mesmo de constituir-se em nação.

7. Estrutura Teológica:

• A pessoa e o caráter de Deus:

Se Gênesis foi à sementeira para os conceitos que resumiam a concretização dos propósitos de Deus na história humana, Êxodo poderia ser retratado como o veio do qual se extraíram todas as pepitas teológicas do Antigo Testamento no que diz respeito ao caráter de Deus e ao Seu relacionamento com o povo escolhido. As constantes referências dos profetas ao livro e seus eventos são prova suficiente desta afirmação. No livro de Êxodo, alguns dos atributos e manifestações mais marcantes de Deus são os seguintes:

a. Deus é soberano:

Exemplos desta afirmação são numerosos em Êxodo. O crescimento numérico dos israelitas sob opressão (1.12), a sobrevivência de Moisés e sua adoção pela filha de Faraó (2.10), bem como a flagrante obstinação de Faraó, são exemplos que antecedem ao êxodo. Mais tarde, o afogamento do mais poderoso exército da terra (15.1-10) e a provisão sobrenatural para as necessidades do povo (15.22–16.18) revelam em grande escala o poder e a autoridade de Yahweh. Também em uma micro escala, Sua soberania se manifesta, com o diminuto maná que não

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caía no Sábado (16.26, 27) e apodrecia quando deixado sem cozinhar do sexto para o sétimo dia!

b. Deus é santo:

Isto se vê no fato de que o próprio solo em que Sua auto-revelação acontece é declarado santo (3.5). A santidade de Deus é demonstrada no caráter moral de Sua aliança e na separação e obediência exigidas de Seu povo (19.6). A Lei oferecia uma expressão verbal da santidade de Deus, ao passo que o tabernáculo oferecia uma expressão visual da mesma, com o valor crescente dos materiais e a acessibilidade decrescente à medida que se aproximava da sede da glória residente (s̆eqînâ), o Santo dos Santos.

c. Deus é justo:

A santidade divina manifesta-se em justo juízo contra aqueles que violam a expressão de Seu caráter e vontade, quer revelada oralmente perante Faraó, quer gravada em placas de pedra. Mesmo Moisés, em sua crença relutante, incorre na ira santa de Yahweh (4.14). Os exércitos do Egito são afogados pela manifestação da ira de Yahweh (15.8-12), e o povo da aliança é severamente disciplinado quando seu comportamento viola as recém-outorgadas (deḇārîm), “Palavras” que resumiam a vontade moral de Yahweh para o Seu povo (32.7-10, 25-35).

A justiça de Deus é, assim, relacionada a Seu zelo (20.4; 34.14). O caráter santo de Deus e Sua reputação perante o mundo não podem ser tratados levianamente.

d. Deus é apaziguável:

As idéias da justiça e da ira de Deus podem comunicar a impressão de que não há esperança para o indivíduo ou grupo que deixe de cumprir Seus padrões. O termo apaziguável aqui empregado intencionalmente para indicar a interação da ira santa e da graça misericordiosa de Yahweh.

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Mesmo Faraó, o gentio e idólatra, reconhece que o Deus irado dos escravos hebreus pode ser abordado em busca de misericórdia (cf. 10.16, 17). No incidente famoso por sua obscuridade, Zípora, intuitivamente, percebe que a ira de Yahweh contra Moisés devia-se à desobediência em relação ao mandamento de circuncidar todo macho israelita (cf. Êx 4.24-26 e Gn 17.12-14). Apaziguar a Deus naquela situação específica era questão de praticar aquilo que fora por muito tempo adiado por Moisés (possivelmente porque os midianitas não costumavam circuncidar os seus filhos).

Quando Israel pecou gravemente em idolatria e imoralidade, o furor da ira de Yahweh (32.9, 10) teria consumido toda a nação, a não ser pela humilde intercessão de Moisés (32.11-14). Mais adiante, o livro de Levítico apresentará em intrincados detalhes a maneira precisa pela qual um israelita crente se aproximaria de Yahweh para obter propiciação. Este ato de tornar Deus favorável nunca foi um simples suborno em Israel; Deus impunha as condições e oferecia os meios; Israel tinha apenas de responder em fé.

e. Deus é auto-existente:

A revelação concernente ao nome Yahweh (3.13-15) é o centro de uma prolongada polêmica entre os estudiosos. O próprio sentido da expressão (ʾehyeh ʾăšer ʾehyeh), eu sou o que sou, é debatido. A opinião deste autor é que ali Deus não introduziu um nome novo, pelo menos no que diz respeito ao sentido denotativo da palavra, pois o tetragramaton já fora usado em Gênesis 4. A novidade estava no sentido conotativo, pois Yahweh, o Deus que sempre era e seria, entrava na História para demonstrar que “se lembrava” de Seus compromissos passados. Cole afirma tal realidade ao dizer que “Israel não foi deixado, como aconteceu a outras nações, especulando sobre os problemas quanto à existência e natureza dos deuses. Seu Deus era um ‘Deus que está presente’, ativo na História, e que se revelou em palavra e ação”. As implicações possíveis dessa frase, ainda enigmática depois de 3.500 anos, são a soberania de Yahweh em revelar-Se ao homem e a singularidade de Yahweh como o Deus que realmente existe.

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• A administração dos propósitos de Deus:

O plano quádruplo de Yahweh para a História inclui Seu decreto de permitir o mal, Sua promessa e/ou ação para julgar o mal, a libertação do mal para os/pelos eleitos, e o decreto de abençoar os eleitos. Êxodo oferece certa continuidade e certa diferença em relação à maneira em que Gênesis tratou esses temas.

a. O decreto de permitir o mal:

Êxodo tem várias circunstâncias na qual Deus permite que o mal tenha livre curso até que Seus propósitos sejam alcançados. O livro começa com a família-que-virou-nação sendo oprimida, um mal que Deus permite para finalmente fazê-los voltar a Ele como seu Deus pactual, de acordo com a promessa feita a Abraão (Gn 17.7). Mesmo o fardo adicional lançado sobre os trabalhadores israelitas devido à obstinada oposição de Faraó ao pedido mosaico de “férias coletivas” foi mais tarde interpretado pelo salmista como um meio divino de preparar Seu povo para desfrutar a vida na Terra Prometida (Sl 105.37).

A atitude do coração de Faraó está intimamente ligada ao decreto divino de permitir o mal. À presciência divina das negativas de Faraó (3.19) não elimina o exercício da vontade pessoal do monarca ao manter Israel sob cativeiro, antes a confirma em obstinada incredulidade até que o Egito esteja maduro para o juízo e Israel pronto para o livramento (Rm 1.28).

Na ocasião em que a Lei está sendo outorgada, Israel chafurda no culto imoral que absorvera durante sua permanência no Egito (cap. 32; 1Co 10.7), mas mesmo este incidente é permitido por Deus para purificar Israel e melhor prepará-lo para ser o Seu povo pactual.

b. A promessa e/ou ação de julgar o mal:

Esta é, verdadeiramente, a ênfase da primeira parte do livro. As parteiras tementes a Deus, ao desobedecer Faraó e manter vivos os meninos israelitas, agem em Seu lugar, e Ele abençoa sua fidelidade (apesar de não aprovar seus métodos).

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A chamada de Moisés é o ato inicial pelo qual a promessa patriarcal de retorno a Canaã será cumprida (3.8-10; Gn 15.12-16). Seus atos milagrosos servem não apenas como libertação para Israel, mas também como juízo divino sobre o mal da idolatria egípcia, cujos ídolos e deuses animísticos são humilhados perante o Deus de Israel durante as pragas e nas águas do mar dos Juncos. Tais atos são o cumprimento, em curto prazo, de promessas encontradas nos primeiros capítulos do livro (3.8, 20-22; 6.1, 6-8).

Outro elemento dessa ação divina de julgar o mal, embora indiretamente, é a promulgação do Código da Aliança, cuja primeira parte se encontra em Êxodo. A vida sob a promessa seria assim regulada e o mal julgado de acordo com o caráter de Yahweh, conforme manifesto na Lei.

c. Libertação do juízo para os/pelos eleitos:

Moisés aparece no livro como o instrumento de Deus para a libertação, preparado por Deus em toda ciência e conhecimento do Egito, como também ensinado na escola da humildade nos áridos sertões de Midiã e do Sinai.

Em certo sentido, Moisés não pertencia à linhagem profeticamente designada para trazer a semente escolhida (Gn 49.10). Sendo, contudo, um descendente de Abraão, estava qualificado para continuar a missão mais genérica de trazer bênção a todas as famílias da terra, o que de fato fez primariamente por seu papel como Legislador.

Êxodo lança a base teológica sobre a qual os conceitos de salvação no Antigo Testamento foram desenvolvidos. O conceito básico era a idéia de libertação (nāṣal, 3.8), que descreve o ato de retirar Israel do Egito. Um termo menos freqüente é (gāʾal, 6.6; 15.13), traduzido por diferentes formas do verbo “redimir” ou “remir”, que fala ao mesmo tempo de pagamento e relacionamento. O Deus que se relaciona em aliança, Yahweh, é Aquele que providenciou a redenção por meio do cordeiro pascal. Esta redenção será mais tarde o padrão com o qual Isaías descreverá a futura restauração de Israel em termos de um segundo êxodo (Is 43.1).

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d. O decreto de abençoar os eleitos:

Exemplos desta parte do propósito de Deus estão geralmente ligados às revelações prévias de seu plano concernente a Israel, primariamente às promessas de Gênesis 15.12-21. Assim, Êxodo 3.8, 20, 22 e 6.1, 6-8 referem-se a manifestações divinas anteriores e a promessas pactuais de dar a Israel a terra de Canaã.

Em última análise, Êxodo contemplava a redenção definitiva, constituída não apenas de libertação do Egito, mas do estabelecimento na terra (15.17), e no exercício da soberania de Yahweh como rei (15.18). Para experimentar plenamente tais bênçãos, Israel teria de honrar a aliança feita no Sinai, tornando-se assim “propriedade peculiar” de Yahweh entre as nações (19.5). Isto não era uma substituição da aliança abraâmica, mas uma definição mais focalizada das condições sob as quais essas bênçãos seriam desfrutadas pela semente de Abraão.

Êxodo 19 é importante também por apresentar a maneira pela qual a segunda parte da bênção abraâmica seria cumprida. Obedecendo à aliança, Israel se tornaria um “reino de sacerdotes”, sendo, desse modo, o canal pelo qual a bênção da soberania restaurada de Deus se estenderia a todas as nações.

8. Contribuições Singulares do Livro:

a. A origem da nação de Israel:

Esse livro apresenta o antigo registro da origem e organziação de Israel. Descreve seu princípio infame em terra estranha soba pesada e cruel servidão, o livramento divino de captores relutantes e a pronta organização do povo com um conjunto de leis espirituais, sociais e civis para o governo da comunidade.

b. Primeiros milagres da bíblia:

Com excessão dos julgamentos sobrenaturais de Gênesis, as pragas do Egito são a primeira demonstração de milagres ou sinais sobrenaturais executados por homens. Essas pragas e a derrota inflingida

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pelo Senhor ao exército egípcio no mar Vermelho retratam o Deus de Israel, javé, como um “Guerreiro”.

9. Propósito:

Êxodo é um livro de livramento e estabelecimento. Nessa porção das Escrituras, a aliança estabelecida em Gênesis com os patriarcas, à medida que Yahweh irrompe no tempo e no espaço a fim de libertar Israel do cativeiro e estabelecê-lo como nação com uma regra de vida para a existência em Canaã e com a presença de Deus em seu meio, transforma-se na história de Israel.

O propósito do livro é promover obediência fiel a Yahweh, o Deus da aliança, relatando Sua atividade no livramento de Israel do cativeiro (caps. 1−18), oferecendo-lhe uma regra para a vida sob a promessa (caps. 19−31) e fazendo-Se presente em seu meio (caps. 32−40).

O livro começa com Israel sob a opressão dos Faraós da 18ª dinastia (cap. 1). Em meio a um pogrom (genocídio), nasce um bebê que Deus protege da morte e coloca no próprio palácio de Faraó para fazer dele o libertador de Seu povo (2.1-10). Ao buscar identificar-se com seu povo, Moisés vê-se rejeitado por Israel e perseguido por Faraó; começa assim seu período de treinamento em Midiã (2.16-22).

A certa altura de sua permanência em Midiã, Moisés foi até o monte Sinai, onde Yahweh Se manifestou a ele como o Deus pactual que estava prestes a intervir em favor de Seu povo sofrido e sofredor (2.23−4.17).

Embora extremamente relutante a princípio, Moisés é persuadido a voltar ao Egito como representante de Yahweh com uma dupla missão: revelar a Israel a nova maneira pela qual Yahweh se relacionaria com a nação, como “Eu sou o que sou”, o Deus que faz aliança, e para exigir que Faraó liberte os israelitas.

Seu retorno ao Egito é marcado, conforme Yahweh predissera, pela oposição de Faraó, uma vez que o propósito de Yahweh era demonstrar-Se superior aos falsos deuses do Egito, educando assim Israel no monoteísmo depois de quatrocentos anos de exposição ao crasso politeísmo no Egito (5.1 − 11.10). Este objetivo foi alcançado por

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uma série de calamidades que atingiram o Egito em um intervalo de aproximadamente um ano, esfrangalhando a economia do império egípcio e expondo a impotência dos deuses egípcios.

Embora algumas dessas pragas estejam presentes em certo ciclo natural, os episódios do êxodo claramente extrapolam os fenômenos naturais, não apenas devido a sua intensidade, mas também em virtude de sua miraculosa cessação (8.30, 31), além do fato de que uma área do Egito permaneceu livre de pragas, a terra de Gósem, onde os israelitas tinham suas casas.

Faraó, a quem Deus levantara para resistir a Sua vontade e usar para demonstrar Seu poder, voltou atrás em suas promessas várias vezes, até ser confrontado com a décima praga – a morte dos primogênitos (11.1−12.36). Enquanto os israelitas celebravam sua milagrosa preservação por meio do sangue do cordeiro da Páscoa (12.1-13), a morte espalhou seu sinistro manto por todo o Egito, fazendo com que os egípcios “subornassem” os israelitas para que saíssem de sua terra (12.33-36).

O cumprimento das promessas feitas a Abraão aconteceu depois de quatro gerações “abraâmicas” (12.37-42). Ainda assim, as doze tribos que saíram do Egito eram pouco mais do que uma turba, cujo número poderia chegar a dois milhões (12.37), extremamente necessitada de identidade nacional, religiosa e social.

Os primeiros dias fora do Egito trouxeram Israel a uma situação impossível de resolver, com a cavalaria egípcia em seu encalço e o mar dos Juncos (mar Vermelho? Grande Lago Amargo?) adiante deles. Ali, a capacidade de Yahweh de livrar Seu povo foi colocada a uma prova definitiva e demonstrou ser verdadeira (14.1-31). Sob a liderança de Moisés, Israel marchou a pé pelo leito do mar enxuto, ao passo que os egípcios foram tragados pelas águas turbulentas do mar. O primeiro hino de louvor de Israel, em celebração de seu livramento, foi entoado a seu Deus Guerreiro. (cap. 15).

Na rota previamente prometida até o Sinai, a falta de preparo de Israel, bem como sua falta de vontade de crer em Yahweh, ficaram evidentes em suas freqüentes murmurações em razão de temporárias faltas de água e de alimento. Fielmente, Yahweh proveu água em Mara (15.22-27), codornizes e maná no deserto de Sim (cap. 16), água em

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Massá (17.1-7), e vitória contra Amaleque (17.8-16). Uma provisão especial surge com a pessoa e o conselho de Jetro, sogro de Moisés, cujas palavras sábias moldaram o que viria a ser o sistema judicial de Israel (cap. 18).

Assim, a preservação do relacionamento com Israel exigia que a turba que saíra do Egito recebesse um código de leis que a ajudasse a tornar-se nação. Isso significava legislação religiosa, ética e civil. A legislação é apresentada em forma resumida nas Dez Palavras, ou Dez Mandamentos (20.1-21), que se desdobram no Livro da Aliança, no qual as implicações religiosas, éticas e civis das Dez Palavras são desenvolvidas (20.22−23.33).

Esse “Livro da Aliança” regula vários relacionamentos sociais de um modo que ressalta a santidade de Deus e a santidade da vida humana. A nação concorda em obedecer aos regulamentos propostos, e a Aliança é ratificada por meio de sacrifícios e da aspersão do sangue (24.1-11).

Os capítulos 25 a 31 contêm informações detalhadas sobre a estrutura portátil que abrigaria o culto de Israel e seria a sede da gloriosa presença de Yahweh entre Seu povo. Doações voluntárias seriam solicitadas (25.1-9) e a capacitação divina seria oferecida aos artífices para o intrincado trabalho (31.1-11). Ao final deste manual de especificações arquitetônicas, Moisés recebeu os sinais visíveis da aliança, as duas tábuas de pedra (31.18; a prática de guardar uma cópia do tratado de suserania no templo da divindade nacional).

A despeito desse cenário de grandeza, no sopé da montanha, a aliança recém-celebrada já fora quebrada por um povo acostumado a deuses visíveis, e tão duro de coração que não acreditava em Yahweh, apesar dos muitos milagres que presenciara (32.1-6). Idolatria e imoralidade grosseiras provocam o caos no acampamento de Israel, em reação ao qual Moisés intercede com Yahweh em favor do povo e da própria reputação divina (32.7-14). No entanto, Moisés, quando confrontado ele mesmo com a cena, arde com ira santa e, em consonância com os atos da nação, quebra as tábuas da aliança (32.15-19).

Depois de disciplinar os idólatras com a ajuda dos levitas (que assim se recuperam do ato infame de seu ancestral em Siquém, Gn 34), Moisés uma vez mais intercede por Israel, suplicando a Yahweh que Sua

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presença não seja retirada do meio do povo (33.12, 13, 15, 16). Graciosamente, Yahweh restaura a aliança e revela-Se a Moisés (34.1-9), dando-lhe atestação pública de seu papel, ao fazer com que o rosto de Moisés reflita algo da glória divina, como mediador em nome de Yahweh (34.29-35; 2Co 3.7, 13).

Por fim, o cenário está pronto para a construção do tabernáculo. Por meio de contribuições fiéis (35.1-19), da capacitação divina (35.30−36.7) e da conformidade ao padrão divino dado a Moisés, o tabernáculo foi completado no primeiro dia do mês de Abibe de 1445 a.C. A inspeção oficial de Moisés certificou que a construção e sua mobília, bem como as vestes sacerdotais, estavam de acordo com as especificações divinas, e a cerimônia de dedicação aconteceu (a dedicação dos sacerdotes é descrita em Levítico 8 e 9).

O ponto culminante do livro é a descida da nuvem da glória de Yahweh sobre o tabernáculo, que é, nesse momento, cheio da shekinah, a glória residente de Yahweh (40.34, 35). A turba de escravos agora tem um código de leis, um ministério sacerdotal para interceder perante Deus e direção divina para a sua jornada em direção até a Terra Prometida (40.36-38). As promessas feitas aos patriarcas foram preservadas e acham-se a caminho de sua plena fruição.

10. Esboço:

I. Opressão dos Hebreus no Egito (1.1-11.10) A. Sofrimentos dos Oprimidos (1.1-22) B. Preparação do Libertador (2.1-4.31)

1. Nascimento de Moisés e Seus Primeiros 40 Anos (2.1-15a) 2. Exílio de Moisés e o Seu 2º Período de 40 Anos (2.15b - 25) 3. Chamada de Moisés e Seu Regresso ao Egito (3.1-4.31)

C. Luta com o Opressor (5.1-11.10) 1. A Petição: Deixa Meu Povo Ir (5.1-3) 2. A Resposta: Perseguição Tirânica de Faraó (5.4-21) 3. A Garantia: O Senhor Manifestará Seu Senhorio (5.22-7.13) 4. O Recurso: As Dez Pragas (7.14-11.10)

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II. Livramento dos Hebreus do Egito (12.1-13.16). (Aqui começa o 3o período de 40 anos da vida de Moisés; At 7.36)

A. Livramento na Páscoa: Redenção pelo Sangue (12.1-15.21) B. Livramento no Mar Vermelho: Redenção pelo Poder (13.17-14.31) C. Cânticos do Livramento: Louvor ao Redentor (15.1-21)

III. Ensinamento a Israel a Caminho do Monte Sinai (15.22-19.2).

A. A Prova da Adversidade e o Cuidado Providente de Deus (15.22-19.2)

1. A Primeira Prova: Águas Amargas em Mara (15.22-27) 2. A Prova da Fome: Provisão de Codornizes e Maná (16.1-36) 3. A Prova da Sede: Água em Refidim (17.1-7) 4. A Prova do Combate: A Luta com Amaleque (17.8-16)

B. O Conselho Sábio de Jetro (18.1-27)

IV. O Pacto de Deus com Israel no Monte Sinai (19.3-24.18) A. Instruções Preparatórias a Moisés (19.3-24.18) B. Os Dez Mandamentos: Diretrizes de Vida e Conduta sob o Concerto (20.1-17) C. Ordenanças Preventivas do Relacionamento Pactual (20.18-23.19) D. Promessas Concernentes à Terra Prometida (23.20-33) E. Ratificação do Concerto (24.1-18)

V. Normas de Adoração a Deus por Israel, no Monte Sinai (25.1-40.38)

A. Instruções a Respeito do Tabernáculo (25.1-27.21) B. Instruções a Respeito dos Sacerdotes (28.1-31.18) C. O Pecado de Idolatria (32.1-34.35) D. Implementação das Instruções Divinas (35.1-40.38)

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BIBLIOGRAFIA DO CAPÍTULO V: - HILL, Andrew E. e WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento. Belo Horizonte: Vida, 2000. - WALTON, John. O Antigo Testamento em quadros. São Paulo: Vida, 2001. - GOWER, Ralph. Usos e costumes dos tempos bíblicos”. Rio de Janeiro: CPAD, 2002. - DOCKERY, David S. Manual Bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2001. - DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia - BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento. V.1,2. São Paulo: ASTE, 1968. - BÍBLIA – Estudo de Genebra. Tradução Revista e Atualizada no Brasil. São Paulo: Cultura Cristã, 1998. - BÍBLIA – Português. Bíblia Sagrada. Tradução: Escola Bíblica de Jerusalém, nova ed. rev. São Paulo: Paulus, 1985. - ELLISSEN, Stanley. Conheça Melhor o Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2007. - HOFF, Paul. O Pentateuco. São Paulo: Vida, 2002. - PINTO, Carlos Oswaldo. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006. - LASOR, William S.; HUBBARD, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003. - BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1981. - CHARPENTIER, E. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1986. - FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. - GRUEN, Wolfgang. O tempo que se chama hoje: uma introdução ao Antigo Testamento. 11ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1985. - HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1975. - MARTIN.ACHARD, Robert. Como ler o Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1970. - METZGER, Martin. História de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1972. - PURY, Albert de (Org). O pentatêuco em questão. Petrópolis: Vozes, 1996. - RENDTORFF, Rolf. Antigo Testamento: uma introdução. Santo André: Academia Cristã, 2009. - SCHMIDT, H. Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994. - SICRE, Jose Luiz. Introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1995.

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VI – O LIVRO DE LEVÍTICO:

Levítico está estreitamente ligado ao livro de Êxodo. Êxodo registra como os israelitas foram libertos do Egito, receberam a Lei de Deus e construíram o Tabernáculo segundo o modelo determinado por Deus; termina quando o Santo vem habitar no Tabernáculo recém-construído (Êx.40.34). Levítico contém as leis que Deus deu a Moisés durante os dois meses entre o término do Tabernáculo (Êx.40.17) e a partida de Israel do monte Sinai (Nm.10.11).

Levítico é o terceiro livro de Moisés. Mais de cinqüenta vezes, o livro declara que seu conteúdo encerra as palavras da revelação que Deus deu diretamente a Moisés para Israel, as quais, Moisés, a seguir, reduziu à forma escrita.

1. Título:

O título do terceiro livro do Pentateuco é de certa forma, equivocado, uma vez que o adjetivo grego (leuitikon), usado pelos tradutores da Septuaginta como título para o livro, significa “aquilo que diz respeito aos levitas”, que quase não são mencionados no livro. As traduções latinas e das diversas línguas ocidentais preservaram o título grego por meio de simples transliteração.

O título hebraico é (wayyiqra’, “e ele [Yahweh] chamou”), a primeira palavra do Texto Massorético. O título em si não é descritivo, mas oferece indícios de alto conteúdo revelacional do livro, no qual Deus (Yahweh) fala diretamente a Moisés e/ou Arão nada menos do que 38 vezes.

2. Fundo Histórico:

a. Data em que foi escrito: (cerca de 1440 a.C.)

� Moisés deve ter composto esse livro logo depois do êxodo, durante os anos de peregrinação e relativa folga em Cades-Barnéia. Embora grande parte de seu conteúdo tenha sido recebida diretamente de Deus, sua organização na forma

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que conhecemos deve ter tido lugar depois da revolta e do castigo de 40 anos no deserto, vividos por “toda a geração daqueles que lhe tinham desagradado com seu mau procedimento” (Nm.32.12).

b. Período de tempo envolvido: (cerca de 30 dias)

� Moisés evidentemente deu essa legislação logo depois de

levantado o tarbernáculo em 1 de abril de 1444 a.C. e antes de o povo se pôr em marcha em 20 de maio (Êx.40.17; Nm.10.11). Como os últimos 20 dias foram dedicados ao censo (Nm.1.1), os acontecimentos de Levítico ocorreram provavelmente nos 30 dias do mês de abril (abibe).

� Durante esse tempo, os israelitas celebraram durante 7 dias o primeiro aniversário da Páscoa e do êxodo (Nm.9.1-12). Os que estavam imundospor terem tocado o cadáver de um homem tiveram a permissão de celebrar a Páscoa um mês mais tarde.

• Cenário Religioso:

� Recém-saídos do Egito idólatra, os aproximadamente 2,5

milhões de israelitas passaram o primeiro ano nas montanhas desertas do Sinai. Os teólogos chamam esse ano de “teológico”, pois nele o povo recebeu uma quantidade enorme de verdades religiosas. Em vez de irem diretamente para Canaã, foram levados pela coluna de fogo e pela nuvem, rumo ao sul, para o Sinai. Antes de confrontarem o inimigo, precisavam de uma comunhão especial com o Senhor. Para que isso acontecesse, Deus proveu-lhes comida, água, vestuário e saúde, a fim de afastá-los da idolatria e ensinar-lhes os caminhos e o caráter do Deus único e verdadeiro.

� Havendo recebido a Lei e o tabernáculo, precisavam ser instruídos quanto à adoração e culto no santuário e acerca da maneira de ter uma vida de santidade. Levítico provê

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essa instrução, especialmente para o ministério dos sacerdotes. Esclarece a maneira adequada de expiação, ou propiciação, pelo pecado e como deve ser feita a separação para o culto.

• Relação de Levítico com os outros Livros de Moisés:

� Enquanto outros livros tratam mais de história, Levítico

refere-se quase somente a leis (com excessão dos capítulos 8-10). Sua legislação é primordialmente sobre ritos religiosos. Trata da organização espiritual do povo, assim como Êxodo e Números tratam da organização civil, social e militar. Sua frase-chave é “Sejam santos porque Eu, o Senhor, o Deus de vocês, sou santo” (Lv.19.2). A palavra “santo” significa “reservado” para o Senhor.

� Levítico é o centro do Pentateuco, não só quanto à ênfase, mas também quanto à localização. Gênesis e Êxodo retratam a ruína do homem e a conseqüente libertação de toda forma de idolatria, servidão e morte. Números e Deuteronômio preparam a nação para o culto e a conquista. Levítico, porém, enfatiza a necessidade de adoração e comunhão com o Senhor. Entre o perdão de Êxodo e o poder de Números, faz-se necessária a pureza de Levítico. Adoração e comunhão são apresentadas para preencher a lacuna, de maneira que a redenção possa ser adequadamente apresentada e o culto efetuado de maneira correta.

3. Autoria:

A conclusão de que Moisés escreveu Levítico procede do caráter

interno do próprio Levítico e do Pentateuco como um todo, além de referências do Antigo e Novo Testamento que apontam Moisés como o autor do Pentateuco. (Para maiores detalhes ver o Capítulo 3 – Introdução ao Pentateuco)

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4. Data:

Levítico relata do início ao fim, as palavras de Deus a Moisés e ao seu irmão Arão, mas jamais informa quando e como essas palavras foram escritas. A data exata em que Levítico foi escrito permanece um tanto incerta, embora tenha ocorrido, sem dúvida, durante a peregrinação no deserto antes da morte de Moisés (cerca de 1406 a.C.). A maioria dos exegetas críticos situa a redação de Levítico na era pós-exílica (em torno do século VI a.C.), muitos séculos depois de Moisés. No entanto, essa opinião é improvável porque o conteúdo de Levítico não se ajusta a este período tardio: o culto do segundo templo difere de modo significativo do que é apresentado em Levítico. Além disso, Levítico é pressuposto ou citado em livros mais antigos, tais como Deuteronômio, Amós e, de forma mais evidente, Ezequiel. Outros argumentos contra a origem de Levítico na época de Moisés também são convincentes. O livro reflete os ideais de culto e santidade que eram aceitos em Israel desde o tempo de Moisés até a queda de Jerusalém em 587/86 a.C.

5. Características Literárias:

• Forma:

Levítico é quase que exclusivamente literatura legal. A não ser pelos capítulos 8 a 10, o livro contém regulamentos sobre os aspectos rituais da vida de Israel, não apenas aqueles imediatamente ligados ao culto, mas também alguns que lidavam com situações do cotidiano e sua influência sobre a participação do indivíduo ou de um grupo na adoração a Yahweh. Levítico, assim como Êxodo, inclui tanto leis apodícticas (o capítulo 19 é o principal exemplo) quanto casuísticas (o capítulo 13 é um exemplo marcante deste tipo de legislação).

Archer oferece evidências arqueológicas da natureza e forma dos códigos legais do segundo milênio a.C. na Fenícia e na Mesopotâmia, as quais indicam a necessidade de aceitar uma autoria mosaica para Levítico, em vez de postular fontes mais recentes como o código H (de Holiness, “santidade”) e P (de Priestly, “sacerdotal”).

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• Estilo:

Um artifício literário interessante no livro de Levítico é a descrição das diversas formas de sacrifício, seguida pela legislação referente a sua execução, quando o mais esperado seria que a forma e a função para cada tipo de oferta fossem dados em conjunto.

O uso de fórmulas introdutórias para seções específicas do livro é outro traço literário marcante desse livro. Assim, nos capítulos 1 a 3, a expressão (qorḇān, “oferta”) é predominante; nos capítulos 4 e 5 (até 6.7 na versão portuguesa), a expressão-chave é (wenislaḥ, “e ser-lhe-á perdoado”). Nos capítulos 6 a 17 (a partir de 6.8 em português), a fórmula mais usada é (zōʾṯ ṯôraṯ, “esta é a lei de”), e por fim nos capítulos 18 a 26, o indicador literário comum é a frase (ʾăn’ yhwh ʾĕlōheyḵā, “Eu sou o Senhor teu Deus”).

A presença de tais fórmulas literárias em Levítico, de maneira alguma, deve ser entendida como prova de diferentes fontes literárias ou documentos não-mosaicos. Indica apenas que Moisés, embora sem impor um padrão literário uniforme ao livro, certamente valeu-se dos padrões literários mais apropriados para o propósito de cada seção. G. J. Wenham observou bem que “é importante destacar a natureza especulativa de todas as tentativas de descobrir fontes em Levítico”.

6. Estrutura Teológica:

• A Pessoa e o Caráter de Deus:

Em contraste com Gênesis e Êxodo, em que as narrativas produziam farto material dos quais se poderiam derivar traços subjacentes do caráter divino ou de princípios divinos de ação, Levítico tem um mínimo de narrativa e um máximo de legislação. Estes, no entanto, oferecem percepções significativas da pessoa e do caráter de Deus em Seu relacionamento com o povo e na provisão que faz para que a comunhão pactual seja preservada.

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a. Deus é santo:

O versículo-chave do livro é um mandamento límpido de Yahweh. Sereis santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo (19.2). Santidade significa separação de alguma coisa para um propósito ou uso. No caso de Yahweh, significa Sua separação do mal em toda e qualquer de suas formas. O objetivo dessa legislação, como também a razão da narrativa chocante da morte de Abiú e Nadabe, no capítulo 10.

Assim, a comunhão desejada (ou melhor ordenada) por Yahweh com Seu povo dependia da assimilação de Seu conceito de santidade pelos israelitas. Esse conceito era radicalmente oposto ao uso do termo (qōḏeš, “santidade”) pelos cananeus, para quem ser (qāḏôš, “santo”) significava envolver-se com as formas mais degradantes de imoralidade, como ser prostituto ou prostituta cultual.

Israel, ao buscar os padrões divinos de santidade, teria de deixar para trás a forma de ser (ḥōl, “comum” ou “profana”), ir além da forma neutra de ser (ṭāhōr, “limpo”), para chegar à vida de identificação positiva com a pureza, a vida (qeḏôs ̆â, “santa”). Em muitos casos, a santidade era relacionada ao status cerimonial na comunidade, e o indivíduo e, até mesmo, toda a comunidade poderiam precisar progredir da forma de vida mais baixa, (ṭāmēʾ, “impura”), para cima, em direção ao perdão e aceitação de Yahweh.

b. Deus é imanente

O propósito de Deus, expresso nas palavras de Êxodo 25.8, era viver entre o Seu povo. As instruções detalhadas concernentes ao lugar de Sua manifestação, oferecidas em Êxodo, são seguidas de instruções igualmente detalhadas sobre como preservar o privilégio de Sua presença, encontradas em Levítico.

Outras nações do Oriente Médio antigo compartilhavam o conceito de ter a divindade nacional habitando no meio do povo. Israel, todavia, se destacava entre elas por desfrutar a presença de Yahweh por meio de um culto puro – cerimonial e eticamente puro – de modo a refletir o caráter santo de seu Deus.

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Outro aspecto merece ser observado, pois além da presença gloriosa manifestada acima da arca da aliança no Santo dos Santos, havia uma presença geral, santificadora, que afetava e impunha exigências sobre a religião de Israel (caps. 21–24), sobre os padrões de comportamento sexual (caps. 18 e 20), e sobre as relações interpessoais (caps. 19 e 25) dos israelitas.

c. Deus é gracioso

Em Levítico, nove vezes a frase (wenislaḥ lô, “e ser-lhe-á perdoado) apresenta a maravilhosa realidade de que Deus havia providenciado o perdão para algum tipo de deficiência (4.20, 26, 31, 35; 5.10, 13, 16, 18; 6.7). Isso aponta para o fato de que havia uma eficácia espiritual nos sacrifícios que Yahweh graciosamente planejara e revelara a Israel.

Uma vez que Seu propósito não era simplesmente libertar Israel do caos e da desordem da escravidão corporal no Egito, mas também do caos e da desordem de uma vida dominada pelo pecado, pela doença e pela morte, o sistema sacrificial transmitido à nação por Moisés englobava cada aspecto da vida e fazia provisão para impurezas morais e cerimoniais por meio do princípio de expiação vicária (i.e., substitutiva). O perdão de Yahweh sempre foi gratuito, mas nunca barato, já que sempre envolveu a entrega de uma vida em lugar de outra, com o benefício sendo apropriado mediante a fé.

O ponto culminante da graça de Yahweh na vida da nação ocorria no chamado (“Dia da Expiação” - o tradicional yôm haḵkip̄pûrîm, 23.27), quando os pecados de todo o ano eram expiados e, figurativamente, “despachados” para o deserto, removidos da vista da congregação. O retorno do sumo sacerdote do Santo dos Santos significava que Yahweh havia graciosamente estendido a Sua presença e proteção sobre a nação por mais um ano.

• A Administração dos propósitos de Deus:

Levítico não contém muitos elementos narrativos por meio dos quais seja possível estabelecer como se dá a atividade de Deus na

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História. O decreto de permitir o mal fica implícito nas descrições dos sacrifícios e das deficiências espirituais que os motivavam, bem como nas longas listas de alimentos e práticas proibidos, que revelam tanto a alienação da criatura de seu Criador quanto à alienação entre criatura e criatura.

O juízo contra o mal transparece no sistema de expiação vicária, em que vida é preço de vida diante de um Deus santo e justo. O incidente dramático de Nadabe e Abiú serve para indicar, de maneira clara, a importância da absoluta fidelidade às estipulações da aliança, mesmo àquelas que parecessem mais banais. O contexto sugere os crimes de usurpação de autoridade, insubordinação à legislação pactual e possível embriaguez, um contraste marcante com o ideal de santidade exigido de quem se propunha a servir perante Yahweh. Encontra-se o mesmo rigor nas maldições contra a desobediência pactual prometidas em 26.14-39.

O livramento por meio da semente escolhida não recebe grande ênfase em Levítico, em que apenas a restauração da nação, depois do castigo pela desobediência (26.40-45), pode ser diretamente relacionada a esta linha do plano mestre de Yahweh.

A bênção aos eleitos, por fim, transparece no desfrute da Terra Prometida e da comunhão com Yahweh por meio da obediência pactual (26.1-13). Israel possui a certeza, todavia, de que Deus jamais a abandonaria, nem descartaria as promessas pactuais feitas a Abraão (26.44, 45).

7. Contribuições Singulares do Livro:

a. Mensagem Direta do Senhor para Israel:

Levítico difere do resto do Pentateuco por ser quase todo ditado pelo Senhor a Moisés em favor de Israel. Mais do que em qualquer outro livro da Bíblia, o Senhor se identifica em Levítico pela frase: "Eu sou o Senhor." Ao falar do tabernáculo há pouco determindado, a primeira lição do Senhor para Israel foi sobre o tema: "Santidade". Desse modo, Deus identificou-se constantemente como o Senhor da aliança, ou "Yahweh".

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b. Princípios Divinos de Santidade:

A palavra "santo" (qodesh) é usada em Levítico mais do que nos outros livros bíblicos. Significa "reservado", mas neste livro é usada no sentido de "reservado para o Senhor". Embora em Levítico o termo seja utilizado mais para coisas e lugares, é também empregado para descrever o Senhor (Lv.11.44ss) e, com certa frequência, o povo do Senhor é instruído a "ser santo". É interessante notar que o Espírito Santo não é mencionado, mas talvez isto sirva para marcar a obra objetiva de Cristo nas ofertas como base da santidade. Essa santidade descrita não é um estado de espírito quanto à devoção. Ela significa apenas ser separado para Deus. Separado do que é profano. No capítulo 18, quando admoesta o povo a separar-se da imoralidade dos cananeus, o Senhor enfatiza pela primeira vez no livro a sua identidade (Lv.18.2-3). Por meio daquele povo estava o Senhor fazendo notório o seu santo nome entre as nações, e agora os descendentes de Abraão deviam santificar-se para Deus.

c. Instrução do Senhor para Adoração e Comunhão:

A instrução do Senhor em Levítico não foi dada como um meio de salvação, mas de aproximação de Deus. A redenção foi tipificada no cordeiro da Páscoa, e não nas ofertas levíticas. Estas ensinam o povo de Deus como adorar, dar graças e restaurar a comunhão interrompida pelo pecado. Esse reencontro com o Senhor é apresentado como um relacionamento de amor que envolve duas coisas em um sacrifício: a oferta de um animal valioso e o derramamento de sangue. A primeira trata da oferta do crente a Deus, e a segunda da dádiva de Deus em expiação pelo pecado do homem. Como o amor sempre envolve a doação de si próprio, a comunhão com o Criador precisa ser sacrificial. O adorador não chega a Deus de mãos vazias, como o pecador em busca da salvação. Ação de graças não pode ser compreendida ou oferecida sem "doação".

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d. Livro Bíblico de Derramamento de Sangue:

Levítico fala de sangue noventa e três vezes, um número bem maior do que a palavra "santo". Geralmente não colocamos esses dois termos lado a lado, pois a matança é repugnante, e não faz parte do nosso atual conceito de devoção. Todavia, nos tempos bíblicos matar um animal era coisa comum, tanto para uso doméstico como religioso. Devemos levar em conta o fato de que, pela sua natureza, a religião redentora tem de envolver "derramamento de sangue", porque "é o sangue que fará expiação" pela alma (Lv.17.11). Deus introduziu esta verdade no mundo pela primeira vez quano ele falou a Adão e Eva após o pecado. Porém, é em Levítico que essa verdade aparece sistematizada, e define os diversos significados das ofertas típicas. Para Israel, as ofertas simbolizam verdades sobre adoração e comunhão. Para nós, tipificam muitos aspectos da oferta de Cristo, quando ele se tornou o tipo de todas as ofertas. Sem essas explicações de Levítico, os crentes do Novo Testamento talvez não compreendessem o significado da morte de Cristo na cruz. Cada crente deve, portanto, familiarizar-se mais e mais com o valioso material de Levítico.

• Sistema Sacrificial de Ofertas do Antigo Testamento:

I. Origem e História das Ofertas no Antigo Testamento: a. Deus sacrificou animais para vestir Adão e Eva na ocasião

em que fez a sua aliança redentora (Gn.3.15-21). b. A oferta de sangue de Abel foi aceita “pela fé” (Gn.4.4;

Hb.11.4). c. Noé adorou a Deus com a oferta de animais limpos no

mundo após o Dilúvio (Gn.8.20). d. Fazer ofertas era quse uma prática universal dos povos

antigos. e. O Senhor apresentou um sistema de ofertas como parte

israelita da aliança. II. Importância das Ofertas no Antigo Testamento:

a. Ofertas de sangue simbolizavam o princípio vicário de expiação do pecado através da doação da vida.

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b. Representavam arrependimento, fé, adoração e agradecimento a Deus.

c. Constituiam religião em ação (Hb.11.4: “Pela fé Abel ofereceu...”).

d. Reconheciam e confessavam o direito de Deus sobre a vida e bens do homem.

e. Tipificavam vários aspectos da oferta “definitiva” de Cristo.

III. Significado das Ofertas Levíticas:

A Oferta Símbolo para Israel Tipo de Cristo A Oferta Redentora (Êxodo 12.1-13)

Cordeiro da Páscoa

Redenção do pecado e morte através do sangue de um

cordeiro

A oferta de Cristo pelo pecado como o Cordeiro de Deus (Jo.1.29)

Ofertas de Adoração (Levítico 1-3) Ofertas

Queimadas Dedicação da vida a Deus Cristo dedicou-se completamente a

Deus (Hb.10.5-7)

Oferta de Cereais

Consagração da produção a Deus

O corpo e Cristo apresentado a Deus como uma vida perfeita

(Hb.10.5)

Oferta de Paz

Expressão de agradecimento a Deus por partilhar com Ele e

com os outros

A oferta e Cristo provê paz com Deus (Ef.2.14)

Ofertas de Restauração (Levítico 4-7)

Oferta pelo Pecado

Restauração à comunhão pelo sangue substituto

A oferta de Cristo provê contínua renovação pela confissão (Hb.9.12,

26; 1Jo.1.9)

Oferta pelas Culpas

Restituição pelos danos do pecado contra Deus e o

próximo

A oferta de Cristo perante Deus compensa o dano do pecado

(2Co.5.19) Ofertas Cerimoniais de Purificação (Levítico 14; Números 19)

Duas Aves Purificação espiritual da contaminação de doenças

físicas

A oferta de Cristo purifica a contaminação das doenças

(Hb.9.22) Novilha Vermelha

Purificação espiritual de contaminação fortuita

A oferta de Cristo purifica de contaminação fortuita (Hb.9.13,14)

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e. Ame seu Vizinho; Ame seu Inimigo:

Levítico 19 costuma ser chamado de o “Sermão do Monte” do Antigo Testamento. Podia facilmente ser considerado um texto de autoria de Jesus, se bem que, de certa forma, nenhum texto bíblico está fora dessa condição. Este livro apresenta o ponto alto do amor ao próximo no Antigo Testamento, amor ordenado por Deus em termos claros e concisos. Cada ordem é seguida por: “Eu sou o Senhor”. Jesus considerou essa ordenança como o segundo grande mandamento da lei de Deus (Mateus 22.39).

f. O Grande Dia da Expiação de Israel – “Yom Kippur”:

O décimo dia do ano novo (10 de Zicri), dia em que ocorre o ritual de “Yom Kippur”, foi considerado o mais santo do ano. Era reservado para o lamento pessoal de quaisquer pecados não confessados do ano anterior, realçado por uma cerimônia nacional que simbolizava aquela confissão e a obra de Deus em remover aqueles pecados através da oferta de dois bodes. A preparação para esse ritual exigia a oferta de um novilho para a cerimônia da purificação do sumo sacerdote a fim de que ele pudesse executar o santo dever de entrar na presença de Deus no Santo dos Santos. Lançavam-se sortes, e um bode era escolhido para ser sacrificado ao Senhor. Enviavam o outro para “Azazel” (ou destruição), como “bode expiatório”. O bode sacrificado simbolizava os “meios de expiação”, um substituto adequado, e o bode expiatório a “consequência da expiação”, a remoção dos pecados. Somente nesse dia do ano o sumo sacerdote entrava no Santo dos Santos, uma vez por ele mesmo e uma pelo povo.

A palavra “expiação”, usada tão somente no Antigo Testamento, significa literalmente “cobrir” (Kaphar), e aparece 52 vezes em Levítico. O simbolismo dos dois bodes cumpriu-se com a morte de Cristo na cruz: como “bode sacrificado”, Cristo com o seu sangue tornou-se propiciação (satisfação) perante Deus pelos nossos pecados, abrindo-nos o caminho até a presença dele. Como “bode expiatório”, ele se tornou “Cordeiro de Deus”, tirando o pecado do mundo (Jo.1.29). Isaías 53 descreve a dupla missão. Até hoje os judeus observam com respeito essa

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data (o Dia da Expiação) como o maior dia de “jejum” [Finkelstein, Louis – Os Judeus: Sua História, Cultura e Religião, Vol.II, p.1783], e empregam toda ênfase no afastamento das animosidades sociais para renovar os laços de amizade. Tal atitude, é claro, enfatiza mais o resultado da expiação do que o processo.

g. O Calendário Sagrado Israelita dos “Sábados”:

Desde que a saída do Egito simbolizou o nascimento de Israel como nação, o mês daquele acontecimento (Nisã) tornou-se o primeiro do ano sagrado. Nesse calendário o número sete sobressai de diversas maneiras:

I. O sábado semanal – sétimo dia; II. A festa da Páscoa e o Pão Asmo – sete dias de duração; III. A festa do Pentecoste – sétima semana depois das Primícias; IV. A festa das Trombetas, Expiação e Tabernáculos – sétimo mês

sagrado; V. O Ano Sabático (de descanso) – sétimo ano; VI. O Ano Sabático do Jubileu – sétima semana de (quinquagésimo)

anos antes do Jubileu.

Embora esses sábados tivessem objetivos físicos e sociais, o seu propósito maior era dar ênfase ao relacionamento da aliança pelo encontro com o Senhor da aliança, e reflexão sobre a lei e as promessas.

• Calendário Hebraico das Festas Sagradas:

Observe os objetivos históricos das festas:

I. Político – Manter a nação unida por meio de convocações regulares.

II. Social – Renovar amizades nas festas da colheita. III. Religioso – Adorar o Deus da aliança e lembrar o

relacionamento com Ele baseado na aliança.

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Imagem Retirada da Bíblia de Estudo Pentecostal

Observe o cumprimento das festas típicas:

I. As festas da primavera foram cumpridas na morte e ressurreição

de Cristo e no nascimento da Igreja como as primícias do Pentecoste.

II. As festas do outono ainda estão para ser cumpridas tipicamente quando Israel reunir-se novamente no princípio de seu “novo ano”; quando tiver o seu período de lamentação e purificação espiritual; e quando começar o milênio das bênçãos.

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h. Tipos de Cristo em Levítico:

Este livro sacerdotal obviamente prefigura Cristo na sua obra como sumo sacerdote da nossa salvação. Do mesmo modo que Melquisedeque tipificou a pessoa de Cristo, Arão tipificou a obra do nosso Salvador, que é retratada em Levítico:

I. Função oficial de Arão: Oferecer ofertas pelo pecado e

interceder pelos pecadores. Do mesmo modo Cristo ofereceu-se a si mesmo na cruz pelo pecado, e em seguida entrou na presença de Deus para interceder pelo seu povo (Is.53.12).

II. Ofertas de Arão em três espécies: - O cordeiro da Páscoa tipificou Cristo como substituto para prover redenção ou livramento da morte. - As cinco ofertas de adoração e reparação tipificaram a oferta da própria vida e morte de Cristo para prover comunhão perfeita com o Pai, bem como paz e alegria entre o seu povo. - Os dois bodes do Dia da Expiação retratam o assunto “pecado” solucionado com perfeição por Cristo, que pagou o preço do julgamento do pecado e removeu-o para um lugar de destruição.

• Festas Sagradas de Israel e o seu Significado:

O propósito divino nas festas de Israel era o de trazer o

elemento tempo para o círculo de adoração. Eram os “encontros” do Senhor com Israel para comunhão, instrução e reflexão sobre o relacionamento e as responsabilidades da aliança. Vem a seguir um sumário das datas e funções específicas:

���� O Sábado Semanal – Observado em Lv.23.3 para introduzir as festas anuais.

� Objetivo: Dar descanso ao homem e animais e prover um período especial para Israel lembrar-se do Senhor que guarda a aliança.

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� Ritual: Abster-se de todo o trabalho. Os sacerdotes deviam fazer as ofertas diárias em dobro e apresentar novos pães da proposição no Tabernáculo.

� Tipo: Tipificava os crentes descansando na obra concluída de Cristo (Hb.4.1-10)

���� A Festa da Páscoa e a dos Pães Asmos – Dia 14, e de 15 a 22

de Abibe. � Objetivo: Lembrar o livramento da servidão e

morte no Egito e o fato de o Senhor tê-os aceitado como seus “primogênitos”.

� Ritual: Reunir todos os homens em frente ao Tabernáculo. Com as casas sem fermento, um cordeiro sem mácula seria sacrificado e comido pela família.

� Tipo: O cordeiro sacrificado tipificou a morte vicária de Cristo pelo pecado; o pão asmo, sua vida sem pecado, da qual os crentes se alimentam, em reflexão.

���� Festa das Primícias – 16 de Abibe (segundo dia dos Pães

Asmos; originalmente no domingo). � Objetivo: Dedicar ao Senhor toda a colheita da

terra em que habitavam. � Ritual: Os molhos das primícias, selecionados

no décimo dia, eram movidos em oferecimento ao Senhor no dia 16. (Mais tarde os grãos passaram a ser também colhidos)

� Tipos: As Primícias tipificavam a ressurreição de Cristo como as primícias da ressurreição dos crentes (1Co.15.20,23).

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���� Festa do Pentecoste (semanas) – 6 de Abibe (domingo) � Objetivo: Agradecer a colheita da cevada,

dedicar a próxima colheita do trigo e lembrar o livramento da escravidão do Egito.

� Ritual: Reunir os homens em frente ao Tabernáculo; apresentar ao Senhor dois pães levedados (como alimento diário), e mostrar liberalidade para com o pobre.

� Tipo: Os dois pães tipificavam a dupla colheita do Espírito, das primícias da igreja e mais tarde de Israel (Tg.1.18; Ap.14.4)

���� Festa das Trombetas – 1 de Tishri (mais ou menos em

outubro) � Objetivo: Marcar o início do ano civil e alertar a

nação para o início do mês sagrado, com suas importantes atividades.

� Ritual: As trombetas soavam por muito mais tempo e com som mais alto do que na outras luas novas.

� Tipo: A nova reunião de Israel antes do dia de lamentação e regozijo milenário.

���� Dia da Expiação – 10 de Tishri (mais ou menos em outubro;

originalmente numa sexta-feira) � Objetivo: Expiar quaiquer pecados ainda não

expiados e simbolizar a eliminação divina desses pecados, purificando assim a nação por mais um ano.

� Ritual: Chorar e afligir as suas almas; o sumo sacerdote oferecia um novilho e dois bodes, um bode para simbolizar a expiação e outro para levar sobre si todas as iniquidades do povo.

� Tipo: Tipificava Cristo, que expiou todos os nossos pecados, pagando por eles e levando-os sobre si (Hb.10.23-26).

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VII. Festa dos Tabernáculos – 15 a 22 de Tishri (em outubro, originalmente em duas quartas-feiras)

� Objetivo: Comemorar a peregrinação de Israel pelo deserto e o cuidado que Deus lhes dispensou; regozijar-se com a colheita do ano que passou, e cumprir os votos de ofertas voluntárias e de agradecimento feitos durante o ano.

� Ritual: Habitar em tendas de ramos; cumprir os votos do ano anterior; alegrar-se com os frutos e o agitar de ramos; os sacerdotes apresentavam ofertas especiais durante sete dias.

� Tipo: Tipificava a alegria e a paz milenária de Israel após a sua purificação (Zc.14).

8. Propósito:

Promover reverência nacional e individual a Yahweh em Sua

santidade apresentando as condições para que Israel se aproximasse d’Ele e preservasse Sua presença santa entre o povo.

A ênfase maior do livro é a santidade de Yahweh e a conseqüente exigência de santidade por parte de Seu povo. O significado básico dessa santidade é a separação em um sentido físico, mas com evidentes conotações morais e cultuais no livro.

Levítico é obviamente parte de um pacote revelador, iniciado em Êxodo 20, em vista da relação de bênçãos e maldições encontradas no capítulo 26. O livro prescreve as condições para que Israel desfrutasse a presença e a bênção de Deus; várias passagens sugerem que a legislação já contemplava a vida de Israel na Terra Prometida (particularmente, os capítulos 25 e 26).

A primeira parte do livro revela a maneira escolhida por Deus para que Israel se aproximasse Dele, o sistema sacrificial. Vida por vida é o princípio subjacente em cada sacrifício, os consagratórios (capítulos 1 e 2), os voluntários (capítulo 3) e os expiatórios (capítulos 4.1 – 6.7). Instruções específicas para a celebração de cada um desses sacrifícios aparecem nos capítulos 6.8–7.38.

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O sistema sacrificial é inaugurado nos capítulos 8 a 10, em que Arão e seus filhos são consagrados por Moisés. Uma terrível tragédia acontece e serve para revelar quão seriamente Yahweh lidava com a questão da santidade e a separação do pecado (10.1-7).

A segunda parte do livro descreve a maneira pela qual Israel experimentaria comunhão com Yahweh, ou seja, andando em santidade, separados das antigas práticas abomináveis do Egito e das futuras práticas abomináveis de Canaã, para onde Yahweh os levaria (19.27-31).

Israel deveria primeiramente separar-se de toda forma de impureza. Esses regulamentos, a maior parte deles relacionada ao âmbito físico, comunicavam a necessidade da nação viver de modo diferente de seus futuros vizinhos (11.1–16.34).

Regulamentos sobre dieta e higiene revelavam o cuidado de Yahweh pela saúde e bem-estar de Seu povo, ao mesmo tempo em que retratavam o alto valor da vida e seu custo expresso em sacrifícios substitutivos. A dramática necessidade de purificação era suprida pelo Dia da Expiação, a cerimônia anual por meio da qual os pecados não-identificados da nação eram perdoados com base no sangue derramado (16.1-34). Nesse dia crucial, fazia-se expiação pelo sumo sacerdote, pelo tabernáculo, pelo altar e pelo povo, e um bode (designado pela palavra Azazel [ʿăzāʾzēl], provavelmente derivada das palavras hebraicas para “bode” [ēz] e “partir” [ʿāzal) levava simbolicamente os pecados da nação para o deserto; essa complexa cerimônia permitia que Israel desfrutasse a presença de Yahweh por mais um ano.

Não é de espantar, assim, que a descrição do Dia da Expiação seja seguida por uma divisão menor dedicada à importância crucial do sangue na vida de Israel (17.1-16).

Essa segunda parte continua com a aplicação desde o princípio de santidade ou de separação até os relacionamentos interpessoais na comunidade da aliança. A primeira área em que Israel deveria se distinguir era a área sexual (18.1-30), o que em si não é surpreendente, à luz da extrema corrupção do estilo de vida dos cananeus. Incesto (18.6-18) e perversão (18.19-23), em suas diversas formas, eram proibidos em Israel.

O versículo chave do livro, 19.2, aparece em uma divisão do livro em que o caráter santo de Yahweh é aplicado a uma variedade de

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áreas da vida, tanto religiosas (19.3-8) quanto seculares (19.9-18). Santidade era um assunto tão vital para Israel que, quando Israel estivesse na Terra Prometida, a pena capital era a medida necessária para garantir sua busca (capítulo 20).

Uma vez que, em grande parte, a vida de santidade de Israel dependia da qualidade moral de seus sacerdotes, dois capítulos são especialmente dedicados aos padrões para suas qualificações e conduta (21.1–22.33).

A santidade também dependia, por parte de Israel, da lembrança constante de sua relação pactual com Yahweh, e este era um dos principais propósitos das santas convocações, as festas do calendário religioso de Israel. Elas recordavam eventos passados e apontavam profeticamente para a consumação das promessas pactuais de Israel no escathon (capítulo 23).

A punição de um homem que havia blasfemado por amaldiçoar a Yahweh oferece um segundo exemplo da natureza crucial da santidade, ou conformidade aos padrões de Deus (24.10-23).

À medida que Yahweh antevê a entrada de Israel em Canaã e a conquista da Terra Prometida, Ele descreve o tipo de comportamento que será coerente com Seu caráter santo (25.1–27.34). Os princípios do descanso sabático e do resgate (ou redenção) deveriam governar o uso e a propriedade da terra e da vida humana, pois tanto a terra quanto a vida pertencem a Yahweh (capítulo 25). A promessa das bênçãos da aliança e a ameaça das maldições da aliança eram designadas a motivar Israel à santidade (capítulo 26). A santidade de Yahweh era de tal ordem que mesmo aquilo que fosse votado a Ele acima e além das exigências da aliança não podia ser tratado levianamente (capítulo 27). Esse capítulo, considerado por muitos uma porção deslocada da Escritura, realmente oferece o ápice adequado a essa revelação do caráter santo de Yahweh. Ele é digno de muito mais do que tudo que temos, e o que a Ele alguém consagra, não deveria ser levianamente tomado de volta.

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9. Esboço:

I. O Caminho para Deus: A Expiação (1.1-16.34) A. Através dos Sacrifícios (1.1-7.38)

1. O Holocausto (1.1-17) 2. A Oferta de Manjares (2.1-16) 3. O Sacrifício Pacífico (3.1-17) 4. A Oferta pelo Pecado Não Intencional (4.1-5.13) 5. A Oferta pela Culpa (5.14-6.7) 6. O Holocausto Contínuo e as Ofertas dos Sacerdotes (6.8-23) 7. A Disposição da Vítima na Oferta pelo Pecado, na Oferta

pela Culpa, e no Sacrifício Pacífico (6.24-7.27) 8. A Oferta Alçada e o Resumo das Ofertas (7.28-38)

B. Através da Intercessão Sacerdotal (8.1-10.20) C. Através das Leis da Purificação (11.1-15.33) D. Através do Dia Anual da Expiação (16.1-34)

II. Requisito para o Andar Diante de Deus: a Santidade (17.1-27.34)

A. Santidade Através da Revelação do Sangue (17.1-16) B. Santidade Através dos Padrões Morais (18.1-22.33) C. Santidade Através da Adoração Normal (23.1-24.23) D. Santidade Através das Leis da Reparação, da Obediência e da Consagração (25.1-27.34)

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BIBLIOGRAFIA DO CAPÍTULO VI: - HILL, Andrew E. e WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento. Belo Horizonte: Vida, 2000. - WALTON, John. O Antigo Testamento em quadros. São Paulo: Vida, 2001. - GOWER, Ralph. Usos e costumes dos tempos bíblicos”. Rio de Janeiro: CPAD, 2002. - DOCKERY, David S. Manual Bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2001. - DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia - BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento. V.1,2. São Paulo: ASTE, 1968. - BÍBLIA – Estudo de Genebra. Tradução Revista e Atualizada no Brasil. São Paulo: Cultura Cristã, 1998. - BÍBLIA – Português. Bíblia Sagrada. Tradução: Escola Bíblica de Jerusalém, nova ed. rev. São Paulo: Paulus, 1985. - ELLISSEN, Stanley. Conheça Melhor o Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2007. - HOFF, Paul. O Pentateuco. São Paulo: Vida, 2002. - PINTO, Carlos Oswaldo. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006. - LASOR, William S.; HUBBARD, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003. - BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1981. - CHARPENTIER, E. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1986. - FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. - GRUEN, Wolfgang. O tempo que se chama hoje: uma introdução ao Antigo Testamento. 11ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1985. - HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1975. - MARTIN.ACHARD, Robert. Como ler o Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1970. - METZGER, Martin. História de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1972. - PURY, Albert de (Org). O pentatêuco em questão. Petrópolis: Vozes, 1996. - RENDTORFF, Rolf. Antigo Testamento: uma introdução. Santo André: Academia Cristã, 2009. - SCHMIDT, H. Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994. - SICRE, Jose Luiz. Introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1995.

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VII – O LIVRO DE NÚMEROS:

Cronologicamente, Números é uma continuação da história relatada no livro de Êxodo. Depois de uma estada de aproximadamente um ano no monte Sinai – período durante o qual Deus estabeleceu seu concerto com Israel, deu a Moisés a lei e o modelo do Tabernáculo e instruiu-o a respeito do conteúdo de Levítico – os israelitas se prepararam para continuar sua viagem à terra que Deus lhes prometera como descendentes de Abraão, Isaque e Jacó. Pouco antes de partirem do monte Sinai, no entanto, Deus mandou Moisés numerar todos os homens de guerra (Nm.1.2,3). Dezenove dias depois, a nação partiu de lá, numa curta viagem para Cades-Barnéia (Nm.10.11). Números registra a grave rebelião de Israel em Cades, e seus trinta e nove anos subseqüentes de julgamento no deserto, até quando Deus conduziu toda uma nova geração de israelitas às planícies de Moabe, à beira do rio Jordão, do lado oposto a Jericó e à terra prometida.

1. Título:

O título hebraico desse livro é (bemidbar, “no deserto de”), uma alusão à localização da maior parte dos acontecientos nele registrados. O título grego “Ariqmoi”, que sobrevive no título em português, enfatiza os dois recenseamentos nele registrados (que estão longe de ser o elemento mais importante do livro).

Embora tradicionalmente se pense que o livro descreve as peregrinações de Israel durante os quase 40 anos que se seguiram ao estabelecimento da aliança no Sinai, Números é praticamente omisso quanto àquele período. É provável que apenas os incidentes relacionados à Corá e o questionamento do sacerdócio aarônico pertençam ao período do deserto. Em certo sentido, os 38 anos e meio que Israel passou entre a incredulidade de Cades e as planícies de Moabe não são considerados na história da revelação divina a Israel.

Números serve ao propósito de demonstrar como Deus age em fidelidade para com a sua aliança, apesar da resistência obstinada do povo escolhido. O decreto divino de conceder a terra de Canaã a Israel

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será cumprido, ainda que seja (sob a ótica humana) retardado pela incredulidade e infidelidade da própria nação.

De outro lado, Números indica-nos como Deus usou o deserto para preparar uma geração disposta a confiar nele e cumprir a sua vontade em plena dependência. O breve, mas eloqüente, discurso de Josué e Calebe, em Nm.14.7-9, resume bem o conteúdo do livro. Deus (Yahweh) agradou-se de um povo que não se agradou dele, e que, por essa razão, perdeu o privilégio de ver cumprida a promessa em sua geração.

2. Fundo Histórico:

a. Data em que foi escrito: (concluído em cerca de 1405 a.C.)

b. Período de Tempo Abrangido: (1444-1405 a.C.)

� Números começa com a ordem dada pelo Senhor em 1º de maio de 1444 a.C. (data estimada) para se fazer o recenseamento do povo e termina com uma assembléia às margens do Jordão, pouco antes da morte de Moisés. A data de 14 de abril para a segunda Páscoa é dada retroativamente a fim de explicar a data opcional para os que celebram a Páscoa mais tarde (Nm.9).

� A duração total dos acontecimentos de Números é de 38 anos e 9 meses, em quatro períodos: - Recenseamento e preparo para a marcha (Nm.1 a 10): 20 dias. - Jornada até Cades-Barnéia; missão de espionagem (Nm.11 a 14): 70 dias. - Peregrinação no deserto em torno de Cades (Nm.15 a 20): 38 anos e 1 mês. - Jornada em torno de Edom até as campinas de Moabe (Nm.21 à 36): 5 meses.

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• Cenário Religioso:

� Este livro trata de duas gerações de Israel: a primeira havia saído do Egito, e a segunda estava para entrar em Canaã. A primeira tinha visto grandes milagres realizados por Moisés e recebera a Lei de maneira também miraculosa. Seus componentes foram, entretanto, destruídos por causa da desobediência e rebelião. A segunda geração cresceu conhecendo a Lei e recebendo diariamente o maná, e estava familiarizada com o fato de Deus ter destruído, por causa da corrupção, todos os habitantes do lado leste do Jordão.

� Quando a primeira geração pôs-se em marcha deixando o Sinai, o humor do povo começou a piorar paulatinamente. Surgiram queixas sobre o maná e a falta de gratidão pela provisão de Deus. Até na própria família de Moisés o ciúme e a disputa tiveram de ser julgados por Deus. Depois da grande rebelião em Cades-Barnéia, a congregação e muitos líderes continuaram em rebelião, até que toda a primeira geração morreu. Até Moisés, considerado rebelde no fim do período, foi negada a entrada em Canaã.

� Os dois grandes pecados de toda a assembléia no deserto ocorreram no Sinai e em Cades, ambos cometidos pela primeira geração. O primeiro foi a idolatria, e o segundo, a rebelião. Todos os dois ocorreram em agosto, em 1445 e 1444. Ambos precederam grandes dádivas de Deus: a Lei mosaica e a terra de Canaã. Depois do primeiro e do segundo pecados, manifestou-se a ira de Deus, bem como sua resolução de destruí-los. Após cada pecado, Deus demonstrou ira e misericórdia, perdoando-os sempre com base em sua aliança com Abraão e manifestando sua misericórdia para com eles.

� Após o funeral de Arão, começou um novo período com um novo sumo-sacerdote, Eleazar. À nova geração tinham de serem ensinadas muitas das lições recebidas pela primeira, como lições sobre murmuração, descrença e

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idolatria. O novo período começava com o Senhor mostrando-lhes grandes vitórias na Transjordânia.

� Apesar de terem recebido a Lei e o sistema levítico, é duvidoso que tenham guardado todos aqueles regulamentos no deserto. A prova disso é o fato de que o requisito da circuncisão só foi observado após a travessia do Jordão (Js.5.5).

3. Autoria:

Junto com o restante do Pentateuco, Números tem sido

tradicionalmente atribuído a Moisés. Essa conclusão baseia-se no caráter do Pentateuco como uma obra única e no claro testemunho tanto do Antigo como do Novo Testamento, os quais atribuem esses livros a Moisés. Isto é também fundamentado pela evidente antuguidade do material contido no Pentateuco. O próprio livro de Números refere-se à atividade de Moisés registrando eventos descritos no livro (Nm.33.2). Que a maior parte do livro venha das mãos de Moisés não elimina a possibilidade de atividade editorial posterior nem a probabilidade de algumas porções tere sido adicionadas após a morte de Moisés (por exemplo, Nm.12.3 e o obituário de Moisés em Dt.34).

4. Data:

A data da composição do livro pode situar-se no período após a peregrinação no deserto (que se seguiu ao êxodo) e antes da morte de Moisés, em torno de 1406 a.C.. O livro começa com os preparativos para a marcha através do deserto, relata as experiências na jornada, descreve a falta de fé que levou os israelitas da geração do êxodo a recusarem a conquista da Terra Prometida, relata os quarenta anos de espera até que uma geração inteira morresse, e termina com os preparativos para entrar em Canaã. Em vista de seu conteúdo, Números foi, evidentemente, escrito com uma admoestação para que a geração dos israelitas nascidos no deserto perseverasse na fé e na obediência, as quais faltaram a seus pais.

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5. Cronologia do Livro: - Cronologia das Jornadas de Israel no deserto:

Livro Acontecimento Data a.C. Referência

Êxodo (11 meses

e meio)

Instituição da Páscoa no Egito Partida de Ramessés, Egito Travessia do mar Vermelho Chegada ao deserto de Sim Chagada ao monte Sinai

Ano Teológico no Sinai Término do tabernáculo e a vinda da Glória

14 de abril de 1445 a.C. 15 de abril de 1445 a.C.

18 de abril de 1445 a.C. 15 de maio de 1445 a.C. 01 de junho de 1445 a.C.

01 de abril de 1444 a.C.

Êx.12.6 Êx.12.18; Nm.33.3 Nm.33.8 Êx.16.1 Êx.19.1

Êx.40.17

Levítico (meio mês)

Legislação levítica dada do tabernáculo pelo Senhor

1 a 14 de abril de 1444 a.C. Lv.1.1

Números (38 anos e 9 meses)

Segunda celebração da Páscoa no Sinai Primeiro censo de Israel e Ordem das tribos no acampamento Partida do monte Sinai Chegada a Cades-Barnéia depois de 21 paradas. Atraso de 7 dias em Hazerote por causa da lepra de Miriã Rebelião em Cades-Barnéia e promessa de morte para aquela geração (38 anos de peregrinação no deserto) Reunião em Cades-Barnéia Morte de Miriã Desobediência de Moisés e Arão Morte de Arão no Monte Hor Caminhada do monte Hor em direção ao rio Jordão. Grandes vitórias sobre os cananeus, amorreus, Basã e midianitas

14 de abril de 1444 a.C.

1 de maio de 1444 a.C.

20 de maio de 1444 a.C. 20 de junho de 1444 a.C.

1 de agosto de 1444 a.C.

1 de abril de 1406 a.C.

1 de agosto de 1406 a.C.

1 de setembro de 1406 a.C.

Nm.9.1

Nm.1-3

Nm.10.11 Nm.12.15;

Dt.1.2

Nm.14

Nm.20.1-13

Nm.33.38; 20.29

Nm.21.1-25.18

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Continuação...

Livro Acontecimento Data a.C. Referência

Deutero- nômio

(2 meses)

Moisés recebe o código deuteronômico e dá instruções ao povo sobre a vida em Canaã. Morte de Moisés no monte Nebo; pranteado por 30 dias

1 de fevereiro de 1405 a.C.

1 de março de 1405 a.C.

Dt.1.3

Dt.34.8

Josué (meio mês)

Josué lidera Israel por meio do Jordão Páscoa comemorada em Gilgal

10 de abril de 1405 a.C.

14 de abril de 1405 a.C.

Js.4.19

Js.5.10

6. Características Literárias:

• Forma:

Dos cinco livros de Moisés, Números é o mais difícil de analisar

e esboçar, devido à natureza extremamente variada de seu conteúdo e ao arranjo aparentemente desconexo de seu material. Mesmo um comentarista razoavelmente conservador sente-se justificado ao dizer que, embora o material de Números seja “indispensável”, ele não vê necessidade de afirmar a significância independente para o livro de Números. Ronald Allen, definitivamente um conservador, só com alguma relutância abre mão das aspas ao se referir ao livro de Números.

As questões de unidade e estilo parecem estar relacionadas primariamente ao propósito do livro e à observação clara de seu conteúdo. O livro foi obviamente escrito da perspectiva da segunda geração de israelitas liberados do Egito, e para o benefício dessa geração, que teria o privilégio de participar do cumprimento das promessas relativas à terra, mas que acabara por demonstrar em Baal-Peor as mesmas fraquezas da geração anterior. Números estimulava a fé e a dependência em Yahweh como os meios de evitar outro desastre tipo Cades-Barnéia, agora que Canaã jazia além do Jordão. Assim, o aspecto formal de duas genealogias e o vasto espaço de 38 anos entre elas oferece tanto um sentido de diferença quanto uma sensação de continuidade entre as duas gerações.

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A natureza aparentemente incoerente e a falta de ligação imediata entre as diversas partes do conteúdo do livro não provam a ausência de unidade. Muito da legislação contida em Números provavelmente desenvolveu-se de acordo com as necessidades surgidas nas peregrinações pelo deserto, oferecendo assim uma espécie de código adicional que complementou a legislação contida em Êxodo e Levítico.

A estrutura, dentro da qual este material tão variado se aglutina, é difícil de perceber quanto à unidade. Alguns comentaristas preferem olhar o livro sob o ponto de vista geográfico; outros, como Smick e Allen, preferem uma estrutura cronológica (1.1–25.18 e 26.1–36.13). Embora seja atraente, esta posição não percebe que o material que supostamente diz respeito à primeira geração foi, de fato, experimentado pela segunda (20.1-13).

Uma proposta melhor seria a de incorporar as duas percepções da estrutura, sem exigir que qualquer das duas tenha supremacia no desenvolvimento do livro de Números. [O gráfico a seguir oferece uma idéia da natureza híbrida da forma de Números, bem como seu papel no conjunto que é o Pentateuco.]

Lei Tratado Código

sacerdotal Tratado

Resumo Os Dez Mandamentos

Êx.18 – Lv.27

Nm.1-10, 15, 18, 19, 26-36

Deuteronômio 1–31

História História primeva Narrativas épicas

Narrativas épicas

Passagem de liderança

Acontecimentos que levaram à formação do

povo de Israel

Abraão, Isaque, Jacó, José,

Moisés O herói real é

Yahweh

Forma Literária

A Busca da Terra

Prometida

Josué

Gênesis 1–11 Gn.12 Êx.18

Êx.32–34 Nm.10–14

Nm.16;17; 20-25

Dt.32–34

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• Estilo:

Números combina história e legislação de uma maneira única, mas, ao utilizar tríades, obedece a um estilo que aparece em outros livros do Pentateuco. Há três locais de revelação (Sinai, Cades e as planícies de Moabe), três incidentes de murmuração, os seis oráculos de Balaão (divididos em dois grupos de três) e a lista de paradas durante a peregrinação de Israel pelo deserto (42 nomes dispostos em três grupos distintos, 33.3-9; 33.10-36; 33.37-49).

Em certo sentido, Números segue um princípio estabelecido em Gênesis, de que a história avança linearmente ao percorrer ciclos de acontecimentos. Aqui, o silêncio quanto à vida da primeira geração no deserto sugere a continuidade do seu fracasso, enquanto que a informação concernente à segunda geração demonstra que, à parte da graça de Yahweh, ela continuaria na mesma trajetória de incredulidade e rebeldia.

À luz disso, a narrativa das profecias de Balaão ganha maior importância, pois ele é o instrumento pelo qual Yahweh afirma que as promessas feitas a Abraão seriam cumpridas, a despeito das falhas das duas gerações do êxodo.

7. Estrutura Teológica:

• A Pessoa e o Caráter de Deus:

a. Deus é imanente:

Números enfatiza, de muitas maneiras, a presença constante de Deus entre Seu povo e com ele. A nuvem que cobria o tabernáculo demonstrava que Yahweh não era um Deus distante e inacessível, mas que permanecia entre o povo, mesmo em face de suas freqüentes falhas. Balaão, vidente pagão e teólogo involuntário, afirmou que “o Senhor seu Deus é com ele, no meio dele se ouve a aclamação dum rei” (23.21). Igualmente, os cananeus reconhecem o fato (14.14), mas Israel constantemente desprezava essa realidade tão preciosa. Vale também lembrar que essa

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presença se manifestava em graça (Arca, Dia de Expiação), mas também em ira e disciplina (11.25; 16.19, 42; 20.6).

b. Deus é poderoso:

Enquanto que em Gênesis o poder de Deus é visto em sua força criativa e destrutiva, e em Êxodo é demonstrado por Sua soberana intervenção nos fenômenos da natureza, em Números ele se encontra na provisão sobrenatural para uma população enorme (11.4-6, 31-35; 20.1-13) e nos meios incomuns pelos quais Yahweh disciplina os pecados de Seu povo. Todos eles estão relacionados a manifestações da ira divina por intermédio de fenômenos raros como a abertura da terra, o florescer da vara de Arão e a cura pelo olhar para uma serpente de bronze.

c. Deus demonstra ira:

Com esta expressão, quer-se dizer que Yahweh se levanta em ira santa contra violações e violadores de Seus justos padrões morais e pactuais (contra Arão e Miriã [12.9], contra a nação incrédula em Cades [14.10-12], contra o violador do Sábado [15.32-35] e contra o próprio Moisés [20.12,13]). Se tiver como essencial e secundário aplicam-se a Yahweh, o Deus eterno podemos dizer que a ira divina é um atributo “secundário”, a manifestação terrena de sua santidade ou verdade ofendidas. Essa ira, embora “tardia” em sua manifestação, é tão segura quanto às misericórdias e as promessas da aliança.

Uma das questões principais levantadas pelo livro de Números gira em torno deste atributo. “Podemos nós, como nação, sobreviver à ira de Yahweh, uma vez que tantos e tão grandes sucumbiram diante dela?”. Balaão traz a resposta, às vezes crítica, às vezes cômica, mas correta na predição de que a promessa patriarcal ainda era válida e ainda seria cumprida (23.20 e 24.9).

d. Deus é misericordioso:

A despeito dos repetidos fracassos da geração do Êxodo e das falhas da geração do deserto às portas da Terra Prometida, Yahweh

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repetidamente manifestou a Sua misericórdia, isto é, Sua aquiescência para com a intercessão feita por Moisés (e Arão) para que Ele poupasse a Israel à porção merecida da justa ira de Deus. Assim acontece no caso de Miriã (12.9-15), com toda a nação em Cades (14.10-20), depois da rebelião de Corá (16.41-50) e no episódio das serpentes, próximo a Edom (21.4-8).

Mesmo a legislação outorgada depois que a aliança mosaica havia recebido sua forma mais completa revela a misericórdia de Yahweh. Com uma taxa de mortalidade de pelo menos quarenta adultos por dia, a provisão da água purificadora (Nm.19) era crucial para a continuidade da vida civil e religiosa, removendo a contaminação do pecado representado pela morte.

e. Deus é fiel:

Talvez o mais notável atributo divino encontrado no livro de Números é a fidelidade demonstrada por Yahweh para com o Seu povo errante. Ele mantém Sua promessa incondicional aos patriarcas, a despeito das sucessivas falhas do povo em se conformar às promessas condicionais de bênção encontradas na aliança sinaítica.

Balaão, o adivinho pagão, é o agente involuntário na revelação do compromisso divino de não apenas abençoar Israel de maneira geral, mas de conceder-lhe todo o espectro das bênçãos prometidas a Abraão.

Dentro do tema da fidelidade de Yahweh, há um elemento de polêmica contra falsos deuses no inclusio que é formado pela mensagem de Balaque a Balaão (... porque eu sei que será abençoado aquele a quem tu abençoares, e amaldiçoado aquele a quem tu amaldiçoares, 22.6) e pelo terceiro oráculo de Balaão (Benditos os que te abençoarem, e malditos os que te amaldiçoarem, 24.9). O servo de deuses falsos não pode amaldiçoar o povo do Deus verdadeiro, e Ele repete a promessa divina a Abraão (Gn.12.3). Na Sua fidelidade, Yahweh sobrepuja o poder de reis e nações para estabelecer Israel segundo a promessa.

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• A Administração dos Propósitos de Deus:

O livro de Números oferece um exemplo fascinante do desenvolvimento do propósito quádruplo de Deus de permitir a existência do mal, de julgar o mal e triunfar sobre ele em favor da semente escolhida, ou por meio dela, e de oferecer bênção aos eleitos e, por intermédio deles, a toda humanidade.

a. O decreto de permitir o mal:

A cada nova geração, Yahweh confronta os homens com sua inclinação congênita para o mal. Israel recebeu testes no deserto e, lamentavelmente, fracassou na maioria deles. Cades-Barnéia foi o teste crucial, por haver revelado o problema principal de Israel, sua incredulidade e o conseqüente menosprezo a Deus (14.23). Baal-Peor foi o outro lado desses parênteses de fracasso, revelando o resultado último da incredulidade e do menosprezo a Deus, que são a idolatria e a imoralidade mais grosseiras. Estes dois incidentes, como registrados por Moisés, deveriam ter servido de advertência a gerações futuras, que evidentemente não a levaram a sério.

b. A promessa ou a ação de julgar o mal:

Esta linha de ação divina é particularmente evidente em Números. Cada um dos fracassos de Israel teve o seu necessário julgamento que, embora não fosse necessariamente proporcional ao pecado que o causara, revelava o zelo de Deus para com Sua santidade. O simples fato de que a geração que haveria de entrar em Canaã foi julgada com maior severidade (24 mil mortes em Baal-Peor contra 14.700 na rebelião de Corá, Nm.16.49) indicam que Deus não trata o pecado levianamente e está determinado a puni-lo.

Números também indica que há uma relação entre a extensão da ira de Deus e a intercessão de Seus servos. Isto não equivale a dizer que a oração, por si só, altera as decisões divinas ou encurta a disciplina de Yahweh; significa, igualmente, que soberania, misericórdia e santidade se combinam no exercício da punição e nos meios pelos quais ela exaure

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seu curso rapidamente na vida de alguns e se estende por 38 anos na vida da grande maioria.

Números também indica que o perdão não significa isenção das conseqüências do pecado, que são parte do juízo geral contra o pecado. Dois exemplos marcantes desse princípio são a lepra temporária de Miriã e a proibição de que Moisés entrasse em Canaã.

c. Libertação do mal para/pelos eleitos:

Esta linha da atividade divina não se apresenta explicitamente em Números, embora possa ser inferida de dois incidentes específicos.

Depois do relatório dos espias em Cades, Josué e Calebe destacaram-se como o remanescente fiel a quem Deus escolhe para herdar a Sua bênção (14.26-38).

A outra ocorrência surge no quarto oráculo de Balaão (24.15-19), em que foi profetizada a aparição de um indivíduo que exercerá autoridade (24.17 usa as palavras estrela e cetro; 24.19 fala de um dominador) e destruirá os inimigos de Israel. A associação com a bênção de Jacó e com o sonho de José aponta para um conceito de Rei-Conquistador-Salvador que judeus e cristãos têm, por longos séculos, considerado davídico-messiânico.

d. O decreto de abençoar os eleitos:

De uma perspectiva pactual, esta linha de atividade divina limita-se mais aos oráculos de Balaão. Isso significa que Números, em suas divisões, narrativas e legais, não acrescenta novas promessas ao estoque já em poder de Israel. No entanto, tão gritantes haviam sido os fracassos das gerações passada e presente que foi necessário reafirmar as promessas passadas à medida que Canaã se aproximava.

Números 23.19, 20 é um começo digno, já que afirma o compromisso imutável de Yahweh para com os recipientes de Sua aliança. Em suma, Balaão promete crescimento numérico (23.10), segurança (23.21-23), vitória (21.24), prosperidade (24.5-7), poder real (isto é, de rei, 24.7b), conquista (24.8, 9) e a ascensão de um dominador poderoso (24.17-19). Essas promessas constituem uma reafirmação

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impressionante das promessas abraâmicas, que Deus anunciou soberanamente, mediante um relutante profeta pagão, a um povo que não a merecia. A fidelidade de Deus brilha em meio aos dias escuros do deserto, iluminando os portais de Canaã.

• Balaão, Profeta de Deus ou Advinho Pagão?

A figura mística e misteriosa de Balaão, pela participação nefasta que teve na história de Israel apesar de parecer tão associado ao Deus da aliança, tem intrigado crentes de todas as épocas. Este breve estudo procurará definir o verdadeiro caráter de Balaão.

a. Sua origem e contexto religioso

Balaão era natural de Petor, na Mesopotâmia, localidade próxima à cidade de Mari. Descobertas arqueológicas revelam que existia na região um elaborado sistema profético, cujas atividades se assemelhavam às do ganancioso vidente da narrativa de Números.

A História nos mostra que, na época de Moisés, havia bastante contato entre a Mesopotâmia e o Egito (o reinado de Amenófis II), de modo que não é de estranhar a aparente familiaridade de Balaão com o nome e as atividades de Yahweh e Seu povo escolhido, Israel (confira a atitude de uma mulher irreligiosa como Raabe em Js.2). O fato de Balaão demonstrar conhecimento detalhado sobre Yahweh não aponta tanto para sua ligação pessoal com Ele quanto para a soberana capacidade divina de utilizar até mesmo a rebeldia humana para cumprir Sua vontade. Quando Números é visto sob a ótica do exercício da soberania divina, apesar da obstinada resistência humana, Balaão serve como o exemplo por excelencia de tal princípio.

Para os mais determinados, que consideram Balaão um “crente que perdeu sua salvação”, vale observar que ele jamais é designado como um (nābî ʾ, profeta), mas como um (qōsēm, “adivinho”), uma pessoa a quem os israelitas deviam rejeitar totalmente (Dt.18.10). O fato de Deus ter-se revelado a ele em sonhos não o torna um profeta legítimo, pois o mesmo aconteceu a reis pagãos como Abimeleque (Gn.20.3) e

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Nabucodonozor (Dn.4), em relação aos quais não há, nem pode haver, qualquer reivindicação profética.

b. Sua participação no drama de Números:

Balaque, rei de Moabe, apavorado com a ameaça israelita, busca os serviços profissionais de Balaão. A obtenção de vantagens sobre outras pessoas por intermédio da mágica era prática comum no Oriente Médio antigo (confira a prática de despachos e trabalhos contra inimigos nos cultos afro-brasileiros).

Balaão, embora advertido por Yahweh contra a atividade proposta por Balaque, cede à ganância e insiste em ir. Yahweh o adverte contra seus motivos nefastos, mas permite que Balaão acompanhe os dignitários moabitas, pois em Sua soberania os usaria para revelar Seu imutável desígnio quanto a Israel, naquela que é uma das profecias mais abrangentes do Antigo Testamento.

O famoso incidente da mula é outro ingrediente (até humorístico) desse drama de rebeldia versus soberania. Que a mula tenha falado (sem possuir cordas vocais capazes disso) só é problema para aqueles que descrêem do poder sobrenatural de Deus. O mais notável é que Balaão tenha demorado tanto a perceber que a mula era uma ilustração de sua própria obstinação contra a vontade revelada daquele Deus em Quem não acreditava, mas a Quem respeitava.

É interessante notar que os temores que levaram Balaque a convocar Balaão eram infundados, pois, como parentes distantes dos israelitas, os moabitas nada tinham a temer (Gn.19.26-37; Dt.2.9). Reais ou não, tais temores acabaram por unir Balaque (“devastador”) e Balaão (“devorador”) contra Israel.

É impossível deixar de notar dois contrastes marcantes na narrativa de Balaão. O primeiro é a diferença entre a atitude da geração do Êxodo – que recuou diante de um inimigo já derrotado – e a dos moabitas – que viam Israel como um inimigo invencível. O outro contraste é aquele entre a tentativa humana de subverter aquilo que Deus estabelecera séculos antes, sua aliança com Abraão, e a firmeza da vontade do Deus que se comprometera unilateralmente (Gn.15.9-21) a dar aquela terra a Israel.

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A verdadeira natureza de Balaão surge, entretanto, depois de suas três tentativas frustradas de amaldiçoar o povo. Privado da recompensa prometida por Balaque, ele recorre aos estratagemas da miscigenação sócio-religiosa para tentar roubar a Israel o privilégio do cumprimento da aliança. Por tal perfídia, seu desejo expresso em Números 23.10 não se cumpriu. Seu ato em Baal-Peor revela quão vago e impessoal era seu conhecimento do Deus de Israel e o transforma no modelo do falso profeta (2Pe.2.15; Jd.11; Ap.2.14).

c. Conteúdo e significado de seus oráculos:

Conforme já mencionado, os oráculos de Balaão servem ao propósito de demonstrar à geração do deserto que Yahweh não abriria mão de Suas promessas mesmo em face de 38 anos de rebeldia e incredulidade. Assim, Balaão está intimamente ligado à aliança abraâmica.

O quadro a seguir resume a ligação entre esses dois focos de revelação no AT:

Oráculo Referência Promessa Paralelo em Gênesis

1 23.1-12 Crescimento Numérico Gênesis 12.2 2 23.13-26 Segurança e vitória Gênesis 15.1, 14 3 24.1-9 Prosperidade e poder real Gênesis 17.6, 16 4 24.15-19 Dominador e príncipe Gênesis 49.10 5 24.20 Ruína de Amaleque Gênesis 12.3

6 24.21-24 Cativeiro para quenitas, assírios e hebreus (cf. Eber)

Gênesis 12.3

• As Cidades de Refúgio: (Nm.35.5-34)

Entre muitos povos do oriente havia um costume de destacar

certos locais, geralmente de natureza cultual, como refúgios nos quais criminosos poderiam buscar proteção, escapando assim à pena devida a

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seus crimes. Em Israel, o tabernáculo não poderia ser utilizado com tais propósitos (confira Êx.21.14 e o incidente em que Joabe se agarra ao altar em busca de escape da condenação imposta por Salomão a pedido de Davi, 1Rs.2.28-33).

As cidades de refúgio serviam a um duplo propósito: evitar que o homicida não-intencional fosse morto pelo vingador de sangue (um parente próximo do morto) e evitar que a terra ficasse cerimonialmente poluída pelo derramamento de sangue (que seria agravado, caso não houvesse meio de impedir a vingança indiscriminada).

Como era necessária a morte para expiar a morte, o homicida culposo (havia várias instruções para determinar a culpabilidade de uma morte) deveria se apresentar à cidade de refúgio mais próxima, ali ter seu caso julgado pelos anciãos e, caso fosse constatada a natureza não dolosa do homicídio, ali permanecer até a morte do sumo sacerdote, que seria uma expiação simbólica para a vida do homicida.

O sistema das cidades de refúgio ilustra de maneira interessante a obra de Cristo: em primeiro lugar, a cidade em si ilustra a proteção oferecida contra as conseqüências do pecado; em segundo lugar, a morte do sumo sacerdote aponta para a expiação definitiva obtida por intermédio da morte de Jesus Cristo na cruz.

• O Problema dos Grandes Números dos Censos:

Muitos comentaristas de Números reagem de maneira violenta contra as estatísticas contidas nos livros. Wenham apresenta um bom resumo dos problemas levantados, embora fique a dever boas soluções. Segue-se a lista de problemas e respostas compatíveis com uma doutrina evangélica da inerrância das Escrituras. 1. A simples sobrevivência de dois milhões de pessoas no Sinai por 40 anos seria

impossível. A provisão divina descrita no Pentateuco (se aceita pelo intérprete) seria suficiente. De mais a mais, os israelitas não trafegaram tão intensamente pelo deserto quanto poderia parecer. Cades parece ter sido um acampamento permanente durante bastante tempo.

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2. Os totais parecem discrepantes quando comparados entre si. O número de primogênitos (3.43) obrigaria cada família a ter 27 filhos (e talvez outras tantas filhas), o que seria impossível. Se, todavia, o número mencionado em 3.43 (22.273) referir-se apenas aos primogênitos nascidos entre o Êxodo e a separação dos levitas (um espaço de 2 anos), os números são muito coerentes.

3. Alguns textos sugerem que Israel não tinha gente suficiente para povoar Canaã. Wenham cita Êxodo 23.29 e Juízes 18.16. Todavia, Êxodo 23 menciona apenas que a terra ficaria desolada se os demais habitantes fossem subitamente eliminados. As provas materiais trazidas pelos espias sugeriam que Canaã tinha capacidade para sustentar grande multidão e, ao que tudo indica, algum tempo se passaria antes que os israelitas se adaptassem à vida de agricultores. Quaisquer dois milhões de pessoas morreriam de fome em qualquer lugar sem técnicas de agricultura. Além disso, o texto de Juízes 18.16 não fala que os seiscentos eram a totalidade dos guerreiros de Dã. Significativamente, Wenham não leva em conta Juízes 20.16, em que a cidade de Gibeá tinha um batalhão de canhotos que constava de setecentos homens.

4. Wenham sugere, por fim, um arredondamento dos números, baseado no arredondamento das centenas, mas a natureza especulativa de tal argumento é sua própria refutação. Outras tentativas de emprestar significados simbólicos e até astrológicos aos números esbarram na própria engenhosidade. Um argumento final é que nenhuma das pretensas explicações consegue explicar satisfatoriamente as estatísticas referentes aos levitas.

5. Conclusão – Este autor manteve uma luta íntima por muitos anos com referência aos grandes números de Números e não pôde até agora perceber qualquer outra solução a não ser aceitar literalmente as estatísticas mosaicas. Quaisquer valores atribuídos à palavra hebraica (ʾelep̄, “mil”), ou mesmo à modificação de sua vocalização, são incapazes de produzir números coerentes. Até que evidência realmente sólida seja apresentada, é exegética e teologicamente sadio aceitar os números de Números literalmente.

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8. Contribuições Singulares do Livro:

a. Censo Militar e Organização de Israel:

Levítico relata a organização de Israel para a adoração, Números para o serviço e a guerra. Sob o comando de Deus, Moisés enumerou a primeira e a segunda geração dos homens aptos para a guerra. Embora o grande número de mais de 600.000 seja às vezes questionado pelos críticos, está em harmonia com outros textos (Êx.12.37; 38.26) e outras referências bíblicas quanto ao tamanho de Israel (Êx.1.9; Nm.22.11). Tal como Moisés proclamou em Êxodo 15.3: “O Senhor é homem de guerra”, em Números Ele é visto preparando-os para as batalhas. Ele manda que o recenceamento seja feito, ensina-os a acampar e marchar, alimenta-os com ração, disciplina-os para obedecer às autoridades delegadas e os conduz à batalha. Mostra-lhes até mesmo como dividir o despojo (Nm.31; 34-35). Números 1-20 registra a dolorosa experiência do “campo de treinamento” e 21-36 as batalhas, os sucessos e as reavaliações das futuras obrigações.

b. Voto de Nazireu para Serviço Especial:

Esse livro de culto fez uma concessão especial para que um leigo pudesse participar do culto sagrado. O voto de nazireu era acessível a qualquer pessoa, homem ou mulher, que desejasse oferecer esse culto especial ao Senhor. Em vez de serem pagos, entretanto, requeria-se que fizessem uma oferta especial, e não podiam participar de diversas atividades normais: 1) comer ou tomar o fruto da videira; 2) fazer uso da navalha; 3) aproximar-se de um cadáver. Esse rigor enfatizava o alto privilégio de servir ao Senhor.

c. Rebelião de Israel e Peregrinações:

Um descontentamento tanto da parte dos leigos como dos líderes precedeu a grande rebelião de Cades-Barnéia. O Senhor castigou aos leigos por se queixarem da comida, e a Miriã e Arão por invejarem Moisés. Depois do motim em Cades, outros líderes se rebelaram contra a

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liderança de Moisés e foram castigados. O próprio Moisés rebelou-se por um momento (Nm.20.12; 27.14), e por isso lhe foi negada a entrada em Canaã. A segunda geração também aprendeu que a idolatria e a imoralidade seriam castigadas. As muitas ocasiões de pecado e rebelião demonstram que os descendentes de Abraão não eram um povo escolhido por causa da sua retidão, mas somente pela misericórdia da aliança do Senhor.

d. Grande Castigo do Senhor Devido à Rebelião:

Números registra muitos castigos do Senhor, especialmente pelo pecado de rebelião. A revolta dos líderes levitas trouxe destruição imediata das suas famílias. A murmuração do povo quanto ao seu alimento trouxe uma grande praga. A rebelião em Cades trouxe castigo para toda a geração, impedindo-lhes a entrada em Canaã. Embora Moisés não participasse daquela rebelião, mais tarde recebeu o mesmo castigo pela sua atitude rebelde e irritadiça ao tirar água da rocha. A rebelião foi um pecado obstinado que trouxe um julgamento imediato e severo da parte de Deus (Hb.10.26).

e. Diferenciação entre Pecados Propositais e Não Propositais:

Os pecados não propositais podiam ser expiados com diversas

ofertas, mas os propositais ou de rebeldia, não. Eles exigiam pagamento imediato, muitas vezes a própria vida do transgressor. Pecados propositais não eram necessariamente delitos viciosos, mas pecados contra os quais tinham sido admoestados. O homem que apanhou lenha no dia de sábado foi apedrejado, não porque fosse perverso, mas porque a penalidade tinha sido fixada pelo Senhor (Êx.21.14; 35.2-3). A penalidade de morte, entretanto, não os privava da vida eterna, apenas da vida física. Moisés também recebeu esse castigo (Nm.27.14).

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f. O Profeta Balaão e a Sua “Jumenta Falante”:

Balaão foi um profeta independente da Mesopotâmia, contratado pelo rei Balaque, de Moabe, para amaldiçoar a Israel. Do mesmo modo que usou a “jumenta falante”, Deus usou esse profeta perverso e pagão para informar Balaque e os moabitas de que era seu plano abençoar a Israel a despeito dos seus inimigos.

I. Deus mostrou a sua onipotência sobre todos os supostos deuses e o seu propósito irrevogável de abençoar ao seu povo. A maldição dos inimigos transformou-se em bênção para Israel.

II. Deus projetou o seu contínuo amor por Israel apesar do atrevimento do povo, não achando nele iniquidade que revogasse a sua bênção (Nm.23.20-21).

III. De Israel viria uma “estrela”, ou rei, que governaria o Oriente Médio. Foi essa uma das primeiras profecias específicas da vinda do Messias, conhecida pelos magos do Oriente que seguiram a estrela de Belém.

IV. Mais tarde Balaão perverteu a Israel por intermédio de idolatria e adultério com as moabitas, razão pela qual foi morto (Nm.25; 31.8). O Novo Testamento admoesta contra o seu caminho, erro e doutrina, que são o uso do cargo de profeta em proveito pessoal e com a finalidade de seduzir o povo de Deus mediante atrações lascivas (2Pe.2.15; Jd.11).

g. Rúben, Gade e a Meia Tribo de Manassés Instalados na

Transjordânia:

A motivação das duas tribos e meia de se fixarem à pequena distância de Canaã é questionável. Moisés viu nisso um tipo de rebelião e deserção, embora desse o seu consentimento depois que eles concordaram em mandar tropas a Canaã. Todavia, o motivo por eles apresentado era o de ser a Transjordânia “terra do gado; e os teus servos têm gado” (Nm.32.4). Pareciam dirigidos pelo gado. Mais tarde, essas tribos sofreram o ataque dos inimigos de Israel. Foram os primeiros a ser levados cativos para a Assíria. Esse fato sugere, pelo menos, o perigo de

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uma fixação por atrações de curto prazo, em vez de ater-se a compromissos de longo prazo.

h. Tipos de Experiência Cristã em Números:

Os escritores do Novo Testamento tiraram dessa experiência de Israel no deserto lições para os cristãos, chamando-as de “exemplos”. Paulo usou esses exemplos como admoestação para que os crentes não desagradassem ao Senhor com murmurações e o trocassem pelos ídolos dos seus desejos. Na Epístola aos Hebreus, eles foram advertidos do perigo de se tornarem endurecidos, deixando de corresponder ao amor divino depois de tanto terem recebido dele. O autor declara que tal atitude nega aos crentes o descanso e a satisfação de serviço real (Hb.3.12 – 4.8).

• Ordem das Tribos de Israel no Deserto (Nm.2):

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• Ordem das Tribos em Marcha (Nm.2; 10.11-28):

i. Grande Invocação e Bênção de Israel:

A bênção do sumo sacerdote, entregue por Moisés a Arão,

invocou sobre Israel a tríplice bênção do Senhor: proteção, graça e paz. Destinada aos que viviam em aliança com o Senhor da aliança, é também para os crentes do Novo Testamento. Conclui com a saudação adotada por Israel: “Paz” (Shalom).

• População de Israel no Deserto (Nm.1 [censo de 1444]; Nm.26 [censo de 1405]):

Filhos de... Tribo Censo de 1444 Censo de 1405

Lia

Rúben Simeão (Levi) Judá

Issacar Zebulom

46.500 59.300 (8.580) 74.600 54.400 57.400

43.730 22.200

76.500 64.300 60.500

Raquel Efraim

Manassés Benjamim

40.500 32.200 35.400

32.500 52.700 45.600

Bila Dã

Naftali 62.700 53.400

64.400 45.400

Zilpa Gade Aser

45.650 41.500

40.500 53.400

TOTAL 603.550 601.730

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Notas:

1) As tribos de Simeão e Levi (tribo de Moisés) estavam muito reduzidas no segundo cesno (24.000 morreram por ocasião da praga conforme Nm.25.9).

2) Os primogênitos de Israel (22.273) também estavam muito reduzidos. Num total de 612.130 homens adultos, isso significaria que 27 filhos para cada família. Possibilidade: Muitos primogênitos mortos por Faraó, e alguns podem ter sido mortos pelo anjo da morte no Egito.

3) O censo de 612.130 homens adultos sugere uma população total de, no mínimo 2,5 milhões.

• Censo dos Levitas:

Levitas Total de Homens

Em Idade de Serviço (30-50)

Deveres (Nm.3-4)

Gersonitas 7.500 2.630 Levar a mobília do tabernáculo

Coatitas 8.300 2.750 Levar as cobertas

externas (8.600)

Erro de copista Meraritas

6.200 3.200 Levar a estrutura

Total 22.000 8.580

j. Tipos de Cristo em Números:

I. Dinheiro da redenção (cinclo siclos) – Nm.3.40-51. A escassez de levitas para substituir os primogênitos israelitas exigia a compensação de cinco siclos por família. A lição histórica é que Deus exigia pagamento total pela falta de levitas para executar o serviço do primogênito reivindicado por Deus, e a lição para nós é que Cristo pagou na íntegra a redenção e o serviço pelos nossos pecados. A sua obra na cruz não foi apenas um pagamento “simulado”, mas total.

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II. Cinza da novilha vermelha (Nm.19). Historicamente, esse sacrifício simboliza a nossa necessidade de purificação de pecados acidentais; tipicamente, retrata a morte de Cristo, incluindo também a purificação, mas exigindo confissão e apropriação (1Jo.1.9).

III. A serpente de bronze sobre uma haste (Nm.21.9). Do mesmo modo que Moisés exigiu do pecador que olhasse para o instrumento do juízo de Deus, são os pecados hoje salvos ao olhar para a cruz de Cristo e aceitar a obra vicária realizada por ele (Jo.3.14).

IV. A florescida vara de Arão (Nm.17). O florescimento da vara de Arão demonstrou que era ele o único sumo sacerdote ou mediador de Israel; do mesmo modo a ressurreição de Cristo demonstrou que é ele o único Mediador entre Deus e o homem (1Tm.2.5). Observação: Aquele episódio teve por finalidade acabar com todas as “murmurações” ou queixas (Nm.17.10).

9. Propósito:

Encorajar uma vida nacional organizada, ao demonstrar como a

incredulidade e a rebelião contra Yahweh trouxeram uma disciplina divina severa que retardou o cumprimento da promessa na terra.

O livro de Números é uma obra histórica cujo tema principal é o estabelecimento de Israel e a forma com que foi desnecessariamente retardado em virtude de uma geração inteira, devido à disciplina divina contra a descrença e a rebelião da nação. Ainda assim, a ênfase de seu autor não está nas falhas da geração do êxodo, da qual ele registra apenas alguns exemplos, mas na certeza do plano de Yahweh para Israel, retardado, mas não destruído pela rebelião humana contra Ele.

Isto é demonstrado pela inclusão de dois censos no livro. O mesmo número geral no Sinai e em Moabe sugere aos leitores que a falha em atingir o alvo de estabelecer-se em Canaã não ocorreu devido à falta de poder divino, ou à perda de força numérica, mas apenas à incredulidade de Israel. Os 38 anos entre Cades-Barnéia foram verdadeiramente um vácuo na história da salvação, uma vez que o programa de Deus foi, por assim dizer, interrompido graças à

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incredulidade humana. As inclusões das narrativas de Balaão, entretanto, mostram que tal atraso não significava o fim das promessas. Deus não voltará atrás, mesmo em face à persistente incredulidade humana, no que Ele prometera sob juramento (Gn.22).

Esta incredulidade mostrou-se várias vezes na forma de murmuração contra Yahweh, Seus caminhos e Seus líderes escolhidos. O quadro abaixo resume estes acontecimentos:

11.1-3 Reclamações acerca das dificuldades na jornada 11.4-6 Reclamações acerca do maná 12.1, 2 Arão e Miriã murmuram contra Moisés 14.2-4 O povo murmura contra Moisés e Arão em Cades

14.27-29 O povo murmura contra Yahweh 16.1-11 Corá e seus aliados murmuram contra Arão

16.41 O povo murmura contra Moisés e Arão devido à morte de

Corá e seus aliados 17.5, 10 Nova murmuração contra Arão

A obstinada falta de fé na provisão e proteção de Yahweh

trouxe a disciplina pactual, o desencadeamento da ira divina contra a rebelião humana. As passagens que se seguem contêm manifestações da ira de Yahweh: Números 11.1, 10, 33; 12.9, 10; 14.11-20; 16.46, 47. A demonstração mais surpreendente da ira divina, entretanto, foi à rotina de morte entre Cades e Moabe. Pressupondo números literais para o censo e que apenas os homens necessariamente teriam morrido (seiscentas mil pessoas) no curso de 14.508, teria havido uma média de quarenta enterros por dia! Não é de admirar que Moisés tenha escrito: “Pois somos consumidos pela tua ira [...]. Quem conhece o poder da tua ira?” (Sl.90.7, 11).

Parece melhor dividir o livro de Números em três partes: Preparação no Sinai (1.1–10.10), Peregrinação no deserto (10.11–22.1), e Preparação na Transjordânia (22.2–36.13).

A primeira parte contribui para o propósito, ao demonstrar que Israel era militarmente capaz de atingir seu objetivo e tornar-se uma

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verdadeira nação em termos de organização civil, com um posicionamento peculiar para a batalha e para a paz (caps. 1 e 2). Isto prossegue na contagem e designação de trabalho para os Levitas, separados para o Senhor de entre as tribos de Israel (caps. 3 e 4). A nação não era apenas militarmente capaz, ela estava ritualmente preparada.

A seção seguinte aborda a necessidade de pureza da nação. As leis no capítulo 5 falam acerca da separação daquilo que é impuro (5.1-4), da restituição dos males cometidos (5.5-10) e da infidelidade conjugal (5.11-31) e, assim, lida com questões fundamentais na vida de uma comunidade (saúde pública, confiança e honestidade pública, como também unidade familiar). O capítulo seguinte descreve os votos do nazireado, uma provisão para aqueles que queriam dedicar-se ao Deus de Israel de alguma forma especial. O capítulo 6 termina com a bem conhecida bênção aarônica, que é uma forma apropriada de encerrar um capítulo que descrevia aqueles que queriam se identificar inteiramente com Yahweh, porque Seu próprio desejo é colocar Seu nome sobre os israelitas.

Os capítulos 7–10.10 fornecem-nos as últimas referências históricas ao Sinai, quando os príncipes de Israel consagram suas ofertas voluntárias na dedicação do tabernáculo (Nm.7.1-89; Êx.40.17-33), as lâmpadas são acesas dentro do Lugar Santo (Nm.8.1-4), os levitas são consagrados para obra do Senhor (8.5-26) e a Páscoa é celebrada em dois estágios (9.1-14). À medida que os israelitas se preparam para marchar, o autor informa seus leitores que aquela jornada era uma questão da liderança direta de Yahweh por meio de uma coluna de nuvem/fogo (9.16-23). Isso ilustra a figura ideal que deveria ter prevalecido, e que teria levado Israel até Canaã em apenas 10 dias de caminhada a partir do Sinai. A referência das trombetas de prata é necessária para indicar que, além do direcionamento divino, Israel não era apenas uma multidão indisciplinada, mas também possuía uma organização humana que a tornou uma nação.(10.1-10).

A segunda parte do livro mostra com que freqüência e quão intensamente Israel foi reprovado nos testes dados por Deus no deserto e, por meio de sua incredulidade e desobediência, desperdiçou a concretização das promessas da aliança naquela geração.

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Os capítulos 11 a 14 descrevem a atitude predominante de desrespeito para com Deus causado pelo problema básico de Israel, a incredulidade. Israel reclamou acerca das dificuldades da jornada pelo deserto (11.1-3), trazendo um julgamento de fogo; eles murmuraram devido à falta de carne (11.4-35), influenciados pela multidão semítica que havia deixado o Egito com eles. O resultado foi uma dura lição sob a forma de punição por seus próprios desejos, depois de desprezar a provisão fiel de Deus. Talvez tenha sido nesse ponto que Moisés implementou, com certa medida de incentivo divino, o sábio plano criado por Jetro com respeito à organização do povo (Êx.18). A aprovação divina aparece quando alguns dos designados para o cargo de juiz começam a profetizar.

Miriã e Arão murmuram contra o papel de Moisés como líder (12.1-16), trazendo sobre si ira e disciplina, direcionada contra Miriã, uma vez que ela foi quem instigou a conspiração. Essa seção serve ao propósito do livro, ao mostrar que a ingratidão e o desrespeito não se limitavam ao povo comum, mas atingia até mesmo os líderes mais proeminentes da nação.

Por fim, a nação rejeita o desafio de Yahweh de confiar Nele para a conquista de Canaã (13.1–14.45). O relato dos espias deu à nação uma oportunidade definitiva de confiar em Yahweh para o impossível; também provou que a terra da promessa era tudo aquilo que as pessoas esperavam, e mais ainda. Ainda assim, a nação rejeitou o relatório minoritário da fé e rebelou-se contra Yahweh e Seus líderes escolhidos (14.1-4, 10a). O Novo Testamento toma esse incidente como uma exortação para os crentes da Nova Aliança, alertando-os para que não endureçam seus corações em incredulidade, para não desperdiçar as bênçãos e a recompensa divinas (Hb.3.15-19). Nem mesmo seu arrependimento demorado e o desejo de seguir em frente poderiam levá-los a Canaã; os amalequitas foram os primeiros a executar o juízo de Yahweh (14.39-45). As areias do Sinai e do tempo os seguiriam.

O capítulo 15 apresenta exigências antigas para uma nova situação (15.1-21), padronizando os sacrifícios ao contexto da Terra Prometida. O exemplo do homem que violou o Sábado aponta para a condição da geração do Êxodo, que havia pecado com os olhos bem abertos; assim como uma violação deliberada da aliança deveria ser

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punida com a morte (15.32-36), sua clara rebelião em Cades seria punida. Israel precisava de lembretes de seus privilégios e responsabilidades, e a nova lei das borlas nas roupas providenciou isso (15.37-41).

A próxima ameaça a uma vida ordeira perante Yahweh surgiu com a rebelião de Corá. Essa foi uma tentativa de subverter a hierarquia, com o pretexto de absoluta igualdade dentro do povo de Deus (16.3). O juízo divino rapidamente atingiu Corá e seus associados, quando a terra consumiu Corá e os líderes rubenitas associados com a revolta (16.25-34), e o fogo do Senhor (vindo da arca?) matou 250 dos que se intitularam “sacerdotes”, os quais começaram a contestar a Arão (16.35). A revolta de Israel foi tão feroz contra Yahweh, que eles ignoraram o perigo e dirigiram-se contra Moisés e Arão no dia seguinte. O resultado foi a morte de 14.700 pessoas, no que foi a demonstração mais surpreendente do desagrado de Yahweh para com aquela geração. A incredulidade e o desrespeito para com Deus (16.30b) apenas levaram a uma tragédia maior.

A necessidade de uma prova maior da hierarquia de Yahweh para uma vida ordeira surgiu quando Arão foi vindicado diante das outras tribos (17.1-13). Esse conflito, por sua vez, leva a instruções detalhadas acerca do trabalho dos levitas (18.1-32). Portanto, o autor vinculou seus temas religiosos a acontecimentos que representavam a necessidade que Israel tinha de informação ou correção. O mesmo vale para o capítulo 19, que contém a legislação acerca da purificação causada pela morte, uma necessidade óbvia à luz da alta taxa de mortalidade naqueles 38 anos.

A última seção, nessa segunda parte, lida com os últimos acontecimentos da geração do Êxodo. Um ciclo completo completara-se e a nação se encontrava novamente em Cades. Ali, Miriã morreu e foi sepultada (20.1).

Ali, Israel mais uma vez cometeu um erro, com talvez o último remanescente da geração do Êxodo, ao dar voz a sua amargura contra Deus pela falta de água (20.2-5). Cedendo à ira e ao orgulho, Moisés (e Arão, por associação) puxa para si mesmo a honra de suprir água da rocha, incorrendo na disciplina de Yahweh (20.6-13).

A partir de Cades, Israel contornou o território de Edom, ao sul do mar Morto e chegou ao monte Hor, onde Arão morreu e foi

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sepultado (20.22-29). A condução de Eleazar ao sumo sacerdócio foi um sinal de que a nova geração estava assumindo seu lugar.

Esta foi uma época de vitória, quando Israel derrotou Arade (21.1-3), mas também de derrota, à medida que a nova geração provou que era feita do mesmo material da anterior, pois murmurava contra suas condições na época crítica de marchar junto às fronteiras de Edom, uma região bastante inóspita. O ciclo de disciplina e libertação se desenrola novamente, com a aparição de serpentes venenosas e a cura por meio da intercessão e uma renovada oportunidade de confiar em Yahweh (21.4-8). Pode haver uma polêmica contra os rituais pagãos em que serpentes são adoradas como símbolos de vida. O Senhor Jesus utilizou esse acontecimento para ilustrar Sua morte substitutiva e a necessidade de responder em fé a Sua oferta de salvação (Jo.3.14).

Depois desse acontecimento, a caminhada foi retomada, muito provavelmente em um passo acelerado. A água foi providenciada, e o povo, que aparentemente se arrependeu de verdade de sua murmuração perto de Edom, cantava com alegria. Depois disso, veio a conquista dos amorreus que viviam ao leste do Jordão, na terra que eles haviam conquistado aos Moabitas (Jz.11.14-27). Siom de Hesbom e Ogue de Basã foram derrotados e sua terra foi conquistada por Israel. As promessas aos patriarcas estavam prestes a se tornar realidade.

A terceira parte do livro contribui para o propósito de Números ao demonstrar como Yahweh permaneceu fiel a Suas promessas e como o povo, até mesmo a nova geração, continuava ingrata e inclinada ao pecado, mesmo depois de testemunhar a disciplina de Deus por 39 anos. Esses últimos capítulos também fornecem informação acerca do estabelecimento de Israel na terra, assim como um novo censo, a provisão para a mudança de liderança, o ensaio para as leis de sacrifício e acordos para a distribuição da terra ao leste do Jordão, a proteção para as pessoas acusadas de homicídio não doloso, como também as situações complexas de herança.

O ciclo de Balaão (22.2–24.25) contribui para o propósito de confirmar o status de Israel perante Yahweh, a despeito do grande atraso causado pela incredulidade da nação. Também serve como uma polêmica contra os deuses das nações que Israel haveria de enfrentar na batalha não muito depois que fossem conhecidos esses acontecimentos.

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O profeta contratado, conhecido por sua eficácia como lançador de maldições (22.6), é persuadido por essa divindade recém-chegada, Yahweh, a concordar e ir com o mensageiro de Balaque, sob a condição de apenas dizer aquilo que Yahweh lhe revelasse. Seu conflito emocional é evidenciado no episódio do diálogo com a mula. O amor de Balaão pelo “prêmio da injustiça” (2Pe.2.15) acabaria finalmente por levá-lo a renunciar a seu conhecimento inicial com Yahweh e a se posicionar ao lado dos inimigos de Israel (Nm.31.8, 16).

Suas profecias, alugadas pelo rei de Moabe, acabaram reforçando as promessas de Yahweh a Abraão. Seus tópicos incluem o crescimento numérico de Israel (23.10), segurança (23.21-23), vitória (21.24), prosperidade (24.5-7), poder monárquico (24.7b), conquistas (24.8, 9) e o surgimento de um poderoso governante (24.17-19). É teologicamente sadio afirmar que Moisés recebeu o conteúdo dos oráculos de Balaão por meio de inspiração, mas também é possível que Balaão tenha sido capturado com os midianitas e passado a informação para Moisés.

O contraste entre a glória e o triunfo prometidos por Balaão e a cena trágica dos israelitas envolvidos com prostituição cultual no capítulo 25 é impressionante. Esse incidente forma um inclusio sombrio com a tragédia do bezerro de ouro em Êxodo 32. Embora a idolatria do Egito tivesse sido deixada para trás, a praga de Canaã, o baalismo, apresentou-se em toda a sua hediondez pela primeira vez, e a nação sucumbiu a ele.

Os capítulos 26 a 30 lidam com questões relacionadas à vida na terra. Um novo censo, realizado depois que a praga havia dizimado a tribo de Simeão (Nm.25.14; 26.14; e 1.23), revela que o poderio militar de Israel permanecera intacto ao longo de seus vários anos e peregrinação, graças à misericórdia de Yahweh. Apesar disso, Nm.26.64 fala, em alto e bom som, acerca do poder da ira de Yahweh, uma vez que nenhum dos 603.550 homens de guerra da geração do Êxodo estava vivo quando o segundo censo foi realizado.

A questão do direito de herança para as mulheres (27.1-11) vem naturalmente depois das orientações para a divisão da terra (26.52-65). Depois disso, veio à orientação acerca da sucessão de Moisés (27.12-23); Josué seria um líder civil e militar, com Eleazar como seu braço direito.

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A vida espiritual deveria ser regulada na Terra Prometida, e as ofertas sazonais, ou de acordo com o calendário, tinham um papel importante nisso. Essa regulamentação complementa aquela de Levítico, não apenas nas exigências de ofertas dedicatórias adicionais, mas na inclusão das libações ou ofertas de bebida, algo que a geração do Êxodo não poderia apresentar no deserto (28.1–29.40). Uma vez que os votos estavam freqüentemente relacionados às ofertas, um capítulo acerca de votos não está fora de lugar aqui (30.1-15). De forma interessante, a igualdade garantida às mulheres no capítulo 27 é equilibrada pela subordinação imposta pelo capítulo 30.

O capítulo 31 lida com a última campanha militar de Moisés, da dedicação dos midianitas à destruição (mais provavelmente a parte desse povo que vivia mais perto do caminho de Israel, uma vez que eles reaparecem em grande número cerca de 250 anos depois em Juízes 6). O incidente serve como um claro padrão a ser seguido depois da invasão; uma guerra sem quartel e sem trégua contra as nações insidiosamente idólatras era o único meio de proteger Israel do avanço trágico do paganismo.

O capítulo 32 lida com o pedido de Rúben, Gade e metade de Manassés para que possam se estabelecer na terra conquistada aos amorreus (32.1-5). Moisés pressentiu o início de uma nova Cades-Barnéia e repreendeu os líderes das duas tribos e meia (32.6-15). O compromisso das tribos de ajudar a seus irmãos na conquista do lado oeste (32.16-19) abriu a porta para o acordo e o estabelecimento deles nessa porção de terra (32.20-42).

Os capítulos 33 a 36 olham para trás e para diante. No capítulo 33, o itinerário das viagens de Israel desde o Egito é apresentado; acampados nas planícies de Moabe, Israel recebe a ordem de erradicar os cananeus (ou sofrer seu fim inglório sob a disciplina de Yahweh). A divisão justa da terra entre as tribos devia ser feita de acordo com a proporção da população das tribos (Nm.33.53,54). Para auxiliar em um empreendimento como esse, as fronteiras oficiais da Terra Prometida são dadas em Nm.34.1-12, e os “homens que deverão distribuir a terra” são relacionados pelas tribos (Nm.34.16-29).

Uma vida ordeira em Canaã exigia uma distribuição apropriada da terra para os servos do povo, os levitas, e isto é abordado em

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Nm.35.1-5. O restante do capítulo lida com a questão crítica da vida humana, seu valor e a necessidade de reprimir o derramamento de sangue. As cidades de refúgio (Nm.35.6-28) e a legislação acerca da pena capital (Nm.35.29-34) representam um primeiro passo rumo à solução.

O livro termina com uma observação feliz, mas aparentemente irrelevante, à medida que a lei ordena que as herdeiras devessem casar-se dentro de seus clãs para preservar a posse da terra com a família. Este gesto de solidariedade e fidelidade serve como um reflexo menor da fidelidade e solidariedade do próprio Yahweh para com o objeto de Sua aliança. O livro encerra com Israel em Moabe, e Moisés é declarado o ministro aprovado de Yahweh em favor de Israel.

10. Esboço:

I. Deus Prepara o Povo para Herdar a Terra (1.1-10.10) A. Instruções para a Partida (1.1-4.49)

1. O Censo dos Soldados de Israel (1.1-54) 2. A Organização do Acampamento (2.1-34) 3. A Organização dos Levitas (3.1-4.49)

B. A Santificação do Povo (5.1-10.10)

II. O Povo Perde Sua Herança por Causa de Pecado e Incredulidade (10.11-25.18)

A. Murmuração a Caminho de Cades-Barnéia (10.11-12.16) B. Rebelião e Incredulidade em Cades-Barnéia (13.1-14.45) C. Pecado e Rebelião no Deserto (15.1-19.22) D. Desobediência a Caminho de Moabe (20.1-25.18)

III. Deus Prepara uma Nova Geração para Possuir a Terra (26.1-36.13)

A. O Censo da Nova Geração (26.1-65) B. A Instrução do Povo (27.1-30.16) C. A Derrota dos Midianitas (31.1-54)

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D. A Ocupação da Transjordânia (32.1-42) E. O Relato da Viagem do Egito a Moabe (33.1-49) F. Promessa da Vitória sobre Canaã (33.50-56) G. A Preparação para Entrar na Terra e Dividi-la (34.1-36.13)

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BIBLIOGRAFIA DO CAPÍTULO VII: - HILL, Andrew E. e WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento. Belo Horizonte: Vida, 2000. - WALTON, John. O Antigo Testamento em quadros. São Paulo: Vida, 2001. - GOWER, Ralph. Usos e costumes dos tempos bíblicos”. Rio de Janeiro: CPAD, 2002. - DOCKERY, David S. Manual Bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2001. - DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia - BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento. V.1,2. São Paulo: ASTE, 1968. - BÍBLIA – Estudo de Genebra. Tradução Revista e Atualizada no Brasil. São Paulo: Cultura Cristã, 1998. - BÍBLIA – Português. Bíblia Sagrada. Tradução: Escola Bíblica de Jerusalém, nova ed. rev. São Paulo: Paulus, 1985. - ELLISSEN, Stanley. Conheça Melhor o Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2007. - HOFF, Paul. O Pentateuco. São Paulo: Vida, 2002. - PINTO, Carlos Oswaldo. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006. - LASOR, William S.; HUBBARD, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003. - BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1981. - CHARPENTIER, E. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1986. - FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. - GRUEN, Wolfgang. O tempo que se chama hoje: uma introdução ao Antigo Testamento. 11ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1985. - HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1975. - MARTIN.ACHARD, Robert. Como ler o Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1970. - METZGER, Martin. História de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1972. - PURY, Albert de (Org). O pentatêuco em questão. Petrópolis: Vozes, 1996. - RENDTORFF, Rolf. Antigo Testamento: uma introdução. Santo André: Academia Cristã, 2009. - SCHMIDT, H. Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994. - SICRE, Jose Luiz. Introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1995.

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VIII – O LIVRO DE DEUTERONÔMIO:

O livro consiste nas mensagens de despedida de Moisés, nas quais ele sumariou e renovou o concerto entre Deus e Israel, para o bem da nova geração de israelitas. Tinham chegado ao fim da peregrinação no deserto e agora estavam prontos para entrarem na terra de Canaã. A nova geração, na sua maior parte, não tinha lembrança pessoal da primeira Páscoa, da travessia do Mar Vermelho, nem da outorga da lei no monte Sinai. Careciam de uma narração inspirada do concerto de Deus, da sua lei e da sua fidelidade, bem como uma renovada declaração das bênçãos resultantes da obediência e das maldições da desobediência. Enquanto o livro de Números registra as peregrinações no deserto, da rebelde primeira geração de israelitas, abrangendo um período de trinta e nove anos, Deuteronômio abrange um período de talvez somente um mês, numa só localidade, nas planícies de Moabe, diretamente a leste de Jericó e do rio Jordão.

1. Título:

O título hebraico deste livro é (‘ellêh haddebarîm – “estas são as palavras”) e aponta para a revelação final recebida pelo grande legislador de Israel quando a nação se aproximava de seu objetivo de entrar na Terra Prometida. O título em português é uma transliteração do título grego, dado pelos tradutores da Septuaginta, (deuteros nomos), que significa “segunda lei”. O nome não é apropriado, pois derivou-se de uma tradução errada de Dt.17.18, em que a expressão (misneh hattôrâ hazzôt) deveria ter sido traduzida por “uma repetição desta lei”.

Apesar deste detalhe técnico, o título é em parte correto, pois se Deuteronômio não é uma segunda lei em espécie, é ainda, em parte, repetição, em parte, expansão, em parte, condensação e, em parte, adaptação de legislação anterior tendo em vista uma nova “situação de vida” na história da nação.

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2. Fundo Histórico:

a. Data em que foi escrito: (cerca de 1405 a.C.)

� Moisés especificou a data de 1 de fevereiro de 1405 a.C. quando reuniu o povo para este conjunto final de mensagens (Dt.1.3). Apesar de esse pronunciamento ter sido feito provavelmente em diversas sessões, a expressão “hoje” foi repetida mais de 60 vezes em todo o livro.

� Como a morte de Moisés ocorreu 30 dias mais tarde, a pronunciação e a escrita dessas mensagens estão muito próximas uma da outra (Dt.34.8).

b. Circunstâncias:

� Quanto à posição geográfica, Israel estava perto das

margens do Jordão, ansioso pela nova aventura em Canaã. Tendo conquistado enorme área da Transjordânia quase sem perdas humanas sob a direção do Senhor, estava pronto para o desafio de Canaã.

� Quanto à religião, o novo Israel era, de muitas maneiras, diferente da primeira geração que saiu do Egito. Não tinha conhecido a idolatria daquele país e estivera sob a liderança de Moisés durante 40 anos no deserto. O povo conhecera o poder e a vitória como resultados da confiança que depositaram no Senhor qunado em batalha. Todavia, eram ainda propensos à autojustificação e à idolatria, e havia muitos problemas familiares e sociais aguardando por solução. Tendo aprendido a guerrear, precisavam ser lembrados da santidade da vida inocente e de como deveriam viver em Canaã.

3. Autoria:

Pelo seu próprio testemunho (Dt.1.1,5; 31.22), Deuteronômio é

obra de Moisés. A autoria mosaica é afirmada muitas vezes em outros

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lugares no Antigo Testamento (por exemplo em 2Rs.14.6), em antigas fontes judaicas (por exemplo por Flávio Josefo) e no Novo Testamento. Esta opinião era quase universalmente aceita até o surgimento do criticismo racionalista nos tempos modernos (Para maiores detalhes ver o Capítulo 3 – Introdução ao Pentateuco).

Os críticos observam corretamente que o último capítulo não poderia ter sido escrito por Moisés. Existe um amplo consenso de que o capítulo 34 é um adendo, talvez acrescentado por Josué. Dessa mesma forma, o livro de Josué termina com a morte de Josué, registro feito claramente pelo autor de Juízes à parte final de Josué (Jz.2.7-9; Js.24.29,31). Semelhantemente, os primeiros versículos de Esdras foram copiados e anexados ao último capítulo de Crônicas (Crônicas termina no meio de uma frase). Essa maneira de vincular um livro subseqüente ao precedente (ou variantes dessa prática) era comum na antiguidade e tinha como propósito indicar uma sequência correta dos pergaminhos ou tabuletas de cerâmica. É provável que Josué tenha adicionado a nota sobre a morte de Moisés, sendo isto aceito por Israel. Isto também veio a vincular o livro de Josué à grande produção de Moisés. Tais adições obvias, contudo, não negam a autoria geral de Moisés.

De forma ainda mais controversa, algum críticos tem argumentado que a linguagem de Dt.1.1,5 indica que o escritor do livro necessariamente estava do lado ocidental do rio Jordão, ou seja, em Canaã (a expressão hebraica aqui traduzida “este lado do Jordão” é geralmente traduzida “o outro lado do Jordão” ou “dalém Jordão”). Tal descrição, argumentam, solapa a credibilidade de Deuteronômio como uma obra mosaica, uma vez que Moisés nunca atravessou o Jordão. O argumento pressupõe que a expressão hebraica em questão precisa sempre referir-se à região oriental do Jordão. É evidente, contudo, que o sentido exato da expressão precisa ser determinado pelo contexto e que ela pode referir-se tanto a Transjordânia (a região a leste do Jordão e mar Morto, Dt.1.1-5; 3.8; 4.41,47,49) como Canaã (Dt.3.20,25; 11.30; Js.9.1,10). Aqui, esta expressão evidentemente significa a região a leste do Jordão, como as descrições geográficas indicam (Dt.1.1,5).

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4. Data:

No século XIX, os críticos da Bíblia afirmavam que Deuteronômio fora escrito em torno de 620 a.C., como parte da reforma religiosa promovida pelo rei Josias, no qual ele insistiu que o culto fosse centralizado em Jerusalém. A lei do santuário central (Dt.12) foi considerada por esses críticos como a invenção de um escritor nos tempos de Josias. Desde o começo no século XX, todavia, essa teoria tem perdido apoio. Alguns têm atribuído a Deuteronômio uma data tão antiga como a época de Samuel, enquanto outros lhe deram uma data tão recente como o exílio. Muitos críticos ainda datam o livro no século VII a.C., que é o período do rei Josias. Esses estudiosos também questionam a unidade do livro. Se algumas partes parecem “antigas” (dos tempos de Moisés), eles atribuem essas partes a alguma tradição de tempos remotos que foi convenientemente preservada. Se outras partes parecem “recentes” (durante ou depois dos tempos de Josias), elas são chamadas de “redações posteriores” ou ali se encontram devido a alguma “edição tardia”. Tais métodos elásticos, subjetivos e especulativos não poderiam ser refutados de forma conclusiva senão com um manuscrito original do próprio Moisés, que ninguém possui. Nenhuma evidência concreta exclui a composição de Deuteronômio nos tempos de Moisés, reconhecendo-se, dentro de limites razoáveis, que edições posteriores tenham sido feitas por alguém como Josué, que adicionou o obituário de Moisés ao livro, além de algumas atualizações posteriores da gramática hebraica e de nomes de lugares.

O pano de fundo e o contexto histórico do livro refletem as condições anteriores à conquista de Canaã sob Josué. Não há menção de algum rei em Judá ou da cidade de Jerusalém, embora esta seja mencionada mais de cem vezes pelo profeta Jeremias (que escreveu nos dias do rei Josias). É pouco provável que um autor do século VI a.C. deixasse de fazer alguma alusão, por mínima que fosse, à capital ou ao seu templo. As doze tribos estão representadas como uma nação (e não, como no período de Josias, dividas em reinos de Judá e Israel). As cidades de refúgio da Transjordânia são citadas, enquanto que as situadas em Canaã (as quais foram designadas mais tarde por Josué) não o são. Os nomes babilônicos dos meses não são usados e não há

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estrangeirismos persas no vocabulário, embora se possa esperar que estes fossem encontrados em uma obra escrita num período dominado por esses impérios. Moisés, Arão e Josué são mencionados, mas nenhum outro personagem ou acontecimento de uma época posterior aparecem. É pouco provável que um escritor de um período tardio, mesmo que versado nas tradições do passado, pudesse evitar de forma tão completa o uso de termos e a menção de pessoas ou eventos da sua própria época.

Talvez ainda mais significativa seja a conformidade geral da estrutura de Deuteronômio à forma de tratado ou aliança característica dos meados do segundo milênio a.C. (época aproximada de Moisés). Encontramos as seguintes partes de um tratado de Deuteronômio: (a) um preâmbulo identificando o mediador da aliança (Dt.1.1-5); (b) um prólogo histórico recordando a história da aliança até então (Dt.1.6-4.40); (c) estipulações que esclarecem o modo de vida segundo a aliança (Dt.4.44-11.32; 12-26); (d) uma declaração de sanções apresentando as bênçãos pela obediência e as maldições pela desobediência à aliança (Dt.27-30); e (e) uma disposição legal para a administração da aliança após a morte do mediador inaugural (Dt.31-34). Dessa forma, percebe-se no quinto livro do Pentateuco, o Deuteronômio, as principais partes em que eram divididos os tratados de aliança nos tempos de Moisés.

Conclui-se, portanto, que Deuteronômio foi escrito por Moisés, o legislador de Israel, antes de sua morte em 1406 a.C.

5. Características Literárias:

•••• Forma:

Em nenhum outro livro do Pentateuco a forma literária é tão significativa para a determinação da mensagem e a compreensão da teologia quanto em Deuteronômio. O fato de o livro estar disposto segundo os padrões dos tratados de suserania revela que uma das preocupações do autor foi enfatizar o caráter e as ações de Deus, como autoridade suprema, e as responsabilidades de Israel, como vassalo, bem como as promessas que Yahweh se obrigava a cumprir a favor de Israel caso o povo escolhido permanecesse fiel ao compromisso assumido no Sinai, o qual Deuteronômio evocava e atualizava.

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Os dois quadros a seguir estabelecem uma comparação entre o tratado de suserania típico do segundo milênio a.C.e Deuteronômio.

Deuteronômio Título (1.1) Preâmbulo Histórico (1.1-5) Prólogo Histórico (1.6–4.43) Estipulações da Aliança (4.44–26.19) Renovação da Aliança, Bênçãos e Maldições (27.1–29.1) Resumo das Exigências da Aliança (29.2–30.20) Provisão para a Transição (31.1–34.12)

Tratados de suserania do segundo milênio

Título Prólogo Histórico Leis e Estipulações Colocação do Documento Leitura do Documento Invocação das Testemunhas Bênçãos e Maldições Sanções da Cerimônia de Votos

Em Deuteronômio, as estipulações da aliança foram divididas

em estipulações gerais (5.1–11.32) e específicas (12.1–26.19). As provisões para a transição, que nos tratados seculares lidavam com a continuidade da lealdade do vassalo para com o herdeiro do suserano, descrevem a herança espiritual de Josué, os papéis de mediador da aliança e de representante da nação, que até esse momento haviam pertencido a Moisés (31.1-8). Em lugar das sanções da cerimônia dos votos, Deuteronômio contém as bênçãos de Moisés sobre as doze tribos, as quais foram consideradas proféticas e tinham a força legal de um testamento (33.1-29). O livro termina com o obituário de Moisés, algo necessário para dar validade ao testamento espiritual (34.1-12; Hb.9.16, 17).

6. Estrutura Teológica:

•••• A Pessoa e o Caráter de Deus:

Eugene Merrill indicou que Deus utilizou, como principal instrumento para Sua auto-revelação, Seus atos poderosos, eventos históricos que a comunidade da fé pôde reconhecer como divinos. Ele afirma: “Enquanto que no Antigo Testamento o ato fundamental de Deus é a própria criação, aqui o assunto é menos cósmico; o foco de

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Deuteronômio não são as preocupações universais de Deus, mas Seus propósitos especiais para Seu povo”.

Essa concentração no relacionamento suserano-vassalo sem dúvida contribuiu para que Deuteronômio se tornasse um favorito entre o povo de Israel, o livro mais citado, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O Senhor Jesus citou Deuteronômio para triunfar sobre Satanás (Mt.4.1-11) e para defender Sua autoridade messiânica, ao definir qual a parte mais importante da Lei (Mt.22.34-40).

O livro é a fonte de exortações proféticas no Antigo Testamento, o parâmetro pelo qual a sociedade de Israel era medida e, na maioria das vezes, condenada. Acima de tudo, porém, Deuteronômio foi fundamental para a geração que crescera no deserto e precisava pensar corretamente a respeito de Yahweh, para obedecer-Lhe na hora crítica da conquista e desfrutar as bênçãos divinas na Terra Prometida.

a. Yahweh está próximo:

Este conceito é apresentado quando Israel recebe a ordem de obedecer aos decretos de Yahweh (cap.4). A proximidade de Deus é relacionada tanto à oração quanto à obediência, de modo que Israel pudesse entender que a presença de glória de Yahweh em seu acampamento, ou melhor, agora na terra, tornava-O acessível em graça e misericórdia apenas quando a obediência era o estilo de vida da nação.

A proximidade de Yahweh era entendida por intermédio das teofanias, que “contribuíam para a Sua aura de majestade e poder e, portanto, persuadiam o povo de Sua dignidade e autoridade”. Quase sem exceção, essa manifestação se dava por meio de fogo e escuridão (1.33; 4.11, 12, 33, 36; 9.10, 15; 33.2). O fogo falava de poder e imanência, da possibilidade de Yahweh ser conhecido, ainda que parcialmente. A escuridão lembrava que Ele ainda era um Deus misterioso, que o homem era incapaz de absorver e controlar.

b. Yahweh é singular:

O famoso dito hebreu: “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”), o credo compacto de Israel (6.4), tem sido de há

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muito objeto de grande debate. Alguns entendem o versículo como uma afirmação da unidade de Deus (que Ele é um), enquanto outros falam de sua unicidade (que Ele é um só). Os hebreus, entretanto, tinham mais em vista a singularidade de Deus (isto é, que Ele não tinha igual); seu Deus era um Deus único, sem igual, sem paralelo, que jamais poderia ser igualado, comparado ou emulado. Esse versículo parece ter sido um antídoto, ou melhor, uma vacina contra o sincretismo que infestava Canaã. Não havia possibilidade de associação entre Yahweh e Baal; Yahweh era singular e nenhuma confusão se deveria fazer entre Ele e os falsos deuses das nações que circundavam Israel.

Sob outro ângulo, Deuteronômio 4.15-19 distingue Yahweh de Sua criação. Em 10.14, Deus é designado como possuidor dos corpos celestes adorados pelos vizinhos pagãos de Israel. Deuteronômio 12.4 proíbe a adaptação, a contextualização, por assim dizer, de Yahweh e Seu culto às práticas corruptas e corruptoras dos cananeus (12.29-32). O sincretismo na adoração levaria inevitavelmente à confusão com respeito à natureza e caráter de Yahweh, e isto à corrupção moral, que acabaria por trazer a disciplina prevista na aliança.

c. Yahweh é zeloso:

Este atributo divino manifesta-se mais claramente quando se trata de repartir com qualquer outro deus seu lugar peculiar de devoção no coração de Seu povo. O capítulo 4 indica que desde o principio Yahweh admoestara Israel a não tratar levianamente Seu zelo por Sua honra e reputação. A idolatria era zombaria contra Yahweh e exigia castigo e correção. Sua muita bondade era equilibrada por um zelo que não admitia competição pela lealdade de Seu povo (4.24; 5.9; 6.15; 13.2-10; 29.20). O ciúme de Yahweh é um subproduto direto de Sua singularidade (4.35; 6.4), e Israel não podia se beneficiar de sua relação peculiar com Yahweh enquanto negava a singularidade do Deus ao Qual alegava estar relacionado em aliança.

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d. Yahweh é amoroso:

O amor é um conceito crucial em Deuteronômio, como também é o elemento que mantém a aliança em funcionamento. O amor tem sua origem em Yahweh (4.37) e foi expresso em um ato volitivo pelo qual Yahweh determinou relacionar-se a um povo e, sem qualquer mérito da parte desse povo (7.7-11; 10.14-22), ativamente concretizar aquilo que serviria para o seu bem último. Isso incluía tanto libertação quanto disciplina (4.20 e 8.5), tanto promessa quanto preceito (7.11-16).

O amor de Yahweh por Israel é descrito como um relacionamento entre pai e filho (1.31), bem à maneira em que eram redigidos os tratados entre suseranos e vassalos no antigo Oriente Médio (2Rs.16.7). Particularmente importante neste contexto era a palavra hebraica ḥeseḏ (“amor leal”), um termo característico da aliança que significa a fidedignidade pactual de Yahweh, o Deus que graciosamente se comprometeu com o bem de Seus escolhidos (5.10; 7.9, 12; 33.8).

Este relacionamento exigia uma resposta volitiva que podia, como tal, ser ordenada (6.5; 10.12; 11.1, 13), um amor que se expressava em obediência aos mandamentos de Yahweh (6.1, 17; 7.11; 8.1) e envolvia a pessoa como um todo (6.5) e toda a comunidade (29.17-18; Hb.12.15). A mesma reação foi exigida pelo Senhor Jesus Cristo. “Se me amardes, guardareis os meus mandamentos” (Jo.14.15).

e. Yahweh disciplina Seu povo:

O livro de Deuteronômio está repleto de referências à disciplina divina. A própria experiência de Moisés, resultado de seu ato de arrogância, é relatada diversas vezes como prova inquestionável de que Israel não escaparia ileso caso se desviasse do caminho pactual que fora apresentado à nação. Bênção (às vezes identificada como vida) e maldição (ou morte) eram alternativas que Yahweh não apenas previu, mas preordenou para Israel, prevendo cativeiro e exílio (caps.4 e 28), mas também restauração (4.29-31).

É importante observar, mais uma vez, que essa disciplina não é uma fúria caprichosa em operação, mas a conseqüência de um acordo feito entre as duas partes de uma aliança. Os termos da disciplina

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estavam relacionados às bênçãos propostas na aliança, as quais eram a posse da terra e uma vida de fertilidade e produtividade ali. A imutabilidade do caráter de Yahweh era a garantia de que ambas, bênção e disciplina, aconteceriam, dependendo da resposta de Israel. Aquela geração, como também cada geração subseqüente em Canaã, precisava obedecer aos preceitos da aliança mosaica para desfrutar os benefícios temporais da aliança abraâmica. Caso contrário, seu destino seria a disciplina de Yahweh.

•••• A Administração dos Propósitos de Deus:

Por não conter trechos significativos de narrativa histórica, Deuteronômio não se presta muito à análise das quatro linhas de intervenção divina na história, tendo em vista o cumprimento do plano de restaurar a soberania mediada de Yahweh (Gn.1.16-28). Mesmo assim, traços desses temas encontram-se no livro, ao lado de outros aspectos mais proeminentes.

a. A permissão do pecado:

Embora haja referências esparsas sobre a presença do mal em Israel e entre os habitantes de Canaã, a quem Israel desapossaria, é no capítulo 4 que mais fortemente se percebe a realidade de que Yahweh soberanamente decide permitir o mal (incredulidade e idolatria) e determina a punição e a restauração de Seu povo escolhido.

b. A promessa ou ação de julgar o pecado:

Yahweh, ao fazer a promessa da posse da terra a Abraão (Gn.15), afirmou que ainda não se enchera a medida da iniqüidade dos moradores de Canaã. Mais de cinco séculos depois, em Deuteronômio 7 a hora do ajuste de contas chegou para os cananeus e seus vizinhos. O juízo severo seria administrado pelos israelitas invasores sob a forma de um (ḥerem, “anátema” ou “edito de aniquilamento”), a destruição completa de algo ou alguém como um ato de adoração a Yahweh (7.2).

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Um detalhe que precisa ser observado é que o plano divino incluía um cronograma relativamente extenso (7.22, 23), que, conforme a onisciência de Yahweh, antevia não apenas a resistência dos cananeus, mas a própria incapacidade dos israelitas de confiar plenamente em Yahweh para essa conquista.

c. O decreto de livramento para os/pelos eleitos:

Em Sua função de suserano e com o compromisso assumido de fazer valer as promessas feitas aos patriarcas, Yahweh liga o livramento para os eleitos com a sua atividade disciplinadora. A libertação é parte do compromisso pactual para qualquer ocasião histórica em que Israel, por ter rompido sua parte no acordo, venha a sofrer as disciplinas da aliança e, reconhecendo seu erro, volte-se a Yahweh em arrependimento e fé. Em Deuteronômio, Yahweh aparece como o Deus poderoso para salvar e desejoso de assim fazer (4.34, 37; 5.15; 6.21,22; 7.19).

d. O decreto de abençoar os eleitos:

Deuteronômio apresenta Yahweh como o Deus Redentor (5.6; 6.21-23; 7.8; 8.14; 13.5-10), que abençoa Seu povo com a libertação, e como o Deus Guerreiro (1.4, 30, 42; 2.15, 21, 22; 3.2, 3, 21, 22; 5.15; 7.1, 2; 9.3-5), que sai à frente de Seu povo e em benefício deste realiza poderosos feitos, especialmente a conquista de Canaã (ainda fato futuro, ao tempo em que o livro foi escrito).

A conquista da terra não era a única maneira pela qual Deus abençoaria Seu povo. As conseqüências de uma vida obediente às estipulações da aliança seriam fartura e fertilidade incomuns na Terra Prometida (6.10-11; 7.13-15; 8.7-10; 11.14-15; 14.29; 15.4, 6; 28.3-6, 11, 12; 29.5-6), com abundância de chuvas, colheitas fartas, saúde e vitalidade.

•••• O código israelita de direitos humanos:

Enquanto os códigos legais nas nações circunvizinhas davam pouco ou nenhum valor à santidade e à qualidade da vida, a legislação da

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aliança, vinda do Autor da vida, garantia a Israel um lugar único entre as nações, com um padrão que mesmo hoje é difícil verificar na prática.

O quadro a seguir resume a legislação israelita sobre a vida humana.

1. A pessoa humana tinha valor altíssimo. O assassinato era um ataque

contra a vida e o autor da vida, merecendo, portanto, a pena capital (19.1-13, especialmente 11-13).

2. Calúnia e perjúrio eram ofensas capitais, porque ameaçavam a integridade de indivíduos e comunidades (19.15-21).

3. A condição de mulher era importante, e a mulher não devia ser violada em sua personalidade e nos direitos que lhe cabiam no papel social para ela estabelecido (21.10-17; 23.17; 21.25-29).

4. A dignidade humana não deveria ser perdida devido à pobreza (15.7-11), perda temporária da liberdade (15.12-15), seqüestro (24.7), ou castigo corporal excessivo (25.1-3).

5. Todo israelita era merecedor de salários decentes (24.14-15), julgamentos justos (16.18-20; 25.1), participação nas colheitas (23.24-25; Lv 19.9-10), e posse da terra segundo seu clã (19.14; Lv.25.13-17).

6. O casamento devia ser protegido pela pureza pré-nupcial (22.13-21, 23-24) e pela fidelidade conjugal (21.10-17; 24.1-4). A instrução familiar sobre Yahweh e a Lei (6.5-25) era a base da estabilidade nacional, que tinha prioridade sobre laços familiares (21.18-21).

7. O meio-ambiente era propriedade de Yahweh e uma bênção a ser administrada com respeito a terra (22.9; Lv.25.4-5, 23-24), às plantas (20.19-20) e aos animais (22.6-7).

•••• A continuidade da aliança:

Duas partes do livro dizem respeito à continuidade da aliança entre Yahweh e Israel. Nos capítulos 27 a 30, freqüentemente chamados de “A Aliança Palestiniana”, essa questão visa a participação do povo, mas é atacada com a celebração de uma cerimônia de ratificação a ser celebrada em Canaã (27.1-26; Js.8). Nessa cerimônia, as doze tribos

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invocariam sobre si as maldições contidas no capítulo 28 (os itens mencionados no capítulo 27 servem como amostra). Ali, Moisés define o que Israel podia esperar em caso de desobediência à aliança, ratificada nos capítulos 29 e 30, para que Israel entre em Canaã como povo compromissado com Deus.

A última grande divisão do livro lida com a continuidade da aliança do ponto de vista de liderança. Ali Yahweh faz provisão para a continuidade da aliança sob uma nova liderança (31.1-29) e sob a bênção do mediador original (31.30–33.29).

A bênção profética de Moisés resume a história futura da nação ao afirmar que a inclinação natural de Israel para o mal o levaria a quebrar a aliança e a perder suas bênçãos até que Yahweh o restaurasse a uma glória sem par, depois de discipliná-lo com extremo rigor (31.30–32.47).

A bênção de Moisés o relaciona a Jacó, que também abençoara profeticamente as doze tribos em seu leito de morte. Essa divisão termina com uma eulogia a Yahweh, o grande herói do livro de Deuteronômio, por Sua condescendência em Se relacionar com Israel (33.1-5) e por Seu caráter único, que garante o triunfo final de Israel (33.26-29). Uma comparação entre as bênçãos de Jacó e de Moisés

Ordem de nascimento

Ordem na bênção de

Jacó

Característica na bênção de Jacó

Ordem na bênção de

Moisés

Característica na bênção de

Moisés Rúben 1 Impetuosidade 1 Fecundidade Simeão 2 Violência - -

Levi 3 Violência 3 Aprovação divina

Judá 4 Domínio 2 Ajuda divina Dã 7 Juízo torcido 9 Vigor e fúria

Naftali 10 Eloqüência 10 Bênção de Deus Gade 8 Estratégia e 8 Fartura e

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coragem coragem

Aser 9 Fartura 11 Fartura e segurança

Issacar 6 Força e serviço 7 Alegria Zebulom 5 Comércio 6 Saída para o mar

José 11 Fecundidade 5 Fartura Benjamim 12 Valentia 4 Proteção divina

7. Contribuições Singulares do Livro:

a. Suplemento de Êxodo: Por que uma Segunda Lei?

Embora Deuteronômio suplemente todos os quatro livros

anteriores, ele elabora especialmente a Lei Sinaíta de Êxodo 20-23.

I. Deuteronômio 5.7-21 repete o Decágolo de Êxodo 20 quase textualmente, apenas dando uma razão diferente para a guarda do Sábado: o livramento da servidão.

II. Enfatiza o amor: amor de Deus por Israel (cinco vezes); necessidade de o homem amar a Deus (doze vezes); necessidade de Israel amar o estrangeiro (uma vez). “Amar” é visto como o undécimo mandamento ou a motivação latente de todos os mandamentos.

III. Esse livro realça o benefício pessoal de guardar os mandamentos de Deus: “para que te vá bem” (Dt.4.40; 5.16). Os mandamentos, na sua maioria, são dados com fundamento lógico, como se estivessem apelando para o senso de retidão. Quando reafirma a pena de morte para crimes capitais, acrescenta o motivo: “assim eliminarás o mal no meio de ti”, frisando o efeito desaconselhável dessas práticas (Dt.13.5; 17.7; 19.19; 22.21; etc.).

IV. É mais veemente e exortativo que Êxodo. Funciona mais como um sermão de um pregador do que como a intimação de um policial. Moisés se dirige aqui mais especialmente à consciência e ao coração do que apenas ao intelecto.

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V. Enfatiza a relação inevitável entre obediência e bênção, bem como entre desobediência e maldição, o que não é mencionado em Êxodo.

VI. Expressa uma forte preocupação pelos necessitados, órfãos, viúvas e estrangeiros, apenas mencionados ligeiramente em Êxodo, e inclui uma seção especial sobre direitos humanos (Dt.23-25).

VII. Tem muito que dizer sobre vida familiar, o casamento, o divórcio, novas núpcias e os direitos da mulher em geral.

VIII. Acentua as responsabilidades de vários líderes (Dt.16-18). IX. Inclui muitas advertências acerca do perigo da prosperidade

(Dt.6.10ss; 8.10ss; 11.14ss). X. Enfatiza que Deus escolhe a Israel em amor e a necessidade de

Israel escolher a Deus em amor (Dt.4.37; 7.7-8; 30.19-20).

b. "Shema" de Israel ou "Profissão de Fé":

(Dt.6.4-9) "Ouve, Israel, o Senhor o nosso Deus é o único Senhor", seguido da ordem de amar a Deus e ensinar a sua palavra, é a doutrina central da teologia hebraica. Apesar de a êmfase ser geralmente colocada na unidade de Deus, Jesus confirmaou a ordem de amar a Deus (Mt.22.37) e ao próximo. A palavra hebraica "um" (echad), entretanto, significa uma unidade com possíveis divisões em vez de uma singularidade absoluta (como a palavra "yakeed" expressaria). Em Gn.2.24, homem e mulher tornam-se "uma só carne" (echad). A palavra "um" (echad) insiste na unicidade ou unidade de Deus, mas admite uma revelação posterior das três Pessoas - Pai, Filho e Espírito Santo - como sendo Deus Únco.

Essa profissão de fé (Shema) tem sido a marca autêntica da religião de Israel através da história, embora tenham deturpado a importância de "um" (echad).

c. Livro Teológico Principal do Antigo Testamento:

Os elementos integrantes da teologia do Antigo Testamento são encontrados, na sua maioria, em Deuteronômio. Contém 259 referências

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aos quatro livros anteriores de Moisés e apresenta uma linda combinação de amor, santidade e justiça de Deus. Adverte a Israel quanto ao passado, presente e futuro, aludem às quatro alianças do Antigo Testamento feitas com esta nação. Este livro trata de um maior número de questões de relacionamento humano do que qualquer outro livro da Bíblia.

d. O Livro do Antigo Testamento mais citado:

Deuteronômio é citado 356 vezes por posteriores escritores do Antigo Testamento, e mais de 190 vezes no Novo Testamento. Foi um dos livros favoritos de Jesus, pois ele o citou mais do que outro qualquer. Ao refutar o diabo, por exemplo, Jesus enfrentou cada desafio com uma citação de Deuteronômio, vencendo-o com o simples poder da citação. O diabo, em Mateus 4.6, usou o Salmo 91, citando-o fora de contexto.

e. Quatro Leis Espirituais de Israel:

(Dt.10.12-13) A resposta de Moisés para "Que o Senhor requer de ti?" resume a lei e a essência da verdadeira religião em quatro pontos:

I. Temor e reverência ao Senhor teu Deus. II. Andar em todos os seus caminhos e amá-lo. III. Servir ao Senhor com todo o teu coração e toda a tua alma. IV. Guardar os mandamentos do Senhor (os quais são "para o teu

bem").

Mais tarde Miquéias respondeu à mesma pergunta com um resumo da mensagem dos profetas em Mq.6.8.

f. Responsabilidade dos Líderes Públicos:

(Dt.16-17) Nesses dois capítulos, vêem-se três classes de líderes: juízes, juízes-sacerdotes e reis. As suas principais responsabilidades eram aplicar justiça sem parcialidade. Duas salvaguardas eram exigidas para

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garantir o julgamento imparcial: 1) Deviam abster-se de receber suborno de qualquer espécie, e 2) Procurar constantemente conselho na Palavra de Deus.

g. "Lex Talionis" de Israel ou "Pena de Talião":

(Dt.19-21) Já expressa em Êx.21.23-24 e Lv.24.20, é aqui repetida e declarada ser dissuasão fundamental para o crime em Israel (Dt.19.20-21). É o princípio básico do sistema de justiça exposto em Deuteronômio. Foi designado como um princípio humanitário de justiça igual para todos, não como um legalista "castigo celestial" para o infrator. Seu objetivo era restringir o castigo ao limite da ofensa, e jamais deveria ser inflingido com malevolência ou vingança. A referência que Jesus faz a essa lei em Mateus 5.38 tinha por finalidade corrigir o seu mal uso de cobrar o "último ceitil" em disputas pessoais. Era um princípio judicial dos tribunais e não certamente um princípio pessoal de "desforra".

h. Guerra e Derramamento de Sangue Inocente:

(Dt.20-21) Israel foi designado o algoz de Deus contra a corrupta sociedade de Canaã. Todavia, não devia agir como os gentios. Os israelitas receberam instruções especiais para que não se tornassem eles mesmos uma sociedade violenta. Para executar essa missão de maneira adequada, dois princípios básicos foram enunciados nestes dois capítulos:

I. Por ordem de Deus, tinham de matar o perverso como uma responsabilidade solene, e não como opção.

II. Muito cuidado tinha de ser tomado para que dentro da sociedade israelita nenhuma pessoa inocente fosse morta. Deus responsabilizaria uma cidade inteira pelo derramamento de sangue inocente. Deviam evitar qualquer violência.

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i. Aliança Palestínica com Israel:

(Dt.28-30) Israel seria hóspede de Deus na Palestina e foram-lhe prometidas bênção ou maldição ilimitadas na base da obediência. Se a nação desobedecesse, seria punida e finalmente espalhada "de uma até a outra extremidade da terra" (Dt.28.64). Ali os israelitas não achariam descanso; teriam "coração tremente, olhos mortiços e desmaio de alma" (Dt.28.65). Depois da dispersão, "nos últimos dias", o Senhor os restauraria e os ajuntaria de novo na terra (Dt.30.1-5), quando tornassem "ao Senhor" e dessem ouvidos "à sua voz". A aliança pode ser resumida em três pontos:

I. A terra de Canaã pertencia ao Senhor, que a prometera como posse eterna aos filhos de Abraão.

II. A ocupação, entretanto, dependia da obediência à aliança do Senhor.

III. Finalmente, o Senhor restauraria e ajuntaria a nação novamente quando retornassem "ao Senhor" e a ele obedecessem.

j. O Grande Perigo da Idolatria:

É quase incessante a admoestação de Moisés quanto à idolatria

(mais de trinta referências, como em Dt.4.16-19; 5.7-9; 6.14-15; 7.4-5; 8.19-20). O povo viera de uma terra de muita idolatria, retornara à idolatria diversas vezes no deserto e estava prestes a invadir uma terra cujo povo adorava grande número de ídolos. A terra de Canaã era muito rica, mas perversa e corrupta na sua idolatria. A tendência do povo seria adotar aquela idolatria, uma vez que as práticas idólatras parecia enriquecer os cananeus. Os israelitas estavam prestes a enfrentar uma batalha espiritual, além de uma batalha militar. Moisés trata aqui dos vários ardis pelos quais o diabo poderia levá-los à idolatria.

k. Profecia Messiânica de Deuteronômio:

"Um profeta semelhante a Moisés" (Dt.18.18-19). A vinda de Cristo como Profeta é mencionada pela primeira vez nessa passagem de

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Deuteronômio. A missão de um profeta era transmitir as palavras de Deus ao povo. Moisés foi um profeta poderoso em obras e palavras, em milagres e palavras da Lei. Suas obras demonstravam que ele proferia as verdadeiras palavras de Deus, como Elias o fez depois dele. Do mesmo modo, os grandes milagres de Jesus demonstraram sua messianidade e a verdade das suas palavras. Embora os milagres de Moisés, em sua maioria, tenham sido obras de julgamento, os de Jesus foram obras de misericórdia. Ao proferir essa profecia messiânica, Moisés salientou a absoluta exatidão e convicção profética das palavras que o Messias iria proferir (Dt.18.22).

8. Propósito:

Preparar Israel para desfrutar a prosperidade e permanência na Terra Prometida pelo encorajamento do amor nacional a Yahweh por meio da obediência à Sua vontade, conforme revelada na aliança.

O livro começa com um preâmbulo (1.1-5), o qual apresenta Moisés como o mediador da aliança e as circunstâncias (históricas e geográficas) em que essa mediação acontece.

Seguindo o padrão dos tratados de suserania, o prólogo histórico (1.6–4.43) apresenta uma visão geral do relacionamento entre Yahweh, o Suserano, e Israel, o vassalo. Isso é feito para o benefício da nova geração, cuja experiência com os eventos importantes de Êxodo 12 a Números 25 não havia sido suficientemente profunda para oferecer uma visão clara de quão admirável era o Deus de Israel e quanto a nação devia a Ele.

Assim, a jornada do Sinai (Horebe) e o estabelecimento do sistema jurídico de Israel são recontados em 1.6-18. O restante do capítulo 1 é dedicado ao estrondoso fracasso da geração do Êxodo após a missão dos doze espias (1.19-33). A incredulidade, primeiro (1.34-40), e a independência presunçosa, depois (1.41-46), contra Yahweh liquidaram Israel.

Assim como em Números, os 38 anos de peregrinação no deserto são rapidamente mencionados (2.1-3). Os versículos seguintes descrevem os eventos relacionados ao fim daquele período, quando

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Israel se aproxima da região do mar Morto, onde as nações aparentadas (Edom, Moabe e Amom) deveriam ser respeitadas (2.4-23).

As vitórias militares de Israel sobre os amorreus, nas quais a geração do deserto certamente teve grande parte, são recapituladas em 2.24–3.11. A distribuição dos territórios amorreus às tribos da Transjordânia (3.12-20) é um elemento importante no prólogo histórico já que ele oferece uma garantia tangível de que as promessas certamente se cumpririam para aquela geração. De outro lado, a proibição da entrada de Canaã por Yahweh para alguém tão grande quanto Moisés (3.21-29) é um forte argumento em favor da perseverança em obediência, à qual Israel é exortado no capítulo 4.

A parte final do prólogo histórico é a exortação de Moisés (4.1-14) para a geração do deserto, à luz do poder assombroso da ira de Deus que haviam experimentado em primeira mão em Bete-Peor (4.1-4). Outras razões para a obediência são a proximidade de Yahweh e a natureza justa das leis que Israel dEle recebera (4.8).

A maior ameaça à obediência seria a idolatria, tão dominante em Canaã e tão corruptora em sua influência que levaria Israel a abandonar a aliança e a sofrer sua disciplina (4.15-31). Israel é relembrado da profundidade e amplitude de seus privilégios como incentivo final à obediência (4.32-40).

Em vez de olhar 4.41-43 como um pedaço de legislação fora de lugar, como faz a maioria dos comentaristas, é melhor ver essa passagem como uma nota cronológica para indicar exatamente quando esses discursos foram pronunciados. O segundo discurso, as estipulações da aliança, dadas a Israel na época em que a terra a leste do Jordão foi distribuída às duas tribos e meia.

Após uma nota introdutória (4.44-49), os capítulos 5 a 26 contêm as obrigações impostas a Israel em virtude de seu consentimento em tornar-se vassalo de Yahweh. Essas são divididas normalmente em estipulações gerais ou básicas (caps.5–11), sendo relacionadas à necessidade de obediência a Yahweh e às estipulações específicas ou detalhadas (caps.12–26), as quais se relacionavam à forma ou ao modo da obediência. Em resumo, os capítulos 5–11 dizem a Israel o da obediência a Yahweh, e os capítulos 12–26 dizem como.

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A primeira parte dessa divisão contém a reiteração dos Dez Mandamentos (5.1-21) e um anúncio histórico sobre o pedido da nação para que Moisés agisse como mediador da aliança (5.22 e 33). O requerimento fundamental é de que a nação corresponda à singularidade de seu Deus com devoção singular a Yahweh (6.1-8), apegando-se a Ele enquanto desfrutam a prosperidade (6.10-12), afastando-se de outros deuses (6.13-19) e passando o conhecimento e temor de Yahweh às futuras gerações (6.20-25).

O caráter de Deus e Sua escolha amorosa por Israel são apresentados como as razões por que Israel deveria se abster de associação política, social e religiosa com os habitantes de Canaã; na verdade, eles deveriam ser banidos (7.1-10). A exortação à obediência cuidadosa é levantada em 7.11, com a motivação das bênçãos da aliança – fertilidade, produtividade, saúde, vitória e paz, desde que a pureza da nação diante de Yahweh fosse mantida (7.11-16). A obediência de Israel dependia da fé, e a fé fundamentava-se no registro histórico dos grandes atos de salvação e julgamento do passado (7.17-26).

No capítulo 8, Israel é prevenido contra o pecado da independência. Os 40 anos no deserto tinham como objetivo ensinar a Israel como ser humilde e dependente do Senhor para sua própria sobrevivência e também como reagir à disciplina paternal de Yahweh (8.1-5). Esquecer os grandes milagres do deserto e presumir que pela sua própria força eles haviam conquistado Canaã finalmente levariam à amnésia espiritual, depois à idolatria e finalmente ao exílio da Terra Prometida (8.6-19).

A história era importante porque oferecia, por si mesma, todas as provas necessárias para preservar Israel, quando chegasse a Canaã, do orgulho. A perversidade dos cananeus e a promessa aos patriarcas foram as razões para a conquista (9.1-6); a tragédia das grandes traições no Sinai (9.7-22) e em Cades-Barnéia (9.23-29), de outro lado, provia provas suficientes da teimosia de Israel. A história, é verdade, também oferece esperança no fato de que, apesar dessa infidelidade, Yahweh graciosamente restaurou o status de Israel como Seu povo da aliança apresentando uma nova versão de seu código de leis (10.1-6), consagrando a tribo de Levi ao ministério (10.7-9) e considerando a intercessão ampla e intensa de Moisés (10.10, 11).

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A última parte das estipulações gerais começa reiterando as exigências essenciais, Temas o Senhor teu Deus, […] andes em todos os Seus caminhos, e o ames, e sirvas ao Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma, […] guardes os mandamentos do Senhor, e os seus estatutos (10.12-13), dando razões por que Israel deveria fazê-lo: a escolha de Israel por Yahweh apesar do contraste entre a grandeza deste e a insignificância daquele é a primeira razão (10.14-15), seguida pelo caráter santo, misericordioso e admirável de Yahweh (10.16-21) e pela Sua fidelidade às promessas (10.22).

Os poderosos feitos do passado recente de Israel, tanto no Egito quanto no deserto (11.1-7), são dados como motivação para a observância cuidadosa das prescrições (que Moisés finalmente apresentará) para conseguir novas bênçãos relacionadas à Terra Prometida e não se deixar enredar pela idolatria e suas terríveis conseqüências (11.8-17). Fica claro, quando vemos as instruções quanto ao testemunho constante – seja oral, seja escrito, seja visual – da natureza e significado dos mandamentos de Yahweh, que essa obediência não viria facilmente (11.18-25). Israel precisaria de uma educação ininterrupta através de suas gerações.

As estipulações gerais são concluídas com a seguinte escolha diante de Israel: obediência que leva à vida e desobediência que leva à morte. Essa escolha é tão séria que a nação foi instruída a transformá-la em um recurso visual de proporções gigantescas em uma cerimônia de renovação pactual no monte Ebal e no monte Gerizim (11.26-32).

As estipulações específicas (12.1–26.19) são relacionadas ao propósito do livro por oferecer as diretrizes minuciosas pelas quais Israel poderia garantir fidelidade individual e nacional que asseguraria prosperidade e alegria na Terra Prometida. A primeira área da vida pactual a ser tratada era a religiosa ou cultual. Assuntos relacionados à adoração são compreendidos entre 12.11 e 16.17.

Antes que Israel pudesse adorar a Yahweh condignamente era necessário remover o perigo do sincretismo destruindo os ídolos cananeus e profanando seus (bāmôṯ), os lugares altos de culto (12.1-4). A adoração prestada por Israel deveria centralizar-se no local designado por Yahweh (12.5-7). A maneira imperfeita de adorar que prevalecera nos 40 anos de peregrinação deveria dar lugar aos rituais completos

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prescritos por Moisés (12.8-14). Já que a vida em Canaã seria consideravelmente mais abastada que no deserto, Israel deveria ser alertado de que essa nova abundância não deveria degenerar-se em glutonaria irrestrita (e na idolatria em geral associada a ela). O sangue continuaria a ser sagrado, derramado no chão, nunca ingerido, como memorial do alto valor da vida aos olhos de Yahweh (12.15-25).

A limitação do sacrifício e da consagração a um lugar único visava poupar Israel dos rituais horríveis praticados pelos cananeus e suas terríveis conseqüências; associação ou mesmo curiosidade no presente poderia significar enredar-se no futuro (12.26-31).

Tão grande era o fascínio da idolatria que mais um capítulo é dedicado a alertar Israel contra ele. O fascínio da idolatria deveria ser evitado e punido, vindo de fonte religiosa (13.1-5), ou mesmo familiar (13.6-11). A pronta punição é o melhor freio para a idolatria. Mesmo comunidades inteiras não deveriam ser poupadas em caso de idolatria, já que seu pecado seria a fonte da ira de Yahweh (13.12-18).

Os capítulos 14 e 15 apresentam uma variedade de leis rituais e sociais com vistas a representar a totalidade do código de leis contido em Êxodo e Levítico. A santidade de Israel como povo de Deus deveria preservá-lo das práticas cerimoniais dos cananeus como laceração ou raspagem do alto da cabeça, associada aos rituais do luto (14.1-3). A conexão dos três primeiros versículos com a lista de alimentos proibidos poderia ser cultual, se bem que não se exclui a possibilidade de razões fisiológicas. A lista de Deuteronômio (14.4-21) é mais representativa do que exaustiva, e a razão por trás dessas restrições, mais uma vez, é a posição privilegiada de Israel como nação santa de Deus.

O compromisso de Israel com Yahweh deveria ser demonstrado em sua fidelidade em usar o dízimo para propósitos religiosos, tanto o sustento do pessoal ligado ao culto quanto coisas necessárias à adoração e à comunhão apropriadas (14.22-27). Particular atenção era dada aos dízimos socialmente orientados, que deveriam beneficiar os levitas, como também os menos favorecidos e os estrangeiros (14.28, 29).

O amor fiel a Yahweh deveria ser mostrado em generosidade para com as pessoas carentes à luz da certeza das ricas provisões divinas (15.1-18). Perdão das dívidas e empréstimos generosos deveriam ser a marca de Israel sob a aliança mosaica (15.1-11)! Isto é seguido pelo

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mandamento de libertar os escravos hebreus ao final do sexto ano de serviço (15.12-18). As razões para esse procedimento eram gratidão a Yahweh pelo livramento do Egito e fé que Ele abençoaria a obediência. Uma última demonstração de gratidão e confiança seria a oferta de animais primogênitos perfeitos a Yahweh (15.19-23).

A próxima parte encoraja fidelidade exigindo observância cuidadosa às festas prescritas (16.1-17). Cada israelita do sexo masculino deveria vir ao santuário central (ainda a ser indicado) a fim de celebrar as festas da Páscoa (16.1-8), das Semanas (16.9-12) e das Cabanas (16.13-17). Isso não significa que as outras festas tivessem sido abolidas, apenas que estas três festas exigiam peregrinação ao local que Yahweh escolheria (16.6).

Mudando do sagrado para o secular, se tal distinção pode ser feita em Israel, Moisés encoraja amor fiel ao expor as leis que deveriam controlar a vida civil de Israel (16.18–25.19).

Os juízes e seus deveres são tratados primeiro, em 16.18-20, já que eles eram o primeiro modo de governo civil estabelecido sob a aliança. Em seguida, Moisés trata com a idolatria e suas implicações civis (16.21–17.7). Tanto o sincretismo (16.21) quanto a idolatria explícita são igualmente abomináveis diante de Yahweh e dos juízes, e Israel, após investigação apropriada e confirmação de duas testemunhas, deveria fazer valer a pena de morte para a erradicação do mal (17.7). Juízes deveriam trabalhar em estreita conexão com os sacerdotes e sob a instrução destes, quando uma resolução clara não pudesse ser discernida na esfera civil (17.8-13).

No programa de Yahweh para Israel havia provisão para a monarquia. O critério para um rei fiel é que ele deveria ser israelita, não deveria procurar poder militar, engrandecimento por meio de alianças políticas, ou impostos excessivos, mas submissão à (tôrâ), a instrução de Yahweh (17.14-20).

Já que os levitas e sacerdotes tinham papel tão crucial na vida de Israel, é apropriado que as leis, concernentes ao sustento e à oportunidade de trabalho no santuário central, apareçam junto às instruções sobre o futuro rei (18.1-8).

A condenação de práticas abomináveis é apropriadamente colocada entre o ministério dos levitas e sacerdotes e a dos profetas

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(18.9-13). As práticas alistadas aqui, examinadas por ambos os tipos de líderes, seriam evitadas em Israel. Moisés focaliza particularmente a adivinhação, a tentativa de predizer ou controlar o futuro usando magia, associada muitas vezes à profecia (18.14-22). A promessa de Yahweh era de levantar um profeta que seria mediador, como Moisés (18.15, 17, 18), e Sua prescrição era de que profetas que proclamassem a si mesmos profetas ou profetas idólatras deveriam ser eliminados.

O conjunto seguinte de leis (19.1-21) trata de questões judiciais. A legislação concernente às cidades de refúgio (19.1-13) lida, na verdade, com a questão maior da santidade da vida e com a questão subordinada da vingança do sangue. Israel deveria punir homicidas dolosos (assassinos) e proteger os homicidas culposos (crimes não-intencionais). Um versículo lida com a importante questão da propriedade da terra (19.14). A apropriação fraudulenta de marcos de propriedade era um crime contra o qual o próprio Yahweh tomaria medidas punitivas (Pv.23.10, 11).

O parágrafo final desse conjunto (19.15-21) lida com o número e o caráter de testemunhas. O perjúrio era crime punido com a famosa lex talionis, a lei da retribuição (v.21), de modo que Israel deveria levá-lo a sério.

Uma das características importantes da aliança era o compromisso de Yahweh em lutar por Israel em suas guerras. O capítulo 20 oferece diretrizes para a guerra, que incluem o estímulo à fé pelo (sumo) sacerdote e os critérios para identificar e excluir soldados com potencial para causar problemas (20.1-9). O importante papel designado aos sacerdotes aqui sugere uma vez mais que a conquista não foi um mero conflito humano, mas a ação de Yahweh fazendo a guerra em favor de Seu povo.

As nações que ficavam fora do perímetro de Canaã deveriam receber condições de rendição (isto é, trabalhos forçados, 20.10, 11) e, caso estas fossem recusadas, deveriam sofrer cerco e eliminação dos homens (20.12-15). Em Canaã, todavia, cidades seriam consignadas ao (ḥerem), o decreto divino de aniquilamento, de modo a não contaminar a pureza de Israel com suas influências idólatras. Ao envolver-se em uma guerra, Israel deveria agir com sabedoria, evitando a devastação completa

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de regiões, cuidando das árvores frutíferas e usando apenas árvores não-frutíferas para implementos bélicos (20.19, 20).

O último conjunto de preceitos (21.1–25.19) lida uma vez mais com regras civis ou sociais. O assassinato era uma mancha no tecido da vida social de Israel, e suas conseqüências malignas deveriam ser evitadas por meio de um sacrifício simbólico por meio do qual a responsabilidade (mas não a culpa) por um homicídio não resolvido fosse aceita pelos anciãos de uma comunidade (21.1-9).

Os direitos da mulher capturada (21.10-14), os direitos do primogênito em uma sociedade crescentemente complexa (21.15-17) e o dever paterno de levar seu filho ao tribunal por sua conduta pecaminosa (21.18-21) formam um código doméstico de conduta, bem alinhado com as ênfases domésticas do discurso do (shema) no capítulo 6 (6.4ss).

Seguem-se diversas leis (22.1–25.19), que delineiam a base ética para a conduta social de Israel. Os israelitas deveriam ser mutuamente benevolentes (22.1-4), como também deveriam manter os sexos distinguíveis por meio de vestes características (22.5). O respeito à vida deveria ser demonstrado para com a mais ínfima criatura, até chegar ao homem, a forma mais importante de vida (22.6-8). O princípio da separação deveria se manter evidente na proibição de misturas em áreas como agricultura (22.9,10) e vestuário (22.11, 12).

O casamento era altamente valorizado por Yahweh, e Israel deveria refletir esse valor. Assim, tanto o sexo pré-conjugal quanto acusações infundadas entre os cônjuges eram passíveis de punição (22.13-21). O adultério era punido com morte tanto do homem quanto da mulher (22.22), bem como a fornicação com uma mulher comprometida no contexto da cidade (22.23,24), uma vez que sugeria o chamado mútuo consentimento. No caso de um encontro sexual fora dos limites da cidade, em que o estupro era a situação mais provável, a mulher teria o benefício da dúvida (22.25-27). Relações sexuais com uma jovem não comprometida eram passíveis de multa e, nesse caso, o casamento era obrigatório (22.28, 29). Por fim, o incesto era claramente proibido com base na santidade de Yahweh e na santidade de Israel, dela derivada (22.30).

Os dois parágrafos seguintes lidam com pureza ou limpeza. Certas pessoas ficavam permanentemente excluídas da participação na

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assembléia, como os emasculados (por atos religiosos), os filhos de prostitutas cultuais, os moabitas e os amonitas (23.1-6). Egípcios e edomitas, todavia, teriam acesso à assembléia de Israel depois de três gerações (23.8). Regras sanitárias de pureza durante a guerra santa foram oferecidas não apenas para garantir um ambiente livre de doenças, mas também para demonstrar, pela higiene e limpeza, o caráter santo de Yahweh (23.9-14).

O último, e bem longo, conjunto de leis lida com o tópico maior de harmonia social como um subproduto do amor leal a Yahweh demonstrado pela obediência (23.15–25.19). Em 23.15-24, as leis lidam com o asilo a escravos estrangeiros, a proibição da prostituição cultual em Israel, a limitação dos juros cobrados a estrangeiros, o pronto cumprimento dos votos e o respeito pela propriedade alheia no desfrute da hospitalidade e generosidade de outros.

Leis concernentes ao casamento proíbem a promiscuidade conjugal, como o divórcio e o novo casamento constantes (24.1-4), e prescrevem um período de um ano para o ajuste conjugal, durante o qual nenhum compromisso social adicional seria colocado sobre o novo marido (24.5).

O respeito à vida e a garantia de condições decentes para o seu desfrute são o tema que dá coesão ao próximo grupo de leis (24.6–25.12). Apodícticas em natureza, elas protegem a propriedade individual limitando a cobrança de juros e penhoras (24.6, 10-13), exortam ao cuidado com a legislação relacionada à saúde (24.8, 9), condenam a exploração do trabalhador (24.14, 15), garantem justiça igual a todos os membros da sociedade (24.16-18) e propõem uma provisão generosa da sociedade para com os necessitados (24.19-22). As leis casuísticas que se seguem (25.4 é uma exceção) lidam com a dignidade da vida humana (25.1-3), com o valor da vida humana e da linhagem individual (25.5-10), e o cuidado para com a integridade pessoal e, talvez o “recato feminino” (25.11, 12). Essa divisão termina com uma proibição clara da desonestidade nos negócios (25.13-16) e com uma ordem nacional de que Amaleque, que se tornara para Israel a epítome da traição, seja destruído (25.17-19).

O capítulo 26 conclui o segundo discurso (as estipulações da aliança) indicando duas cerimônias pelas quais os israelitas

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reconheceriam publicamente sua dívida para com Yahweh (a oferta das primícias, 26.1-11) e seu compromisso com Ele em fé (a apresentação dos dízimos do terceiro ano, 26.12-15). A ordem de Yahweh a Israel era a obediência integral de coração a Seus mandamentos em resposta ao compromisso divino de ter Israel como Seu povo particular, com todos os privilégios inerentes a essa condição (26.16-19).

O terceiro discurso de Moisés é a ratificação da aliança, ocasionalmente chamado de aliança palestiniana, basicamente a aplicação da aliança mosaica ao novo modo de vida da nação (27.1–30.20).

O capítulo 27 contém a ratificação da aliança, que é antecipada na Transjordânia, mas descrita da perspectiva da conquista (efetivamente concretizada em Josué 8). Israel deveria erigir um memorial de seu compromisso para assim melhor obedecer às leis que Yahweh lhe dera (27.1-4). Isto deveria ser seguido pela construção de um altar e pela participação nacional em uma refeição de comunhão, celebrando a aliança (27.5-8). As doze tribos deveriam depois participar de uma proclamação de bênçãos e maldições representativas sobre os montes Ebal e Gerizim (27.9-26; somente as maldições estão aqui alistadas).

No capítulo 28, Moisés, como o grande mediador, confronta Israel com as opções da aliança: a obediência traria a bênção (28.1-14), ou seja, fertilidade, produtividade, vitória em combate, respeito de outras nações, ciclos agrícolas normais e plena prosperidade. A desobediência à aliança, no entanto, traria disciplina divina e ruína nacional (28.15-68), ou seja, esterilidade, doença, seca, derrota, caos social, zombaria de outras nações, falta de sentido na vida e frustração pelo esforço inútil, pragas, exílio, pobreza, canibalismo e expulsão da Terra Prometida.

Os capítulos 29 e 30 constituem a verdadeira renovação da aliança antes da entrada em Canaã, uma vez que Israel precisaria entrar na terra como nação pactual. Em 29.1-9, Moisés relembra a Israel as misericórdias passadas de Yahweh, explicando a seguir o significado da cerimônia da qual participariam (29.10-15), enfatiza a necessidade da obediência individual e sua importância (29.16-22) e retrata as terríveis conseqüências de uma negligência arrogante para com os preceitos revelados na aliança de Yahweh (29.23-29). A onisciência de Yahweh lhe permite traçar o curso da história de Israel e predizer a ruína e a restauração depois da derrota e do exílio (30.1-10). Esses versículos

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cobrem as páginas da história, passada e futura, da conquista de Canaã ao estabelecimento do reino messiânico.

A divisão final do terceiro discurso é um encorajamento ao povo, demonstrando que o que Yahweh havia exigido deles não estava além de sua capacidade de alcançar ou perceber (30.11-14). Assim, a escolha estava perante a nação: Yahweh era sua vida, por meio de amor leal expresso em obediência; a apostasia significaria morte, destruição prematura e expulsão da Terra Prometida. O discurso termina com uma exortação vibrante − escolhe, pois, a vida (30.15-20).

A última divisão principal do livro trata da continuidade da aliança e do testamento espiritual de Moisés para a nação (31.1–34.12). Assim como o tratado secular suserano fazia provisões para a contínua vassalagem a seu herdeiro real, Yahweh ordenou a Moisés que conduzisse Josué ao papel de mediador, uma vez que a aliança teria de ser renovada depois da conquista de Canaã (31.1-8, 23). Os sacerdotes e levitas teriam a responsabilidade de ler a aliança perante a assembléia na Festa das Cabanas, a cada sétimo ano (ano sabático), para manter sua memória viva para toda geração (31.9-13).

A despeito de tais provisões, Moisés foi avisado por Yahweh de que Israel, de fato, abandonaria sua lealdade (30.14-18) e que Yahweh tomaria providências para que Israel ficasse sem desculpas. Essas providências incluíam um cântico (31.19-22; 31.30–32.43) e a colocação de uma cópia da aliança junto à arca do pacto, como testemunho contra a obstinada desobediência de Israel (31.24-29).

Este cântico funcionaria como “parte do testemunho à renovação da aliança; sempre que os israelitas o cantassem, dariam testemunho de sua compreensão dos termos plenos e das implicações da aliança, bem como de sua concordância com os mesmos”. A mensagem do cântico é basicamente idêntica à da divisão que continha as bênçãos e as maldições pactuais:

A natureza inconstante de Israel o levará a quebrar a aliança e a perder suas bênçãos até que Yahweh o restaure com maior glória após discipliná-lo com profundo sofrimento.

O cântico contém uma invocação de testemunhas (32.1, 2), uma declaração de louvor a Yahweh, a Rocha fiel (32.3, 4), a denúncia da infidelidade de Israel (32.5, 6), a recapitulação dos primeiros dias de Israel sob a proteção de Yahweh (32.7-14) e de seus últimos dias

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alienado Dele (32.15-18) e a proclamação de maldições contra os infiéis (32.19-35) e de bênçãos sobre os fiéis por meio do julgamento e da restauração soberanos executados por Yahweh (32.36-43). O cântico foi ensinado a Israel na presença dos dois mediadores − o que terminava sua obra e o que estava prestes a começar a sua (32.44-47).

Depois de ser avisado de sua morte iminente (32.47-52), Moisés pronuncia sua bênção profética sobre as tribos. Este é o seu testamento espiritual, que estaria em vigor para Israel depois de sua morte, servindo como um complemento para a bênção patriarcal de Jacó (Gn.49). A introdução dessa bênção-testamento oferece louvor a Yahweh por Seu compromisso com Seu povo como Rei, a despeito de Sua glória e majestade anteriores (33.1-5); a seguir, Moisés pronuncia uma bênção sobre cada tribo (33.6-25) e celebra o caráter peculiar de Yahweh, o Deus que garante o triunfo final de Israel (33.26-29).

A nota fúnebre de Moisés, mais provavelmente escrita por Josué, descreve sua visão de Canaã (34.1-4), sua morte, seu sepultamento (34.5-8), sua sucessão por Josué (34.9) e sua singularidade como profeta e mediador da aliança (34.10-12). Uma era se encerrava, e o dia do cumprimento de antigas promessas estava raiando.

9. Esboço:

I. Primeiro Discurso de Moisés: Relato da História Recente de Israel (1.6-4.43)

A. A Partida do Monte Sinai (1.6-18) B. A Incredulidade em Cades-Barnéia (1.19-46) C. As Jornadas no Deserto (2.1-15) D. A Chegada às Planícies de Moabe (2.16-3.29) E. A Exortação à Obediência (4.1-43)

II. Segundo Discurso de Moisés: Principais Deveres do Concerto (4.44-26.19)

A. Os Dez Mandamentos (4.44-5.33) B. O Monoteísmo e os Imperativos (6.1-25)

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Anderson Vicente Gazzi

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C. Mandamentos, Promessas e Advertências (7.1-11.32) D. Mandamentos Concernentes à Adoração (12.1-32) E. Mandamentos Concernentes aos Falsos Profetas (13.1-18) F. Mandamentos Concernentes aos Alimentos, Dízimos e ao Ano Sabático (14.1-15.23) G. Mandamentos a Respeito das Festas Sagradas Anuais (16.1-17) H. Mandamentos a Respeito das Autoridades (16.18-18.22) I. Leis Civis e Sociais (19.1-26.19)

III. Terceiro Discurso de Moisés: Renovação e Ratificação do Concerto (27.1-30.20)

A. Obrigações Solenes de Israel (27.1-26) B. Promessas de Bênçãos por Obediência, e de Maldições por Desobediência (28.1-68) C. Confirmação do Concerto e Exortações Pertinentes (29.1-30.20)

IV. Os Atos Finais de Moisés e Sua Morte (31.1-34.12) A. Moisés Dá Instruções a Israel e Designa Josué em Seu Lugar (31.1-29) B. O Cântico de Moisés (31.30-32.47) C. As Instruções de Deus a Moisés (32.48-52) D. Moisés Abençoa as Tribos (33.1-29) E. Morte e Sepultamento de Moisés, e Conclusão (34.1-12) BIBLIOGRAFIA DO CAPÍTULO VIII: - HILL, Andrew E. e WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento. Belo Horizonte: Vida, 2000. - WALTON, John. O Antigo Testamento em quadros. São Paulo: Vida, 2001. - GOWER, Ralph. Usos e costumes dos tempos bíblicos”. Rio de Janeiro: CPAD, 2002. - DOCKERY, David S. Manual Bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2001. - DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia - BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento. V.1,2. São Paulo: ASTE, 1968. - BÍBLIA – Estudo de Genebra. Tradução Revista e Atualizada no Brasil. São Paulo: Cultura Cristã, 1998.

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Introdução ao Estudo do Pentateuco

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- BÍBLIA – Português. Bíblia Sagrada. Tradução: Escola Bíblica de Jerusalém, nova ed. rev. São Paulo: Paulus, 1985. - ELLISSEN, Stanley. Conheça Melhor o Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2007. - HOFF, Paul. O Pentateuco. São Paulo: Vida, 2002. - PINTO, Carlos Oswaldo. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006. - LASOR, William S.; HUBBARD, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003. - BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1981. - CHARPENTIER, E. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1986. - FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. - GRUEN, Wolfgang. O tempo que se chama hoje: uma introdução ao Antigo Testamento. 11ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1985. - HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1975. - MARTIN.ACHARD, Robert. Como ler o Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1970. - METZGER, Martin. História de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1972. - PURY, Albert de (Org). O pentatêuco em questão. Petrópolis: Vozes, 1996. - RENDTORFF, Rolf. Antigo Testamento: uma introdução. Santo André: Academia Cristã, 2009. - SCHMIDT, H. Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994. - SICRE, Jose Luiz. Introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1995.