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10 Física na Escola, v. 16, n. 2, 2018 Feynman e o ensino de física Introdução U ma questão, do tipo quebra-cabe- ça, foi apresentada a Feynman quando cursava o ensino secun- dário [1]: Dois ciclistas, 20 km de distância um do outro, correm a 10 km/h. Nesse mesmo momento, uma mosca deixa a ro- da da frente da bicicleta e voa na direção da outra a uma velocidade constante de 15 km/h. Quando pousa na roda da frente da segunda bicicleta, ela imediatamente se vira e retorna. Quando toca a primeira bicicleta, imediatamente inverte o sentido. Qual é a distância to- tal coberta pela mosca antes de ser esmagada pela colisão entre as rodas das bicicletas? A resposta imediata de Feynman: 15 km. Ra- ciocínio: como as bici- cletas vão colidir em exatamente uma ho- ra, e como a mosca está se movendo a 15 km/h, o total do percurso é 15 km. Uma solução, digamos ortodoxa, apresentada por John von Neu- mann, consiste em somar a série infinita, obtida a partir do cálculo sequencial da distância na primeira viagem, na segunda e assim por diante (foi essa que tentei!). Esse exemplo ilustra bem como a mente de Feynman funciona na solução de pro- blemas de física aos quais se dedicou du- rante sua brilhante carreira. Os famosos diagramas de Feynman foram uma maneira engenhosa de realizar cálculos complicados da eletrodinâmica quântica (QED) de forma simples e eficiente e que simplificaram elegantemente a complexidade de cálculos em outras áreas da física [2]. Não houve problema aberto de física no século XX para o qual Feynman não tenha buscado solu- ções, algumas bem sucedidas, outras sem êxito, como sua frustrada tentativa de ela- borar a teoria da supercondutividade. E sempre abordou os problemas já resol- vidos de forma origi- nal e inovadora, basta ver os livros editados a partir de suas notas de aulas. Quando in- quirido sobre a opi- nião de Feynman acer- ca de sua teoria alternativa das “variá- veis ocultas” na mecâ- nica quântica, após encontro deles no Brasil, David Bohm comentou que Feynman não encontrara nela um problema a ser resolvido. Não se interessava muito por filosofia (tinha a sua própria), história e áreas das ciências humanas; seu foco principal eram as ciên- cias físicas. Registrem-se os comentários de professores de Princeton acerca da admissão de Feynman, como narrado por Feynman é um ícone da física no século XX. Sua personalidade multifacetada, seu carisma e suas contribuições à física e ao ensino torna- ram-no muito conhecido do grande público e de toda a comunidade de professores de física. Seu apreço e admiração pelo Brasil, país que visitou em várias oportunidades, foi enorme. Em carta ao amigo Leite Lopes, assinou como no título acima. Neste artigo, em comemoração ao centenário de seu nascimento, comento bre- vemente aspectos de sua vida e obra e destaco a apreciação de alguns colegas mais próximos. Abordo suas principais incursões no campo da ensinagem, como proponente de metodologias inovadoras e crítico feroz da aprendizagem mecânica e do ensino para testagem. Em parti- cular, exponho suas ideias sobre o ensinar e o aprender, sua visão da física, as palestras sobre o ensino no Brasil e os livros Lições da Física e Sobre as Leis da Física. Nelson Studart Professor da Universidade Federal do ABC, Santo André, SP, Brasil Professor Aposentado Sênior do Departamento de Física, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil E-mail: [email protected] Finalmente, gostaria de acrescentar que a principal razão das minhas aulas não foi prepará-los para algum exame – não foi sequer para prepará-los para o mercado de trabalho nem para as forças armadas. Eu queria principalmente que vocês passassem a apreciar o mundo extraordinário e a maneira como o físico olha para ele, a qual, acredito, seja uma grande parte da verdadeira cultura dos tempos modernos. (Prova- velmente professores de outras matérias iriam protestar, mas eu acredito que eles estão totalmente errados.) Talvez vocês não apenas passem a apreciar essa cultura, mas é possível que queiram se juntar à maior aventura jamais iniciada pela mente humana. R.P. Feynman Epílogo do Volume III das Lectures, 1963 Os famosos diagramas de Feynman foram uma maneira engenhosa de realizar cálculos complicados da eletrodinâmica quântica de forma simples e eficiente e que simplificaram elegantemente a complexidade de cálculos em outras áreas da física

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10 Física na Escola, v. 16, n. 2, 2018Feynman e o ensino de física

Introdução

Uma questão, do tipo quebra-cabe-ça, foi apresentada a Feynmanquando cursava o ensino secun-

dário [1]: Dois ciclistas, 20 km de distânciaum do outro, correm a 10 km/h. Nessemesmo momento, uma mosca deixa a ro-da da frente da bicicleta e voa na direçãoda outra a uma velocidade constante de15 km/h. Quando pousa na roda da frenteda segunda bicicleta, ela imediatamentese vira e retorna. Quando toca a primeirabicicleta, imediatamente inverte o sentido.Qual é a distância to-tal coberta pela moscaantes de ser esmagadapela colisão entre asrodas das bicicletas? Aresposta imediata deFeynman: 15 km. Ra-ciocínio: como as bici-cletas vão colidir emexatamente uma ho-ra, e como a moscaestá se movendo a 15 km/h, o total dopercurso é 15 km. Uma solução, digamosortodoxa, apresentada por John von Neu-mann, consiste em somar a série infinita,obtida a partir do cálculo sequencial dadistância na primeira viagem, na segundae assim por diante (foi essa que tentei!).Esse exemplo ilustra bem como a mentede Feynman funciona na solução de pro-

blemas de física aos quais se dedicou du-rante sua brilhante carreira. Os famososdiagramas de Feynman foram uma maneiraengenhosa de realizar cálculos complicadosda eletrodinâmica quântica (QED) de formasimples e eficiente e que simplificaramelegantemente a complexidade de cálculosem outras áreas da física [2]. Não houveproblema aberto de física no século XX parao qual Feynman não tenha buscado solu-ções, algumas bem sucedidas, outras semêxito, como sua frustrada tentativa de ela-borar a teoria da supercondutividade. Esempre abordou os problemas já resol-

vidos de forma origi-nal e inovadora, bastaver os livros editadosa partir de suas notasde aulas. Quando in-quirido sobre a opi-nião de Feynman acer-ca de sua teoriaalternativa das “variá-veis ocultas” na mecâ-nica quântica, após

encontro deles no Brasil, David Bohmcomentou que Feynman não encontraranela um problema a ser resolvido. Não seinteressava muito por filosofia (tinha asua própria), história e áreas das ciênciashumanas; seu foco principal eram as ciên-cias físicas. Registrem-se os comentáriosde professores de Princeton acerca daadmissão de Feynman, como narrado por

Feynman é um ícone da física no século XX.Sua personalidade multifacetada, seu carismae suas contribuições à física e ao ensino torna-ram-no muito conhecido do grande público ede toda a comunidade de professores de física.Seu apreço e admiração pelo Brasil, país quevisitou em várias oportunidades, foi enorme.Em carta ao amigo Leite Lopes, assinou comono título acima. Neste artigo, em comemoraçãoao centenário de seu nascimento, comento bre-vemente aspectos de sua vida e obra e destacoa apreciação de alguns colegas mais próximos.Abordo suas principais incursões no campo daensinagem, como proponente de metodologiasinovadoras e crítico feroz da aprendizagemmecânica e do ensino para testagem. Em parti-cular, exponho suas ideias sobre o ensinar e oaprender, sua visão da física, as palestras sobreo ensino no Brasil e os livros Lições da Física eSobre as Leis da Física.

Nelson StudartProfessor da Universidade Federal doABC, Santo André, SP, BrasilProfessor Aposentado Sênior doDepartamento de Física, UniversidadeFederal de São Carlos, São Carlos, SP,BrasilE-mail: [email protected]

Finalmente, gostaria de acrescentar que a principal razão das minhas aulas não foiprepará-los para algum exame – não foi sequer para prepará-los para o mercado detrabalho nem para as forças armadas. Eu queria principalmente que vocês passassema apreciar o mundo extraordinário e a maneira como o físico olha para ele, a qual,acredito, seja uma grande parte da verdadeira cultura dos tempos modernos. (Prova-velmente professores de outras matérias iriam protestar, mas eu acredito que eles estãototalmente errados.) Talvez vocês não apenas passem a apreciar essa cultura, mas épossível que queiram se juntar à maior aventura jamais iniciada pela mente humana.

R.P. FeynmanEpílogo do Volume III das Lectures, 1963

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Os famosos diagramas deFeynman foram uma maneiraengenhosa de realizar cálculoscomplicados da eletrodinâmica

quântica de forma simples eeficiente e que simplificaram

elegantemente a complexidadede cálculos em outras áreas da

física

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11Física na Escola, v. 16, n. 2, 2018 Feynman e o ensino de física

seu orientador, John Wheeler [3]: “Vejamas notas desse sujeito do MIT nos testesde aptidão em matemática e física. Fantás-tico! Ninguém que está se candidatando,aqui em Princeton, chega assim tão pertodo pico absoluto.” Alguém no Comitê deAdmissão de Pós-graduandos interrom-peu: “Ele deve ser um diamante bruto.Nunca deixamos entrar ninguém com no-tas tão baixas em história e inglês. Masveja a experiência prática que ele teve emquímica e ao trabalhar com atrito.”

Em 2018 é comemorado o centenáriode nascimento de Richard Phillips Feyn-man, um dos mais renomados físicos doséculo XX e considerado, por muitos, omais importante físico norte-americanoda história. Seus colegas atribuem a eleuma mente quase sobre-humana [4], aci-ma da categoria gênio. Segundo Marc Kac:“Um gênio comum é um sujeito que vocêe eu seríamos tão bons quanto, se fôsse-mos apenas muitas vezes melhores. Nãohá mistério sobre como a sua mente fun-ciona... É diferente com os mágicos [...] ofuncionamento de suas mentes é, paratodos os efeitos, incompreensível. Mesmodepois de entendermos o que eles fizeram,o processo pelo qual eles fizeram é com-pletamente obscuro [...] Richard Feynmané um mágico do mais alto calibre.” HansBethe complementa: “Aquele que faz coi-sas que ninguém mais poderia fazer e quesão completamente inesperadas”. FreemanDyson: “A mais original mente de sua ge-ração.” Seu grande competidor e colegano Caltech, Murray Gell-Mann: “As ideiasde Richard, muitas vezes poderosas, enge-

nhosas e originais, eram apresentadas deuma maneira direta que eu achava inspi-radoras.” Leite Lopes, seu anfitrião no Bra-sil: “A imagem que guardo dele é a imensaalegria em fazer pesquisa, em pensar edescobrir por si mesmo de modo inimitá-vel, uma singular intuição, uma ricaimaginação que forneceram muitas bo-nitas dádivas ao conhecimento físico” [5].

São inúmeros os epítetos a ele atri-buídos: showman nato, bufão, iconoclasta,além de gênio e mágico. Gosto de Perso-nagem curiosa (subtítulo de sua autobio-grafia) [6]: exibia comportamento exclu-sivamente não convencional e se descreviacomo “ativamente irresponsável” (pode-se fazer várias leituras dessa sua descri-ção). Demonstrou um amor intenso pelafísica, mas também tinha paixão por tocarbongôs e frigideiras, desfilar no carnavalcarioca, pintar quadros (Fig. 1) e desenharfiguras humanas, decifrar segredos decofres e aprender novas línguas (incluindoos hieróglifos maias). Sem dúvida, umcontador de histórias, inclusive em suasfestejadas aulas e conferências. Assim,Gell-Mann provocativamente se manifes-tou: “Ele se cercou de uma nuvem de mi-tos e gastou muito tempo e energia geran-do anedotas sobre si mesmo” [7].

Sua extremada curiosidade acerca domundo lhe permitiu fazer conexões queuma mente estreita não pode alcançar.Como salientado pela revista The Scientistem seu obituário: “Aristóteles, em DePoetica, observou que a habilidade de fazertais conexões por meio do pensamentometafórico é ‘um sinal de genialidade [...]

implica uma percepção intuitiva dasemelhança entre diferentes’. Ele continuaa dizer que essa capacidade ‘não pode seraprendida com os outros’. De fato, esse,como Feynman, era autodidata”. Essahabilidade está clara, para nós professores,na reformulação da física, com as cone-xões entre campos do conhecimento físico,como ele os compreendia, no originalíssi-mo Feynman Lectures on Physics (Lições deFísica) [8].

Em suma, Feynman foi um cientistaque conseguiu reunir as qualidades decuriosidade, criatividade, originalidade euma intuição apurada.

As contribuições de Feynman foramde grande relevância em várias áreas dafísica e o fizeram merecedor do PrêmioNobel de 1965 (compartilhado com JulianSchwinger e Sin-Itiro Tomonaga) pelo de-senvolvimento da teoria da eletrodinâmicaquântica, que unificou o eletromagne-tismo, a mecânica quântica e a relatividaderestrita. Publicou trabalhos importantesna física das partículas elementares (teoriade interações fracas, jatos de quarks, pár-tons), na mecânica quântica (formalismode integrais de caminho, dissipação quân-tica), gravitação quântica e relatividadegeral (ondas gravitacionais), e na física damatéria condensada (hélio líquido e póla-rons). Em duas conferências, lançou asbases da nanotecnologia e da computaçãoquântica. Mas lamentou não ter resolvidoo problema da supercondutividade. O vo-lume 40, n. 4 da Revista Brasileira de Ensinode Física (RBEF) apresenta uma Seção Es-pecial em homenagem a Feynman porocasião do centenário de seu nascimento,trazendo a visão de pesquisadores brasi-leiros sobre sua obra [9](Fig. 2).

Professor Feynman

Feynman é considerado um dos gran-des professores de física de todos os tem-pos. Seu epíteto “Grande explicador” lhefaz justiça. Suas palestras atraíam grandesaudiências e várias foram gravadas eimpressas. Destaco as magistrais Messen-ger Lectures, disponíveis na internet, quese transformaram no livro The Characterof Physical Law (Sobre as Leis da Física, naversão brasileira) [10]. Gostava de daraulas e conversar com jovens estudantes.E demonstrou muito respeito aos profes-sores de ciências que talvez o vissem comoa seu pai, a quem atribui o estímulo asua curiosidade na infância. Na palestraO que é ciência, apresentada nesta ediçãode FnE, Feynman demonstra seu apreçopelos professores do nível elementar:

“Mas eu gostaria de dizer que acho que“O que é ciência” não é equivalente demodo algum a “como ensinar ciência”,

Figura 1: Pintura Hillside City, de Feynman, que assinava seus quadros e desenhos como pseudônimo de Ofey (Museum Syndicate).

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e devo chamar sua atenção para issopor duas razões. Em primeiro lugar,pela maneira como preparei esta pa-lestra, pode parecer que estou tentandodizer a vocês como ensinar ciência – enão estou fazendo isso de maneira ne-nhuma, porque eu não sei nada sobrecrianças pequenas. Eu tenho uma,então eu sei que eu não sei. A outrarazão é que eu penso que a maioria devocês (porque ouço dizer e porque hátantos artigos e especialistas sobre oassunto) têm algum sentimento de fal-ta de confiança. Vocês estão sempre ou-vindo falar sobre como as coisas nãoestão indo bem e como deveriam apren-der a ensinar melhor. Eu não vou criti-cá-los pelo mau trabalho que estãofazendo e indicar como ele pode ser me-lhorado; não é essa a minha intenção.”

David Goodstein, seu colega e cola-borador (apresentador da série UniversoMecânico), descreve Feynman na sala deaula [11]: “Para Feynman, o auditório eraum teatro, e o conferencista era um artis-ta, responsável por fornecer drama e ex-plosão, além de fatos e números. Isso eraverdade independentemente de seu públi-co, se ele estava falando com estudantesde graduação ou pós-graduação, paraseus colegas ou o público em geral. Suasaulas eram ilustradas com expressões ges-tuais e corporais [falava com o corpo], hu-mor e histórias pessoais de seu relaciona-mento com outros físicos.” Nestor Cati-cha, do IF-USP, seu aluno em disciplinasda pós no Caltech, comenta [12]: “assistiraula de Feynman era uma experiênciaúnica [...] Além da beleza da física que em

si já seria suficiente, nós éramos envolvi-dos pela trama [que nos contava]” [...]“Ter uma interação, por menor que seja,com alguém assim é uma grande expe-riência. A mensagem diária era sobre aimportância da curiosidade, de conviverhonestamente com a dúvida, de não termedo das dificuldades e se divertir fazendociência.”

O método de ensinagem (ensino comaprendizagem) de Feynman, ao final dosanos 1940 em Cornell, explorava a criati-vidade e a originalidade do aluno de formapouco convencional até para os dias dehoje, com tantas propostas de metodolo-gias ativas. Laurie Brown, que foi orien-tado por Feynman e cursou várias disci-plinas que ele ministrou, relembra [4]:

“Feynman era um professor muito po-pular e suas aulas em cursos avançadoseram bem frequentadas por teóricos eexperimentalistas. Depois das aulas, osalunos reuniam-se em pequenos gru-pos para comparar suas anotações deaula e para refazê-las. Embora as aulasfossem bem preparadas, nem sempreeram fáceis de seguir. Logo descobri-mos que os métodos de Feynman eramtudo, menos triviais, e não encontradosem nenhum livro, e que alguns de seuspontos de vista eram grandemente nãoconvencionais. Feynman enfatizava acriatividade – o que para ele significavaresolver as coisas desde o começo. Elepedia a cada um de nós que criasse seuuniverso de ideias, para que nossosprodutos, mesmo que fossem apenasrespostas a problemas de classe, tives-sem seu próprio caráter original –

assim como seu próprio trabalhocarregava o selo único de sua persona-lidade. Obviamente, esse tipo de ensinose estende muito além da física ou mes-mo da ciência em geral. Era incrivel-mente diferente do que a maioria denós aprendeu anteriormente.”

No prefácio de suas Lectures [8], Feyn-man questiona o sistema tradicional deaula expositiva com resolução de pro-blemas, propondo uma metodologia maisinterativa do professor com o aluno:

“Acredito porém que não há soluçãopara esse problema de ordem educa-cional [fracasso dos alunos nos exames]a não ser abrir os olhos para o fato deque o ensino mais adequado só poderáser levado a cabo nas situações em quehouver um relacionamento pessoaldireto entre o aluno e o bom professor– situações nas quais o estudantediscuta as ideias, reflita e converse sobreelas. É impossível aprender muitacoisa simplesmente comparecendoa uma palestra ou mesmo limitan-do-se a resolver os problemas de-terminados” (grifo nosso) [8, p. 8].

Como aprender, segundo Feynman

Feynman desenvolveu uma maneirapeculiar de aprender. Segundo seu bió-grafo, James Gleick [13]:

“Ele abria um caderno novo. Na páginado título, escrevia: Caderno de coisasque eu não sei. Nem pela primeira, nempela última vez, ele reorganizava seu

Figura 2: Feynman e a Seção Especial da RBEF que o homenageou no centenário de seu nascimento (vol. 40, n. 4, 2018).

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conhecimento. Trabalhava durante se-manas desmontando cada ramo da físi-ca, lubrificando as partes e juntando-as novamente, olhando o todo, aparan-do arestas e procurando inconsistên-cias. Tentava encontrar a essência decada assunto.”

Desse modo, Feynman antecipa doisprocessos importantes da teoria da apren-dizagem significativa (TAS) de DavidAusubel: a diferenciação progressiva e areconciliação integradora. A diferenciaçãoprogressiva é o processo de atribuição denovos significados a um determinado con-ceito de forma que resulte no uso desseconceito para dar significado a novosconhecimentos. A reconciliação integra-dora é um processo dinâmico reestrutu-rador da estrutura cognitiva, simultâneoao da diferenciação progressiva, que con-siste em eliminar diferenças aparentes,resolver inconsistências e integrar signi-ficados, como abordado por Feynman emseu processo de aprendizagem. [14]

Outros fatores importantes na ensi-nagem são a simplicidade e clareza naapresentação dos conteúdos. Achava quese o professor não conseguisse com queos alunos compreendessem uma ideia,conceito ou proposição, é porque o profes-sor não a entendeu realmente. Algo quese relaciona com o pensamento de JeromeBruner [15] : “qualquer tema se poderiaensinar a uma criança em qualquer idadee de uma forma que seja honesta”.Provocado se uma criança poderia enten-der cálculo diferencial, Bruner retrucouque isso não, mas o conceito de limite,base do cálculo, poderia ser apreendido poruma criança. Em suas Lectures, Feynman,ao explicar o conceito contraintuitivo develocidade instantânea segue Bruner,apontando a necessidade de considerarintervalos de tempo muito pequenos, echega ao conceito de limite, antes dadefinição de derivada, como usual noslivros-texto tradicionais (Fig. 3).

No entanto, ao contrário de usar amáxima de Ausubel de que “o fato isoladomais importante na aprendizagem é aqui-lo que o aprendiz já conhece. Descubra oque ele sabe e baseie os seus ensinamentosnisso”, e trabalhar com os conhecimentosprévios do aluno, Feynman prefere identi-ficar os interesses mútuos do professor edo aluno: “Em primeiro lugar, descubrapor que quer que os alunos aprendam e oque quer que saibam e o método resultarámais ou menos por senso comum” (Ref.[8, p. xii]). Por meio de exposição simples,clara e instigadora, conseguia a atençãodos alunos, despertando o interesse delesem aprender.

Feynman e o ensino no Brasil

Feynman visitou o Brasil em váriasoportunidades entre 1949 e 1966 (Fig. 4).Apareceu na mídia em apoio aos colegasna consolidação do recém-criado CentroBrasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), enal-tecendo as aplicações do laser, e noprotesto contra a perseguição a físicos

brasileiros após o golpe de 64. Deu aulasde graduação e pós e realizou pesquisas,usando radioamadores para obter acessoa dados de laboratórios americanos.

E se divertiu muito: desfilou de mari-nheiro no bloco “Farsantes de Copacaba-na”, aprendeu a tocar frigideira e outrosinstrumentos de percussão e participoude bailes do carnaval carioca. Em entre-

Figura 3: Feynman, em suas Lectures, usa a ideia de intervalos muito pequenos nadiscussão preliminar do conceito de velocidade instantânea.

Figura 4: Foto autografada de Feynman e seus colegas no Rio. Na direção da parte dafrente para a de trás da mesa. Lado esquerdo: Roberto Salmeron, Gabriel Fialho, Fran-cisco Oliveira Costa, Gerard Hepp, Álvaro Diffini, César Lattes, Antonio José da CostaNunes, Ugo Camerini, José Leite Lopes, Paulo Emidio Barbosa e Homero L. César. Ladodireito: Homero Brandão, Henry British Lins de Barros, Nelson Lins de Barros, NeusaAmato (neé Margem), Richard Feynman, Elisa Frota-Pessôa, Guido Beck, HelmutSchwartz Jayme Tiomno, Reinhard Oehme e George Rawitscher (Caltech Archives).

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vista ao Jornal do Brasil (24 de fevereirode 1966), Feynman enfatiza que seu tem-peramento alegre e sua falta de inibiçãonão são incompatíveis com a seriedade deum cientista: “Não há relação entre odivertimento e o trabalho, e, por isso, nãovejo dificuldade em conciliar as duas coi-sas. Quando estou trabalhando em meulaboratório sou um homem sério e res-ponsável, embora goste de contar histó-rias engraçadas quando pronuncio confe-rências para quebrar um pouco a aridezda exposição. Fora do ambiente de tra-balho, procuro me divertir (Fig. 5), porachar que um professor e cientista,quando procura manter uma máscara deseriedade, na maioria das vezes estáescondendo ignorância.”

E falou sobre ensino de física no Brasile na América Latina. Em maio de 1952,proferiu palestra sobre ensino de física naFaculdade Nacional de Filosofia que cau-sou enorme impacto na comunidade defísicos. Em junho de 1963, discursou na IConferência Interamericana de Ensino deFísica. Ildeu de Castro Moreira [16] des-creveu em detalhes essas duas conferên-cias sobre ensino no Brasil. Segundo LeiteLopes, a palestra foi dada, a pedido dele,após discutir a estrutura do sistema edu-cacional brasileiro e mostrar alguns livrosbrasileiros para estudantes do ensino se-cundário. A sugestão foi que ele “criticasseextensivamente esses livros” [5]. Porém,Feynman foi muito além, fazendo ácidascríticas ao sistema de ensino de física noBrasil, em especial sobre as atitudes dos

alunos na aprendizagem e o livro didáticodo ensino secundário.

Seguem alguns trechos de seu livrode memórias [6] que mostram, com certosarcasmo, suas impressões sobre a expe-riência de ensinar no Brasil.

Sobre a aprendizagem

“Eu descobri um fenômeno muito es-tranho: eu podia fazer uma pergunta, queos estudantes respondiam imediatamente.Mas na próxima vez que eu fizesse a per-gunta – o mesmo assunto, e a mesma per-gunta, até onde eu conseguia expressar –eles não respondiam nada! Depois de mui-ta investigação, eu finalmente descobrique os alunos tinham memorizado tudo,mas eles não sabiam o que tudo signifi-cava [...] Tudo era totalmente decorado,mas nada era traduzido em palavras quefizessem sentido. Outra coisa que nuncaconsegui fazer com que fizessem foi per-guntas [...] Todos fingem que sabem, e seum aluno admite por um momento quealgo está confuso, fazendo uma pergunta,os outros assumem uma atitude arrogan-te, agindo como se não fosse confuso,dizendo que ele está perdendo tempo.Expliquei o quanto era útil trabalhar emconjunto, discutir as perguntas, conversarsobre o assunto, mas eles também nãofazem isso, porque a máscara cairia setivessem que perguntar a outra pessoa.Lamentável! Eram pessoas inteligentesque faziam todo o trabalho, mas entraramnesse estado de espírito engraçado, essetipo estranho de autopropagar a “educa-

ção” que é sem sentido, completamentesem sentido. “Eu não conseguia ver comoalguém poderia ser educado por esse sis-tema autopropagante no qual as pessoaspassam nos exames e ensinam outras pes-soas a passar nos exames, mas ninguémsabe de nada. No entanto”, eu disse, “devoestar errado. Havia dois alunos da minhaturma que se saíram muito bem. Assim,deve ser possível que algumas pessoasfuncionem nesse sistema, por pior queseja.”

Sobre o livro didático

“Não há resultados experimentaismencionados em nenhum lugar destelivro, exceto em um lugar onde há umabola, rolando um plano inclinado, em quese diz até onde a bola chegou após umsegundo, dois segundos, três segundos eassim por diante. Os números têm“erros”, ou seja, se você olhar para eles,acha que está vendo resultados experi-mentais, porque os números estão umpouco acima ou um pouco abaixo dosvalores teóricos. O livro fala sobre ter quecorrigir os erros experimentais – muitobem. O problema é que, quando você cal-cula o valor da constante de aceleraçãoconstante a partir desses valores, obtéma resposta correta. Mas uma bola rolandoem um plano inclinado possui uma inérciaque a faz girar, e, se você fizer o experi-mento, produzirá cinco sétimos da respos-ta certa, por causa da energia extra neces-sária para a rotação da bola. Portanto, esseúnico exemplo de “resultados” experimen-tais é obtido a partir de um experimentofalso. Ninguém tinha rolado uma boladessas, ou nunca teriam conseguido essesresultados! ... [Mais adiante, leu:] “Atriboluminescência é a luz emitida quandoos cristais são esmagados...” Eu disse: “Eaí, você tem ciência? Não! Apenas se disseo que uma palavra significa em termosde outras palavras.”

A repercussão dessa palestra ultrapas-sou os limites da Academia. Osvaldo FrotaPessoa, biólogo destacado e afamadodivulgador da ciência, escreveu a matéria‘Não se aprende nada”. O físico Costa Ri-beiro, ao fim da conferência, lembrou oconhecido conto de Andersen, em que asroupas (invisíveis) do Rei eram “admiradaspelos súditos”, até que um garoto de ruaexclamou com franqueza: mas o rei estánu! O artigo termina com uma conclama-ção para a “revolução necessária” [17]:

Se queremos realmente fazer progredira ciência no Brasil, urge revolucionarnossos métodos didáticos, em todos osníveis: primário, secundário e superior.Como assinalou muito bem Costa Ri-

Figura 5: Feynman (no centro da linha da frente) se divertindo no carnaval carioca de1952 (Caltech Archives).

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beiro, são as faculdades de filosofia, for-madoras de novos mestres, que estãoem posição estratégica para iniciar omovimento. E é de muito bom sinalque tenha sido na Faculdade Nacionalde Filosofia, sob auspícios do Departa-mento de Física e do Diretório Acadê-mico, que se tenha realizado a esclare-cedora palestra do prof. Feynman. Afalta de formalidades, pedantismo eacademicismo que caracterizou areunião foi uma das condições desucesso. Os prolongados debates, emque participaram, com Feynman, alu-nos e professores da Faculdade, emseguida à conferência, se caracteriza-ram por ideias objetivas e sugestõesfelizes para melhoramento dos nossosmétodos de ensino. Esperemos que estemagnifico impulso inicial nos levelonge.

A revista Ciência e Cultura, em seuprimeiro número de 1952 destaca, em edi-torial, que Feynman afirmou “o que todossabemos, que a ciência é a descrição dosfenômenos da natu-reza, mas continuouafirmando o que nemtodos nós sabemos,que ensinar ciência épôr os alunos emcontato com os fenô-menos naturais e queo ensino usual, dememorizar fórmulase definições, não é ensinar ciência; [...] sóquando investiga, aguçado pela curiosi-dade e pelo encantamento ante o desco-nhecido, é que está aprendendo ciência.”

Apesar de consideráveis avanços napesquisa em ensino de física, na melhoriados livros didáticos proporcionados peloPNLD, na formulação de diretrizes básicaspara a formação de licenciados em ciênciase para o ensino das Ciências da Natureza,pouco permaneceu daquilo que Feynmantentou nos ensinar e estamos ainda muitolonge de alcançar o nível de ensinagemque Feynman propôs. Nosso ensino esco-lar é eminentemente comportamentalista,medido em termos de seus resultados, e aaprendizagem de física continua mecâni-ca, baseada na memorização de conteúdose resolução de problemas fechados quevisam essencialmente a testagem. E pior,os conteúdos estão desatualizados, compouca atenção à física contemporânea, edistantes dos avanços recentes da físicaquântica, da astrofísica e da nanociência,entre outras áreas.

Outro fato interessante das visitas deFeynman ao Brasil foi sua conferência naAcademia Brasileira de Física (Julho de

1953) em que discorreu sobre o uso doExperimento da Dupla Fenda como ins-trumento para a discussão da interpreta-ção de Copenhague da mecânica quântica,proposta por Niels Bohr com o princípioda complementaridade (a famigerada dua-lidade onda-partícula). Feynman popula-rizou essa discussão nos volumes I e IIIdas Lectures.

Sua atuação no ensino no Brasil nãose limitou ao nível superior. Ao lado deoutras figuras importantes da física doBrasil, entre eles Abraão de Moraes, PaulusPompeia, Costa Ribeiro, Jayme Tiomno eDavid Bohm, Feynman participou do ICurso de Aperfeiçoamento para Profes-sores de Física [do nível secundário], rea-lizado no ITA em julho de 1953. Aliapresentou a conferência Minhaexperiência em relação ao ensino de físicano Brasil. Ressalte-se a participação ex-pressiva de físicos na formação de pro-fessores. Esse curso teve sequência em1955, mas não há registros de sua con-tinuação. Felizmente, hoje a SBF, comapoio da Capes, promove o Mestrado

Nacional Profissionalde Ensino de Física,que atua em 58 insti-tuições-polos, que sededicam à capacitaçãoe à atualização, emserviço, de professoresde física de todas asregiões do país. O pro-grama envolve docen-

tes dessas instituições que, em geral,passaram a se dedicar com maior en-tusiasmo ao ensino das disciplinasministradas na licenciatura e estão maisabertos ao uso de metodologias inova-doras em sua prática.

Em 1963, Feynman abre a Conferên-cia Interamericana de Ensino de Física, noRio de Janeiro, com o discurso intitulado“The Problem of Physics Teaching in LatinAmerica”.[18] Em estilo acadêmico formal,revisita sua experiência anterior no Brasile estende considerações para a América La-tina. Moreira resume pontos mais desta-cados na fala de Feynman [16]:

i) primeiramente, e o fator mais im-portante, é que o ensino/aprendizadoé quase exclusivamente baseado emmemorização. Aqui, Feynman relatavárias experiências neste sentido queteve com estudantes da UB e que depoisreproduziria em seu livro; ii) os estu-dantes atuam sempre sozinhos e nãointeragem ou discutem com seus cole-gas; iii) a falta de liberdade no ambienteuniversitário; isto impede os estudantesde mudarem de área ou de laboratório;

iv) pouca atenção é dada ao conjuntomaior de estudantes que não preten-dem ser cientistas; v) outro ponto ca-racterístico da América Latina é o pe-queno número de pessoas envolvidasem atividades cientificas, o que tornaas organizações e instituições irregula-res e instáveis; vi) os melhores alunostendem a sair de seus países e se diri-girem para o exterior.

Feynman e as Lectures

David Goodstein conta que Feynmanlhe confidenciou que “no longo prazo, suamais importante contribuição para a físicanão seria a QED, a teoria do hélio super-fluido, os pólarons ou os pártons. Seu ver-dadeiro monumento seriam suas FeynmanLectures”. Elas refletem sua visão peculiarde toda a física e como deveria ser ensina-da, mais um desafio que concordou emassumir ao receber o convite para refor-mular o curso de física introdutória doCaltech.

Os três livros vermelhos despertamcuriosidade, interesse e até mesmo fasci-nação em muitos estudiosos da física, emparticular professores. Provavelmente, to-dos os leitores aficionados possuem suaspassagens favoritas. Na introdução daSeção Especial da RBEF em que apresentoos artigos dos colegas, destaco algumasdas minhas preferidas.[19] As Lectures nãopodem ser consideradas uma coleção didá-tica de estreia na aprendizagem da física.Constituem mais um guia para profes-sores e alunos principiantes destacados.São volumes produzidos a partir das aulasgravadas e transcritas por Robert Leightone Mathew Sands. Foram destinados a alu-nos calouros de física do Caltech, no perío-do de setembro de 1961 a maio de 1963(Fig. 6). Há fatos curiosos, relembradospor Mathews Sands, [20] acerca daconstrução do que Feynman se referiucomo “essencialmente uma experiência”e à qual devotou grande empenho (nãopublicou nenhum artigo de pesquisa nesseperíodo). E ao final, deu um tompessimista a essa experiência [8]:

“A questão que se apresenta, natural-mente é saber até que ponto esta expe-riência foi bem-sucedida. Meu pontode vista – que não parece ser compar-tilhado pela maioria das pessoas quetrabalharam com os alunos – é pessi-mista. Não acho que tenha me saídomuito bem com os estudantes. Quandoparo para analisar o modo como amaioria deles lidou com os problemasnos exames, vejo que o sistema é umfracasso [...] Espero que minhas con-

Apesar de avanços na pesquisaem ensino de física e na

melhoria dos livros didáticos,pouco permaneceu daquilo queFeynman tentou nos ensinar eestamos ainda muito longe dealcançar o nível de ensinagem

que Feynman propôs

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16 Física na Escola, v. 16, n. 2, 2018Feynman e o ensino de física

ferências possam contribuir de algumaforma. Talvez em algum lugarejo, ondehaja professores e estudantes indivi-duais, eles possam obter alguma inspi-ração ou ideias destas conferências.Talvez se divirtam refletindo sobre elas– ou desenvolvendo algumas ideias.”

Ricardo Karam seguiu esse conselhode Feynman ao mostrar algumas liçõesdidáticas que podem ser extraídas das Lec-tures para o aperfeiçoamento da práticadocente do professor de física no Brasil.Em seu artigo da Edição Comemorativana RBEF, Karam [21] analisa as diferençasevidentes entre as Lectures e os livrosdidáticos tradicionais: muito texto; ausên-cia de problemas; ênfase na fenomenolo-gia; ordem e títulos dos capítulosincomuns; matemática a serviço da físicae não como pré-requisito; diálogo pessoal.Ademais, aponta como a relação entrematemática e física, a epistemologia e ametacognição são trabalhadas na obra. Aanálise das Lectures foi brilhantementeexposta na palestra que proferiu na VEscola Brasileira de Ensino de Física, emagosto de 2018, na UFSC-Blumenau,tendo como alvo os docentes do MNPEF.Ao final, Karam proclamou dez manda-

mentos que Feynman nos ensinou a partirdas Lectures [22]:

1) Melhor resolver 1 problema de 4maneiras diferentes do que 4 pro-blemas da mesma maneira;

2) Parta do simples ao complexo; doconcreto ao abstrato;

3) Quando possível, faça a matemáticaemergir das situações físicas;

4) Evite ao máximo argumentos auto-ritários como “esse é um teoremamatemático”; seja criativo, reinven-te teoremas, faça suas próprias de-monstrações;

5) Seja honesto com o estudante, refli-ta sobre as dificuldades para se en-tender o conteúdo e explicite-asquando for ensinar;

6) Procure evidenciar conexões e ana-logias profundas entre assuntosaparentemente distintos;

7) O conhecimento físico não édividido em caixas, mostre relaçõesentre as áreas da física;

8) Preencha de fenomenologia todo equalquer assunto que for ensinar;

9) Não ensine somente física, mastambém o que significa fazer física;

10) Seja metacognitivo em seu discur-so; explicite onde você está, ondequer chegar, como pretende chegarlá, quais são as possíveis arma-dilhas, etc.

E o que se pode dizer sobre o impactoatual das Lectures no público escolar ame-ricano? Com a palavra, um de seus ideali-zadores, Mathews Sands, que escreveu em

suas memórias: [20]

Nas minhas viagens a serviço da Com-mission on College Physics, muitasvezes me encontrei com docentes de fí-sica em várias universidades. Ouvi di-zer que a maioria dos instrutores nãoconsidera as Lectures adequadas parauso em suas aulas, embora alguns meinformaram que usaram um ou outrodos volumes em uma turma especialou como complemento para um textocomum. Muitas vezes tenho a impres-são de que alguns instrutores estavamcautelosos de experimentar as Lecturesporque eles temiam que os alunos pode-riam fazer perguntas que não fossemcapazes de responder. Mais comum éouvir que os alunos de pós-graduaçãoconsideram as Lectures uma excelentefonte de revisão para os exames de quali-ficação.

De interesse para o leitor também é asérie de conferências Messenger, dirigidasao grande público e transcritas no livroThe Character of Physical Law [10]. A pri-meira trata da conhecida lei da gravitação,como um exemplo de universalidade dafísica: “a natureza usa um fio muito longopara tecer suas tramas, mas um pequenopedaço do tecido revela a organização detoda a tapeçaria”. Na conferência A Relaçãoentre a Matemática e a Física, Feynman ex-plicita as duas maneiras de uso da mate-mática na descrição da natureza, apelandopara as diferenças entre a tradição babi-lônica e a tradição grega. Na Babilônia,“o aluno devia conhecer muita geometria,muitas propriedades dos círculos, o teo-rema de Pitágoras, fórmulas para as áreasde cubos e triângulos; além disso, aprendiaargumentos para passar de uma coisa aoutra e usava tabelas numéricas para re-solver equações complicadas. Tudo erapreparado para que se calculassem coi-sas.” Ao contrário, na Grécia, Euclides des-cobriu que havia uma maneira de deduzirtodos os teoremas da geometria a partirde um conjunto simples de “axiomas”.Feynman se considerava um “matemá-tico” babilônio. O capítulo Os GrandesPrincípios de Conservação é leitura obriga-tória para os professores que adotam umavisão fragmentada das várias leis de con-servação como dispostas no livro didático.A seguir, Feynman aborda a Simetria nasLeis Físicas: translação e rotação no es-paço, inversão temporal, princípio da rela-tividade (simetria para velocidadesuniformes em linha reta) e o mais recente(década de 1950) princípio de simetria en-tre direita e esquerda nas interações. Ex-plora, ainda, a conexão entre leis de con-

Figura 6: A aula “Movimento de planetas em torno do Sol”. Originalmente tirada paraas Lectures, mas não foi publicada lá (Caltech Archives).

os alunos de pós-graduaçãoamericanos consideram as

Lectures uma excelente fonte derevisão para os exames de

qualificação

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17Física na Escola, v. 16, n. 2, 2018

Referências

[1] C. Dornan, The Smartest Guys in the Room, The Globe and Mail, January 23, 1993. Disponível em http://educatedguesses.ca/people/richard-feynman-john-von-neumann/.

[2] A.C. Aguilar, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, e4205 (2018).[3] J.A. Wheeler, in Special Issue: Richard Feynman, Physics Today 42(2), 24 (1989).[4] L.M. Brown and J.S. Rigden. Most of the Good Stuff – Memories of Richard Feynman (AIP, New York, 1993).[5] J.L. Lopes. Quipu: Revista Latinoamericana de Historia de las Ciencias y la Tecnología 7, 383 (1990). Também em Ciência e Sociedade, CBPF-CS-

013/88 (1988), disponível em http://inspirehep.net/record/268082?ln=pt.[6] R.P. Feynman, Surely You’re Joking, Mr. Feynman! – Adventures of a Curious Character ( ( ( ( (W.W. Norton & Company, New York, 2018). Em português:

O Senhor Está Brincando, Sr. Feynman? (Elsevier, São Paulo, 2006).[7] M. Gell-Mann, in Special Issue: Richard Feynman, Physics Today 42(2), 50 (1989).[8] R.P. Feynman, R.B. Leigthon and M. Sands, The Feynman Lectures on Physics (Benjamin Cummings, New Jersey, 2006). Em português: Feynman:

Lições de Física. Tradução da Equipe do IFUSP sob supervisão de A. Fazzio. (Bookman, Porto Alegre, 2008).[9] Seção Especial – Celebrando os 100 anos de nascimento de Richard P. Feynman, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, 4 (2018).

[10] R.P. Feynman. The Character of a Physical Law (MIT Press, Cambridge, 1965). Sobre as Leis da Física, trad. Marcel Novaes e Nelson Studart(Contraponto/Editora PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2012).

[11] D. Goodstein, in Special Issue: Richard Feynman, Physics Today 42(2), 70 (1989).[12] N. Caticha, in Revista Brasileira de Ensino de Física 40, e4202 (2018).[13] J. Gleick. Genius: The Life and Science of Richard Feynman (Open Road Media, New York, 2011).[14] M.A. Moreira, Aprendizagem Significativa: A Teoria e Textos Complementares (Editora Livraria da Física, São Paulo, 2011).[15] J. Bruner, O Processo da Educação (Edições 70, Lisboa, 2007).[16] I.C. Moreira, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, e4203 (2018).[17] I.C. Moreira e M.C. Paiva, A Física na Escola 10(1), 62 (2016).[18] R.P. Feynman, Engineering and Science (Caltech Magazine) 27, 21 (1963). Texto em português na Ref. [16].[19] N. Studart, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, e4201 (2018).[20] M. Sands, Physics Today 58, 49 (2005).[21] R. Karam, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, e4204 (2018).[22] R. Karam, Lições didáticas extraídas das Feynman Lectures. Palestra 4 do minicurso Metodologias Alternativas no Ensino de Física, disponível em

http://ebef.ufsc.br/material/.

Leitura adicional

L. Mlodinow, O Arco Íris de Feynman (Sextante, São Paulo, 2005).J.M.F. Bassalo e F. Caruso, Feynman (Ed. Livraria da Física, São Paulo, 2013).R. Rosenfeld, Feynman e Gell-Mann (Odysseus, São Paulo, 2003).J. Mehra, The Beat of a Different Drum: The Life and Science of Richard Feynman (Oxford University Press, Oxford, 1994).

Feynman e o ensino de física

servação e leis de simetria. Os fenômenosirreversíveis são abordados com muitosexemplos, à la Feynman, na palestra ADistinção em Passado e Futuro. Na confe-rência acerca da Visão Quântica da Natu-reza, Feynman foca nos conceitos-chavede probabilidade e incerteza e alerta queelétrons e fótons, apesar de “esquisitos,diferentes de tudo que conhecemos”, secomportam de modo semelhante. E con-fessa: “Sobre esse aspecto, esta é a palestramais difícil da série, pois é abstrata, dis-tante da experiência”. A frase mereceriareparos, haja vista as atuais experiênciassofisticadas que nos ajudaram a compre-ender os fenômenos quânticos (tunela-mento, coerência, emaranhamento) e asinúmeras aplicações práticas da físicaquântica no nosso cotidiano: eletrônicamoderna, baseada na estrutura de bandasde semicondutores; computadores e celu-lares; lasers; LEDs; nanotecnologia, ima-geamento NMR, PET scan, lasers e teleco-municações, GPS, internet quântica etc.Chama a atenção o fato de que Feynmantenta explicar a mecânica quântica para

um público amplo em meados dos anos1960, enquanto o ensino de quântica, nosdias atuais, está ausente do ensino médio(com inserções irrelevantes sobre radia-ção do corpo negro, efeito fotoelétrico emodelo de Bohr que constituem aformação dos conceitos quânticos, e nãoo cerne da física quântica). Além disso, éabordado de forma insatisfatória nasdisciplinas básicas de serviço no nível su-perior (áreas de ciências afins e enge-nharias). Nessa palestra, Feynman fazum comentário, em minha opinião,infeliz, sobre a dificuldade de se apreendera quântica e que, em geral, tem justi-ficado a ausência do seu ensino nos níveisescolares mais elementares: “Possoafirmar com segurança que ninguémentende a mecânica quântica. Não levem,pois, esta palestra muito a sério, achandoque precisam entender em termos dealgum modelo o que vou descrever. Rela-xem e aproveitem. Vou lhes contar comoa natureza se comporta. Se vocês simples-mente admitirem que talvez ela secomporte assim, vão achá-la maravilho-

sa, encantadora. Não fiquem dizendopara si mesmos: ‘Como pode ser assim?’,pois nesse caso vão entrar num becoescuro de onde ninguém conseguiu sair.Ninguém sabe como pode ser assim”.Essa opinião de Feynman tem contribuídopara reforçar a “estranheza” da quântica,que não é!, o misticismo quântico e apseudociência, bem em moda nos tem-pos atuais. No que segue, Feynman usao experimento da dupla fenda para dis-cutir interferência quântica, probabili-dade e indeterminação, como fizera novolume III das Lectures. A conferência fi-nal, Em busca de Novas Leis, está obvia-mente ultrapassada.

Agradeço ao Ildeu de Castro Moreirapelas conversas esclarecedoras e por com-partilhar documentos e o entusiasmo pelopersonagem Feynman, ao Ricardo Karampela admiração conjunta pelas Lectures eaos colegas que contribuíram na SeçãoEspecial da RBEF em homenagem a Feyn-man, em especial Silvio Salinas. Sou gratoa Marcel Novaes e Débora Coimbra pelaleitura crítica do artigo.