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Relações Fundamentais entre C & T e Reforma Sanitária no Brasil Marília Bernardes Marques INTRODUÇÃO A Reforma Sanitária integra o conjunto de Refor- mas Sociais conclamadas pela sociedade brasileira, no árduo caminho das conquistas políticas voltadas à con- solidação da Democracia e de um capitalismo social- mente menos injusto no país. A noção de Reforma Sanitária contém um projeto que é, simultaneamente, técnico e político, de inter- venção positiva na configuração assumida pela proble- mática da saúde na sociedade brasileira contemporâ- nea, e são seus fundamentos principais: um conceito abrangente para Saúde, que a toma como uma resul- tante das condições de vida e trabalho prevalecentes na nossa sociedade e do padrão de organização da base estruturada de serviços de saúde, voltados ao indivíduo, às coletividades e ao meio ambiente; tam- bém adota um posicionamento político claro quanto ao caráter público que o conjunto de ações e serviços de saúde deve assumir no país, de tad modo que a Saúde seja preservada como uma função típica do Esta- do, como Dever do Estado. Com base em tais fundamentos, o projeto da Re- forma Sanitária tem como objetivo a satisfação de necessidades sociais mais gerais, ligadas à qualidade de vida, e de necessidades específicas, sem o que não poderá ser assegurado o direito universal à Saúde. O panorama demográfico e epidemiológico promove, por si só, a contínua ampliação do quadro de necessi- dades sociais a serem satisfeitas, e a perspectiva de um processo acelerado de desenvolvimento social, con- seqüente às medidas reformistas que venham a ser efetivamente implantadas, fará com que tais necessi- dades se multipliquem rapidamente. Se o quadro brasi- leiro, revelado pelos principais indicadores sociais, sempre foi dramático, a oferta de produção e serviços que o país proporciona para satisfação do consumo referente às necessidades básicas de sua população está hoje muito aquém do mínimo desejado. A totalidade das Reformas Sociais necessárias, entre as quais a Reforma Sanitária, exigirá amplas correções na difícil trajetória seguida pelo processo de desenvolvimento científico e tecnológico do país. Principalmente, será necessária uma profunda revisão crítica das formas de utilização social dos resultados do avanço científico e tecnológico no Brasil. * Professora Adjunta da ENSPI FIOCRUZ. ? do NEPIFIOCRUZ.

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Page 1: INTRODUÇÃO · 2020. 1. 27. · do empresário industrial, como na primeira Revolução. Industrial. ... introduzindo profundas transformações intra-setoriais e subvertendo a ordem

Relações Fundamentais entre C & T eReforma Sanitária no Brasil

Marília Bernardes Marques

INTRODUÇÃO

A Reforma Sanitária integra o conjunto de Refor-mas Sociais conclamadas pela sociedade brasileira, noárduo caminho das conquistas políticas voltadas à con-solidação da Democracia e de um capitalismo social-mente menos injusto no país.

A noção de Reforma Sanitária contém um projetoque é, simultaneamente, técnico e político, de inter-venção positiva na configuração assumida pela proble-mática da saúde na sociedade brasileira contemporâ-nea, e são seus fundamentos principais: um conceitoabrangente para Saúde, que a toma como uma resul-tante das condições de vida e trabalho prevalecentesna nossa sociedade e do padrão de organização dabase estruturada de serviços de saúde, voltados aoindivíduo, às coletividades e ao meio ambiente; tam-bém adota um posicionamento político claro quantoao caráter público que o conjunto de ações e serviçosde saúde deve assumir no país, de tad modo que aSaúde seja preservada como uma função típica do Esta-do, como Dever do Estado.

Com base em tais fundamentos, o projeto da Re-forma Sanitária tem como objetivo a satisfação denecessidades sociais mais gerais, ligadas à qualidadede vida, e de necessidades específicas, sem o quenão poderá ser assegurado o direito universal à Saúde.O panorama demográfico e epidemiológico promove,por si só, a contínua ampliação do quadro de necessi-dades sociais a serem satisfeitas, e a perspectiva deum processo acelerado de desenvolvimento social, con-seqüente às medidas reformistas que venham a serefetivamente implantadas, fará com que tais necessi-dades se multipliquem rapidamente. Se o quadro brasi-leiro, revelado pelos principais indicadores sociais,sempre foi dramático, a oferta de produção e serviçosque o país proporciona para satisfação do consumoreferente às necessidades básicas de sua populaçãoestá hoje muito aquém do mínimo desejado.

A totalidade das Reformas Sociais necessárias,entre as quais a Reforma Sanitária, exigirá amplascorreções na difícil trajetória seguida pelo processode desenvolvimento científico e tecnológico do país.Principalmente, será necessária uma profunda revisãocrítica das formas de utilização social dos resultadosdo avanço científico e tecnológico no Brasil.

* Professora Adjunta da ENSPIFIOCRUZ. ? do NEPIFIOCRUZ.

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Na atualidade, a noção de Desenvolvimento Sus-tentado, procedente dos países ditos industrializadose, em especial, dos EUA e da Europa, "atropela"toda a América Latina (1). No Brasil, o conceito che-gou quase com a furia de um inédito ciclone, instigadopela questão da Amazônia,e trouxe, novamente, asvelhas idéias sobre "progresso", agora com a juventu-de dos significados de "maior riqueza", "benefíciosocial equitativo" e "equilíbrio ecológico".

A implementação de um modelo de Desenvol-vimento Sustentado no Brasil, que atinja os resultadosesperados em termos de crescimento econômico, equi-dade social e equilíbrio ecológico, necessariamente sig-nificará assegurar o financiamento para volumosos gas-tos sociais e ecológicos, ao lado de investimentos pro-dutivos pesados em pesquisa e desenvolvimento tecno-lógico. Será necessário dar prioridade às metas de uni-versalização da educação (especialmente do ensinofundamental), da saúde, do saneamento básico, alémde priorizar as metas de preservação ambiental. Obvia-mente, o modelo comporta a escolha política de gran-des metas estratégicas para o desenvolvimento cientí-fico e tecnológico.

O NOVO PARADIGMA TECNOLÓGICO E ASREFORMAS SOCIAIS NO BRASIL

São, especialmente, o controle e a capacitaçãoem tecnologias avançadas identificadas, freqüentemen-te, com a "terceira onda", que representam, na atuali-dade, os principais instrumentos de hegemonia entreblocos e países. A tecnologia é o elemento decisivona nova divisão internacional do trabalho, e dela de-penderá a retomada do processo de desenvolvimentoeconômico e social dos países da América Latina.

No mundo industrialmente avançado, a inovaçãotecnológica está possibilitando a superação dos velhosparadigmas taylorista e fordista, gerando uma novaestrutura industrial em um processo que não apenasé auxiliado pelo Estado como é o próprio resultadoda ação estatal, não sendo simples conseqüência daação das forças de mercado.

A adoção de um novo paradigma tecnológico pe-los países avançados, na perspectiva sugerida por F.Erber, constituiu o seu projeto político (2). O Estadonesses países não apenas tem um claro desempenhocomo regulamentador das políticas econômicas, comoé um Estado de Bem-Estar, a nível das políticas so-ciais. Cerca de 40% da renda domiciliar são represen-tados por salário indireto, proporção bastante elevada,em justa correspondência com a relevância que os direi-tos sociais alcançaram nesses países. Carlos EstevanMartins (3) lembra que o surgimento do "Welfare Sta-

(1) Ver a respeito, "Desatollo Sos-tenido", por R. Zeledon, em LaNación de 30.09.88 e "Meio Am-biente, Desenvolvimento e DívidaExterna", por A. Rocha Maga-lhães, na Folha de São Paulo de01.04.89.

(2) Fiocruz/NEP - Seminário"Qual Política Tecnológica paraque Política de Saúde*. Exposiçãode Fábio Erber. Série Política **Saúde no 2, 1987.

(3) Carlos Estevan Martins, em"Difícil por um lado, desejávelpor outro", em a Folha de SãoPaulo de 17/09/88.

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(4) Ver exposição no Seminário"Qual Política Tecnológica paraque Política de Saúde*. O termoparadigma tecnológico" é inspira-

do na noção de "paradigma cientí-fico", de T. Kuhn.

te", longe de ter representado um fenômeno conjuntu-ral, resultou de transformações da própria estruturaprodutiva dos países avançados, fazendo com que nãoapenas a força de trabalho se tomasse dependente doEstado, mas o próprio capital incorporasse o Estadono processo de sua reprodução. O capital necessitado Estado que o socorre através dos gastos públicosque subsidiam a indústria e o comércio, que financiama agricultura e a pesquisa científica e tecnológica eassim por diante. O "Welfare State", que está sofren-do na atualidade intensos ataques doutrinários defla-grados pelo neoliberalismo "reaganiano e thatche-rista", integra-se tão enraizadamente à complexidadedo sistema capitalista que não poderá ser desmanteladosem que, simultaneamente, aconteça a destruição daordem econômica, nas sociedades industriais avança-das.

O Estado de Bem-Estar não estando superado,requer, entretanto, importantes reformas, para quepossa acompanhar as transformações contemporâneasobservadas nas relações sociais e que só indicam anecessidade de aumentar a sua importância para a ple-nitude democrática. Este crescimento exige a sua mo-dernização, superando antigos vícios como o cliente-lismo, a demagogia, a corrupção, etc, e que conduzi-ram, em muitos países, à situação de gigantismo damáquina estatal. Este crescimento também evidenciaa necessidade e a importância de mecanismos eficazesde controle público sobre o Estado. Assim, o movi-mento de "enxugamento" do Estado que se verificaem alguns países avançados e do bloco socialista, longede indicar a inviabilidade do "Welfare Stare", revelao processo em curso de sua modernização, para superaro burocratismo Intervencionista ineficiente.

Este movimento tem grande importância para oBrasil, para a urgente transformação das suas normasde intervenção estatal, conferindo-lhe maior eficácia,uma nova ética e diretrizes claramente voltadas parao interesse público e para os interesses nacionais. Paraa política científica, como lembrou Fábio Erber acer-tadamente, a transformação necessária deverá introdu-zir o país no novo "paradigma tecnológico" (4).

A idéia de "paradigma tecnológico" consideraque a inovação se processa seletivamente, segundouma direção bem definida, não sendo um processoindiscriminado, expressão de uma busca aleatória deinovação em qualquer direção, em qualquer sentido.Existem condicionantes econômicos, sociais e políticosque determinam a orientação seguida pelo processode desenvolvimento científico e tecnológico. O mo-derno paradigma tecnológico é baseado na ciência,isto é, não resulta da ação isolada, empreendedorado empresário industrial, como na primeira Revolução

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Industrial. Além de ser um processo baseado na ciênciae socialmente condicionado, o processo de inovaçãotecnológica é coletivo e soma os resultados de umamarcada divisão de trabalho entre indústria, universi-dade e governo nas sociedades avançadas, cujo: teci-dos industrial, institucional e social são altamentecomplexos. Finalmente, no novo paradigma o processode pesquisa é um processo de larga escala, isto é,a inovação tecnológica é extensiva a vários setores,introduzindo profundas transformações intra-setoriaise subvertendo a ordem de importância hierárquica dossetores (e do trabalho qualificado).

Também para o Brasil a ação estatal apropriadaà complexidade atual de sua sociedade deve resultarem uma política que não seja isoladamente de desen-volvimento científico e tecnológico, mas que venhaincorporada a outras políticas. O fortalecimento isola-do da capacidade científica não será suficiente, e bastalembrar, como fez Fábio Eber, a história de paísesda América Latina e da índia, onde a criação de centrosde excelência, como única política, resultou nas deno-minadas "ilhas de competencia científica e tecnoló-gica" perdidas num "mar de subdesenvolvimento".São diversos os centros de pesquisa cuja grandiosi-dade, copiada de instituições congêneres dos paísesavançados, não foi suficiente para superar o isolamentodas mesmas em relação à sociedade, permanecendopirâmides anacrônicas e indiferentes às condições eco-nômicas e sociais que as circundam.

Todos os países que conseguem atingir o desen-volvimento tecnológico partem de sistemas articuladose de vínculos claros entre três agentes fundamentais:empresas/universidades e outros institutos de pesqui-sa/governo. A progressiva estratégia de interação tec-nológica entre governo/universidade/indústria obser-vada nos países industrializados, conforme indicamDembo, Dias & Morehouse (5), acrescenta os seguintesdesafios para países latino-americanos e de outras par-tes do Terceiro Mundo: superar a falta de ligaçãoentre política tecnológica e necessidades sociais; ele-var as consciências nacionais sobre a importância dasnovas tecnologias; monitorizar os impactos sociais edistributivistas da inovação tecnológica; sensibilizaras comunidades científicas e burocráticas para os im-pactos sociais e ecológicos das novas tecnologias.

Resumidamente, se o Brasil não quiser frear oseu desenvolvimento econômico e social, deverá, rapi-damente, encontrar os meios de recuperar as perdastidas na década e direcioná-los para o alcance de umanova base tecnológica, capaz de assegurar sua competi-tividade no plano do comércio internacional e de garan-tir o crescimento do mercado interno, por meio deuma melhor distribuição de renda, onde, em última

(5) David Derribo, Clarence J. Diase Ward Morehouse em "Os NexosVitais em Biotecnologia: relaçõesentre pesquisa e produção e suasimplicações para a América Lati-na". Em série Política de Saúde,no 7 Fiocruz/NEP, 1989.

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instância, se realiza a satisfação das crescentes necessi-dades sociais de sua população. Importância estraté-gica nessa direção terá o recurso ao componente gover-namental do mercado interno. Estar à frente na lutapelo desenvolvimento científico e tecnológico é, por-tanto, fator decisivo para a transição rumo à Democra-cia e é a premissa fundamental para que seja alcançadaa Reforma Sanitária que a sociedade brasileira deseja.

(6) Segundo Michel Godet, em seulivro "Scenarios and Strategic Ma-nagement" (editado por Butter-worth Scientific Ltd, 1987), o fu-turo deve ser estudado em um "ap-proach" global que ilumine o pre-sente; esta é a idéia básica quediferencia "prospectiva" de "prog-nóstico". A prospectiva, ou o con-ceito concernente à visão críticado futuro para orientar ações nopresente, não é, portanto, exercíciode futurologia. É um modo depensar para agir contra o fatalismoe que fornece os meios para enten-der e explicar as crises, em ummundo caracterizado pelo aumentoda incerteza e do risco de mudançade tendências, não somente a longoprazo mas no curto e no médioprazos. A prospectiva tem o futurocomo sua 'raison d'être', pois"...the future has not been writ-ten...".

PROSPECTIVA EPIDEMIOLÓGICA BRASILEIRAE ESTRATÉGIA TECNOLÓGICA (6)

O Banco Mundial apóia, há alguns anos, impor-tantes programas brasileiros no campo da saúde: doen-ças infecciosas e saúde materno-infantil e outros pro-blemas básicos de saúde no Nordeste rural e na perife-ria urbana de São Paulo; combate à doença de Chagas,leishmaniose e esquistossomose no Nordeste; combateà malária na Bacia do Amazonas; saneamento básicoe recuperação do meio ambiente no litoral fluminense,entre outros programas.

Para avaliar os "novos" problemas que o sistemanacional de saúde deverá enfrentar nas próximas déca-das, em função do envelhecimento populacional e doaumento da importância das doenças crônico-degenera-tivas e da AIDS, o Banco encomendou um abrangenteestudo a diversos especialistas brasileiros.

O relatório resultante, intitulado "Health Policyin Brazil: Adjusting to New Challenges" (versão demaio de 1989), contém rica documentação que possibi-lita a avaliação do peso epidemiológico e do financia-mento desses 'novos" problemas, para os quais estimaum fabuloso crescimento nas próximas três décadas(até 2020). A tese do relatório é a seguinte: há riscodo crescimento galopante da demanda para o trata-mento desses problemas esvaziar os esforços, prioritá-rios, para a prevenção desses mesmos problemas edos ainda importantes, embora "velhos", problemascomo as doenças infecciosas e parasitárias.

Apesar das limitações desse estudo, como a au-sência de abordagem da gama completa de problemasde saúde da população adulta, não incluindo, porexemplo, a saúde reprodutiva da mulher, e da conside-ração apenas superficial dos temas do desenvolvimentode recursos humanos e institucional, constitui um óti-mo subsídio para a consideração da variável tecnoló-gica em saúde no país, nos próximos trinta anos.

A respeito das conseqüências para a saúde asso-ciadas às profundas mudanças econômicas verificadasnas últimas três décadas, o relatório destaca a quedano número de mortes ditas "do subdesenvolvimento";

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a taxa de mortalidade infantil apresentou uma diminui-ção de 40% entre 1965 e 1985, e as taxas de mortali-dade por doenças infecciosas e parasitárias declinaramcerca de 70%, entre 1960 e 1980.

À medida que essas "velhas ameaças" declinaram,cresceram as "novas ameaças"; a proporção da mortali-dade atribuída aos ataques cardíacos, aos acidentesvasculares cerebrais, ao câncer e violências em geral,subiu de cerca de 38% em 1960 para 54% em 1986.O quadro brasileiro apresenta algumas característicaspróprias, distinguindo-se dos padrões referidos paraos países desenvolvidos em aspectos como a elevadaparticipação das mortes violentas, em particular a esca-lada impressionante dos homicídios nos anos recentes.

O relatório estima que nos próximos trinta anos,mais de 85% dos brasileiros estarão vivendo em áreasurbanas, o número de idosos terá dobrado, com cercade 12% da população com 65 anos ou mais, e asdoenças cardiovasculares, o câncer e os sinistros con-tribuirão com mais de 74% das mortes no país.

A epidemia da AIDS, com o Brasil apresentandoo terceiro maior número de casos verificados mundial-mente, introduziu uma questão funestamente prioritá-ria, com a provável disseminação para todos os grupospopulacionais a partir dos grupos de risco. Já sãosuficientemente reconhecidos os riscos de contrairAIDS, doença de Chagas, hepatite B, sífilis e maláriaa partir de uma transfusão de sangue feita no país.Com a AIDS, o problema do sangue no Brasil passoua requerer solução tecnológica no curto prazo: apenas10% dos hemoderivados (7) necessários para o atendi-mento da demanda são produzidos no país, e a quali-dade é precária. A excessiva dependência externa aolado da precariedade dos produtos disponíveis fazemda auto-sufuciência neste setor a única alternativa paraassegurar a qualidade do sangue e dos hemoderivadosno país.

Os contingentes mais pobres da população sãoos principais atingidos por todas essas ameaças, "no-vas e velhas". O impacto financeiro dessas mudançasserá muito grande porque o custo do tratamento das"novas" doenças supera e em muito o custo do trata-mento das "velhas"; por exemplo: o custo do trata-mento hospitalar do derrame cerebral ou do ataquecardíaco é quatro vezes maior do que o custo do trata-mento hospitalar de uma infecção respiratória ou in-testinal.

Na atualidade, as doenças do coração, o acidentevascular cerebral e os feridos e acidentados correspon-dem a 45% dos doentes admitidos nos hospitais ea 55% dos custos dos doentes hospitalizados. Em1988, apenas quatro procedimentos de alto custo cor-responderam a 3% de todo o gasto do Instituto Nacio-

(7) Hemoderivado é o produto in-dustrial obtido do fracionamentofísico-químico do plasma humano,com finalidade terapêutica, profilá-tica e de pesquisa.

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(8) Consultar Attinger, E. O. &P ao eral, R. B. em Transferabflityof Health Technology Asseanentwith Particular Emphasis on Deve-loping Countries, fat J. of Tech-nology Assessment in Health Ca-re, 1988, no 4, p. 545-554.

nal de Medicina da Previdência Social (INAMPS): he-modiálise, estudos hemodinâmicos, endoscopia e to-mografia computadorizada.

Tendo em conta apenas as mudanças demográficase epidemiológicas estima-se que os custos 'per capita'do cuidado em saúde no Brasil dobrarão, em termosreais, nos próximos trinta anos. A previsão, baseadana experiência dos países industrializados, do cresci-mento no número de indivíduos incapacitados sugereque a demanda sobre os serviços públicos de saúdeexigirá uma crescente escalada dos pastos em procedi-mentos médicos baseados no hospital e com grandeincorporação de tecnologias de alto custo.

Recorrendo a modelo de projeção simples, o rela-tório mostra que, se forem implantados programas deprevenção eficazes para esses "novos" problemas, comresultados plenos, no ano 2020 teremos 15% a menosde mortes por câncer, doenças cardiovasculares e vio-lências, e que os custos dos cuidados médicos no Brasilserão superiores aos de 1980 em cerca de 75%, aoinvés de 100%, se não existirem tais programas.

Verifica-se, assim, que a demanda para os cuida-dos em saúde mais instrumentalizados crescerá no Bra-sil como resultado das mudanças demográficas e epide-miológicas, da universalização do acesso estabelecidapela nova Constituição e à medida que as técnicasde tratamento de alta tecnologia tornam-se disponí-veis. A racionalização será inevitável e necessária erequererá a definição de modalidades mais criativase mais produtivas de participação do setor privadono atendimento médico-assistencial da população, demaior capacitação em avaliação e gestão de tecnologiasde alto custo, de desenvolvimento de sistemas de infor-mação para o gerenciamento eficaz e de recursos hu-manos com formação ajustada aos novos desafios.

A avaliação de tecnologias em saúde ou "healthtechnology assessment" (HTA) surgiu como uma disci-plina nova e multidisciplinar nos países industriali-zados, e sua origem esteve associada aos problemasintroduzidos pela moderna tecnologia médica, altamen-te complexa, adotando como alvos essenciais: efetivi-dade, custo, segurança e impacto social (8).

Os cenários possíveis para o quadro de saúdebrasileiro, a impor a racionalização dos recursos, colo-cam a avaliação tecnológica como elemento-chave, emuma perspectiva ampla que possibilite efetuar a escolhaapropriada em um espectro muito abrangente de alter-nativas tecnológicas. A escolha apropriada em saúdeé aquela que possibilita o máximo de impacto social.Mais do que simplesmente lidar com uma tecnologiaparticular, selecionada com base em critérios racionais,trata-se de assegurar para o sistema de saúde global-mente uma maior racionalização na incorporação de

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tecnologias, envolvendo desde as mais simples até asmais complexas e caras.

A avaliação tecnológica em saúde constitui ferra-menta essencial para auxiliar a identificação de priori-dades na formulação de uma política tecnológica emsaúde voltada para a auto-suficiência do país nas áreasmais estratégicas, como é o caso do sangue, hemoderi-vados, soros e vacinas, fármacos essenciais e outras.É importante ressaltar que, para compor o seu patrimô-nio tecnológico, o país tanto continuará importandocomo produzirá internamente produtos e serviços comelevado componente tecnológico, e as decisões a res-peito necessariamente deverão processar-se tendo emconta a confluência de diversas políticas (econômica,industrial, de saúde, de formação de recursos humanos,de ciência e tecnologia, etc).

OS NOVOS DESAFIOS TECNOLÓGICOS E OSISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NO BRASIL

Qualquer reflexão sobre as opções estratégicaspara o desenvolvimento científico e tecnológico noBrasil deve voltar sua atenção ao novo desafio repre-sentado pelo projeto da Reforma Sanitária, destinadoà transformação do atual quadro da saúde no país(9).

No plano organizacional a proposta reformistaprevê a implantação e a consolidação no país de um"Sistema Único de Saúde", ou o "SUS", como éusualmente denominado. O conceito de SUS, forte-mente enraizado na visão sistêmica e na idéia de plane-jamento, compreende um modelo para os serviços desaúde com a formatação de uma rede hierarquizadae regionalizada (tendo o Distrito Sanitário como suaunidade operacional básica), para assegurar o amploacesso da população às ações e serviços. A ofertauniversalizada e planejada das atividades específicasdestinadas à problemática da saúde deverá tambémassegurar as características da "eqüidade" e da "inte-gralidade".

O artigo 198 da Constituição de 88 recebeu aseguinte redação: "As ações e serviços públicos desaúde integram uma rede regionalizada e hierarquizadae constituem um sistema único organizado de acordocom as seguintes diretrizes: I descentralização, comdireção única em cada esfera de governo; II. atendi-mento integral, com prioridade para as atividades pre-ventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III.participação da comunidade". O artigo citado incluiparágrafo único que estabelece que o financiamentodo sistema único será feito com recurso do orçamentoda Seguridade Social, da União, dos Estados, do Dis-trito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.

(9) Para uma análise abrangenteda Reforma Sanitária brasileira vera série de documentos (Documen-tos I, II e III), editados em 1987,pela Comissão Nacional da Refor-ma Sanitária; ver também o impor-tante Relatório Final da VII Con-ferência Nacional de Saúde, reali-zada em Brasília, em março de1986.

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O parágrafo 4o do Artigo 199 estabelece que alei regulamentará a remoção de órgãos, tecidos e subs-tâncias humanas para fins de transplante, pesquisa etratamento, bem como as coletas, o processamentoe as transfusões do sangue e de seus derivados, vetandoa comercialização, de qualquer tipo.

As seguintes atribuições foram definidas para oSUS na Carta de 88 (Art. 200): "I Controlar e fiscali-zar procedimentos, produtos e substâncias de interessepara a saúde e participar da produção de medicamen-tos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados eoutros insumos; II. executar as ações de vigilânciasanitária e epidemiológica, bem como as de saúde dotrabalhador; III. ordenar a formação de recursos huma-nos na área de saúde; IV. participar da formulaçãoda política e da execução das ações de saneamentobásico; V. incrementar em sua área de atuação o desen-volvimento científico e tecnológico; VI. fiscalizar einspecionar alimentos, compreendido o controle do seuteor nutricional, bem como bebidas e águas para consu-mo humano; VIL participar do controle e fiscalizaçãoda produção, do transporte, guarda e utilização desubstâncias produtos psicoativos, tóxicos e radioati-vos; VII. colaborar na proteção do meio ambiente,nele compreendido o do trabalho."

Diversas indústrias respondem, mundialmente,pela fabricação de produtos que constituem insumospara as ações e serviços de saúde, destinados querà assistência ao indivíduo (assistência médica propria-mente dita), quer à coletividade (saúde pública oucoletiva). Medicamentos, vacinas, reativos químicose biológicos diversos, soros, plasmas e inúmeros dispo-sitivos médico-hospitalares como implantes, materialdescartável e aparelhos constituem produtos industriaisconsumidos nas atividades destinadas à prestação deserviços de saúde. Outras indústrias, por sua vez,atuam como fornecedores de matérias-primas, de mate-riais, de componentes, de serviços, de maquinarias,de equipamentos, de aparelhos e instrumentos necessá-rios a produção e ao desenvolvimento tecnológico da-queles produtos industriais que constituem insumospara a atividade setorial específica.

Um primeiro ponto se destaca: a lei ordináriadeverá regulamentar o consumo, dispondo que todosos produtos industriais e substâncias de interesse paraa saúde sejam controlados e fiscalizados, devendo,para tanto, no âmbito do SUS, ser registrados, testadose avaliados antes de poderem ser produzidos, importa-dos, comercializados e utilizados. Tarefa de primeiraprioridade é, portanto, a revisão da legislação sanitáriaatual para adequá-la aos novos princípios constitucio-nais, uniformizando padrões e introduzindo novas téc-nicas adequadas aos interesses nacionais no setor.

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Qualquer abordagem da produção e da disponibi-lidade de insumos para a atividade setorial específicada saúde deve partir do diagnóstico da existência,ou não, de confluências entre a política de saúde,a política industrial e a política científica e tecno-lógica.

O documento do grupo de trabalho sobre Ciênciae Tecnologia em Saúde (10), elaborado em 1987, —antes, portanto, da promulgação da Carta Magna —aponta para a área de produção de fármacos e medica-mentos no país os seguintes "gargalos": presença fracada empresa nacional, com as empresas estrangeiraspredominando largamente e, conseqüentemente, comdependência exagerada de matérias-primas importadas,falta da ligação da produção com as necessidades prio-ritárias em saúde, reduzida atividade de pesquisa edesenvolvimento no país e baixa disponibilidade derecursos humanos especializados.

Nos setores e atividades industriais químico-far-macêutico e farmacêutico estão inseridas as indústriasque respondem pela fabricação e pela disponibilidadede medicamentos que, por sua vez, constituem os insu-mos finais do consumo setorial específico. A indústriafarmacêutica produz medicamentos, na forma de apre-sentação comercial (ampola, comprimido, drágea, su-positório etc) de um fármaco (ou mistura de fármacos)que constitui o princípio ativo. A indústria químico-farmacêutica responde pela produção dos insumos far-macêuticos, os fármacos e/ou intermediários de proces-sos específicos de síntese química. No Brasil, as indús-trias brasileiras de capital nacional do setor, privadase públicas, são principalmente indústrias farmacêuti-cas, produtoras de medicamentos e que apenas formu-lam, embalam e comercializam o produto final. O SUSdeverá conferir prioridade ao desenvolvimento tecnoló-gico dos fármacos essenciais e seus intermediários,destinados ao atendimento da demanda de medicamen-tos, devidamente reorientada pela Política de Assistên-cia Farmacêutica (11).

A disponibilidade de medicamentos, em particulara distribuição de medicamentos essenciais, atende demodo insuficiente à demanda oficial (componente domercado no qual o Estado é o comprador direto). En-tretanto, todo o mercado brasileiro de medicamentosestá acentuadamente contido, com um consumo 'percapita', em 1987, de apenas US$ 11,96, colocandoo país em 18o lugar entre os países capitalistas, com52% da sua população não tendo acesso ao medica-mento (12). Trata-se, portanto, de uma situação indi-cativa da escassa intervenção governamental (13).

A perspectiva de universalização do acesso àsações e serviços de saúde incorporará parcela impor-tante da população hoje excluída, impondo a demarca-

10) Ver documento III da CoMIS-são Nacional da Reforma Sanitá-ria.

(11) Ver documento III da Comis-são Nacional da Reforma Sanitá-ria.

(l2) Ver o "Estudo Preliminar so-bre a Situação da Química Finano Brasil", preparado por R. T.Magalhães para o Grupo de Estu-dos Técnicos do Ministério dasRelações Exteriores, abril de 1989.

(13) A Relação Nacional de Medi-camentos Essenciais, a RENAME,constitui o principal instrumentodisciplinador do mercado oficial;a Central de Medicamentos (CE-ME) responde pela sua atualização.

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cão de estratégias de curto, médio e longo prazospara atender à expansão do mercado oficial, cuja limi-tação principal situa-se na estrutura produtiva, comacentuada dependência tecnológica em fármacos essen-ciais e seus componentes intermediários.

Atualmente, a oferta de sangue e hemoderivadosestá muito abaixo do limite necessário ao atendimentoda demanda que cresce notavelmente, acompanhandoa elevação dos atendimentos cirúrgicos, a morbidadeprovocada pelas Causas Externas ou Violências emgeral, especialmente tentativas de homicídio e outrasagressões, e os acidentes de trânsito, hoje gravíssimosproblemas de saúde, ocupantes dos primeiros postosnas estatísticas vitais do país. A indústria nacionalé incipiente e apresenta sérios problemas de controlede qualidade. Tais problemas nem sempre são decor-rentes de irregularidades, sendo evidências, muitas ve-zes, do forte atraso tecnológico existente no setorprodutor de insumes médicos na área do sangue.

A Carta Magna de 88 operou a mudança funda-mental para permitir a eficaz atuação da vigilânciasanitária na área da hemoterapia, ao proibir a comercia-lização no país do sangue e de seus derivados. Aetapa atual de aperfeiçoamento da legislação hemote-rápica estabelecerá a padronização de procedimentose introduzirá as normas técnicas necessárias para aregulamentação dos processos de coleta, processamen-to e transfusão de sangue e hemoderivados.

Aos imunobiológicos (soros, vacinas e reativosbiológicos para diagnóstico) corresponde o segmentoprodutivo no qual o país alcançou longa tradição histó-rica, tanto em pesquisa, quanto em desenvolvimentotecnológico e produção industrial. Trata-se de umavantagem significativa para enfrentar os desafios da"corrida internacional" em direção às novas biotecno-logias, e a recomendação fundamental diz respeito àprioridade à pesquisa naquelas áreas e disciplinas cen-trais ao seu desenvolvimento (genética, imunologia,biologia celular, microbiologia etc).

A produção nacional de equipamentos para a aten-ção à saúde (instrumentos odonto-médico-hospitalar),conforme revelou o documento III da CNRS, tem umabase industrial "quase artes artesanal", dominando as pe-quenas empresas com até 10 trabalhadores, existindo300 empresas desse porte em um total de cerca de400 empresas que constituem o parque industrial brasi-leiro. Poucas são as empresas transnacionais instaladasno país e voltadas, na maior parte dos casos, à produ-ção de material de consumo imediato nos procedi-mentos médicos. Em matéria de Raio X alguma coisajá é produzida no país, iniciando-se o domínio técnico-industrial em ultra-sonografia bidimensional, como oultra-som monodimensional, já produzido regularmen-

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te, produção em escala de instrumentos eletrográficos(eletrocardiógrafos, eletroencefalógrafos, ecocardió-grafos, bisturis elétricos etc), além de insumos médi-cos descartáveis e alguns materiais para implante.

Trata-se de um parque industrial com potenciali-dade, mas condicionado, cada vez mais, ao desenvolvi-mento da produção nacional de componentes microele-trônicos. A produção nacional de equipamentos medi-co-odonto-hospitalares jamais mereceu qualquer aten-ção especial do Estado e só muito recentemente, anível da Previdência Social, foram tomadas algumasmedidas e criados mecanismos de coordenação pararegulamentar as compras e o consumo desses insumos.O SUS deverá dimensionar o mercado interno específi-co, delimitando projeções de crescimento do compo-nente governamental, passo fundamental para utilizaro poder de compra do Estado como alavanca do desen-volvimento tecnológico do parque industrial brasileirode equipamentos odonto-médico-hospitalares.

A Política de Equipamentos a ser definida peloSUS deverá contemplar a criação de estruturas nasesferas federal, estadual e municipal, destinadas espe-cificamente aos processos de compra, doação, instala-ção, utilização, manutenção, reforma/recuperação edesativação eventual de equipamentos médico-odonto-hospitalares; da mesma forma, tais estruturas deverãooperar conforme critérios e exigências que visem favo-recer a transferência de tecnologia, o controle de quali-dade e o controle de preços.

De modo geral, as empresas privadas nacionaise os laboratórios oficiais produtores de insumos indus-triais diversos para o setor saúde padecem de um gran-de atraso tecnológico, e a sua modernização assumeimportância estratégica para a consolidação das diretri-zes gerais do SUS. No âmbito do SUS poderão serestabelecidas normas para concessão de proteção ebenefícios temporários para estimular o desenvolvi-mento da pesquisa tecnológica nas empresas nacionaise que comprovem o exercício, de fato e de direito,do poder decisório para absorver ou desenvolver tecno-logias. Poderão ser estimulados mecanismos associa-tivos entre universidades e institutos de pesquisa coma indústria nacional, para assegurar a disponibilidadede insumos essenciais para a expansão do consumo,prevista com a universalização da oferta de ações deserviços de saúde.

O SUS deverá investir, diretamente, na expansãoe na modernização das instituições governamentais,responsáveis pela quase totalidade da pesquisa tecnoló-gica em saúde, com a finalidade de elevar a sua compe-tência tecnológica e gerencial, fomentando e financian-do a criação e manutenção de estruturas cativas degestão e avaliação tecnológica, preparando-as para as

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TEMA

(14) Código da Propriedade Indus-trial — Lei no 5772 de21/12/1972.

(15) FIOCRUZ7NEP - Seminá-rio "A Qualidade dos Produtosem Saúde". Série Política de Saú-de no 4, 1987.

associações com o segmento privado e para relaçõescomerciais inteligentes, necessárias ao processo detransferência de tecnologia. Visando a geração de no-vos produtos processos, o aperfeiçoamento de produ-tos de consumo tradicional e a redução de custos,deverão ser criados programas associativos, contem-plando a possibilidade de contratos para a transferênciade tecnologia, nos termos do Código Brasileiro daPropriedade Industrial (14), envolvendo universidadee institutos de pesquisa/empresa privada/governo. Oscontratos com empresas privadas deverão priorizar fir-mas que façam investimentos diretos no país em plantaprodutiva, em pesquisas e desenvolvimento, em forma-ção de recursos humanos e, principalmente, dispostasa efetivar transferência de tecnologia. No caso de con-tratos com empresas privadas nacionais, deverão serpriorizadas as empresas que se ajustem a critérios míni-mos como: existência de recursos humanos qualifica-dos, de plano estratégico que compreenda o desenvol-vimento tecnológico, história prévia de vínculos coma universidade, controle de qualidade, entre outros.

Com o mesmo objetivo, o SUS deverá estabelecernormas para coibir o abuso do poder econômico quevisar ao monopólio do mercado institucional de insu-mos, através de medidas de estímulo à concorrênciae de controle do aumento arbitrário dos preços, dandopreferência nas suas compras às empresas nacionaisque, comprovadamente, invistam em pesquisa, gera-ção/absorção de tecnologia e em controle de qualidade.

O SUS devera possibilitar e estimular a celebraçãode convênios e contratos destinados ao credenciamentode laboratórios de universidades, de institutos de pes-quisa e de indústrias, integrando-os em uma rede, ne-cessária ao incremento da prática do controle de quali-dade no setor saúde e, simultaneamente, articulando-aao Sistema Nacional de Metrologia, Normalização eQualidade Industrial (SINMETRO).

A idéia do "controle de qualidade" correspondea uma nova atitude, a ser adotada não apenas pelaindústria, mas pela totalidade do SUS, pois constituium elemento essencial da gestão tecnológica, gerandonão apenas melhores produtos, de qualidade assegura-da, mas uma elevação da produtividade e uma reduçãodos custos de produção. Não obstante, os investi-mentos necessários para a introdução de uma políticade controle de qualidade no âmbito do SUS serãopequenos e destinar-se-ão basicamente à área de gestãoe treinamento de recursos humanos (15).

Irregularidades metrológicas ou em qualidade nemsempre decorrem de fraudes, indicando às vezes a ne-cessidade de melhor desempenho industrial e tecnoló-gico das empresas. Basta recordar como a intensifi-cação da política de controle de qualidade para imuno-

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biológicos, a partir de 1981, com a criação do INCQs(16), forçou os laboratórios produtores nacionais ainvestir em desenvolvimento tecnológico. A área daqualidade, normalização e metrologia é central na pro-blemática do atraso tecnológico que perpassa a indús-tria nacional e representa um sério desafio no processode gestão tecnológica do SUS.

A relação preço/desempenho/desenvolvimentotecnológico devera substituir, totalmente, o critérioúnico do "menor preço" nos processos licitatórios noâmbito do SUS. Deverão ser estabelecidos mecanismose estruturas de coordenação nas esferas federal, esta-dual e municipal, de responsabilidade plena sob o pro-cesso de compras que incluirá, necessariamente, crité-rios de qualidade para, efetivamente, elevar o poderde barganha do SUS.

Os mecanismos fiscalizadores deverão articular-secom as diversas entidades representativas dos segmen-tos empresariais diretamente interessados, órgãos de

governo e organismos destinados à defesa do consumi-dor, para assegurar o acesso a bancos de informação

tecnológica referentes aos insumos industriais em saú-de. Estruturas permanentes do SUS voltadas à informa-ção científica e tecnológica em saúde deverão atuararticuladamente com redes nacionais e internacionaisestratégicas, como as referentes a informações biblio-gráficas biomédicas, de documentação de patentes,marcas etc.

No Brasil, praticamente a totalidade do investi-mento em pesquisa e em desenvolvimento tecnológicoé feita pelo Estado. No âmbito do SUS, deverão serestabelecidas medidas de estímulo à participação dosetor privado no investimento em ciência e tecnologia.Será necessário delimitar a previsão da participaçãoa ser alcançada, em termos de percentual do PIB,pelo investimento do governo e pelo investimento dosetor privado, traduzidos, por sua vez, em grandesmetas a serem alcançadas dentro de um plano pluria-nual para C & T em saúde.

Entre outras medidas de incentivo ao investimen-to privado, o SUS poderá estabelecer as normas parao ' prêmio de seguro" destinado às indústrias de equi-pamentos odonto-médico-hospitalares, a ser aplicadona rede de serviços. Tal seguro só será aplicável aindústrias que operem acima de determinado patamarde qualidade e desempenho, com redução da probabi-lidade de sinistros e do valor do prêmio. Uma medidadesse tipo funcionará como instrumento para o alcanceda qualidade e de estímulo ao investimento privadoem desenvolvimento tecnológico, pois a diferença, pa-ra menos, no valor do prêmio deverá ser canalizadapara investimento em qualidade.

(16) INCQS - Instituto Nacionalde Controle de Qualidade em Saú-de, unidade técnica da FundaçãoOswaldo Cruz, localizada no Riode Janeiro.

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O SUS deverá estabelecer o padrão da base definanciamento das atividades de C & T em saúde,e que deverão compreender recursos orçamentários dastrês esferas de governo e da Seguridade Social, recur-sos provenientes das agência financeiras nacionais einternacionais, outros recursos extra-orçamentários erecursos provenientes do fontes próprias de receitadas instituições de pesquisa tecnológica em saúde.Através da comercialização de tecnologia, de produtose de serviços especializados, os institutos governa-mentais de pesquisa tecnológica em saúde poderão ge-rar receita própria que será canalizada para novos in-vestimentos em P & D. Já foi assinalado que o SUSdeverá estimular a vinculação dos órgãos de governoexecutores de atividades de C & T em saúde comos serviços de saúde, executores de atividades assisten-ciais e com a indústria de insumos para a saúde, apoian-do, desse modo, o processo de transferência de tecno-logia dos institutos para a sociedade, de modo a alcan-çar & maximização dos benefícios sociais. Nessa dire-ção, especial apoio deverão merecer as associaçõescom empresas destinadas ao desenvolvimento de proje-tos nos setores estratégicos: biotecnologia, fármacose desenvolvimento tecnológico de equipamentos.

Será fundamental constituir uma estrutura cole-giada no âmbito do SUS, composta pelas diversasagências governamentais de fomento e financiamento,pelos ministérios da área econômica e os ligados aodesenvolvimento industrial, científico e tecnológico,bem como o Ministério das Relações Exteriores; essecolegiado promoverá a coordenação das ações dessesdiversos órgãos, integrando incentivos e benefíciosdestinados ao setor privado e ao fomento às institui-ções públicas, canalizando-os para o desenvolvimentotecnológico nos setores industriais ligados à produçãode insumos para o SUS. O desenvolvimento de proces-sos e produtos estratégicos e essenciais, dentro dosobjetivos da Política Nacional de Saúde, como no casodos fármacios e medicamentos da RENAME, deveráser contemplado com incentivos diversos, como o fi-nanciamento dos gastos com transferência e adaptaçãode tecnologias. Também deverão ser estabelecidos me-canismos visando a simplificação dos procedimentosburocráticos, para facilitar a importação de equipa-mentos e de insumos para a atividade de pesquisaem saúde no país.

O desenvolvimento das pesquisas científicas liga-das à problemática da saúde merecerá a devida priori-dade ao ser formulada a Política Nacional de Saúde,devendo ser fomentadas e financiadas no país a pesqui-sa básica, a pesquisa clínica, a investigação epidemio-lógica e a pesquisa social em saúde. A ciência, parao seu desenvolvimento, requer, em primeiro lugar, o

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investimento "cérebro intensivo". Para impedir a "dre-nagem de cérebros", o SUS deverá introduzir planosde carreira que assegurem a competitividade salarialdo setor público naquelas áreas profissionais funda-mentais para o desenvolvimento científico e tecnoló-gico em saúde. A programação orçamentária anual doSUS deverá viabilizar as metas plurianuais de cresci-mento da "massa crítica" de recursos humanos neces-sárias para a ampliação das atividades de C & T emsaúde no Brasil.

O apoio do SUS ao desenvolvimento científicodeverá processar-se tendo como referência linhas prio-ritárias de pesquisa ("oriented science"), ligadas aodesenvolvimento tecnológico e à produção industrialem saúde, em torno das quais integrará recursos huma-nos, de infra-estrutura e recursos financeiros, estimu-lando a máxima complementaridade interdisciplinar,sem prejuízo do desenvolvimento da pesquisa pura nasdisciplinas fundamentais da biologia e da medicina.

Deverão ser introduzidas medidas destinadas auma maior concentração dos esforços nacionais empesquisa, realizadas na rede institucional global, com-preendendo desde os laboratórios e grupos de pesquisaaté os serviços assistenciais. Quanto a estes últimos,uma política de somação de esforços deverá ser intro-duzida, evitando a pulverização ineficaz do investi-mento. A organização da base infra-estrutural paraC & T do SUS deverá partir do reconhecimento daimportância estratégica dos centros de pesquisa tradi-cionais, investindo na sua ampliação e na sua moderni-zação como a opção estratégica ideal para o desenvol-vimento científico e tecnológico em saúde no Brasil.

Será fundamental estabelecer e consolidar grupa-mentos regionais necessários ao desenvolvimento dapesquisa em saúde, através da criação de "pólos depesquisa" com dotação financeira apropriada e com-prometidos com o desenvolvimento de projetos priori-tários. Tais projetos deverão merecer orçamentaçãoadequada e, mesmo quando tenham custo financeiroelevado, deverão ter a sua continuidade assegurada.Tais pólos deverão estar capacitados para desenvolveratividades de formação e treinamento de recursos hu-manos, canalizando, para tanto, os auxílios institucio-nais e as bolsas de estudo disponíveis.

O SUS, através de uma sistemática de credencia-mento progressiva, apoiará a implantação de unidadesde pesquisa clínica integradas a serviços médico-hos-pitalares, introduzindo critérios selecionadores e pré-requisitos rigorosos quanto a recursos humanos espe-cializados, condições infra-estruturais etc.

O credenciamento pelo SUS dessas unidades inte-gradas de pesquisa se processará conforme um esquemapreviamente planejado. Assim, o SUS poderá estipular

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um número restrito de áreas para introduzir esse mode-lo de unidades integradas de pesquisa/serviços. Nessasunidades poderá proporcionar, em caráter experimen-tal, medidas como o "tempo parcial real em atividadede pesquisa", sujeito a regras de avaliação precisas,para os recursos humanos envolvidos em projetos prio-ritários, como forma de assegurar ao pesquisador clíni-co, proteção ao fator limitante efetivamente repre-sentado pela quota de cuidados assistenciais.

CONCLUSÕES

Este trabalho teve por objetivo analisar os víncu-los fundamentais necessários entre processo de desen-volvimento científico e tecnológico e processo de de-senvolvimento social, tomando por base a problemáticaque envolve a discussão da Reforma Sanitária, pelasociedade brasileira, na atualidade. Nele tratamos dedelimitar o campo da Reforma Sanitária, enquanto pro-jeto de transformação de caráter político, social e orga-nizacional/administrativo, do quadro de saúde da po-pulação e do sistema de atenção à saúde no país.Analisamos a relevância estratégica de uma via dedesenvolvimento científico e tecnológico voltada parao alcance de prioridades sociais, capaz de monitorizaros impactos sociais e ambientais e que possibilite aretomada e a continuidade do desenvolvimento econô-mico do país.

Foram analisados os elementos principais que de-verão, a nosso ver, integrar a Lei Orgânica do SistemaÚnico de Saúde, no capítulo específico, referente aciência, tecnologia, insumos, equipamentos e assistên-cia farmacêutica e que serão fundamentais para assegu-rar a viabilidades das novas e crescentes demandas so-ciais em saúde que a Reforma Sanitária faz supor.