introduÇÕes dos manuais de ficÇÃo e nÃo -ficÇÃo

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OS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO JOSÉ VEGAR (propriedade intelectual. Todos os direitos reservados)

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Page 1: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

OS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO

JOSÉ VEGAR

(propriedade intelectual. Todos os direitos reservados)

Page 2: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

COORDENADAS

SOBRE A POSSIBILIDADE DE PARTILHA/3

(uma introdução)

SUPERAR A FRONTEIRA/4

(a avaliação dolorosa da história imaginada)

A MECÂNICA DA NARRATIVA/7

(a extrema importância da estrutura, da forma e do plot)

A IDENTIFICAÇÃO DA VOZ/11

(Um processo de descoberta do modo de fixar a história em texto)

A MANUFACTURA DE PERSONAGENS/14

(escapando às armadilhas do pequeno mundo do autor)

O PODER DA TÉCNICA/17

(dos modos de reproduzir o que foi criado e singularizar o texto)

UM INDICADOR DE REFERÊNCIAS/19

(algumas obras que devem ser companhia).

DEZ SEM FALTA/31

(Se uma lista de ficcionais obrigatórios pode ser levantada)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS/32

Page 3: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

SOBRE A POSSIBILIDADE DE PARTILHA

(uma introdução)

Orhan Pamuk acredita que “the center of a novel is a profound opinion or insight about

life, a deeply embedded point of mystery, whether real or imagined. Novelists write in

order to investigate this locus, to discover its implications (…)” (“The naïve and the

sentimental novelist, 2010-153).

O ficcionista quer então aceder ao “ponto de mistério”, para usar o maravilhoso termo

de Pamuk, o que é de uma ambição desmesurada, especialmente porque está isolado

numa imensa solidão e rodeado de fronteiras que o encerram, já que a maior parte dos

elementos decisivos para o surgimento da história ficcional e da sua posterior execução

não são visíveis, não se partilham e não se ensinam.

Na verdade, não é possível inculcar num candidato a escritor uma perturbação que o

domine, e que é afinal a razão maior de toda a criação, ou a capacidade de moldar uma

história a partir desse estado.

Não existe do mesmo modo uma programação que lhe garanta a condição indispensável

para escrever, isto é a maturidade, gerada por uma fusão desconhecida e sempre

personalizada entre experiência, leitura de textos e, principalmente, o efeito provocado

pelo lento percurso do tempo.

Resta então apenas uma possibilidade de partilha de um conjunto modesto de

mecanismos e técnicas, os fundamentais, que, se esquecermos o rigor, poderemos

classificar como regras, sobre o processo de ficção. Ou seja, este manual.

José Vegar

Page 4: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

SUPERAR A FRONTEIRA

(a avaliação dolorosa da história imaginada)

Não há ficção sem um processo íntimo de perturbação.A questão pessoal fundamental

que o candidato a escritor deve colocar a si próprio é: O que é que me perturba?

Na palavra perturbação cabem todas as variações. O que é que me fascina? O que é me

intriga? O que é que me interessa?

Se a resposta transportar a identificação de um elemento isolável, provavelmente o

candidato tem o princípio de uma história, porque detectou um tema ou um episódio.

Possuir um tema circunscrito, por maior que seja a sua dimensão, é o primeiro passo

fundamental.

A existência de um tema poder dar origem a um processo criativo impenetrável. A

história pode começar a formar-se a partir de uma memória, de um acto, ou de uma

marca. Ou pode vir de fora, de uma observação na rua. William Gibson revela que “I

have to write an opening sentence. I think with one exception I’ve never changed an

opening sentence after a book was completed” (The Paris Review, 2011).

Na maior parte das vezes, o esboço da história surge através de um processo de

associação caótico e ilegível, onde memórias, imagens e actos se associam e formam

uma cadeia de imaginação e ideias, neste caso destinada a um texto ficcional.

Como aponta DeLillo “I think the scene comes first, an idea of a character in a place.

It’s visual, it’s Technicolor—something I see in a vague way. Then sentence by

sentence into the breach” (The Paris Review, 1993).

No entanto, essa cadeia não dá acesso automático a uma história. Há uma fronteira a

superar.

Page 5: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

O Dictionary of Literary Terms & Literary Theory da Penguin Reference, que

passaremos a designar apenas por dicionário, diz que ficção é “a vague and general term

for an imaginative work, usually in prose”, caracterizando a novela como “ a extended

piece of prose fiction(...) a form of story or prose narrative containing characters, action

and incident, and perhaps, a plot” (1998).

Por sua vez, o teórico literário Albert Manguel, num momento feliz, partilhou no diário

“Público”, em Julho de 2010 que “o escritor de ficção tem de estar só, num espaço em

que se torne possível inventar o mundo praticamente de raiz (…)”.

É este exactamente o ponto, já que “inventar o mundo praticamente de raíz”, exige um

processo. Como escreve Porter Abbott em The Cambridge Introduction to Narrative

“(…) narrative is the representation of an event or a series of events. Event is the key

word here, though some people prefer the word “action”. Without an event or an action,

you may have a description, an exposition, an argument, a lyric, some combination of

these or something else altogether, but you won´t have a narrative” (2013:67-79).

A fronteira é exactamente a referida pelo dicionário, por Manguel e pela introdução. O

começo da construção de um texto ficcional poder ser uma das consequências de um

processo íntimo de perturbação.

Mas este último não é suficiente. Se o autor não possuir maturidade intelectual e

existencial, se não tiver distância do seu tema, se não criar uma organização ficcional,

isto é uma história e um discurso, se não assentar a ideia inicial numa continuidade

espacial e temporal, e principalmente se não desenvolver uma acção ou um evento,

estará apenas a produzir uma catarse, uma meditação ou uma história limitada.

A superação da fronteira exige uma perturbação e um tema, mas exige depois, num

momento seguinte, a aplicação destes dois elementos como pilares fundadores de uma

história. Num terceiro momento, obriga a que a história seja a mediação e a construção,

a representação do tema, através do desenho dos personagens e da acção, da sua

colocação no tempo e no espaço, e do desenvolvimento deste pequeno mundo no texto.

Como diz Manguel, “inventar o mundo de raiz”.

Escrito de outra maneira, alerta Barthes, em “Image. Music. Text”, a “function of

narrative is not to represent”, ou seja reproduzir uma realidade, mas isso e algo mais,

Page 6: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

isto é “it is to constitute a spectacle still very enigmatic for us but in any case not of a

mimetic order…”

De seguida, há que ter em conta que a escrita ficcional é um processo intrincado e lento.

É necessária rotina de escrita, idealmente diária, para que a história se vá desenhando na

mente e no papel. É necessária lentidão para que o texto corresponda à história que o

autor tem em mente.

McPhee escreve que “the way to do a piece of writing is three or four times over, never

once. For me, the hardest part comes first, getting something-- anything--out in front of

me. Sometimes in a nervous frenzy I just fling words as if I were flinging mud at a wall.

Blurt out, heave out, babble out something--anything-as a first draft. With that, you

have achieved a sort of nucleus. Then, as you work it over and alter it, you begin to

shape sentences that score higher with the ear and eye. Edit it again-top to bottom. The

chances are that about now you'll be seeing something that you are sort of eager for

others to see. And all that takes time” (The New Yorker, 29 Abril 2013).

Provando que há um processo para escrever ficção, e que o conhece bem, McPhee

acrescenta que “You get in your car and drive home. On the way, your mind is still

knitting at the words. You think of a better way to say something, a good phrase to

correct a certain problem. Without the drafted version-if it did not exist-you obviously

would not be thinking of things that would improve it. In short, you may be actually

writing only two or three hours a day, but your mind, in one way or another, is working

on it twenty-four hours a day-yes, while you sleep-but only if some sort of draft or

earlier version already exists. Until it exists, writing has not really begun" (The New

Yorker, 29 Abril 2013).

Há ainda um outro desafio a considerar, o da realidade a que pertencemos. J.G. Ballard

(Author´s Note, Crash, 1995) escreveu que “increasingly, our concepts of past, present

and future are being forced to revise themselves. (…) We have annexed the future into

the present, as merely one of those manifold alternatives open to us. Options multiply

around us, and we live in an almost infantile world where any demand, any possibility,

whether for lifestyles, travel, sexual roles and identities, can be satisfied instantly”.

Para além disso, acrescenta Ballard “I feel that the balance between fiction and reality

has changed significantly in the past decades. Increasingly their roles are reversed. We

Page 7: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

live in a world ruled by fictions of every kind – mass merchandising, advertising,

politics conducted as a branch of advertising, the pre – empting of any original response

to experience by the television screen. We live inside an enormous novel (…)” (1995).

Deste modo, defende Ballard, “the writer´s task is to invent the reality” (1995).

Como escreve Woods, a casa da ficção só tem duas ou três portas. A principal é a

passagem da fronteira entre perturbação e o levantamento de uma história, que construa

o mundo de raiz. Há depois o desafio lançado por Ballard.

Page 8: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

JOSE VEGAR

(Propriedade intelectual. Todos os direitos reservados)

DO ORDENAMENTO DOS MECANISMOS

REGULADORES

UM GPS PARA OS CONJURADOS

(no cumprimento do protocolo editorial da introdução)

PÁG. 4

A DELIMITAÇÃO DO TERRITÓRIO

(notas teóricas e históricas fundamentais das várias tipologias de não ficção criativa)

PÁG. 6

UM INDESTRUTÍVEL TRILHO PARA DETER

CONHECIMENTO

Page 9: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

(a matriz simples de aquisição dos elementos básicos necessários para a descodificação

da realidade a explorar)

PÁG. 13

A CONSTRUÇÃO DA CAPACIDADE INVESTIGATIVA

(o estabelecimento de uma metodologia, o poder da observação, a conquista da

confiança, a superior capacidade de ser nativo, e a validade do conhecimento técnico e

académico)

PÁG. 16

O ACTO PENOSO DE DOMESTICAR OS CAÓTICOS

FACTOS OBTIDOS

(o imperialismo ditatorial da obrigatoriedade de erguer uma estrutura brilhante, assente

nas propriedades mapa de controlo e ferramenta de imaginação)

PÁG. 20

A EDUCAÇÃO DO PODER NARRATIVO

(o banimento do adjectivo, a calibração do pormenor e da metáfora, e o domínio de

outras técnicas obscuras)

PÁG. 24

UMA RECOLHA SELECTIVA

(as referências escolhidas e o sempre precioso apontamento dos textos bibliográficos

maiores)

Page 10: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

PÁG. 32

OLÁ, SOU UM AUTOR E PRECISO DE SOBREVIVER

(anotação impressionista de um mercado alucinante)

PÁG. 39

UM GPS PARA OS CONJURADOS

(no cumprimento do protocolo editorial da introdução)

Um autor ou um teórico em busca do local perfeito para fixar uma geografia da

desolação precisa apenas de marcar passagem e instalar-se na paisagem portuguesa de

não ficção. À medida que investiga o território natural da não ficção, imprensa,

televisão, livros, sítios, sentirá um assombro devastador e sentirá também reforçada a

pertinência da sua pergunta fundamental de investigação: Como conseguem os

protugueses escapar ao fascínio da não ficção?

Na verdade, é uma pergunta decisivamente pertinente. De facto, a partir dos anos 60 do

século passado, e para referir apenas a corrente massiva, o texto e a imagem de não

ficção criativa, nas suas várias tipologias, do jornalismo narrativo ao documentário,

passando pela escrita de viagens e pela biografia, tornaram-se géneros literários e

cinematográficos maiores. O poder destes géneros pode ser descrito de forma muito

rasurada. Trazem a realidade ao texto, usando formas narrativas fascinantes.

Page 11: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

Porque razão este Poder não contaminou Portugal é uma questão académica por

responder. Sabem-se, empiricamente, alguns factores decisivos, como são o

conservadorismo da classe académica, que apenas admite o artigo científico e o ensaio,

e a submissão da cultura jornalísticaà notícia e ao tema político.

Sabe-se também, o que é muito importante, que o mercado não mostra paixão pelos

produtos de não ficção, e que não há, muito pelo contrário, uma tradição democrática de

revelação e transparência por parte daqueles que são protagonistas ou sabem de uma

boa história.

Contra este estado dominante, resistem, e resistiram desde o século 19, os conjurados da

não ficção, vulgarmente conhecidos, no território nacional, como “os tipos das

histórias”. São eles, no fundo uma seita insignificante, que continuam a investigar as

várias manifestações do real que os fascinam, e a tentar escrever e a filmar com

virtuosismo.

A conjura provoca o fechamento, muitas vezes, e uma desesperada busca de referências

que cumpram um número considerável de funções, do conforto de encontrar uma ideia

de um par, ao guiamento de um mestre.

É então, decididamente, para suportar a conjura que foi escrito este “Manual de Regras

Instáveis para a Execução Precária da Operação Limitada de Fixação de uma Realidade

em Texto”, um título sóbrio e conciso, como exigem as regras sagradas.

O manual é, aparentemente, um objecto híbrido, que tenta atingir, numa harmonia zen

radical, dois objectivos extremamente distantes entre si. Antes do mais, o de partilhar o

recorte de alguns princípios teóricos fundamentais, e distribuir algumas referências

bibliográficas brilhantes. Depois, o de revelar os modos cruciais técnicos e oficinais

para investigar e escrever os factos.

Uma tamanha ambição está votada ao tremendo fracasso, como rapidamente irão

descobrir os escassos leitores deste manual.

No entanto, poderá ter sobrevivido uma ambição mais razoável, a de que o manual seja

uma porta de entrada num mundo criativo fascinante ou uma companhia dos aspirantes

a conjurados e envelhecidos conjurados da não ficção.

Page 12: INTRODUÇÕES DOS MANUAIS DE FICÇÃO E NÃO -FICÇÃO

José Vegar

2012