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8 INTRODUÇÃO O longo período na história mundial conhecido como Guerra Fria (1945 1991) consistiu na polarização mundial em questões político-ideológicas e na divisão do controle das relações internacionais (e do mundo) entre as duas grandes potências: Estados Unidos da América e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Com fortes antagonismos que aproximavam a eclosão de uma terceira guerra mundial, análises tradicionais que envolviam a capacidade militar e aspectos econômicos prevaleceram nas produções intelectuais do período. Tendo em vista que as manifestações artísticas, em particular a dança, se apresentam como formas de linguagem que, ao mesmo tempo, são representantes e formadoras culturais e identitárias, torna-se pertinente utilizá-las como foco de exame de conflitos que envolvam a ampliação e imposição de ideologias. Em projetos de supremacia mundial, cabe esse tipo de análise uma vez elas tocam a dimensão social e, portanto, ajudam a compreender a legitimação e perpetuação de determinadas ideologias. Esse é o aspecto sob o qual o presente trabalho pretende se focar. Para melhor compreensão do trabalho, inicia-se com a apresentação do recorte temporal e com a contextualização. Não cabe aqui explorar em detalhes os acontecimentos e desdobramentos do período conhecido como Guerra Fria, mas apresentar um panorama geral para, então, concentrar-se na dimensão cultural deste. A partir daí, debruça-se sobre a questão da construção identitária, desde o nível mais elementar até o nível sistêmico. Com esse aparato teórico, analisa-se a identidade nacional em cada uma das superpotências durante a Guerra Fria. Por último, um estudo mais direcionado para o tema principal a instrumentalização da dança será realizado. Nesse momento, identificam-se momentos nos quais houve investimentos governamentais na arte da dança, a propagação desta em território nacional, intercâmbio de dançarinos e realização de turnês de companhias de dança patrocinadas pelo governo central. Busca-se analisar como o balé foi influenciado

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INTRODUÇÃO

O longo período na história mundial conhecido como Guerra Fria (1945 – 1991)

consistiu na polarização mundial em questões político-ideológicas e na divisão do

controle das relações internacionais (e do mundo) entre as duas grandes potências:

Estados Unidos da América e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Com

fortes antagonismos que aproximavam a eclosão de uma terceira guerra mundial,

análises tradicionais que envolviam a capacidade militar e aspectos econômicos

prevaleceram nas produções intelectuais do período.

Tendo em vista que as manifestações artísticas, em particular a dança, se

apresentam como formas de linguagem que, ao mesmo tempo, são representantes

e formadoras culturais e identitárias, torna-se pertinente utilizá-las como foco de

exame de conflitos que envolvam a ampliação e imposição de ideologias. Em

projetos de supremacia mundial, cabe esse tipo de análise uma vez elas tocam a

dimensão social e, portanto, ajudam a compreender a legitimação e perpetuação de

determinadas ideologias. Esse é o aspecto sob o qual o presente trabalho pretende

se focar.

Para melhor compreensão do trabalho, inicia-se com a apresentação do recorte

temporal e com a contextualização. Não cabe aqui explorar em detalhes os

acontecimentos e desdobramentos do período conhecido como Guerra Fria, mas

apresentar um panorama geral para, então, concentrar-se na dimensão cultural

deste. A partir daí, debruça-se sobre a questão da construção identitária, desde o

nível mais elementar até o nível sistêmico. Com esse aparato teórico, analisa-se a

identidade nacional em cada uma das superpotências durante a Guerra Fria. Por

último, um estudo mais direcionado para o tema principal – a instrumentalização da

dança – será realizado. Nesse momento, identificam-se momentos nos quais houve

investimentos governamentais na arte da dança, a propagação desta em território

nacional, intercâmbio de dançarinos e realização de turnês de companhias de dança

patrocinadas pelo governo central. Busca-se analisar como o balé foi influenciado

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pelas ideologias nacionalistas e como ele foi empregado como uma ferramenta de

diplomacia cultural.

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1 – GUERRA FRIA

Repetindo o ocorrido na Primeira Grande Guerra (1914 – 1918), a União das

Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) uniu-se, temporariamente, aos Estados

Unidos da América (EUA) contra as forças e pretensões germânicas durante a

Segunda Grande Guerra (II GG) (1939 – 1945). Porém, desde a Revolução

Socialista na Rússia, em 1917, as potências ocidentais temiam que o comunismo se

espalhasse pelo mundo. Destarte, não era inconcebível que as ideologias1

comunista/socialista e capitalista chocassem-se no sistema internacional. O período

de evidente confronto entre essas ideologias ficou conhecido como Guerra Fria

(1945 – 1991). (PAZZINATO; SENISE, 2004).

Em sua obra História do Mundo Contemporâneo, Norman Lowe (2011), apresenta

os seguintes motivos para a ocorrência da Guerra Fria: divergência ideológica,

política externa stalinista expansionista e a aberta hostilidade das potências

ocidentais em relação ao regime soviético. Nos anos de 1980, entretanto, a

interpretação histórica pós-revisionista das motivações da Guerra Fria ganhou

espaço e respaldo uma vez que os historiadores tiveram acesso a documentos que

antes não tinham. Segundo essa visão, a responsabilidade pelo tenso período deve

ser atribuída à ambas as partes:

“(...) as políticas dos Estados Unidos, como o Plano Marshall visavam deliberadamente a aumentar a influência política do país na Europa, mas também acreditavam que, embora não tivesse planos de longo prazo para espalhar o comunismo, Stalin era um oportunista que aproveitaria qualquer fragilidade no Ocidente para expandir a influência soviética”. (LOWE, 2011, p.140)

Os anos iniciais do conflito presenciaram a tentativa de reorganização do continente

europeu após a II Guerra Mundial. A Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945, e a

1 Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva (2006), com uma definição mais ampla, apresentam ideologia como um sistema de crenças e ideias, relativamente coerentes, que serve para compreender, explicar e posicionar-se no mundo. Afirmam que há uma pluralidade de ideologias convivendo em uma mesma sociedade, não descartando, entretanto, a possível existência de uma ideologia dominante ou hegemônica; que será contrastada e/ou corroborada por ideologias adjacentes. (SILVA; SILVA, 2006, p.205 e 206).

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Conferência de Potsdam, em julho do mesmo ano, são exemplos dessa tentativa.

Foi possível observar, também, uma considerável expansão da URSS no leste

europeu com o predomínio de governos comunistas na região. Com receio, os EUA

adotaram a Doutrina Truman, que visava à contenção do Comunismo na Europa, e

lançaram mão do Plano Marshall pelo o qual auxílio financeiro era concedido aos

países europeus sob a justificativa de combater a fome, o caos e o desespero. Mas

que pode ser interpretado, também, como uma tentativa de cooptação de países

europeus e de assegurar sua conformação com a ideologia ocidental-capitalista. Em

contrapartida, no lado comunista, foi criado o Cominform (Bureau Comunista de

Informações) para controlar os Estados satélites e direcionar os partidos comunistas

no mundo nos moldes soviéticos, e o Comecon (Conselho de Assistência

Econômica Mútua) para a articulação das políticas econômicas. (LOWE, 2011).

No plano militar, foi formada, em 1949 e sob a liderança estadunidense, a

Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) com a participação Grã-

Bretanha, França, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Canadá, Portugal, Dinamarca,

Irlanda, Itália e Noruega. Em resposta, a URSS criou, em 1955, o Tratado de

Assistência Mútua da Europa Oriental (Pacto de Varsóvia), integrado por países do

leste europeu. De forma geral, a disputa armamentista foi intensa tanto na questão

da quantidade quanto na inovação em equipamentos bélicos durante todo o período

observado. (PAZZINATO; SENISE, 2004).

A partir de 1953 notou-se uma distensão do conflito. Segundo Lowe (2011), tal fato

deve-se à alguns fatores principais: à morte do líder soviético (Josef Stalin); ao

desenvolvimento das bombas de hidrogênio por ambas as partes, o que fez da

política de coexistência pacífica a única alternativa2; ao descrédito do senador

estadunidense Joseph McCarthy, que foi responsável pela perseguição sistemática

de indivíduos que alegadamente apresentavam comportamentos subversivos

associados ao comunismo nos EUA, e à adoção de uma postura mais amistosa dos

norte americanos, comandados por Eisenhower, em relação aos soviéticos. O autor,

no entanto, deixa claro que essa distensão foi parcial, como corrobora a continuação

2 Caso contrário, ocorreria a maior guerra da história.

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do impasse e da tensão em relação à divisão da Alemanha (Alemanha Ocidental e

Alemanha Oriental), o que culminou na construção do muro de Berlim em 1961.

A tensão do conflito retorna em níveis extremos com o episódio que ficou conhecido

como a Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962. Após a derrubada do ditador Batista e

a ascendência de Fidel Castro em Cuba em 1959, os EUA voltaram-se contra Cuba,

tentaram reverter a situação e retirar Castro do poder, mas falharam. Romperam,

então, relações com o país, em 1961, e impuseram um embargo econômico, ao

passo em que a URSS aumentou a sua ajuda econômica à ilha caribenha. Diante da

hostilidade estadunidense, Castro pediu auxílio militar à URSS; auxílio este que foi

materializado na instalação, em Cuba, de mísseis nucleares direcionados aos EUA.

A URSS “(...) colocaria os norte americanos sob o mesmo tipo de ameaça que os

russos tinham que suportar com os mísseis yankees instalados na Turquia”. (LOWE,

2011, p. 153).

A perigosa iminência de uma guerra nuclear resultou na retirada dos mísseis de

Cuba, no desarmamento dos mísseis na Turquia e na promessa de que os EUA não

invadiriam Cuba. Em relação ao episódio, Lowe (2011) diz “A crise durou somente

alguns dias, mas fora extremamente tensa e seus resultados eram importantes”

(LOWE, 2011, p. 154). Apesar de não ter havido um conflito direto entre os EUA e a

URSS em seus próprios territórios, as ideologias comunistas e capitalistas se

enfrentaram diretamente em outras partes do globo. A Guerra da Coreia (1950 –

1953) e a Guerra do Vietnã (1961 – 1975) são exemplos desse embate.

Um novo período de relaxamento iniciou-se nos anos 1970, conhecido como

Détente. Durante o período, tratados importantes entre as potências foram

estabelecidos3. Além disso, a iniciativa do então líder soviético, Mikhail Gorbatchev

(1985 – 1991) com políticas como a Perestroika (reestruturação) e Glasnost

(transparência), e tendências mais “democratizantes”, deram novo fôlego à Détende

3 Ex.: SALT 1 e 2 que limitavam, em certa medida, os arsenais militares de ambos os lados. (LOWE, 2011)

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e contribuíram, de certa forma, para o declínio e dissolução da URSS. (PAZZINATO;

SENISE, 2004).

Crescentes manifestações de oposição ao regime soviético e à forte crise

econômica, somados à perda de influência e controle enfrentados pela URSS

culminaram na dissolução do bloco comunista em 1991, na reorganização do mundo

com a liderança dos EUA e na reestruturação das relações internacionais. Se essa

drástica mudança no status quo foi ou não positiva, não cabe aqui dizer, mas

atendendo aos objetivos do presente trabalho, é pertinente examinar em maior

profundidade a dimensão cultural do conflito.

1.1 – GUERRA FRIA CULTURAL

A luta no âmbito cultural durante a Guerra Fria foi intensa e ambos os lados estavam

comprometidos a superar o outro em todas as dimensões possíveis. Eventos

esportivos e artísticos no geral tornaram-se plataformas políticas carregadas de

ideologia. Tais movimentos deram-se não só para demonstrarem a sua própria

superioridade e tentar subverter a cultura oposta, mas, muitas vezes, o propósito era

reforçar, internamente, aquilo que já era defendido. (SHAW, 2001)

As preferências de cada lado eram bastante distintas, mas, para que essa

competição acontecesse, era imprescindível que eles compartilhassem certo

conjunto de valores, habilidades e nível de excelência. Não é tudo que é válido; é

preciso que o outro reconheça que o seu trabalho esteja em um patamar, no

mínimo, aceitável. Competições de música, de dança e festivais de cinema são

exemplos de campos de batalha artísticos em comum. (CAUTE, 2005)

As abordagens eram muito diferentes, quase opostas. Fortes defensores e

reverenciadores dos clássicos, da estética realista clássica da literatura e das artes,

os soviéticos autoproclamavam-se herdeiros e fiéis depositários do Renascimento

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Europeu. Daí vem toda a repulsa pelos movimentos modernistas (futurismo,

surrealismo, impressionismo, etc.); pelos movimentos que desafiavam as regras

atemporais (perspectiva, harmonia e narrativa clássicos). A arte foi, em grande

medida, guiada pelo conservadorismo e ortodoxia no lado soviético. Isso pode

surpreender uma vez que, advindos de uma revolução social e econômica, seria

plausível esperar que os soviéticos revolucionassem, também, o campo cultural, e

não que o passado clássico e uma cultura supostamente elitizada fossem

resgatados e protegidos ferozmente. O diferencial foi a intensa popularização e a

propagação dessa cultura clássica. (CAUTE, 2005)

A política cultural soviética era autoritária e a censura era forte. Nesse cenário, cabia

ao Estado “educar” os seus cidadãos da maneira “correta e ideal”. Assim, ao mesmo

tempo em que ressaltava as melhores qualidades do homem soviético, mostrava à

ele como deveria se comportar e castigava aqueles que se prendiam ao passado e

comprometiam o progresso do povo soviético. Uma política um tanto quanto

paternalista nesse sentido. Em sua obra The Dancer Defects – The Struggle for

Cultural Supremacy during the Cold War, David Caute (2005) aponta:

A filosofia Bolchevique era, é claro, centralizada e autoritária. Os Russos não acreditavam – ou não mais acreditavam, mas não podiam negar publicamente – [n]a doutrina marxista [na qual] a classe trabalhadora gera a consciência proletária. Pelo contrário! O Partido assemelhava-se à uma sala de mestres em constante lamento pela vulnerabilidade de seus alunos aos prazeres mundanos, à ociosidade, seduções e desvios. Se deixados sozinhos, o povo russo, embora nominalmente os governantes da URSS, iria direto para o ralo preparado pelos ardilosos capitalistas.4 (CAUTE, 2005, p. 7, tradução nossa).

Por sua vez, os estadunidenses, por defenderem uma democracia e uma ideologia

com maior liberdade de expressão, não restringiam tanto5 a forma pela qual ela se

4 “The Bolshevik philosophy was of course centralized and authoritarian. The Russians did not believe

– or no longer believed, yet could not publicly deny – Marx’s doctrine that the working class generates proletarian consciousness. Quite the contrary! The Party resembled a common room of schoolmasters in permanent lament about the vulnerability of their pupils to wicked worldly pleasures, idleness, seductions, deviations. Left to themselves the Russian people, although nominally the rulers of the USSR, would go straight down the drain laid out for them by the artful capitalists.” (CAUTE, 2005, p. 7). 5 Vale lembrar do período do Macarthismo. Tal período iniciou-se com a criação, em 1945, do Comitê de Atividades Antiamericanas que investigava a vida de artistas, intelectuais, sindicalistas e

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apresentava. Na música, na arte e na literatura era (quase) tudo válido. E, devido à

forte aversão ao totalitarismo, sobretudo o soviético, movimentos modernistas

configuraram o carro chefe da propaganda cultural yankee, mesmo que esse

impulso cultural não fosse compreendido totalmente e/ou apoiado no âmbito

doméstico. Além disso, os norte-americanos acreditavam que uma campanha

internacional baseada na cultura ajudaria a espalhar a democracia e a ideologia

liberal pelo mundo, e a conter ideologias subversivas como o fascismo e o

comunismo (GIENOW-HECHT, 2000). De forma geral, os soviéticos retratavam os

capitalistas, sobretudo os estadunidenses, como culturalmente decadentes e eram

considerados rígidos e ultrapassados por estes. (CAUTE, 2005)

Ademais, a luta no campo cultural serviu para internalizar o conflito na mente das

pessoas. Temas com questões nucleares, espionagem e guerras foram amplamente

abordados, principalmente, pelo lado capitalista que permitia maior liberdade aos

seus autores, artistas e jornalistas quando comparados com o lado socialista. Além

de refletir o momento, livros, filmes, eventos esportivos, obras de arte, música,

dentre outras manifestações culturais projetavam preceitos político-ideológicos.

(SHAW, 2001)

Durante essa “Olimpíada Cultural”, alguns acordos de transferência e intercâmbio

cultural foram assinados entre os polos e serão tratados em maior detalhe mais

adiante. Eles foram acordados, basicamente, após a morte de Stalin, em 1953, com

a gradual dissolução da cortina de ferro, e não é surpreendente que esses fluxos

fossem intensificados no período de Détente, abordado anteriormente.

Yale Richmond (2013) defende que os objetivos estadunidenses nessa empreitada

eram: ampliar e aprofundar as relações com a URSS, aumentar o próprio

conhecimento norte-americano sobre a União Soviética, desenvolver hábitos de

cooperação entre os estados, retirar a URSS do isolamento no qual se encontrava e

funcionários do governo, procurando detectar atividades “subversivas”. As atividades do comitê foram encerradas em 1954 com a desmoralização de seu coordenador, o senador Joseph McCarthy. (PAZZINATO; SENISE, 2004).

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obter benefícios de longo alcance através da cooperação nos campos cultural,

científico, educacional e tecnológico. Por sua vez, os objetivos soviéticos seriam: ter

acesso à ciência e tecnologia, aprender mais sobre os EUA, promover uma imagem

mais positiva da própria URSS no mundo, amenizar pressões internas de

intelectuais, atletas e artistas soviéticos, demostrar os feitos e conquistas do povo

soviético, e ganhar divisas internacionais por meio das apresentações de seus

artistas e atletas. Segundo o autor:

As três palavras [chave] das trocas eram igualdade, reciprocidade e benefício. Os dois países deveriam tratar-se como iguais, reciprocidade equiparada deveria ser buscada nas diversas trocas e os benefícios para ambos os países deveriam ser comparáveis. 6 (RICHMOND, 2013, p. 3, tradução nossa)

As trocas ocorreram por meio de intercâmbio de alunos do ensino superior,

exibições em diversas áreas (medicina, educação, tecnologia, agricultura, etc.) e

artes performáticas (grupos de dança, orquestras, músicos e companhias teatrais),

cinema, dentre outras formas. Elas foram especialmente chocantes e/ou

esclarecedoras para o público soviético que pode observar o estilo de vida

americano tão rechaçado na URSS e de dificílimo acesso até então. Nesse ponto,

David Caute (2005) argumenta que essas trocas foram especialmente contributivas

para o completo desmantelamento da URSS: “(...) ainda assim o golpe fatal que

finalmente enterrou o comunismo Soviético foi, possivelmente, moral, intelectual e

cultural assim como econômico e tecnológico.” 7 (CAUTE, 2005, p. 1, tradução

nossa).

Em 1975, representantes do EUA (Gerald Ford), da URSS (Leonid Brejnev), dentre

outros líderes tanto do ocidente quanto do oriente, reuniram-se em Helsinki, na

Finlândia, e assinaram a Acta Final da Conferência sobre Segurança e Cooperação

na Europa (CSCE). O documento enfatizava a necessidade da promoção de mais

6 The three watchwords of the exchanges were equality, reciprocity, and mutual benefit. The two countries were to treat each other as equals, approximate reciprocity was to be sought in the various exchanges, and benefits to the two countries should be comparable.” (RICHMOND, 2013, p. 3) 7 “(...) yet the mortal ‘stroke’ which finally buried Soviet Communism was arguably moral, intellectual,

and cultural as well as economic and technological.” (CAUTE, 2005, p. 1)

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trocas e abriu espaço para um maior fluxo de ideias e pessoas entre os polos.

Sobre os custos do intercâmbio internacional e a sua intensidade, Cull (2010) diz:

(...) acordos culturais com os poderes ocidentais no final dos anos 1950, permitiu que os soviéticos montassem exibições em Nova Iorque, Londres, e em outros lugares, mas poucas pessoas compareceram, enquanto os eventos recíprocos, como a exibição nacional americana ocorrida em Moscou no verão de 1959, eletrificaram as massas e sugeriu que algo de abundante fluía do sistema capitalista. 8 (CULL, 2010, p. 441, tradução nossa)

Neste ponto, parece ser um pouco precipitado afirmar que a popularidade das

exibições estadunidenses na URSS, em contraste com as exposições soviéticas no

EUA, derivam, em grande parte, da magnitude e opulência da cultura capitalista.

Antes de fazer tal afirmação, seria necessário explorar um pouco mais a

predisposição da população em comparecer a esses tipos de eventos e a sua

curiosidade em relação ao externo. Se levarmos em consideração a livre

expressividade da cultura estadunidense, seria compreensível a “sede” pelo

diferente pela qual passavam os soviéticos englobados por estrutura mais rígida e

conservadora. Ao passo que, ainda em relação à liberdade da cultura

estadunidense, os norte-americanos poderiam não estar tão intrigados com a cultura

soviética, uma vez que mal conseguiam absorver e compreender tudo o que era

produzido e expressado em sua própria cultura, se é que estavam realmente

conectados aos movimentos culturais.

Em relação à campanha cultural estadunidense, GIENOW-HECHT (2000) discute a

questão do imperialismo cultural, entendido aqui como: “(…) o uso de poder político

e econômico para exaltar e disseminar valores e hábitos de uma cultura estrangeira

às custas da cultura nativa.” 9 (BULLOCK; STALLYBRASS, 1982 apud GIENOW-

HECHT, 2000, p. 472, tradução nossa). A exportação cultural estadunidense

8 “(...) cultural agreements with the Western powers in the late 1950’s allowed Soviets o mount

exhibitions in New York, London, and elsewhere, but few people came, whereas the reciprocal events, like American National exhibition held in Moscow in the summer of 1959, electrified the masses and suggested something of the abundance that flowed from the capitalist system.” (CULL, 2010, p. 441) 9 “(...) the use of political and economic power to exalt and spread the values and habits of a foreign culture at the expense of a native culture.” (BULLOCK; STALLYBRASS, 1982 apud GIENOW-HECHT, 2000, p. 472)

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realizada de forma massiva (jeans, Coca-Cola, Disney, jazz, etc.), por considerar

essa uma poderosa arma contra o totalitarismo no mundo, indica o caráter

expansivo e predatório da propaganda yankee.

É pertinente destacar o papel desempenhado por organismos centrais na

propagação cultural. Um importante ator na propaganda soviética foi Comitê de

Segurança do Estado conhecido como Komitet Gosudarstvennoi Bezopasnost

(KGB). Este órgão subsidiou jornais simpáticos à causa soviética, principalmente

nos países ditos de terceiro mundo, controlou o fluxo e o tipo de informação

circulante dentro da URSS, acompanhou e vigiou artistas em turnês internacionais, e

chegou a pagar por demonstrações de apreciação à cultura soviética. Tudo isso com

o intuito de reforçar a imagem de que a União Soviética era próspera para a sua

própria população e amenizar a má imagem da nação comunista no mundo

ocidental. (CULL, 2010)

Do lado ocidental, a Central Intelligence Agency (CIA) foi um dos órgãos de maior

destaque na propaganda yankee. Segundo James Petras (1999), a CIA subsidiou

jornais ao redor do mundo que criticavam a teoria Marxista e o comunismo,

patrocinou arte abstrata para combater a arte socialmente engajada, e promoveu

exibições de arte, balé, orquestras sinfônicas, grupos de teatro e reconhecidos

artistas de jazz e ópera. Artistas e escritores que se autoproclamavam apolíticos,

foram cooptados por um desígnio político para representarem a arte e literatura ditos

livres e independentes: “Muitos intelectuais foram premiados com prestígio,

reconhecimento público, e fundos para pesquisas justamente por operarem sob a

viseira ideológica estabelecida pela Agência.” 10 (PETRAS, 1999, p. 4, tradução

nossa)

Vale ressaltar, ainda, que as campanhas culturais não foram recebidas de forma

totalmente passiva. Houveram, como aponta Jeremi Suri (2010), movimentos de

contracultura que surgiram devido à insatisfação com as culturas dominantes na 10 “Many intellectuals were rewarded with prestige, public recognition, and research funds precisely for

operating within the ideological blinders set by the Agency.” (PETRAS, 1999, p. 4)

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Guerra Fria. As constantes promessas de prosperidade, feita por ambos os lados,

criaram expectativas nas pessoas que não foram correspondidas e desilusões,

principalmente entre a classe educada. Segundo o autor, ambos os lados “(...)

aparentemente perderam a combinação de impregnante medo e intenso

nacionalismo que motivou a conformidade e até entusiasmo público durante os anos

logo após a II Guerra Mundial.” 11 (SURI, 2010, p. 463, tradução nossa). O ambiente

de competição entre o Comunismo e o Capitalismo limitava o espaço percebido para

iniciativas criativas que combinassem ou subvertessem os dois sistemas, e

intervenções estrangeiras desviavam recursos e energias de reformas internas.

O movimento de contracultura chegou a tomar contornos violentos e a reação a

esses movimentos militarizaram a vida cotidiana na Guerra Fria, tanto no lado

ocidental quanto no lado oriental. Ao mesmo tempo em que eles atacavam a

militarização, inspiravam mais da mesma, e a violência só agravava a ruptura entre

os Estados e seus cidadãos. Suri (2010) apresenta como exemplos de

incongruência entre Estado e população civil a continuação da campanha

estadunidense no Vietnã apesar da resistência doméstica e a invasão da

Tchecoslováquia, feita pela URSS, a despeito da forte oposição do bloco oriental.

Um novo consenso internacional a respeito da política externa foi estabelecido e

culminou no período conhecido como Détente. Tal consenso abriu espaço para

maior racionalidade, sensatez e moderação nas relações entre os blocos socialista e

capitalista. Ele tomou forma no “The Basic Principles of Relations between the

United States of America and the Union of Soviet Socialist Republics”12 e foi

assinado em Moscou, em 1972. Nos anos de 1970, foi observada uma retração do

discurso otimista e a centralização das políticas, “ajuste” das expectativas da

população e certa conformidade da mesma com a realidade.

11 “(...) apparently lost the combination of pervasive fear and intense nationalism that had motivated

conformity, and even public enthusiasm, during the years after World War II.” (SURI, 2010, p. 463) 12 Os Princípios Básicos entre os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas.

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De forma geral, as pressões internacionais derivadas da competição inspiraram

discórdia doméstica. À medida que os Estados adquiriam força externa, eles

perdiam coesão interna, e o movimento de contracultura teve papel importante no

desenvolvimento da Guerra Fria e das relações internacionais. Como autor diz: “A

contracultura foi tanto um produto da Guerra Fria quanto um agente de

transformação desta.” 13 (SURI, 2010, p. 481, tradução nossa).

As expressões culturais são reflexos e formdoras de identidades. Destarte, tratar a

questão identitária é de extrema importância em um estudo que se debruça sobre

esse aspecto da vida social. Um aparato teórico que trate deste assunto deve,

então, ser apresentado para que seja possível a realização da análise do período

em questão sob tal perspectiva.

2 – IDENTIDADE

A definição de identidade adotada aqui apresenta um tom filosófico, mas também

conecta-se com os campos da antropologia e da psicologia. Nesse sentido, a

identidade seria “caráter do que permanece idêntico a si próprio; como uma

característica de continuidade que o Ser mantém consigo mesmo.” (SILVA; SILVA,

2006, p.202); mais especificamente, a identidade é “(...) um sistema de

representações que permite a construção do “eu”, ou seja, que permite que o

indivíduo se torne semelhante a si mesmo e diferente dos outros.” (SILVA; SILVA,

2006, p.202). Através desses conceitos, é possível perceber que a identidade de um

indivíduo é essencial para a sua existência; para sua localização no espaço e no

tempo como uma unidade contínua, principalmente, quando este se encontra

inserido em um contexto social. É através dela que ele se auto define e posiciona-se

perante o mundo à sua volta.

13 “The counter-culture was both a product of the Cold War and an agent in its transformation.” (SURI, 2010, p. 481)

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Assumindo que a identidade edifica o indivíduo e o norteia, é cabível dizer que a

identidade partilhada, como a identidade nacional, que será aprofundada mais a

frente, estabelece um tipo de consciência nacional e percepção da própria

comunidade (quem somos, de onde viemos e para onde vamos?). Essa consciência

partilhada faz-se relevante na condução das relações internacionais uma vez que

serve de guia e influencia o posicionamento de dado Estado frente aos demais

países da sociedade internacional. Entretanto, isso não implica dizer que essa

identidade seja, necessariamente, inata e imutável ao longo de toda a vida do

sujeito.

Stuart Hall (2005), por exemplo, apresenta três concepções de identidade: a

identidade do sujeito do Iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno.

Na primeira concepção, o autor desenha a identidade como algo inato e central; algo

que nasce, desenvolve-se e morre com o indivíduo; ela é intrínseca ao sujeito e

permanece a mesma durante toda a sua existência. Já a segunda, a do sujeito

sociológico, assume que há algo de essencial e particular, mas essa identidade é

construída e moldada através da relação entre o privado e o público. Aqui, ela não é

autossuficiente como a anterior, mas se relaciona o tempo todo com o exterior, fixa e

ajuda a conformar o sujeito à estrutura na qual ele se insere. Dessa forma, o

indivíduo tem a sua construção e desenvolvimento a partir da interação entre “Eu”

primário com os “Outros”. Por fim, a concepção do sujeito pós-moderno prevê um

rompimento com a continuidade. Nessa concepção, não há um centro essencial

particular e inato no indivíduo. O homem é descentrado tanto de uma posição

estável e perene, quanto de si mesmo. Essa descentralização suscita a formação de

múltiplas identidades, fragmentadas e, muitas vezes, contraditórias entre si. Essas

identidades estão em redefinição constante pela estrutura altamente mutável. São

encaradas como a celebração móvel de um sujeito multifacetário, que assume

diferentes identidades em diferentes momentos e lugares. (HALL, 2005).

Essa última concepção é um tanto quanto atual e pertinente quando avalia-se as

diversas possibilidades de atuação social humana. Um único sujeito pode ser várias

coisas ao mesmo tempo – homem, cristão, pai, filho, irmão, empregado, colega de

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trabalho, vizinho, professor, etc. Em cada situação social, ele apresenta uma

identidade e se comporta de acordo com ela. Um acontecimento moderno que

mudou paradigmas e ampliou a gama de atuação social, e que merece destaque, foi

o advento do Estado-Nação. Para Hall (2005), essa nova “invenção”, que surgiu no

final do século XVIII e início do século XIX, representou uma transformação

institucional radical na modernidade. Rupturas sociais dessa natureza podem causar

forte descentralização e deslocamento das identidades, e até ocasionar crises de

identidade.

Anthony Smith (1991) vê o surgimento da identidade nacional como uma resposta à

essa crise identitária. Segundo o autor, ela se manifestaria, primeiramente, no grupo

de intelectuais de uma sociedade e advém, principalmente, dos desafios

apresentados pelos debates entre a religiosidade tradicional e razão científica,

endossados pelos Estados, na busca por legitimação da realidade. A solução

nacionalista para essa crise:

(...) aprofundaria ou realizaria a identidade individual dentro da nova identidade coletiva cultural da nação. O indivíduo nessa solução tira sua identidade de uma coletividade cultural; ela ou ele se torna um cidadão, ou seja, um membro reconhecido e legítimo de uma comunidade política que é, simultaneamente, uma ‘comunidade histórica e de destino’ cultural. (SMITH, 1991, p.97, tradução nossa)14.

Nota-se aqui uma forte ligação entre a percepção de identidade nacional de Smith e

a identidade do sujeito pós-moderno de Hall. A identidade individual, nesse

raciocínio, teria um lócus externo ao indivíduo; seria produto da interação dele com

outros agentes na sociedade/comunidade.

Levando em consideração a importância da identidade nacional e do papel da arte

no processo de sua construção, para os propósitos do presente trabalho, é preciso

14“(...) sinks or ‘realizes’ individual identity within the new collective cultural identity of the nation. The individual in this solution takes her or his identity from a cultural collectivity; she or he becomes a citizen, that is, a recognized and rightful member of a political community that is, simultaneously a cultural ‘community of history and destiny’.” (SMITH, 1991, p.97).

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compreendê-la um pouco melhor, avaliando questões como Nação, nacionalismo

como ideologia, Estado-Nação e a influência da própria arte nessa questão.

2.1 - IDENTIDADE NACIONAL E O PAPEL DA ARTE EM SUA CONSTRUÇÃO

O Estado como é conhecido hoje é uma invenção moderna e constitui uma “(...)

entidade composta por diversas instituições, de caráter político, que comanda um

tipo complexo de organização social.” (SILVA; SILVA, 2006, p.115). Por essa

definição, deduz-se que questões de gerenciamento da vida social como o sistema

legal e os aspectos políticos presentes na noção de cidadania (entendida como o

exercício de direitos e deveres) estejam estreitamente ligados à noção de Estado. A

Nação, por sua vez, pode ser entendida como “(...) uma comunidade humana,

estabelecida neste determinado território, com unidade étnica, histórica, linguística,

religiosa e/ou econômica.” (SILVA; SILVA, 2006, p.115). Os membros de uma nação

são iguais entre si na medida em que se diferem dos membros de outras nações.

A noção de Estado-Nação, assim, perpassa pela fusão de alguns elementos dos

dois conceitos apresentados acima e forma o que Montserrat Guibernau (2004)

chama de

(...) uma instituição moderna, definida pela formação de um tipo de Estado que possui o monopólio daquilo que ele alega ser o uso legítimo da força dentro de um território demarcado e busca unir a população sujeitada às suas regras por meio da homogeneização cultural [nacional].15 (GUIBERNAU, 2004, p.132, tradução nossa).

É comum que os conceitos de Estado e Nação sejam projetados como sendo a

mesma coisa quando não são. A clara distinção entre Nação e Estado é

fundamental pelo fato de que, assim como é possível existir uma nação sem um

Estado próprio16, mas que apresenta uma identidade nacional distinta, é possível,

também, que dentro de um único Estado existam várias nações. Nesse sentido, um

15“(…) a modern institution, defined by the formation of a kind of state which has the monopoly of what it claims to be the legitimate use of force within a demarcated territory and seeks to unite the people subject to its rule by means of cultural homogenization.” (GUIBERNAU, 2004, p.132). 16 Exemplos de nações sem Estados: Curdos (região do Oriente médio e Ásia), Tibetanos (Ásia) e

Bascos (Europa).

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Estado pode usar os ideais nacionalistas para se legitimar como representante da

nação e pode usar esse mesmo discurso para criar/impor uma identidade nacional

uniforme em seus limites territoriais. (GUIBERNAU, 2004).

O nacionalismo seria “(...) um movimento ideológico para obtenção e manutenção da

autonomia, unidade e identidade em nome de uma população, considerado por

alguns de seus membros, para constituir uma real ou potencial ‘nação’.” 17 (SMITH,

1991, p. 73, tradução nossa). Dessa definição extrai-se que a própria nação, ou pelo

menos a percepção de uma, e a identidade nacional são resultados da ideologia e

discurso nacionalistas. O nacionalismo, segundo Smith (1991), opera nos níveis

político, social e econômico e conecta-se com sentimentos de massa e aspirações

das diversas camadas sociais, principalmente, através de slogans, ideias, símbolos

e cerimônias. Há aqueles que são mais facilmente percebidos em um contexto

nacional como a bandeira, a moeda, os hinos, fronteiras e memoriais. Mas há,

também, aqueles elementos que são mais sutis e que expressam, da mesma forma,

o discurso nacionalista como a etiqueta, as artes, heróis e heroínas populares,

procedimentos legais e práticas educacionais. Por um lado, o nacionalismo em si

pode gerar efeitos positivos como a defesa de culturas minoritárias, a legitimação de

comunidades e solidariedade social, o ideal de soberania popular e mobilização

coletiva, e a motivação para crescimento econômico autossustentável. Por outro,

níveis exacerbados de sentimento nacionalista podem provocar desde a indiferença

até o desprezo e hostilidade em relação às outras nacionalidades, podendo chegar

ao chauvinismo e xenofobia18.

A identidade nacional em si age, segundo Guibernau (2004), em cinco dimensões, a

saber: psicológica, cultural, territorial, histórica e política. Na dimensão psicológica, a

identidade parte da consciência de um sentimento de proximidade e pertencimento à

uma dada nação. A crença nessa ancestralidade comum cria um vínculo e engendra

17“(...) an ideological movement for attaining and maintaining autonomy, unity and identity on behalf of a population deemed by some of its members to constitute an actual or potential ‘nation’”. (SMITH, 1991, p. 73). 18 O movimento nazista na Alemanha na primeira metade do século XX, por exemplo, utilizou, de

forma notória, o discurso nacionalista. A exaltação e proclamação da superioridade da “raça” germânica auxiliaram na disseminação do ódio dirigido à nação judaica.

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lealdade entre os “irmãos” nacionais. No nível cultural, o compartilhamento de

costumes, valores, crenças, símbolos e práticas de uma dada cultura proporciona

um processo de identificação que cria vínculos de solidariedade e apego emocional

entre os membros de uma comunidade que se reconhecem como nacionais. Já na

esfera histórica, a identidade nacional parte da legitimação da existência de uma

nação; a resiliência é valorizada e o senso de continuidade conferido por um

passado longínquo contribui para a construção da imagem da nação e para a

preservação dessa comunidade. No âmbito territorial, a questão do espaço onde

surgiu a nação (ou o mito dela) é de grande significância para a identidade nacional.

É nesse local que as “raízes” são mais profundas; é a terra natal; é o lar da nação. E

apesar de a globalização ter relativizado a noção de espaço, a intensidade da

reação dos nacionais aos eventos que se passaram fora de seus limites territoriais é

muito diferente daqueles que atingem a sua própria “terra natal” e aos seus “irmãos”.

Por último, na dimensão política, a identidade nacional se liga à noção de Estado-

Nação. Aqui, a nação, personificada em símbolos e rituais, torna-se o foco do apego

e da lealdade do povo que antes, em muitos dos casos, foram conferidos ao

monarca e/ou à Igreja, e o Estado-Nação aparece como o fiel guardião e

representante dessa nação.

Quando se trata da concepção de identidade nacional, a dimensão política, aplicada

à noção de Estado–Nação, está relacionada às estratégias usadas pelo Estado para

se alcançar uma identidade nacional única que integre os seus cidadãos. Ela

envolve a criação e disseminação de uma imagem da nação baseada, geralmente,

nas características da nação dominante, o avanço dos aspectos de cidadania

conferindo direitos e deveres aos cidadãos e intensificando o sentimento de

lealdade, a criação de inimigos comuns (scapegoats19), e a consolidação de um

sistema de educação pública nacional e de um sistema midiático. (GUIBERNAU,

2004).

Conclui-se que a identidade nacional seria, então, uma identidade cultural criada no

âmbito coletivo a partir das interações dos membros de uma nação, que partilham

19 Bode expiatório, tradução nossa.

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história, mitos, símbolos e cerimônias comuns. Elas podem ser exacerbadas por

discursos nacionalistas, servir de base para o estabelecimento de um Estado-Nação,

e legitimá-lo como o seu fiel representante e protetor. Podem, também, ser impostas

aos indivíduos de outras nações circunscritos em um dado Estado-Nação que não

os representa. A consolidação e perpetuação das identidades nacionais, no entanto,

dependem da sua atuação em diversas dimensões sociais e do processo cognitivo

de internalização desse tipo de identidade nos indivíduos. Esse processo de

internalização, por vezes, conta com o auxílio das expressões artísticas em uma

comunidade, uma vez que elas proporcionam a ilustração da nação e da própria

identidade nacional.

A arte é uma forma simbólica de representar o real ou o imaginado, e ela tem grande

importância na construção do nacionalismo e na representação da identidade

nacional. Partindo da presunção de que o nacionalismo pode ser, de fato, criador da

identidade nacional, abre-se espaço para intuir sobre o papel que as artes podem

desempenhar nesse processo uma vez que:

Nacionalistas, com a intenção de celebrar ou comemorar a nação, são atraídos para as possibilidades dramáticas e criativas de mídia artística e gêneros na pintura, escultura, arquitetura, música, ópera, balé e cinema, bem como no artesanato. Por meio destes gêneros, artistas nacionalistas podem, direta ou evocativamente, "reconstruir" os cenários, sons e imagens da nação em toda a sua especificidade concreta e com verossimilhança 'arqueológica'.20 (SMITH, 1991, p.92, tradução nossa)

A respeito dessa ligação entre identidade nacional e a circulação artística, Jorge

Lasmar (2001) defende o papel das obras de artes, ricas em significações culturais,

como formas da narrativa nacional que, segundo ele, auxiliam na construção da

nação e da identidade nacional. O autor defende, ainda, que esse tipo de narrativa

pode ser instrumentalizada pelos poderes centrais, sobretudo estatais, que, ao

controlar a sua forma e circulação, cumprem o papel de “ensinar” aos seus nacionais

20 “Nationalists, intent on celebrating or commemorating the nation, are drawn to the dramatic and creative possibilities of artistic media and genres in painting, sculpture, architecture, music, opera, ballet and film, as well in the arts of crafts. Through these genres nationalist artist may, directly or evocatively, ‘reconstruct’ the sights, sounds and images of the nation in all its concrete specificity and with ‘archaeological’ verisimilitude.” (SMITH, 1991, p.92).

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o que significa pertencer a uma determinada nação. Esta seria a finalidade

pedagógica da instrumentalização que em conjunto com intentos discursivos:

(...) transmitem símbolos sociais que, manipulados, podem criar uma consciência coletiva e tornar a própria identidade uma ideologia e forma de representação coletiva, através da qual os sujeitos definirão a si mesmos e a seu Estado [Nação], criando um consenso e gerando dominação, à maneira das políticas culturais imperialistas. (LASMAR, 2001, p. 100).

Da mesma forma que essa instrumentalização atua nos limites territoriais, ela pode

vir a atuar fora de suas fronteiras. Uma das formas dessa atuação é através da

chamada Diplomacia Cultural21. Assim:

A circulação dos elementos que narram, e a própria narrativa do nacional tornaram-se, neste contexto, associadas à realização de “interesses nacionais”, marcando o surgimento de uma diplomacia cultural que visava, segundo Herz, apoiar a política externa dos Estados Nacionais, gerir os padrões culturais hegemônicos (historicidade) e exportar cultura (cf. Herz, 1987). (LASMAR, 2001, p. 93).

Tendo em vista que a arte é utilizada (de forma inspirada ou proposital) tanto para

trazer à vida e disseminar o nacionalismo, quanto uma forma de expressão de

escape diferente daquela tradicional, é válida a proposição de que a forma de arte a

ser tratada mais adiante nesse trabalho – a dança – é uma forma de linguagem que,

ao mesmo tempo, é representante e formadora de cultura e identidades nacionais.

Em seu texto O fluxo de arte e as relações internacionais: narrativa, circulação e

identidade nacional, Lasmar (2001) ainda faz uma distinção entre a circulação de

obras de arte na lógica westiphaliana e pós-westphaliana. A primeira representa

uma circulação estreitamente mediada pelo Estado; ele seria o único promotor

dessa diplomacia cultural. Já a segunda, refere-se ao surgimento de novos atores

internacionais que promoviam intercâmbio cultural sem necessariamente passar

pelos controles estatais. Como foi possível observar no capítulo 1, o controle estatal

sobre os fluxos culturais à época da Guerra Fria foi intenso. Cada um dos polos

21 Definida basicamente como mecanismo pelo qual divulga-se externamente a sua própria cultura e estabelece relações de natureza cultural com outros Estados.

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adotou este controle não só para evitar que expressões de uma cultura “subversiva”

se infiltrasse em seu território, como, também, lançou mão do emprego ativo e da

exportação de sua própria perspectiva cultural.

As ponderações sobre a identidade nacional realizadas até aqui se deram,

sobretudo, em uma esfera micro; no domínio individual ou da comunidade nacional.

Em um estudo de Relações Internacionais, no entanto, é interessante observar a

dinâmica entre as esferas doméstica e internacional, ou seja, avaliar como as

diferentes identidades nacionais se interagem no âmbito internacional, no nível

sistêmico, e são afetadas por ele. A teoria Construtivista nesse campo de estudo

oferece contribuições significativas para a análise dessa dinâmica.

2.2 – A QUESTÃO DA IDENTIDADE NA PERSPECTIVA CONSTRUTIVISTA

A perspectiva Construtivista das Relações Internacionais, que foca na construção

social da política internacional fornece uma base para a análise identitária em nível

sistêmico; quer dizer, em nível do sistema internacional. Emanuel Adler (1999)

aponta que “(...) os construtivistas desejam saber, em detalhe, como as normas

constituem as identidades e interesses de segurança dos atores internacionais e

transnacionais nos casos particulares.” (ADLER, 1999, p. 224). Há várias vertentes

da teoria construtivista, o que faz dela uma espécie de espectro, entretanto, adota-

se aqui a abordagem de Alexander Wendt.

Uma das principais premissas dessa teoria é o imprescindível papel das interações

sociais na construção da realidade. Isso não é dizer que as bases materiais são

inexistentes ou dispensáveis, mas implica afirmar que sem o processo de

significação, socialmente construído, a realidade não tem sentido. Dessa forma,

questões como anarquia, identidade e interesse não seriam puramente inatas, mas

construídas nas interações sociais ao longo do tempo.

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Segundo Wendt (2003), a interação pode ocorrer por meio de duas formas:

comportamental e retórica. A primeira sugere que a cooperação, em longo prazo,

gera efeito nas identidades e interesses, podendo estreitar o relacionamento entre

os atores. Assim, comportando-se de forma cooperativa, o agente reconsidera as

suas práticas, interesses e identidades e pode, também, influenciar o

comportamento de outros agentes. Já a segunda forma, também surte efeitos

similares aos anteriores, mas o faz através de outros mecanismos como a educação,

ideologia, ação simbólica, diálogo, persuasão, dentre outros. Aceita-se que os

significados compartilhados presentes no mundo social podem ser manipulados:

“Daí a importância do simbólico e das práticas discursivas que exprimem ou até

mudam ideias sobre quem somos ou sobre o que a ação coletiva é, tendo efeitos na

redefinição ou reprodução das identidades e interesses.” (TOLOSSA, 2004, p.31)

Em sua obra Social Theory of International Politics, Alexander Wendt (2003)

apresenta quatro tipos de identidade, a saber: a) Corporativa: inerente ao Eu e

independente da interação com o Outro; é a primeira diferenciação e a base para

outras identidades; b) Tipo: apresenta características que são intrínsecas ao Eu,

mas que são compartilhadas com Outros. No sistema de Estados, essas identidades

correspondem aos tipos de regime ou forma de Estado (ex.: capitalismo, socialismo,

monarquia); c) Papel: construída a partir da interação; depende do Outro. Ocupa-se

um papel na estrutura social e segue-se normas comportamentais geralmente já

institucionalizadas (ex.: professor/aluno, ídolo/fã, médico/paciente); e d) Coletiva:

envolve a identificação do Eu com o Outro e transcende a diferenciação entre eles

em um aspecto determinado. É o surgimento de uma identidade que está além da

soma das duas identidades individuais. Em uma análise micro, essa identidade

poderia se manifestar como a identidade nacional. Já no caso macro, essa

expressão poderia se dar na formação de regimes ou em movimentos de integração.

A identidade nacional seria, nesse sentido, uma mistura da identidade corporativa e

coletiva. Ao mesmo tempo em que ela é aquela que distingue uma nação da outra,

ela é construída em um processo de interação social doméstico que é mais do que a

simples soma das identidades dos indivíduos.

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Tais identidades, para Wendt (2003), originam os seguintes interesses: a) Objetivo:

interesses essenciais para a sobrevivência e perpetuação da identidade, fortemente

ligado à identidade corporativa; b) Subjetivos: interesses que refletem a crença do

ator de como alcançar as suas necessidades identitárias e configuram a motivação

para a ação. Assim,

É, em parte, porque os Estados têm certas necessidades de segurança (interesses objetivos) que eles definem seus interesses subjetivos como o fazem. O relacionamento entre os interesses objetivos e subjetivos é pré-determinado, mas, em longo prazo, uma falha persistente em alinhar e os interesses subjetivos com os objetivos levará ao falecimento do ator.22 (WENDT, 2003, p. 234, tradução nossa).

O interesse nacional se enquadra na gama de interesses objetivos do complexo

Estado-sociedade uma vez que, segundo o autor, apresenta aspectos que envolvem

a sobrevivência e/ou segurança na Nação/Estado (sobrevivência física, autonomia,

bem-estar econômico, autoestima coletiva). (WENDT, 2003). Como coloca Adler

(1999):

Os interesses nacionais não são apenas os interesses coletivos de um grupo de pessoas; nem, com raras exceções, de um único indivíduo dominante. Antes, os interesses nacionais são entendimentos intersubjetivos sobre o que se faz necessário para promover poder, influência e riqueza que sobrevivam ao processo politico, dada a distribuição de poder e conhecimento em uma sociedade. (ADLER, 1999, p. 224)

Seja como for, identidade e interesses são co-dependentes: “Sem interesses,

identidades não têm força de motivação; sem identidades, interesses não têm

direção.23” (WENDT, 2003, p. 231, tradução nossa). Ou seja, sem identidade e/ou

interesse, não há ação.

22 “It is in part because states have certain security needs (objective interests) that they define their subjective interests as they do. The relationship between objective and subjective interests is under-determined, but in the long run a persistent failure to bring subjective interests into line with objective ones will lead to an actor’s demise.” (WENDT, 2003, p. 234). 23 “Without interests identities have no motivation force, without identities interests have no direction”. (WENDT, 2003, p. 231).

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Considerando o Estado como o real agente no sistema internacional, a ele confere-

se um Eu (uma identidade) que age segundo determinados interesses; de forma

similar a um indivíduo. Ele atua na estrutura que é o arcabouço da distribuição de

conhecimento ou ideias. Essa estrutura é criada pela ação/interação dos agentes e

condiciona, de certa forma, a ação deles. As estruturas são definidas,

principalmente, por ideias compartilhadas; não só por bases materiais. Assim, a

problemática agente-estrutura evidencia a interdependência e co-constituicão entre

eles, o que proporciona um ambiente dinâmico no qual há a possibilidade de

mudança, seja no agente, seja na estrutura. (TOLOSSA, 2004)

Nesse ponto, é interessante abordar a questão da anarquia. Ao contrário do que

muitos estudiosos24 no campo das Relações Internacionais assumem, para Wendt

(1994) o caráter anárquico da estrutura não desenvolve, necessariamente, um

ambiente hostil, propenso ao conflito no qual os agentes se comportariam,

inevitavelmente, de forma egoísta. Culturas anárquicas seriam arranjos dentro dos

quais os agentes atribuem diferentes papeis uns aos outros; assim “A anarquia é o

que os Estados fazem dela.25” (WENDT, 1994, p. 388, tradução nossa). Com isso,

Wendt (1994) apresenta três possíveis espécies de culturas anárquicas: a)

Hobbesiana: atribui-se ao Outro o papel de inimigo; b) Lockeana: o Outro assume

um papel de rival; e c) Kantiana: o Outro é visto de forma amigável.

Durante a Guerra Fria, a lógica anárquica pendulou, basicamente, entre hobbesiana

e lockeana. Essa breve análise em nível sistêmico será retomada no capítulo 3,

durante o exame da instrumentalização da dança durante período trabalhado. Mas,

primeiramente, faz-se necessário compreender o estabelecimento da identidade

nacional no âmbito doméstico de cada um dos polos para, então extrapolar a análise

para o nível internacional.

24 Um exemplo seria Kenneth Waltz (1979). 25 “Anarchy is what states make of it.” (WENDT, 1994, p.388)

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2.3 - IDENTIDADE NA GUERRA FRIA

A noção de identidade nacional e o orgulho nacional, geralmente, mostram-se mais

intensos em tempos de guerra. Esta presunção é natural uma vez que esse é um

contexto no qual a integridade nacional e a própria identidade nacional,

normalmente, encontram-se ameaçadas. Nesse sentido, durante o processo de

interação entre o “Eu” e “Outro”, neste caso circunscrita em uma ótica litigiosa, a

Identidade Corporal, descrita por Wendt (2003), estaria comprometida e levaria o

Estado a agir com base em interesses básicos de sobrevivência; em interesses

objetivos. Essa percepção de ameaça à identidade corporativa estimula o

estabelecimento de um ambiente de hostil no qual predominam a desconfiança e a

autoajuda. Destarte, uma cultura anárquica do tipo hobbesiana pode ser implantada.

Sobre isso, Robert Jervis (2010) argumenta:

(...)uma identidade não pode ser completamente interna, dado que se forma em resposta a outros. Manter uma identidade implica em estabelecer limites, para separar o Eu dos Outros, para excluir, bem como para incluir (...). Por outro lado, o conflito, geralmente, leva o ator a ver o adversário de uma forma que maximiza o contraste com ele.26 (JERVIS, 2010, p. 27, tradução nossa).

Em seu texto Identity and the Cold War, Jervis (2010) diz que a identidade

americana à época da Guerra Fria incluía as noções de

“(...) democracia, individualismo e voluntarismo (...); oposição à concentração de poder; a crença em um ser superior que fornece sentido à vida; e a fé de que esse modelo [American Way of Life] pode, deve e, eventualmente, será adotado pelos demais Estados”27. (JERVIS, 2010, p.23, tradução nossa).

26 “(...) an identity cannot be completely internal because it forms in response to others. To hold an identity is to set boundary, to separate Self from Others, to exclude as well as include (...). Conversely, conflict usually leads the actor to see the adversary in a way that maximizes contrast with it.” (JERVIS, 2010, p. 27.). 27 “(...) democracy; individualism and voluntariarism (...); opposition to concentrated power, especially when wielded by the government; the belief in a supreme being the suplies mesning to life; and faith that this modelor way “way of life” can, should, and eventually will be adopted by others as well.” (JERVIS, 2010, p. 23).

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De forma mais abrangente, a identidade estadunidense é marcada pelos princípios

apresentados pelo Destino Manifesto. Ele representa uma doutrina apoiada em

preceitos religiosos, principalmente protestantes, para legitimar a expansão e o

crescimento da nação:

Deus escolheu a América para que aqui se construísse a sede do paraíso terrestre, por isso, a causa da América será sempre justa e nada de mal jamais lhe será imputado. Os colonos são os verdadeiros herdeiros do povo eleito, pois prestavam a Santa Fé. Nossa missão é liderar os exércitos de luz em direção aos futuros milênios. (Pregações Puritanas em Nova Jersey,1660 apud OLÍMPIO & MAIA, 2006, p. 7)

Uma premissa impregnada por um respaldo religioso de messianismo mundial cria

raízes profundas na identidade nacional que podem ser mais resistentes ao tempo e

às transformações. Assim:

Apesar de o termo ter sido utilizado pela primeira vez em meados do século XIX por John O’Sullivan em ensaio sobre a anexação do Texas, o espírito do Destino Manifesto é ainda mais antigo e carrega fortes significados no imaginário estadounidense. (...). A doutrina foi amplamente utilizada por políticos, meios de comunicação e até hoje deixa vestígios no espírito do cidadão estadounidense. Este sentimento é ainda perceptível nas condutas militares, econômicas e políticas, principalmente no que diz respeito às relações externas do país. (COSTA, 2011, p. 2268).

Percebe-se que, pela elaboração e difusão dos preceitos presentes no Destino

Manifesto, a identidade estadunidense, determinada em grande medida pelo texto,

foi desenhada por um grupo de pessoas. E essa é a identidade corporativa dos

EUA; identidade que os distinguem dos demais. Notando a necessidade de uma

coesão social no novo mundo, esse discurso nacionalista foi propagado e, em

processos de interação social, assimilado pelos então colonos. Isso os ajudou a

constituir uma sociedade que se diferenciava das populações nativas e, justificar

movimentos expansionistas e ataques contra tais populações.

A identidade soviética, por sua vez, foi “(...) construída ao redor do proletariado, da

centralidade do conflito entre classes, e da transformação de indivíduos e

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34

sociedades.28” (JERVIS, 2010, p.23, tradução nossa). Em certa medida, a identidade

soviética foi desenvolvida pela intelligentsia29 russa em contraposição à identidade

que, então, representava a face do capitalismo. O socialismo soviético seria, assim,

uma alternativa ao capitalismo. (JERVIS, 2010, p.23).

A ideia inicial dos soviéticos era a superação das identidades nacionais e a

comunhão da classe trabalhadora em uma identidade de companheiros. O

pensamento comunista pressupõe que os Estados são ferramentas de dominação

da classe burguesa. Disso deriva a noção de que, com a propagação do comunismo

pelo mundo, os Estados, eventualmente, seriam extintos. Entretanto, a imposição de

um novo modelo de organização política e social em territórios bastante

heterogêneos não foi simples, e uma guerra civil sucedeu a Revolução de Outubro.

Para não serem rotulados de imperialistas, acalmar as agitações nacionais e manter

a integridade dos territórios do antigo império russo, os revolucionários optaram por

manter e valorizar as diferentes nacionalidades, não impondo de forma brusca e

evidente uma identidade única.

Assim, a solução federalista levou à criação da União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas como uma entidade que consistia em “(...) quinze repúblicas nacionais,

incluindo milhares de territórios nacionais pelo vasto espaço do antigo Império

Russo.30” (HAMM, 2009, p. 16, tradução nossa). Cada território teria uma língua

própria e uma cultura nacional distinta, entretanto a “Cultura nacional tinha que ser,

por definição, nacional em forma, [e] socialista em conteúdo.31” (HAMM, 2009, p. 16,

tradução nossa). Isso implica dizer que, apesar de poderem expressar uma língua e

cultura próprias, os territórios não tinham poderes reais: “Os Bolcheviques sempre

28 “(...) being built around the proletariat, the centrality of class conflict, and the transformation of individuals and societies.” (JERVIS, 2010, p.23). 29Em um senso comum, o termo é compreendido como a classe da elite intelectual. No entanto, Bernardini (2007) afirma que o termo russo refere-se à “(...) uma categoria social muito peculiar de homens e mulheres, definida por um critério não de classe, mas de consciência.” (BERNARDINI, 2007, p. 109). 30“(...) of fifteen national republics, including thousands of national territories across the vast space of the former Russian Empire.” (HAMM, 2009, p. 16) 31“National culture had to be, by definition, “national in form, socialist in content”. (HAMM, 2009, p. 16)

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pretenderam governar o Estado como uma entidade política centralizada (...).32”

(HAMM, 2009, p. 17, tradução nossa). Nesse cenário, o território e cultura russos

atuariam como um agente unificador e o centro de comando, uma vez que foram

eles os precursores da Revolução de Outubro. Destarte, mesmo mantendo seus

próprios referenciais culturais, as minorias nacionais tiveram que aprender a língua

russa e incorporar parte dessa cultura. Nota-se, então, o cultivo de uma interação

do tipo retórica: a manipulação de certos elementos simbólicos e significados

compartilhados levaram a certa conformidade das nacionalidades presentes na

URSS.

Assim, estar em território soviético significava, na prática, ter mais de uma identidade

nacional: a identidade do território específico do qual o indivíduo era originário e a

identidade soviética. E, como a identidade soviética foi em grande parte ditada pelos

russos, não é difícil de imaginar que crises/conflitos de identidades ocorreram dentro

da União Soviética. Tratando-se desse arranjo específico, cabe dizer que as

identidades corporativa e coletiva estão significativamente conectadas. Por um lado,

a identidade corporativa de cada república e por outro a identidade coletiva das

várias repúblicas da União. Em uma perspectiva global, a identidade soviética

representaria, ainda, uma identidade corporativa per se pelo fato de a União

Soviética atuar como um único bloco político.

A URSS percebia a si mesma como um ente igual aos EUA em questão de poderio

internacional (uma superpotência). Esse ponto é um pouco mais complexo uma vez

que, por vezes, alguns soviéticos (principalmente líderes), por se considerarem uma

grande potência, agiam de forma concomitante aos seus pares estadunidenses, e

não de acordo com os princípios socialistas. Isto é, por identificar-se como um par

dos EUA na arena internacional, a URSS definiu seus interesses com base nessa

identidade de superpotência e não tanto nos preceitos comunistas, e agiu de acordo.

Isso gerou impacto no que concerne a atuação internacional da URSS, que buscou

os mesmos “direitos” de atuação internacional que os EUA (ex.: intervenções no

32“The Bolsheviks had always intended to run the state as a centralized political entity (...)” (HAMM,

2009, p. 17)

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terceiro mundo e no oriente médio; construções de bases em outros territórios, etc.)

(JERVIS, 2010).

Como a República Socialista Federativa Soviética da Rússia (RSFSR) foi a república

central da URSS, cabe observar alguns aspectos de sua identidade nacional. Mário

Machaqueiro (2007) apresenta o predomínio na Rússia, desde a época imperial, do

familialismo, que representa a transferência de relações intrafamiliares para o

domínio social-político. Segundo esse autor, na Rússia esse elemento é perceptível

“(...) quando, por exemplo, o czar da Rússia é identificado como um “pai da nação”,

ou quando os dirigentes comunistas, Lénine e Stáline [Lênin e Stalin], são

representados com o estatuto de “pais dos povos”.” (MACHAQUEIRO, 2007, p. 143).

Considerando o fato que a Rússia enfrentou forte crise econômica durante os anos

1990, com o fim da URSS, e que a situação foi estabilizada durante o governo de

Vladimir Putin – que permanece no cargo de chefe de Estado da Rússia e/ou

próximo ao poder central desde 1999 – não é absurdo cogitar a possibilidade de que

ele, também, seja visto, de certa forma, como uma figura paternal e messiânica para

os russos. (HILL; GADDY, 2012).

Contrapondo as perspectivas identitárias das potências, Jervis (2010) oferece uma

análise relativa às similaridades e assimetrias entre elas. Segundo o autor, a

possibilidade de disseminação dos valores inerentes de sua identidade nacional; o

fato de as identidades se basearem em ideias; a crença de que são porta-

estandartes para o progresso e modernidade, e modelos a serem seguidos pelos

demais Estados do mundo são pontos de convergência entre as identidades norte-

americana e soviética. Além disso, ambas as ideologias supõem que a política

externa de seu Estado está estreitamente ligada aos seus respectivos sistemas

domésticos e que as premissas precisam estar bem arraigadas para que o seu

sucesso seja real:

Um balanço de poder pode, temporariamente, gerar paz e segurança, mas pelo papel primário da natureza do regime doméstico, o mundo só seria seguro para a democracia (para os EUA) ou para o comunismo (para a

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URSS) se este [ou aquele] se tornasse dominante, se não universal, ao

redor do mundo.33 (JERVIS, 2010, p.25, tradução nossa).

Dessa forma, essas similaridades contribuíram para o estabelecimento de um

ambiente hostil; elas ajudaram na consolidação de acordos provisórios, mas não em

uma cooperação profunda e de longo prazo. Cada agente atribuiu ao Outro o papel

de inimigo e uma cultura anárquica hobbesiana pode, então, ser implantada. Essa

percepção da influência do âmbito doméstico na dinâmica da política internacional

“(...) implica que o conflito internacional só pode acabar quando as crenças

fundamentais do opositor e seus arranjos domésticos mudarem”.34 (JERVIS, 2010,

p.26). Entretanto, uma crença comum impediu a eclosão total do conflito: a crença

de que o tempo é um fator benéfico, ou seja, quanto mais tempo o conflito de

aniquilação total fosse adiado, melhor seria. Isso se traduziria na sua própria

sobrevivência e na probabilidade de vitória.

Nesse ponto, é possível interpretar que a percepção de que suas identidades

corporativas estariam em ameaça constante simplesmente pela existência de um

polo opositor, seria justificável, então, que o interesse objetivo fosse dirigido à

proteção da própria identidade (corporativa), e as ações derivadas desse interesse

fossem contrárias, e até agressivas, ao ameaçador. Quando o ambiente hostil se

tornou o fator ameaçador (a iminência de uma guerra nuclear), os interesses

objetivos de autoproteção se manifestaram em uma forma mais amena de tratar o

opositor, o que propiciou a instalação de uma cultura anárquica do tipo lockeana nos

períodos de distensão, notadamente durante a Deténte.

Quanto às assimetrias, Jervis (2010) aponta as seguintes como principais:

a) A identidade soviética foi desenhada e imprimida de maneira vertical e isso

põe em questionamento o quanto dessa identidade foi de fato absorvida pela

33 “A balance of power might temporarily yield Peace and security, but because of the primary role of the nature of the domestic regime, the world could be made safe for democracy (for the United States) or for Communism (for the Soviet Union) only if it became dominant if not universal throughout the world.” (JERVIS, 2010, p.25). 34 “(...) implies that the international conflict can end only when the other’s fundamental beliefs and domestic arrangements change”. (JERVIS, 2010, p.26).

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população das diversas repúblicas. O que, por sua vez, pode ter feito com

que líderes soviéticos fossem mais intervenientes e rigorosos em relação

àquilo que seus cidadãos seriam expostos (exposição de elementos dentro e

fora de seus limites);

b) Cidadãos americanos estariam menos conscientes de sua identidade

americana do que os soviéticos, o que teria propiciado certa flexibilidade

política e resistência de uma identidade mais individual nos EUA;

c) A identidade soviética espelhava não só aquilo que ela era, mas carregava

consigo aquilo que aspirava ser, enquanto a identidade americana refletia a

versão idealizada do que era. Dessa forma, a probabilidade de decepção é

maior na não realização da identidade soviética do que na americana e;

d) A identidade soviética nasceu de uma ideologia explícita que antecede a

própria criação da URSS e em contraposição à ideologia capitalista. Já a

identidade americana se desenvolveu de modo gradual, em diferenciação,

principalmente, da identidade britânica.

De forma geral, ambos os polos só eram capazes de se posicionarem

internacionalmente como superpotências a partir da mobilização de recursos

domésticos. Aqui entra a noção de que a validação interna para os seus desígnios

era essencial e, parte dessa mobilização, passava pela corroboração dos indivíduos

que compõem cada um dos lados, o que toca na internalização subjetiva de uma

identidade compartilhada. Além disso, o fato de o sistema internacional ter sido

configurado como bipolar não foi suficiente para justificar a percepção do polo

oposto como uma ameaça; a percepção de ameaça e a insegurança são fenômenos

subjetivos que perpassam a estrutura cognitiva individual. Isso faz com que boa

parte das hostilidades observadas durante a Guerra Fria entre os EUA e a URSS

seja produto de percepções compartilhadas. (JERVIS, 2010).

As identidades teriam formação interna e externa (sensação e percepção interna, e

rotulação externa). Ver o “Outro” como diferente do “Eu” e acentuar tais diferenças

pode levar à criação de um ambiente hostil. Por outro lado, quando se tem um

conflito, que não tenha bases iniciais na questão da identidade, as diferenças

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identitárias podem ser exacerbadas para que se “legitime” o conflito. O conflito

poderia, assim, criar e/ou solidificar a identidade nacional. Assim, uma cultura

anárquica do tipo hobbesiana só se instalou porque os Estados, no processo de

interação, se identificaram como inimigos e agiram como tal.

A internalização de uma dada identidade não só determina interesses e ações,

como, também, engendra expectativas nos sujeitos; expectativas de auto realização

de sua própria identidade e da conduta dos Outros. Deste modo, a não

concretização das promessas de uma vida próspera e feliz, preditas na identidade

nacional de e feita por ambos os lados à época da Guerra Fria, culminou em altos

níveis de frustração e se expressou nos movimentos de contracultura discutidos

anteriormente. Da mesma forma, o modo como a política foi conduzida na URSS

(não seguindo estritamente os pressupostos comunistas) levou à frustração de

intelectuais e revolucionários com o regime soviético.

Ainda vale notar que as identidades corporativa, de tipo, de papel, e coletiva se

manifestaram em cada uma das superpotências. Nos EUA, a identidade corporativa

estava fundamentada nos preceitos do Destino Manifesto e foi sendo solidificada ao

longo do tempo, mas por ser um país basicamente formado por imigrantes, a

internalização dessa identidade se deu em diferentes graus nas diversas etnias e

grupos ali presentes. A identidade de tipo edificava-se em pressupostos de uma

sociedade democrática/capitalista e a de papel se mostrava como uma identidade

oposta ao bloco soviético seja como inimigo ou rival. Por último, a identidade coletiva

era, em parte, compartilhada com mundo ocidental sob a orbita estadunidense.

Já na URSS, a identidade corporativa revelava-se em uma espécie de sincretismo

entre as identidades nacionais presentes nas repúblicas soviéticas e a identidade

soviética forjada pela república central (RSFSR), mas ainda assim era fortemente

baseada nas características e na luta do proletariado. A identidade de tipo erguia-se

em conjecturas socialistas/comunistas e a de papel era a identidade de

contraposição aos EUA e ao mundo capitalista. Por fim, a identidade coletiva era

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aquela compartilhada entre as repúblicas da própria URSS e no mundo oriental

socialista, a identidade soviética per se.

Durante todo o período em questão, os interesses estatais objetivos e subjetivos

foram moldados pelas identidades que os polos apresentavam. Eles foram

remodelados a medida em que a percepção de si mesmo e do outro se modificavam

nas interações entre eles. Um tipo particular de ação movida pelos interesses, e

mais cara aos propósitos do presente trabalho, foi a instrumentalização da dança

como uma ferramenta de consolidação identitária e, principalmente, como uma

embaixadora cultural. Ela foi usada não só para amenizar as relações entre as

superpotências; ela também serviu como mais uma arena de combate entre os EUA

e a URSS. Para que esse tipo de competição fosse possível era necessário que

houvesse o compartilhamento de um conjunto de conhecimento técnico e valores

artísticos. Nesse sentido, a dança representou uma linguagem compreensível a

ambos os polos, mas que, em uma tentativa de demonstração de superioridade,

ganhou contornos nacionalistas e foi exportada para além da cortina de ferro. Assim,

essa forma de arte, fortemente presente no antigo Império Russo, foi adaptada para

comportar aos novos valores socialistas da então URSS e foi utilizada pelos EUA em

seu projeto de disseminação cultural durante a Guerra Fria.

3 - A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA DANÇA NA GUERRA FRIA

Até aqui analisamos a questão da identidade, principalmente identidade nacional, no

âmbito da Guerra Fria. Essa discussão se fez necessária para que fosse possível

avaliar momentos nos quais a dança, sobretudo a dança clássica, foi

instrumentalizada a fim de redefinir e assegurar a identidade de cada um dos polos

tanto internamente quanto internacionalmente, agindo como uma ferramenta de

diplomacia cultural. Para tanto, opta-se focar nos momentos em que o financiamento

governamental direto se fez presente na promoção da dança, em uma ótica

westiphaliana da circulação de obras de arte, apresentando esse aspecto em cada

um dos polos separadamente.

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3.1 – A DANÇA CLÁSSICA NA URSS

Durante o período imperial, o balé clássico era o ornamento mais reluzente na coroa

czarista e refletia todo o esplendor do regime. O balé imperial russo concentrava-se,

basicamente, nas companhias de dois teatros: O Teatro Mariinsky de Opera e Ballet

em São Petersburgo35, e o Teatro Bolshoi em Moscou. Ambos eram financiados pelo

sistema imperial. A Revolução de Outubro de 1917, ao romper bruscamente com tal

sistema, ameaçou a própria existência do balé e a imprevisibilidade do futuro dessa

arte na Rússia pós-revolucionária fez com que vários dançarinos e coreógrafos

emigrassem, sobretudo, para países ocidentais (EZRAHI, 2012)

A proposta Bolchevique era uma completa revolução, inclusive no âmbito cultural. A

política cultural soviética consistia na superação do atraso vivido pela população do

antigo império russo e na aspiração de uma nova civilização com uma total

transformação cultural da sociedade: a civilização soviética. Para isso, o governo

então estabelecido apropriou-se de diversas manifestações artísticas – dentre elas,

o balé – e as popularizou para remodelar a consciência social, e para promover a

aliança política ideológica. Sobre isso, Christina Ezrahi (2012) coloca:

Por um lado, as artes se beneficiaram com forte apoio estatal e com a promoção estatal de uma mentalidade de apreciação pelas conquistas culturais como um valor central da civilização Soviética. Por outro lado, restrições foram colocadas no desenvolvimento artístico pela tentativa ideológica do regime de controlar a criação artística. 36 (EZRAHI, 2012, p. 4, tradução nossa)

O balé, nesse ambiente, sofreu pressões para abandonar o formalismo técnico da

dança clássica, adaptar-se e representar dramaticamente o Realismo Soviético37.

35 Após a Revolução de Outubro, a cidade seria renomeada para Leningrado. 36 “On the one hand, the arts benefited from strong state support and from a state-sponsored mindset that promoted a high regard for cultural achievements as a core value of Soviet civilization. On the other hand, constraints were put on artistic development by the regime’s ideologically driven attempt to control artistic creation.” (EZRAHI, 2012, p. 4) 37 Realismo soviético era uma espécie de propaganda ideológica que servia para demonstrar a vida como ela deveria ser: uma vida feliz, na qual trabalhadores, camponeses e diferentes nacionalidades

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Essa provou ser uma tarefa extremamente complicada uma vez que tal formalismo

técnico é intrínseco ao balé; a dança clássica é a essência da arte em si. Nesse

momento surgiu o gênero Drambalet, no qual a preferencia era dada ao conteúdo da

narrativa em detrimento da dança; a magnitude da dança só seria usada nos

momentos em que a narrativa a justificasse, como em celebrações de casamentos.

Tal gênero, estandarte do balé Stalinista, limitava o vasto vocabulário da dança

clássica e abria espaço para o uso de danças folclóricas das mais diversas

nacionalidades circunscritas na URSS em grandes produções. (EZRAHI, 2012)

A possibilidade de uso de danças folclóricas em balés foi importante para a

propaganda governamental ao criar uma imagem de irmandade entre as várias

nacionalidades. Com a morte de Stalin em 1953, a ascensão de Nikita Khrushchev e

suas reformas, as politicas nacionalistas abriram mais espaço para a influência e

igualdade entre as repúblicas presentes na URSS, ao mesmo tempo em que

promoviam a integração entre elas, principalmente no que tange à sua

representação internacional. Nesse ambiente, a criatividade no balé pode ser um

pouco mais explorada, mas a pressão para a produção de balés de conteúdo

socialista permaneceu constante. Um ótimo exemplo de celebração de identidade

nacional através da dança na URSS é o evento promovido em Moscou denominado

dekada – dez dias de celebração da arte e literatura de uma determinada

nacionalidade. Os artistas que se destacavam, eram levados para estudar em

Moscou ou Leningrado, e retornavam à sua terra natal para desenvolver a dança em

sua região após a formatura. Entretanto, aqueles destaques excepcionais poderiam

ser convidados a compor as companhias russas (ex.: Rudolf Nureyev no Kirov

Ballet). Assim, a dekada servia, também, para demostrar o investimento do governo

central na área artística das repúblicas periféricas da URSS. (HAMM, 2009)

Nesse sentido, é possível supor que a forma de interação entre a RSFSR e as

demais repúblicas da União Soviética se deu por meio retórico, tanto no período

inicial quanto no comando de Khrushchev. O incentivo à cultura nacional e à língua,

se uniam em camaradagem fraternal para construir o socialismo de forma bem sucedida e colher os frutos de seu trabalho. (EZRAHI, 2012, p. 30)

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a construção de escolas e incentivos às artes locais, assim como o discurso de

camaradagem e fraternidade sob os auspícios da ideologia comunista podem ser

vistos como mecanismos de interação a que serviram para estreitar as relações

entre as repúblicas da URSS. Indica-se, assim, o surgimento de uma identidade

coletiva: a identidade soviética.

A Guerra Fria adicionou a dimensão internacional no projeto cultural soviético. A arte

produzida na URSS deveria ser claramente distinta e superior à arte produzida nas

democracias capitalistas. Aqui, o balé tornou-se realmente um assunto de Estado. A

popularização do balé e outras artes na URSS contribuíam para o argumento

soviético de que a Revolução de Outubro transformou as massas soviéticas nas

mais bem educadas e cultas do mundo. Tamanho era o orgulho dos soviéticos em

relação às suas artes performáticas que o balé, por exemplo, era exibido aos líderes

estrangeiros durante visitas oficiais. Como coloca Kristen Hamm (2009):

“(...) membros de alto escalão tanto do governo soviético quanto estrangeiros frequentemente iam assistir balés, não porque eles eram pessoalmente devotos às artes, mas porque concertos de balé serviam como um campo onde poder, domínio e ideais do socialismo soviético eram apresentados através da demonstração da superioridade do balé soviético. O fato de líderes estrangeiros de Ribbentrop, Gheorgiu-Dej, Tito e Mao ao presidente Kennedy foram obrigados comparecer às essas performances (em ambos os sentidos da palavra) atesta para o fato de que balé era uma poderosíssima ferramenta para a União Soviética.38” (HAMM, 2009, p. 33, tradução nossa)

A força do balé dentro da URSS era tão grande que turnês internacionais de

companhias como Bolshoi e Kirov Ballet passaram a ser promovidas pelo governo

soviético, tornando o balé, assim, um oficial embaixador cultural. A turnê de Londres

em 1956 representou a primeira apresentação do Bolshoi Ballet fora da Rússia em

200 anos. A aproximação cultural com a Europa ocidental, exemplificada pela turnê

38 “high-ranking members of both the Soviet and foreign governments alike often attended ballets, not necessarily because they themselves were personally devoted to the arts, but because ballet concerts served as sites where power, dominance, and ideals of Soviet socialism were performed by means of demonstrating the superiority of Soviet ballet. That foreign leaders from Ribbetrop, Gheorgiu-Dej, Tito, and Mao to President Kennedy were obliged to attend such performances (in both senses of the word) attests to the fact that ballet was an immensely powerful tool for the Soviet Union.” (HAMM, 2009, p. 33)

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do Bolshoi na Inglaterra em 1956 e do Kirov Ballet em Paris em 1961, pode ser

encarada como uma tentativa de conseguir simpatia política no continente; de

construir uma cultura anárquica Kantiana (o Outro como amigo), onde predominava

a cultura Lockeana (o Outro como rival). A Rússia identifica-se muito mais com a

herança cultural europeia do que asiática, o que sinaliza uma espécie de identidade

coletiva (“identidade europeia”). Além disso, a estratégica posição da Europa

Ocidental faz dela um alvo a ser conquistado. Tanto é que a questão da divisão de

Berlim, e da Alemanha como um todo, permaneceu um impasse até praticamente o

fim da Guerra Fria. Assim, “Na competição entre os Estados Unidos e a União

Soviética, a Europa Ocidental era o principal campo de batalha e as almas dos

europeus ocidentais eram o cobiçado prêmio.39” (EZRAHI, 2012, p. 139, tradução

nossa)

Em 27 de Janeiro de 1958, o primeiro acordo de intercâmbio cultural entre a URSS e

os EUA foi assinado (Acordo entre os Estados Unidos da América e da União das

Repúblicas Socialistas Soviéticas em Intercâmbio nos campos Cultural, Técnico e

Educacional40), e como era um acordo do poder executivo, e não um tratado, não

houve a necessidade de ratificação deste pelo poder legislativo estadunidense. Vale

notar que o momento do estabelecimento desse acordo coincide com a mudança na

gestão interna da URSS – de Stálin para Khrushchev – o que indica uma mudança

de interesses derivada de um ajuste na identidade soviética. Isso provavelmente foi

o fator que propiciou a transição de uma cultura anárquica entre os dois polos de

hobbesiana (inimigos) para a lockeana (rivais).

A primeira apresentação de um grupo soviético em território norte americano foi a da

Companhia de Dança Igor Moiseyev em 1958. No ano seguinte, foi a vez do Bolshoi

se apresentar em terra yankee. Além de permitir redefinir a sua própria imagem e

afirmar sua identidade em territórios estrangeiros, as turnês propiciaram a

contraposição de estilos e técnicas. Ademais, eles permitiram que os soviéticos

39 “In the competition between the United States and the Soviet Union, Western Europe was the main battleground and the souls of Western Europeans were the coveted prize.” (EZRAHI, 2012, p. 139) 40 “Agreement between the United States of America and the Union of Soviet Socialist Republics on Exchanges in the Cultural, Technical, and Educational Fields.” (PREVOTS, 1998, p.69)

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pudessem observar a realidade do outro lado da cortina de ferro. Alguns se

encantaram pelo que viram (ex.: Igor Moiseyev e Rudolf Nureyev) e foram

repreendidos, outros não se maravilharam tanto (ex.: Galina Ulanova). Seja como

for, o fato é que todos que participaram das turnês foram impactados de uma forma

ou de outra. E mesmo com a tentativa do KGB de minimizar ao máximo o contato

dos artistas com o mundo capitalista, alguns não resistiram e atravessaram de vez a

cortina. A deserção de famosos bailarinos como Rudolf Nureyev (Paris, 1961),

Natalia Makarova (Londres, 1970) e Mikhail Baryshnikov (Toronto, 1974)

representou um terrível golpe para a URSS. Ao apresentar como a principal razão

da deserção o crescimento e desenvolvimento artístico, os bailarinos colocaram em

xeque a legitimidade do balé soviético e o nível repressão dentro da URSS.

(CAUTE, 2005)

O sucesso das turnês socialistas em territórios ocidentais traduziu-se,

principalmente, na aclamação dos bailarinos soviéticos. Ainda que o balé não fosse

uma arte muito popular nos EUA, os ingressos das apresentações, na maioria das

vezes, ficaram esgotados e as transmissões televisivas ajudaram a difundir a

grandiosidade do balé soviético no país. Isso induz a conclusão de que a

instrumentalização da dança clássica por parte do regime soviético foi, em grande

medida, bem sucedida. Eles arrecadaram divisas com as apresentações,

conseguiram amenizar a imagem da URSS pelo mundo expondo seus mais

celebrados bailarinos, e abriram espaço para o aprofundamento da cooperação

ocidente – oriente no âmbito cultural, dentre outros. Muitos americanos tiveram que

repensar a noção que tinham da URSS, do comunismo e do papel das artes na

política externa. (EZRAHI, 2012)

3.2 – A DANÇA NOS EUA

Como o observado anteriormente, a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia

acarretou a emigração de coreógrafos e bailarinos. Parte deles estabeleceu-se nos

EUA e influenciaram fortemente a dança clássica no país. Nomes como George

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Balanchine, fundador do New York City Ballet, e Mikhail Mordkin, idealizador do

American Ballet Theater são exemplos desse movimento. (HAMM, 2009, p. 11)

Dessa forma, o treinamento de grandes dançarinos norte-americanos foi pautado na

história e técnicas de mestres russos, o que levou à uma forte identificação e,

provável, empatia destes com as raízes russas da União Soviética. (CROFT, 2009)

O que realmente distinguia o balé soviético daquele desenvolvido nos EUA durante

o século XX, e em outros países ocidentais, era a importância dada à dança clássica

em si. Enquanto na União Soviética a criação do gênero Drambalet, que dava

preferência à narrativa/conteúdo e interpretação mais real possível das emoções

humanas no balé, nos EUA, a dança era o elemento principal. O abando da narrativa

era quase que completo e a abstração, musicalidade e precisão técnica

sobressaíam. Opulência cenográfica, passos grandiosos e expressivos de um lado,

o minimalismo, passos curtos, rápidos e precisos do outro: essa clara distinção

possibilitou a criação da identidade da dança, em cada um dos polos, e a rivalidade

entre os gêneros no cenário internacional. (CAUTE, 2005, p. 465)

No início dos anos 1950, a imagem estadunidense estava nacionalmente e

internacionalmente deteriorada devido a Guerra Fria, ao Macarthismo, à segregação

racial e violação de direitos civis, à Guerra da Coréia, à bomba, e outros fatores.

Assim, em um ambiente hostil (cultura anárquica hobbesiana) e com possibilidade

de guerra mundial, fez-se necessária a criação de mecanismos que amenizassem a

tensão no cenário e melhorassem a imagem norte americana. Bem como a URSS,

os EUA usaram as artes como ferramentas de diplomacia cultural durante grande

parte da segunda metade do século XX, dentre elas a dança. Para que a ativa

promoção de turnês pelo lado norte-americano se concretizasse, o Fundo de

Emergência de Eisenhower (Eisenhower’s Emergency Fund), aprovado em 1954, foi

de importância ímpar. Ele destinava “(...) $2.250.000,00 para apresentações

americanas de dança, teatro, música e esportes no exterior (...) 41” e “(...) à Agência

de Informações dos Estados Unidos [USIA], criada em 1953, foi concedido

41 “(...) $2,250,000 for presentations of American dance, theater, music, and sports abroad (...)” (PREVOTS, 1998, p.11)

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$157.000,00 para ajudar divulgar eventos de artes performáticas e esportes.42”.

(PREVOTS, 1998, p.11, tradução nossa)

Com o estabelecimento do Fundo, verificou-se a necessidade de uma estrutura que

estivesse apta a julgar o valor artístico das produções a serem exportadas,

selecionar e cuidar de toda a operacionalização do processo. Assim, foi assinado um

contrato entre o Departamento de Estado e O Teatro e Academia Nacionais

Americanos (American National Theater And Academy – ANTA), que contava com

um Painel para Dança. Apesar de ser uma estrutura separada, a ANTA, em algumas

ocasiões, foi influenciada pelos interesses do Departamento de Estado, como

exemplifica o envio de Martha Graham para a Ásia em 195543. Os EUA, percebendo

que sua identidade corporativa poderia estar sob ameaça devido à situação na

Ásia44, onde tinha grande interesse estratégico e militar, definiu como interesse

subjetivo se estabelecer melhor na região45. Assim, como expõe Prevots (1998): “O

Departamento de Estado deixou claro para a ANTA que a Ásia era uma área de

preocupação onde questões políticas e militares eram primordiais e que a

exportação cultural poderia ser valiosa.46”. (PREVOTS, 1998, p.44, tradução nossa)

Confirma-se aqui a importância da dança para a concretização dos interesses

nacionais estadunidenses.

Com destino à América Latina, a Companhia José Limón foi a primeira a ser

exportada, em 1954, com o auxílio do Fundo47. O primeiro grupo de dança de afro-

americanos, Carmen de Lavallade-Alvin Ailey American Dance Company, foi

42“(...) the United States Information Agency (USIA), which had been created in 1953, was granted $157,000 to help publicize performing arts and sports events.” (PREVOTS, 1998, p.11)

43 Durante a turnê, além de se apresentar, Graham lecionou classes demonstrando a sua técnica e participou eventos sociais e diplomáticos. Assim. Trabalhou para imprimir uma imagem favorável da cultura norte americana na região. (PREVOTS, 1998) 44 A região estava instável e contava com forte presença do comunismo (russo, chinês, etc), recente conflito das Coreias e do Vietnã, e recente independência de países como Índia, Indonésia, e Burma também comprometiam a inserção estadunidense na região. 45 O interesse objetivo, nesse cenário, seria a manutenção de sua influência na região. Se fixar no local era a forma como o EUA asseguraria esse interesse primário. 46 “The State Department made it clear to ANTA that Asia was an area of concern one where political and military issues were paramount and cultural export could be valuable.” (PREVOTS, 1998, p.44) 47 Especula-se que a escolha do destino foi graças à preocupação norte americana em relação aos

países não alinhados a nenhuma ideologia ou contrários às ações estadunidenses; um movimento para aproximá-los como o foi a Política da Boa Vizinhança.

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enviado para a turnê no Oriente Distante (Australia, Japão, Vietnã, Burma,

Indonésia, Hong Kong, Formosa, etc.), em 196248. Ambas iniciativas foram bem

sucedidas.

Três companhias de balé atravessaram a cortina de ferro e foram enviadas para a

União soviética sob o Acordo entre os Estados Unidos da América e da União das

Repúblicas Socialistas Soviéticas em Intercâmbio nos campos Cultural, Técnico e

Educacional, de 1958: o American Ballet Theater (1960), o New York City Ballet

(1962) e o Robert Joffrey Ballet (1963). Essas empreitadas foram bem sucedidas

embora houvesse certa discrepância entre a aprovação da audiência e os resultados

das bilheterias, e aquilo que era retratado na mídia soviética, que admitia a

consistência técnica, mas criticava a falta emoção do balé americano. (PREVOTS,

1998)

A turnê do New York City Ballet foi a mais emblemática de todas devido ao fato do

seu fundador ser o emigrado russo George Balanchine e, enquanto o grupo estava

em turnê na URSS, a Crise dos Mísseis de Cuba teve início. Sobre esse episódio,

Clare Croft (2009) diz:

Em face a uma possível guerra, a situação da companhia era realmente precária. Estar no coração do território do suposto inimigo pode, na verdade, ter protegido os bailarinos da crise, porque eles não experenciaram a ansiedade então presente nos Estados Unidos, e não possuíam competências linguísticas suficientes para serem capazes de discernir a opinião Soviética.49 (CROFT, 2009, p. 436, tradução nossa)

Apesar de terem sido enviados como representantes da identidade cultural

americana, muitos bailarinos americanos, sobretudo do New York City Ballet,

48 Para os bailarinos negros, o mundo da dança moderna era muito mais receptivo do que o mundo da dança clássica. Ainda assim, muitos dançarinos afro-americanos sofreram preconceito e ouviram que não tinham o corpo adequado para a dança. Indaga-se que essa iniciativa só se concretizou devido à crescente mobilização social a favor do fim da segregação racial e da importância de sua herança cultural para a dança americana. (PREVOTS, 1998) 49 “In the face of possible war, the company’s situation was truly precarious. Being in the heart of allegedly enemy territory may actually have shielded the dancers from the crisis, because they did not experience the anxiety current in America and did not possess sufficient language skills to be able to discern Soviet opinion.” (CROFT, 2009, p. 436)

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identificaram-se bastante com os soviéticos no quesito dança clássica. Seus

mestres, muitas vezes, vinham de uma tradição russa e a linguagem do balé

transcendia (e ainda transcende) as barreiras nacionais. Dessa forma, em contato

com o berço do esplendor do balé clássico, os dançarinos experimentaram uma

identidade híbrida que revelou um nível no qual a identidade do balé americano não

podia ser desvencilhada da identidade do ballet russo. (CROFT, 2009) Em bases

teóricas, essa identidade híbrida pode ser associada à criação de uma identidade

coletiva no balé, partilhada entre os EUA e a URSS por mais que eles quisessem

diferenciar-se e sobrepor um ao outro no campo da dança. Essa identificação pode

não ter sido o principal interesse das superpotências, mas é plausível supor que tal

fato semeou maior tolerância entre elas e auxiliou no processo de amenização do

conflito.

Embora a dança não tenha sido utilizada em território americano com a finalidade de

assegurar a sua própria identidade internamente, como a URSS o fez, o impulso de

exportar a dança serviu para que ela fosse valorizada domesticamente. O

reconhecimento do potencial das artes performáticas auxiliou no processo de

construção do National Culture Center (John F. Kennedy Center for the Performing

Arts), erguido em Washington e inaugurado em 1971. (PREVOTS, 1998)

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CONCLUSÃO

A proposta do presente trabalho foi analisar a instrumentalização da dança durante a

Guerra Fria, levando em consideração o papel desta como um símbolo nacional e o

processo de construção das identidades. Para isso, ilustrou-se o recorte histórico,

sobretudo, em sua dimensão cultural e sistematizaram-se os períodos de real uso da

dança como uma ferramenta de diplomacia cultural.

Demonstrou-se que o processo de construção das identidades é realizado de forma

exógena, através da interação, para, então, ser internalizado pelos indivíduos. Tal

preceito pode ser observado tanto nas teorias de análise micro, como o sujeito pós-

moderno de Hall, quanto em uma perspectiva sistêmica, como aponta a teoria de

Wendt. O exame da atuação das manifestações artísticas no imaginário da

comunidade ajudou a evidenciar a importância destas na sedimentação de

identidades compartilhadas, bem como revelou a possibilidade de sua

instrumentalização para propósitos políticos.

Durante o período em questão, a dança foi influenciada por preceitos ideológicos e

cumpriu o papel de representante da identidade nacional. Ela foi de fato utilizada

como uma embaixadora cultural e desempenhou importante função na consolidação

e disseminação identitária. Mas, ainda que o balé clássico fosse travestido por

símbolos nacionalistas, a sua linguagem – a dança clássica – continuou sendo um

ponto de congruência entre as duas superpotências. Nesse cenário, os bailarinos

experimentaram uma identidade coletiva; uma identidade que compartilhavam com

os bailarinos do outro lado da cortina de ferro. Os esforços estatais de mascarar o

balé completamente foram, dessa forma, contrariados. Mas isso não representou o

insucesso da empreitada de instrumentalização da dança, uma vez que ela ajudou a

gerar uma maior compreensão e tolerância em relação ao “Outro”, e a amenizar as

tensões entre os polos.

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Apesar de a abordagem adotada apresentar contribuições interessantes, é válido

ressaltar que a perspectiva wendtiana apresenta graves limitações e contradições.

Uma delas é a o foco, praticamente exclusivo, dado ao nível sistêmico. Por

considerar o Estado como o agente internacional per se, Wendt ignora valiosas

contribuições e influências que agentes não-estatais têm na construção e

propagação de uma identidade nacional, e isso o aproxima muito das abordagens

realistas do campo das Relações Internacionais. Além disso, quando o autor

presume que há algo de intrínseco e independente da interação no agente (a

identidade corporativa), ele se afasta ainda mais dos preceitos da órbita

Construtivista, que dita que a realidade é uma construção fruto de interações.

De forma geral, o presente estudo mostrou a viabilidade de se analisar conflitos

internacionais, como a Guerra Fria, sob uma ótica cultural específica, o que,

infelizmente, muitas vezes é ignorado nas academias. É inegável que abordagens

desse tipo estão longe das possibilidades de esgotamento e oferecem um novo e

interessante ângulo analítico. Destarte, espera-se que ele inspire mais trabalhos

desse tipo.

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