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INTRODUÇÃO o CONCEITO DE DOGMA Toda experiência humana envolve pensamento, simplesmente porque a vida intelectual e espiritual dos seres humanos manifesta-se pela linguagem. A linguagem é pensamento expresso em palavras faladas e ouvidas. ~ão há existência humana sem pensamento. O emocionalismo, tantaa.zezes dominante nas religiões, nã..Qé ~ mais jmportante do qll~ento. ~ menos, isso sim. E reduz a religião ao nível da experiência subumana da realidade. Schleiermacher ressaltava a função do "sentimento" na religião e Hegel a do "pensamento", fazendo surgir a tensão entre ambos. Hegel dizia que até mesmo os cães possuem sentimentos, mas apenas o homem, pensamento. Essa tensão surgiu de um mal-entendido não intencional do que Schleiermacher queria dizer com "sentimento", coisa que ainda se repete hoje em dia. Mas o mal-entendido expressa a verdade que o homem não pode viver sem pensamento. O ser humano tem que pensar mesmo se for o mais piedoso dos cristãos sem qualquer educação teológica. Até na religião damos nomes a objetos especiais; fazemos distinção entre os diversos atos da divindade; relacionamos os símbolos entre si e explicamos os seus significados. Todas as religiões se utilizam da linguagem, e onde há linguagem há também termos universais ou conceitos que precisamos usar mesmo nos mais primitivos níveis de pensamento. Convém observar que esse conflito entre Hegel e Schleiermacher já fora antecipado, no século terceiro de nossa era, por Clemente de Alexandria quando disse que se os animais tivessem religião, ela seria muda, sem palavras. A realidade recede o pensamento, mas é também verdade que o pensamento molda a realidade. São in!erdependentes; um não pode ser abstraído pelo ou ro. Não podemos nos esquecer iSSO quando tratarmos da trindade e da cristologia. Baseados em muito pensamento, os padres da igreja chegaram a conclusões que influenciam a vida de todos os cristãos, desde os tempos primitivos até hoje. 11

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INTRODUÇÃO

o CONCEITO DE DOGMA

Toda experiência humana envolve pensamento, simplesmente porque a vidaintelectual e espiritual dos seres humanos manifesta-se pela linguagem. A linguagemé pensamento expresso em palavras faladas e ouvidas. ~ão há existência humanasem pensamento. O emocionalismo, tantaa.zezes dominante nas religiões, nã..Qé~mais jmportante do qll~ento. ~ menos, isso sim. E reduz a religião aonível da experiência subumana da realidade.

Schleiermacher ressaltava a função do "sentimento" na religião e Hegel ado "pensamento", fazendo surgir a tensão entre ambos. Hegel dizia que até mesmoos cães possuem sentimentos, mas apenas o homem, pensamento. Essa tensãosurgiu de um mal-entendido não intencional do que Schleiermacher queria dizercom "sentimento", coisa que ainda se repete hoje em dia. Mas o mal-entendidoexpressa a verdade que o homem não pode viver sem pensamento. O ser humanotem que pensar mesmo se for o mais piedoso dos cristãos sem qualquer educaçãoteológica. Até na religião damos nomes a objetos especiais; fazemos distinçãoentre os diversos atos da divindade; relacionamos os símbolos entre si e explicamosos seus significados. Todas as religiões se utilizam da linguagem, e onde hálinguagem há também termos universais ou conceitos que precisamos usar mesmonos mais primitivos níveis de pensamento. Convém observar que esse conflitoentre Hegel e Schleiermacher já fora antecipado, no século terceiro de nossa era,por Clemente de Alexandria quando disse que se os animais tivessem religião, elaseria muda, sem palavras.

A realidade recede o pensamento, mas é também verdade que o pensamentomolda a realidade. São in!erdependentes; um não pode ser abstraído pelo ou ro.Não podemos nos esquecer iSSO quando tratarmos da trindade e da cristologia.Baseados em muito pensamento, os padres da igreja chegaram a conclusões queinfluenciam a vida de todos os cristãos, desde os tempos primitivos até hoje.

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I uni m desenvolvimento de pensamento metodol6 ico segund uSlca ue se utiliza de certos met pa tar com expen nelas.

\1 11I1\ ) P nsa~nto metodológ@ se ex ressa, por meio da fa~ou de escri-. munlcado a outras p~oas, roduz out.r.iD.aSoeo og1&9s. rata-se de um

1\ \) 111 11\ ti u O mãis primitivo do pensamento, ldealmente, tal procedimento11\ hl~" I I ma teol6gicos. Ora, os sistemas não são feitos para permanecermosI, lU' prendem dentro de determinados sistemas começam a sentir, ~e-I ti IIHIlI1l tempo, que os sistemas se transformam em prisão. Se vocês cr.la-11\ I I ma teol6gicos, como eu criei a minha teologia sistemática, erá eClso·

\11 111 I i tema para não se aprisionar nele. Não obstante, o ~~ ~cess~-\1 ]I r . iu fi de sua c.on istên ia. Na mmha experiêrrcia- estudantes que mais

I I 11111 ntra o caráter sistemático de minha teologia são os que se mostram\I \ \111 fi lentes quando descobrem que dois enunciados de minha autori~ ~e

11111'\ 117.m entre si. Sentem-se frustrados quando encontram pontos vulneráveis111 trutura do sistema. E então, quando consigo superar essa contradição, acham1\1 ,t u tentando aprisioná-los maldosamente no meu sistema. Trata-se de curiosa

I' H~ . Mas é uma reação compreensível. uando se considera o sistema respostaI IIIt1VIl e final, ele se torna ior do que qualquer prisão. Mas se e~ten ermos

t 1\\ I como esforço de reunir conceitos eo ogicos em formas consistentes depl' , I, sem contradições, ele se torna inevitável. Mesmo se pensarmos fra~-

I11 nturlamente, como certos filósofos e teólogos (alguns até mesmo extraordi-1\ I ), ada fragmento conterá o sistema implicitamente: ?uando lemos os/'111 m mtos de Nietzsche - em minha opinião o melhor filósofo que escreveuli C tilo - encontramos todo um sistema de vida implícito em cada umd J • N se pode, pois, evitar o sistema, a não ser que se escolha dizer asneiras1111 rever de modo contraditório. Naturalmente, às vezes isso acontece.

. ema corre o peri o não só de se transformar em prisão, mas tambémde movimentar dentro de si mesmo. Pode se separar da realida e e se trans-11 1111111' em algo, por assim dizer, acima da realidade que pretende descrever.1'01'1 nt meu interesse não se limita aos sistemas enquanto sistemas, mas noptlt! 'I' que têm para expressar a realidade da igreja e da sua vida.

1\ doutrinas da igreja têm sido chamadas de dogmas. Em outros tempos, I' tlp de curso se chamava "história do dogma". Agora o conhecemos p~lo

11(11)1 de "história do pensamento cristão". Trata-se apenas de mudança de desig-1\11<,)11 • Na verdade, ninguém ousaria discorrer sobre a história com~leta. d_op 1\ umcnto de todos os teólogos que já existiram e ainda existem na igreJ~ crista.I I li' limo num ocean de idéias contraditórias. O ropósito deste curso_ e outro.VIlI)) xnrninur o, P 'I) UOl 'lItOS que se tornaram ex ressões aceitas da vida da

ILI' (I "IIIIVIII "d\ ma" queria izer originalmente.

() ('\111" 10 ti' I) 11111 lu , •• 1111 ri' III II'U ')111" LI I I' 'Ju mund 'tdUl',

Mil li J U' ]lIC vivem n se mund secular têm medo dos dogmas da igreja.Mo nu a cnas elas. Há também pessoas, membros de igrejas, que também têmm d d . dogmas. Os "dogmas" são como essas capas vermelhas que os toureirosu arn para provocar os touros na arena; provocam raiva ou agressividade, e, àsvezes, até mesmo luta. Acho que essa luta se dá mais entre gente fora da igrejacom a igreja. Para entender essas coisas precisamos examinar a história doconceito de dogma, que é bastante curiosa.

~eiro passo é compreender a palavra "dogma". Vem do vocábulogrego doken que significa "pensar, imaginar ou ter uma opinião". Nas escolasfilosóficas gregas, anteriores ao cristianismo, dogmata eram as doutrinas específicasque diferenciavam uma escola de outra, os acadêmicos (Platão), os peripatéticos(Aristóteles), os estóicos, os céticos e os pitagóricos. Cada escola tinha suaspróprias idéias fundamentais. Se alguém desejasse se tornar membro de umadelas, tinha que aceitar, pelo menos, os pressupostos básicos que a distinguiam dasoutras. Assim, nem mesmo as escolas filosóficas deixavam de ter suas dogmata.

~mQdo semelhante. as doutrinas cristãs foram efitefiàidas como -degmata,distinguindo a escola cristã das escolas filosóficas), Aceitava-se tal situação comonatural; não se parecia com a capa vermelha do to~iro nem produzia sentimentosan~O dogma cristão, no período primitivo da história da igreja, expres-sava as crenças dos cristãos quando ingressavam nas congregações locais correndomuitos riscos e transformando tremendamente as suas vidas. Assim os dogmasnão eram declarações teóricas individuais; expressavam uma realidade específica,a realidade da igreja.

Em segundo lugar, todos os dogmas foram formulados negativamente, paracombater interp~0S errôneas .aparecidas dentro da própria igreja, B o caso,por exemplo, do Credo Apostólico. Tomemos o primeiro artigo desse credo,"Creio em Deus Pai Todo Poderoso, Criador do céu e da terra". Não se trataapenas de uma declaração voltada para si mesma. Representa, ao mesmo tempo,a rejeição do dualismo, formulada depois de uma luta de vida e morte por maisde cem anos. O mesmo se pode dizer dos demais dogmas. Quanto mais tardiosforem mais claramente mostrarão esse caráter negativo. Podemos chamá-Ios ded tinas rotetoras ais retendiam proteger a substância da mensa em bíblica.Até certo ponto essa substância era fui a, muito embora houvesse uma basefixa que era a con issao e esus como o risto. Além disso tudo mais era mutá-vel. Quando surgiam novas doutrinas que pareciam ameaçar a confissão funda-mental, as doutrinas protetoras eram-lhe acrescentadas. Foi assim que o dogmafoi se desenvolvendo. L..u..tg.otambém reconhecia esse fato: os dogmas não resul-taram de interesses teóricos, mas da necessidade de se proteger a substância damensagem cristã.

Uma vez que essas novas formulações protetoras estavam sujeita lnt rpr -I lI,: S errôneas, sempre havia a necessidade de formulações teóricas mais precisas.Nuo se podia realizar essa tarefa sem a ajuda d ilõS"óficos. Foi assimque muitos conceitos filosóficos entraram nos dogmas cristãos. ão é que asI . S as se interessassem por eles enquanto conceitos filosóficos. Lutero era muitof"II11CO ares eito. Dizia abertamente ue não ostava de termos ~"h moousius", e outros do mesmo ti o embor .. e a necessidade e seuli O, certamente impróprio, porque não tínhamos termos melhores. Novas formu-laçõcs teóricas precisam ser feitas sempre que a substância da fé comece a serum açada por doutrinas ou teologias inadequadas.

Deu-se mais um passo na • tóría.dess, ceito Os do mas começaram acr aceitos como lei canônica da igre·a. A egundo cânon.Lé., o

pensamento ou do com orlamento. A lei canônica é a lei eclesiástica à qual todoss que pertencem à igreja devem se submeter. Assim, o dogl!li}..J:eCebe..sa~~

Na Igreja Romana o dogma faz parte da lei canônica. Sua autoridade emana dodomínio da lei. Foi assim que se desenvolveu a Igreja Romana. A própria palavra"romana" conota esse desenvolvimento legalista.

Entretanto.ja.enorme reação contra o dogma nos últimos quatro séculos nãoteria havido se talvez não tivesse surgido um novo fato; a aceita ão da lei P.CIe..--

siástica pela sociedade medieval como lei civil. Com isso, a pessoa que quebraa lei canôníca das ou nnas não é só herege, discordando das doutrinas funda-mentais da igreja, mas criminoso contra o Estado. Foi precisamente o que produziua reação radical na época moderna contra o dogma. Posto que o herege nãoapenas subverte a igreja, mas também o Estado, não lhe basta a excomunhão;deve ser entregue às autoridades civis para ser punido como criminoso. foi con.!!.aessa situação que o iluminismo se rebelou. A Reforma, na verdade, não mudarae~ procedmíeiltõ. Não háCIUviãa, porém, de que desde o iluminismo todo opensamento liberal se caracterizou pela recusa do dogma. Essa atitude teve oapoio do desenvolvimento da ciência. Para que a ciência e a filosofia pudessemcrescer criativamente era preciso que tivessem completa liberdade.

Na sua famosa História do dogma, Adolfo von Harnack já perguntava se odogma não estava no fim em vista da desintegração sofrida desde o início doiluminismo. Tinha consciência da existência de dogmas ainda no protestantismoortodoxo, mas acreditava que o último momento da história do dogma haviachegado nessa desintegração do dogma provocada pelo il~smo. Desde entãonão teria havido mais dogma no protestantismo. É claro que Harnack tíii1iã'e'mm nt um c 11 íto ba :mrre!lmlfado de dogmrr; no sentido das doutrinas trini-I do 'ri I I I 11 tio i reja antiga. Ao contrário de Harnack, Reinhold Seeberg"f!I'IIllHI '111 o I cnvolvlm nto do dogma não terminou com o iluminismo e que11111ri 11 1'1'0 • /I.

I Imllo ""111 dti rUII ") 1"'(,)1 t lIH 111 • 1111111I11111

1St' ju l fi de passar por d'( 1111 111(1 I 1 1''' li I 111111 11110 tnnto Ú 'ollll ilm 111 I

mas de fé. As igrejas quer m ub I' l'(" 01' 11111I U nao C 111 SUBS ufl/'ll1t1C;

dogmáticas fundamentais. Em geral, esse' .xum S t o conduzidos a partir de lIJ11U

visão muito limitada da teologia, sem verdadeira compreensão do desenvolvimentdo pensamento cristão, desde os tempos da ortodoxia protestante. Muitos dessesestudantes se revoltam interiormente contra esses exames da fé, muito emboranão devessem se esquecer de que estão entrando num grupo particular, diferentede outros grupos. Em primeiro lugar, trata-se de um grupo cristão e não pagão;de um grupo protestante ou católico; dentro do protestantismo o grupo seráepiscopal ou batista, ou qualquer outro. Com esse exame a igreja demonstrajustificado interesse em receber os que aceitam os seus fundamentos, uma vez queserão seus representantes. Qualquer clube de futebol exige que seus jogadoraceitem as regras e padrões do esporte. Por que deveria a igreja deixar a questãcompletamente aberta aos sentimentos arbitrários dos indivíduos? Tal situaçãonão seria possível.

U~ das tarefas da teologia sistemática consiste em auxiliar as igrejas aresolver esse problema a fim de que não dependam tão unilateralmente dos teó-lójos dos séculos dezes~s e dezessete. Quem en"'ft1rp~lgreja eve aceitarcertas idéias fun~amentais. Não se trata, porém, de exigir dos ministros a aceitaçãode certo conjunto de dogmas. Como poderiam eles afirmar que não têm dúvidassobre tais dogmas? Se não tivessem dúvidas dificilmente seriam bons cristãosporque a vida intelectual é tão ambígua como a vida moral. E quem ousari~~c~e1'-&lme~eito? Como, então, chamar-se de j~ctualmenteperfeito? O :.tl.1! d.e dúvida é um elemento da rópria fé. Compct;à-igrejaaceitar os que consideram a .e questão de sua preocupação suprema, a qualquerem servir com toda a sua força. Mas se a igreja fica querendo saber o quec-ª...daum acredi~ respeito desta ou daquela doutrina, aca ará R!'2.Y~ando ti

de onestidade. Se alguém afirmar que concorda completamente com determinadadoutrina, por exemplo, a do nascimento virginal, será desonesto ou deixou depensar. Como ninguém pode deixar de pensar, tem necessariamente que duvidar.Eis aí o problema. Acredito que a única solução possível no mundo protestanteconsiste em entender esse conjunto de doutrinas como representação de nossapreocupação suprema, a qual queremos servir num determinado grupo, quetambém se fundamenta na mesma preocupação suprema. Mas ninguém jamaispoderá prometer que não vai duvidar diante de qualquer uma dessas doutrinas.

O.§.Jio.gmas-nãa..de.x.eriam ser abolidos, mas interpretados de tal maneira g.\.lC

não venham a ser poderes repressivõScresfmados a prodUZIr aeS;-nestidade cfuga. Ao contrário, são expressões profundas e maravilhosas da verdadeira vida

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da igreja. Nesse sentido, procurarei demonstrar que na discussão desses dogmas,mesmo quando expressos nas fórmulas mais abstratas por meio de difíceis con-ceitos gregos, estamos tratando de coisas nas quais a igreja acreditava expressaremadequadamente sua vida e devoção na luta de vida ou morte contra o mundopagão e judaico, lá fora, e contra todas as tendências desintegradoras apareci dasem seu interior. ÇgncltlJ afirmando a necessidade de termos o dogma em altaestima' há certa grandiosidade no oogma. as nãõ deveria sercm;'preendidocomo conjunto de doutrinas específicas às quais teríamos que subscrever. aIatitude contrariaria o ~spjrits>~dodQg~ e pírito do cristianismo.

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