introdução à economia (versão original)

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Introdução a Economia FERNANDO ARAúJO Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução a Economia ALMEDINA TITULO: AUTOR: EDITOR: INTRODUÇÃO À ECONOMIA FERNANDO ARAúJO LIVRARIA ALMEDINA - COIMBRA www.almedina.net LIVRARIAS: 1 LIVRARIA ALMEDINA LMEDINA, 15 1 ARCO DE AL TELEF. 239 851900 01 1 FAX 239 8519 1 BRA - PORTUGAL 3, -509 COIM 11 [email protected] LIVRARIA ALMEDINA - PORTO R. DE CEUTA, 79 TELEF. 222059773 FAX 22 2039497 4050-191 PORTO - PORTUGAL porto@ almedina.net EDIÇõES GLOBO, LDA. R. S. FILIPE NERY, 37-A (Ao RATO) TELEF. 213857619 FAX 213844661 1250-225 LISBOA - PORTUGAL globo@ almedina.net LIVRARIA ALMEDINA ATRIUM SALDANHA LOJAS 71 A 74 PRAÇA DUQUE DE SALDANHA, 1 TELEF. 213712690 atriumalmedina.net LIVRARIA ALMEDINA - BRAGA CAMPUS DE GUALTAR, UNIVERSIDADE DO MINHO, 4700-320 BRAGA TELEF. 253678822 [email protected] EXECUÇÃO GRÁFICA: DEPOSITO LEGAL: G.C. - GRÁFICA DE COIMBRA, LDA. pALHEIRA - ASSAFARGE 3001-453 COIMBRA E-mail: [email protected] MAIO, 2002

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Introduo a EconomiaFERNANDO ARAJOProfessor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Introduo a EconomiaALMEDINATITULO: AUTOR: EDITOR: INTRODUO ECONOMIA FERNANDO ARAJO LIVRARIA ALMEDINA - COIMBRA www.almedina.net LIVRARIAS: 1 LIVRARIA ALMEDINA LMEDINA, 15 1 ARCO DE AL TELEF. 239 851900 01 1 FAX 239 8519 1 BRA - PORTUGAL 3, -509 COIM

11 [email protected] ALMEDINA - PORTO R. DE CEUTA, 79 TELEF. 222059773 FAX 22 2039497 4050-191 PORTO - PORTUGAL porto@ almedina.net EDIES GLOBO, LDA. R. S. FILIPE NERY, 37-A (Ao RATO) TELEF. 213857619 FAX 213844661 1250-225 LISBOA - PORTUGAL globo@ almedina.net LIVRARIA ALMEDINA ATRIUM SALDANHA LOJAS 71 A 74 PRAA DUQUE DE SALDANHA, 1 TELEF. 213712690 atriumalmedina.net LIVRARIA ALMEDINA - BRAGA CAMPUS DE GUALTAR, UNIVERSIDADE DO MINHO, 4700-320 BRAGA TELEF. 253678822 [email protected] EXECUO GRFICA: DEPOSITO LEGAL: G.C. - GRFICA DE COIMBRA, LDA. pALHEIRA - ASSAFARGE 3001-453 COIMBRA E-mail: [email protected] MAIO, 2002

180743/02 Toda a reproduo desta obra, por fotocpia ou Outro qualquer processo, serri prvia autorizao escrita do Editor, ilcita e passvel de procedimento judicial contra 0 infTactOr.

Ao jovem de 18 anos que eu fui, e aos meus amigos de ento - Caj, Miguel, Nuno, Aires -, lembrando quando amos a rir pela existncia fora / alegres como em Junho os bandos dos pardais(Guerra Junqueiro, A Musa em Frias)

Nota prvia No texto que se segue, optmos por no incluir o aparato acadmico que costuma acompanhar os manuais do gnero. No porque se entenda ser intil esse aparato, mas apenas porque se aproveita a proximidade temporal de uma outra obra que serve de alicerce a esta [Fernando Arajo, 0 Ensino da Economia Poltica nas Faculdades de Direito e Algumas Reflexes sobre Pedagogia Universitria, Coimbra, Almedina, 20011, na qual surgem exaustivamente referenciados, sejam todos os apoios bibliogrficos utilizados, sejam os pontos mais relevantes da tradio cultural e acadmica em que a presente obra pretende integrar-se. Ao leitor que se sinta motivado a aprofundar conhecimentos que aqui so muitas vezes apresentados de forma necessariamente abreviada, seno mesmo meramente sugeridos, no faltaro indicaes naquela outra obra, remisses para uma literatura pujante e incessantemente evolutiva razo que nos leva a pensar que numa futura reelaborao desta obra o espectro da obsolescncia daquelas indicaes ditar a reincorporao no prprio texto do aparato que fica por ora excludo, refrescando as referncias ao fluxo criativo da mais dinmica das cincias sociais. Aproveitemos esta efmera ausncia da preocupao referencial para nos concentrarmos no esforo de simplificao e valorizao da estrutura dos argumentos e da concatenao de matrias, poupando o leitor a distraces com referncias de detalhe, ou a obscuridades com aluses demasiado tcnicas que faam apelo a uma familiaridade com as Inatrias que aqui no pressuposta, antes visada como finalidade ltima do esforo de aprendizagem, de que o texto pretende ser apenas o primeiro ponto de apoio, o ponto de partida.

PARTE I

Introduo

CAPTULO 1

Conceitos introdutrios A Economia uma cincia social, tendo a pretenso de estudar a conduta humana nas suas interaces colectivas, mas de faz-lo com distanciamento analtico, de um modo sistemtico e recorrendo a uma metodologia explcita, com o objectivo de, com essa aproximao ao paradigma formal da cincia, evitar, seja o entorpecimento nas categorias fceis do senso comum, com as suas superficialidades e preconceitos, seja o envolvimento na estridncia turbulenta e apaixonada dos debates ideolgicos, e poder assim contribuir para o progresso social com um quadro de conhecimentos e com uma forma particular de raciocimo que emprestem a um domnio particular da actividade humana uma imagem rigorosa - mas no demasiado rigorosa, sob pena de se resvalar no irrealismo e na perda de relevncia do conhecimento que, daquela actividade, se forma e se transmite; ou, mais sucintamente, sob pena de se ganhar em conhecimento o que se perde em compreenso. Idealmente, deveria ser possvel ensinar-se Economia de uma forma econmica, isto , transmitindo o mximo de contedo informativo e formativo, de conhecimento, atravs do mnimo de esforo na respectiva aquisio, cingindo o ensino quilo que mais eficaz e fundamental, queles conceitos e raciocnios que fornecem a mais extensa intuio dos mecanismos de funcionamento da sociedade e a mais breve e directa percepo das vias de soluo para os problemas que tradicionalmente se aceitou, ou se convencionou, que reclamariam uma resposta da Economia. com a esperana de que esse ensino econmico da Economia seja possvel que iniciamos esta empresa de uma Introduo Economia: a esperana de que em poucas palavras seja possvel transmitir muito, e de que o que verdadeiramente importante na cincia econmica caiba na

12 Introduo Economia

panormica traada num nico livro, a ser leccionado ao longo de um ano lectivo a estudantes cuja vocao principal no a de serem economistas profissionais, mas antes a de serem utentes activos do conhecimento econmico (e seus hbeis aplicadores), quer em posies de proeminncia profissional e cvica, quer na gesto quotidiana dos seus prprios horizontes privados de realizao. Por isso mesmo se procurar colocar especial nfase nos pontos de mais evidente relevncia prtica e poltica, naqueles pontos para os quais a curiosidade do leitor esteja j desperta pela informao quotidiana - para que se tome claro que, sendo uma cincia social, no consentido Economia enamorar-se da sua prpria sofisticao terica a ponto de se alhear dos seus deveres fundamentais de aplicao, de colaborao no esforo de progresso colectivo, na informao dos critrios e limites nsitos na deciso colectiva de afectao dos recursos e das riquezas disponveis pelos membros da sociedade e pelas vrias comunidades polticas do mundo. Dito de outro modo, o conhecimento econmico ocupa uma posio cada vez mais central no processo de aculturao, de socializao: uma porta de entrada to decisiva para a compreenso do cimento da coeso social que no se estranhar que num futuro prximo (para no dizermos no presente) se lhe reconhea a pertena ao ncleo da alfabetizao, da aprendizagem dos denominadores comuns do vocabulrio cvico. Em contrapartida, isso no significa que, em neurtica vassalagem ao momento que passa, se deva abandonar a reflexo sobre os primeiros princpios deste ramo de saber em favor da mais recente informao episdica, da mais contundente inovao vanguardista - porque, se h uma identidade desta disciplina e um fundamento s suas pretenses de constituir um cincia, eles ho-de encontrar-se em consensos doutrinrios longamente sedimentados, na paulatina decantao de uma inteligncia sria e meticulosamente aplicada: aquele mesmo ncleo que serve de base de demarcao e de legitimao dos novos tpicos. Mas o pendor pragmtico da aprendizagem da Economia no significa, to-pouco, que o patrimnio desta cincia social deva ser subalternizado aos interesses e perspectivas correntes dos leigos, sem ousar desafiar as verdades feitas do senso comum e acomodando-se, seja a uma imagem socialmente dominante, seja s fidelidades doutrinrias e ideolgicas e aos interesses profissionais e polticos dos prprios cultores da cincia.Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 13

Seria incongruente dar-se o conceito de escassez como um dos pontos centrais do raciocnio econmico e no se respeitar um tipo de escassez que ser muito particularmente sentida pelos estudantes: a escassez de tempo, a qual faz com que seja racional limitar-se o tempo dedicado ao estudo de Economia e dose-lo com o tempo reservado ao estudo das demais disciplinas - por mais que, como cremos, uma adequada compreenso dos princpios da cincia econmica e da forma peculiar da sua apropriao temtica possa facilitar e enriquecer grandemente a assimilao de todas as outras perspectivas complementares que, com propsito analtico e cientfico, incidem sobre o fenmeno social. Mais uma razo, porventura a principal, para devermos poupar palavras, adoptando uma escala de referncia que, sem atraioar completamente a pujante riqueza

conceptual e metodolgica da disciplina, simplifique a tarefa do estudante, no seu esforo para alcanar, o mais rpida e eficientemente possvel, uma compreenso panormica e integrada desta cincia social. Vamos de seguida tomar contacto com alguns dos conceitos mais simples e comuns, mais definidores, da cincia e i chavesconomica, as mestras com que os economistas julgam - no raro com alguma dose de arrogncia intelectual conseguir abrir todas as portas de todos os fenmenos sociais, mesmo os mais exticos ou os mais fundados em motivaes psicolgicas recnditas ou inefveis. Mas antes disso, duas ressalvas quanto demarcao temtica desta Introduo Economia: a) Em primeiro lugar, no se vai estudar, seno incidentalmente, os problemas especficos das economias abertas e das relaes econmicas internacionais. No porque essa ateno vertente internacional da actividade econmica seja desnecessria - bem pelo contrrio, ela um requisito indispensvel compreenso, com um mnimo de realismo, seja do enquadramento dominante das diversas economias nacionais num momento presidido pela tendncia para a intemacionalizao e para a mundializao, seja muito em particular das circunstncias presentes da economia portuguesa, que , luz de todos os critrios aceitveis, uma economia aberta. 0 que sucede que se preconiza a autonomizao do estudo da vertente internacional da actividade e das relaes economicas, seja por razoes didcticas - pois entendemos ser muito mais simples e esclarecedor comear por encarar os temas

Introduo Economia bsicos da cincia econmica de uma perspectiva de sistema fechado sem estarmos a complicar constantemente todos os pontos de anlise com referncias s suas implicaes e ramificaes na complexa teia das trocas internacionais - seja por razes de economia de meios - porque o que dissermos de um sistema fechado em larga medida susceptvel de extrapolao para o grande sistema fechado que, por definio, a economia mundial, no seio da qual as relaes internacionais no so mais do que detalhes de funcionamento, que no pem em causa o que tiver sido aprendido a propsito das economias fechadas, apenas o complementam com casos-limite seja por fim porque, por razes que s ficam mais claras depois de empreendido o respectivo estudo, as relaes econmicas internacionais apelam de forma especialmente intensa para a considerao do respectivo enquadramento institucional e jurdico, e nisso se distinguem das actividades econmicas internas que, assentes geralmente em quadros institucionais e jurdicos muito mais estveis e menos politicamente contingentes, podem ser estudadas com maior autonomia e abstraco. b) Em segundo lugar, as referncias histria do pensamento econmico no sero tambm seno incidentais, seja porque a cincia econmica tem conhecido um progresso cumulativo de sedimentao de conhecimentos que confere uma validade aos seus princpios bsicos correntes que independente das circunstncias da respectiva gnese - no sendo, pois, indispensvel compreenso desses princpios a aluso s suas origens -, seja porque a histria do pensamento econmico merece um tratamento autnomo, representativa que ela de uma das mais fascinantes e frteis tradies intelectuais dos ltimos sculos, uma tradio qual devemos importantssimas referncias culturais, polticas, jurdicas, e sobretudo ideolgicas que passaram a ser traos constitutivos, traos caracterizadores da peculiar ndole da experincia social contempornea sendo que, por isso, o conhecimento da histria do pensamento econmico, mais do que acrescentar compreenso das bases pressupostas numa abordagem cientfica particular, servir sobretudo como repositrio daquilo que h mais de dois sculos, para bem e para mal, Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 15 foi tido pela nossa civilizao como a prpria vanguarda da reflexo sobre as condies e possibilidades do seu progresso colectivo. 1. a) A afectao de recursos escassos A prpria raiz etimolgica da expresso economia, que se refere administrao da casa, indica j que, qualquer que seja o nvel a que reportemos aquela expresso - seja qual for a dimenso do grupo humano a que a associemos, seja uma pequena casa, seja uma grande casa no sentido metafrico de uma sociedade poltica ou de uma comunidade internacional -, ela indicar sempre que estamos em presena de situaes a reclamarem escolhas, seja no estabelecimento de prioridades quanto s necessidades a satisfazer atravs de recursos partilhados entre todos os membros da casa, seja na distribuio de tarefas, seja na retribuio dessas tarefas, seja na ponderao dos meios mais eficientes de execuo e de coordenao dos esforos que colectivamente se dirigem satisfao daquelas necessidades, ao consumo, lato sensu, dos bens e servios que so gerados por aqueles esforos de produo.

As escolhas de que trata a Economia so aquelas que so ditadas pela escassez de bens e recursos disponveis para que a satisfao das necessidades possa ser alcanada: por exemplo, aquele que se supe que esteja a ler estas linhas dispor de tempo limitado para aprender os princpios da Economia, pelo que o subsequente texto tem que assentar em escolhas temticas dentro de um universo de possibilidades; se o que se visa a aprendizagem e no o afogamento numa torrente informativa, uma exposio econmica de temas econmicos deixar muita coisa por ser dita, muita coisa que seja tida como tendo importncia secundria, e que portanto seja susceptvel de ser preterida por uma escolha ditada pela escassez do tempo. Um ponto a que voltaremos repetidamente o de que a informao tem custos - principio de que podemos tirar o corolrio de que possvel escolher-se um grau ptimo de informao muito aqum daquilo que poderia ter-se por um grau completo de informao, porque, ao menos em termos de tempo despendido, a informao completa poder ter um custo desproporcionado s vantagens relativas que dela se derivam, as vantagens comparadas com aquelas que resultariam de um outro emprego do tempo.

16 Introduo Economia A escassez no um postulado da cincia econmica, no algo que tenha forosamente de ser pressuposto para que todo o edifcio analtico da Economia possa fazer sentido. Bem pelo contrrio, muitas sero as ocasies em que a prpria anlise econmica que determina a ausncia de escassez, ou seja o equilbrio, ou mesmo a superabundncia, dos meios face s necessidades que eles podem satisfazer - casos em que se dir atingido um ponto de saciedade, para l do qual no ser racional prosseguir-se o esforo econmico. Quem no passou j pela experincia de ler um livro, ou de ver um filme, e de se sentir desiludido em relao expectativa criada? A escolha, nesse caso, conduziu directamente saciedade, ou mesmo para l dela a um ponto de desprazer - e por nada deste mundo se estar disposto a fazer o esforo de reler o livro ou de rever o filme. 1. a) - i) Corolrios da escassez que: 0 que se pretende constatar, no recurso ao conceito de escassez, a) se no fosse a escassez, as escolhas de que trata a Economia seriam irrelevantes, visto que uma opo errada quanto ao emprego dos bens e recursos disponveis poderia sempre ser remediada, lanando-se mo de alternativas ilimitadas (se pudssemos voltar atrs e recuperar o tempo perdido com livros de que no gostmos, com filmes que nos desiludiram, os desgostos e as desiluses no seriam puras perdas); b) virtualmente impossvel atingirmos a saciedade de todas as necessidades que experimentamos, sendo pois que, apesar de alguns exemplos particulares de abundncia ou de superabundncia, a escassez se verifica globalmente, no sentido de que o total dos meios disponveis insuficiente para o total das necessidades; dito de outra maneira, a procura potencial de meios que satisfazem necessidades excede sempre a oferta potencial desses meios, visto que a quantidade de necessidades que suscitam o nosso esforo se renova e aumenta incessantemente, mesmo quando multiplicamos os meios nos quais apoiamos esse esforo; c) algumas necessidades bsicas de sobrevivncia - a alimentao, por exemplo - so efectivamente recorrentes, sendo que a Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 17 sua plena satisfao num dado momento no impede o seu ressurgimento posterior, de forma peridica e cclica, pelo que, vistas do presente, essas necessidades se afiguram como inesgotveis, a reclamarem a administrao judiciosa, ao longo do tempo, dos meios que possam saci-las; d) a escassez eminentemente graduvel e relativa, visto que a intensidade com que ela se verifica depende da prpria intensidade com que as necessidades so sentidas - pelo que, por exemplo, uma sbia atitude de renncia a formas de gratificao puramente material pode fazer com que uma

pessoa atenue fortemente a presso que sobre ela exerce a escassez de meios, e assim gradualmente se liberte da prpria presso dos problemas econmicos (quem tenha a fortaleza de nimo para manter ao longo da vida uma atitude de desprendimento face aos bens materiais poder alcanar o maior grau de liberdade que lhe consentido na nossa civilizao gananciosa e materialista, e poder alcanarfins de realizao pessoal que so negados queles que esgotam o seu esforo na acumulao de simples meios); e) no sendo possvel uma utilizao indiscriminada e universal dos recursos, o facto de eles serem superabundantes para a satisfao de uma necessidade no significa que o excedente desses recursos possa ser reorientado, com um mnimo de eficincia, para as restantes necessidades que o reclamam (por exemplo, uma estrutura produtiva que est a lanar no mercado canetas em excesso no pode reafectar, sem custos, parte dos seus recursos produo de cadernos, porque as matrias-primas e as maquinas que tm a mxima eficincia na produo de canetas tero uma menor eficincia na produo de cadernos - se e que so de todo reconvertveis); f) mesmo que, em abstracto, cada um de ns dispusesse de todos os meios adequados satisfao completa de todas as suas necessidades, um meio continuaria sempre a ser escasso - o tempo -, a impedir a satisfao simultnea daquelas necessidades, ja que o tempo empregue em cada uma no pode ser recobrado e reutilizado nas demais: o homem mais rico do mundo no pode comprar o seu tempo, e tem que agir nas mesmas 24 horas dirias a que todos esto limitados (embora lhe seja possvel, como a

18 Introduo Economia qualquer pessoa, comprar tempo alheio, no sentido de se libertar de tarefas que lhe consomem tempo, cometendo-as a outrem). 1. a) - ii) 0 objecto da Economia Podemos assim sustentar que a Economia faz seu tema central o estudo das decises individuais e colectivas tomadas em ambiente de escassez, colocando especial nfase no grau de liberdade do agente - na medida em que sem um grau mnimo de liberdade no h genunas escolhas - e na interdependncia que se gera entre essas decises - no duplo sentido de ligao intertemporal e congruncia das escolhas de uma s pessoa, e de interaco dinmica das decises no seio de um grupo A Economia procura determinar as razes pelas quais da interdependncia de decises livres emerge uma ordem espontnea, uma ordem no raro to poderosa que dispensa uma supraordenao poltica, quando no se d mesmo o caso de lhe resistir, ou de lhe inutilizar os desgnios patemalistas ou tiranicos, e emerge tambm um condicionamento valorativo - fazendo com que as pessoas colaborem independentemente da importncia que atribuem solidariedade, entrem em relaes de interdependncia por mais individualistas que sejam, e se enriqueam mutuamente quando apenas procuram instrumentalizar os outros aos seus planos de enriquecimento pessoal -. Por fim, no seu escrpulo realista, a Economia no se dispensa de 1. indagar as proprias razes pelas quais essa ordem espontnea, apesar das esperanas que nela so depositadas, no evita alguns resultados patolgicos e socialmente nocivos, traduzidos em desperdcio de recursos e de oportunidades, na degradao das instituies de que depende o funcionamento da actividade geradora de riqueza ou de que depende a justia dos seus resultados. 1. a) - iii) A anlise econmica da racionalidade A anlise econmica pode assumir uma de duas vias: a de olhar para os objectivos e determinar a racionalidade, a adequao, dos meios; ou a Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 19 de olhar para os meios disponveis e tentar justific-los, encontrar-lhes objectivos para os quais eles se afigurem racionalmente adequados. Num caso, predominaro na anlise econmica propsitos de optimizao de meios, no outro, objectivos de maximizao dos fins. Ora sucede que a forma como os indivduos afectam os recursos escassos que lhe so propiciados por um rendimento, por um fluxo de meios novos susceptveis de satisfazerem necessidades materiais atravs da troca por produtos oferecidos em mercados organizados, obedece a uma

racionalidade que no diferente daquela que eles empregam para um conjunto de outras decises que, no sendo genuinamente dominadas pelas preocupaes que se tomam por caracteristicamente economicas, no so menos importantes do ponto de vista individual e social. Isso justificar que essas decises - que no so exclusivamente centradas naquilo que se possa tomar por subsurnvel no cnone da problemtica econmica - sejam observadas e avaliadas recorrendo matriz analtica que propiciada pelos desenvolvimentos da cincia econmica em torno do seu tema originrio e central: decises que, por exemplo, envolvam comparaes de vantagens, de prioridades, de disponibilidades de tempo, em assuntos pessoais, familiares, sentimentais, estticos, genericamente em todas as interaces sociais e polticas que no tenham como objecto primordial e explcito a criao e a repartio de riqueza. Como estudo centrado na determinao e avaliao de escolhas racionais, a Economia tem alis muito a dizer sobre a modelao jurdica, na medida em que esta seja fruto ou objecto de escolhas sociais e se trate de prever os efeitos de regras jurdicas alternativas aplicadas s decises individuais de que falvamos. Cinjamo-nos, por enquanto, a dois exemplos de decises desse tipo: no impossvel que aquele que planeia empreender uma actividade ilcita pondere espontanea e racionalmente a pena e a probabilidade de deteco correspondentes a essa actividade, como um preo com o qual ponderar os ganhos que prossegue com a actividade ilcita; notrio que o ingresso macio das mulheres no mercado de trabalho implicou quebras de natalidade, que podem explicar-se quase exclusivamente pelo facto de o tempo mnimo necessrio para o parto e para o acompanhamento dos recm-nascidos ter um custo de oportunidade tanto maior quanto maior o rendi-

20 Introduo Economia mento que a mulher aufere (o rendimento que ela deixa de aufrir, e no poder recuperar, com aquele emprego de tempo escasso). Em abono da ductilidade e da validade universal do mtodo, refirase que a racionalidade que pressuposta na anlise econmica no a ponderao minuciosa, escrupulosa, articulada, de todos os custos e benefcios associados totalidade de opes que o horizonte cognitivo possa abarcar mas apenas uma resposta diferenciada, e explicvel, a estmulos variveis: - aquele que sabe que o chocolate engorda evita ter um chocolate mo enquanto estuda, mas no tem que calcular a distncia ptima qual a tentao se dissipa; - aquele que estaciona o automvel em local proibido pode fazlo assente na improbabilidade de deteco de uma paragem curta, ainda que no haja forma rigorosa de computar a probabilidade de que um agente de autoridade aparea a aplicar uma sano; - aquele que pede a outra pessoa para se abster de fumar num espao fechado no precisa de se multiplicar em argumentos de mincia cientfica quanto ao impacto e aos riscos que sofrem os fumadores passivos; - o tribunal que condena algum pela prtica de um crime assenta em meios de prova que asseguram uma elevada probabilidade de atribuio do crime quela pessoa, mas no numa certeza absoluta, sendo racional que se entenda por elevada probabilidade a ineficincia de esforos ulteriores de erradicao do erro que consistiria em condenar-se um inocente. A mincia retrospectiva com que muito frequentemente a anlise econmica se dedica avaliao de meios, de fins, de ptimos e de mximos individuais e sociais, e reconstituio iterativa da racionalidade das decises e das actividades, no significa imputao de conscincia, de racionalidade e de ponderao aos agentes, mas apenas abstraco e subsuno de um fenmeno observado a categorias inteligveis e universalmente vlidas que transformem o conhecimento dos dados particulares em cincia. Por isso a anlise econmica continua a ser vlida naqueles domnios que, pelo facto de estarem tradicionalmente excludos da actividade ecoCaptulo 1 - Conceitos Introdutrios 21 nmica tal como ela socialmente reconhecida, e pelo facto de, por isso, no concitarem no agente a conscincia da ponderao de interesses, de benefcios e de custos que explicitamente associada quela actividade, nem por isso deixam de envolver uma ponderao que, ao menos do ponto de vista da racionalidade, no materialmente discernvel daquela. Aproveitemos para afastar, desse reconhecimento social do que seja actividade econmica, um preconceito habitual, que o de que a Economia centra a sua ateno em questes de dinheiro,

nas trocas que tm expresso monetria - o que no verdade, j que a moeda um simples meio de acesso a recursos, e no , em si mesma, um recurso, daqueles cuja escassez obriga realizao de escolhas e tomada de decises optimizadoras e maximizadoras da satisfao de necessidades. verdade que a moeda facilita a quantificao dos valores em jogo, e por isso no s abrevia o modo como nos referimos ao emprego dos recursos, como tambm faz com que muito daquilo que no passa pela utilizao da moeda nas trocas seja invisvel para a quantificao e para a fonnalizao de que se alimentam as proposies abstractas do conhecimento econmico. Mas a Economia no tem a ver com o fetichismo com a moeda, no esgota o seu objecto nas trocas monetrias, nem sequer confunde riqueza com acervo monetrio; bem pelo contrrio, a moderna cincia econmica nasceu, com Adam Smith [1723-1790], por entre denncias do empolamento dado s funes monetrias, da incapacidade mercantilista de ver, para l da moeda, aquilo que ela se limita a representar. Concluamos: mesmo a vontade expressa de furtar uma qualquer deciso, ou uma qualquer actividade, a juzos de ordem econmica no impede que sobre elas recaia um juzo de racionalidade econmica que pode abarcar inclusivamente a explicao das motivaes contextuais para uma tal recusa. H mais, na anlise econmica e nas suas virtualidades explicativas, do que aquilo que se contm nas percepes do senso comum e nas fronteiras difusamente traadas por convenes tradicionais. 1. b) As opes ditadas pela escassez Se aceitarmos como boa a constatao de que uma parte significativa da vida comum dominada pela escassez - nem tudo se conse-

22 Introduo Economia guindo obter simultaneamente e sem custo -, rapidamente se nos impor como seu corolrio a ideia de que toda a escolha tem um custo, e de que este custo consiste essencialmente no valor daquilo a que se renuncia para se obter aquilo por que se optou: - a cigarra que optou por um Vero folgado renunciou a um Inverno prspero, e a formiga que acautelou o Inverno renunciou a um gozo pleno do Estio - num caso e noutro porque no havia meios suficientes para se assegurar a optimizao simultnea de ambos os objectivos -; - o estudante desleixado que vai deixando acumular, ao longo do seu curso, as cadeiras atrasadas aumenta o custo insito na sua aplicao a cada uma, porque cada vez maior o nmero das disciplinas pelas quais tem que distribuir o seu tempo escasso, cada vez maior o nmero das disciplinas que deixa de estudar enquanto se dedica quela que momentaneamente considere prioritria; a nao que presentemente desleixa a formao dos seus jovens ou que simplesmente a onera - por exemplo, impondo propinas no ensino superior pblico, ou restringindo o acesso s universidades renuncia possibilidade de o seu capital humano sustentar mais eficientemente, no futuro, os seus refrmados (capital humano, uma expresso usada pioneiramente pelo economista Theodore Schultz [1902-19981 nos anos 60 do sculo XX, o conjunto dos atributos individuais que se revelem produtivos num qualquer contexto econmico, toda a acumulao de conhecimentos e aptides de que pode beneficiar cada indivduo, cumulveis e transmissveis entre geraes); o Estado que d prioridade ao progresso industrial - opo canhes em detrimento da opo manteiga, no clebre dito de Adolf Hitler [ 18 89-19451 - tem que subalternizar o nvel de bemestar imediato dos seus cidados, desviando para aquele primeiro objectivo os meios escassos que poderiam assegurar o segundo; ao invs, o Estado que se preocupa em primeiro lugar com a qualidade e a sustentabilidade ambientais subaltemizar necessariamente a finalidade de maximizao imediata do rendimento nacional. Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 23 1. b) - i) Eficincia e prioridades A escassez igualmente condicionante de conflitos de fundo, como aquele que se regista entre os valores da eficincia e da justia: que a prioridade da eficincia significa que o emprego de meios avaliado em termos de maximizao, ou seja, de capacidade de obter o maior rendimento possvel a partir de um determinado conjunto de meios (genericamente, eficincia a afectao de recursos aos seus empregos com o maior valor relativo); e essa prioridade implica orientaes polticas muito diversas daquelas que seriam ditadas por uma primazia conferida justia, na qual o que conta primordialmente a forma como o rendimento repartido, a forma como a igualdade verificada nas comparaes intersubjectivas de resultados distributivos, independentemente da dimenso total daquele rendimento cuja maximizao misso da eficincia.

A incompatibilidade da prossecuo simultnea destes dois objectivos que tambm poderamos designar aproximadamente como objectivos quantitativos e qualitativos da criao de riqueza - em larga medida um resultado da escassez dos recursos que podem ser afectados a cada um deles, uma escassez agravada por fundamentais incompatibilidades entre eles (a maior parte dos incentivos ao esforo de enriquecimento num ambiente de liberdade tm uma matriz individualista e inegualitria, e esses incentivos reduzem-se perante a promoo activa de resultados igualitrios se a igualdade, consistindo no nivelamento do esforo de enriquecimento com a indolncia, premiar esta ltima). Mas antes que emprestemos um empolamento demasiado ao conflito entre eficincia e justia, e em defesa da sua compatibilizao limitada pela escassez -, lembremos que um uso eficiente de recursos j aquele que resulta na produo dos bens e servios que mais apreciados so pelo maior nmero de pessoas, pelo que esta definio deveria bastar para dar ao valor da eficincia um alcance mais amplo do que aquele que muitas vezes lhe atribudo, e significar que o aumento quantitativo de meios e ja um passo decisivo em direco optimizao das finalidades. Pensemos, por um lado, que a distribuio justa de um resultado ineficiente pode ser uma situao que no satisfaz ningum, tomando-se pois, num outro sentido, igualmente injusta (a repartio igualitria da

24 Introduo Economia misria gerada pela indolncia igualitarista, tanto como a sentena justa mas tardia de um tribunal indolente). E pensemos, por outro lado, que a satisfao das necessidades individuais livremente formadas e expressas porventura o ndice que mais inequivocamente demonstra o sucesso da vida social entre pessoas que se respeitam e no prescindem da sua liberdade e da sua realizao pessoal - e que a eficincia mais no , as mais das vezes, do que a designao que dada desejada consumao de regras de jogo que tero sido aceites por todos com a sua integrao social, regras de jogo cujo desenvolvimento livre tambm uma forma de justia, uma justia procedimental capaz de coonestar, de legitimar como justos, os resultados que dela dimanam (voltaremos a este ponto adiante). Tudo est, afinal, em estabelecer-se e aceitar-se prioridades: optimizar recursos fundamentalmente procurar fazer com que se possa retirar deles um mximo de satisfao, ou seja, levar a respectiva explorao ao limite imposto pela escassez, conduzi-Ia ao extremo para l do qual se prossegue apenas na medida em que se consiga expandir a fronteira da capacidade produtiva do todo da economia, na medida em que ocorra crescimento econmico e seja cada vez menos necessrio racionar a escassez em funo de prioridade. No extremo oposto, a Economia traz-nos conscincia as decises menos agradveis - mas no menos inevitveis - com as quais individualmente e colectivamente somos confrontados, quando a escassez nos fora escolha entre objectivos que reputamos igualmente indispensveis, quando nos toma aparente a necessidade de abandono de um objectivo que temos, com ou sem justia, por imprescindvel, mas que, apesar de tudo, no o Prioritrio - por exemplo: - renunciarmos aquisio dos recursos hospitalares mais sofisticados em favor da construo de estradas mais seguras; - reduzirmos o apoio estadual educao em favor da aquisio de mais ambulncias; - racionarmos tratamentos mdicos muito onerosos ou escassos em funo da esperana de vida dos pacientes, recusando-os aos doentes idosos; - prescindirmos da construo de estdios quando faltam fundos para a defesa nacional. Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 25 1. c) As perguntas bsicas da deciso econmica Num contexto de interdependncia e de diviso de trabalho, a produo de um bem ou a prestao de um servio pode ser o resultado de milhares de escolhas e de decises em cascata - ou seja, de um encadeamento em que, dada a irreversibilidade do tempo, cada opo condiciona definitivamente as opes subsequentes, num processo de afunilamento que, mesmo na ausncia de uma direco autoritariamente pr-definida, aproxima a multido de escolhas de um resultado

nico: por exemplo, os milhares de escolhas que estiveram subjacentes concepo, produo, conjugao e distribuio dos milhares de compoe integram o computador em que escrevo este texto, muitos nentes qu deles das mais distintas e distantes provenlencias. Por desejo de simplificao, os economistas procuram sustentar que toda a complexidade do processo econmico resulta da combinao e da sequncia das respostas que so dadas a um conjunto limitado de questes, essencialmente as seguintes: 1. o que produzir, e quanto (e em que combinaes, e por quem, e onde)? 0 crescimento da sofisticao no consumo leva constante multiplicao de necessidades secundrias ou civilizacionais, para o condicionamento e satisfao das quais se orientam os processos de inovao; isso no significa apenas que constantemente se alarga o espao dentro do qual se movem as opes, como tambm que cada vez mais patente a escassez dos meios face multiplicao das respectivas possibilidades de uso - ou, dito de outro modo, que so cada vez mais relevantes as escolhas a que se proceda -. 0 progresso civilizacional faz com que o objectivo econmico mnimo deixe de ser o da mera sobrevivncia fsica para passar a ser o de uma determinada qualidade de vida, uma certa condignidade pessoal, e isso aumenta por si s o nmero de prioridades na produo, visto que converte em necessidades primrias ou vitais necessidades que comearam por ser, em estdios mais primitivos da civilizao, meras necessidades secundrias. Numa economia de mercado, as respostas a este primeiro grupo de questes so fomecidas pelo mecanismo dos preos; fora desse

26 Introduo Economia tipo de economia, as respostas tm que ser dadas por um qualquer sucedneo poltico-jurdico, queira ele ou no reproduzir os resultados a que o mecanismo dos preos plausivelmente conduziria. 2. como produzir (e como optimizar o modo de produzir)? - Dado que o enriquecimento daquele que produz depende do incremento da sua eficincia, da sua capacidade de, num mesmo intervalo de tempo e sem perda de qualidade, manter o nvel de produo reduzindo os seus custos por unidade produzida, ou produzir mais unidades sem fazer subir esse custo mdio, um dos vectores da actividade econmica dirige-se explorao de meios alternativos para a produo dos mesmos bens, procurando o mais eficiente. - As respostas a este segundo conjunto de questes resultaro normalmente de uma comparao de custos e benefcios, que se tornar mais complexa quando as decises afectem directamente vrios produtores - que por exemplo se encontrem interdependentes por estarem integrados num unico processo produtivo ou se reportem ao emprego de meios que possam ferir interesses pblicos (caso em que a presena do Estado servir para condicionar o universo das respostas eficientes). 3. para quem produzir, e quando? - 0 mecanismo de preos determinar com razovel automatismo, numa economia de mercado, quem so aqueles que beneficiam dos bens e servios que so produzidos: beneficiara mais, e mais imediatamente, aquele que tiver maior poder de compra e maior disposio de pagar. - A resposta a este terceiro tipo de questes ganha em complexidade, contudo, quando a sociedade se interroga sobre a justia de um tal estado de coisas, seja sobre a validade dos critrios de legitimao da desigualdade e da excluso - o motivo pelo qual a intensidade de uma necessidade tem que ser filtrada pela linguagem monetria, indeferindo as necessidades reais dos mais pobres -, seja, mais subtilmente, sobre a justia da preferncia pelo presente, da sofreguido consumista que esgota recursos e indefere os interesses dos vindouros (o problema, por Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 27 exemplo, da sustentablidade ambiental dos nveis presentes de produo e de consumo). consensual que a resposta do mercado a este tipo especfico de questes deve ser mais fortemente condicionada por critrios de justia, e at de segurana e ordem pblica, representados pela interveno do Estado. 4. quem decide, e por que processo?

- Numa economia de mercado, todo o mundo e ningum - todos contribuem, no seio das trocas, para a formao de uma vontade difusa, sendo que em muitos casos ningum dispe isoladamente do poder de conformar ou inflectir essa vontade -- Numa economia mista em que concorrem um sector privado e um sector pblico, o mecanismo difuso do mercado, da troca espontnea de recursos e de informaes, contrabalanado pelo poder concentrado de deliberao de que o Estado dispoe sendo neste caso mais importante apurarse qual a base legitimadora do exerccio desse poder, visto que ele ser nonnalmente o sucedneo mais eficiente e justo de representao dos mesmos interesses que esto em jogo no mercado, mas pode converter-se patologicamente num simples veculo de interesses particulares que tentam furtar-se s regras e constrangimentos do mercado. - Numa economia dirigista de planificao central, na qual urna entidade nica se arroga o poder exclusivo de fornecer as respostas aos trs conjuntos de questes supra-mencionadas, mesma interrogao sobre a legitimidade que ocorre nas economias mistas juntamse outras, como a da eficincia da direco - a que custo possvel substituir-se ao mecanismo de mercado, seja na obteno da informao relevante para decidir, seja no estabelecimento de incentivos para produzir - e a da liberdade dos dirigidos - o que que ganhamos colectivamente com o facto de algum decidir por ns o plano de satisfao das nossas necessidades individuais? 5. como confiar? Como assegurar, numa economia dirigista, ou numa economia mista, que a actuao do Estado no se pauta por interesses que conflituaro com os nossos interesses individuais (sendo certo

28 Introduo Economia que a existncia e a legitimao representativa do Estado assentam precisamente na salvaguarda dos nossos interesses)? - E numa economia de mercado, como podemos certificar-nos de que os produtores e as organizaoes que atingem uma aprecivel dimenso no pervertem o poder de mercado em detrimento do mecanismo das trocas, no qual um mnimo de equilbrio deve ser pressuposto? - Mais simples e genericamente, como podemos assegurar-nos de que, enquanto nos concentramos na parte que nos cabe na diviso de tarefas, aqueles de quem nos tornmos dependentes cumprem a parte deles? Como poderemos ter a certeza de que, no final do processo produtivo, ocorrer deveras uma troca, e de que os bens e meios de pagamento que conservmos e acumulmos com vista a essa troca sero aceites pelos nossos parceiros? - A estas e outras facetas deste quinto grupo de questes deve responder o Direito, seja na sua dimenso de ordem jurdica de base estadual e internacional, seja na de princpio de organizao convencional entre partes contratantes, que auto-regulam a sua interdependncia em termos de unifrinidade e reciprocidade. Um mercado operando em condies de liberdade, com um nvel concorrencial suficiente, pode responder com eficincia aos quatro primeiros grupos de questes que ficam acima enunciados, visto que os consumidores fazem reflectir as suas escalas de preferncias nos preos que propem ou aceitam, e que os produtores respondem a essas solicitaes com uma optimizao da relao quantidade-preo, ou seja, com diminuies relativas da escassez atravs do incremento da eficincia produtiva - criando, em suma, as condies suficientes para a maximizao da satisfao de todas as partes envolvidas nas trocas -. Nem sempre um mercado responder com justia questo do para quem produzir; dificilmente um mercado entregue a si mesmo, ou seja, desprovido de um enquadramento poltico e jurdico adequado, conseguir responder eficientemente ao quinto tipo de questes. 1. d) Custo de oportunidade e preo relativo Uma escolha racional na medida em que se centra numa comparao subjectiva, mas desapaixonada, de custos e benefcios implicados Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 29 nas vrias alternativas abertas opo - podendo designar-se por utilidade ponderada o resultado dessa comparao (a ponderao, a pesagem, de ganhos e perdas). 0 que h de peculiar na ideia de uma racionalidade econmica no apenas o facto de no envolver qualquer tipo de apreciao valorativa sobre os objectivos de uma conduta, mas tambm o facto de reportar-se ao conceito mais amplo de custo que possvel imaginar-se: o conceito de custo de oportunidade - sinteticamente, a mais valiosa das oportunidades que so preteridas quando se faz

uma escolha -, conceito que abarca aquilo que deixa de ser possvel fazer-se e obter-se para que possa alcanar-se aquilo por que se optou. A ideia de custo de oportunidade envolve uma especie de reinisso para a dimenso contra-factual, o universo paralelo daquilo que ocorreria se tivssemos tomado cada uma das opes alternativas daquela que tommos, somando, afinal, despesa directa em que incorremos para levar a bom termo a opo que tommos (aquilo que um jurista designar por custos emergentes) tambm as vantagens a que renuncimos e que estariam ao nosso alcance nas Opes que preterimos (para um jurista, os lucros cessantes). Esse pano de fundo imaginativo no mero exerccio ldico, antes um pressuposto essencial para que se afira o contedo e extenso da nossa propria eficincia no mundo real - a qual no pode ser verdadeiramente comparada seno com aquela reconstruo imaginativa do estado de coisas que prevaleceria se no fosse a opo que tommos. Todo o cuidado deve ser colocado, todavia, na plausibilidade dessa reconstruo, porque podemos cair na tentao simplificadora de compararmos a situao presente, no com uma extrapolao para o presente de uma linha evolutiva que existia no momento em que tommos a opo, mas com essa linha evolutiva tal como ela se encontrava naquele mesmo momento (uma comparao saudosista que fizesse tbua-rasa da irreversibilidade do tempo), ou com uma linha evolutiva que, por milagre, passasse a s apresentar vantagens e se desligasse dos custos anteriormente associados a essas vantagens (uma comparao idlica que pressupusesse a nossa omnipotncia). Ilustremo-lo com um exemplo: 0 investigador que decide deslocar-se a um centro universitrio estrangeiro deve contabilizar entre os seus custos no s aquilo que paga em ter-

30 Introduo Economia mos de transportes, de alojamento, de alimentao, mas tambm aquilo que deixa de fazer e ganhar no seu lugar de origem. Todavia, antes de comparar esses custos com os correspondentes benefcios, ele no dever deixar de considerar que, na hiptese de no se ter deslocado ao estrangeiro, tambm no seu local de origem teria que suportar custos de alojamento, de alimentao, etc. 0 custo ser, neste caso, apenas a diferena entre aquilo que gastou e aquilo que no mesmo momento teria plausivelmente gasto se tivesse tomado uma opo diversa. Perguntar-se-: todas as opes alternativas? No - apenas uma opo alternativa, formalmente aquela que estava no segundo degrau da escala das preferncias, aquela que plausivelmente teria sido tomada se no se tivesse preferido aquela por que se optou. Realistic amente, no se pode conjecturar que, se no tivssemos seguido pelo caminho por onde vamos, teramos seguido por todos os outros caminhos possveis, simultaneamente, e no apenas por um outro - e nico - caminho. Por isso que o custo de oportunidade o valor da segunda melhor escolha, a mais valiosa das alternativas preteridas. A escassez e a irreversibilidade do tempo tomam crucial a ponderao de benefcios e custos de oportunidade, para que qualquer deciso econmica - que, uma vez tomada, em rigor condicionante e irremedivel - possa pautar-se por alguma medida de racionalidade, aquela que idealmente deveria presidir sempre ao momento da opo, aquele momento em que a liberdade econmica assume o seu sentido prprio no plano individual. neste sentido especfico que, pese embora muitas outras consideraes vlidas em contrrio, a partir de ordens de valores diferentes, se pode sustentar, por exemplo, que economicamente racional que um bom futebolista abandone os seus estudos terminada a escolaridade obrigatria, se porventura os benefcios esperados da sua curta carreira profissional excedem manifestamente os ganhos totais esperados de qualquer opo profissional subsequente ao prosseguimento dos estudos, e computados pela totalidade da sua expectativa de vida. Dito de outro modo, um tal prosseguimento dos estudos, no pressuposto de que ele prejudicaria a carreira de um futebolista talentoso, poderia apresentar para este um elevadssimo custo de oportunidade. Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 31 Como melhor se ver adiante, uma das ideias centrais com a qual se enaltece a liberdade das trocas e o papel da economia de mercado a de que, na ausncia de constrangimentos aparentes, o custo de oportunidade tende a ter uma representao fidedigna no custo monetrio - com a co ia de que um dos primeiros indcios que podemos ter de que nsequenc um mercado no est a funcionar apropriadamente reside na disparidade que encontremos entre o valor absoluto, para ns, destes dois tipos de custos. Mais concretamente, o custo de oportunidade

espelhado no preo relativo de dois bens, o preo relativo que formado pelo mecanismo da oferta e da procura: o preo relativo do bem A em termos de bem B a razo, o quociente, entre o preo de A e o preo de B - o que os d a medida exacta do quanto deixamos de pagar por um bem quando ri compramos o outro. 1. e) 0 raciocnio marginalista A anlise da racionalidade econmica centra-se frequentemente, no naquelas grandes decises que mudam tudo, que transportam instantaneamente a pessoa de um ponto de insatisfao total para a saciedade - a pessoa que no tinha automvel e que adquire um, a pessoa que no tinha lido um livro e o leu , mas naquelas pequenas decises que provocam pequenos incrementos num plano decisrio que as transcende nos seus valores totais. Aquele que, ao tocar o despertador, hesita em levantar-se de imediato e pondera benefcios e custos de manter-se mais meia hora na cama (se tem um horrio a cumprir, meia hora poder constituir um atraso irremedivel, ou significar a renncia a tomar o pequeno-almoo), no est a pensar no total de oito horas de sono que precederam aquele momento, ainda que esse total possa influenciar a sua ponderao: est a pensar exclusivamente nos 30 minutos seguintes, no intervalo de tempo dentro do qual relevante a deciso a tomar est a raciocinar em termos marginais. Por outras palavras, a maior parte das decises de que se ocupa a Economia no so em rigor as de fazer ou deixar de fazer algo - o tudo ou nada -, mas antes as de fazer mais ou menos de algo, de intensificar ou reduzir o nmero de unidades empregues em apoio de um deterrili-

32 Introduo Economia nada deciso ou actividade: dedicar ou no mais tempo ao estudo da Economia? aumentar ou no os impostos? comprar um automvel com ou sem ar condicionado? aumentar ou no os limites de velocidade nas autoestradas? ler mais umas pginas de um livro ou telefonar a um amigo? Ao jovem jurista que planeia constituir uma biblioteca jurdica e quer determinar quais as prioridades na aquisio de obras pouco ou nada adianta uma conselho do tipo tudo o que tenha menos do que dois mil volumes uma biblioteca insignificante - porque o que ele quer saber quais so as vantagens e custos da prxima obra, ou do prximo lote de obras, que ele se prope adquirir. A sua racionalidade concentra-se, como seria alis de esperar, no horizonte de relevncia das suas decises mais imediatas - por mais conscincia que ele tenha quanto instrumentalidade dessas decises dentro de um desgnio mais vasto, a finalidade ltima do seu plano de aco, que pode ser at a de adquirir, no final, mais do que dois mil volumes. Se ele tivesse meios para adquirir de uma vez s a biblioteca que desejaria formar - o dinheiro para adquirir a totalidade dos livros e para satisfazer todas aquelas necessidades Cuja insatisfao tomaria incomportavelmente elevados os custos de oportunidade da aquisio da biblioteca -, ento o clculo de custos totais e de benefcios totais seria relevante. Mas se ele no dispe desses meios sendo essa a situao mais plausvel, lembremo-lo, dada a escassez resta-lhe pensar em termos de custos e benefcios marginais. Ao livreiro que lhe fornece as obras tambm muito frequentemente ser dado confinar a sua racionalidade ao mbito marginal. Tendo adquirido, h alguns anos, uma centena de exemplares de uma obra, interessarlhe-, num momento inicial de optimismo, calcular que os revender por um preo que excede, por uma margem de lucro, o centsimo do custo total - ou seja, no caso, o custo mdio de cada exemplar. Com a passagem do tempo, e em face da dificuldade em vender os ltimos exemplares que lhe restam na loja, a sua racionalidade reorientar-se- na direco do clculo marginal, devendo Passar a ponderar quanto lhe custa manter esses exemplares, no duplo sentido de aferir os custos positivos de conservao dos livros e de calcular os custos de oportunidade da no-venda (o que deixa de receber a qualquer preo pela venda dos livros, e o quanto podia ganhar pela venda de livros mais modernos ou mais apelativos que pudessem ser colocados no espao ocupado por aqueles que no vende). Se o preo que obtiver pela venda dos ltimos exemplares de Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 33 urna obra exceder os correspondentes custos de conservaao e de oportunidade, ser racional vender. E, note-se, ser racional vender ainda que aquele preo seja inferior ao custo mdio de cada exemplar: ser mais racional vender abaixo do custo mdio - que para todos os efeitos, neste caso, um dado histrico - do que obstinar-se em no vender abaixo desse custo, prescindindo do rendimento marginal que poderia obter. Por outras palavras, no ser racional para o livreiro, nem para ningum, apegar-se ao custo histrico e irrecupervel de um bem ou servio (o sunk cost de que fala a teoria econmica) para com ele condicionar a conduta. Aquele que no intervalo de uma sesso de cinema se apercebeu j

de que o filme no interessa deve concentrar-se na perda de tempo que representar assistir outra metade, no sendo racional que se remeta ao raciocnio conformista, alis to comum, paguei o bilhete, fico at ao fim. 0 preo do bilhete est perdido, irrecupervel quer se fique at ao fim quer se saia a meio, sendo mais racional que a prxima deciso se oriente para a limitao dos custos de oportunidade, que sero tanto maiores quanto mais for o tempo que se demorar a sair da sala de cinema. 0 agente econmico racional age com base em expectativas acerca do futuro, no com base em remorsos acerca do passado - porque as suas decises, como bvio - ou deveria ser bvio -, s so relevantes para o futuro. 0 jurista que quer ir aumentando gradualmente a sua biblioteca e que gostaria que cada novo livro pudesse ser adquirido a um custo mnimo - e o livreiro que quer liquidar os seus livros menos vendveis atravs do recurso a saldos, a vendas sem lucro ou at Com prejuzo, esto ambos a raciocinar em termos marginais: um compra, e o outro vende, se para cada um deles se verificar que o seu benefcio marginal excede o custo marginal. Ambos esto a melhorar as suas hipteses de sucesso nas trocas, prescindindo de clculos referidos a valores totais, ou at a valores mdios valores por unidade -, e concentrando a sua racionalidade naquele mbito restrito e marginal dentro do qual o impacto das suas decises pode alcanar um mximo de eficincia futura. Em suma, o custo marginal o valor da mais valiosa alternativa preterida para se conseguir produzir ou obter mais uma unidade de um bem ou servio, enquanto que o benefcio marginal o valor dessa unidade suplementar do bem ou servio por que se optou. Aquele que optou por

34 Introduo Economia fazer uma viagem turstica em vez de comprar novos livros para a sua biblioteca teve como custo de oportunidade marginal o valor dos livros que se viu forado a no comprar - dada a escassez de recursos -; e teve como benefcio marginal o valor dos livros de que esteve disposto a prescindir para fazer a viagem, porque a viagem representava para ele, naquele momento e naquela circunstncia, um valor marginalmente superior ao valor total dos livros de cuja compra prescindiu. Raciocinar em termos marginais significa, pois: - optarmos por produzir ou adquirir mais de um bem ou servio enquanto o benefcio marginal exceder o custo marginal; - optarmos por produzir ou adquirir menos quando o custo marginal excede o benefcio marginal; - optarmos por no produzir ou adquirir nem mais nem menos, produzindo ou adquirindo o mesmo que anteriormente, quando os dois valores coincidem. 1.f) 0 impacto dos incentivos na conduta Aquele que pode decidir livremente recorrer, como vimos, a uma comparao de custos e benefcios. Se for possvel interferir com a dimenso absoluta e relativa desses custos e benefcios, alterando-a, ento ser de esperar que um agente racional responda a essa alterao, adaptando a ela a sua conduta. E, pois, possvel condicionar a conduta do agente econmico sem lhe retirar a sua liberdade de escolher e decidir interferindo nos incentivos que so para ele o valor absoluto e relativo dos ganhos e perdas esperados na sua prxima deciso, os pontos de referncia das suas escolhas e a sua motivao para agir. Um dos objectivos pragmticos da cincia econmica o de, atravs da observao de variaes nos custos marginais e nos benefcios marginais, chegar previso da evoluo das escolhas e das condutas em resposta a modificaoes nos incentivos; no fundo, uma reconduo que no deixa de parecer por vezes uma mera reduo - dos padres normais de conduta ao esquema analtico do estmulo-resposta. por isso, por exemplo, que quando a Economia analisa o Direito, ela tenta fazer ressaltar a estrutura de incentivos que o Direito pe em marcha, procurando sublinhar as consequncias que decorrem da alterao das Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 35 condutas em resposta a esses incentivos - evidenciando os critrios de racionalidade do acatamento e da violao das normas. A questo dos incentivos, se relativamente simples no efeito que isoladamente provoca numa conduta individual um aumento de preos significar norinalmente uma restrio do consumo, a atribuio de direitos exclusivos encorajara as invenes, um salrio adequado incentivar a produtividade laboral, o lucro incentivar a produo das empresas -, uma das mais complexas e difceis facetas da modelao da poltica econmica, no apenas porque ela supe que se conhea, com um mnimo de rigor, a reaco dos indivduos alterao dos incentivos, como ainda, e sobretudo, porque um mesmo incentivo pode ter efeitos opostos, quando estainos na presena de destinatrios dos incentivos com diferentes padres de reaco. Pense-se no exemplo das auto-estradas: permitindo uma conduo relativamente mais segura do que aquela que possvel nas estradas tradicionais - o que significa, em termos econmicos, um benefcio adicional de segurana ao mesmo custo marginal de distncia percorrida -, elas alteram a ponderao custo-benefcio do condutor racional, o qual passa a ter um incentivo a conduzir mais depressa e despreocupadamente, em automveis mais velozes e potentes, e menos incentivo a conduzir de forma mais lenta e cuidadosa. 0 nmero de acidentes devidos m qualidade e insegurana das estradas reduzir-se-, mas aumentar o nmero de acidentes devidos a excesso de velocidade e a incria dos condutores - e, note-se, isso ocorrer tanto nas autoestradas como fora delas, dado que o hbito adquirido naquelas extravasar para as demais estradas

(analisaremos adiante este efeito de risco moral). Pior ainda, a combinao do progresso tecnolgico - que tende a aumentar a segurana mdia propiciada pelos automveis aos seus passageiros - com essa multiplicao de acidentes, se permite antever a diminuio de acidentes mortais, no implicar necessariamente o aumento do nmero de feridos e o agravamento drstico da lotao e das despesas hospitalares? Querer isto dizer que deve abandonar-se a construo de autoestradas, ou o estabelecimento de normas de segurana na produo de automveis? De modo algum: isto implica apenas que uma deciso poltica nesta matria dever ter em conta o carcter plural, e potencialmente contraditrio, dos efeitos de alterao de incentivos. Muitos resultados das polticas econmicas so, por isso, ambguos, e a cincia econmica

36 Introduo Economia tem-se notabilizado na denncia das limitaes nsitas a todas as medidas de engenharia social que pretendam condicionar as condutas individuais, e das perverses que to frequentemente acompanham a aplicao das mais bem intencionadas e generosas medidas polticas. A nfase nos incentivos crucial para se compreender a viabilidade das solues econmicas em contextos de liberdade social e poltica: por exemplo, quando hoje se sustenta que a competitividade internacional das economias mais evoludas pode ser posta em causa pelo surgimento de bens produzidos a baixo custo em paises ou regies nos quais predomina a remunerao miservel da mo-de-obra, no deve perder-se de vista que das duas uma: ou os benefcios dessa competitividade no chegam a fazer-se sentir nesses pases e regies, e eles so puras vtimas da explorao parasitria por parte dos pases de onde emergem essas expresses de receio pela concorrncia (querendo com isso dizer-se que os pases e regies de mo-de-obra barata podem ser fortemente prejudicados na repartio das riquezas que eles ajudam a criar); ou ento, no caso contrrio, s atravs da opresso e do medo dos trabalhadores ser possvel ao mesmo tempo priv-los desses benefcios e manter a produtividade do trabalho - porque, pura e simplesmente, no h qualquer sucedneo eficiente para o incremento salarial como incentivo produtividade laboral de trabalhadores livres. Por outro lado, convm no perder de vista que, como tudo ou quase tudo na Economia, a nfase nos incentivos tem a sua contrapartida, o seu preo - e esse , como vimos j, o sacrifcio dos valores igualitrios. Uma economia que assente na livre mecnica dos incentivos apela quilo que diferencia as pessoas: a desigualdade de talentos, de oportunidades, de formao, at de sorte, que faam a cada um acalentar a esperana de alcanar uma remunerao, uma quota-parte da riqueza, que corresponda com justia ao esforo, ao empenho, ao talento, boa fortuna tambm, com que individualmente - e diferenciadamente - participou no processo produtivo. Uma economia que insista numa medida qualquer de nivelamento igualitrio em nome da justia tem que estar preparada para defrontar-se com uma perda de incentivos e com as respectivas consequncias, mormente a queda do nvel de actividade econmica e da capacidade de gerar riqueza. Insistamos, nenhuma medida de fundo da poltica econmica pode alhear-se deste dilema entre eficincia e justia, ou pode furtar-se ao preo imposto por qualquer soluo do dilema. Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 37 1.f) - i) 0 postulado da racionalidade Um dos pontos de partida mais caractersticos da anlise econmica o da presuno de que a aco observada dominada, mesmo se no exclusivamente, por princpios de racionalidade - no sentido de que possvel ao agente escolher livre e conscientemente uma de entre vrias alternativas de aco, optando normalmente por aquela que objectivamente: - apresenta a maior probabilidade de resultados maximamente favoraveis, os resultados ptimos, ao mesmo custo das demais alternativas;

- apresentando uma probabilidade de resultados ptimos que no se distingue da das demais alternativas, contudo tem um custo inferior ao destas. Nos dois casos, na presena de vrias opes de aco igualmente disponveis mas desigualmente eficientes, tenta-se racionalmente minimizar os custos ou maximizar os ganhos, ou ambos simultaneamente: tenta-se a mxima eficincia de custos, o maior benefcio lquido (isto , deduzidos os custos), procurando minimizar desperdcios na obteno de quaisquer estados de satisfao. No surpreender, pois, que a racionalidade econmica se identifique em especial com o princpio hedonistico, com a lei do menor esforo: aquele que, com o mesmo esforo dos demais, tiver alcanado o mais elevado nvel de satisfao ter maximizado o sucesso da sua actividade econmica, mmimizando as suas necessidades com os meios momentaneamente disponiveis; e por seu lado aquele que, com menor esforo do que os demais, alcanar o mesmo nvel de satisfao, ter conservado mais recursos que ficam disponveis para, de seguida, repetir ou prolongar o nvel de satisfao alcanado. Na maior parte dos aspectos da vida comum, a actividade econmica assemelha-se, pois, a uma corrida de fundo, que recompensa aquele que consegue gerir a escassez de recursos disponiveis com maior equilbrio e poupana de esforos. Acrescentemos que o que caracterstico do conceito de eficincia econmica a minimizao de custos na produo de riqueza, independentemente de quaisquer outras consideraes - embora costume ser relevante nesta sede a considerao da eficincia tecnolgica, que se refere minimizao de recursos empregues naquela produo, ou seja,

38 Introduo Economia diminuio da quantidade e volume dos meios empregues, j que, por definio, de uma ineficincia tecnolgica nunca se evolui para unia eficincia econmica. Note-se ainda que o conceito de racionalidade se concentra, tanto na Economia como fora dela, no plano dos meios e no da adopo dos fins, sendo geralmente enganador e intil considerar-se racional ou irracional um objectivo da aco, se ele efectivo a determinar condutas se ele realmente um problema a suscitar respostas racionais. Por isso muita da apreciao que incide sobre a racionalidade se apresenta como valorativamente neutra, no sentido de que, se aquilo que ptimo para unia pessoa ser pssimo no entendimento de outra, no entanto o esforo que cada uma desenvolva na prossecuo de finalidades divergentes e incompatveis no v a respectiva racionalidade ficar conotada ou comprometida pela escolha de finalidades que previamente tenha tido lugar - a menos que, no caso especfico da actividade econmica, essas finalidades sejam de tal modo absorventes de meios que provoquem situaes de desequilibrio grave e de carncia absoluta em relao satisfao de necessidades bsicas do mesmo sujeito econmico: caso em que poderemos considerar corno excepcionalmente irracionais certos vcios, dependncias e manias que escravizem de tal modo o indivduo que lhe esgotem a aptido para responder satisfatoriamente s demais solicitaes das necessidades que ficam por satisfazer. Por fim, o postulado da racionalidade igualmente decisivo para que possa acalentar-se a esperana de edificao de uma verdadeira cincia econmica, capaz de formular leis empricas com algum grau de generalidade e de rigor indutivo: que, se se admitir ao menos que essa racionalidade predomina no plano da resposta do agente economico aos incentivos, mesmo que se admita que essa racionalidade no passa seno difusamente pela conscincia do agente e que ela no determina seno respostas gradativas e adaptativas, em todo o caso a conduta deste tornarse- mais previsvel, no sentido de que, dadas certas circunstncias, a resposta adaptativa tender a uma certa invariabilidade, uma certa congruncia inter-temporal, sem surpresas nem sobressaltos pelo que ao observador dessa conduta se tornar mais fcil, seja perceber-lhe os traos essenciais, seja prever-lhe as reaces Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 39 1.f) - ii) As limitaes temporais e oramentais Dada a escassez, a racionalidade do agente econmico manifesta-se e avalia-se dentro de um espao confinado. Nesse confinamento, a estratgia de optimizao da satisfao de uma necessidade conflitua inevitavelmente com a actuao que requerida para se alcanar a satisfao das demais necessidades, pelo que das duas uma: ou se sente, e consegue estabelecer, a inequvoca prioridade de uma necessidade, e temporariamente ela beneficia do exclusivo do emprego de recursos, at que a sua progressiva satisfao lhe faa perder a prioridade;

- ou, no caso contrrio, os recursos disponveis tm que ser seleccionados e combinados por forma a que se consiga a satisfao simultnea e proporcionada das vrias necessidades concorrentes, sendo irracional que, manifestando-se todas com igual intensidade, alguma delas seja Preterida, mesmo que Momentaneamente - tudo se concentrando, neste caso, na gesto das disponibilidades totais, da riqueza total; ou, dito de outro modo, na explorao das Possibilidades mximas de satisfao simultnea do Mximo de necessidades, a qual h-de ser fruto do grau de Prosperidade econmica. Nesta segunda hiptese, a gesto de recursos tomar transparente uma noo de rendimentos decrescentes, ou de custos relativos crescentes, que balizar as decises concretas: medida que se intensifique a afectao de recursos satisfao de uma necessidade, aumenta, por definio, o respectivo custo de oportunidade, visto que diminui o nmero de recursos dedicados satisfao das demais necessidades, e, Portanto, a Possibilidade de essa satisfao ocorrer - entenda-se: a possibilidade de ela ocorrer ao nvel pretendido. Aumentando o custo de oportunidade, reduz-se o incentivo prossecuao racional da actividade de satisfao de uma necessidade, devendo pois reduzir-se o nvel dessa actividade. Generalizando este raciocnio satisfao de todas e cada uma das necessidades, perceberse- facilmente que, num contexto de simultaneidade e de concorrncia entre necessidades, a afectao de recursos tende para uma posio de equilbrio, que a Posio de nivelamento dos custos relativos associados ao emprego desses recursos - isto sem embargo de, no limite, poder

40 Introduo Economia levar-se em considerao a possibilidade de crescimento econmico, de aumento do total de recursos disponveis, que se traduziria, neste contexto particular, na possibilidade de incremento do nvel de satisfao simultnea de todas as necessidades sentidas -. Por outras palavras, cada agente se defronta com um conjunto finito de opes disponveis, o conjunto de oportunidades: o estudante que vive longe da Universidade e no dispe de meios de transporte prprios conta apenas com duas opes naquele conjunto - usar os transportes pblicos ou arranjar uma boleia -; aquele que tem veculo prprio passa a contar com mais uma opo; e h ainda uma opo disponvel para aquele que vive perto da Universidade - deslocar-se a pe -. Facilmente se percebe que a dimenso e a composio do conjunto de oportunidades depende de limitaes temporais e oramentais: quanto mais tempo e recursos se pode reservar busca e edificao de uma soluo, maiores probabilidades haver de que ela seja optimizadora. - 0 estudante mais rico poder adquirir um automvel para se deslocar Universidade, ou at, numa demonstrao extrema de poder econmico, poder adquirir uma habitao prxima da Universidade, como forma de alargar o leque das suas opes. - 0 estudante com menos tempo, seja porque vive muito longe e as deslocaes para junto da Universidade so morosas, seja porque, estando empregado, o tempo livre tem para ele um custo de oportunidade muito elevado, seja porque tem rendimentos muito elevados (tornando-se-lhe mais imediatamente perceptvel a mxima de que tempo dinheiro), ter menos ocasio de optimizar as opes disponveis - de encontrar o automvel com melhor relao qualidade-preo, alargando a busca ao prprio mercado dos usados, de encontrar a habitao melhor, ou a mais prxima, ou o regime mais favorvel e eficiente de utilizao dessa habitao - 0 estudante mais pobre, com menos recursos, poder eventualmente dispor de mais tempo - at porque para ele o emprego do tempo ter menor custo de oportunidade -, e por isso mais provvel que encontre as solues optimizadoras: s que, encontrando-as, no dispor dos meios suficientes para promov-las. Saber eventualmente qual o automvel mais eficiente, ou qual a habitao disponvel mais prxima da Universidade - mas Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 41 no ter em reserva os recursos de que necessitaria para poder passar utilizao desses meios e, atravs deles, satisfao das suas necessidades. As limitaes temporal e oramental so as manifestaes mais restritivas, mais sensveis no plano individual, da escassez: aquele que dedicar muito tempo a assistir a programas televisivos dispor de pouco tempo para estudar; aquele que gastar demasiado dinheiro a comprar ovos ficar com pouco dinheiro para comprar fiambre - e assim fica limitado nas suas opes de preparao de uma omelete de fiambre. Veremos adiante que as opes econmicas, porque no se confinam explorao de um conjunto finito de opes de consumo e antes convocam a utilizao de factores

na produo desses bens, factores esses que no so inesgotveis nem perfeitamente substituveis, conduzem manifestao da lei dos rendimentos marginais decrescentes na utilizao produtiva de recursos. E daqui resulta que, antes mesmo de se esbarrar com as limitaes temporais e oramentais absolutas, as opes so j condicionadas e desincentivadas por custos de oportunidade crescentes no esforo produtivo. 1. g) A vantagem das trocas A relao intersubjectiva que se estabelece entre os agentes econmicos pressupe uma complementaridade de necessidades e uma contraposio objectiva de interesses: a nossa interdependncia social depende em larga medida dessa circunstncia de precisarmos uns dos outros. Mas isso no quer dizer que as nossas trocas assentem num pressuposto concorrencial ou mutuamente predatrio, no sentido de procurannos obter vantagens extorquindo-as aos nossos parceiros, por no haver outra forma de alcanar benefcios seno sonegando-os a eles, ou causandolhes prejuzos. Um tal entendimento das trocas remete ara a teoria do jogo de soma p nula, assemelhando aquelas trocas situao de interaco estratgica em que, estando previamente fixados os limites totais das transaces, o que o vencedor ganha precisamente o somatrio daquilo que os demais jogadores perdem - nem mais, nem menos - situao em que o valor total dos ganhos e o valor total das perdas se anulam reciprocamente.

42 Introduo Economia Se fosse esta a situao predominante no seio da economia, seria racional que cada um se isolasse e fugisse de deixar-se explorar: cada famlia, cada unidade de economia comum, deveria concentrar-se numa estratgia de auto-subsistncia isolada, e cada nao deveria fazer o mesmo no Plano internacional, procurando reduzir ao mnimo quaisquer , remetendo-se soluo dita de relaes econmicas transfronteirias autarcia. 1 E, contudo, manifesto que no esta a situao normal das trocas econmicas, as quais, sendo livres, s tero lugar se ambas as partes envolvidas puderem aperceber-se racionalmente da existncia de vanta1 gens reciprocas. E que, ao contrrio do que sucede nos jogos de soma nula, em que interesses similares se contrapem e concorrem para a partilha de um resultado finito, nas trocas econmicas os interesses que se contrapem so complementares, tm valores desiguais para as partes envolvidas. Um livro s se vender se ele tiver, para o livreiro, um valor inferior ao preo que por ele oferecido; e se tiver, para o comprador, um valor superior ao preo que por ele oferecido. 0 livreiro ganha com a venda, pois o dinheiro recebido de valor superior quele valor que para ele teria marginalmente o livro; o leitor ganha com a compra, pois para ele a quantia despendida tem menos valor do que aquele que para ele marginalmente representado pelo livro. Ambos ganham: seria irracional que o livreiro vendesse um livro por um preo inferior ao valor para ele representado por aquele, tal como seria irracional que o comprador oferecesse pelo livro um preo superior ao valor que subjectivamente lhe atribui. Mas ento, perguntar-se-, porque que frequente que as pessoas se sintam exploradas nas trocas, prejudicadas, insatisfeitas, no raro apelando para a interveno tutelar ou correctiva do Estado em relao aos desfechos espontaneamente assegurados pelas trocas no merc o? A razo principal reside no facto de que a troca sempre um compromisso, e implica que cada parte transija relativamente sua posio inicial de ganho mximo: o facto de ambas as partes ganharem com as trocas no significa que qualquer delas realize o ganho mximo que idealizou antes da troca, e que poderia eventualmente realizar se conseguisse deveras enganar a contraparte e consumar uma estratgia predatria. Uma outra razo prende-se com a circunstncia de o facto de ambas as partes ganharem no significar que ambas as partes ganhem o mesmo, Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 43 sendo perfeitamente normal que no mbito das trocas bilateralmente vantajosas Ocorram variaes de preos que ora beneficiam mais uma das partes, ora beneficiam mais a outra. Por exemplo, numa semana um livro alcana o preeosupo3rto,uEucruosst, e os iensfseeriprreesoqsateilsefapzreo tanto o vendedor, bojecctoimvaomoenctoemprador, que estaria genericamente disposto a pagar mais ainda por ele. A compra e venda tem lugar, para beneficio objectivo de ambos. E no entanto, o vendedor

lamenta no ter vendido numa semana anterior em que o Preo atingiu os 35 Euros, e o comprador lamenta igualmente no ter comprado tambm numa outra semana em que o preo era de 27 Euros. Mais ainda, no se Pode censurar o livreiro por ter chegado a pensar que um extraordinrio sucesso do livro Poderia fazer subir 0 Preo at aos 100 Euros, ou 200, ou mil, e que por isso exprime a sua desilusO com um preo que afinal, naquela circunstncia, o nico que o comprador aceita; e to Pouco se deixar de compreender a desiluso do comprador que chegou a imaginar que o livreiro, num acesso de generosidade, lhe ofereceria gratuitamente o livro. Nenhum deles alcanou com as trocas aquele mximo que abstractamente julgaram alcanvel; a troca imps-lhes 0 mximo Possvel susceptvel de coexistir com a compatibilizao de desgnios opostos. Assim sendo, e dado que ambas as partes ganham com a troca, havendo benefcios recprocos que no se verificariam se a troca no tivesse tido lugar, podemos dizer que a situao corresponde de um jogo de Soma Positiva, no qual os benefcios de uma das partes no implicam necessariamente Prejuzos da outra, tudo contribuindo, ao invs, para um resultado crescente, em que o total das transa ~ ces vai fazendo aumentar a utilidade total, a utilidade combinada de ambas as partes, medida que as trocas se vo multiplicando. Sob uma outra perspectiva, se tivermos Pressuposto que as trocas se efectuam dentro de um quadro de justia, dentro do qual preservada a equivalncia recproca dos valores permutados, Poderemos concluir que cada famlia produz um valor grosso modo equivalente quilo que consome, e consumir aproximadamente o valor daquilo que produziu. Assim, cada famlia consumir tanto mais, ser tanto mais Prspera, quanto mais produzir. Mas produzir mais implica basicamente, como veremos adiante, libertar-se das actividades em que menos produtiva para concentrar-se naquelas em que o mais, aquelas em que maior a

44 Introduo Economia sua vantagem comparativa, significa especializar-se e intensificar as trocas - visto que quanto mais se dedica produo de um nmero restrito de bens mais precisa de adquirir todos os outros bens de que necessita para compor qualitativamente o padro da sua prosperidade. Deste quadro de diviso de trabalho e de especializao retira-se o argumento fundamental a favor de um sistema generalizado das trocas, a favor do comrcio e do uso da moeda, o meio que facilita e acelera a multiplicao das trocas. Depois de uma constatao destas, o isolamento e a autarcia que passam a ser - em princpio - as atitudes irracionais, porque elas fazem perder oportunidades de ganhos recprocos, sendo que ningum beneficia e todos perdem. S assim no suceder, em termos puramente econmicos, numa situao-limite, em que j nada restasse para trocar, numa situao em que generalizadamente se constatasse que aquilo de que cada um dispunha igualava ou excedia em valor aquilo que poderia adquirir atravs das trocas. Essa situao-limite ser tanto mais possvel e plausvel quanto menos pessoas estiverem envolvidas nas trocas, e ser tanto mais distante e implausvel quanto maior for o nmero dos envolvidos, isto , quanto maior for o mercado (no estamos a considerar a hipottica influncia de condies exgenas, como a da insegurana do contexto em que possam decorrer as trocas). Daqui se retira um corolrio imediato, de resto j celebrizado por Adam Smith: se todos ganham com as trocas, e se as trocas so, portanto, veculos de enriquecimento generalizado, as oportunidades de riqueza sero tanto maiores quanto maior for a dimenso dos mercados. Esta constatao deveria apontar na direco de um cosmopolitismo econmico, ou seja, da formao de um mercado mundial sem entraves fronteirios - pois assim se formaria o maior mbito possvel para a realizao das trocas e para o desenvolvimento das suas virtualidades optimizadoras. Sucede, todavia, que o poder de que dispem os Estados os autoriza a tomarem, sem entraves imediatos, atitudes de miopia econmica, a desperdiarem oportunidades de troca em favor da preservaao de interesses internos que temporariamente se apresentem como ameaados pela concorrncia estrangeira - sobretudo quando esses interesses internos tenham a habilidade e o poder de convencerem os governos respectivos de que o comrcio internacional um peculiar fenmeno de jogo de soma zero, no qual s se registariam ganhos nacionais comenCaptulo 1 - Conceitos Introdutrios 45

surveis com perdas estrangeiras, e vice-versa, e no qual seria racional, pois, adoptar-se a atitude mais agressiva, aguerrida e parasitria possvel: estratgia que explica que, com demasiada frequncia, tantos Estados caiam, assumida ou implicitamente, na tentao de transformarem as trocas comerciais em veculos de pura e unilateral afirmao de poder. Regista-se aqui, alis, um facto algo paradoxal: se no fosse o poder de que dispem, os Estados jamais cairiam nas solues de agressividade e isolamento autrcico a que os privados, na impotncia de arranjarem solues alternativas para a sua dependncia recproca, so poupados. 1. h) A afectao social de recursos atravs do mecanismo dos preos

A resposta s perguntas bsicas da deciso econmica pode ser confiada ao poder poltico, ou abandonada s foras do mercado e ao poder de maximizao de ganhos recprocos atravs das trocas. No primeiro caso, entrega-se a uma racionalidade central o poder de planificar e dirigir a actividade econmica - julgando-se que essa racionalidade central dispe de vantagens informativas, organizativas e administrativas que no s permitem resolver as questes que transcendam o mbito individual como possibilitam at formas mais ordenadas e congruentes de soluo de problemas que surjam nesse mbito mais restrito -. Numa economia de mercado, ao inves, a actividade econmica condicionada essencialmente pelas prprias foras que animam as trocas sendo o mercado, na sua acepo mais ampla, a ocasio dessas trocas predominando a liberdade de conformao de direitos e deveres conexos com os interesses em jogo, por recurso s fonnas contratu ais comuns, sem que isto signifique de modo algum uma menor importncia do quadro jurdico e poltico atravs do qual se preserva a liberdade e um mnimo de justia nas trocas, a estrutura institucional atravs da qual se resguarda o mercado contra as suas prprias degeneraes. 0 que h de peculiar na economia de mercado que as grandes decises de que depende a eficincia e a justia do resultado ltimo e total do seu funcionamento no so, em rigor, confiadas a ningum, presumindo-se antes que elas resultaro de uma organizao espontnea, da emergncia difusa de um mnimo denominador comum na forma de actuao de todos os agentes econmicos, de um hbito no esforo de

46 Introduo Economia blemas econmicos, em ambiente de respeito soluo individual dos pro e de reciprocidade - mesmo que no sempre de solidariedade. Numa economia de mercado, essa ordem espontnea centra-se no mecanismo dos preos, um processo de sinalizao atravs do qual as partes essencialmente comunicam: - a sua disponibilidade para procederem a trocas; - a sua adeso a valores, ou a intervalos de valores, geralmente aceites corno bases de negociao; - o respeito que os compradores tm pelo custo expresso na avaliao do vendedor; - a sensibilidade que os vendedores tm s necessidades expressas na avaliao do consumidor; - a confiana que as partes depositam no meio de pagamento comum, nas unidades do qual o valor das trocas expresso. Encontra-se aqui um obstculo muito importante pretenso dirigista e planificadora da economia: que toda a iniciativa poltica que interfira no mecanismo dos preos pode gerar, quase instantaneamente, um risco de grave instabilidade na actividade econmica, j que distorce ou turva a sinalizao pela qual se coordenam espontaneamente os interesses particulares, e com base na qual as decises particulares so tomadas de forma racional. Por coincidncia, a deciso planificadora poderia coincidir com aquela que agregadamente resultaria da combinao da mirade de decises particulares que o mercado veicula; mas nunca seria seno uma coincidncia com um desproporcionado risco de insucesso j que a informao de que dispe o planificador central, por mais poderosa e sofisticada que seja, no consegue aproximar-se eficientemente, sem custos elevadssimos, da informao privada de que dispe cada um dos agentes particulares no mercado, e que obtida a custo mnimo, confinada como est ao seu prprio horizonte de relevncia. 1. i) Mercado de produtos e mercado de factores Em rigor, existem dois tipos distintos de mercado numa economia de mercado: o mercado de produtos, isto , de bens e servios, e o mercado de factores produtivos. Bens e servios so os produtos finais da actividade econmica organizada, os outputs directamente empregues na Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 47 satisfao de necessidades; os factores de produo so tambm, por sua vez, bens e servios, mas agora apreciados e empregues no ponto inicial de um ciclo de actividade econmica, consistindo especificamente nos inputs de terra - os factores naturais e as matrias primas -, trabalho e capital que as empresas coordenam e optimizam, recorrendo a um grau qualquer de sofisticao tecnolgica, tendo em vista a obteno dos meios que directamente satisfaam necessidades dos utentes e consumidores razo pela qual se pode dizer que o mercado de factores instrumental, e

que o mercado de produtos , em relao quele, o mercado final. Entre os dois tipos de mercados geram-se nexos que de certo modo podem ser configurados como um fluxo circular de produtos e de factores, e um contrafluxo de pagamentos, entre consumidores e produtores: a) no mercado dos produtos, os indivduos ou as famlias - as unidades bsicas de economia comum entre indivduos, a sede em que so tomadas as decises bsicas de trabalho, despesa, poupana e investimento - so normalmente os consumidores, e os produtores ou as empresas so os fornecedores; os primeiros Pagam por aquilo que adquirem, os segundos recebem os pagamentos monetrios correspondentes ao valor de mercado daquilo que fornecem. Ainda que ocasionalmente surjam empresas na posio de consumidoras de produtos de outras empresas, isso no altera o facto de estarmos perante um mercado de bens e servios. neste mercado que as famlias concentram as suas despesas, e nele que as empresas obtm o seu rendimento; b) no mercado de factores produtivos, os indivduos e as famlias passam a Ocupar a posio de fornecedores - de trabalho, de factores naturais, de capitais -, e as empresas a posio de utentes. Neste mercado, so as empresas que pagam, e os indivduos e as famlias recebem aremuneraao correspondente ao valor dos factores de produo que Colocam no mercado disposio daquelas; neste mercado que as famlias obtm o seu rendimento, que gastaro no mercado de bens e servios, e nele que as empresas concentram as suas despesas, pagando remuneraes aos factores, gastando o que ganharam no mercado dos produtos. A perturbar a perfeita simetria e a direco do fluxo circular, consideremos que alguns dos fundos aforrados e que nonnalmente seriam canalizados para o investimento em empre-

48 Introduo Economia sas podem voltar atrs e regressar s mos de indivduos e fainlias sob forma de crdito ao consumo (falaremos adiante de outras perturbaes similares). Em suma, as famlias so fornecedoras de factores de produo e consumidoras de bens e servios - recebendo por aqueles, pagando por estes -, as empresas so produtoras de bens e servios e utentes de factores de produo - igualmente recebendo por aqueles e pagando por estes -; o que umas ganham o que as outras gastam, e por isso o rendimento total, o total das receitas, no pode deixar de ser equivalente despesa total, ao total dos gastos, significando isso que nada h a ganhar se ningum estiver disposto a despender, e no possvel ganhar-se atravs das trocas mais do que aquilo que gasto nelas. LJ) A interveno do Estado nos mercados Todas as vantagens que apontmos economia de mercado no chegam para ocultar o facto de o funcionamento do mercado tambm vir 1. acompanhado das suas proprias, ineficincias e injustias - a deteco das quais poder justificar a interveno do Estado, agora j no para planificar ou dirigir, mas apenas para emendar as falhas de mercado, designao que abarca todo o tipo de perdas de eficincia resultantes do funcionamento espontneo do mercado. Esse objectivo do Estado poder agora alcanar-se sem que ele tenha a necessidade de se colocar numa posio de proeminncia, bastando-lhe frequentemente entrar no propno jogo de mercado munido do seu peso econmico e dos seus meios complexos de actuao. Esta actuao do Estado poder exprimir-se com uma amplitude muito variada, oscilando entre o extremo da planificao minuciosa de todas as facetas e implicaes da afectao de recursos at simples atitude subsidiria de produo de bens pblicos, aqueles que os mercados no produzem, ou no produzem em quantidades minimamente prximas do nvel socialmente desejvel. Note-se que essa amplitude se prende tambm com a gnese histrica do Estado moderno: que muitas das decises colectivas de que dependiam e dependem a eficincia e a justia das solues econmicas eram ditadas pela tradio, sendo que a evoluo das solicitaes polticas e das respostas ideolgicas que determinou Captulo 1 - Conceitos Introdutrios 49 em larga medida o recurso a formas mais explcitas deliberadas e estruturadas de reaco, formas mais pensadas e processualizadas, do que as difusamente consagradas na tradio. Essa afirmao do Estado por sobre formas inorgnicas e tradicionais de actividade econmica, mas alicerada nos automatismos e nas virtualidades mecnicas do mercado, teve sucessos muito desiguais em diversas pocas, pases, regies, e sectores produtivos - bastando lembrarmos os to

expressivos avanos e recuos que, ao menos em termos de legitimao, se verificaram quanto ao protagonismo econmico do Estado na segunda metade do sculo XX. Pode dizer-se que a interveno estadual no funcionamento dos mercados pode assentar em qualquer de trs razes gerais: a) a pura e simples ignorncia das leis econmicas, o desconhecimento dos requisitos e implicaes da atitude intervencionista que veremos ilustrada em muitas das intervenes nos preos, reclamadas por pessoas ou grupos que querem almoos grtis, ou que querem resolver o problema da escassez fora de leis, provocando uma simples deslocao e agravamento dos problemas, por exemplo conseguindo abaixamentos de preos para uns custa da carncia absoluta de todos os demais; b) o imperativo de eficincia, que abre espao rectificao de falhas verificadas nos mercados dos produtos e dos factores, sejam falhas que criam disparidades entre o funcionamento do mercado e a promoao do bem-estar social, sejam falhas que consistem na subverso do contexto de liberdade e de concorrencia em que as trocas deveriam decorrer, sejam ainda falhas estruturais que retardam a adaptao da economia a conjunturas emergentes, provocando inflao ou desemprego, induzindo flutuaes no nvel de actividade econmica e perturbando o ritmo de crescimento. C) o imperativo de justia, que determina rectificaes dos resultados distributivos que se verificam no mercado dos factores produtivos. 1. J) - i) A justia social A principal razo justificativa de uma interveno pblica nos mercados deriva desta ltima ordem de razes, de consideraes de justia

50 Introduo Economia social, de solicitude pelos mais desfavorecidos, pelos mais explorados e pelos excludos no jogo da economia. 0 rendimento atribudo aos participantes nesse jogo deveria em princpio ser proporcional ao esforo e habilidade por eles aplicados na produo de bens e servios para os quais existisse procura no m