introduÇÃo À crÍtica jurÍdica: da perspectiva … · o direito não é estático como quer...
TRANSCRIPT
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
INTRODUÇÃO À CRÍTICA JURÍDICA: DA PERSPECTIVA EUROPÉIAAO DIREITO ACHADO NA RUA
Maria Tereza Queiroz Carvalho1
Maria Inês Gomes Da Silva2
RESUMO
O presente trabalho aborda práticas e teses alternativas ao modelo de justiçadogmático e conservador que ainda hegemoniza o imaginário da sociedadebrasileira e dos operadores do Direito. Após um breve relato sobre as principaiscríticas jurídicas da Europa e das Américas, tratou-se de forma mais detida eaprofundada da crítica jurídica intitulada “Direito Achado na Rua”. Surgida no Brasilna década de 1980, essa é uma das principais críticas jurídicas do país,permanecendo viva e atualizada através do trabalho de estudantes e juristasprincipalmente da Universidade Estadual de Brasília – UnB.
Palavras-chaves: Direito; Crítica Jurídica; Movimentos Populares; Dialética.
INTRODUÇÃO
O Direito não é estático como quer fazer acreditar aqueles que estão a
favor do status quo. Essa concepção que mistifica o Direito e identifica este como
sendo apenas uma permissão, obrigação ou proibição que decorre exclusivamente
de lei produzida pelo Estado, nada mais é do que um discurso ideológico criado pela
classe dominante para manter a ordem imposta e assim perpetuar seus privilégios
em face da classe trabalhadora e de grupos excluídos das mais diferentes esferas
de reprodução da vida. Contrapondo-se à visão conservadora sobre o Direito,
surgiram formulações teórico-práticas denominadas genericamente de Crítica
Jurídica que, comprometidas com a justiça social e com a ampliação do acesso à
justiça, defendem os direitos dos espoliados.
Depois de fazer uma abordagem geral das principais práticas e teses da
Crítica Jurídica na Europa, nas Américas e mais precisamente no Brasil, o presente
trabalho tratou, de forma mais detida, de uma formulação teórico-prática em
1 Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES2 Professora de Ensino Superior da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontese das Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
especial: o “Direito Achado na Rua”. Crítica Jurídica desenvolvida inicialmente pelo
professor Roberto Lyra Filho na Universidade de Brasília-UnB, segue viva através
dos trabalhos do professor José Geraldo de Sousa Júnior, sendo inclusive tema de
uma das linhas de pesquisa do mestrado da citada Universidade.
“Achado na Rua” porque o Direito deve surgir das necessidades da
classe trabalhadora, dos movimentos sociais populares, dos grupos excluídos e
oprimidos. Tal concepção surge após a constatação de que o Estado, que é detentor
do monopólio de produção das leis, é comandado essencialmente pela elite
conservadora, o que dificulta a conquista e efetivação dos direitos dos menos
favorecidos. Assim, para o “Direito Achado na Rua”, somente a organização do povo
e a luta pelo reconhecimento de novos direitos é que garante a dignidade da pessoa
humana para todos.
Dessa forma, a partir de pesquisas bibliográficas e de instrumentos legais,
e usando a dialética como método de abordagem, o presente estudo pretende
desmistificar a ideia de homogeneidade acerca do pensamento jurídico, trazendo
novas concepções sobre o mesmo.
1. Introdução Crítica ao Direito
(...)Mas eu prefiro é a rua.
A rua em seu sentido usual de “lá fora”.Em seu oceano que é ter bocas e pés
Para exigir e para caminhar.A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo.
Rua do homem como deve ser:Transeunte, republicano, universal.
Onde cada um de nós é um pouco mais dos outrosDo que de si mesmo.
Rua da procissão, do comício,Do desastre, do enterro.
Rua da reivindicação social, onde moraO acontecimento.
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
A rua! Uma aula de esperança ao ar livre.
“Sala de Espera” (Cassiano Ricardo)
As teorias críticas do direito são formulações ‘teórico-práticas’ que
buscam o exercício reflexivo do direito, contrapondo-se às teorias conservadoras
que o dogmatizam e sacralizam. Sendo um pensamento jurídico-filosófico crítico, é
comprometido com a transformação social e emancipação dos indivíduos e da
sociedade.
Com as transformações sociais, as teorias jus-naturalista e dogmática não
conseguem mais dar respostas satisfatórias sobre o direito. Necessário se faz a
construção do “novo” direito como paradigma alternativo, sendo esse interdisciplinar
e assim capaz de atender melhor às questões relativas à heterogeneidade social e
busca pela resolução de conflitos. Assim, a teoria crítica é aquela não dogmática e
que é formulada com a práxis, ou seja, parte da observação e transformação da
sociedade capitalista em busca da libertação do ser humano. Segundo Wolkmer:
Desse modo, pode-se conceituar teoria crítica como o instrumentopedagógico operante (teórico-prático) que permite a sujeitos inertes emitificados uma tomada histórica de consciência, desencadeando processosque conduzem à formação de agentes sociais possuidores de umaconcepção de mundo racionalizada, antidogmática, participativa etransformadora. Trata-se de proposta que não parte de abstrações, de um apriori dado, da elaboração mental pura e simples, mas da experiênciahistórico-concreta, da prática cotidiana insurgente, dos conflitos e dasinterações sociais e das necessidades humanas essenciais. (WOLKMER,2002, p.05)
Como teorias que se contrapõem ao dogmatismo, as teorias críticas
devem ser constantemente repensadas para que não acabem por sacralizar o seu
pensamento, caindo em contradição. Uma das dificuldades reside no fato de que a
“crítica” surgiu na Escola de Frankfurt, sendo elaborada pela elite intelectual da
época, fazendo com que ganhasse contornos muitas vezes românticos, visto que os
pensadores não pertenciam à massa de espoliados. Sendo assim, a concepção da
Escola de Frankfurt acabou por carecer de apontamentos práticos para uma
organização política dos oprimidos. “(...) Uma real teoria revolucionária envolve uma
teoria de organização e ação política. É preciso uma teoria crítico-prática. E é
exatamente disso que carece a concepção da Escola de Frankfurt”. (Wolkmer, 2002,
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
p. 15).
As teorias críticas do direito têm sua origem na Europa dos anos de 1960,
influenciadas pelo economicismo da União Soviética, releitura gramisciana sobre o
marxismo e estudos de Foucault sobre o poder. Na década de 1980, essas teorias
ganham força na América Latina, difundindo-se através do trabalho de juristas e
outros pensadores de vários países. De forma mais específica, essasteses se
fortalecem no Brasil a partir da metade dos anos de 1980, com o trabalho de
professores como Roberto Lyra Filho, Luís Alberto Warat, Tércio Sampaio Ferraz Jr.
e Luiz Fernando Coelho (Wolkmer, 2002, p.16-17).
Os defensores das teorias críticas do direito buscaram mostrar que o
sistema jurídico como um todo serve essencialmente para garantir a existência do
Estado e a manutenção e reprodutibilidade da sociedade capitalista. Um dos
objetivos era então revelar os interesses que estão por trás da estrutura normativa.
As teorias críticas do direito vieram para ser propostas alternativas de estruturação
do direito, criando concepções emancipadoras sobre o mesmo:
(...) Assim, os discursos críticos do direito desvinculavam-se ‘do positivismojurídico, do jus-naturalismo e do realismo sociológico, fazendo deles objetosde sua crítica’. Pretendia-se, desse modo, revelar como, através do ensinodessas doutrinas idealistas e formalistas, eram ‘encobertas e reforçadas asfunções do direito e do Estado na reprodução das sociedades capitalistas’.(WOLKMER, 2002, p.17)
Ressalte-se, porém, que não há consenso na doutrina sobre o que seria a
teoria crítica do direito, no que diz respeito à uniformidade do pensamento ou se
existem vários pensamentos sobre ela. Um dos pontos em comum é a defesa da
socialização da justiça, mas estudiosos como Michel Miaille, Ricardo Entelman,
Leonel S. Rocha e Luís A. Warat têm concepções diferentes quanto à uniformidade
ou não da teoria crítica do direito. Nesse sentido, diz Wolkmer:
“(...) Não se pode desconhecer e negar a existência de um pensamentocrítico, representado por diversas correntes e tendências, que buscamquestionar, repensar e superar o modelo jurídico tradicional(idealismo/formalismo).” (WOLKMER, 2002, p. 21).
Michel Miaille e Ricardo Entelman pertencem à corrente teórica que
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
entendem haver apenas uma teoria crítica do direito. Miaille critica e se opõe
radicalmente à sociedade capitalista, propondo uma epistemologia normativa, tendo
por base o materialismo histórico, concebendo a teoria crítica do direito como uma
ciência social revolucionária marxista (Wolkmer, 2002, p. 22). Para Ricardo
Entelman, o pensamento jurídico materialista da teoria crítica do direito tem que
superar o pensamento tradicional no campo do direito e investigar a eficácia do
próprio poder jurídico. Tal autor entende ainda que deve haver uma organização e
controle das instituições jurídicas, trabalhando com o exercício do poder (Wolkmer,
2002, p. 23).
À segunda corrente teórica, filiam-se Leonel S. Rocha e Luís A. Warat,
entendendo que há várias teorias críticas do direito, visto que, havendo apenas uma
teoria, esta acabaria por ser dogmática e, por isso, contraditória em seus princípios.
Rocha defende que uma teoria não pode ser considerada crítica só porque contradiz
outra, pois acaba por incorrer nas mesmas insuficiências da dogmática positivista ao
não propor outras formas do saber jurídico (Wolkmer, 2002, p. 25). Negando o
caráter estático de uma teoria que se diz crítica do direito, Warat entende que se
deve ter primeiramente uma atitude crítica do direito, pois isso o faz estar em
movimento e não parado como os dogmas. Além disso, essa teoria tem que ser
formulada por discursos flexíveis e problematizados. Contudo, observa que mesmo
a teoria crítica é autoritária, pois se o pensamento tradicional fala “em nome da lei”,
aquela fala “em nome de uma verdade social” (Wolkmer, 2002, p. 27).
A questão que provoca ‘enunciações interrogativas’ reveste-se damistificação autoritária de um saber que se proclama crítico e que se propõea substituir uma ordem ‘científica’ pela glorificação de outra escalanormativa, idealizada como significação de verdade. (...) Fica evidente que,na circulação produtiva de significações, o ‘discurso crítico’ se impõe comofala da verdade. (WOLKMER, 2002, p. 29)
Diante da falta de consenso sobre a unidade do pensamento crítico no
Direito, nota-se que e expressão “teoria crítica” é pouco precisa, uma vez que há
várias correntes de pensamento sobre o mesmo tema. Mesmo assim, há interseções
no que se referem aos objetivos dessas correntes, pois, sendo críticas do
pensamento tradicional dogmático, querem romper com a verdade instituída por
este, socializar a justiça e emancipar a sociedade contemporânea das formações
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
sociais do capitalismo.
2. Principais Teorias Críticas do Direito na Europa
Movimento teórico de fins dos anos 1960 e início dos anos 1970, o Uso
Alternativo do Direito surgiu na Itália, a partir do pensamento de professores
universitários e juristas, podendo-se citar os nomes de Pietro Barcellona, Giuseppe
Cotturri, Luigi Ferrajoli, Salvatore Senese e Vicenzo Accattis (Wolkmer, 2002, p.42).
Essa corrente teórica não rompe com o dogmatismo, porém, propõe que o direito,
ainda que institucionalizado, ganhe uma nova cultura quanto ao seu uso, devendo
assim estar a serviço das classes exploradas. Assim, para Wolkmer:
Na realidade, essa concepção não chega a ser um paradigma alternativo ousubstitutivo da ciência jurídica positivista, mas tão somente a aplicaçãodiferente da dogmática predominante, explorando as contradições e ascrises do próprio sistema e buscando formas mais democráticassuperadoras da ordem burguesa. (WOLKMER, 2002, p.41-42)
Essa teoria tem por base o pensamento neomarxista contemporâneo que:
explora as fissuras, as antinomias e as contradições da ordem jurídicaburguesa, os adeptos do modelo alternativo do direito consideraram arelevância de dois aspectos: a) a estreita relação entre a função política dodireito enquanto instrumento de dominação e as determinaçõessocioeconômicas do modo de produção capitalista; b) o poder judiciário, queassegura o status quo estabelecido, agindo não só como aparelhoideológico do Estado, mas também como instrumento de repressão econtrole institucionalizado. A tradição liberal-individualista tem demonstradoque o poder judicial não é uma instância neutra e independente na esferada máquina estatal, a serviço das liberdades e acima dos antagonismos declasse. (WOLKMER, 2002, p. 43)
Para outras vertentes, o Uso Alternativo do Direito é um pensamento
meramente reformista, uma vez que não rompe com a legalidade burguesa.
Atualmente, essa teoria se foca mais no estudo do direito penal e criminologia, e
continua influenciada pelo pensamento neomarxista.
Diferentemente de outros países da Europa, a Espanha da década de
1970 passava por um processo histórico singular, uma vez que já vivia uma
democracia e alguns juristas e teóricos do socialismo tinham chegado ao poder.
Assim, seguiu-se um modelo de ciência analítica que “proclama não ser
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
‘comprometida’, seu formalismo ‘neutro’ e ‘esterilizado’ tem a vantagem de servir e
justificar todos aqueles que estão no poder, quer seja o discurso político-ideológico
conservador, quer seja o progressista de esquerda”. (Wolkmer, 2002, p. 49). Na
Espanha, não emergiu uma escola da teoria crítica do Direito, mas houve trabalhos
de juristas como Nicólas López Calera, Modesto Saavedra López e Perfecto Andrés
Ibánhez, com propostas jurídicas críticas. Sobre a Espanha, diz Wolkmer:
Enfim, mesmo que inexista uma única ‘escola’ jurídica crítica na Espanha,há que se mencionar o significativo e renovador trabalho (práticas jurídicasalternativas através da hermenêutica crítica) do grupo Jueces para LaDemocracia, tendo como um de seus principais representantes PerfectoAndrés Ibáñez. (WOLKMER, 2002, p. 53)
Em Portugal, ainda que não exista um movimento expressivo da teoria
crítica do Direito, vale ressaltar o trabalho desenvolvido por Boaventura de Sousa
Santos sobre o tema. No início da década de 1970, ele realizou um estudo no Brasil
analisando as estruturas jurídicas da favela do “Jacarézinho”, na cidade do Rio de
Janeiro (Wolkmer, 2002, p. 56). Com isso, assinalou a crise da sociedade capitalista
e propôs possíveis reformas na administração da justiça. Para Wolkmer:
Essas reformas possibilitam a construção de um outro direito, um modelojurídico que limitará e restringirá o espaço de dominação das categorias‘burocracia’ (domínio da hierarquia normativa) e ‘violência’ (ordenação dalegitimidade da coação) e promoverá a expansão da ‘retórica’, enquantoprocesso dialógico de negociação e participação. (WOLKMER, 2002,p.57-58)
“No dizer do sociólogo da Universidade de Coimbra, a práxis da
legalidade capitalista é revelada pela articulação de três componentes estruturais
básicos: a retórica, a burocracia e a violência” (Wolkmer, 2002, p. 56). As reformas
propostas buscam reduzir a burocracia e aumentar o acesso à justiça, através de
espaços comunitários que propiciem o diálogo e a resolução dos problemas sem a
necessidade de instituições centralizadas.
3. PRINCIPAIS TEORIAS CRÍTICAS DO DIREITO NAS AMÉRICAS
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
Através de um grupo de professores, surge em 1977 nos Estados Unidos
a Critical Legal Studies, podendo-se destacar os trabalhos de Morton Horwitz,
Duncan Kennedy, Mark Kelman, Richard Abel, Thomas Heller, David Trubek, William
Simon e Roberto Mangabeira (Wolkmer, 2002, p.35). Essa corrente teórica foi
influenciada por processos históricos principalmente das décadas de 1960 e 1970,
movimentadas por manifestações feministas e questionamento do sistema
capitalista e da política estadunidense de guerra contra o Vietnã. Sua formação
teórica se deu fortemente pelo pensamento marxista, e, conforme Wolkmer:
A desconstrução das categorias e dos procedimentos oficializados favoreceuma estrutura alternativa ‘situada claramente à esquerda do sistema’. Talpostura pode ser explicada nos fundamentos da Critical Legal Studies,encontrados e sustentados por certos pressupostos teóricos advindos dafenomenologia, do historicismo social (E. Thompson), do estruturalismofrancês (M. Foucault) e, fundamentalmente, do neomarxismo (Gramsci,Habermas, C. Offe). De todos os referenciais, indiscutivelmente, a influênciamais forte sobre a Critical Legal Studies foi a do marxismo. (WOLKMER,2002, p. 34)
Na América Latina, um dos movimentos críticos do Direito mais
importantes está no México. A partir da década de 1990 teve como seu maior
expoente Oscar Correas que, em certa medida, desenvolveu seu trabalho sob a
ótica marxista contida no livro “O Capital”. O aludido autor diferencia ainda a “Crítica
Jurídica” construída por ele da “Teoria Crítica” do Direito, visto que essa última, no
entendimento dele, não faz proposições políticas, sendo apenas “teoria” (o que
justifica a escolha do tema do presente trabalho). Nesse sentido, para ele:
(...) as normas do sistema (a circulação de mercadorias, a compra e vendada força de trabalho e a circulação do capital) são a expressão do fenômenoeconômico exclusivamente capitalista. Fica demonstrado, assim, que o“direito moderno contém uma lógica, uma estrutura, que não é senão aforma normativa das exigências da reprodução ampliada do capital”.(OSCAR CORREAS, apud, WOLKMER, 2002)
Outro pensador mexicano importante para a Teoria Crítica do Direito foi
Jesús Antonio de la Torre Rangel. Negando as “clássicas orientações jus-filosóficas
(positivismo, jus-naturalismo e marxismo)” (Wolkmer, 2002, p. 63), defendeu um
Direito adequado às questões históricas latino-americanas no que se refere à
opressão sofrida pelas massas populares, decorrente do direito burguês.
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
Trabalhou com o princípio da “filosofia da libertação”, defendendo que o
povo tem que buscar conquistar seus direitos usando-se do princípio da justiça, não
precisando se ater somente ao direito positivo, pois “o direito vigente é muito mais
expressão de injustiça e opressão que de justiça. (...)A injustiça instalada em nossa
sociedade latino-americana não é porque não se aplica o direito, mas resulta da
própria aplicação do direito vigente” (Jesus Antonio de La Torre Rangel, apud,
Wolkmer, 2002). Para De la Torre Rangel, o direito deve ser instrumento de luta para
uma mudança social popular na América Latina.
Em meados da década de 1970 surge, no Chile, nomes como Eduardo
Novoa Monreal e Manuel Jacques, como expoentes do pensamento crítico do
direito. Para Eduardo Novoa Monreal, o Direito, ao reproduzir a ideologia do
capitalismo, inviabiliza as mudanças sociais. “Por conseguinte, para determinar o
conteúdo do direito, é decisiva a consideração da forma de organização social a que
ele está destinado a servir, conforme seja liberal-individualista, reformista ou
revolucionária”. (Eduardo Novoa Monreal, apud, Wolkmer, 2002)
Igualmente exemplares são os esforços teóricos do advogado popularchileno Manuel Jacques P., profundamente comprometido com as práticas eos serviços legais alternativos enquanto processo inovador e transformador.Seu intento é uma advocacia orientada para a satisfação de ‘necessidadesfundamentais’ (sobrevivência, subsistência e realização do indivíduo e dapessoa humana), capaz de transformar a ordem estabelecida e avançar naconstrução de uma ‘nova utopia como expressão de um projeto de reallibertação’, socializando o direito e edificando a normatividade a partir dasrealidades cotidianas. (WOLKMER, 2002, p. 66)
Na Colômbia, Quiñones Páez e Fernando Rojas Hurtado também
discutem o papel ideológico repressor do Estado burguês, mas se voltam
detidamente para questões relativas ao direito criminal. Páez, por exemplo, discute a
relação entre o delito e a consequente repressão estatal, bem como os delitos que
comumente são cometidos nas relações burguesas de produção (Wolkmer, 2002, p.
67-68).
4. Crítica Jurídica no Brasil
No Brasil, nunca existiu apenas um pensamento crítico sobre o direito.
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
Desde a Escola do Recife, em fins do século XIX e princípios do século XX,
passando pelo culturalismo tridimensional de Miguel Reale, várias teses perpetuam
até os dias de hoje (Wolkmer, 2002, p. 79). Isso devido às várias possibilidades de
métodos de investigação, bem como os diferentes momentos históricos com suas
verdades explicativas dos fatos. Nesse sentido, para Wolkmer:
(...) Se adequadamente descarta-se a materialidade de uma ‘teoria crítica’do direito conclusiva, geral e pretensamente científica, não se pode negar,entretanto, os movimentos jurídicos alternativos e as diversas propostas depensamentos críticos. (...) Daí permite-se, com os cuidados demarcatóriosinerentes, o uso que ora se faz do ‘pensamento crítico’ ou da ‘teoria crítica’do direito, no sentido waratiano, ou seja, um ‘espaço teórico bastantefragmentado, produzido a partir de diferentes perspectivas metodológicas enorteado por objetivos relativamente compatíveis. (WOLKMER, 2002,p.80)
Entretanto, algumas teses e práticas da Crítica Jurídica no Brasil tiveram
maior reconhecimento com o trabalho, principalmente acadêmico, de determinados
operadores do direito. Antes de adentrarmos na tese a ser tratada de forma mais
detida, qual seja o Direito Achado na Rua (crítica jurídica enquanto expressão do
pluralismo e do humanismo dialético), faremos aqui breves considerações sobre as
características gerais que norteiam essa e outra importante tese da crítica jurídica
brasileira.
A crítica jurídica enquanto expressão do pluralismo e do humanismo
dialético elegeu a dialética como método de análise, tendo sido, portanto,
influenciado por Hegel e Karl Marx. Sendo dialético, o direito está em constante
movimento e, nesse processo histórico, a luta social tem papel essencial para que
ele seja instrumento de libertação dos oprimidos. Roberto Lyra Filho (UnB) foi, sem
dúvida, o seu principal pensador. “É no bojo do pluralismo jurídico insurgente não
estatal que se tenta dignificar o direito dos oprimidos e dos espoliados” (Wolkmer,
2002, p. 100).
Da nova geração formada sob o influxo do sociologismo crítico-dialético, omais representativo jurista com atividade prática é José Geraldo de SouzaJr.Professor da UnB, José Geraldo de Souza tem sido o principal seguidor eintérprete das ideias de Roberto Lyra Filho (...). Sustentando um projeto depesquisa que explora a ausência de qualquer legislação, pretendeestabelecer a legitimidade jurídica dos movimentos populares, maisparticularmente da autotutela do direito de moradia. (WOLKMER, 2002,p. 102)
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
Na crítica jurídica enquanto instrumento político de transformação,
Roberto A. R. de Aguiar, expoente dessa tese, passou por duas “fases” com relação
ao seu pensamento, ao longo das décadas de 1980 e 1990 (Wolkmer, 2002, p. 103).
Influenciado pelo marxismo, entende que a concepção de justiça é construída
socialmente a partir dos interesses dos grupos que detém o poder. Ou seja, “a
justiça não é neutra, mas sim comprometida, não é mediana, mas de extremos”
(Roberto A. R. de Aguiar, apud, Wolkmer, 2002). Além disso, traz a questão da
relação entre política e direito, visto que, para ele, existe um direito estatal que não
está nas leis, mas que se efetiva com o exercício do poder dos opressores. Sobre o
tema, diz Oliveira Jr.:
Ele se dá como forma do exercício do poder de barganha (...). Quer dizer,ele possui normas escondidas, implícitas (...).Ao lado do direito positivoestatal, existe, ainda em termos de opressor, um outro direito, não explícito,que é ou uma violência brutalmente utilizada (como nos conflitos rurais naAmazônia), ou então os jogos, por exemplo, o jogo da corrupção dojudiciário, o jogo das tendências das próprias decisões desse poder, asnormas que não aparecem, e que lá estão. (...) É esse outro direito, comsuas normas escondidas, que é mais eficaz para oprimir. (J. A.OLIVEIRA JR., apud, WOLKMER, 2002)
Não há em Marx um estudo específico sobre o direito, mas observações
esparsas sobre o tema, chegando a falar de um mesmo direito em situações
diferentes, sendo por vezes pouco consistente. Outra questão reside no fato de
seguidores e estudiosos das obras de Marx acabarem por serem dogmáticos,
identificando o direito e a justiça como sendo instituições legitimamente burguesas,
não considerando os aspectos dialéticos da disputa pelo Direito.
Em suma, ainda que se possam compartilhar posturas que absolutamentenão concebam a proposta de uma rigorosa e sistemática teoria do direitoem Marx, nada obsta reconhecer, no espaço ocupado pela pluralidade deformulações jurídico-marxistas, a significativa contribuição para a filosofia ea teoria geral do direito de uma hermenêutica de teor crítico-dialéticainspirada no humanismo de Marx. (WOLKMER, 2002, p.156)
Registra-se, por oportuno, que vários autores citados no presente trabalho
falam em classe trabalhadora, conceito clássico para designar os indivíduos que
vendem sua força de trabalho para os detentores dos meios de produção como
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
forma de sobreviverem. Ocorre que, com o passar do tempo, a expressão “classe
trabalhadora” foi sendo usada para denominar genericamente também todos
aqueles considerados pobres, marginalizados, explorados, criminalizados pelo
Estado, oprimidos e excluídos socialmente, economicamente e politicamente.
Porém, vale ressaltar que essa diversidade é tratada de forma genérica e,
nem sempre, é o mais apropriado. Existem grupos formados por pessoas oprimidas,
criminalizadas e excluídas, e que se articulam para lutar por direitos, que não
necessariamente têm todos os seus integrantes pertencentes à classe trabalhadora
como, por exemplo, grupos de mulheres, grupos de estudantes, grupos LGBT,
grupos de prostitutas, grupos culturais. Assim, ao longo do texto, outros termos e
expressões aparecerão sempre que a denominação genérica “classe trabalhadora”
tiver de ser substituída por outra mais adequada ao caso. Outra categoria importante
é a de movimentos sociais, que são articulações permanentes na luta por direitos,
tendo pautas específicas e organização interna própria, sendo também ligada aos
setores populares.
5. O “Direito Achado na Rua”
Na língua portuguesa a palavra “direito” pode ser sinônima de outras
palavras e isso causa certa confusão, uma vez que o direito pode ser identificado
como sendo justiça, lei, prerrogativa ou mesmo ordenamento jurídico. Observa-se
que em outros idiomas isso não acontece. “Em todo caso, não se trata dum
problema de vocabulário. A diversidade das palavras atinge diretamente aquilo que
estivermos dispostos a aceitar como direito” (Lyra Filho, 1982, p.3).
Sendo assim, partindo de uma análise crítica, vê-se que a identificação do
direito com a “lei” tem uma intencionalidade, qual seja convencer o imaginário social
de que não existe direito para além das leis produzidas pelo Estado. As teorias
críticas do direito que elegeram a dialética como método de análise mostram que
mesmo o direito/lei estatal tem sua negação a partir do momento em que os
indivíduos que não comandam o processo econômico o questionam.
Uma vez que as leis são feitas pelo Estado, elas ganham as
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
características desse. Ou seja, a formação do Estado, no que tange à sua formação
social e às suas tendências políticas, determina o conteúdo das leis. Diz Lyra Filho:
(...) Se ele é autoritário ou democrático; se reveste uma estrutura socialespoliativa ou tendente à justiça social efetiva e não apenas demagógica epalavrosa; se a classe social que nele prevalece é a trabalhadora ou acapitalista; se as bases dominam o processo político ou a burocracia e atecnocracia servem ao poder incontrolado; se os grupos minoritários têmgarantido o seu “direito à diferença” ou um rolo compressor os esmaga; se,em geral, ficam resguardados os direitos (não menos direitos e até supra-estatais; isto é, com validade anterior e superior a qualquer lei), chamadosdireitos humanos. (LYRA FILHO, 1982, p.5)
A ideologia, entendida como conjunto de ideias de um grupo ou de um
indivíduo, não manifesta exatamente a realidade das coisas, visto que essa imagem
mental é construída, condicionada por fatores sociais e pelo modo como
interpretamos estes. Sendo assim, a ideologia é como um “pensamento deformado”.
Há estudiosos sobre o tema, como Marilena Chauí, que afirmam que nem mesmo a
ciência está isenta de ideologia, funcionando como mais um instrumento de
dominação social. “Por outro lado, há condições sociais que favorecem a
conscientização: elas emergem quando as contradições duma estrutura social se
agravam e a crise mais funda torna claros os contrastes entre a realidade e a
ideologia” (Lyra Filho, 1982, p.11).
As ideologias não são criadas pelos indivíduos, mas absorvidas por eles.
Essas ideias são respaldadas, inclusive, pela ciência que, a serviço da classe
dominante, constrói um discurso de neutralidade como forma de convencer as
pessoas de que ela representa de fato a realidade.
(...) As classes privilegiadas substituem a realidade pela imagem que lhes émais favorável, e tratam de impô-la aos demais, com todos os recursos deque dispõem (órgãos de comunicação de massas, ensino, instrumentosespeciais de controle social de que participam e, é claro, com formadestacada, as próprias leis). (LYRA FILHO, 1982, p.9-10)
A partir da ideologia surgiu, por exemplo, o racismo, a homofobia e o
machismo. Essas falsas consciências com seus embasamentos, inclusive científicos,
arraigados com o processo histórico, são tão fortes a ponto de se fazerem presentes
na sociedade contemporânea, independentemente do seu modo de produção.
Diante disso, constata-se que a conscientização se dá quando a ideologia entra em
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
crise, a partir do momento em que ocorre a contradição entre imagem mental e fatos
sociais. Com a conscientização, o indivíduo consegue entender onde está sendo
explorado pela classe opressora e que, na verdade, não tem igualdade material de
condições para alcançar o que almeja, sendo a meritocracia, por exemplo, uma
mentira. Nesse sentido, Lyra Filho relembra os dizeres do jurista João Mangabeira:
A propósito de “dar a cada um o que é seu”, como princípio “jurídico”,mostrava o grande jurista João Mangabeira, que é expressão muito velhada separação social das classes entre os proprietários e os não-proprietários, entre os dominantes e os espoliados: ‘porque se a justiçaconsiste em dar a cada um o que é seu, dê-se ao pobre a pobreza, aomiserável a miséria, ao desgraçado a desgraça, que isso é o que é deles...Nem era senão por isso que ao escravo se dava a escravidão, que era oseu, no sistema de produção em que aquela fórmula se criou. Mas bemsabeis que esta justiça monstruosa tudo pode ser, menos justiça. A regra dajustiça deve ser a cada um segundo o seu trabalho, como resulta dasentença de São Paulo na Carta aos Tessalonicenses, enquanto não seatinge o princípio de a cada um segundo a sua necessidade. (LYRAFILHO, 1982, p.12)
“Direito Achado na Rua” foi o nome dado pelo professor Roberto Lyra
Filho a uma corrente teórica do pensamento crítico sobre o direito que privilegiou a
dialética como método de análise. “Achado na Rua” porque, na sua concepção, o
direito deve surgir a partir das necessidades dos espoliados, sendo instrumento de
liberdade, uma vez que defende um direito que rompe com o monopólio estatal de
produzi-lo. Para Lyra Filho:
É um erro ver o direito como pura restrição à liberdade, pois ao contrário, eleconstitui a afirmação da liberdade conscientizada e viável, na coexistênciasocial; e as restrições que impõe à liberdade de cada um legitimam-seapenas na medida em que garantem a liberdade de todos. A absolutaliberdade de todos, obviamente, redundaria em liberdade de ninguém, poistantas liberdades particulares atropelariam a liberdade geral. (LYRAFILHO, 1982, p.57)
Há autores que fazem uma distinção entre liberdade positiva e negativa. A
positiva seria aquela ligada à cidadania, que proporciona ao indivíduo a realização
das suas vontades até o ponto em que ele não desrespeite o limite de outras
pessoas. Implica no “estabelecimento de um amplo âmbito de direitos civis, políticos
e sociais” (De Sousa Júnior, 2008, p.119).
Sobre a liberdade, existem teses opostas. A existencialista, por exemplo,
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
entende que o indivíduo é responsável pelas suas escolhas e a liberdade é
intrínseca à nossa natureza. Já as teorias deterministas, como a de Kant, entendem
que estamos subordinados às leis da natureza e, no decorrer da civilização, às
questões morais (De Sousa Júnior, 2008, p. 124). Para Lyra Filho, a liberdade é uma
construção, uma tarefa histórica, e o direito é uma de suas expressões (De Sousa
Júnior, 2008, p. 125).
Assim, os direitos normatizados são importantes para se legitimar o que é
emancipatório “na ação dos movimentos, das organizações e dos grupos sociais que
recorrem às normatividades e estratégias regulatórias ‘para levar as suas lutas por
diante’.” (De Sousa Júnior, 2008, p. 129). Do ponto de vista da legalidade, Roberto
Lyra Filho entende que os direitos humanos são de certa forma a síntese jurídica
das necessidades dos indivíduos, podendo esses direitos ser instrumentos de luta.
Mas, para isso, a importância da luta por direitos deve estar no projeto de
vida dos indivíduos. Esse projeto seria o equivalente à dignidade da pessoa
humana, enquanto conjunto de atributos morais e materiais que formam o indivíduo.
Assim, o projeto de vida é a liberdade de escolha e não está mais associado a
planos puramente subjetivos. Ele tem sua existência ligada ao mundo, pois o
indivíduo sabe que depende dos outros, pois vive em sociedade. Caso encontre
obstáculos, esse projeto conduz a processos de luta pelo direito, para que sua
subjetividade seja reconhecida. Esse projeto de vida pode ser igualmente coletivo,
na medida em que grupos estabelecem para si as normas que serão transmitidas
(até mesmo de forma consuetudinária).
6. Movimentos Sociais como prática do Pluralismo Jurídico
Atualmente a linha de pesquisa do “Direito Achado na Rua” organizada na
Universidade de Brasília (UnB) continua os trabalhos iniciados pelo professor
Roberto Lyra Filho, mas tem novos enfoques, como o estudo do “sujeito coletivo de
direito”. Com esse estudo, a mencionada linha de pesquisa constatou que os
movimentos sociais e demais organizações populares são importantes atores
(“sujeitos coletivos”) na conquista de novos direitos, pois, com suas mobilizações,
conseguiam espaço político.
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
Caracterizados a partir de suas ações sociais, estes novos movimentossociais, visto como indicadores da emergência de novas identidadescoletivas (coletividades políticas, sujeitos coletivos), puderam elaborar umquadro de significações culturais de suas próprias experiências, ou seja, domodo como vivenciam suas relações, identificam interesses, elaboram suasidentidades e afirmam direitos. (DE SOUSA JÚNIOR, 2008, p.146-147)
Destarte, verifica-se que, ao longo da história, os movimentos sociais
mudam ou mesmo ampliam sua pauta de reivindicações. Essas muitas vezes
coincidem com os períodos históricos relativos às chamadas “dimensões dos
direitos”, como, por exemplo, lutas mais específicas e pioneiras por direitos civis,
políticos, sociais e proteção de direitos coletivos. Importante lembrar que esses
movimentos que buscam alargar o acesso à justiça, à igualdade jurídica e também
material (o que não anula o direito à diferença), surgem com a organização dos
indivíduos excluídos e que almejam a conquista de novos direitos ou efetivação dos
já existentes. A organização dos indivíduos em movimentos sociais ou mesmo em
outro tipo de organização popular, como as associações de bairro, são fundamentais
no processo de libertação dos oprimidos e transformação da sociedade capitalista,
visto que são nesses espaços democráticos que visualizamos o pluralismo jurídico
na prática.
O acesso à justiça não se restringe à possibilidade de pleitear direitos
através de um processo legal. Compreende, inclusive, a necessidade de
redistribuição de renda. A Constituição de 1988 estabeleceu as formas diretas de
participação/soberania popular juridicamente aceitas, quais sejam: o voto (sufrágio
universal), plebiscito, referendo, lei de iniciativa popular (Artigo 14) e através da
propositura da chamada ação popular (Artigo. 5º, LXXIII). Para um alargamento do
acesso à justiça, é preciso criar, por exemplo, “um movimento cognitivo da
imaginação epistemológica para inserir no modelo existente de administração da
justiça a ideia de participação popular que não está inscrita em sua estrutura” (De
Sousa Júnior, 2008, p. 162). Com isso, as ações dos movimentos sociais e demais
organizações deverão ser reconhecidas como legítimas, ainda que alternativas ao
que está estabelecido em lei, por exemplo.
Observa-se a crítica que o “Direito Achado na Rua” faz em relação a
teorias como “direito alternativo” e “uso alternativo do direito” enquadra este, por
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
exemplo, como “produto reformista que não rompe radicalmente com a legalidade
burguesa” (Wolkmer, 2002, p.44). No entanto, o uso alternativo do direito existente
não anula a perspectiva de construção de um direito legalmente regulamentado que
nasça de acordo com os anseios populares. Os próprios movimentos sociais, além
da construção de um direito plural, usam do direito já existente, ainda que
dogmático, pois, como vivemos em sociedade, eles não podem simplesmente dar as
costas ao direito estatal, mesmo porque, nele há direitos populares conquistados.
Mas, de fato, a proposta de ruptura com o monopólio estatal na produção
do direito é essencial na luta pela regulamentação de situações novas e anseios da
população, pois a pressão política que a prática jurídica plural exerce faz com que o
Estado democrático acabe por normatizar o direito criado para manter o controle
social.
A dialética da história não permite que o direito posto acomode os
cidadãos, visto que as necessidades humanas estão sempre mudando, sendo assim
necessário cobrar a efetivação dos direitos já positivados, ao mesmo tempo em que
coletivamente construímos espaços para a pluralidade jurídica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essencialmente influenciada pelo materialismo histórico dialético, a crítica
jurídica não se limita a contrapor as concepções do direito conservador, sendo
também alternativa à práxis da sociedade e estado capitalistas. Tanto na Europa
como nas Américas, não existe apenas uma teoria crítica do direito, sendo possível
observar diferentes abordagens e proposições sobre o tema. Na Itália, por exemplo,
surgiu a tese do “Uso Alternativo do Direito”, que não quis romper com a legalidade,
defendendo apenas que o direito posto poderia ser discutido e usado para favorecer
também a classe trabalhadora e demais espoliados.
Já na América Latina, de forma geral, as teorias e práticas resultantes da
crítica jurídica têm um caráter mais combativo, colocando o capitalismo sempre em
discussão. Dentro dessa lógica, surgiu no Brasil a tese do “Direito Achado na Rua”,
propondo que o direito deve surgir das práticas e necessidades das classes menos
favorecidas, pois, se o Estado optou pelo sistema capitalista, obviamente não podem
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
esperar que seus interesses sejam regulamentados e efetivados, pois isso vai de
encontro aos interesses da classe dominante.
Por tudo que foi estudado, estrategicamente a médio e longo prazo, as
teorias e práticas da crítica jurídica devem ser complementares. A construção de
uma sociedade justa, livre e solidária, como pretende a Constituição Federal,
depende, necessariamente, de práticas emancipadoras que passam pela justiça
social. A lei é um instrumento garantidor de direitos e deveres que é totalmente
passível de ser disputada. Assim, cabe à classe trabalhadora e aos grupos
socialmente oprimidos se organizarem politicamente para conquistarem e manterem
direitos. Por outro lado, outras práticas precisam ser adotadas com vista a não
alimentar a lógica da burocracia e da judicialização desmedida.
Dessa forma, simultaneamente ao uso alternativo do direito posto pelo
Estado, os grupos marginalizados devem afirmar suas práticas cotidianamente,
ainda que essas vão de encontro ao que é permitido legalmente. Claro que práticas
que não firam a dignidade da pessoa humana e os direitos coletivos e que, mesmo
reiteradas e aceitas por parcelas da sociedade brasileira, os legisladores continuam
se omitindo quanto à sua regulamentação por questões populistas, moralistas
religiosas, ideológicas e político-econômicas.
Há temas muito importantes para a vida das comunidades tradicionais,
movimentos sociais, grupos de mulheres e organizações LGBT que, infelizmente,
são evitados e muitas vezes combatidos pelos setores conservadores da sociedade
civil e do Congresso Nacional. Dessa forma, verifica-se que a justiça social não pode
se efetivar só pelas leis postas, mas pelas práticas sociais reiteradas que os
cidadãos e cidadãs entendam importantes para a reprodução das suas vidas,
práticas essas que podem ou não ser regulamentadas pelas normas estatais.
Nesse sentido, as teorias e práticas norteadas pela crítica jurídica são
fundamentais para legitimar as reivindicações dos movimentos populares. Não há
como o Estado se esquivar para não garantir direitos a determinados grupos
marginalizados, quando estes se propõem a debater suas questões dentro da
legalidade. O Estatuto da Terra, o Estatuto do Índio, o Decreto Quilombola, o
Decreto dos Povos e Comunidades Tradicionais, bem como outras normas que
criaram órgãos estatais, parques e reservas com a finalidade de proporcionar
dignidade aos seus grupos respectivos são exemplos claros de que a organização
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
da sociedade civil, articulada politicamente, exerce uma pressão social capaz de
criar ou assegurar direitos a eles. O Estado tem interesse em regulamentar o maior
número possível de situações como forma de exercer um controle social sobre a
população. Então cabe aos interessados participarem desse processo de
regulamentação para assegurar o maior número possível de garantias.
A disputa de interesses faz com que a sociedade brasileira esteja sempre
em transformação e a história é construída a partir da síntese que resulta do
enfrentamento de interesses opostos, normais diante da pluralidade de convicções e
necessidades. Como produto histórico, as leis e outras normas costumam trazer
elementos contraditórios em seu bojo na tentativa apenas formal de não privilegiar
um grupo em detrimento do outro.
A título de exemplo, observa-se, nesse sentido, que é garantido
constitucionalmente o direito de propriedade, mas esse direito está condicionado ao
cumprimento da sua função social (Art. 5º, XXII, XXIII); as terras indígenas
demarcadas são indisponíveis (Art. 231, CF/88), mas várias riquezas naturais que
estiverem nelas podem ser exploradas mediante autorização do Congresso
Nacional; o poder público e a coletividade devem preservar o meio ambiente para as
presentes e futuras gerações, sendo vedadas as práticas que tragam riscos à função
ecológica da fauna e flora, mas mediante estudo de impacto ambiental podem ser
instaladas obras e atividades potencialmente causadoras de significativa
degradação (Art. 225, caput, IV, VII, CF/88).
Por outro lado, o que à primeira vista pode parecer a efetivação do
“princípio da igualdade” (Art. 5º, caput, CF/88), nada mais é do que a
regulamentação de situações com vistas a pacificar o conflito, o que na maioria das
vezes não resolve o problema. Em verdade, essas relativizações obstam mais que
contribuem para a consecução dos objetivos da República Federativa do Brasil (Art.
3º, CF/88), pois acabam subjugando os direitos fundamentais coletivos aos
interesses do grande capital e consequentemente da elite, que obviamente não
querem ver suas riquezas divididas com o restante da população em nome da
justiça social e redução das desigualdades sociais.
Disputar direitos quando se está do lado mais fraco é um desafio grande.
Os enfrentamentos muitas vezes não se restringem à disputa de ideias nas
discussões, ou a mobilizações para efetivação dos direitos conquistados. Desde que
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
o Brasil foi invadido por Portugal no ano de 1500, o povo começou a ser oprimido,
escravizado e assassinado pela elite, o que infelizmente continua a ocorrer. Toda a
história do Brasil é marcada pela criminalização e resistência dos grupos oprimidos,
algumas conquistas legais e perseguição das lideranças que ousaram contribuir com
a luta pela conquista de direitos que diminuem o poder da classe dominante.
Uma sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento
nacional erradicando a pobreza, a marginalização, reduzindo as desigualdades
sociais e regionais com a finalidade de promover o bem de todos (Art. 3º, CF/88) só
pode ser construída com a participação popular. A história nos mostra que os
direitos não são ganhos, mas sim conquistados e, portanto, uma sociedade
emancipada das opressões e explorações só virá com a organização da classe
trabalhadora e demais grupos espoliados, criminalizados e excluídos que
fortalecerem a crítica jurídica através de suas práticas e resistência.
Nesse sentido, a política também deve ser um instrumento em disputa
pelos grupos acima citados, pois é ela que viabiliza a luta por direitos, e esses
fatores em conjunto determinam as diretrizes ideológicas das leis e das instituições
que ensinam o que é direito.
De igual modo, necessário se faz que políticas públicas sejam
implementadas para que a educação efetive os princípios constitucionais da
liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento; bem como o
pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (Art. 206, II, III). Como resultado
dessa efetivação, poder-se-á esperar cidadãos mais críticos e participativos para a
construção de um efetivo Estado Democrático de Direito para todos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. CONSTITUIÇÃO (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.Brasília, DF: Senado Federal: centro gráfico, 1988.
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo: teoria e prática. 5ª ed. Rio deJaneiro: LumenJuris. 2004.
DE SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Direito como Liberdade: O direito achado narua. Experiências populares emancipatórias de criação do direito. 2008. Tese
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
(doutorado em direito) - Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, UnB.
KOPITTKE, Alberto Liebling. Introdução à teoria e prática dialética do direitobrasileiro: a experiência da Renap. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. 11ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.São Paulo:Companhia das Letras, 2006.
WOLKMER, Antônio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (organizadores). Os‘novos’ direitos no Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novasconflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva,2003.
WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 4ª ed. SãoPaulo: Saraiva,2002.Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996. Diário oficial da República Federativa doBrasil, Brasília, DF, 08 de janeiro de 1996.
Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Diário oficial da República Federativado Brasil, Brasília, DF, 20 de novembro de 2003.
Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Diário oficial da República Federativa doBrasil, Brasília, DF, 1º de janeiro de 1916.
Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Diário oficial da República Federativa doBrasil, Brasília, DF, 30 de novembro de 1964.
Lei nº 5.371, de 05 de dezembro de 1967. Diário oficial da República Federativa doBrasil, Brasília, DF, 05 de dezembro de 1967.
Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Diário oficial da República Federativa doBrasil, Brasília, DF, 19 de dezembro de 1973.
Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Diário oficial da República Federativa doBrasil, Brasília, DF, 30 de setembro de 1997.
SITES
<http://educacao.uol.com.br/infograficos/2013/06/18/conheca-os-movimentos-sociais-que-marcaram-a-historia-do-brasil.htm#0> com acesso em 4 de maio de
Edição Especial Revista Pensar Direito, v.7, n. 1, Jul./2015
2014 às 22h29
<http://www.mst.org.br/node/8241>com acesso em 4 de maio de 2014 às 23h42
<http://www.camara.gov.br/proposicoesweb/fichadetramitacao?idproposicao=14562>com acesso em 1º de agosto de 2014 às 11h59
<http://www.crbnacional.org.br/site/attachments/article/255/5.Projeto_de_Lei_de_Iniciativa_Popular%20(1)%20(1).pdf> com acesso em 10 de setembro de 2014 às19h29