lyra filho karl meu amigo

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ROBERTO LYRA FILHO Professor Titular de Criminologia e Filosofia è Sociologia Jurídicas da Universidade de Brasília KARL, MEU AMIGO: DIÁLOGO COM MARX SOBRE O DIREITO Co-Ediçao Sérgio António Pabris Editor e Instituto dos Advogados do RS 'Porto Alegre/1983

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Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o Direito. Porto Alegre: Safe; IAB-RS, 1983.

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Page 1: LYRA FILHO Karl meu amigo

ROBERTO LYRA FILHO

Professor Titular de Criminologia e Filosofia èSociologia Jurídicas da Universidade de Brasília

KARL, MEU AMIGO:DIÁLOGO COM MARX

SOBRE O DIREITO

Co-EdiçaoSérgio António Pabris Editor eInstituto dos Advogados do RS

'Porto Alegre/1983

Page 2: LYRA FILHO Karl meu amigo

by Roberto Lyra Filho

(Elaborada pela equipe da Biblioteca do Tribunal de Justiça do RS)

Lyra Filho, RobertoKarl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o direito. Porto Alegre,

Fabris, 1983.95p. 22cm.

l. Filosofia do direito. 2. Marxismo — Teoria do direito. 3. Teo-ria do direito - Marxismo. I. Título.

CDU335.51J40.il340.11:335.51340.12

A Gisálio Cerqueira- Filho e Leandro Konder,

corn afeto e admiração, este pequeno estudo,

que, há muito, encomendaram e, por diversos

motivos, fiquei devendo até agora.

índice paia catálogo sistemático

1. Filosofia do direito 340.122. Marxismo —Teoria do direito3.. Teoria do direito — Marxismo

335.51340.11340.11535.51

Reservados todos os direitos de publicação, total ou parcial, aSÉRGIO ANTÓNIO FABRIS EDITORRua Miguel Cou(o,745Caixa postal 4001 -Telefone (0512) 33-2681Porto Alegre, RS - Brasil

"Coníamos também com os socialistas de todasas escolas,"

.•MARX, 1880(MARX, Oeuvres, Paris,'GaUimard,

1969-1982, l, p. 1528.)

: . _ . < :

Page 3: LYRA FILHO Karl meu amigo

l l

"Aqui, é preciso revelar ao leitor um grande mistériodo nosso santo homem — a saber, que toda a sua ex-posição sobre o Direito começa por uma explicaçãogeral, que lhe escapa, enquanto falado Direito, e queele só recupera no momento de abordar um assuntodiferente, que é a lei"

MAKX,À Ideologia Alemã (í)

- MARX, Oeuvres, cil., III, p. 1231.

f*,-

Page 4: LYRA FILHO Karl meu amigo

OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

"Tomo a liberdade de pedir-lhe que estude esta teorialias fontes originais, e não em obras de segunda mão. "

ENGELS (2)

Este ensaio desenvolve o material, recolhido em aproximadamente 40anos de pesquisa e reflexão e que resumi sobretudo nos capítulos///eIVdolivro Humanismo Dialético. Os referidos capítulos foram, em parte, divulga-dos no terceiro número da revista Direito &: Avesso (3), mas, em tal formaincompleta, não chegam a delinear a síntese, agora realizada.

Em qualquer hipótese, falar sobre Marx e o Direito já é, em si, umaarriscada empresa, pois, na medida em que a tarefa se cumpra sem distor-ção, nem sectarismo, ela mesma se torna um posicionamento sujeito aosfogos cruzados do conservantismo furioso e da hero-\vorship marxista.

Marx polariza, ainda hoje, com sua presença gigantesca, tanto a irados reacionários, que ele previu e suportou (4), a seu tempo, quanto ofanatismo de seguidores,. que ele também repeliu, com ironia (5), e che-gou a denunciar, com veemência (6).

"2 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, São Paulo, Alfa-Omega, sem data, III, p. 285.3 —Direito &Avesso, Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Brasília, Edições NairLtda., n° 3 (1983). Pedidos para José Geraldo de Sousa Jr., Caixa Postal 13-1957, CEP70259,Brasflia,DF.4 ~ MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., II, p. 16.5 - MARX-ENGELS, Corresponda n cê, Paris, Editions Socíalcs, 1971-1982, VIII, p. 362.6 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., m, p. 283.

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O vespeiro permanece ameaçador e fervente. De um lado, os antimarxís-tas continuam ferroando quem ousa destacar a fecundidade e valor de tantascontribuições marxianas; de outro, os netinhos agressivos não admitem a me-nor restrição ao que denominaram o "núcleo de verdade invariável" (7) dumsaber feito e perfeito (8) ~ aliás, e de novo, em contraste com os pressupos-tos (9) e protestos antecipados de Marx (10) e Engeís (11) mesmos.

Mas, se desejarmos colocar-nos, diante da obra. marxiana, com o respeitoe independência tão bem definidos pela brilhante companheira, MarilenaChauí (12) não há como fugir à situação incómoda, entre Ciia e Caribde.

Arrostamos, deste modo, aqueles que Marx chamou de "porta-vozesdoutrinários" (13) da classe privilegiada, assim como os discípulos imaturos,que,-conforme assinalava• Engeís, utilizavam o materialismo histórico, nãocomo um "guia para o estudo", e, sim, "como pretexto para não estudarem aHistória" (14) — sem dogmas, nem antolhos.

Adernais e juntamente com esta dificuldade posicionai, surgem outras,conexas mas distintas e de ordem técnica, já por mira relacionadas em seis ti-pos de problemas (15).

O primeiro tipo concerne aos obstáculos filológicos, rio sentido em quea palavra é empregada na metodologia da ciência histórica (16); isto è", o esta-belecimento e ordenação das fontes.

Antes de tudo e apesar das edições russa, do Instituto Marx-Lênin, deMoscou, e alemã, do Instituto de Marxismo-Leninismo, de Berlim, não há,quer nestas, quer noutras publicações, uma divulgação realmente integral e fi-lologicamente impecável das obras de Marx (17).

Além disto, interferem, a todo instante, no exame dos textos marxianose sua interpretação, as assim chamadas teorias marxistas do Direito e do Esta-do, nenhuma das quais é rigorosamente marxiana, e que se excluem, recipro-

7 - LUCIEN SÈVE, Une Introductíon â Ia Philosophie Moraste, Paris, Éditions Socia-les, 1980, p. 534.

S - SARTRE, Questão de Método, São Paulo, DIFEL, 1966, p. 34.9 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., III, p. 195.

IQ-Ibidem, n, p. 10.11 -Ibidem, IIÍ.p. 283.12 "MARILENA CHAUl", Cultura e Democracia, São Paulo, Editora Moderna, 1981,p. 219-220.13 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., II, p. 16.14 -Ibidem, III, p. 283.15 ~ ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialétíco, cit., IV, l.16 ~N. ABBAGNÁNO.ZJ/cíbíiáno de Filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1960, p. 420.17 -RAYA D1JNAYEVSKAYA, FSosofia y Revoluciôn, México, Siglo Veinteuno,1977, p. 299 e passim. M, RUBEL, f« MARX, Oeuvres, cit., II, IX ss.

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camente, na polemica sobre a reconstrução do que Marx teria sustentado, apropósito daqueles temas (18). Todas essas contribuições procuram redispor,num padrão coeso e lógico, as inúmeras referências, sugestões e análisesmarxianas, a respeito de assuntos políticos e jurídicos.

Entretanto, forçam, para isto, a exegese, eliminam os textos contrastan-tes, impõem a bitola estreita e única ao acervo desordenado, fértil, cheio decintilações e achados inestimáveis, tanto quanto de extrapolações arbitrárias,conclusões apressadas e ambiguidades perigosas.

De qualquer forma, as teorias marxistas do Direito e do Estado não re-presentam, de nenhum modo, a tradução fiel do pensamento de Marx. Comoacentua Miliband, isto não importa dizer que a elas falte alguma relação comas concepções marxianas, porém que destacam certos aspectos, em prejuízode outros (19);mutilam o oscilante corpo de ideias,ora nítidas,ora confusas; edissipam a riqueza do conjunto, para reduzi-lo a um sistema, que ali não existe.

18-UMBERTO CERRONI.D Pensamento Jurídico Soviético, Lisboa, Europa-América,1976; RICCARDO GUASTINI,Marxismo e Teorie dei Díritto, Bologna, IlMulino, 1930;ELIAS DÍAZ, Legalidad-Legitimidad eu e! Socialismo Democrático, Madrid, Civitas,1978; MONIQUE & ROLAND WEYL, Révolution et Perspectives du Droit, Paris, Edi-íions Sociales, 1974; ZHIDKOV et alii, Fundamentos de Ia Teoria Socialista dei Estadoy dei Dereclio, Moscú, Editorial Progresso, 1980; NICOS POULANTZAS, L'Êtat, LêPouvoir, Lê Socialisme, Paris, PUF, 1978;IMRE SZAKÒ, Lês Fondements dela Théoriedu Droit, Budapest, Akadérniai Kiadó, 1973; J. R. CAPELLA, org., Marx, el Dereclioy el Estado, Barcelona, Oikos Tau, 1969; J. R. CAPELLA, Dos Lecciones de fntro-ducción a! Deredio, Barcelona, Universidad de Barcelona, 1980 (fora do comércio);MICHEL MIAILLE, Uma Introdução Critica ao Direito, Lisboa, Moraes, 1979;ERNSTBLOCH, Karl Marx, Bologna, II Mulíno, 1972; ADAM PODGORECKI, Lawand Sodety,London, Routledge & Kegan Paul, 1974;GEORGES SAROTTE, LêMatérialisme Histo-rique dans l'Ssíude du Droit. Paris, Ed. du Pavillon, 1969; RADOMIR LUKIC, 77ifor/ede 1'Êtat et du Droit, Paris, Dalloz, 1974; B. T. BLAGOJEVIC et alii, Introductíon auxDroits SocMistes, Budapest, Akadémiai Kiadó, 1971; PÈTR I. STUCKA, La FunzioneRivoluzionaria dei Diritto e dello Stato, Torino, Einaudi, 1976; E. B. PASUKANIS,La Théorie Générale áu Droit et lê Marxisme, Paris, EDI, 1970; ERNST BLOCH, Na-turredit und Mensdilldie 11'ilrde, Fiankfurt am Maim, Suhrkamp, 1961; DIVERSOS,Sovlet Lega! PhUosophy, Harvard, Unlversity Press, 1951; CHAMBLISS & SEIDMAN,Law, Order and Power, Reading, Addison-Wesley, 1971; DIVERSOS, Teorie Sovie-tidie de! Diritto, Milano, Gíuffrè, 1964; BERNARD EDELMAN, O Direito Captadopela Fotografia, Coimbra, Centelha, 1976; M. BOURJOL et alii, Pour une Critiquedu Droit, Grenoble-Paris, Uníversité de Grenoble-Maspero 1978; J. J. GLEIZAL, LêDroit Pôlitique de l'État, Paris, PUF, 1980; MICHEL MIAILLE, L'Êtat áu Droit, Paris,Maspero, 1978; MICHEL MIAILLE, Analyse Critique dês TJiéories Marxistas de VÊtai,(fora do comércio); A. J. ARNAUD, Critique de Ia Raison Juridique, Paris, LGDJ, 1981— etfen passe...19 - RALPH MILIBAND, in J. R. CAPELLA, org., ob. cit., p. 49; NORBERTO BOB-EIO, Contribucclón a Ia Teoria de! Dereclio, Valência, Fernando Torres, 1980, p. 357.

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Convém destacar, entretanto, que, atualmente, os mais lúcidos marxis-tas e marxólogos "ocidentais" começam a retificar as suas posições e, entreeles, já se considera banal (20) o reconhecimento de que não há uma teoriado Estado, elaborada e coerente, na obra de Marx (21) assim como tambémali não se encontra urna teoria formada e completa do Direito. Sobre o quenos interessa particularmente, neste ensaio, já tende a prevalecer, fora dasáreas de controle do "socialismo" oficial das repúblicas ditas populares (22),esta conclusão exata e firme de Guastini: "seja qual for a discriminação feita,dentro da obra de Marx (por exemplo, entre a juvenil e a madura, a filosófi-ca e a científica e similares), seja qual for a periodização dessa obra — em par-te alguma, e tampouco no conjunto, se acha uma teoria ou doutrina do Di-reito. Há, sim, enunciados, ora cognitivos, ora preceptivos, concernentes aoDireito, mas não existe meio de reduzi-los à unidade e muito menos de con-siderar a soma deles uma doutrina constituída, dispensando "integração e ne-cessitando apenas explicita coes e repetição ortodoxa (23).

Para evitar a confusão entre as ideias jurídicas marxianas e qualquerteoria, sói disant marxista, do Direito, que em Marx não se perfaz e, de amarxista, varia de fona em comble, é preciso eliminar as hetero-integrações, ossaltos, as supressões, as traduções mutiladoras (24). Tudo isto forma uma cor-tina de fumaça, que perturba as novas leituras, criando especiais dificuldadespara a singela retomada do estudo, sem preconceitos e arranjos preestabeleci-dos.

Vale recordar, consequentemente, o conselho de Engeis, assim formu-lado: "tomo a liberdade de pedir-lhe que estude essa teoria nas suas fontes

20 - BOABENTURA DE SOUSA SANTOS, m P. BEIRNE & QUINNEY, orgs. Marxismand Law, New York, John WBey & Sons, 1982, p. 364; M. CAIN & A. HUNT, Marx andEngeis on Law, London, Academia Press, 1979, p. XIV; ERICWEIL.JÍefce/ etVÊtat, Pa-ris, Vrin, 1970, p. 110.21." RALPH UILIBAÍ^D, Marxism and Politícs, Oxford, University Press, 1977, p. l ss;NORBERTO BOBEIO,Qiiale Socialismo? Torino, Einaudi, 1976, p. 3 ss.22 - ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capital e Direito do Trabalho, Porto Alegre,Fabris - IARGS-AGETRA, 1982, passim. PAULO SINGER, Aprender Economia, SãoPaulo, Brasiliense, 1983, p. 157 ss.23 - RICCARDO GUASTIN1, Marxismo e Teoríe dei Diritto, cit., p. 9rlO; também:GUASTINI, Marx: DaUa Filosofia de! Diritto alia Sdenza adia Societã - Un'AnalisiStorica e Linguistica dei Pensiero di Marx, negli Ánni delia sua Formazione Teórica ePolítica, tendo, em apêndice, o valioso Lessico Giuridica Marxiano (1842-1851), Bo-logna.n Mulino, 1974.24 - A propósito, ROBERTO LYRA FILHO,^mmmíimoDw/éííco, cit:, notas 91,108,122,126,127,133,134,135,153,154,155, 156,157,259,264,280,286,291,303,312,323,327, 329,332, 339,349,357,372,373,386,420,422 etc.

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originais, e não em obras de segunda mão" (25). Engeis falava do materialis-mo histórico ~ este, sim, delineado em concepção global (26) ~, mas a suarecomendação se aplica, afortiori, no caso das ideias jurídicas marxianas, que,justamente por não se articularem numa teoria geral do Direito, são aindamais suscetiveis de remanejamento, disfarçado como exegese.

O segundo tipo de problema a vencer, no estudo sobre Marx e o Direito,è constituído pelos obstáculos lógicos, atinentes, sobretudo, à falta dumaconstrução sistemática do método-conteúdo (a dialética marxiana), seus as-pectos um tanto indecisos e carentes de fundamentação mais precisa e satis-fatória. Isto não poderia deixar de repercutir, como, de fato, repercute, navisão e abordagem do Direito, desde as disparates gerais, sobrea dialética mes-ma, que aparecem nalguns marxistas (27), como agravamento da irresoluçãomarxiana Ç28), até o balanço, entre a dialetização mais ampla e um mecani-cismo angusío, no tratamento do Direito, reduzido a epífenôrneno superestru-tura! (29), com a sua posterior elaboração, principalmente sob o ponto de vis-ta de leis (estatais) e mores da classe dominante (30).

Não há espaço, aqui, para considerar in extenso a questão da dialéticamarxiana— que já debati em dois longos escritos recentes (31).

Mas é preciso, ao menos, situar o problema, — pelas suas óbvias inter-ferências na focalização dialética e, às vezes, subdialética, ern Marx e, espe-cialmente, nos marxistas, dos fenómenos jurídicos e das "relações essen-ciais", que neles se ocultam (31 A).

De fato, no próprio O Capita}, Marx distingue o fenómeno, em super-fície, e aquelas relações subjacentes e portadoras da significação profunda,que nos permitem vê-lo com exatidão. "Sabe-se", diz ele, "que é preciso dis-tinguir entre a aparência das coisas, e sua realidade" (32) ou "essência" (32 A).

25 -Ver nota 2.26 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., III, p. 284-286.27 - ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., nota 280 e 332.28 - ROBERTO LYRA FILHO,Humanismo Dialético, cit., nota 264, por exemplo.29 - MARILENA CHAUl", Roberto Lyra FSho ou a Dignidade Política do Direito, inDireito &Avesso {nota 4), n? 2 (1982), p. 21-30.30 - ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., IV, l (análise da crítica aoprograma de Gotha).31"- ROBERTO LYRA FILHO, ibidem, II, IIT, IV e V, 1; ROBERTO LYRA FILHO, AReconciliação de. Prometeu, Brasília, Centro de Estudos LMalétícos, 19S3.-31 A - MARX, Osuvres, cit., I, p. 1684.32 - MARX, Osuvres, cit., I, p. 1032.32 A - IMRE SZABÕ, 'Lê Droit Socialiste, in B. T. BLAGOJEVIC, fntroductlon auxDroiís Socialistes, cit., p. 19-22.

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Esta observação, apresentada como princípio científico (33), não se esgotaria,entretanto, no idealismo dos conceitos (positivismo lógico),.nem dos "fatos"brutos (positivismo naturalista), porque Marx rejeitou todo e qualquer positi-vismo, opondo ao que chamou cruamente de "merda" (34) comteana a supe-rioridade, em conjunto, de Hegel e da sua dialética (35). Por isso mesmo,Engels notava que Barth e outros liam mal a teoria materialista da história,como se fosse um positivismo, de modelo economicista, e concluía: "o quefalta a todos esses senhores é a dialética. Vèrn apenas causas aqui e efeitosali... Para eles, é como se Hegel não houvesse existido" (36).

Apesar destas opções cortantes, entretanto, subsiste um ingrediente po-sitivista, muito mais forte nos epígonos do que em Marx mesmo, porém nestedeixando transparecer limitações fenomenicas e um culto à ciência, como seesta sobrepairasse às distorções e condicionamentos ideológicos (37), além deapresentar urna constante hostilidade a tudo.o que chama de "mística" e"metafísica". Esta atitude resulta aparentada ao suposto itinerário humanoprogressivo, no padrão dos três estados (o teológico, o metafísico e o positi-vo). E isto é, aliás, evidente, na medida em que os discípulos acentuaram ain-da mais o "terceiro estado", cortando a obra de Marx ern duas partes, uma"filosófica" e outra "científica", para, depois, não mais saberem como inserir,neste quadro, a dialética. O que era, em Marx, uma hesitante mistura de espí-rito dialético e ciência empírica, desenvolve-se em proveito desta última; e,para não cair nos braços de Comte, arma um travejamento de_ categorias econceitos de "razão pura", dita "científica", que fugindo a-Cbmte, seria, emdeterminados marxísmos, devorada por Kant. Este último caso é, aliás, nítido,embora inconfesso, ern Althusser.

A verdade é que Marx nunca chegou a tais despropósitos, que, em nomeda dialética, tratam de liquidá-la (38); pois, nele e apesar dos colapsos inciden-tes, o compromisso declarado com a "essência" e a dialética mesma, situa onúcleo mais constante, em que se diz, e é, um autêntico filho de Hegel (39)."

33-Ver nota 32.34 - MARX-ENGELS, Lettres sur lês Sciences de Ia Nature, Paris, Éditiom Sociales,1974,p.46.35 ~ Ibidem. Ver tambe'ra MARX, JENNY MARX, ENGELS, Lettres à Kugdmann, Pa-ris.Éditions Sociales, 1971, p. 169.36 -MARX-ENGELS,ObrasEscolliidas, cit., III,p.292.37 - MARX, Oeuvres, cit., I, p. 273. A propósito, ver ROBERTO LYRA FILHO, Huma-nismo Dialético, cit., nota 264.38- ALTHUSSER, Posições I, Rio, Graal, 1978, p. 143 ss. Vera propósito ROBERTOLYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., nota 280.39 - Ver ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dmlético, cit., notas 324 e 338 e textocorrespondente.

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Todavia, a penetração transempírica, em Marx, tem ambiguidades e in-suficiências, que resultam da pretendida reviravolta, mediante a qual dese-jou transpor uma filosofia do ser, de timbre e âmago nada menos do queteológico (40) ~ tal corno é a de Hegel — para o âmbito materialista ~ queHegel desapoiava, como "sistema consequente do empirismo" (41), na redu-ção à exclusiva determinação, singular e concreta (42). Assim, a dialética,originalmente concebida para explicar, nas coisas, a pensar, em coincidênciado raciona e do real, o Ser-em-Devenir (que não disfarça o seu engajamentoteológico), passaria a servir, em Marx, à redenção do materialismo, a fim deesconjurar o díabinho mecanicista, mal se acomodando e adaptando, porém,a esta função leiga e empírica. Daí o embaraço dos marxistas, que tendem adesfazer-se, mais ou menos conscientemente, do trambolho, ainda que a pre-ço de transformarem as ideias marxianas no estranho hibridismo que Marxnunca admitiu, em linha de princfpio: um materialismo "dialético" — positi-vista. Para desmoralizar este último, basta a 3a tese sobre Feuerbach (43), àluz da qual a 6a tese (44) ganha o seu verdadeiro matiz e, através da pontenão dinamitada do humanismo dialético e do "homem total" (45), recoligao homem, "produto" das "relações sociais em seu conjunto" ao homem cuja"essência" é liberdade, como potencial, realizado na práxis (46). Depois disto,

40 -HEGEL, Redit, Staat und Gesdiidiie, Eine Aits\vahl aus sémen Werken, F.Buloworg., Sturtgart, Kroner, 1955, p. 374.41 - HEGEL,Enzyklopãdie der pliSosophisclien Wissensdiaften im Gnindrisse, §60 (ed.1830).41—Ibidem, adendo, §38. Esta remissão e a anterior, feitas conforme a tradução france-sa de Bernard Bourgeois, HEGEL, Encydopédie de Sciences Philosophiques, I: Sciencede Ia Logique, Paris, Vnn, 1979, p. 322 e 496. A propósito desta hesitação, ver MARX,Oeuvres, cit., II, p. 1555, onde a chave dos fenómenos é devolvida aos fenómenos mes-mos. Seria, então, lícito pergunlar corno é possível, sem o "passepai-tout duma teoriahistórico-filo só Oca" (MARX, ibideiri), formular as conjecturas prospectivas que consti-tuem a essência, mola e teleologia do materialismo histórico e sua proclamação dum fu-turo desenlace das lutas e contradições classísticas, num ponto situado além do horizonteatual. Parece que o problema, aqui, d a desdialetização ep i st em o lógica, em prejuízo dafilosofia da História, como se a verdade supra-histórica não pudesse surgir (MARX,ibidem') dentro do horizonte histórico mesmo. A relatividade das concepções, desta ma-neira, escorrega para o relativismo - e carrega o materialismo histórico, junto com todasas outras edificações transempíricas.43'-MARX, Oeuvres, cit. Hl,p. 1030.44 ~ Ibidem, p. 1032. Ver nota 110 e ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, SãoPaulo, Brasiliense, 1982, p. 112-113.45 - MARX, Oeuvres, cit., I, p. 79 ss, onde, aliás, se insinua o artificialismo das "antíte-ses teóricas" (p. 80} entre subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo. So-bre o "homem total", ver ibidem, p. 24 ss.46 -MARX, Oeuvres, cit., m, p. 166 ss (ver ibidem, sobrerepercussõcsjurídicas, p. 17175 epOTsím)jROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., notas 91,372 e 373.

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lfalar em processo sem sujeito e "subordinar a dialética ao materialismo" (en-tão fatalmente rnecanicista) chegando a invocar a suposta abonação do arqui-inimigo Hegel (47), paia defender a cibernética dos aparelhos, num processosem sujeito, é puro delírio -de Althusser, que, disse eu noutra oportunidade,antes do uxoricídio dome'stico, praticara um "marxicfdio" intelectual.

O fato é que as aplicações duma díalética marxiana — inclusive ao Di-reito (e, por isto, eu me detenho, aqui; no intrincado problema) — denun-ciam a hesitação daquela dialética mesma nos seus aspectos gerais e tantoem conteúdo, quanto operatoríamente.

. Em .que sentido-se deve entender a dialética marxiana? Para isto, nãobastam as metáforas da casca "mística" e do núcleo "racional" (48) ou davirada, em que a própria dialética, supostamente plantando bananeira, noidealismo hegeliano, ficaria, com Marx, solidamente plantada em seus pésmaterialistas (49). Acontece que, em Hegel, não é a casca, mas o núcleo-mesmo, que serve ao "misticismo" (50); e, quando se põe sobre os ditospés materialistas, a dialética, já vem, portanto, não com a cabeça no lugar,mas com a cabeça cortada — no que se arrisca a perder e, de fato, perdelogo o equilíbrio, para cair sobre o traseiro, no positivismo dos fenómenosocos. Ora, com o vácuo ontológico, ela não pode servir, sequer, para o fimprincipal da sua cooptaçãó por Marx, que é precisamente destruir o positi-vismo (51), mediante essa dialética (nada obstante, decapitada).

Isto, é evidente, não inutiliza todos os resultados concretos, análisese propostas validas, que o próprio Marx alcançou com esse instrumento bam-bo; porém denuncia e explica o caráter oscilante, as ambiguidades, as contra-dições não-dialéticas da focalízação marxiana de muitos temas (não excluin-do o jurídico). De tal sorte e para ganhar a maior nitidez, ou se amputa, de-finitivamente, a dialética (tal qual fosse ela uma excrescência) e o marxismose torna um positivismo de esquerda (inclusive no âmbito jurídico) (51 A),

47 - Ver ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialètico, cít., nota 332 e 339. VerALTHUSSER, in JEAN HYPPOLITE, org., Hegd et Ia Penses Moderne, Paris, Payot,1970,p.l09.43 - MÃRX-ENGELS, Obras Escolhidas, cít., H, p. 16.49 - Ibidem. ..50 -Vernota 40.51 -MÃRX,Lettrss à Kugelmann, cit., p. 169.51 A - DUJARDIN & MICHEL, in M. BOURJOL et alii, Pour une Critique du Droit,cit., p. 16.

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ou se reforça o tônus dialético e a mentalidade positivista "acusa" estemarxismo de hegeliano ou "místico" (assim, por exemplo, no iurisnaturalís-mo de Ernst Bloch, que Habermas cognominou "o Schelling marxista" (52)— ultrapassando até a "mística" racional hegeliana).

A aporia vem do próprio Marx, embora, nele, jamais se torne tão sim-plista e primária, quanto em alguns seguidores menos ágeis. Efetivarnente, nãose trata sequer da falta duma teoria ou doutrina do Direito, em Marx — o quejá foi assinalado e permanece óbvio, para quem não anda com os olhos venda-dos pelos preconceitos —; mas de uma verdadeira Impossibilidade conseqiien-cial de construir, em ortodoxia marxista, a "essência" do Direito, ali ausente,mesmo que esta seja concebida, segundo o modelo metódico da ciência eco-nómica marxiana.

Procurando as "relações essenciais" (53), que não surgem à flor dosfenómenos jurídicos, ditos positivosjá se empreende uma indagação sobre ca-tegorias transempíricas, ainda que estas nos pretendam brindar com uma on-tologia marxístico-lukácsiana, isto é, não divorciada dos fenómenos, porémdeles partindo, para "deduzir" o "ser" do Direito, dentro da própria cadeia,das transformações (54).

Acontece que, perante a supressão do Ser hegeliano e a indeterminaçãoou supressão de outro "ser" transempírico, valendo, problematicamente, paraessas "ontologias" marxistas, o marxismo, em si, ficou desorientado, entre aintuição aguda, mas não fundamentada, de Lenin, que postula o Absoluto

S2-3URGENEAKER.UA.S,ProfHsPhilosop!tiqiie!;et Poliliqiies, Paris, Gallimard, 1974,p.!93ss.53 -VernotasSl e32.54 —Não propriamente Ser em sentido fixista, mas Ser dialctico, Ser-em-Devenir;ou,como disse em noutro escrito: não o que o Direito é, porém, antes, "o que ele vem aser, nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta,dentro do mundo histórico e social" (ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit.,p. 14-15). Ver LUKACS, Zur Ontoíogie dês GesellschaftHchen Seins:Die OntologischenGrundprinzipíen von Marx, Darmstadt — Neuwied, Luchteihand, 1972, p. 12. Conferir,na tradução impecável de Carlos Nelson CoutinlioiLUKACS, Ontologia do Ser Social:Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx, São Paulo, Livraria Ciências Huma-nas, 1979,p. 17.

O camitilio lukácsíano parece-me correto, com a ressalva, porém, de que, nele, o "ser"buscado não seja confundido com os fenómenos e, portanto, dissolvido neles. Neste caso,o "ser" se torna apenas um pseudónimo, ou dos fenómenos mesmos, induzido o padrãoinerente, ou das categorias, mentalmente "deduzidas" da "razão", a fim de ordená-los. Eisto nada tem a ver com a dialética do Ser-em-Devenir.

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no processo (55), e o paradoxo de Engels, segundo o qual o "Absoluto" é oprocesso mesmo (56).

Neste caso ou temos uma "díalética", parecendo a cabeça de pau damula empírica ou uma "dialética" empírica lembrando a mula sem cabeça. Dequalquer forma, do vácuo ontológico não se extraem mais do que uma pseudo"ontologia" de "words, words, words" (57) ou de "facls, facts, facts" (58)(para os quais só existem os remendos de conceitos à Kant, logo rebaixados,nas induções de Comte, que Marx rejeitava, ou afinal abstrativas, nos empiris-mos lógicos, que nada têm a ver com uma lógica dialética) (59). E onde fica,entífo, o núcleo que enforma as "relações essenciais", quer dentro dos fenó-menos, quer nas construções mentais, que pretendem vazá-lo em categorias?Onde fica, sobretudo, o heart of the mattei', "aquilo" que faz com que a exis-tência e os fenómenos, efetivamente, sejam, isto é, se manifestem, corn "rela-

55 — "A diferença entre o subjetivismo (ceticismo, sofística etc.) e a dialética consiste,entre outros, no fato de que, na dialética (objetiva), é também relativa a diferença entrerelativo e absoluto. Para a dialética objetiva o absoluto está no relativo; para o subjeti-vismo e asofística, o relativo é só relativo e exclui o absoluto": LÊNIN, Quaderni Filoso-fici, Roma, Editor! Riuniti, 1976, p. 363. Se interpretarmos o "está no" relativo, comoabsolutizacâo do processo mesmo, é evidente que caímos na alternativa de Engels eseus próprios impasses,56 — ENGELS, Dialectique de Ia Nature, Paris, Editions Sociales, 1973, p. 234:"assim,a ciência da natureza confirma o que ãh Hegel (onde?): a açãb recíproca é a verdadeiracausa fi/ialls das coisas. Não podemos remontar para além desta ação recíproca, pois,atrás dela, não há precisamente nada a conhecer". Note-se que Engelscita Hegel de me-mória incerta ("onde?") e, nisto, é claro, traj Hegel, para quem a "causa eficiente" e,não, a final, é "necessidade cega", enquanto a causa final, ligada ao objetivo (finalidade,Zweck), através deste, manifesta o englobante e se perfaz no Ser, no Absoluto: "o fimrealizado" volta à "origem" (HEGEL, Encydopédie, cit., versão Bourgeois, p. 266 ss,440 ss). O Ser-em-Devenir, portanto, se realiza nos fenómenos e, no entanto, permanece,corno suporte de toda efetivação.57 ~ SHAKESP£ARE,fiam;eí, U, 2.58 — "Uma doutrina puramente empírica do Direito é, como a cabeça de pau, na fábulade Fedro, uma cabeça que pode ser bonita, rnas infelizmente nío tem cérebro" (KANT,Staío diDiritto e Società Civile, N. MERKER, org., Roma, EditoriRiuniti, 1982,p.216).Quando, por exemplo, LEON RADZINOWICZ afirma, em Criminologia - "agora, des-confiamos da filosofia e exigimos fatos" (Ideology and Crime, London, Heinemann,1966, p. 127), nem percebe que, a pretexto de expulsar a "ideologia", transmite urnaideologia, que apenas náo se enxerga como tal. Ver, a propósito, MARILENA CHÀUl",Cultura e Democracia, cit., p. 85; MERLEAU PONTY, Éloge de Ia Philosophie et AviresEssais, Paris-, Gallimard, 1967, p. 112 ss.59'- LUIZ DE CARVALHO BICALHO,^ Evolução do Pensamento de Sartre. Belo Ho-rizonte, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de MinasGerais, 1974 (tese de concurso para livre-docência rnimeografada), p. 353-364.

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coes essenciais", com significação e enlace transempírico e até um endereçoteleológico tão forte, como no evolucionismo social marxiano? Se, para atémdos.fenómenos liada existe, a dialética fica desarvorada.

^_. Não à toa os marxismos permanecem dilacerados, entre o voluntarismoprometéico do Homem e o encadeamento cego de aparelhos, no "processosem sujeito". Isto resulta de que, tendo Marx querido "desvirar" a dialéticahegeliana, deixou sua própria dialética sem qualquer ponto de apoio (60).

O problema, que afeta, como insinuamos, a própria construção das cate-gorias económicas (61), também se reflete nas categorias jurídicas e nas obs-truções que levanta à visão estritamente marxista do Direito, ern totalidade emovimento.

Marx ficou devendo aquele estudo sobre a dialética, em termos gerais,muitas vezes anunciado e jamais escrito (62). Ora, enquanto os seus discípu-los engrossam os obstáculos, com o psitacísmo beato e repetidor de fragmen-tos entranhados em diversas obras e esboços incompletos ou anotações inci-dentes (63), o próprio Marx e até mesmo no campo onde são mais fortes evivas as suas contribuições, o histórico e económico, também nunca se desem-baraça de todo da carência de fundamentação das suas operações dialéticas.Estas, assim, correm o risco de escorregões positivistas ou de afirmaçõesprogramáticas e de mera intencionalidade, sem a exata definição de rumos eprocedimentos. A totalidade pensada, sob impulsão externa (64), seria emMarx o "desentranhamento, pela análise, dum certo número de relações ge-rais e abstraías", que se obtêem pela "intuição e representação" (65). Aliás,ele fala, tanto em categorias vestindo episódios fenomênicos, quanto emcategorias simples, "coni existência independente, de caráter histórico ou na-tural e anteriores às categorias mais concretas" (66). Contudo, estes "produ-tos do cérebro pensante, que se apropria do mundo, como pode", não nos

60 - Ver PIETRO ROSSI, &i N. ABBAGNANO et alii, La Evoludôn de Ia Dialéctica,Barcelona, Martinez Roca, 1971, p. 251-252; IGNACIO SOTELO, Sartre y Ia RazónDialéctica, Madrid, Tecnos, 1967, p. 158.61 - MARX, Die Afethode der politiclien Okonoinie, in MARX-ENGELS, Texte Oberdie Methode der okononúsdien Wissensdiaft, bilingue, Paris, Editions Sociales, 1974,p. 156 ss.62 - MARX-ENGELS, Lettres sur !es Sciences de Ia Nature, cit., p. 64.63—Exemplo característico desse psitacismo beaío é o ensaio de M. ROSENTHAL,LesProbtèmesdelaDialectiquedansle Ca pitai de Marx, Paris, Editions Sociales, 1959.64 - MARX, Die Melhode, cit., p. 160.65 —Ibidem.66 -íbidem, p. 162.

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dão sobre a realidade profunda e a origem da razão raciocinaníe (67), maisdo que um desenvolvimento à fé do realismo ontognosiológíco um tanto in-génuo. E, nisto, vão descambar, com Lênin, para a "teoria do reflexo", assimcomo, em Marx mesmo, não fundam o padrão dialético das coisas e só minis-tram a 'Verdade" durn critério pragmático (68). O recurso a tais "soluções"precárias, deixa inclusive de notar que até a avaliação da funcionalidade legi-tima e operacionalização correia, já carregam não desprezíveis pressupostosteóricos. Em todo caso, um relativismo (não dialético) se insinua nesta "pro-va" pela práxis.

Para usar a metáfora tão grata a Marx, se a "prova" do pudim dialéti-co se faz, comendo, ainda assim é indispensável o critério para distingui-lodum bolo de lama ernpirista; e, em seguida, no saboreá-lo, vem a questão doontognosiológico paladar, que não coníunda o produto da melhor doceiracom o pó industrial de supermercado ernpirista: misture ao fogo baixo, comum litro de leite, sem deixar ferver, ponha na forma, deixe esfriar — e estápronta a "delícia" pragmática.

Por tudo isto, quando um marxista, mesmo erudito e sagaz, como ImreSzabò, pretende oferecer-nos uma reconstrução da essência do Direito, supos-tamente extraída de Marx, fica perdido entre postulações confusas e citaçõesdo seu mestre, como se fossem prova do acerto das teses (69). É um método,aliás, utilizado pela maior parte dos marxistas, com transposições da teológica"verdade revelada", um bocado sacrflegamente, das barbas brancas do Senhor,para os bigodes grisalhos do bomKarl, que, como vimos, não se julgava umdeus (70), nem sequer admitia a existência de deuses. Seria pura malícia re-lembrar, aqui, os antecedentes duma adolescência teísta, no jovem poeta, queentão extraía parte da sua força "prometéica" de uma reza convencional (71).Dirão que isto era bobagem de menino (aliás já bem crescidinho, por volta dos

67 - ROBERTO LYRA FILHO, A Reconciliação as Prometeu, cit.; ROBERTO LYRAFILHO, Filosofia, Teologia e Experiência Mística, in Anais do 89 Congresso Interamerl-cano de Filosofia, São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia, 1974, H, p. 145 ss.68 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1030 (2? tese sobre Feuerbach). A propósito, NOR-MAN D. LIVERGOOD, Activity in Marx's PhUosophy, The Hague, Martínus-Nijhoff,1967.69 - IMRE SZABÕ, in BLAGOJEVIC et alii, Introduction aitx Droits Socialistes, cit.,p. 19-24.70-Ver notas 5,6 e 10,11.71 — MARX-ENGELS, Tferfce (ed. da Dietz Verlg), volumes complementares, I, p. 613(cfr. S. S. PRAWER, Karl Marx and World Literature, Oxford, Uníversity, Press, 1978,p. 9): "Contra ventos, ondas luto;/ Rezo a Deus, é meu Senhor,/ Velas pandas,/ rumofruto/ No astro firme, condutor" (MARX, circa 1837).

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20 anos); convenhamos, entretanto, que é bastante pitoresco ver, por outrolado, uns moços imberbes e tocados pela ruptura epístemológica (em queAlthusser engole uma fatia do idealismo de Bachelard), repetindo, contraCorneille, que o valor depende da maturidade dos anos (71 A) — o que, enpassant, resultaria no absurdo cronológico de considerarmos o Schellingvelho mais "científico" (no seu misticismo reacionário) do que o Shellingmoço (de tantas antecipações — na Neue Daduktion dês Naturrechts, porexemplo — com nítido sabor progressista e ao estilo liberal do jovem Marx).

O fato é que os marxistas continuam, desde Lassalle, às voltas com anostalgia do "salto ontológico" (72) e, quando o intentam, arriscam-se aostropeções e quedas, impíedosarnente apontados pelos seus companheiros.Engels já puxava as orelhas contemporâneas e lassalleanas, com esta censuracontundente: "o gajo demonstra, apesar de tudo, uma grande superstição,crendo ainda na ideia do Direito, no Direito Absoluto. As objeções quefaz à filosofia jurídica de Hegel são, em grande parte, muito carretas, mas elepróprio não avançou muito com a sua filosofia do espírito. Até no ponto devista filosófico, devia, no entanto, haver chegado a captar como absoluto so-mente o processo, e não apenas um resultado momentâneo deste; e, se o ti-vesse feito, não resultaria disto outra ideia do Direito, senão como o proces-so histórico mesmo" (73).

Já chamei esta ligação do Direito em geral, e não apenas das normas deum só conjunto, o estatal, à movimentação do processo histórico, de "fecun-do ponto de partida para uma nova filosofia jurídica" (74); mas "apenas umponto de partida", pois é necessário desobstruir, primeiro, seja a aporia dialé-tica marxiana (75) e a absolutização do processo, que criou o significativo dis-sídio entre Engels e Lênin (76), seja a indeterminação, na abordagem de En-geís, sobre qual aspecto do processo é verdadeiramente jurídico. Ê certo de-nunciar a "ideia do Direito", que pretendia apresentar-se como autónoma,situada num compartimento estanque e desentranhada,.por completo, dofluxo histórico-social (isto é contraditado pelos fatos); mas, dentro deste

71 A-ROBERTO LYRA FILHO, Prefácio a AGOSTINHO RAMALHO MARQUESNETO,A Ciência do Direito, Rio, Forense, 1982, p. XIII.72 - LUKACS, Zur Ontologie, cit, p. 12.73 - MARX-ENGELS, Cotrespondance, cit., VI, p. 375.74 - ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo DMético, cit,, nota 245 e texto correspon-dente.75 — Ver, aqui, notas 55,56 e texto correspondente.76 — Ibiãem.

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fluxo, o fenómeno, articulado no processo, não some, sem mais, na enxurra-da" (77). E isto nos devolve à faltante (em Marx) teoria ou doutrina geral doDireito, que, entretanto, recebe do autor ã.'0 Capital não poucas luzes inci-dentes, em todas as fases de sua obra. A partir dumas colocações excepcio-nalmente fecundas, que se encontram, por exemplo, n'A Sagi-ada Família eaté na Ideologia Aleuiã' (78), é possível caminhar, pós-marxíanamente, com oacréscimo de análises e propostas não incompatíveis (já o veremos) de toda asegunda etapa de Marx, para uma visão do Direito que mantenha o fôlegodialético, ná"o se dissolva no empirismo sorrateiro, nem se divorcie do proces-so histórico; e incorpore, transfunda e reenquadre o que de válido e subsisten-te se encontra no conjunto da obra aqui estudada.

O terceiro tipo de problema do nosso rol ê decorrente dos pa>'alogismosocasionados, seja pela ausência duma teoria ou doutrina do Direito em Marx,seja, como já foi explicado, pela impossibilidade prática de sequer intentaressa teoria ou doutrina, sem resolver a questão lógica e ontognosiológica dadialética marxiana.

A dialética é lógica ontológica e, em suas conotações, ontognosiológica,pois não consiste apenas em um estilo de pensamento correto — e, assim lógi-c a — e uma postura que se coliga à natureza contraditória das coisas, emtotalidade e movimento — e assim ontológica — porém, ao mesmo tempo, nu-ma proposta do co-implicado critério de coincidência do pensamento e do"ser" das coisas mesmas — e, assim, gnosiológica. Nada disto se realiza perfei-tamente em Marx e tal carência determina os paralogismos marxianos emarxistas. Os primeiros são paralogismos de texto (os .que recolhem certos

77 - ROBERTO LYRA FILHO, Razffes de Defesa do Direito, Brasília, Editora Obreira,1981, p. 8. A propósito, ver MARX, A Sagrada Família, in MARX, Oeuvres, cit., m,p. 453.78 — MARX, Oeuvres, cit., III, p. 453 e 1231. Ressalvo que, nas colocações citadas,Maix intuiu a perspectiva histórica do Direito, na dialética da Justiça, realizada pela suanegação, mas conserva a dificuldade inerente à não-dialetizaçao dos elementos antitéti-cos e à falta- da construção expressa e global durna teoria não idealista da Justiça mesma(ver ROBERTO LYRA FILHO, Hutiwnismo Dialético, cit., nota 357, capítulo IV e Vêpassitti). A este propósito é que vou aprofundando aquela "ontoteleologia" do processo(ROBERTO. LYRA FILHO, O Direito Que se Ensiiw Errado, Brasília, Centro Académi-co da UnB, 1980, p. 28; ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, tií.,passim;ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 122), que mereceu a atenção simpá-tica da companheira Marílena (MARH.ENA CHAUl", Roberto Lyra Filho ou a DignidadePolítica do Direito, c\i.,passim) e até do professor (nesta qualidade; não me refiro ao po-lítico) Franco Moritoro (MONTORO, Estudos de Filosofia do Direito, São Paulo, Edito-ra Revista dos Tribunais, 1981, p. Ef, XIII e 55)."

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desconjuntamentos do raciocínio marxiano) e os segundos, paralogismos her-menêuticos (os que são perpetrados sobre aqueles, na sua leitura e interpreta-ção, pelos marxistas).

Mas é bom que logo se dissipe um equívoco, já que a expressão "des-conjuntamentos do raciocínio" pareceria a alguns indicar um defeito ético —o que não é, de nenhum modo, insinuado aqui, nem representa o sentido exa-to da palavra empregada. Os raciocínios falsos, à que se dá o nome de paralo-gismo, distinguem-se precisamente dos sofismas, porque não conotam o matizpejorativo "comumente associado a noção de sofisma (a intenção de enganaralguém)". O paralogismo é realizado de boa fé" (79). Tal como na distorçãomaterial da ideologia, o erro operacional do raciocínio paralógico deixaindenes as boas intenções — o que não as impede, como no brocardo popular,de arriscar-nos à queda no "inferno" das construções sobríTareias movediças.

Em Marx, as referências ao Direito refíetem a situação esboçada na aná-lise dos obstáculos lógicos e ontognosiológicos, aqui transmudados em paralo-gismos frequentes. Ele discorre, às vezes, num "positivismo de esquerda" (80),apenas (a título de Direito) sobre as leis e costumes da classe dominante — oque faz com que o marxismo, depois, má se distinga de kelsenianisrno excetonisto que a redução do Direito sobretudo ao Direito estatal é feita por Kelsencom a complacência de quem situa no Estado o ponto de controle e dissolu-ção dos antagonismos e conflitos da sociedade classista (81); e em Marx,aquela mesma redução eventual (82) inspira os indignados protestos na me-

79 ~ A. LALANDE, Vocabulaire Techniqtie et Critique de Ia PhSosophie, Paris, PressesUniversiiairesdeFrance, 1968, p. 736-737.80-MARX,Oeuvres, cit., II, p. 1402-1403.81 - HANS KELSEN, Teoria General dei Deredw y de! Estado", México, Imprenta Uni-versitária, Universidad Nacional Autónoma de México, Facultad de Derecho, p. 24. Omonopólio estatal das forcas nomogenéticas é, então, equiparado à ordem estabelecidapara "manter a paz" e a "justiça" é, assim, qualquer ordem, segundo o sistema adotado(p. 16). O círculo vicioso e viciado fica evidente, enquanto a dominação estatal tira, en-tão, a sua legitimidade da própria pretensão de ser legítima (p! 223) e a pretensão é legi-timada, exclusivamente pelo critério pragmático da eficácia e do maroto "consenso" pre-sumido (ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 103). A propósito, ver RO-BERTO LYRA FILHO, Para um Direito sem Dogmas, Porto Alegre, Fabris, 1980, p. 35-38; ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capital e Direito do Trabalho, cit., p. 29 ss;MARÍLENA CHAUl', Roberto Lyra Filho oii a Dignidade Política do Direito, crU p. 22-30; RAYMUNDO FAORO, O Que é Direito, segundo Roberto Lyra Filho, m Direito eAvesso (ver nota 3) nP 2 (1982), p. 33-35. A identificação entre Direito e Estado, aliás,acarreta uma tautologia infernal, como acentuou Podgorecki (ver ROBERTO LYRA FI-LHO, Para um Direito sem Dogmas, cit., p. 32; PODGORECKI, in DIVERSOS, Know-ledgeand Opinion about Law, London, MarinRobertson &Co, 1973, p. 65).82-Ver nota 80.

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dida em que o Estado é visto como "resumo oficial" da "sociedade civil" (83)(malgrado as eventuais contradições entre ambos), a "sociedade civi!" não émais do que a sociedade burguesa — em alemão a ambiguidade do biirgerjichdenota ambas as coisas (civil e burguês) — e o "Direito" não passa de uni ins-trumento de controle da classe dominante, ao menos (e, de novo malgradocontradições emergentes) ern última análise, ligado aos interesses e privilégiosda burguesia (84). A seguir, este conceito sofre, não raro, uma extrapolação,de tal sorte que o Direito passa a ser concebido como, em qualquer tempo ouparte, um produto estatal, a desaparecer, portanto, com o Estado mesmo. Ofim deste coincidiria, na sociedade comunista, com o do Direito, trocado pela"administração das coisas e pela direçãb dos processos de produção" (84 A),mediante normas que só não são qualificadas como jurídicas, porque, de iní-cio foi contraído o conceito de Direito, à moda estatal (85). O paralogismodesanda num círculo vicioso e viciado, não distante do mesmo rodopio keí-seniano.

Esta concepção, que é, de certo modo, et pour cause, a do marxismotradicional e até oficial, nos Estados ditos socialistas (86), não será, porém,de forma alguma, a única, presente em Marx. Coexistem com ela a tensãoe dualismo decorrentes das inevitáveis referências de Marx a direitos (87)dos dominados e à mais ampla (e nele não absorvida dial eticamente) con-tradição entre,as normas da classe dominante e as reivindicações jurídicasde dominados. Isto, aliás, em toda a obra marxiana, e não só na primeirafase (da mocidade). Desta sorte, mesmo após o abandono de um certo íuris-naturalismo juvenil e com o reforço daquela posterior desconfiança ante oDireito e os juristas, como instrumento e servidores da burguesia (88), e até

83 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1068, 1117; MARX, Pages de Karl Marx pour uneÊthique. Socialiste, M. RUBEL, org., Paris, Payot, 1970, í, p.72,152,123.84 -MARX-ENGELS, Critique dês frogrammes de Gotha et á'Erfurt, Paris, ÉdítionsSociales,1981,p.32.84 A - ENGELS,Anti-Duhring, Paris, Éditions Sociales, 1977,p. 317.S5 -JOÃO MANGABEIRA, Ideias Políticas de João Mangabeira, F. DE ASSIS BAR-BOSA, org., Brasília-Rio, Senado Fedcral-MEC-Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980,III, p. 21.86 - Ver por exemplo, ZHIDK.OV et alii, Fundamentos de Ia Teoria Socialista dei Es-tado y dei Dereclio, cit., (nota 19J e, em MON1QUE & ROLAND WEYL, Révolutíonet Perspectives du Droit, cit., (ibidem), toda a confusão decorrente da tentativa de es-capar, em termos ortodoxamente marxistas, dessa tese da "morte do Direito" (a pro-pósito ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capital e-Dlreito do- Trabalho, cit., p.44;ROBERTO LYRA FILHO, Problemas Atuais do Ensino Jurídico, Brasília, EditoraObreira, 1981,p. 36).87 - MARX-ENGELS, Obras EScoi!,idas. cit., I, p. 322 ss.88 - A propósito, ver ENGELS, in MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., n, p. 173.

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perante a justiça, (vista sobretudo como expressão ideológica de princípiosburgueses) (89), persiste um curioso iurísnaturalismo implícito, repontandona ambiguidade das referências subsistentes a Direito e Justiça, quando maisnão seja, pela reafirmação constante do dfreito de revolução. E este íurisna-turalismo implícito, que já fora assinalado em Heller (90), chega, às vezes aser desenvolvido, expressamente, por exemplo, em marxistas como Bloch (91)

ou MiaHle (92).As duas visões não se harmonizam, pelo simples fato de que ambas são

apresentadas, embora incidentemente, como o- Direito (inteiro) e, mesmoquando são contrastados o "direito" da classe dominante e os direitos daclasse proletária (93), na obra madura, rompe-se, em geral, o fio daquelarealização do Direito e da Justiça, peia sua negação, que assinalamos n"A Sa-

89 - Ibidem; MARX, Oeuvres, cit., II, p. 620. Ê pertinente assinalar que a crítica deMarx às noções de Direito e Justiça,bem como o seu emprego inevitável por ele mesmo,não decorre, neste eventual emprego e como pensa o meu eminente amigo Atíenza (MA-NUEL ATIENZA, Marx y hs Derechos Humanos, Madrid, Mezquita, 1983, p. 279), deconcessões do cientista à conveniências políticas (ver ROBERTO LYRA FILHO, flama-nisino Dhlêtico, cit., notas 420, 421). Isto representaria um oportunismo safado que aintegridade intelectuaràíTMaix. não admite. Ele se refere a Direito e Justiça, no maisamplo e correio sentido de Direito dos espoliados e oprimidos e Justiça reparadoradas íniqíiidades sociais, decorrentes da espoliação e opressão, porque isto era inevitávelnum pensamento revolucionário. Tem razão Rubel, quando reconduz (MARX, Pages,cit., Introduction, I, p. 29) a ojeriza do Marx cientista a palavras como Justiça, moral,dever etc., ao horror que Ibe inspirava "o moralismo verborrágico dos socialistas dou-trinários". Os encadeamentos da reflexão maixiana permanecem, contudo, imersosem preocupação com a Justiça autêntica e ele só condenava "essa mitologia moderna",enquanto "mascarava a injustiça e a imoralidade" (RUBEL, ibidem). Não é menosexaío, entretanto, que leva esta reprovação razoável a extremos de, eventual e injusti-ficadamente, negar, às vezes, o Direito e a Justiça em tese e em princípio. Tais exage-ros, entretanto, são, com não menor frequência, corrigidos pela volta dos termos ba-nidos, para atender à necessidade de fundamentar a própria contestação do status quo.Por outro lado, entretanto, é lícito supor que só mesmo o receio de se ver confundidocorn um socialismo palavroso e oco o impediu de ver e proclamar que o problemajurídico se põe na própria infra-estrutura, enquanto modos de produção, visceralmenteinjustos, sacrificam direitos dos espoliados e oprimidos (ROBERTO LYRA FILHO,O Que é Direito, cit., p. 101-124).90 - HERMANN HELLER, Teoria do Estado, São Paulo, Mestre Jou, 1968, p. 204-205.91 -ERNST BLOCH, JVãfttfTfidif und Menschlich Wttrde, cit.92 - MICHEL MIAILLE, in M. BOURJOL et alii, Pour Une Critique du Droit, cit., p.

123-124.93 ~ MARX, Oeuvres, cit., III, p. 453. Ver, por exemplo, O Capital, onde o dualismochega a um clímax e Marx opõe. como "dois direitos iguais" (sic!) o da classe dominantee o da classe proletária, para sugerir que a oposição só se resolveria pela força (MARX,Oeuvres, cit., I, p. 791). Aio dualismo chega a tornar-se escandaloso.

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lgi-ada Família — e ali tampouco ultrapassava a intuição carente de sustençãodialêtica, para ver, em globo e era movimento, a juridicidade progressiva,como realização afirmada pelas classes e grupos ascendentes, sua negação naesclerose social, quando eles se tornam classes e grupos dominantes e, afinal,a negação da negação, quando ou nu classe e grupos ascendentes retomam oitinerário (94).

Por mais estranho que pareça, num autor tão forte em temas históricos,o que, neste particular, ocorre mais frequentemente é um equivoco de pers-pectiva histórica. Assim, por exemplo, os direitos humanos (declaração bur-guesa) são impiedosamente criticados (94 A), desde a juventude marxiana edo ponto de vista da sua justa denúncia socialista, esquecendo-se, nisto, oque representaram de avanço, a seu tempo, no combate ao establiskment aris-tocrático e sob o rótulo de direitos "naturais", que se opunham ao chamadodireito "positivo" feudal. Aí se insere a mencionada perda do fio dialético,insinuado, en passant, rCA Sagrada Família, em diálogo corn Proudhon.

É, decerto, fácil, à altura de novos tempos, mostrar as deficiências do _passo antecedente. Acontece, porém, que, no progresso histórico, só pode-mos entender as coisas, do anterior para o posterior, e não deste para a con-quista prévia — pois, neste último caso, qualquei- progresso nos parece abínitio superado. Corn tal ilusão de ótica, é viável acusar, sempre e absurda-mente, a vanguarda da véspera de não coincidir com a vanguarda atual, quehá de ser (não há meio de eludi-lo) um veiculo de coisas obsoletas, quandofor tragada pelo tempo e pelas futuras aquisições. Aristóteles podia ver ascontradições entre a sua teorização política e a infra-estrutura social escra-vocrata?

O mais estranho é que, por exemplo, ao condenar a posteriori o resul-tado do avanço burguês (não foi ela classe ascendente que, enquanto tal, re-presentava momentaneamente os lemas gerais do progresso?), certo aspectoda reflexão marxiana assimila as categorias da própria burguesia no poder(com a troca burguesa do iurisnaturalismo contestador da fase montantepelo positivismo daquela dominação conquistada, que castra o Direito, pon-do-o todo na forma da legislação e do Estado). Deste modo, é possível dis-torcer a "ideia do Direito", para vê-lo sobretudo como instrumento de do-minação e embaraçar-se, consequentemente com a referência inevitável a 1

94 — Sobre a distinção entre classes e grupos, na dialêtica do Direito, ver ROBERTOLYRÁ FILHO, O Que é Direito, cit., p. 94-95; ROBERTO LYRA FILHO, Humanis-mo Dfaiético, nota 92 e texto correspondente; MARILENA CHAUÍ", Roberto LyraFilho ou a Dignidade Política do Direito, cit., p. 28-29; RAYMUNDO FAORO, ODireito, segundo Roberto Lyra filho, cit., p. 34.94 A — MARX, X Questão Judaica, Lisboa, Moraes, sem data, p. 38 ss.

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direitos dos dominados. Assim, nos Estatutos da l? Internacional ou até naCritica do Programa de Gotha, que analisei, noutro escrito (95), mostrandocomo Marx, num só texto, passa de uma a outra das concepções — a do direi-to dos espoliados e oprimidos e a do direito da burguesia entronizada e suaideologia de "igualdade jurídica", tal como se estivesse criticando todo o Di-reito (e; não apenas o direito burguês} (96). Isto resulta de haver engulido,ocasionalmente, o positivismo jurídico da antiga classe ascendente, agora do-minante e fator de conservantismo, ao invés de progresso. Todavia, resta opreceito jurídico, formulado em conclusão da critica e como ocaso, não do

Direito, mas do "direito burguês".Tudo isto aparece de cambulhada, numa só página — da Crítica do Pro-

graiita de Gotha — bastando, nesta oportunidade, para ilustrar o que chamei

de paralogismos de texto.Assim, não apenas em fases diversas e obras diferentes se encontra a

coesistência de visões jurídicas dum teor antinomia) e que liwlent se trouver

95 - ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit, IV, l b, notas 386-426 etexto correspondente, com análise pormenorizada de paralogismo marxianos sobre Direi-to e Justiça que aqui, por falta de espaço, não posso reproduzir.96 — MARX, então, passa do direito burguês, com a suposta igualdade dos socialmentedesiguais (Critique dês Progratnines de Gotha et d'Erfurt, cíl., p. 31), para "todo o direi-to", desdialetizando'o processo no qual as desigualdades sociais se compensariam (igua-lando relativamente os desiguais) pela desigualdade (reforço de garantias para o desnive-lado), que realiza o seu contrário (reparação relativa da igualdade negada), ern operaçãode alargamento e retificação do próprio direito (esboço reformista, que Marx não desde-nhava, como passo transitório, de "evolução revolucionária", MARX, f/i Pages...., cit.,RUBEL, org., II, p. 56, 59; MARX, Oeuvres, cit., II, p. 1488), a caminho da revoluçãoconsumada, ern que as desigualdades sociais ficariam resolvidas (ao menos, como meta e"utopia", em sentido de Bloch) pelo cancelamento das desigualdades sociais. Nesta socie-dade futura, prevalecendo o "de cada um, segundo as suas aptidões; a cada um, conformeas suas necessidades" (Critique, cit., p. 32), seriam irrelevantes as desigualdades indivi-duais (de aptidão e situação pessoal), com que Marx confunde o raciocínio desenvolvido;e, então, sem desigualdades sociais, as desigualdades pessoais se fundiriam na igualdadede participação nos frutos do trabalho comum (igualdade dos pessoalmente desiguais),para realizar o preceito nada menos que jurídico e socialista: "livre do desenvolvimentode cada um", como príus do "livre desenvolvimento de todos". (MARX-ENGELS, ObrasEscolhidas, cit., I, p. 38). Desta forma, inclusive, a análise prática do processo ganha umtimbre ético, mediante a concepção da Justiça, como aquinhoa mento igual dos desiguais(no sentido pessoal). A confusão, estabelecida na Critica do Programa de Gotha, entredesigualdades sociais e diferenças individuais, advém da falta de exato discernimento deque uma coisa é a "igualdade e outra a uniformidade: ver PAULO SINGER, Aprender Eco-

nomia, cit., p. 163.

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ensemble: a presença delas na mesma obra (97) e até no mesmo trecho deobra oferece um terreno acidentado, em que os paralogismos do texto exigemgrande cautela, para não se transformarem nos consequentes paralogismoshermenêuticos, acumulados pelos intérpretes sobre os primeiros.

Nada disto —repito — pretende minimizar o valor das análises e propos-tas marxianas, no campo jurídico. Noutro escrito, assinalei que méritos e re-sultados da elaboração marxiana colhem-se a despeito da impostaçao hesi-tante da sua dialética e da carência, no âmbito do Direito, de uma visão glo-bal, uma doutrina ou teoria gerais do Direito ~ "o que, aliás, acontece, omais das vezes, no avanço da ciência; pois doutra forma, permaneceria obs-truída a pesquisa, até que se achasse um suporte filosófico impecável" (98).E isto não ocorre nunca: tal como na ciência, as superações continuas incor-poram, transfundem e reenquadram, na filosofia, as conquistas preceden-tes (99).

Defendo, neste breve estudo, a conclusão, mais longa e profundamentefundamentada noutra obra (100), de que, sem Marx, nada se intenta, valida-mente, na atua! Filosofia e Sociologia jurídicas (101), porém, com ele e suaobra, o trabalho apenas começou. É em Marx que a verdadeira e própria teo-ria dialética do Direito (ainda informe, porém já denunciada, em muitas cin-

97 - N'0 Capital, por exemplo convivem a contraçao do Direito às normas e mores daclasse dominante (MARX, Oeuvres, cit., II, p. 1402-1403), a referencia à existência de"dois direitos" (do dominante e do dominado) num estranho nivelamento ("direitosiguais" sic! - da classe capitalista e da classe operária: MARX, Oeuvres, cit., I, p. 791), aafirmação de que, para tal antinomia, só um remédio existe ~ a força (ibiderri), a ilus-tração disto, através da luta pelo direito à limitação da jornada do trabalho e, no finalda obra (MARX, Oeuvres, cit., loc. cit., II, p. 1488), a mesma limitação da jornada,como um passo decisivo ("condição fundamental") da passagem ao reino da liberdade —quando a pressão proletária, já conquistara tal avanço, ao menos em parte; isto é, o di-reito dos espoliados passara, de norma contrastante ao acervo adversário e capitalista.A redução da jornada do trabalho, nota Marx mesmo (in Pages.., cit., M. RUBEL, org.,II, p. 194) fora considerada "utopia comunista" de Owen e terminou como "lei doEstado" burguês. Na esteira da "evolução revolucionária", já citada (nota 96), do pró-prio Marx, não estaria, então, certo o nosso eminente companheiro Boaventura deSousa Santos, quando afirma que "a revolução socialista será o que tiverem sido as re-formas que a vão constituindo"? BO AVENTURA. DE SOUSA SANTOS, A Questão aoSocialismo in Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, Centro de Estudos Sociais,nP 6 (1981), p. 171.98 - ROBERTO LYRA FILHO, A Reconciliação de Prometeu, cit., p. 11.99 ~ MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., n, p.195.

100 -Ver nota 3.101 -MARILENA CHATJT", Roberto Lyra Filho ou A Dignidade Política do Direito,cit., p. 28.

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tilações preciosas) começa a emergir do diálogo com Hegel, para combater olado mais vulnerável do sistema idealista, que é a Filosofia Jurídica. Aindaassim, é preciso, manter o equilíbrio entre a negação desta última, e a nega-ção da negação, que lhe preserva os aspectos positivos. Como bem acentuaBloch, "se a Filosofia do Direito é o que ele (Hegel) escreveu de mais rea-cíonário" (102), não é, por isto, menos verdade que permanece falsa a ima-gem de idólatra do Estado, prussiano, afixada em Hegel mesmo por umacrítica obtusa. Marx chamou esta rotulagem de "bosta" e "burrice" (103),

Naquela Filosofia Jurídica idealista, há, sem dúvida, uma "estranhamistura" de aspectos avançados e retrógrados, onde, apesar de tudo, emer-ge "um elemento do edifício dialétíco, aplicado ao mundo" (104). Hegel"nunca abateu inteiramente a árvore da liberdade", plantada na juventude,como um desafio, que ardia nele e nos colegas progressistas, como endere-ço político da vanguarda do seu tempo; nem renegou, na velhice, a face libe-ral, fervilhante no idealismo germânico (105). Por isto mesmo, é que, nogrande mestre da dialética idealista, germinam as sementes do socialismocontemporâneo; e, neste sentido, é inestimável a contribuição de Marx,porque ela associa, poderosamente, ao substrato filosófico, a descobertadas raízes sociais e económicas do processo, à luz duma práxis da classemontante: "o filósofo encontra no proletariado as suas armas materiais,como o proletariado descobre na filosofia as suas armas intelectuais...A cabeça desta emancipação (do homem) é a filosofia; sem coração, o ope-rariado" (106). E a ciência marxiana desempenha, entre ambos, uma notá-

vel função mediadora.O quarto tipo de problema do elenco mencionado refere-se aos obstá-

culos cronológicos. Há questões falsas, estabelecidas por um tipo de periodi-zação, servindo ao que chamei de beatice marxista e que faz da obra, ditamadura, de Marx uma espécie de Bíblia Sagrada, para depois, atrapalhar-secom a questão do Velho e do Novo Testamento.

De qualquer sorte, a "ruptura" radical é de todo inaceitável e, aliás,tem sido matizada, em muitos marxistas, que não aceitam a arrumação do

102-ERNST BLOCH, Subjekt-Obfekt: Erràuterungen zu Hegel, Frankfurt-arn-mam,

Suhrkamp,1964, §14.'103 -Xp«dERlClVElL,/fe?eí et 1'État, cit., p. 16.104 - ERNST BLOCH, ob e loc., cíts., (nota 102).105 - JACQUES D'HONDT, Hegel en sou Ternps, Paris, Editions Sociales, 1968, pas-

sim.106 -MARX, Q-itique du Droit Polilique Hégêlien, Paris, Édítíons Sociales, 1980.

p. 212.

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ltipo althusseriano e já destacaram a sua arbitrariedade (107). Sève, por exem-plo, mais de uma vez pegou Althusser flagrante delicio de infundada liquida-ção de conceitos e posicionamentos que, em Marx, não se esgotam na fase ju-venil, mas atravessam toda a obra marxiana, de princípio a fim (108). Situarn-se aí, particularmente, as questões do humanismo (109), da alienação (110)do homem total (111), da Aufl-iebung (negação da negação) (112) e assim pordiante. Acrescento que também aí se deve inserir a questão do Direito.

Althusser chega a tresler, deliberadameníe,-as teses sobre Feuerbach, afim de acomodar este documento marxiana, dito, de ."transição", ao esquemapreestabelecido, que serve ao partipris anti-hurnanista e cientifista (113).

Para divisão do Velho e Novo Testamento, os marxistas.geralmente seapoiam numa passagem famosa, em que Marx lembra a sua colaboração comEngels e o desenvolvimento das ideias que passaram a compartilhar. É entãoque ele se refere ao "exame de consciência filosófica", de que resultou have-rem de bom grado entregue um manuscrito anterior à "crítica roedora dos ca-mundongos" (114). O manuscrito, assim referido, só foi publicado muitas dé-

107 - Entre outros E. P. THOMPSON, Poverty ofTheory and Other Essays, London,Merlin Press, 1980, p. 193 ss. Note-se, en decorrência, a intensificação do tõnus dialé-tico, nas análises concretas de Thompsonr é o caso, por exemplo, do seu estudo muitofecundo e matizado sobre Tlie Ruis of Law (E. P. THOMPSON, in BEIRNE & QUIN-NEY, A&rxisrn and Law, cit., p. 130 ss). Alí reponta, inclusive (Thompson é um grandehistoriador), a colocação exata dos termos relativos e progressivos duma realização díalé-tica da Justiça. Insinua-se, ademais, no referido texto, um reconhecimento de quanto setornou "requintada, mas (em última análise) altamente esquemática" a noção do Direitocomo produto de superestrutura. Thompson anda af às voltas com todo reducionismo,procurando ver inclusive o Direito "na base das relações de produção", no posicionamen-to conflítívo de ambas as classes e não apenas em normas da classe dominante,108 - LUCIEN SÈVE. ot>., cit., p. 428437,605 (nota 28), 628 (nota 257).109 —Ver, por exemplo, ADAM SCHAFF, Au Suje t cie Ia Traductioti Française de !aVlème Tíièse de Marx sur Feuerbach, in L 'Homme et ia Socíété, Paris, Antropos, n9 19(1971), p. 157-167; ADAM SCHAFF, O Afarxismo e o Indivíduo, Rio, Civilização Brasi-leira, 1967; V. KESH.ELAVA., Humanismo Real y Humanismo Fictício, Moscú, Progreso,1977; RODOLFO UQNDQIFQ, Estudos sobre Afarx, São Paulo, Mestre Jou, 1967; I. M.GOULIANE, Lê MarxismeDevant 1'ffomme. Paris, Payot, 1968; HECTOR P. AGOSTI,Condições Atuais do Humanismo, Rio, Paz e Terra, 1970 etc.110 - SÈVE, ob. cit., p. 115-125, além dos estudo s já citados (nota 109), e muitos outro s.111 - ERNST FISCHER, O Que Marx Realmente Disse, Rio, Civilização Brasileira, 1970,p. 1-15;HENRI LEFEBVRE, La Petisée de Marx, Paris, Bordas, 1966, p. 17-24 etc.112 - Por exemplo, SÈVE.ob. cit., 112 ss.113 -ADAM SCHAFF,Au Sufet..., cit.114 - MARX, Oeuvres, cit., l, p. 274. Nota-se que, interpretando isto como ruptura ra-dical e negação puja do que antes pensara c escrevera Marx, ainda assim fica aberta aquestão de saber se esta persuasão, por mais sincera que fosse, corresponderia aos fatos eque ioda elaboração posterior resulte, não só incompatível com a anterior, mas, inclusive,escrita em tábua rasa.

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cadas após a morte de Marx e de Engels, desencadeando uma controvérsiaentre marxistas e marxólogos, a respeito do Marx "autêntico" e sua colocaçãoaquém ou além do que foi tomado como ponto de referência, para separar asetapas de imaturidade e maturidade da obra. Entretanto, esta divisão passan-do a situar a linha divisória entre os manuscritos de 1844 e (como textos de"transição") as Teses sobre Feuerbach e A Ideologia Alemã', só assinalaria aliquidação das "formas arcaicas" (115) do marxismo, a preço de considerara produção posterior como um acervo de pensamentos "radicalmente no-vos" (116), naquela visão do conjunto que tende a extrair do legado marcia-no um "núcleo de verdade invariável, que não pode caducar" (117).

Isto, é claro, traz como pressuposto a opção marxista de uma ortodo-xia, cujos fundamentos já me permiti considerar comoantimarxianos(118).

Daí, em todo o caso, o afã de "arrumar" a obra de Marx, numa retaascendente, que, de ruptura em ruptura, com precursores, influências e pri-meiras posições marxianas, vai delineando o surgimento do fiat lux, median-te o qual emerge a "verdade invariável". De tal sorte, todos os que antecede-,

" 'ram Marx e até ele próprio, nos passos iniciais do itinerário, só conteriam ger-mes fecundos, na medida em que estes são lidos como antecipações precáriasda "verdade", ainda mal enquadrada pelo seu emissor "imaturo". Da mesmaforma, os pensadores atuais só seriam "válidos", enquanto fiéis seguidores, não"corrompidos" pelo "desvio" ou "revisão" (118 A), e, sim, apenas suplemen-tando e adaptando o núcleo perene, dentro de suas linhas mestras, havidascomo capazes de absorver qualquer alteração do horizonte histórico. O pro-gresso deveria ser, em tal perspectiva, sempre "marxista", e não cederia ne-nhuma concepção superadora, mesmo que esta se articulasse smAufliebiing,isto é, numa superação não-destrutiva, que, como já assinalei, incorpora,transmuda e reenquadra a tradição, para formar novos produtos intelectuais.Neste caso, a tradicional denúncia a Hegel, de haver detido a anteriormenteassentada progressão da filosofia, no dealbar do próprio sistema, e até a pro-gressão histórica, no advento de hegemonia germânica, vem a caber, muiatismutandis, ao próprio marxismo. Este, brigando com os seus fundamentos, de-cretaria a própria perenidade e daria por findos os trâmites teóricos, paraaguardar a consumação profética do socialismo (depois, forcado a vestir a ca-

115 - SÈVE, ob. cit., 99.116«^ SEBE, ob. cit., 95.117 -Ibidem, p. 534.118 -Ver, a respeito, ROBERTO LYRAFÍLHO,//«maíiiifí!o.Dw/efíco, cit., III.USA-BLOCH.JÍar/JliaM, cit., p. 202.

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t t

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misa da força'dos Estados totalitários) (119), no "trânsito" para a sociedadeperfeita, o comunismo, isto é, o termo do processo prefigurado nele mesmocomo panorama terrestra dum paraíso. Neste último, aliás, de sen volve m-se,prospectivamente, estas cenas bucólicas, de evidente conteúdo mítico: "nasociedade comunista, ninguém fica encerrado num círculo exclusivo de ati-vidades, cada um pode formar-se no ramo de sua escolha; é a sociedade queregula a produção geral e me permite fazer hoje isto e amanhã aquilo: caçar dede manha', pescar à tarde, criar animais à noite (sicf) e dedicar-rne à críticaapós a refeição, a meu bei prazer e sem jamais tornar-me caçador, pescador,pastor ou crítico" ... (120). Aí, as "funções governamentais" se transforma-riam em "funções administrativas" (?), o Estado sumiria e o socialismo nãochegaria ao comunismo senão para consumar uma "anarquia" (121), em queestranhamente as tais funções administrativas não seriam jurídicas e as "nor-mas organizacionais" teriam não se sabe que natureza técnica ou ética.

Gramsci mesmo ficou um tanto encabulado, diante desses devaneios eadvertiu os companheiros de que não convinha assumir o risco duma des-crição muito precisa da sociedade futura e "cientificamente prevista"; poisentão seria inevitável a fantasia, consistindo em "criar imediatamente" um"sonho utópico" (122). Nada obstante e por ser fiel marxista, ele apostana prefiguração idílica e chega a utilizá-la, paradoxal, antes que díaletica-mente, para tentar conciliar o pressuposto do marxismo, de que não há ver-dades eternas, e a sobrevivência deste, que, não sendo eterno, tem de cadu-car, mas só entregaria os pontos... quando viesse a sociedade perfeita, se-gundo suas próprias previsões — isto é, caducaria sem caducar, antes se con-sumando; e, dando os trâmites por findos (aqui Gramsci entra na incoerên-cia), cogitaria até de ceder passo a "numerosas concepções idealistas" (sicf).Estas, inclusive, bem poderiam tornar-se "verdade", após a passagem ao limi-te que conduz ao paraíso... (123).

Eis um exemplo da rnixódia em que dá a autodefesa marxista, que, nãoquerendo ceder nada de sua "verdade" absoluta, contra todas as "verdades"

119 - ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capital e Direito do Trabalho, cít., RO-BERTO LYRA FILHO, Introdução ao Direito, In Direito & Avesso, n9 2 (1982),p. 4347.120 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1063.121 -ÍAAKX,apud Pages..., cit., M. RUBEL.org., II, p. 243 ("Pretensas Cisões", textomarxiano de 1872).122 -GRAMSCI, Surle Texte, Paris, Éditions Sociales, 1977, p. 275.123-ftiWem, p. 277-278.

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alheias, fica entre a cruz das verdades relativas e o pelourinho dum "absoluto"meio esfarrapado.

Mas é claro que as periodizações, no sentido que chamei preconceito dareía ascendente, em direção ao fiai lux marxiano, nada têm a ver com umpensamento livre, que não é marxista, nem antimarxista, porém simplesmen-te "não marxista, embora — como eu ~ nos sintamos dentro de uma tradiçãode que Marx constitui umabalisa fundamental" (124).

Deste ponto de vista, Marx tanto pode estar mais certo e fecundo nesteou naquele período, independentemente das datas "evolutivas", já que a vali-dade ou invalidade das teses não é questão de cronologia (125). Veja-se o casode Schelling, entre outros.

Ademais, se quisermos, então, apreender o fio da meada, no pensamen-to marxiano, sem o parti pris de julgar as fases sucessivas como excludentesdas (e incompatíveis com) as anteriores (no empenho de destacar um coroa-mento que seria, para os marxistas, a lux que cincunfulsit de caelo (126)marxiano), a organização dos textos e a leitura da obra estará mais atentaao movimento geral da pesquisa e reflexão de Marx, do que a um suposto es-'guicho, sobre os escombros de todo antecedente, de algo absolutamente ori-ginal e inteiramente novo: aquela "verdade" antóctone, que nasce da própriagenialidade intrínseca e insuperável, como pai e mãe de si mesma (126 A).

Note-se que, procedendo livremente, no diálogo com Marx, estou maispróximo dele... que os marxismos, de vez que, não só pelos seus fundamen-tos filosóficos e protestos continuados (127), mas pelo próprio roteiro do tra-balho intelectual marxiano, ele vai fazendo triagens críticas, e não arquiva-mento de um monte de erros, só erros, precedentes, nos seus antecessores fi-losóficos e científicos. Basta ver por exemplo, corno dirige a "crítica daeconomia política" — onde simultaneamente rejeita, em parte, e, em parte,

124 -MANUEL ATffiNZA, Marx y los Derechos Humanos, Madrid, Mezquita, 1983,p. 280.125 - MÁRILENA CHAUf, In Folhetim da Folha de São Paulo, As Novas Alternativasda Política, 10/10/82, p. 8.126 - ATOSDOS APÓSTOLOS, IX, 3, 8-9.126A —Para devolver Marx à sua posição na continuidade substancial e rupturas inci-dentes da tradição filosófica, ver as sugestões de HENRIQUE CLÁUDIO DE LIMA VAZ,Por que Ler Hege! Hoje? (Belo Horizonte, Boletim da Sociedade de Estudos e AtividadesFilosóficos— SEAF, nP l, 1982, p. 61-76) e, do mesmo autor — a quern presto aqui maisuma vez, a homenagem do meu infinito respeito e adrnkação - Sobre as Fontes Filosófi-cas do Pensamento de Karl Marx {Belo Horizonte, Boletim da Sociedade de Estudos eAtividades Filosóficos - SEAF - n? 2,1982, p. 5-15).127 -Ver notas9,10,11.

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aproveita as concepções anteriores (128) — e o tratamento de Hegel — em re-lação, inclusive, à dialética; pois, no instante mesmo em que afirma a sua con-cepção como "reverso'da hegeliana", Marx não esquece de acentuar, que édiscípulo do grande idealista, que, neste, a seu ver, as "formas gerais do desen-volvimento", na dialética, já podem ser encontradas, "em toda sua amplitu-de"'^ — mais — que elas estão afirmadas, ali, "com toda consciência" (129), enão como acerto casual.

Os marxistas, depois de investirem a obra marxíana na função de textosagrado e cindirem o acervo, arbitrariamente, nos dois blocos, da mocidade eda maturidade, da "filosofia" e da "ciência" acabada e perfeita, distribuem-seem trás correntes hermenêuticas para a polémica estéril sobre o instante exa-to em que ocorre o parto sublime: uns detêm-se na primeira fase, regendo oque se segue à luz da genética e das contorsões da gestação; outros Operamnuma espécie de remanejamento retroatfvo, pondo os antecedentes em focoà luz dos consequentes, de tal sorte que o jovem Marx desprezado só se valo-riza, na medida em que se apresenta, ele próprio, como um garoto confusoe nada obstante, portando raios do sol, ainda invisível aos seus olhos cegos.Uma.terceira corrente, mais radical, nega, tanto o primeiro Marx, comoprospecto do segundo, quanto o segundo, como critério de separação do joioe do trigo existentes no primeiro: estabelece-se, então, um segundo Marx, desúbita e espontânea geração, onde reluz o diamante eterno sobre o eixo im-prestável de tudo e de todos os que antecederam, inclusive o seu próprio eprévio "divagar" de adolescente abobalhado (129 A).

Sobre isto, acumulam-se várias distorções, também de três modelos: ados que se babam diante dos traços liberais, para neutralizar o crescimentosocialista e dão ao primeiro Marx o status de rapaz genial, degenerado emvelho desencaminhado (redução burguesa à Gúrvitch) (129 B); a dos que for-cam a linha do crescimento socialista, como pura e simples negação dos tra-ços liberais, para fazer do velho Marx o patrono do socialismo autoritário (re-

.128 - Por exemplo, MARX, Oeuvres, II, p. 7 ss e passim, no tratamento dado a Ricar-do.129 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., II, p. 15-16.129 A — Note-se que vai, neste juízo, uma arrogância do medidor, que, antes de tudo,supõe-se, a si mesmo, como firmemente instalado num saber e critério absolutos, paradar cascudos no menino Marx, em nome do que tal juízo soberbo considera sua posteriortransfiguração e perfeição. E, afinal, a pretexto de ortodoxia, fica "revogado" o VelhoTestamento.129B-GEORGES GURVITCH, La Sociologie du feune Marx, in Cahiers Internatio-naux de Sociologie, Paris, Seuil, vol. EV (1948), p. 347.

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duçáb stalinista e desvio das imprudências leninianas (130), pela entronizaçãodo que Blpch denominou, acerta dam ente, de coníradictio in adiecto) (3 31); ea dos.que_saltam para cá e para lá, tomando, ora o velho, ora o jovem Marx,para "citá-lo, aos pedaços, como abonaçâò dum luciluzir oportunista, no pín-gue-pongue de ocasião (que caracteriza, por exemplo, a colcha de retalhosdenominada eurocomunismo) (132).

É possível ler Marx de várias formas: todo o autor genial e criativo émultifacetado e se presta a manobras que tomam isto e largam aquilo, segun-do as preferências, predeterminações e preconceitos. Há, sempre, cá e lá, uns

'textos ou frases isoladas, que arrimam esta ou aquela leitura. Mas o que rneinteressa é outra coisa: e' o sentido geral, é a curva marxiana. Toda disposi-ção em linha reta é tanto mais arbitrária, quanto mais forceje para dar "coe-rência" ao seu autor, expungindo contradições fecundantes_.e rompendo acontinuidade do itinerário.

Uma lição de pensamento não é uma colagem de instantâneos, mas umfilme, cujo enredo reintroduz personagens e ambientes, sob focos diversos eem diferentes etapas da evolução, que só se delem coma morte do pensador,'para aquela sobrevida conosco, permitindo repensar o todo, remontara pelí-cula, criar sequências, substituir angulações — em suma, tratar o legado, nãocomo capital a ser diluído nas UPCs da caderneta de poupança dogmática,pTítefrí reinvestido, para que dinamize outras empresas e gere um desenvolvi-mento real, no intuito da melhor partilha. Esta metáfora "capitalista" nãodeve ser tomada, é claro, literalmente, e sim como referência a um patrimó-nio democrático, popular e socializado, cujos frutos se destinam à prosperi-dade e bem estar de todos; e, de qualquer forma, não me refiro a operaçõesde open mwket e, sim, á elementos gestionários e intelectuais, da culturasocialista, com base libertadora e projeção doutrinária, segundo a práxis maisavançada e continua. Nesta, unem-se a massa e seu número, em solidariedadeorgânica, iluminada pela ciência engajada e a filosofia fundante, englobante epolarizada pelas metas históricas do progresso efetivo (133),

130 - ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capital e Direito do Trabalho, cit.; RO-BERTO LYRA FILHO, Humanismo DMético, cit., IIMV; MARILENA CHAUl', Cultu-ra e Democracia, cit., p. 132-133.131 -ERNST BLOCH, m ER1CH FROMM, org-, Humanismo Socialista, Lisboa, Edi-ções 70-, 1976, p. 232; MARILENA CHAUl', Cultura e Democracia, cit., p. 131 ss.132--MARILENA CHAUl", Cultura e Democracia, cit., p. 180;DIVERSOS, Que és elCompromisso Histórico? M. LOIZU org., Barcelona, Avance, 1976; SANTIAGO CAR-RILLO, Eurocomunismo e Estado, São Paulo, Difel, 1978.133-MARX.P^ei..., cit., M. RUBEL, org., l, p.77;II,p.62;MAJOÍ eí alii, LettresàKugelmann, cit., p. 82; MARX-ENGELS, Lettres sur lês Sciences de Ia Nature, cit., p. 96.

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Nunca houve um Marx, feito bloco cie mármore, nem dois, com o pri-meiro a "preparar" o segundo e, sim, um só homem, que atravessa, de umaponta a outra, a existência, buscando a verdade, anotando intuições, desenvol-vendo ideias, em giros que compõem a sua própria espiral ascendente. Por istomesmo,.os temas, as teses vêm e voltam, sob diversas iluminações e em formascontraditórias, mas não incompatíveis — se retomarmos o fio da meada, paratentar mostrar como urnas reenquadram as outras e, mesmo quando, eventual-mente, assumem a parte como todo, não se inutilizam, enquanto pcn-te, escla-recida em caminho.

Por isto mesmo, não cabe paralisar Marx, numa ou noutra etapa, nemceder ao preconceito de que, necessariamente, a sucessão cronológica das ima-gens inutiliza o que ficou estabelecido (embora também parcialmente). Nou-tras palavras, não cabe "recuperar o Marx 'autêntico' — não estamos diantede Bonifácio VT1T, proclamando a bula Unam Sactam, uma só fé, um só se-nhor, um só batismo. Também não se trata de recuperar Marx, preenchendo oque falta em seu pensamento — se o fizéssemos, perderíamos o essencial, istoé, Marx pensando, abrindo para nós um campo para pensarmos a partir dele emesmo contra ele" (134). O roteiro vivo, móvel da reflexão marxiana perma-nece como "possibilidade aberta" duma retomada do itinerário, onde ele pro-jetou luzes perenes, mas não exaurientes; um bastão, para a corrida de reveza-mento, e não um poço de sabedoria estagnada.

Quando abordamos Marx, do ponto de vista dialético, o que emerge é acompenetraçâb.dos contrários, de tal sorte que — por exemplo — a concepçãodo homem como, essencialmente, liberdade (concebida enquanto potencial delibertação, na práxis, em que cumpre dinamizá-la) (135) não é de nenhummodo incompatível com a visão do "ser humano" (136) e a sua existênciahistórica então concebidos, não como cabide das relações sociais, porémcomo lugar da conscientização (137) dessas relações, que o condicionam,sem acachapar-se em "determinações" mecânicas (138). Assim é que se po-

134 - MARILENA CHAUí; Otltura e Democracia, cit., p. 219.135 - 3a tese sobre Feuerbach.136 — E, não, "essência" do Homem (SCHAFF,/lu Sufet, cit., p. 157 ss)),para esclare-cer a 6a tese sobre Feuerbach.137 -MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1056: "consciência é conscientização" (ROBERTOLURA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 114; ROBERTO LYRA FILHO, HumanismoDialético, nota 372).138 - A colocação dialética do problema da liberdade perante as "determinações", quealguns marxistas (ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., nota 370), atri-buem a... Engels, já estava devidamente posta em Hegel: "o homem sabe o que o deter-minam: eis af uma independência" (PhSosophie der Weltgegechichte, introdução), com oque as "determinações" não podem ser concebidas, positivisticamente, enquanto deter-

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deriam quebrar os elos da cadeia de influxos e modelagens, que nos enfor-mam, para nos recriarmos, livres, em outras formas, superadoras. Nessa tarefacoletíva (139), o Homem se desideologiza gradualmente, buscando o processode desalienação (140) que componha o fragmento possível, a cada instante,do Homem Total.

Este processo tem (e não poderia deixar de ter) implicações jurídicas epolíticas (141) isto é, a compeneíração dos contrários, também nesse terre-no, dissolve, expressa ou implicitamente, as aparentes antinomias marxianas,quer entre etapas (os supostos Marx I e Marx II incompossíveis), quer dentroda mesma etapa (quando os parlogismos textuais dificultam, às vezes, a possi-

mínismo, e, sim, à guisa de condicionamentos — isto 6, "determinações" vencíveis pelosaber, que emerge no horizonte histórico, segundo o favorecimento de conjunturas pro-pícias e influxos da práxis (ROBERTO LYRA FILHO, O QueéDireito, cit., p. 27;RO-BERTO LYRA VILHQ, Humanismo Dialético, cit., nota 91).139 -ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 16-32.140 —Também o processo de alienação pode ser pensado, a partir duma dialética em quese compenetram as visões antitéticas, atribuídas a Hegel e Marx I contra Marx II.-O fatoé que Althusser foi obrigado a reconhecer que, n'0 Capital mesmo, a ideia de alienaçãodesempenha uma função muito mais do que, simplesmente, "metafórica". É um traçoreal e cardeal do processo histórico. Neste contexto, a contribuição hegeliana, da alie-nação como um processo descaracterizador do homem e a procura de um "regresso" asi mesmo (que Marx I encampou, no enquadramento mais lato, como projeção dos pro-cessos sociais de dominação, transfundida na trama económica o sistema de pressões —MARX, Oeuvres, cit., II. 79: "processo de exteriorização no qual o homem perdeu suaessência no trabalho" - SÈVE, ob. cit., p. 662), não é, de nenhum modo, incompatívelcom o posicionamento, aparentemente antinômico, da alienação, noutro angulo, para serobservada como "processo histórico objetivo, mediante o qual, na sociedade mercantile especialmente o capitalismo, as forças produtivas e as relações sociais tornam-se, àbase da divisão do trabalho e da sociedade em classes, forças exteriores que dominame esmagam os homens" (SÈVE, ob. cit., p. 662). Para que os dois ângulos da alienaçãose cancelassem reciprocamente, ao invés de interagirem dial et içam ente, -seria precisoque se suprimisse o ângulo interior, dando ao aspecto externo uma potência de "apa-relho" sern chofer, nem passageiros (eventualmente rebeldes), isto é, um "processosem sujeito" (ver aqui, a nota 48 e texto correspondente). O lado objetivo não exclui osubjetivo, assim como o processo histórico e global não elimina o intercâmbio de sujei-tos individuais e coletívos nele imersos e. o redirecionamento dos episódios ali insertos.O que sustenta o núcleo da obra marxiana é a verificação de que "a consciência sozi-nha não tem estritamente nenhuma importância", mas por outro lado, o processo glo-bal mesmo se compõe de "três elementos: força produtiva, posiçãosocíal e consciência"(MARX, Oeuvres. cit., II, p, 1063);e, em síntese, que, na dialética histórica, "as circuns-tâncias fazem os homens, tanto quanto estes produzem as circunstâncias" (MARX,Oeuvres, cit., II, p. 1072).141 -Ver ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., notas 146, 165-170,175, 177, 180-184, 194-197, 202-204, 245,257-259,262,264,270-275,277-279,282,284, 286, 289-292, 300, 310, 312, 316, 327, 355-356 etexto correspondente.

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bilidade de síntese dialética — exigindo que repensemos o Todo com Marx, aoinvés de procurar refleti-lo em um espelho parado e acabar por distorcê-lo,quer nas imagens falsas, quer no jogo de paralogismos hermenêuticos, movi-mentados por séries de preconceitos). Essa atitude ficará melhor determinada,adiante, no exame das dificuldades metodológicas da análise das relações am-bíguas entre Marx e o Direito.

Mas desde logo queria apontar o alcance jurídico da compenetração doscontrários, dentro da obra de Marx e na interpretação criativa que desta sefaça.

Quando tomamos a afirmação do Direito, naquele tom iurisnaturalista,que tanto se acentua, na chamada primeira fase — por exemplo, no texto fa-moso sobre a liberdade de imprensa, de 1842 e que consta do elenco de arti-gos publicados na Gazeta Renana (142) é preciso não esquecer que esta pro-dução convive, no mesmo período marxiano, com a destrutiva crítica da de-claração burguesa dos Direitos Humanos, que vai fluir nos artigos, não menosfamosos, sobre A. Questão Judaica, de 1843 (143). Mas, ao apresentar-se,asstm, um dinamismo inquieto, na busca de~ padrões jurídicos superadores efrustrações sociais no contexto, logo se evidencia uma afinidade, posta emrelevo na Critica do Direito Político Hegelianó (144): o caminho entrecru-do de uma afirmação do princípio de liberdade e suas contradições históri-cas no direito dito positivo ou nas construções ideológicas, onde ele suposta-mente se "sintetiza" como "Justiça" realizada e "Direito" constituído. Poroutro lado, é inteiramente arbitrário e falso predeterminar o roteiro para oMarx II (artificialmente considerado um compartimento estanque ou, pelomenos, escoimado, de remanescentes "jurídicos" e de luta pela Justiça, nãoideal e ideológica, mas efetiva e social), para dizer que, na pesquisa e refle-xão maduras, Marx negou o "mito" da Justiça e a dignidade política doDireito, então vistos como normas da classe dominante, seus mores, cris-talização estatal em leis. Este ingrediente, de fato, aparece — e já o assina-lei — porém a alergia às palavras Direito,-Justiça, Moial — como tambémjá fiz ver — não exclui a efetivação daquela outra Justiça (autêntica), da-quele outro Direito (sonegado), em relação ao qual a dialética do próprioordenamento estatal, com as suas contradições, enseja a obtenção de con-quistas parciais, como a limitação da jornada do trabalho. Não desaparece,no Marx II, o Direito (em maiúscula) dos espoliados e oprimidos, segundo orumo do processo e progresso históricos e exibindo-se em documentos deci-

142 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 138 ss.143 —MARX, A Questão Judaica, Edhora Moraes, sern local, nem data, p. 39 ss.144 — MARX, Critique du Droil folllique Hêgélien, cit.

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sivos (ambiguamente, na Q-ftica ao Pi-ograma de Gotha, nitidamente e semambages, nos Estatuto s da 19 f n ter nacional) (145).

Isto, sem dúvida, acompanha os trâmites dum pensamento político3

no qual tampouco se transmudam os aspectos libertadores do moço, emdogmas ditatoriais do "cientista maduro". A verdade é que Marx não apoia,nas observações finais de seu roteiro da segunda etapa, o caminho da dita-dura estatal para o comunismo (146); acentua os produtos válidos duma"evolução revolucionária"; completa e supera a crítica ao sufrágio universal,como "engodo", a fim de preconizá-lo, como "instrumento de liberta-ção" (l46 A); chega mesmo a minimizar a ditadura (não estatal) do prole-tariado, no estilo da Comuna de Paris, de toda forma não mais consideradauma etapa necessária (146 B) da transformação social; chega a preludiar umaconversão ao socialismo democrático e, se não o sugere, tão claramente comoEngels, no famoso prefácio às Lutas de Classe na França (147), pelo menosfornece pontos de apoio que podem e devem ser aproveitados pela constru-ção jurídica e política pós-marxiana.

Diante deste panorama, é preciso rejeitar, decididamente, o quadropuramente cronológico, para mostrar as sincronlas (ligadas a incidentes dapráxis e teorização sempre conjuntural), como elementos dum edifício diacrô-nico. Marx, em cada tempo e etapa e no conjunto de sua obra-itinerário, apa-rece com todas as preocupações, muito atuantes, inclusive as do Direito e daJustiça, que apenas se redispõem, nos diversos instantes, em arranjos tambémdiversos, segundo o estímulo da situação e as relações mais ou menos apressa-das ou mais ou menos ponderadas, que tal estímulo suscita neste jogo cam-biante. Ora se obliteram, parcialmente, certas aquisições, logo retomadas; orase destacam, parcialmente, aquelas mesmas conquistas —jamais vistas, defini-tivamente, como coisas vencidas e dissolvidas.

Para um verdadeiro estudo dialético, portanto, no campo das relaçõesentre Marx e o Direito, é preciso subordinar a simples cronologia aos padrõesde afirmação, negação e negação da negação do núcleo jurídico permanente,pondo as fases, etapas ou períodos nunca estanques, dentro da perspectiva te-mática dialetizada. Só assim é dado corrigir o simplísmo grosseiro e erróneo,

145 - A propósito ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, notas 420426 etexto correspondente.146-ROBERTO LYRA FILHO, Introdução ao Direito, cit., p. 43-47; ROBERTOLYRA FILHO, .Direito ao Capital e Direito do Trabalho, cií.,passim.146 A-MARX, .filhes..., cit., II, p. 90.146B-MARX,.P<7£ej...f cit., O, p.78-79.147 -MARX, Lês Luttes de Classe en France, Paris, Éditions Sociales, 1967, p. 11-36.Não à toa este texto é um dos cavalos de batalha do eurocomunismo.

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ltão comum na bibliografia marxista e niarxológica, de esquematizar as ampu-tações no conjunto: o MarX t filósofo, afirmaria o jurídico; o Marx U, "cien-tista", negaria o Direito, considerado puro veículo estatal de dominação (emque pesem todas as contradições do ordenamento legislativo e a "influênciade retorno" desta "superestrutura" sobre a "base") (148); e, para a completadistorção, ainda se procura cancelar a negação da negação do Direito, que, noMarx II, é mais do que presente — é clamorosa, é solar, é berrante, é inelimi-nável.

As três operações dialéíicas estão em TODAS as "fases" marxianas: afir-mação, negação e negação da negação do.Direito. Por isto, conduzi para estespólos a divisão do presente ensaio e, no interior dos aspectos orúpresentes, éque estudo as (relativas) diferenças de cada período. A pura diacronia é idea-lista; a simples cronologia, insuficiente.

O quinto tipo dz problema, no elenco proposto, diz com os obstáculospsicológicos ao reto enfoque das complexas relações entre Marx e o Direito.

Marx era filbo de advogado e principiou seu roteiro universitário comoestudante de Direito. Sua desilusão e rompimento coma carreira jurídica temmuita semelhança como equívoco de tantos jovens contemporâneos. Quandochegam aos bancos académicos, no alvoroço de inquietações e ideais apressa-dos e não isentos de impaciência e sentimentalismo, defrontam-se com aspatacoadas rotineiras, os catedr'áulicos subservientes, a dogmática obtusa ealienante, o estômago de avestruz dos positivistas engulindo qualquer pacotedas prepotências estatais, que o famoso "toque de midas" kelseniano trans-forma em "neutros" produtos "jurídicos". Diante disto, muitos rapazes e mo-cas progressistas logo se deixam tomar por um nojo não injustificado, que, po-rém, injustificadamente, vai tender ã equiparação do lixo legislativo com oíntegro universo jurídico, sem perceber, sequer, que, dialeticamente, o estru-me das estruturas corruptas serve também de adubo à contestação e floresci-mento de afirmações jurídicas para, supra e metalegais, oriundas de classese grupos espoliados e oprimidos. Esquecem, de pronto, o que, após a crise deabandono do curso jurídico, Marx entrevia, com afirmar que a Justiça e oDireito mesmo se realizam pela negação da (Ín)justiça dos donos do poder esua distorção no controle classístico e grupai, de flegítima dominação (149).Desta sorte se esboça uma reação aos estímulos negativos, bem parecida coma do amante traído, que passa a generalizar sua decepção, dizendo que "a

148 -Já assinalamos que a questão jurídica se põe desde a "base", quando mais não se-ja porque o processo espoliativo e opressor já ali se delineia, sacrificando'os DIREITOSde espoliados e oprimidos (ver notas 39 e 107)'.149 -MARX,0eui>m, cit., I I I , p. 453.

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mulher", e não apenas a vampe que o chifrou, é irremediavelmente debochadae prostituta (um humorista acentuaria que, nisto, o afã denunciador faz aelipse mental das contradições do culto a mamãe, à irmãzinha, e às aparenta-das e amigas "de respeito").

Esse traço maniqueísta existe em Marx e regressa, a espaços, nas suasideias jurídicas; mas não é certo, nem generalizá-lo como hostilidade perma-nente ao Direito e à Justiça, nem por isso, suprimir a reação válida e forte,que, com não menor frequência, emerge, no seu posicionamento e nas suasideias, de todas as fases. Quando ele concebe as reivindicações socialistas, noâmbito prático-político, são as palavras Direito e Justiça que inevitavelmente

voltam ao seu espírito e sua pena. E, toda vez que teme vê-las confundidascom o "direito" corrupto e a Justiça degenerada, cobrindo com verborragiashipócritas as piores safadezas (150), apressa-se a distinguir bem claramente oalcance e sentido em que se permite empregar os termos desgastados pela in-flação ideológica. Assim é que, muito sugestivamente, admitiu e subscreveu asemendas sugeridas aos Estatutos da l? Internacional de 187] (151), por elemesmo redigidos, para incluir na redação definitiva, as palavras "suspeitas",explicando-se a Engcls, nestes termos: "apenas tive de inserir no preâmbuloduas frases sobre o ditty e o right, assim como fritth, morality and justice,mas o conjunto fica situado de tal fornia, que isto não tem importância" (152).A velha antipatia está presente, mas também a sua principal razão de ser: umtemor de que se entendesse o socialismo "científico" à maneira dos discursosflatulentos do "socialismo" palavroso. Se a ressalva importasse em mais doque isto, o adendo seria negado. Marx, inclusive, já'utilizara, espontaneamen-te, no Manifesto de lançamento da Internacional, em 1864, uma formulaçãoprópria e até mais ampla, ao falar, nas "leis simples da moral e da justiça, quedevem governar tanto as relações entre indivíduos, como as regras principaisdo intercâmbio entre as nações" (l 53); e, tambe'm no ano de 1864, dirigia-sea Lincoln, saudando a "grande república democrática, onde nascera a primeiradeclaração dos Direitos do Homem" (154). O fato é que, na carta esclarecedo-ra a Engels, Marx deixa bem claro, linhas acima da explicação sobre o seu pro-jcto de preâmbulo e declaração de princípios, que empreendera o trabalho,após fazer oposição a esboço alheio, que se engalanava com "os mais vagosouropéis do socialismo francês" (155). E está deste modo confirmado que a

150 -A propósito M. RUBEL.iVi MARX./to^es.,., cit., l, p. 29 (introdução).151 - MARX-ENGELS,Oàraj Escolhidas, cit., I, p. 322-323.152 - MARX-ENGELS, Correspondance. cit., VII, p. 282.153 -MARX-ENGELS,Oferoj£ícoí/nVíffst cit., I, p. 321.154 - MARX-ENGELS, Gwrerpondartw, cit., VII, p. 327.155-/Wííem, p. 281.

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lrestrição marxíana não foi propriamente aos termos e conceitos estritos, po-rém ao que eles possam ter de despistador, no seu emprego frouxo e vazio.Atrás da controvérsia, repontava a velha briga com Proudhoh; e, se tudo issonão pôde impedi-lo de, novamente, confundir as coisas nos paralogismos já re-feridos, de 1875 (Critica do Programa de Goíhn), este balanceio nos permitemostrar como ainda, e sempre, funciona uma certa prevenção, oriunda daque-les primeiros contactos infelizes com a "ciência jurídica" dos seus antigos pro-fessores, reacionários e cortesãos. O alvo era, sem dúvida, "vosso direito, quenão passa da vontade de vossa classe erigida em lei" (156). Porém, já na crí-tica a "são Max" (Stirner), com debochar da grandiloquência, que esconde aprópria miopia, atrás de vocábulos — como "Verdade, Liberdade, Humanida-de, Justiça" (157), Marx non saneio demonstrava urna aguda consciência dadistinção entre Dirciío e lei (158). Não há também rompimento com a ideiada Justiça, que se realiza pela negação do "direito positivo histórico" (159) háuma eterna ambiguidade, uma frequente oscilação, um ir-e-vir entre afirmaçãoe negação de certo direito, às vexes inflado em negação do Direito toitt court,que, entretanto, se revela, menos como uma questão de princípio, do quecomo reflexo e vestígio das decepções estudantis. Da mesma forma, não pa-rece descabido realçar a presença desta obstrução psicológica (assim comouma espe'cie de "misantropia", que se negasse a ombrear com os setores "jurí-dicos" da sociedade), quando é um verdadeiro e próprio marxista, da estaturade Thompson, quem nos põe em guarda contra o esquematismo de toda a re-dução do Direito ao seu aspecto superestrutural (160), e, no atinente à Justi-ça, também não hesita em tachar de "sentimental" o maniqueísmo que espe-ra encontrar, de pronto, a Justiça inteira e pura, sob pena de afirmar que ela éapenas uma conversa fiada. Aliás, o próprio Marx nos permite, com as suasambiguidades, mostrar como tinha consciência deste erro de visão e, se even-tualmente se deixava levar a afirmações imprudentes, que os discípulos bito-lados agravam, com os seus exageros, permanecia, contudo, bem mais ágil ematizado. N'0 Capital, por exemplo, ele insere uma nota importante sobre omau uso da palavra justiça, que, entretanto,-deixa insinuada a distinção entreessa "Justiça" verbal e a outra, que nada tem a ver com as hipocrisias. Efetiva-mente, ele ali se refere a "muitas pessoas", que "inserem o seu ideal de Justiçanas relações jurídicas, emergentes em sociedade fundada na produção mercan-til" (161). Com isto, é evidente, não exclui outras tantas pessoas, que não

156 -Manifesto Comunista, m MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, p. 34.157-MARX, Oei/ireí, cit., til, p. 1135. O Texto é da Ideologia Alemã.158 - /ZjfWem,p. l231 (vera epígrafe dcsíe estudo).159 ~ Ibidem, p. 453.160- Ver nota 107.161 -MARX, Gelarei, cit., l,p.620 (nota do vol. l,d'O Capital).

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procedem da mesma forma e, sobretudo, não confina a noção de Justiça à suaeventual distorção ideológica.

As relações ambíguas entre Marx e as palavras Direito e Justiça, comoprojeção de um constante ressentimento com os seus antigos e poeirentos pro-fessores e hostilidade aos "socialistas" palavrosos, nâ"o é, entretanto, o únicoobstáculo, de ordem psicológica, com o qual ficamos às voltas, na análise dasideias jurídicas marxianas.

Quer neste seíor, quer em qualquer outro, é preciso não esquecer —como fazem frequentemente os marxistas — que Marx era completamente"humano" e que o seu génio, por isto, não evitava certos condicionamentosda simpatia ou antipatia, em relação a pessoas e doutrinas. Por um lado,subsiste a originária "desilusão" com o Direito (o Direito tal qual era distorci-do, em ideólogos, professores e doutrinadores do "socialismo" vazio, dosquais Marx se queria distinguir, peremptoriamente. E isto conduzia o pensadora paralogismos, oscilações, exageros unilaterais e destrutivos, assim afinal im-pedindo que captasse o jurídico em sua totalidade e movimento dialético, jun-tando, no processo, as antíteses do "direito" da classe dominante, seus moresdominadores, e do direito surgindo no clamor dos espoliados e oprimidos, em-bora chegasse, nada obstante, ao limiar daquela dialética forma de ver o pro-cesso, incorporando, em parte, à análise da legalidade capitalista e burguesa, aimportância dos frutos duma pressão jurídica da juridicidade legítima dos tra-balhadores) (162). Mas, por outro lado e também com não pequena frequên-cia, os seus juízos, referências e citações a adversários e até amigos entrega-vam-se, decerto, a emoções e sentimentos, como a zanga repentina e, inclusi-ve, um amor e ódio alternados ou combinados, no mesmo tempo e com omesmo endereço.

Já estudei, por exemplo, o caso edipiano de suas relações com He-gel (163), seguindo o padrão conflitivo, tanto produtor de afeto, quanto dexingamentos en famUle, no binómio mestre-discípulo, que é (espiritualmente)muito mais do que uma simples metáfora do outro — pai e filho. A coisa teriaalcance, também, de índole política (164), que não há espaço para rastrearaqui.

162 — Veja-se o caso da redução da jornada de trabalho, já referida, que, mesmo n'0Capital, Marx pôde saudar como nada menos do que um passo importante, no caminhoentre o reino da liberdade c o da necessidade — sem infelizmente, absorver numa sínteseteórica, na qual emergiria a (nele) inexistente teoria ou doutrina dialética do Direito, istoè, pensar o Direito como (factual e conceitualmentc) abrangedor dasoposiçõcs/wnctfccrentre dominantes e dominados.163 - ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., notas 328-329 e texto cor-respondente.164 _ Ibidein, notas 324-327 e 330-334 e texto correspondente.

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Permanece, entretanto, o elemento psicológico muito atuante;e o cum-pre destacar, a título de advertência, alcançando a realização durn estudosobre' Marx e o Direito, é a necessidade imperiosa de evitar as caricaturas depessoas e ideias, que existem na obra marxiana, como repercussão de suasojerizas e afeíos — sobretudo ojerizas, porque ele era um tipo do mais altoteor de agressividade e mínima tolerância, no contraste de opiniões. O adver-sário tendia a ser apresentado como inimigo; a divergência, como burrice ousafadeza; as contradições (nos antipatizados), como prova de que esses "vi-lões" da história só mereciam, mesmo, porradas e insultos. O estilo simpíífi-cador, às vezes transformando o debate filosófico em uma espécie de bangue-bangue à antiga, com o "mocinho" Marx a dizimar os "bandidos", foi herda-do pela maior parte dos marxismos, que, carecendo daquele génio marxiano(que tudo redime ~ e deixa saldo positivo), HmÍíam-se a repetir os juízos dotemfvcl polemista, sem verificar até que ponto eram frutos da razão ou da pai-xão.

O meu amigo Atienza, que, como eu, não tem qualquer partiprísznil'marxiano — muito pelo contrário, nós ambos nos incluímos, com muita hon-ra, entre os seus admiradores do maior fervor, mas nenhuma cegueira idólatra~ acentua, com razão, que a vida de Marx é, de certo modo, "uma série derupturas" (165), não epistemolôgicas, mas pessoais, com toda a ira dum laveameaçado pelos incréus. Destaca, até, a "submissão" de Engels, como fatorda permanência de ambos, nurna longa e bela amizade. Mas aí eu creio que oeminente colega exagera; o que animava Engels não era a subserviência, masum extraordinário amor fraternal que chega às raias do sublime, no devota-mento constante, e se baseava numa visceral afinidade, quanto a projetos epropostas. Ele discordava muito pouco de Marx, porque não tinha grandecoisa a ressalvar, na comunhão de objetivos e realizações. Este é, mesmo, osólido fundamento de uma grande amizade, como percebeu e disse Hegel,outro tipo jupiteriano, em definição primorosa do que liga as pessoas, nosinteresses idênticos e nas tarefas conjuntas (l 66). Do ponto de vista pessoal,entretanto, Engels não deixou de magoar-se e reclamar, com muita compos-tura e razão, quando o proverbial egocentrismo dos génios levava Marx a des-comedír-se na indiferença ante a situação e sentimento dos amigos. Exemplodisto é a censura ao Mouro (Marx), por falta de solidariedade num grandeluto do Fred (Engels), em que este se retrai dignamente e o outro se preci-pita, em desculpas profusas. O episódio a ambos enobrece (167), ainda que

165 - MANUEL ATIENZA, Afarxy losDerechòs Humanos, cit., p. 276.166 -REGELtPropédeiitiqucP!iihsophique, Paris, Dcnoet-Gonthier, 1977, p. 67.167 - MARX-ENGELS, Corresponâance, cit., VII, p. 121-126 (cartas de 13,14,26 o 28dcjaneiro de 1863).

o Fred conserve sempre a superioridade, nos créditos afetivos de grande doa-dor e Marx, a gratidão, no posto de maior beneficiário. Mas em que amizade,em que relação humana deixam de existir esses desequilíbrios? Marx íambe'mcontribuía bastante para o veículo notável: ele compensava com luz o que ooutro lhe trazia em calor humano e até em ajuda material.

O que desejo, porém, destacar, brevemente — e já analisei com maisextensão noutra obra (168) — e' que as características psicológicas de Marxo induzem, com excessiva frequência, a subestimar o adversário, até a "des-truí-lo", em libelos desaçaimados, cuja repetição, scrn conferencia, pode le-var-nos, já não só a participar de equívocos, a respeito dos autores e ideiasmencionados, como a desentender o posto que eles realmente ocupam, cornoinspiradores e esclarecedores do que nos transmitem os próprios textosmarxianos e seu movimento intelectual de "superações".

Darei, apenas, um exemplo, de teor jurídico, reportando-me, no mais,ao que escrevi, no texto anterior (l 69).

Aqui, cabe lembrar, como ilustração do anteriormente afirmado, o casode Schelling. Não e' possível despachá-lo com estribilhos condenatórios e irna-_gens estereotipadas, simplesmente porque ele se tornou um saco de pancadasdo marxismo tradicional. Os seus indiscutíveis traços negativos não são os úni-cos presentes, em uma vida e obra — longas, contraditórias, e afinal não sepercebe muito bem porque continuaria figurando nas histórias do idealismoalemão, se o juízo simples da tradição marxista valesse como sentença irre-corrível.

A verdade é que os repetidores de oitiva nem percebem que estão com-prando duas brigas, em larga parte atribuíveis a questões pessoais: a de Hegel,preocupado com separar-se duma velha fraternidade, na hora da auto-afirma-çSb do seu génio e sistema originais; e a de Maix, que detestava Schelling, comrazão, depois de sofrer perseguições pelo "crime" de criticar o autor prestigia-do e garantido pelas bênçãos oficiais. Leia-se a respeito do assunto: "toda apolícia alemã está à sua disposição — do que tive experiência, quando era re-dator da Gazeta Renana. As instruções relativas à censura de fato não podemadmitir que se fale mal de São Schelling" (170).

Daí o veredicto sumário de Marx, que, nâ"o surpreendentemente, abo-minava Schelling e já vinha, ademais, influenciado pelo divórcio de Hegel eseu antigo companheiro. Em consequência, os marxistas costumam bííolar-

168 - ROBERTO LYRA. FILHO, Humanismo Dialélico. cit,, IV, l, a (ver notas 335-375 e texto correspondente).169-Ver nota 168.170 - MARX-ENGELS, Correspondance, cit., I, p. 301.

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l lse pelas alusões ferinas ao nome execrado e, às vezes, chegam a omiti-lo noelenco dos grandes idealistas alemães.

Quanto ao Schelling velho, não há dúvida de que se revelou uni grandereacionário, embora islo não queira dizer que, assim, tudo o que pensou e es-creveu, mesmo neste período, estivesse eo ipso viciado pelo erro ou pela ve-Ihacaria; ou que, pelo fato de termos um místico, <le índole conservadora,todo e qualquer misticismo seja derivação e suporte, ao mesmo tempo, deirremissível compromisso com a rcacao. Eis aí um outro preconceito marxista(no caso, também marxismo) a que Hcgel deu uma bela e antecipada respos-ta (171) — e a práxis contemporânea vem confirmando, nos setores mais avan-çados, inquietos e inconformistas do clero e do pensamento religioso. Este ouaquele crente não se posicionam, politicamente, à vanguarda, a despeito desuas ideias e crenças, mas em razão delas (172).

De qualquer sorte, o Schelling moço (pelo menos), de tonalidade liberalbastante avançada, dificilmente pode ser descartado como reacionário (ao ní-vel da época); e, do ponto de vista jurídico, é lamentável que se esqueçam tan-tas antecipações e conquistas, como as que existem na Neue Deduktion dêsNaturrechts e outras obras, que os marxistas e iúrisfilósofos de esquerda geral-mente ignoram (173). Cotejando-se a Neue Deduktion com as ideias jurídicasmarxianas seria possível, inclusive, esclarecer melhor, à luz um dos seus ante-cedentes mais importantes (porém, não mencionados), o sentido e alcance deelementos da própria obra rnarxiana, em termos de liberdade e necessidade,direitos originários, contradições entre a liberdade individual e a "vontade ge-ral", separação entre Direito e legalidade, Direito de resistência e assim pordiante. A obra marxiana pressupõe o conhecimento de todo o idealismo ale-

171 - Ver ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Díalético, cit-, nota 235 e texto cor-respondente. Ibidem, nolas 226-243 e texto correspondente, onde se faz referência à po-sição de marxistas, como Sove, que hoje sustentam a "contradição fiãb-antagõníca" entrea fé religiosa e o próprio marxismo, elevando à sede teor Iça as alianças prál iças do .proces-so de libertação.172 - CAMILO TORRES, Cristianismo e Revolução, Porto Alegre, Global Editora,1981, p. I 80 ss e passim.173 -Ver ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Díalético. cit., nota 351 e texto cor-respondente; a propósito; ROBERTO LURA FILHO, Argiliçao à Tese do Prof. RenatoCzerna, como examinador no concurso deste último para a vaga de professor titular deFilosofia Jurídica (São Paulo, USP, Faculdade de Direito, 1982, inédito). Ref.: RENATOC. CZERNA, O Direito e o Estado no idealismo Germânico (São Paulo, USP, Faculdadede Direito, 1982, edição limitada). Czerna é um dos raros autores nacionais que tratam,direta e minuciosamente, do pensamento jurídico de Schelling. Sobre a chamada Schel-ling rcvival, ver XAVIER T1LLETE, Scltelling, une PSiOosophle du Devenir, Paris, Vrin,1970.

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mão, que é um dos seus esteios; e, seja o fato de ler Hegel, com os olhos deMarx, senão apenas dentro dos textos deste, é urna deturpação que resultana incompreensão do próprio contributo marxiano (174), que dizer dapura e simples omissão de Schelling, ou leitura caolha dos seus escritos, ape-nas para vê-lo, como repositório de erros? E preciso conferir os juízos deMarx, em lugar de repeti-los, num ataque de psitacísmo.

O sexto e último tipo de problema, no estudo das relações entre Marxo Direito situa os obstáculos metodológicos, isto ê, os que dizem respeito àatitude do investigador perante a obra de Marx, Existe uma grande variedade,entre as que são efetívamente adotadas, pelos que se debruçam sobre os escri-tos marxianos, seja em termos gerais, seja na análise especial das suas ideiasjurídicas. Em sentido muito amplo, diria eu que elas oscilam entre um objeti-vismo ilusório e um subjetivismo descarado. O primeiro oculta o diálogo inin-terrupto do leitor com os textos mesmos; o segundo deforma o acervo em fo-co, através da mascaragem, como operações de exegese, de um conjunto depreconceitos.

Se a melhor maneira de fazer a História da Filosofia fosse eliminar todaa interferência do leitor, não haveria lugar para historiadores e já bastariam asobras completas dos filósofos, publicadas por uma série de editores mudos epassivos, como filmes fotográficos (174 A).

Marilena Chauí, comentando um dos meus trabalhos, acentua que esco-lheu certos aspectos que exprimiam os seus próprios interesses; e acrescentaque, "como lembra Claude Lefort, uma obra de pensamento não se encontraapenas no texto do seu autor, mas ainda no de seus leitores, sendo constituídapelo campo de reflexões que produzem em comum" (175).

Esta, 'Visão generosa da escrita e da leitura", nota Marilena, foi herda-da, por ela e por Lefort, de Merleau Ponty. Efetivamente, é neste filósofocontemporâneo que se encontra uma das colocações mais precisas do que elechama "o meio termo", entre o objetivismo e o subjetivismo. Diz este autor,num tópico do seu estudo, intitulado -- O Filósofo e a sua Sombra ~ que,"entre uma história objetiva da filosofia, mutilando os grandes filósofos doque eles suscitaram no pensamento alheio e certa meditação, disfarçada emdiálogo, no qual seriam nossas as perguntas e respostas, deve existir um meiotermo, em que o filósofo de quem se fala e o que discorre sobre ele estão am-

174 - LENDM, Quaderni Filosofia, cit., p. 167.174 A-PAULRICOEUR,ffisíòrÍje herdade, Rb, Forense, 1968, p. 23 ss.175 - MARILENA CHAUl",Roberto Lyra Filho ou a Dignidade Política do Direito, cit,,p. 23.

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bos presentes, embora seja, até em princípio, inviável, determinar a cada ins-tante, o que pertence a um e a outro" (176).

Este nexo inextricável não é, porém, tão arbitrário, quanto possa pare-cer, à primeira vista, na afirmação dum enlace, onde praticamente desaparece

com os pontos de sutura.Na verdade, é toda a ciência hermenêutica mais avançada, que procura,

hoje em dia, se não desatar o nó górdio, pelo menos esclarecê-lo, com as luzesincidentes dum saber relativo à interpretação — e a partir do fato de que elanão c uma tarefa adjetiva, mas substantiva e constitutiva do produto formadopelas duas "presenças".

Assim como a dialética pôs o seu manto englobantesobrea tradicionalcisão do sujeito c objeto (111), para demonstrar que, como realidade (ontolo-gia) ou princípios condutores do conhecimento (gnosiologia e lógica), eles seunem e integram na perspectiva do Ser-em-Devenir (178) ~ agora se desenvol-vem as pesquisas concernentes à hermenêutica material (e não apenas instru-mental), que focaliza a integração correlata do autor e do comentador, na im-bricação dos textos interpretado e ínterpretativo.

Isto se realiza em dois planos entrosados, quer ao nível da análise dosfenómenos, em que se polariza o encontro de texto e metatexto, passando àco-implicação recíproca de ambos, num condomínio intelectual, sempre en-riquecido e remanejado pelas renovações da tentativa — e eis aí o que se cha-mam "leituras" sucessivas; quer ao nível totalizador duma ciência da herme-nêutica material, com o debate sobre o alcance, a validade e o sentido dasoperações realizadas e estudadas no outro plano (178 A).

Dial eticamente, esta fusão aponta como seriam unilaterais, incompletase redutoras todas as abordagens de fora para dentro e de dentro para fora dofoco textual e suas moléculas de discursos enlaçados. Assim, uma sociologiado conhecimento é indispensável para situar historicamente o conjunto defunções correlatas (texto e interpretação); mas apenas uma sociologia do co-nhecimento (disciplina de inspiração marxiana, como as que mais o sejam)corre o risco de simplificar demais a "explicação", redundando naquilo que

176 - MAURICE MERLEAU PONTY, Éloge de }a PhSosophie et Au três Essaís, Paris,Gallimard, 1967, p. 242. Ver ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialéiico, cit., no-tas 265 e 320 e textos correspondentes.177 - ERNST BLOCH, Subjekt-Oblekt: ErlaUtmmgen zu Hegel, cit.178 - HEG~E,L,Encydopêdie, cit., (versão Bourgeois), p. 268-269.17S A - A hermenêutica material tem repercussão, inclusive na hermenêutica jurídica,ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capita! e Direito do Trabalho, cit., p. 56 ES. VerPAUL R1COEUR, Interpretação e Ideologias, Rio, Francisco Alves, 1977.

Sartre pôde censurar, e com razíò, às impostaçoes do marxismo corrente:uma tendência a despachar os autores estudados e dar os trâmites por findos,tffo logo os indigitou como pertencentes a uma classe e estrutura social deter-minadas (179). Marx mesmo problematiza (com mais agudeza do que os seusdiscípulos) aquele vezo de reconduzir, em linha reta, um pensador ou artistaao rnodo de produção (180). Se, ainda daqui, permanece em debate o proble-

-ma dos valores intuitivos (representação artística da realidade apreendida) edíscursivãmente racionais (representação dessa mesma realidade, na filosofiae na ciência, que, entretanto, não se desligam de todo, nem poderiam fazê-lo,dos saltos criativos da intuição) (181), por outro lado, as diferentes aborda-gens da hermenêutica moderna ainda hesitam, do enfoque tradicionalista deGadamer à problemática, não resolvida nas tentativas c propostas de Haber-mas (182). Mas qual é a questão realmente fundamental que repousa, excetopor decretações arrogantes e falsas, no paraíso do saber feito e perfeito?

179 — SARTRE, Questão de Método, cit., p.50 e passim: "Valéry é um intelec-tual pequeno-burguês mas nem todo intelectual peque no-burguês é Valéry" — comonem todo filósofo "pequeno-burguês" á Kant... ou Marx, o que, a par da questãode elucidar em que medida c por quais mediações isto lhe condiciona, mas não de-termina, o pensamento (do contrario, tombaríamos na dissolução relativista),ainda nos deixa as voltas com o background de me'rito — ou, por outras palavras,o valor intrínseco do discurso, para além do quadro referencial de texto e circuns-tância, que o ilumina, sem esgotá-lo como simples e cética ilustração do qiiot hotflines,tot seníentia} (ou ?HO/...clase social, tot... verdade relativa). Para evitar esses grosseirossimplísmos, não vejo caminho que evite o núcleo da impostaçâb heleghnaias aquisiçõesparciais Íntegram-sc, enquanto momentos necessários e imperecíveis do Todo (que se rea-liza e revela progressivamente): e, se toda a filosofia (ou ciência) estão irremediavelmentecondicionadas pelo horizonte histórico duma estrutura social e a posição do produtordentro dela, no momento particular da criação intelectual, u Filosofia c a Ciência secompõem, no seu conjunto, de partículas trazidas pela evolução ininterrupta da investi-gação. Por outras palavras, a verdade é um processo constante de acessão (no sentidojurídico) e nunca da aquisição súbita e definitiva de um principal acabado e perfeito.Ressalvo que empreguei a expressão "pequeno-burguês" Centre aspas), na semântica vul-gar e corrente, que (é óbvio) não corresponde ao rigor científico da sua qualificação pro-priamente económica (PAULO SINGER, Aprender Economia, cit., 100-101). Isto, por-que, de toda forma, se lhe déssemos o sentido restrito, ainda caberá inventar outro con-ceito, para a "classe." aqui designada — sem o recurso desesperado à frouxa "classe me-dia", (SINGER, ibidem, p. 156).180 -MARX.Oewwej, cit., I, p. 265-266.181 — "O analista, por uma espécie de intuição, adivinha antes de demonstrar... Precisorelembrar que assim foram feitas todas as descobertas importantes?" (POINCARE.tf/wdFOULQU1É &SAlNTÍEAÍi,Diciionnairc de Já Langue fliSosophique. Paris, PUF, 1969,p. 382)

182 - BÁRBARA FREITAG & SÉRGIO PAULO ROUANET, Habermas. São Paulo Áti-ca, 1980; PAUL RICOEUR, Interpretação e Ideologias, cit.

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De toda a sorte, um ceticísmo dissolvente não justificaria o retorno àsposições objctivistas superadas ou àquele subjetivismo irracional de emergên-cia e desespero, que renuncia à ciência relativa (mas não relativista) e únicaverdadeira, trocando este produto (eficaz, útil e dignamente operacional) (183)por um impressionismo aleatório, do cosi è se vi pare., que a transforma em"literatura". As aventuras da razão histórica (184) fazem progredir a ciência;o subjetivismo anticieníífico é apenas um suicídio intelectual, com o enterrodo homo quaerens, adornado pelos eravos-de-defunto de fábulas, devaneiose palpites. A ciência vai passando muito bem (185), malgrado as inevitáveisimperfeições, e, como já disse, neste ensaio, se tivéssemos de esperar um su-porte epistemológico impecável, nem os benefícios relativos poderiam ser al-cançados e fruídos, com o grande proveito, que alcançam e mantêm, efetiva-mente, na prática. A ciência sem sal filosófico degenera no intragável positivis-mo (que e, afinal de contas, uma filosofia também, conquanto péssima); e, noentanto, o sal filosófico, deitado aos montes, na panela científica, estraga osalimentos, destrói os seus valores teóricos e práticos, numa liquidação dosmemores elementos gustativos e nutritivos (o que também constitui uma pés-sima filosofia, com a desvantagem adicional de que nos priva até da boa co-'mida cientifica) (186).

Esta nora leitura da obra marxiana, para repensar com Marx e, eventual-mente, contra ele (187) as abordagens do Direito, que se enírecruzam no quese possa chamar de ideias jurídicas marxianas, permanece naquele "meio ter-mo", nem objetivista, nem subjetivista, que Merleau Ponty defendia e no qualo sujeito e o objeto se entrosam no seu movimento reflexivo e dialético. Opensar sem adequação ao objeto é um moinho sem grão e o seu fubá nãopassa dum mingau de vento e fantasia. O pensar que se reduz ao objeto (coisadesprendida às inteiras do sujeito)é um grão sem moinho, que, não sendo se-quer praticável; senão fraudulentamente (isto é, escondendo o sujeito pensan-te), poderia render, no máximo e se possível fosse, o mesmo grão intacto, nãomoído, mas fotografado. O pensar corn o autor pensado, sua noese e os noe-mas enquadrados no texto é, afinal, o único jeito de moer alguma coisa e pro-duzir um trabalho intelectual, no lugar do "reflexo" (em todo caso distorci-do, pois o "espelho" é sempre um tanto côncavo ou convexo).

183 - ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., 178-181 e texto corres-pondente.184 - GILLES GASTON G RANGER, La Raíson. Pirís, PUF, 1974, p. 89-103.185-Ver nota 183.186 - JEAN PIAGET, Psychologie et Spistcinologic, Paris, Êdiíbns Gonthier, 1970,p. 113;MARILENACHAUr, Cultura e Democracia, cit., p. 85.187 - MARILENA CHAUl", Cultura e Democracia, cit., p. 219.

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II

MARX: A AFIRMAÇÃO, A NEGAÇÃO EA NEGAÇÃO DA NEGAÇÃO DO DIREITO

"Direito... é a existência positwa da liber-dade. .. Liberdade é o direito de fazer e buscarindo o que a ouvem não prejudica."

MARX (188)

"Quanto ao dfreito, acentuamos, em oposiçãoa muitos, a antinomia do comunismo e do di-reito, tanto público e prí\<ado, quanto sob a for-ma, de máxima generalidade, dos direitos dohomem."

MARX (l 89)

"O comunismo não retira a ninguém o poder deapropriar-se de sua parte dos produtos sociais,apenas suprime o poder de escravizara trabalhode otifretn, por meio dessa apropriação...

... A luta pela emancipação das classes fraba-Ihadoras não significa uma luta por privilégios emonopólios de classe, e sim uma luta por direi-tos e deveres iguais, bem como pela emancipa-ção de todo domínio classistico."

MARX (l 90)

188 - M.AR.X,ScritliPoliria'Giovanili, Torino, Einaudi, 1950, p. 105 e 377;GUASTINI,77 Lcssico Giuridico ATarxiano, et c., p. 431 e 462.189 - MARX, Oeiwer, cit., III, p. 1177 (ideologia Alemã-).190 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, p. 33 (Manifesto Comunista') e 322(Estatutosda I? internacional}.

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A leitura mais comum dos textos marxianos, consernentes ao Direito,estabelece que, numa primeira fase, o Direito foi afirmado; na segunda, foi ne-gado ; e que não há negação da negação.

Efetivamente, sustentam alguns marxistas que Marx não admite a nega-ção da negação em hipótese alguma —assim se distinguindo de Hegel (191)—,enquanto outros, com mais prudência — e rendendo-se ao fato de que, inclu-sive n'(9 Capital, esta operação dialética é referida e realizada com muito maisdo que sentido metafórico (192) —não chegam a rejeitá-la, mas acentuam queali se trata dum tipo siiigeneris de negação da negação. Neste, e contrariamen-te à Aufhebung hegeliana, de nenhum jeito se trataria de incorporar, transmu-dar e reenquadrar elementos do quadro anterior na edificação subsequente,mas, ao revés, de destruir inteiramente aqueles elementos (193).

Não se pode negar que a maneira de ver tradicional tem a apoiá-la umbom número de citações dos escritos de Marx, embora lidos com desprezo aosproblemas filológicos, lógicos, paralógicos, cronológicos, psicológicos e meto-dológicos —já discutidos nas minhas observações preliminares.

Dai a formação de teorias ou doutrinas marxistas do Direito (pugnazes,mutuamente exclusivas e bastante arbitrárias), que não são, a bem dizer,maixianas, pois, em Marx, conforme já acentuei e se tornou banal reconhecer,não existe uma teoria ou doutrina jurídica, mas ide'ias nas quais, precisamenteâ falta de articulação sistemática, fervilham as ambiguidades, antinomias e ex-trapolações temerárias. Isto, não só nesta ou naquela etapa, neste ou naqueleescrito marxiano, porém coexistindo em tumulto, dentro da mesma etapa eaté no mesmo escrito — ou parágrafo —, de forma a tornar inviável qualqueresforço exegético de harmonização superficial.

A abordagem estruturalisía, portanto, encontra, neste campo, além dassuas limitações gerais e formalfstícas (na medida em que se afasta do contra-veneno genético) (194), uma desarticulação de tais proporções, que, só me-diante paralogismos hermenêuticos, logra impor sua ordem fictícia ao acervogenial, fétil, cheio de fulgurações inestimáveis — mas, com tudo isto, insus-ceptível de redução a um conjunto firme e consequente.

191 -LOUIS ALTHUSSER, flosiçffes l, cit., p. 144. Ver ROBERTO LYRA FILHO,Humanismo Dialêtico, cit., nota 280.192 - Por exemplo, MARX, Oeuvres. cit.. I, p. 1239-1240 etc. Ver ROBERTO LYRAFILHO, Humanismo Dialêtico, cit., nota 122.193-LUCEN SÈVE.ob. cit., p. 111,112, 117,118, 189, 191, 501, 506. A dialéticamarxiana, deste ponto de vista, transformaria a "superação" em "supressão de um doscontrários" (p, 482).194-LUCEN GOLDMANN, Marxisme et Sciences Humaines, Paris, Gallimard, 1970,p. 17 ss.

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No discurso jurídico marxiano enfileiram-se proposições que hurleníde se tronver ensemble e os seus intérpretes rotineiros costumam dar comocentrípeto o pensamento e un/vocos os termos ccntrifugados e sacudidospor multiplicidades antinômicas de posição e sentido (a nível perspectivo, se-mântico e semiológico) ou, como c o caso, por exemplo, de Cuastini (195),deixam o tumulto intocado e assim pouco ou nada extraem de Marx, alémduma crítica destrutiva ao Direito. Por outro lado, os "unificadores" abando-nam, mutilam ou distorcem o que não serve ao padrão do preconceito "in-terpretai i vo". A "interpretação" se revela, por isto, mais do que restritiva:uma exegese impávida m ente cirúrgica (196). Lembro-me, a propósito, dorelojoeiro nordestino, a que se referia meu avô: quando era levado a con-serto um relógio, ele devolvia a máquina, funcionando e as "peças que so-braram", já que não sabia onde inseri-las, no ato de remontar o aparelho.

O meu propósito ê, aqui, considerar muito diversamente as ídéiasjurídicas marxíanas. Sem querer "deduzir" delas um sistema que ali nãoexiste, mas retomando-as, para a reflexão com Marx, já definida na preli-minar metodológica, farei antes de tudo, uma breve menção aos motivose fundamentos da minha oposição à abordagem comum.

Neste ângulo, cabe então explicar por que rejeito a tese de afirma-ção e negação sucessivas do Direito, assim como a sustentam os intér-pretes clássicos do pensamento marxiano. Mas convém, desde logo, mos-trar porque também rejeito a tese conexa de que não hi, em Marx, a nega-ção da negação e de que esta parte da dialética hegeliana ali ficaria excluídaou se transformaria numa ruptura radical. De tal sorte, ao invés de se negara negação, seria destruída ex integro a formação procedente e esboçadaex novo uma construção em tábua rasa.

195 - GUASTINI, Alarx; Dália Filosofia de! Diritto el Scienza delia Società, cit., p. 5.196-RADOMIR LUKIC, Tiíeòrie de \'Etat et dit Droit, cit., p. 70. Veja-se,aqui, a tor-tuosa "justificação" dum corte injustificado: o autor afirma que "com a palavra — Di-reito — designaremos somente as normas sancionadas pelo Estado" e, diante da críticamuito procedente, mostrando que "esse termo (Direito) se emprega com frequêncianuma acepção mais ampla", responde que está disposto a reconhecer que "há normasnão sancionadas pelo Estado, com a ressalva de que não incluímos essas normas no senti-do em que entendemos este conceito..." É o raciocínio da cobra que engole o própriorabo. Com o que passa adiante, sem atentar, sequer, para o texto marxiano da Ideolo-gia Alemã, onde se põe a distinção entre Direito e lei ("assunto bem diferente") MARX,Oeuvres, cit.,111, p. 1231.

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É verdade que Marx, em mais de uma ocasião, chegou a negar a negaçãoda negação hegeliana (197) o que não quer dizer que tenha obedecido, em se-guida e na prática, ao que dissera em princípio, nem que deixasse por ouírolado, de contraditar o principio mesmo, em outras formulações (198).

A dificuldade.se reconduz, é claro, à ausência daquela visão englobantee exposição sistemática do que fosse a sua dialética, em contraste com a deHegel — um trabalho que Marx anunciou e nos ficou devendo e que, já sugeri,resultaria muito embaraçoso, pelas razões expostas e a que não voltarei.

Ficamos na contingência, portanto, de inferir a dialética, em lugar deconferi-la, num discurso direto ~ e tal procedimento só pode arrimar-se nas

197 — Por exemplo, MARX, Oeuvres, cií., II, p. 134, onde ele adota e exemplifica, cnpassant, uma negação da negação supressiva e, não, siípcradora, com tudo o que istopossa ter de contraditório, wò dialético, mas em termos (contradictio ínadiecloj.jí que,neste caso, temos a negação pura e simples da antítese, transformada em antinomia e dis-solvida pela aniquilação de um dos termos em contradita. Isto, aliás, se realiza, no exem-plo marxiano, a través dum paralogismo. Diz ele que, se reconhece a religião, como aliena-ção da consciência humana (petição de princípio), esta figura como negação do própriohomem (consciência alienada) e a consciência autêntica importa em negai tal negação,através da "religião aniquilada, abolida". O "se" extrapola urna hipótese em discussão,no plano real, para transformá-la numa antítese lógica e suprirnHa pela negação pura asimples.198 — SÈVE, ob. cit., p. 505: "na realidade.a reviravolta materialista provoca urna rup-tura em cadeia, uma reelaboração global das categorias dialéticas, as quais daf por diantenão podem mais const'rtuir-se em sistema, íob pena de recaída no idealismo, mas seencadeiam numa rede, ao redor da contradição ineconciliável entre contrários materiais,historicamente concretos. Isto quer dizer que nada resta, na dialética marxista, do mode-lo hegeliano da contradição; que ela seja substituída por pressuposto teórico inteiramen-te diverso e que nada tem a ver'com o primeiro? Não. Este não ê fundado apenas no queMarx sempre nos dk, nos textos já citados e ainda neste — as leis correias da dialética jáestão contidas em Hegel, è verdade que em forma mística. Trata-se de despojar esta for-ma...' - porém mais ainda se funda neste fato, isto é, no desentranhamento do núcleoracional da dialética hegeliana: a oposição polar dos contrários, no seio duma unidade,pensada por Hegel como contradição ideal — reconcilíàVel e repensada por Marx comomaterial-ineconcilíável..." Uffl.nãó voltarei à imagem do núcleo e da casca (já denun-ciei, neste estudo, a sua falácia), mas, francamente!... Uma "reelnboração global" dascategorias dialéticas, para. não mais se constituírem "num sistema" e que, nada obsiantc,esposa o sistema dialético hegeliano, embora invertido e, aceitando as "suas leis dialéti-cas", mantém a categoria da negação da negação, transformada, entretanto, cm supres-são, pura e simples, dos irreconciliáveis antecedentes, para recomeçar da capo... semnegação da negação?! A mixórdia é intragável;adema.is, entre outras confusões, confundetambém "superação" e "reconciliação", para negar o óbvio, que é, em Hegel, o segundotermo da antítese e atribuir a Marx o cancelamento tios dois termos anteriores, a títuloda negação da negação... Onde estava o brilhante Sève com a cabeça quando escreveuisto? Aqui, não ha dialétícajhá pura e simples incoerência.

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menções incidentes à própria. dialética e na aplicação que dela faz Marx emtoda a sua obra, o que, de novo, nos deixa às voltas com noções escorregadiase oscilajites.

Não quero dizer que ele nos tivesse de brindar com um "discurso dométodo", em padrão idealista, pondo a carroça dos conceitos à frente doscavalos da práxis: isto importaria em sobrecarregar o metadiscurso de con-trabandos apriorisííícos. Mas, inclusive para determinar de que jeito a provagnosiológica do pudim está no que ali se acha, comendo — como no provér-bio inglês, tifo citado por Marx, e que é outra forma de exprimir a 2? tesesobre Feuerbach (J 99) — e inclusive para delinear, ontologicamente (200),o que ele concebe como a dialética, não do pensamento, mas das coisas mes-mas, que o conhecimento busca apreender, seria preciso que Marx enfren-tasse diretamente, a questão das consequências de sua crítica a Hegel e,sobretudo, a questão da validade e pormenores do seu projeío alternativo.

Em síntese, porém, e ã vista do que se pode observar na condução dopensamento marxiano, o seu aspecto operatório — e os breves comentáriosque faz a respeito, já que permanecem fluidas as questões de princípios —,cabe distinguir vários planos, nos quais uma verdadeira negação da negaçãose insinua (às vezes, contra as postulações programáticas).

A nível da formação das ideias, a dialética, sem dúvida, é utilizada porMarx, a fim de salvar o seu materialismo duma impostação epifenomênica e

. mecanicista. Deste modo, a relação "causa-efeito", que enrijeceria o esquemade ínfra-estrutura económica e superestrutura ideológica, é mitigada por umcondicionamento vencível do topo pela base, desde que (veja-se a 3? tese so-bre Feuerbach) os homens não apenas são considerados como resultantes domeio e da educação, mas também como os seus transformadores ativos: "omeio é transformado pelos homens e o educador tem de ser educado" (201)— o que, aliás, se confirma, na ideologia Alemã', quando é acentuado que"as circunstâncias constituem os homens, tanto quanto os homens criamas circunstâncias" (202). Desta maneira, as relações de produção abremespaço para a "determinação" da consciência, pelas circunstâncias materiais,o que nega a liberdade, tanto quanto para a conscientização dessas próprias"determinações", o que possibilita a libertação do homem, neutralizando opróprio influxo "determinante". Por outras palavras, a antítese "livre arbí-

199 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1030.200 - Ver HENRIQUE- C. DE LIMA VA2, a respeito da ontologia marxiana, em Sobreas Fontes FBosóficas do Pensamento de Karl Marx, cit., p. .14-15.201 -MARX,Oeuvres, cit., in,'p\1030.102 ~ Jbideni, p. 1072.

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trio" "determinismo" — é resolvida pela afirmação dum "determinismo", dia-letizado pela negação da negação do "livre arbítrio", que o incorpora, trans-muda e reenquadra, não como atributo humano efetívo, porém como poten-cial humano duma conquista possível, em que a "consciência é conscientiza-ção" (203) e a liberdade é libertação, assentada na práxis revolucionária. Isto,aliás, é da mais clara e direta inspiração hegeliana, já que em liegel, antes deMarx, se fixava que "o homem se conhece e assim se distingue do animal...Ele sabe o que o determina: eis ai* a sua independência" (204). O que Marxacrescenta é o precipitado teórico-prático e prático-teórico (204 A), ern quenão deixa, entretanto, de utilizar a negação da negação.

Mas noutros planos também é evidente que esta negação da negaçãoemerge, firme e nítida, como, por exemplo, no que se refere, não propria-mente à formação das ideias, mas à progressão teórica das ideias formadase no sentido das superações não puramente destrutivas das doutrinas anterio-res. Isto, afinal, é programático no marxismo e não deixou de ser estabele-cido, segundo o modelo hegeliano, em textos de Marx e de Engels. Quantoa este último, não poderia ser rnais precisa a exposição constante, em linhade princípio, no seu Ludwig Feuerbach (205): "o que hoje sé reconhece comoverdadeiro comporta um lado falso escondido, que mais tarde aparecerá, tan-to quanto o que hoje se considera errado tem o seu aspecto verdadeiro, graçasao qual pode antes passar por certo". Aqui se patenteia que as negações filo-sóficas e científicas permanecem subordinadas à negação da negação, quesimultaneamente encara as teses superadas e a própria alternativa proposta,como doutrinas presas ao seu horizonte histórico e momentos imperecíveisdo Todo, progressivamente revelado (206).

Mas não é só no posicionamento de Engeís e, sim, na prática diuturnado próprio Marx que se aplica esta receita dialética. Assim é que já tive oca-sião de acentuar como o crítico impiedoso não procura, de nenhum modo,deixar em seu rastro um campo "de Hiroxima, depois de ali fazer explodir abomba atómica da negação pura. Muito pelo contrário, quando ele avança,

203 - ROBERTOÍYRA F1LEO, Humanismo Dialético, cit., notas 91 e 372.204 — HEGEL, Philosphie der Wélígeschidtfe, introdução.204 A - "A consciência da transformação do meio e da atividade humana ou da trans-formação do homem por si mesmo-só pode ser captada e compreendida racionalmentecomo práxis revolucionária" (3? tese sobre Feuerbach, MARX, Oeuvres, cit.. Hl,p. 1031). Ver também a 8? tese, na mesma obra (ibidem, p. 1033).205 - ENGELS, Ludwig Feuerbach..., cit., p. 84-87; ROBERTO LYRA FILHO, Huma-nismo Dialético, cít., nota 122.'2&6~'HSGEL,Leçonsd'Histoir(ídelaPMosophie, cit., I,p.148-149.

por exemplo, na discussão das figuras e doutrina da Economia antecedente, ocuidado simétrico e constante é assinalar que tanto rejeita a teoria económicasuperada, quanto dela incorpora, transmuda e reenquadra elementos válidos,já ali postos em destaque, assim formando a proposta renovadora, de que setorna, então, criador e sustentador (207). Aliás, isto é, da mesma forma ena base da formação marxiana, mais do que nunca destacado, enquanto a He-gel mesmo ele atribui uma verdadeira "mistificação" e, nada obstante, reco-nhece que o grande idealista foi "o primeiro a expor, em toda a sua amplitudee com toda a consciência" as "formas gerais" do movimento dialétíco (208).Que é isto, senão a negação da negação?

Passando, agora, do plano das ideias para o das coisas mesmas, distingoo que se refere à dialética da natureza e o que concerne à dialética social ehistórica, para mostrar como em ambas aparece a negação da negação.

Bem sei que alguns marxistas afirmam, peremptoriamente, que a dia-lética da natureza foi sustenda por Engels, e não por Marx; mas aproveito oensejo para assinalar que estes senhores não leram sequer O Capital, com adevida atenção, pois, ali como noutros textos, Marx deixa bem claro que as"formas gerais" da dialética hegeliana não estão, de nenhum modo ausentes,no âmbito natural.

Colho, para exemplo, a passagem achada no 19 volume d'0 Capital -que me apraz citar, agora, segundo a escrupulosa tradução, coordenada peloeminente Paulo Singer. No volume citado, pode-se achar esta proclamaçãosem ambages: "aqui, como nas ciências naturais, comprova-se a exatidão dalei descoberta por Hegel, em sua Lógica, de que modificações meramentequantitativas em certo ponto se transformam em diferenças qualitativas". E,para não deixar qualquer dúvida, Marx oferece, em nota, um exemplo de pro-cessos químicos (209).

Em todos os campos, inclusive a natural, a dialética, já em Hegel, seexprimia naqueles termos amplos, de que "tudo" o que nos cerca pode serconsiderado exemplo de dialética" (210), com a menção de comportamentosdos fenómenos no mundo social e no mundo físico (211). Não sou competen-

207 —Ver, por exemplo, MARX, Oeuvres, cit. ,11, p. 71 ss, quando ele passa em revista omercantilismo, as teses dos físiocratas, Adam Smith, Ricardo etc. O enfoque é semprecrítico sem omitir o que, em cada uma daquelas figuras e doutrinas, representou um pro-gresso e uma ideia certa.208 -MARX.ENGELS.OirtwíieoíftiaflS, cit., II, p. 16.209 -MARX, O Capital, São Paulo, AbrD Cultural, 1983,1, p. 243. Ver, a propósito,MARX-ENGELS, Lettres stir lês Sciences..., cit., p. 56-57.210 — HEGEL, Encyclopédie, cit., (versão Bourgeois), p.'514.211 •-Ibidem, p. 515.

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te para examinar a validade cientifica atual das ilustrações, que Hegel fornece,mas posso dirigir a atenção de todos para o fato de que a dialética da naturezae confirmada pela ciência moderna nas colocações de marxistas e não-marxis-tas, como nota Havemann, e, quanto à física, particularmente, com o não in-significante aval de Werner Heisenberg (212). O fato é que, afirmada a dialéti-ca, em sentido geral, vê-se que ela nada tem de contrastante com a perspectivamarxista, enquanto importe na negação da negação, isto é, numa espécie deultrapassagem que, de novo, incorpora, transmuda e reenquadra os elementosprecedentes, no âmbito da natureza. Assim o verifica e demonstra, entreoutros, Lértora, quanto à antropogênese de estilo teflhardiano, para ver emer-gir o homem de superações não puramente destrutivas da geosfera e da bios-fera, inaugurando a noosfera, que lhe í peculiar (213). De resto, Lértoraabsorve a descrição do processo teilhardiano, embora sem as suas conotaçõesteológicas, que deixa à margem, demonstrando o ajustamento da fenomenolo-gia de Teilhard à doutrina de Marx, com a ressalva (exata) de se incluir umafaltante socíosfera — o que é rnais um exemplo de negação da negação, emtermos de natural e social, na realidade, tanto quanto nas ideias e teorias, eestá ern perfeita conformidade com as colocações marxlanas sobre a rela-ção entre uma natureza dialética e o homem dialético em totalidade e mo-vimento (214).

212-ROBERT HAVERMANN, Dialética sem Dogmas, Rio, Zahar, 1967, p. 19. DI-VERSOS, Problemas da Física Moderna, São Paulo, Perspectiva, 1969, p. 23.213 -ADOLFO C. LÉRTORA, Estrutura dei Hombre, Buenos Aires, Ediciones Síla-ba, 1974. •***?.." • " . .214 —MARX, Oeuvres, cit., II, p. 79, onde se resolve a antítese homem-natureza, no"humanismo consumado", que é, segundo Maix, um naturalismo também. A oposi-

.çãb entre essência e existência, auto-afirmação e objetívação, liberdade e necessidade,indivíduo e espécie é, então, solucionada pela "homintzação " que nega o naturalismopuro, a fim de transferi-lo, na humanização da natureza (p. 81). Tudo isto continua mul-to próximo do antecedente hegeliano e da posterior focalização <le Teilhard, Nem háqualquer incompatibilidade entre o que assenta e as colocações de Marx, em obras se-guintes. No próximo fecho d'0 Capital (MARX, Oeuvres, cít., H, p. 1487-148SJ, ele ain-da é movido pelo mesmo impulso: "subsiste o império da necessidade. Ê alérn que come-ça o desenvolvimento do poder humano, que é o seu próprio objeíivo, o autêntico reinoda liberdade", que, entretanto, só pode florescer com fundamento no império da ne-cessidade "natural", entretanto submetida ao "controle racional" do nosso "intercâmbioorgânico com a natureza". E aqui a. negação da negação chega a um clímax, onde a tota-lidade c movimento marxíanos substituem os deuses pela potência de Prometeu: não àtoa esta figura seria, para ele, a do "mais nobre santo e mártir do calendário filosófico"(MARX, Oeuvres, Hl, p. 15). Afirmar, depois disto, que Marx não é humanista (embo-ra sttigeneris) constitui um obtuso despautério.

Com a sociosfera, passamos evidentemente à dialética social. E é possí-vel desde logo acentuar que a afirmação de que tal categoria não existe na dia-lética sociológica e histórica de Marx constitui o cúmulo da miopia, originadaem preconceitos antidialéticos, de que Marx não participa. É, mais uma vez,n'0 Capital, que encontramos, repetidamente, a negação da negação, reconhe-cida em termos de fenómenos sociais: "a produção capitalista engendra, elamesmo, a sua própria negação, com a fatalidade que preside às metaformosesda natureza. É a negação da negação. Ela restabelece, não a propriedade priva-da do trabalhador, porém a propriedade individual, fundada sobre as aquisi-ções da era capitalista, sobre a cooperação e a posse comum de todos os meiosde produção, inclusive o solo". Segundo Marx, isto não exige a transformaçãoda propriedade capitalista em propriedade social, uma vez que a primeira "jáassenta num modo de produção coletivo". Apenas ela se apresenta aí "comoexpropriação da massa por alguns usurpadores" e o que vai ser preconizado é,então, uma "expropriação de alguns exploradores pela massa" (215).

Escolhemos este exemplo precisamente porque ele situa o problema danegação da negação em Marx. Ela será, portanto, "supressiva", enquanto pro-cesso-histórico-social, na medida em que a explosão revolucionária visa a subs-tituir o modo de produção capitalista por outro, não capitalista; mas nem portal motivo é puramente supressiva, enquanto este ato revolucionário arrematauma implosão realizada pelo modo de produção capitalista nas suas própriasentranhas. Então, aquela produção coletiva, que nele entrou em gestação, vê

. nascer o socialismo dessas mesmas vfsceras corruptas. A classe espoliada nãocria, propriamente, uma estrutura, ex novo e ex integro: apenas evita o abor-tamento do infans conceptus e se torna a parteira histórica da nova socieda-de. Há, nisto, uma Aufliebung, isto é, uma passagem ao limite ensejado peloamadurecimento de contradições do estado antecedente e o salto não p"ura-mente supressivo é apoiado num trampolim já constituído. O modo de pro-dução capitalista é negado, na práxis, mediante a conscientização teórica deque morre devorado pelo câncer; porém a "negação da negação", aqui, con-siste em determinar o que foi gerado no útero da sociedade posta ec/í nasceaté a classe ascendente que emerge e que impulsiona o processo, para garantira oportuna subversão. Pois o processo é "fatal", mas tem de ser captado e tra-balhado pelo Homem. De toda a sorte, o capitalismo é condição de viabilida-de do socialismo nascituro: "a história é apenas a sucessão das gerações' quesurgem, uma após outra, cada quai explorando os materiais, os capitais, as for-cas produtivas legadas por todas as gerações precedentes" (216). E o "abalo

215 - MARX, Oeuvres, cit., I, p. 1239-1240.216 - MAR.X, Oeuvres, cit., m, p. 1069 (Ideologia Alenta).

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revolucionário", para "ter ou não o poder de derrubara ordem existente" de-pende das condições anteriores, nesta ordem amadurecidas — "elementos ma-teriais da subversão total, isto c, de urn lado, as forças produtivas disponfveise, de outro, a formação da massa revolucionaria, que não somente se revoltacontra determinadas condições da sociedade passada, mas... contra a sua ba-se. .. Ausentes esses elementos, é de todo irrelevante que a ideia desta subver-são já' tenha sido cem vezes formulada" (217).

A resistência de certos marxistas à categoria da negação da negação pa-rece não provir dela mesma e sim da função desempenhada no pensamentohegeliano (reputado, em última análise, conservador, num juízo que precisaser, entretanto, matizado e escoimado de não poucos equfvocos e confusõesexegétícos) e do temor de que a Áufliebwig possa degenerar num reformismo,que apenas realize "operações plásticas" no corpo da sociedade instituída.Mas, se aquela função conservadora é, no mínimo, uma simplificação meiogrosseira da posição de Hegel, e uma simplificação a que cedeu o próprioMarx, eventualmente e no afã de bem se distinguir do seu mestre (21 S), o te-mor de fornecer armas intelectuais ao reformismo (219) não era, de nenhummodo, compartilhado por Marx mesmo. Ele não hesitou em falar duma "evo-lução revolucionária" (220), em que fossem abandonadas quaisquer ilusõestriunfalistas, que também criam abortos, pela precipitação com que desejamrealizar os partos prematuros; nem sequer deixou de assinalar, no campo jurí-dico inclusive, a importância e valor das pequenas atitudes, passos e conquis-tas incidentes — como, por exemplo, a transformação do sufrágio universal,de instrumento de engodo em veículo de atuação política e de emancipaçãodos espoliados e oprimidos (221), com a incorporação, parcial e sob pressãopopular, de reivindicações dos trabalhadores ao próprio ordenamento jurídi-co do Estado capitalista e burguês (222). É este o caso da limitação legal dajornada de trabalho.

De toda a sorte, eu me permiti esta breve excursão a respeito da nega-ção da negação, apenas porque desejava, de início, validar, do ponto de vistamarxíano, uma disposição de suas ideias jurídicas, no padrão dialético da afir-mação, da negação e da negação da negação do Direito. Para isto, seria preciso

217 -Ibidem, p. 1072.21S - MARX-ENGELS, Obras Escolftidas, cit., II, p. 15-16.219 -A propósito, ver MARILENA CHAUl", Roberto Lyra FUho ou a Dignidade Políti-ca do Direito, cit., p. 27-29.220 - MARX,Pages..., cit., II, p. 56 e 59.221 -MARX,/Í7£«...,cit.,II,p.90.222-Ibidem, II, p. 194.

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limpar o terreno, já que certos marxistas rejeitariam íii limme (e numa leituraimperfeita) a aplicação desta úl t ima categoria dialética a todo o acervomarxiano.

Assim, não cuido de "hegelianizar" Marx, nem de fazer a revisão pro-funda, global e intrínseca da dialética marxista. Não haveria razão para recon-duzir totalmente Marx ao modelo de Hegel (do qual me aparto, cm muitosaspectos), nem aqui existe o necessário espaço para ajustar contas com a dia-lética marxista (na qual me inspiro, sob outras tantas facetas) (223). Em prin-cípio, caberia, repensar tanto um, quanto outra, sem que exista a obrigação denegar toda alternativa (mantida a dialética) e de ser um neo-hegcliano idealis-ta ou um neomarxiano, de materialismo bitolado. Qualquer pensador, aliás,paga tributo aos grandes antecessores, e nunca me furto a este dever, mas daínão decorre que, dando a cada um o que é seu, tenha de fazer de urn delesmeu César e renunciar à liberdade de pensamento.

Em qualquer hipótese, aqui e agora, pretendo apenas demonstrar, con-tra a leitura corrente, que a afirmação do Direito e a sua negação coexistemnas diferentes etapas do itinerário marxiano; e que, nele, se esboça com cla-reza uma negação da negação do Direito; e, ademais, que essa tríplice opera-ção dialética é o terreno fértil, onde pode nascer uma nova filosofia jurídica,baseada na sociologia e história, jurídicas também, mas não com o processocapcioso de recortar em Marx apenas os fragmentos de apoio, para fingir queneles já existe uma completa teoria ou doutrina do Direito, a ser induzidapelo intérprete (a custa de fazer vista grossa ao que a contradiz). O artifícioredundaria, como redundou, na sucessão de teorias "marxistas" do Direitoelaboradas pleos "fiéis" e os "crentes", para contrastar com a de outros tan-tos "crentes" e "fiéis", que então acusam de "heresia" as outras apresenta-ções. A história dos "marxismos" jurídicos é um campo de batalha, ern queos discípulos, pressupondo a "verdade" inalterável dos "textos sagrados",deitam fora alguns e citam outros, numa troca de anátemas recíprocos. Nãodeixa de ter alguma razão, no ponto especial de nosso interesse, o que, comcerto exagero satírico, disse Míchel Henry sobre os "marxismos" em geral:formam, todos eles, o "conjunto de contra-sensos cometidos sobre a obra deMarx" (224).

O enfoque adotado por mim, neste ensaio, importa, por outro lado, em,não desprezadas as diacronias (nas quais se fundam e elucidam, geneticamen-te, as contradições do corpus, segundo os condicionamentos estudados .nas

223 - ROBERTO LYRA FiLHO, Humanismo Dialético, cit., V, l.224 - Apitd, H. C. DE LIMA VAZ,, Sobre as Fontes Filosóficas do Pensamento de KarlMarx. cit., p. 5.

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observações preliminares), buscar o fio sincrõnico da meada, isto ê, o próprioteor da reflexão, que atravessa aquelas fases ou etapas todas, para legar-nosuma herança cultural, inestimável e imperecível — como (data vénia de Kani)os prolegôrnenos de toda filosofia e sociologia jurídicas, futuras. Nesta, supe-ram-se também os positivismo redutores, sem a "metafísica" fixista do Direi-to Natural, quer sustentado por natureza (imóvel) quer por um Deus (sem de-venir hegelíano), quer pela Razão humana (pura, eterna e inalterável).

A questão das fases; na obra marxiana, além do mais, apresenta nãopoucas dificuldades, uma vez que continua em andamento o debate demarca-tório; e a actio finmm regitndoriim só se arremata em sentenças dogmáticas,logo desafiadas pela ação rescisória da crítica.

Uma certa polarização mais frequente parece fazer passar a linha divisó-ria (com maior ou menor radicalidade, segundo o temperamento e preconcei-tos dos marxólogos) à altura da superação, a si mesmos atribuída por Marx eEngels numa página célebre do primeiro (l 859): "resolvemos desenvolver con-juníamente as nossas ideias, opondo-as à ideologia filosófica alemã. No fundo,queríamos fazer o nosso exame de consciência filosófica. Executamos o pro-jeto sob a forma duma crítica da filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, emdois grossos volumes m octavo, estava há muito entre as mãos de um editorwestphalense, quando nos avisaram que certa alteração das circunstâncias nãoadmitia mais a publicação. Tínhamos conseguido o objetivo principal: umacompreensão de nós mesmos. Assim, de bom grado abandonamos o manuscri-to à crítica roedora dos camundongos" (225).

Não se pode negar, portanto, que existe um razoável fundamento, paraafirmar que — ao menos subjetivamente e como projeto — a s duas etapas emgeral atribuídas ao itinerário marxiano deixam, de um lado, obras como aCritica do Direito hiblico Hegeliano (1843), A Sagrada Familto (1S44), AQuestão Judaica (l 844) e os Manuscritos de 1844, com as Teses sobre Feuer-bach (1845), a Ideologia Alemã (l 845-1846), A Miséria da Filosofia (1847),O Manifesto Comunista (1848) e o Trabalho Assalariado e O Capital (1849)já inseridos, como tudo o que se segue, no outro lado, isto é, como produçãoposterior ao estabelecimento de novas diretrizes doutrinárias e prático-polí-ticas.

A coisa parece bem simples e, no entanto, vista de perto, não tem amesma nitidez. Em primeiro lugar, o afã de privilegiar a segunda etapa comoalgo absolutamente novo, passa a determinar os artifícios de atribuirá "rema-nescentes" da imaturidade primitiva tudo o que não se harmoniza com o "de-finitivo" Marx — e, para isto, se inventou inclusive, o rótulo dos escritos

225 ~MARX,Oeuireí, cit.. I, p. 274.

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"de transição", apostos, às vezes, às Teses sobre Feuerbach e à Ideologia Ale-mã. Com isto se pretende sempre descartar o que continua presente do Marxhumanista — aliás, em pura perda, já que ele aparece, com não menor evidên-cia no próprio O Capital (226).

Em segundo lugar, a afirmação marxiana do "exame de consciênciafilosófica" não determina precisamente até que ponto ela seria uma "ruptu-ra radical" com o Marx I (na verdade, nem chega a ser ruptura, a não sercomo negação pespontada de negações da negação); e, em todo caso, seriapreciso fixar, em que medida Marx, efetivatnente, se acusava de moço bobo,de súbito "amadurecido", para mandar às favas tildo o que antes admitira.Esta leitura é particularmente desmoralizada pelo fato de que à crítica doscamundongos foi entregue a Ideologia A lenia, que mo é renegada, pelo "exa-me de consciência filosófica", mas simplesmente posta â margem, porque jáexercera a função de veículo da "compreensão de nós (Marx e Engels) mes-mos" e, portanto, ganharia o privilégio de assinalar o novo modelo. E isto nosdevolve a muita coisa, inclusive de alcance jurídico, a exemplo da afirmaçãona crítica a Stirner, de que direito e lei são coisa diferentes (227), com osrodopios vertiginosos da crítica à crítica do Direito stirneriano (228), na qualé censurada a "São Sancho" uma confusão real entre a luta dos direitos con-tra os privilégios e a redução dos direitos à abstraía igualdade formal, caracte-

-*-1*rísíica do modo capitalista de produção; isto é, o nivelamento de igualdadesabstraias e desigualdades reais (229) — que enfim acaba eliminando a dialéticaefetíva de "direito contra direito" (230). tí neste contexto que emerge a acu-sação a Stirner de não entender nem o Direito engíobante dos direitos emluta, nem focalizar correíamente a "redução" legislaíiva do conflito. Esta in-sinuação do Direito engíobante, que será aparentemente destruída, maisadiante (231), acompanha, entretanto, a formulação muito claradM SagradaFamília sobre a dialética da Justiça (232), porque, na verdade, Marx eslá, atodo instante, incidindo no paralogismo de passar de um a outro díreilo, (di-reito subjetivo, reivindicado pelas classes e grupos espoliados e oprimidos, edireito objeíivo vazado em normas da classe espoliadora e opressora), intuin-do a dualidade, sem chegar nunca propriamente, a sintetizá-la na dialéfica doDireito global. Isto é, também ele recai, embora de outra forma e por outros

226-Ver nota 214.227 -MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1231,228~Ibidem, p.1227.229-Ibidem, p. 1231.230 — fbidcin, íbidein.231 -Ibidcm, p- 1L97.232 -MARX,Oeui'ffii, cit,, I I I , p.453.

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lmotivos, no que exproba a "São Sancho": a "explicação geral" lhe escapa,quando fala do Direifo, G só é apreendida, quando fala cia lei: daí a críticamuito justa das leis e costumes da classe dominante e a tendência a reduzir oDireito a isto, para opor-lhes os direitos dos dominados, a que, contudo, vairecusar, o mais das vezes, este nome — Direito, já que o Direito naquela formacontraído, se deixa absorver pela solércia do Estado capitalista e se avacalhaem leis, que, apesar de todas as suas contradições eventuais, seriam, em úl t imaanálise, apenas um aparelho de dominação. E, nada obstante, o Direito sevinga e volta, até com o próprio nome, tanto para assinalar a conexão intrín-seca entre seu ímpeto determinante de parciais incorporações ao próprioordenamento legal (233), quanto em "normas supremas" da Justiça (sicf) deenunciado preceptivo (ingrediente de Direito Natural nunca totalmenteexpangido), para redimir o Direito castrado pelos interesses e privilégios daclasse dominadora, espoliadora e opressora. Assim é que ele reluz, como omodelo para todo o direito interno e internacional, ditando a configuraçãolegítima do relacionamento entre pessoas e entre povos, à hora de fundar-se aprimeira Internacional.

Não haverá nunca, em Marx, um deslinde satisfatório — e que só pode-ria ser dialético — da oposição dos "dois direitos" ("natural" e "positivo" —estatal; de liberdade das pessoas e dos povos e do controle social que espoliae oprime essa liberdade). Isto porque ele continua pensando o Direito com ascategorias idealistas do iurisnaturalismo e positivismo, opostos ou enodoados,sem descobrir a síntese dialética numa teoria não menos dialética e global doDireito. O que ele realiza, e admiravelmente, é a exploração das antinomiasentre a visão jurídica e o projeto político-social (234) e entre os "dois direi-tos" — veja-se que antinomia é, em si, uma colocação íijiíídialetica, olvidandoa compenetração dos contrários — para dar-nos páginas candentes de notávelcrítica e denúncia do que as ideologias jurídicas representam, como uma su-blimação dos interesses em jogo, sob os hímens complacentes das palavrasocas: "Direito", "Justiça", "Igualdade"... — que, assim amesquinhadas ecorrompidas, têm, naqueles superfugios, a vantagem de acomodar o estuproe aparentar a virgindade. Mas Direito, Justiça, Igualdade — sem aspas ~ nãose esgotam na prostituição verborrágica:exigem, ao revés, a depuração, paravestir o próprio movimento libertador. E eis a razão porque, em Marx, elasregressam, às vezes exibindo o registro civil e a fé de ofício operacional naslutas sociais.

233 -MARX, Oenvres, cit., II, p. 1487-1488 (O Capita!}; MARX, Pages.... cit., II,p. 194.234 -MARX.Oemreí, cit., I I I , p. 1177;MARX, Oeuwes. cit., Í, p. 791 (ver nota 98).

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Como no campo da filosofia e da sociologia, os termos e fenómenos ju-rídicos apresentados na l? fase tendem a reaparecer, como importação clara,ou como uma espe'cie de contrabando, na 2a fase, que de nenhum modo eli-minou as irresolvidas antinomias da colocação originária: apenas aí elas pas-sam, do nível das ideias para o dos fatos (235) e geralmente se perdem nosfatos, obstando, assim, a construção da filosofia e sociologia dialéticas doDireito.

Certos marxistas agravam a situação, na medida em que consideram oMarx "ruim", da 19 fase, como (negativamente) "filosófico" e o "bom"Marx da 2a, como (positivamente) "científico" — assim traindo um precon-ceito positivista de que à "filosofia" (ou "metafísica") se segue a "ciência"(com a "filosofia" positiva desempenhando o papel de metodologia da ciên-cia autónoma, à maneira de Augusto Comte) (236).

Não insinuo, é claro, que a Filosofia deva ou possa dar as costas à ciên-cia (de que se nutre) mas, diversamente, que a ciência, dita autónoma, nãose institui como tal, senão ao preço de veicular uma "filosofia" implícita e.sonâmbula (237). Filosofia e ciência são ambas insuprimíveis e, sem apoiorecíproco, ficam ambas desconjuntadas em si mesmas, no giro de homemcego, sem cão e sem bengala.

Evidentemente não cabe aprofundar, aqui, toda essa problemática, masapenas evocá-la e focaliza-la, como background e condicionamento subterrâ-neo do movimento das ideias jurídicas marxianas, inevitavelmente situadas nantêlée. Aliás, eu sugiro que o principal fator de confusão, no campo específicoda presente análise, vem da teimosia de alguns, com o seu recorte de doisMarx perfeitamente distintos, como se um matasse o outro, para renascerex novo et ex integro, depois de algumas "hesitações" de "transição" — como inconveniente de que, prolongando-se a "hesitação" até o ápice do Marxsubsequente (n'O Capital, por exemplo), ela terá, então, de ser consideradacomo insignificante emprego de palavras, "apenas" de "alcance metafórico",a fim de não cair na irreverência (inconcebível pelos marxistas beatos) de assi-nalar "descaídas" e "retrocessos" depois da "iluminação" na estrada deDamasco.

235 - MARILENA CHAUI', Cultura e Democracia, cit., p. 85.236 - Ver, a respeito, a aguda análise das terríveis implicações ideológicas e político-so-ciais deste cientificismo e seu "discurso competente", em MARILENA CHAUI", Cultu-ra e Democracia, cir., p. 3 ss.237 - A metáfora do sonambulismo foi extraída de Ortcga (ORTEGA Y GASSET,Obras Completas, Madrid, Revista de Occíderrte, 1964, V, p. 278). Ver, neste autor, aapresentação de Comte como "filósofo da burguesia" (ob. cit., VII, p. 286 ss).

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Porém a realidade é ainda mais teimosa dos que os preconceitos e as"metáforas", nem são "apenas metáforas", porém conceitos nucleares arri-mados na análise de fenómenos, nem representam "descaída" ou "retro-cesso", mas a continuidade duma busca onde naufraga a sugestão arbitráriade "ruptura radical". Quando se procura um inteiriço Marx "lógico", apa-rece o pião dialético, em que Marx, como gente e como génio, se mostraestratosfericamente superior aos que pretendem reduzir as aventuras in-telectuais de Prometeu a qualquer esqueminha de alta (ou baixa) divulga-ção.

O fato á que, no setor jurídico, a situação se reproduz, desmentindoa proposta dum Marx que, de início, se teria deixado levar pelo engano e,depois, renunciou a todas essas "bobagens idealistas", como o Direito-(en-tão considerado como simples tradução das posições e interesses da classedominante, com, no máximo, umas contradições que confirmariam estacolocação geral) e Justiça (então vista como a glacc ideológica, posta sobreo bolo único da "plenitude hermética" do ordenamento de controle social-estaíatal pela classe dominante). Vai dai a consequência de inadmitir aimplosão daquela ordem e a explosão de novas e mais avançadas visões dóDireito e' da Justiça, ficando a Justiça arquivada como um conto-do-vigáriofilosófico e o Direito extinto, com o advento da sociedade perfeita. Cabe-ria, contudo, indagar o que são aquelas "normas organizacionais" para a"administração das coisas", na autogestão comunista prefigurada: "pode-seimaginar, no futuro, o desaparecimento do Estado, numa época ern queo governo das pessoas seja substituído pela administração das coisas e peladireção do processo de produção (238). Mas, ainda aí, extinto será o Estado.Não desaparecerá o Direito" (239). E, em Marx mesmo, com todo o vai-e-vemdos seus raciocínios, emerge a confirmação do "eterno retorno" do Direitoaparentemente aniquilado. Na Critica do Programa de Gotha, depois de falarum bocado no direito burguês, como se fosse "todo direito", o que se apre-senta, afinal, não é a morte do Direito, mas daquele mesmo "direito burguês"(í/c/) (240), para desfraldar-se a bandeira de outro princípio jurídico: "decada um, conforme as próprias aptidões; a cada um, segundo as suas necessi-dades".

Se há diferença entre a perspectiva geral da falsa colocação dos doisMarx e a sua repercussão em termos de ideias jurídicas, ela certamente está

238 — Referência às colocações de Marx. Ver MARX./bfei..., cit., II, p. 243.239 -'JOÃO MANGABEIRA, ob. cit., Ill, p. 21.240 - MARX-ENGELS, Critique dês Pfogrammes de Gotha et d'Erfurt, cit., p. 31-32.

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em que, neste ponto, Marx favorece muito o reducionismo dos discípulos,dando alimento à gana de liquidar o Direito, pela confusão com o direito daclasse dominante; mas uma leitura atenta iogo demonstra que as formulaçõesimprudentes c as ambiguidades conceituais, as extrapolações indevidas de umplano a outro, cora o direito estatal, às vezes, tomado como fonte e arquétipode qualquer Direito, não são NUNCA mantidos, coerentemente, desmentindo-se era obras diversas, dentro de ambas as fases, e até aparecendo confusamen-te em lugares diferentes da mesma obra, senão como, na Crítica ao Programade Gotha, no mesmo trecho e no seguimento do mesmo raciocínio, scolejadopelos paralogismos.

É verdade que, na primeira fase e de modo geral (mas não exclusivo)predomina um tiro de "iurisnaturalismo progressista" (241), mas ali mesmo sepreludia uma negação do Direito — na Questão Judaica, por exemplo (242) —,que ascenderá, eventualmente à generalização programática, no limiar da se-gunda etapa (243). Também não é menos certo de que o desenvolvimentodeste programa jamais se consuma inteiramente, pois na 29 fase, com reduziro Direito ao "reconhecimento oficial do faio" (244) de dominação, o queconfere a todo o período uma nota predominante (mas de novo, não exclu-siva) de positivismo jurídico, reaparecem os direitos dos dominados e o dfrei-to subsistente na própria sociedade comunista (245) — com a apresentação eEsrutos da l? Internacional (246), por exemplo, a que Marx acrescenta, a pe-dido, mas consciente e conscieníemente (247) — a referência à Justiça,escoimada de equívocos que o faziam evitar o termo, a fim de que não fos-se confundida com a sua imagem ideológica (248) e sim com o seu perfil

241 -GUASTINI, Marx: Dália Filosofia..., cil.,p.47.242 - MARX, Oeuvres, cit., Ill, p. 347 ss.243 - MARX, Oeuvres, cit., I I I , p. 1177 (Â Ideologia Alemã).244 - MARX, Oeuvres, cit., I, p. 58 (Á Miséria da Filosofia).245 — Veja-se, por exemplo, no Manifesto Comunista a prcceituaçâb jurídica escondidasob a palavra "poder de" (MARX, Oeuvres, I, p. 177) ou sem rótulo nenhum (Ibidem,p. 83), no princípio famosos, segundo o qual a sociedade burguesa é substituída, comsuas classes e conflitos de classes, por uma associação em que p livre desenvolvimento decada um é condição para o livre desenvolvimento de todos" {ver ROBERTO LYRA FI-LHO, O Que é Direito, cit., p. 126).246 - Ver MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, p. 321, onde a Justiça reaparece,espontaneamente, na pena de Marx (Lançamento da I? Internacional) e Ibidem, I, p.322,onde a referência à Justiça é solicitada, com anuência de Marx (ver nota 248).247 - MARX-ENGELS, Correspondance, cit., VII, p. 282.248 —MARX, Oeuvres, l, p. 620, II, p. 1108 onde se desmistifica a noção de Justiça"natural".

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real (249). A com penetra ç.To das fases é tão fntima que Marx, em carta a Lin-coln (l 864) celebra (corre ta mente) como avanço histórico, a seu tempo (250)a declaração burguesa dos Direitos do Homem, que antes e na Questão Ju-daica, dernoíira, na perspectiva (também correia) do socialismo (J844), ape-nas aí incorrendo no equívoco, depois corrigido, de, com tal (justa) crítica,deixar a suposição de que a superação subsequente, cancelaria o valor histó-rico, de declaração burguesa, que foi vanguarda noutro tempo e, assim, ummomento do progresso, e não um puro engodo de capitalistas safados (251).

O texto corrosivo dVJ Ideologia Alemã'(252), que, entretanto, lá mes-mo, deka espaço a oscilação já assinaladas (253), parece à primeira vista,tranchei- lê débat marxológico, aniquilando o Direito (254): "quanto ao Di-reito, acentuamos em oposição a muitos, a antinomia do comunismo e do di-reito, tanto público e privado, quanto sob a fornia, de máxima generalidade,dos direitos humanos".

Todavia, como vinha sublinhando, creio que isto apenas representa umafalsa generalização, a que Marx mesmo, nem segue corretamente, nem de-fende na dita 2a fase, em todas as ocasiões. Os exemplos em contrário já fo-ram citados, para enfatizar a compenetra cão dos apelos posteriores à Justiçae ao Direito e as afirmações anteriores da visão liberatória do Direito (dêm-lheou não este nome os textos marxianos, que ás vezes dão e às vezes sonegam).Um encontro expressivo ocorre, entre outros, quando cotejamos a concepçãojuvenil do Direito, como "existência positiva da liberdade" (255) e o modelojurídico estabelecido no Manifesto Comunista (256). Uma e outra abordagensse complementam e enlaçam, para reeditar o que, em suma, é um eco donemínem laedere de Justiniano (257), com a ressalva (coneta) de que o ius

249 -M.RUBEL./fi {,iAKX,ftiges..., cit.. I, p. 28 onde fica bem assinalada a razão por-que Maix evitava empregar a palavra Justiça (real). Marx temia a confusão com a "mito-logia moderna", que inflacíonava, em verbalismo oco, "as frases vazias" sobre a Justiça:MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., III, p. 281.250 - MARX-ENGELS, Correspondance, cit., VII, p. 327.251 -Ver Observações Preliminares. Tambe*m:ERNSTBLOCH,^ra?-//ío/-j:, cit., onde seprocura conciliar a crítica juvenil e marciana e o sentido geral e maduro da obra, que é,em substancia, um não declarado projeto de Declaração do Direito do Homem Socialista.252 -MARX, Oeuvres, cit., Ill, p. 1177.253 — Ver notas 227-232 e texto correspondente,254 — Ver as ressalvas da nota 234 e texto correspondente.255-Ver no ta 188.256 —Ver notas 245 c texto correspondente.257 —Instituías, I, l, 3. Aliás, tal como o "de cada um segundo as suas aptidões;a cadaum, conforme as próprias necessidades" — é a repristínaçao revolucionária do comunis-mo dos primeiros cristãos (A to s cios Apóstolos, H, 45 e IV, 34).

citiqus tribuere & ambíguo (258) e (se o deixarmos ao sabor do modo de pro-dução, ao invés de nele investir o clamor dos espoliados e oprimidos) e, acres-cente-se, a verdadeira fitstitia não é exequenda, senão em termos do processohistórico de libertação (259).

A verdade é que Marx viu nascer a própria desconfiança nas palavrasDireito e Justiça, por uma série de circunstâncias, que fui analisando, desde asobservações preliminares deste estudo, e que se conjugam, para criar, do umlado, as oscilações (perspécticas, semânticas e semiológicas, de posicionamen-to e sentido) e, de outro, a visão perturbada dos fenómenos, que os termosdesignam, por força mesmo da fluidez em que ficaram imersas aquelas pala-vras. Dai* a postura sincròníca-diacrõnica adotada e, a meu ver, essencial paraa compreensão exata das complexas e ambíguas relações entre Marx e o Direi-to: numa parte, iluminando cada enfoque fragmentário de Marx corn o qua-dro circunstancial condicionante; noutra parte, o fio de Ariadne, que nos con-duza, por esse labirinto, com o vivo senso de uma direção do itineráriomarxiano, que mo é de cancelamento recíproco dos enfoques, por mais queele assim o qualifique, ern termos que vêm e vão ambiguamente — e, sim, aprocura, em que a totalidade jurídica se apresenta, mas não se unifica, nunca,em síntese díalétíca efetiva. Isto, pela própria interferência dum certo rodopiodesnorteado, entre os fatos opostos e os conceitos desajustados. A análise deMarx é, às vezes, brilhante, pertinente e exata ~ seja no plano dos fenóme-nos, seja no dos conceitos, mas a omissão duma noção (260) totalizada e mo-vente do Direito em seu vir-a-ser (261) deixa cair os diamantes lapidados pelacarência do fio que com eles arme o colar.

Aqui, portanto, se requer uma abordagem semelhante à que AlfredWeber adoíou (mas talvez não tenha conseguido levar a termo com sucesso:isto pouco importa) na sua apresentação da Sociologia (262). Lembra-nos eleque "nomes são eco e fumaça" e, para introduzir-se alguém ao conceito, exi-ge-se o mergulho na questão da origem dos sentidos multívocos, como jogode reflexos, entre as coisas, a compreensão cognitiva, os acidentes referen-ciais de influência recíproca, a marcha das buscas e a direção do Todo. É isto

258 ~ A propósito JOÃO MANGABEIRA.ob., cit., III, p. 20.259-ROBERTO LYRA FILHO, O Qi/e é Otrefro, cit., p. 114-124,126-127.260 — Naò "ideia" no sentido idealista, mas "ideia do Direito " entranhada no processo,como viu Engels (MARX-ENGELS, Correspondance, cit., VI, p. 375) sem, no entanto,reduzir tal "ideia" apenas ao processo como ele faz {CHAUT, Cultura e. Democracia, cit.,p. 85).261 - ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 14.262 - ALFRED WEBER, Elnfillirung in dle Sozíohgie, Miinchen, Piper, 1955, p. 9.

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lque, em linguagem mais moderna, denomino o complexo sincrònico-diacrô-nico, ligando as etapas ao itinerário pelas circunstâncias, em visão vertical ehorizontal polarizadas.

Enumero, portanto, em resumo, as principais condições tanto conduto-ras como obstrutivas do itinerário marxiano, às voltas com o Direito: as de-cepções juvenis com o ensino e teoria jurídicos, meio legalistas, meio histori-cistas (no mau sentido da palavra) (263); o desencontro com a síntese hege-liana, enquanto esta põe no vértice do Estado (como "ideia" —sentido idea-lista) algo como o acabamento do processo jurígeno (264), assim desvitali-zando o impulso libertário (265); o desgosto ante o "socialismo" palavroso emelífiuo que desnaturou as palavras Direito, Justiça, Moral etc.;a denúncia(exata) da inanidade deste "socialismo", que leva ao reformismo de fachada,resguardando a estrutura iníqua,.ao invés de transformá-la, da base ao topo;a rejeição dum primitivo entusiasmo pelo Direito Natural racionalista e umarevolta implacável perante o "direito positivo" das classes dominantes; a pro-cura dum modelo comunista em que se extinguissem as visões idealistas daJustiça e as estruturas jurídicas de puro controle social e estatal — o que aca-ba confundindo a morte da Justiça ideológica e do Direito burguês comodesaparecimento da Justiça e do Direito (cujo-inevitável retorno, em novasvisões da Justiça e estruturas do Direito se faz, ou com omissão dos nomes— Justiça e Direito — ou admissão meio encabulada de ambos, para vestir oclamor jurídico dos espoliados e oprimidos e desaIterar-lhes a sede de Justi-ça); o dualismo de fato (direitos opostos de dominantes e dominados) e umafalsa alternativa ao pensá-los nos modelos categoriais antigos (como se nãohouvesse outro caminho, senão o iurisnaturalismo que desliga a "ideia" dosfatos e positivismo que dissolve nos fatos a "ideia") (265 A).

Tudo isto impede que Marx nos ofereça a teoria dialética do Direito.Nada obstante, ele era demasiadamente lúcido, sutil e honesto, para cruzar

263 - A piopôsito, MARX, Oeuvres, cit., III, p. 221 ss.264 -MARX.O-iíícc do Direito Pfi blico Hegeliano, (MARX, Oeuvres. cit., III, p. 863 ss).265 — Como já foi dito, é preciso matizar a suposto "estatísmo" compacto de Hegel;mas em geral, é CERTO que a ênfase estatal é temerária c pode ocasionar reduções paraalém das suas intenções e ressalvas — isto aconteceu até com Marx, na medida em que, caou lá, deixa cair um traço "hegeliano" de síntese estatal, a caminho da sociedade semEstado e, assim, se presta à redução não querida (ver ROBERTO LYRA FILHO,Huma-nismo Dialéíico. IV) no absolutismo da via estatal para o socialismo, que se agrava emLênin e acaba, sem querer também, parindo o monstruoso "socialismo autoritário". Jáassinalei, com Bloch, que isto é urna conlradiciio in adiecto,265 A — A propósito, a exata compreensão de M ar i] e na Cliauí, sobre o alcance da minhatentativa de superar este impasse: CHAUI", Roberto Lyra F3ho ou a Dignidade Políticado Direito, cit., p. 21 ss.

ileso o tumulto em que o pôs um desconjuntamento de noções e, por istomesmo, nos deixa "pistas" geniais para ensaiarmos a construção global quenão pôde realizar, no elenco circunstancial descrito. Cabe, aqui, recordar a ve-lha observação, sempre exata, que, salvo engano, foi Bínswanger o primeiro afazer: um anão, trepado nas costas dum gigante, vê mais do que este e chegamais alto do que a estatura impressionante do suporte egrégio.

Disto resulta a proposta de estudar em Marx e em todas as fases, onde(já o demonstrei) elas se apresentam, simultaneamente, a afirmação, a negaçãoe a negação da negação do Direito. Aí estão os fios de ouro para o tecido cujomaterial ele próprio nos ministra, com análises, sugestões e estímulos geniais.Ai* estão, repito, as melhores "pistas" para a tecelagem da teoria dialética doDireito — nova, com o senso da totalidade e movimento deste aspecto do pro-cesso histórico, tal como se apresenta nos fenómenos onde o "ser do Direito"se desenrola, como "ser-em-devenir".

Não há espaço, aqui, para acompanhar um pormenor, dado por dado,fragmento por fragmento, o novelo inteiro, que, em quatro décadas de pes-quisa e reflexão, me fez ver (ou me persuadiu, diante da anuência honrosa detantos ilustres companheiros) que se pode esboçar a teoria dialética do Di-reito.

Neste ensaio e, para fecho'da demonstração, seleciono dois pontos cul-minantes, como amostra da maneira por que é viável desentranhar de Marx,não a doutrina jurídica, nele inexistente, mas o conjunto das ideias seminais,cujo desenvolvimento, em diálogo com o autor d'0 Capita!, certamente pos-sibilita retomar o seu itinerário, para dispô-las no padrão da nova elaboraçãoteórica.

Esta operação, aqui apenas ilustrada com dois de seus mome.Htos, fica,a meu ver, mais próxima de Marx, na fidelidade às suas candentes preocupa-ções jurídicas, do que o realejo habitual dos marxismos, que remoem notas ecompassos, destacados da melodia, como se estes trechos fossem a canção in-teira ~- para a qual Marx nos deu apenas o tema a desenvolver. Tenho certezade que mais agradaria ao grande iconoclasta um esforço, assim ao mesmotempo crítico e ré construtivo, do que as falsas "ortodoxias" paradoxais dosque supostamente cultuam o mencionado "núcleo de verdade invariável quenão' pode caducar" em esquisitos produtos, subordinados "às mais recentesdecisões do Partido e do Governo" pseudo-socialístas (266). Não foi Marxmesmo quem renegou esses discípulos" (267) e, ao contrário, convidava os

266 — A tal conformidade ao Santo Ofício dos países "socialistas" d documentado in-suspeitamente pelo marxista Lucien Sève, dirigente do Partido Comunista Francês(SÊVÊ, ob. cit., p. 21).267 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I l l , p. 283.

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investigadores à crítica honesta? (268) Quanto à ira dos bitolados e precon-ceiíuosos, que se escandalizem com a descontração do diálogo com o autorque mais estimo na independência, do que eles, na pseudoortodoxia, de tan-tas distorções mal encobertas, posso confortar-me (ainda segundo Marx),pela aplicação do conselho de Dante: segui U tuo corso e lascia dir lê gen-te. .. (268 A).

WA Sagrada Família, Marx deixa entrever algo da dialética da Justiça,perante as desfasagens do "direito positivo" da classe dominante: é uma das"pistas", escolhidas para reexame aqui.

Na Crítica do Programa de Gotha, um emaranhado de paralogismos tor-na mais difícil ver onde fica situado o fio da meada; ele, entretanto, se desta-ca, à consideração mais profunda: e' a outra "pista" escolhida.

Emergirá de ambas uma breve ilustração do trabalho feito no demoradoconvívio com o pensamento jurídico do notável "mouro" (269). E todo elevisa a mostrar como está em Marx a verdadeira e nova Declaração dos Direitosdo Homem, a que não dá este nome, embora lhe surgira a substância, e quepassou a constituir a pedra de toque da práxis vanguardeira e a inspiraçá"oteórica de toda e qualquer formação atual e válida, no campo da doutrinadialética do Direito.

Marx está adiante da 2a Declaração dos Direitos do Homem, lançadaao fim da 2a guerra mundial e que já precisa ser revista, aperfeiçoada e levadaà nova frente social (270), assim como ela mesma já representou um progres-so, em relação à l? e antiga Declaração, do momento de ascensão da burgue-sia, que Marx criticou em retrospecto, na juventude, e, apesar de tudo, apre-

268 - MARX-ENGELS, ibidem, U, p. 10.268 A — ibidem; "segue teu rumo e deixa que essa gente, diga o que lhe apraz".269 -Assim - "mouro" - o chamava Engels, o "caro Fred" (e.g., MARX-ENGELS,Correspondance, cit., IV, p. 265; VII, p. 124).270 - ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 108 ss. Jacques Maritain, abreespaço para algo assim, quando no seu estiío e atitutde ideologicamente conservadores,afirma que uma Declaração dos Direitos Humanos "nunca será exaustiva e definitiva",devendo, ao contrário, ser renovada constantemente (DIVERSOS,-4i/ro/- dela NouvelleDédaractíon dês Droits de VHomnee, UNESCO - Éditions du Sagittaire, Paris, 1949,p. 64). Apenas isto não é, como pensava Maritain, a explicítação dum Direito Naturalperene, e tampouco, tal como entendia Cuvillier, uma reedição do "Direito Natural deConteúdo Variável" de Stammler (CUVILLIER, Sociologie et Problèmes Actueis, Paris,Vrin, 1961, p. 56), As mutações stammlerianas servem à hegemonia estatal, e se contémno esquema de categorias apriorísticas à Ia Kant. O que a Nova Escola lurídica Brasileiraaponta, nas transmutações, é outra coisa: é o vetor, extraído da práxis libertadora, noprocesso histórico (ROBERTO LYRA FILHO, O que é Direito, cit,, loc. cit.).

ciou, na maturidade, com mais senso da situação histórica, na citada carta aLincoln (271).

A nova Declaração de Marx está na base, na inspiração de outros tantosavanços, como por exemplo, o que se preludia nas declarações de Argel (272)e noutras manifestações anticolonialistas e anti-imperialistas.

Marx é o inspirador de toda Declaração de Direitos do Homem Socialis-ta (273) — que continuarão sendo a inspiração e fanal de qualquer abordagemdialética do Direito.

Os elementos necessários à elaboração desta última estão, assim, presen-tes na obra marxiana, ainda que, às vezes, se tumultem, no emaranhado con-traditório e ambíguo — propiciando a desarticulação dos elementos e a ofertade teorias "marxistas" (não marxianas) do Direito, nas quais este ou aqueleenfoque é apresentado como total e posto sob o selo de Marx, em citações defragmentos. Por isto mesmo, há tantos marxianos jurídicos quantas possibili-dades de padronização do Direito, segundo um dos modelos tradicionais esubjacentes (em todas as fases marxianas) e que Marx nunca chega a superarinteiramente: o positivismo (voltado com exclusividade para as normas daclasse dominante, como se estas encerrassem o Direito inteiro, quando, na ver-dade o Direito não é as normas, que pretendem veiculá-lo, nem forma umconjunto único de normas, devido à oposição conflitual derivada da posiçãoantitética de classes espoliadas e grupos oprimidos) ou o iurisnaturalismo (li-dando com dois direitos, o que é e o que devia ser, idealmente concebido, semunificá-los no feixe dialético do processo, nem poder explicar-nos por que se-riam ambos jurídicos). É a alternativa luta do "fato" e da "ideia" isola-dos (274).

Nada obstante, a proposta essencial deste estudo é precisamente assina-lar que, entre afirmação, negação e negação da negação do Direito, presentesem todas as fases de sua obra, Marx deixa as "pistas" para que se realize a ta-refa por ele não executada: construir a teoria dialética do Direito.

Não podendo reexaminar aqui toda a cadeia de indícios, prometi deter-me em duas passagens fundamentais — uma do período dito juvenil e constan-

271 — Ver notas 250 e 251 e texto correspondente.272 - Ver a Declaração Universal dos Povos, em apêndice a J. B. DE AZEVEDO MAR-QUES, Democracia, Violência e Direitos Humanos, São Paulo, Cortez Editora, 1982,p. 98 ss.273 - E o que é, senão isto, o elenco de princípios compendiados nos Estatutos da l?Internacional, que Marxredigiu? (MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, p. 322 ss.).274 — Ver a observação já citada de Marilena Chauí (CHAUI, Cuitwa e Democracia,cit., p. 85). ROBERTO LYRA FILHO, O que é Direito, cit., p. 115 ss.

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te d'A Sagrada Família; outra da etapa dita madura e inserida na Critica doPrograma de Gotha.

E o que passo a fazer.

Considero da maior importância o texto á'A Sacada Família, ondeMarx intui um aspecto básico da dialética da Justiça, perante as desfasagensdo "direito positivo" (consuetudinário ou legal). Aqui, não se trata apenas deassinalar contradições na armação durn ordenamento jurídico, senão mais am-plamente e ao invés de registrar as precárias "influências de retorno" duma"superestrutura" sobre a^.base, apreender o impulso de formação de normas,na origem mesma e nas consequências abrangedoras deste movimento.

O que ali Marx descreve, com prodigiosa e antecipadora lucidez, riosapresenta, portanto, não só a forma "fenomenal imediata das relações",porém, a "coerência interna" do seu curso dialético (275), O "ser do Direi-to", então, surge, numa de suas facetas, infelizmente não totalizada — maspouco importa: o que é intuído já estabelece um caminho a percorrer.

Note-se que o trecho focalizado- aparece n'A 'Sagrada Família e numapolemica feroz com Proudhon; todavia, aqui temos, de novo, urna ilustra-ção expressiva da negação e negação da negação sucessivas.

Marx assinala unia dicotomia proudhoniana, a que dá os rótulos ,de-Proudhon I e Proudhon II; o Proudhon. segundo o qual a lei seria uma deter"minação do justo e o Prouhon, que se ergue contra a ideia de que o Direito écompendiado na lei (276) — isto é, um Proudhon "crítico" e um Proudhon"real". Ambos são estraçalhados pela verrina marxiana; contudo, mesmo den-tro desse movimento de humor destrutivo, eis.que'se vai desentranhar, dosequívocos denunciados, uma coisa bem certa, que Marx exprime deste jeito:"assim como o Proudhon crítico, o Proudhon I, não tem a menor ideia doque o Proudhon real, o Proudhon II, queria demonstrar com seu raciocíniohistórico, ele naturalmente não se preocupa com o verdadeiro conteúdo deseu raciocínio, que consiste em demonstrar a transformação das concepçõesjurídicas e a realização ininterrupta da Justiça, mediante a negação do direitopositivo histórico — 'a sociedade foi salva pela negação de seus princípios...e a violação dos direitos mais sagrados'. Assim o Proudhon verdadeirocomprova que a negação do direito romano acarretou'a ampliação do Direito,na perspectiva cristã; a negação do direito de conquista, no direito das comu-nas; e a negação de todo o direito feudal — isto é, a revolução francesa —, naatual e mais larga situação do Direito" (277).

275 - MARX-ENGELS, Correspondance, cit., VIU, p. 397.276 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 450.277 - MARX, Oeuvres. cit, III, p. 453.

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Deixemos de parte o affaire Píòudhon, em relação ao qual apenaspondero que Marx, enquanto o nega, vai tirando dele os seus materiais deconstrução, isto é, não o suprime; antes, incorpora, transmuda e reenquadraos elementos positivos da reflexão proudhoniana, e deste modo realiza maisuma negação da negação.

O que importa examinar de perto é, entretanto, a noção marxiana,captada na confluência de Proudhon í e Proudhon II, que Proudhon mesmonem teria percebido e que, nada obstante, ali está, registrada e comprovadapor ele mesmo. Noto, en passant, que a operação se aplica, hoje, ao próprioMarx, embora, como disse, à maneira de anão, trepado às costa dum gigante— o que, no caso de Marx e Proudhon se apresenta, ao reverso, como giganteencarapiíado nos ombros do anão, cuja modesta estatura, apesar de tudo, nãodeixa de elevar um pouquinho o genial colosso de Trier. A nós é que cabe aresponsabilidade temível do hic Rhodus, hic salta, perante o Marx colos-sal (278).

O que se verifica, n'A Sagrada Família, é um passo notável, no sentidode considerar o Direito, como fenómeno peculiar da diaíética da Justiça, e in-serir o direito dito positivo (aqui equiparado às normas costumeiras e legais daclasse e grupos dominantes) como parte desta mais ampla visualização. Assim,tanto a Justiça é colocada, não no âmbito das ideias "puras" mas no panora-ma concreto da história e das lutas sociais, como ela simultaneamente se arti-cula ao processo jurígeno e vai cristalizar-se ern normas costumeiras ou legaisda classe e grupos regentes. Nisto, pressionada pelo clamor dos dominados.Aí, então, surge como impulso nomogenético, rompendo os ordenamentos as-sentados, para substituí-los por outros, de mais largo conteúdo — e represen-ta, portanto, um progressismo jurídico, em termos amplos, onde o modelo"racional" (278 A) já baixa à terra e seus conflitos reais.

278 - A propósito, PAULO RÒNAI,Não Perca o seu Latim, Rio, Nova Fronteira, 1980,p. 79. Divertiu-me um bocado a afirmação durn leitor marxista, que assinalou, em mini,o "traço evidente da mania poeirenta de jurista", com a multiplicação de frases e expres-sões latinas. A ignorância sempre acha um jeito de votar desdém compensa tório ao quenão lhe é acessível e assim despreza os aspectos da cultura que lhe falta. De minha parte,fundamento hcm diversamente o confessado amor às frases latinas — que já defini numescrito honrosamente cilado pelo amigo Rónai (ob. cit., p. 11). Mas ao marxista, respon-do "com todo o bom humor, que, se empregar o meu latinzmho é sinal de ritualismo "ju-ndico" e pompa conservaníista, fico, nada obstante, em ótirna companhia — a do prórprio Karl Marx, que nisto revela muito mais assiduidade do que eu. Veja-se a um estudodePrawer.já citado, Marx and World J-.iteratwe.27 8 A - MARX, Oeuvres, cit., III, p.M-77, 218.

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lNão se poderá dizer que, no escrito mencionado, esííTo muito precisa-

mente delineadas as categorias mediadoras do Intercâmbio entre o "ideal" dojusto, .como projeção das reivindicações das classes e grupos ascendentes, ea situação do processo. Nestas, é que aparecem os índices das vicissitudes es-truturais, o básico modo de produção, suas divisões classísticas e a Weciisel-wirktmg, a ação de [rocas recíprocas entre a formação "superestrulurai"(costumes e leis da classe e grupos dominantes) e o impulso "infra-estrutural"que modela aquele mesmo "ideal" de Jusíiça, conforme a situação das classese grupos espoliados, oprimidos, em sua força libertadora. Todo este elenco éque teria o condão de situar, exatamente, aquele surto abrangedor da Justiça,condicionada a operação e acidentes, no movimento que Marx descreve como"alargamento" constante do Direito.

O adminfculo realista, porém, virá, em consequência da preocupaçãosociológica, na 2? fase marxiana, dando seguimento (e não desmentido) à pas-sagem da Justiça e do Direito, das concepções supostarnente nascidas na cabe-ça dos homens, para o berço da ação social. Assim se mostra que a "Íde*ia doDireito" deve ser tirada do crânio de Jupíter-legislador ou filósofo, a fim deressaltar que mantém um intercâmbio permanente com as condições reais daestrutura social (279).

Dita passagem da "ideia" ao "fato", entretanto, arrisca-se a dissolvernos fatos a "ideia", em lugar de elucidar-se e reger-se por eles. A entronizaçãodos fatos (aliás, indiscutíveis e muito bem analisados in concreto, por Marx)induz à concepção falsa de que desmentem toda e qualquer "ideia". Destasorte, a Justiça e o Direito completam o seu caminho, do "céu" dos conceitosà "terra" dos fenómenos, com o prejuízo de nestas perderem a razão dasideias sobre os fatos (não apenas a razão "pura", mas a razão histórica tam-bém) (280). Os fatos brutos são "irracionais" e, reduzindo totalmente a eles a"ideia", não só se rejeita o idealismo, mas também se desfibra o pensamento.Esta redução, ademais, nos priva da concepção do Direito em seu vir-a-ser —no entanto, necessária, para qualificar a legitimidade jurídica das reformas(troca parcial) e revolução (a remodelação básica e completa da estrutura); emsuma perdem-se o Direito de resistência (às normas espoliativas e opressivas),o padrão aferidor do grau de legitimidade relativa de cada sistema jurídiconormativo estatal (suas "contradições", que entremesclam aspectos positivo-progressistas e sua função, como direito da classe dominante, temperando o

279 - MAB.X, Cta/wej, cit., Il l , p. 1257 (A Ideologia Alefítf).280 - MARX, Oeavres, cit., I l l , p. 1177 (/i Ideologia Alemã).

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propósito de resguardar — pelo cont role social — a estrutura implantada) (281)e, além do mais, o fanal que orienta o progresso jurídico, em consonânciacom o progresso geral do movimento histórico, determinando a d i ré cão dospassos, a cada momento. A Justiça e o Direito retiram-se, então, do terraçode cobertura ideológica, descem auspiciosamente as escadas, vendo que, afi-nal de contas, o apartamento da "ideia" não voga no ar e, sim, resulta assen-tado em todo o edifício social, mas, desdialetizando-se, ficam presos aoporão, onde se confundem com os alicerces e, desta maneira, se inutilizam,para a função de mirante da construção mais avançada, em que hão de morar,futuramente, se não quiserem perecer, agarrados às paredes que caem, noterremoto social. Ora, Marx mesmo vai sentir e proclamar isto, ao reintrodu-zir, como demonstrei, o Direito e a Justiça, como elementos positivos e vesti-menta dos princípios e ação da classe revolucionária. Mas, no entretempo, fi-ca uma insinuação destrutiva, que estabelece a "antinomia" — comunismo,Direito, Justiça.

Os eminentes marxistas Alan Hunt e Maureen Caín, na introdução doseu estudo sobre Marx, Eiigels e o Direito mostram as terríveis consequênciasda falta duma teoria jurídica dialéíica e portanto, global e dinâmica ~ "não seconstrói o objeto teórico-Direito. Em palavras mais corriqueiras, nenhumadefinição teórica do Direito é intentada; nenhuma definição, construindo umconceito de Direito, em conexão com um campo de conceitos entrosados, quese forme, em relação dinamicamente recíproca, entre si e com o mundo mate-rial que representam. Embora nenhuma concepção desse tipo concernente aoDireito se encontre nas obras de Marx e Engels, eles desenvolvem, sim, umterreno conceituai em que um requintado conceito de Direito lograria inserir-se" (282). Não se poderia dizer melhor, e a carência da teoria dialética do Di-reito, bem como o esboço do seu suporte é a preocupação e realização daNova Escola Jurídica Brasileira (pelo que valha a contribuição, dei-me a tarefade suprir a lacuna). Mas eis agora a consequência, para o marxismo, desta

281 —Marx vai enxergar isto, na prática, impossibilitado contudo de fazer ascender à as-similação teórica o seu próprio achado dialética; por exemplo -quando ele saúda a pas-sagem da redução da jornada de trabalho, como uma "condição fundamental da liberta-ção" (isto é, uma conquista" parcial, mas importantíssima, do reino da liberdade sobre oreino da necessidade, onde surge, cm que se funda e do qual se livra gradualmente peloflorescimento da "humana potência" — O Capital:Marx, Oeitvres, cit., II, p. 148S). Ora,tal barrotada se dirige a conquista, por pressão operária, já parcialmente incorporada aodireito estatal, capitalista e burguês. (MARX, Pages..., cit., II, p. 194). E Marx ironiza aatitude conservadora, mostrando que a "utopia comunista" de Owen assim passará àlegalidade, controlada pelos seus próprios detralores.282 - MAUREEN CAÍN & ALAN HUNT, Marx and Engcl on Lavt, cit., p. XIV.

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lomissão: "lógica da posição seria, na verdade, conservar-se parado, não fazernada e esperar a revolução", isto porque urna teoria 'niilista' do-Díreito e doEstado — o primeiro tido como engodo e o segundo, como gerador das nor-"mas, com que a ideologia jurídica, recobre a materialidade da domina ção-nãbdeixam espaço para delimitar com precisão a atividad&jwidico-politica, nosentido da superação de todas as limitações presentes (282 A).

Ora, se Marx (em certas feições e fórmulas) propiciou este desdém, aocabo anodinarnente anarquista, ele não era (nem queria ser) um anarquista e,como já apontei, valorizava a "evolução revolucionária", até os passos refor-mistas (com a ressalva de não ficarmos parados nestas etapas e, sim, uíilizá-laspara o avanço). Marx propõe e expõe, portanto, a intervenção no processo,

.e não apenas um processo em si mesmo, como rolo fatal de "aparelhos", mas,ao contrário, a apreensão do processo, a auscultação de sua "maturidade" e aredução dos sonhos triunfalistas à medida das circunstâncias emergentes (283),sem o que as classes e grupos desprotegidos ficariam presos à maquinaria, na"fé" paralítica de que, um dia, ela caísse de podre. Canaã não emerge comoum fiat ex machina, já que o deus imanente-transcendente foi enterrado nocemitério das mitologias. Pior, entretanto, é ver algo como deus esí (e não ex)machina, um idealismo dos fatos, no esquema arbitrário que supostamente osreflete, sem qualquer utilidade para o homem ativo e atiyista. Um joguete dosfatos mal e mal esperneia; nada cria; e contradiz o profundo sentido humanoda afirmação de que em nós mesmos está o poder-dever de coletivamente eatravés da participação de e em dasses e grupos montantes e progressistas,criara História, em lugar de suportá-la, como súcubo: "os homens fazem a suaprópria história, não de modo arbitrário e em circunstâncias por eles livremen-te eleitas; fazem-na em circunstâncias com que se defrontam, que lhes foramlegados pelo passado — em resumo, circunstancias dadas" (284). Es^s,, po-rém, tampouco os sujeitam, inapelavelmente, senão que cumpre assumir e re-modelar o quadro circunstancial: "a história é apenas a sucessão de gerações,uma após outra, cada uma explorando os materiais, os capitais, as forcas pro-dutivas legadas por todas as gerações precedentes; em consequência, cadauma, de um lado, continua a atividade tradicional em circunstâncias inteira-mente novas e, de outro, altera as condições antigas, mediante uma atividadetotalmente diversa" (285). Aí estamos, de novo, com a negação e a negaçãoda negação.

282A~/i;Wem, p. XV.283 - MARX, Oeuvres. cit., III, p. 1072 (A Ideóloga Alemã).284-MARX, Pages..., cit., I, p. 119 (MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., l,p.203): (O Dezoito Brumário de Lufs Bonaparre).285 -Maix, Oeuvres, cit., III, p.1069.

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De qualquer sorte, a ideia "pura" é impotente e enganadora;o fato bru-to é cego e não define o rumo do processo e o sentido da nossa intervenção.Não à toa Marx corrigiu a conclusão juvenil de que "a negação da negação éabsíração oca" (286), para readmiti-la, como assinalei, no âmago do processohistórico-social, precisamente quando, à luz desses princípios analisa "a nega-ção da negação" do sistema capitalista (287). Esta visão é teleológica e, semuma filosofia da história, esta mesma história não pode ser descrita sequer,pojque sua polarização não é um dado a inferir, mecanicamente, nem umateoria a "impor" seu padrão aos fatos (e "tanto pior para eles, se a desmen-tem"...), mas o intercâmbio dialético entre "fato" e "ideia", entre realidadeefetíva (Wirklichkeif) e razão histórica. O encontro do racional e real (na for-•mula hegeliana) presta-se a muitos equívocos (ele sabia e o denunciou) (287 A),porque geralmente é visto, quer com olhos empiristas, quer com fumaças deracionalismo ontológico (á Leibniz) ou gnosiológico (à Kant). Por outras pala-vras: com olhos mo dialéticos.

O fragmento, assinalado n VI Sagrada Família, nos dá, certamente, umapista, enquanto realiza a conjunção da teoria e prática da Justiça, entrosadas àemergência, estabelecimento e colapso do chamado "direito positivo" (daclasse dominante). Aí fica, porém, uma limitação implícita e uma dualidade,traindo as categorias tradicionais, com que Marx enfrenta o processo jurídico(iurisnaturalismo: predominância do justo; positivismo: visão da ordem do-minante normativa). Já é muito, contudo, que, n'A Sagrada Família, Marxpossa combinar as duas abordagens, mostrando que essa ordem normativadominante e a realização do justo se integram, histórica e progressivamente,na dialética da "liberdade positivada" (o que mostra a solidariedade das partesda primeira fase, integrando este avanço, corno noção alargada e mais precisadaquela liberdade que ele pensava, íurísnaturaiisticamente, nos famosos arti-gos da Gazeta Renana, sobre as leis de censura e de imprensa: "a lei de im-prensa é a lei verdadeira, porque é a existência positiva da liberdade... Ale ide censura é injusta... não é uma lei verdadeira, porém um provimento de po-lícia e má polícia, o que é pior...") (288). Agora, nVI Sagrada Família, já'ternos aq_uela positivação (critério supralegal aferidor da juridicidade das leis),

286 -MARX, Pages.... cit.,l,p.l01 (Manuscritos de 1844).287 -MARX, Oeuvres, cit., I, p. 1239-1240 (O Capital).287A-HEGEL, Príncipes de Ia Philosopliie du Droit (versão Dírathé), Paris, Vrin,1975, p. 55-56.288 -MARX.Oeuvrej, cit., III, p. 174,177.

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não apenas ern dualismo aníínômico da liberdade (racionalmente concebida,em termos de "ideia") e das leis más (facticamente apreciadas, como realida-de do injusto) e, sim, dialet içam ente articulando a Justiça, que se realiza pelanegação do "direito positivo histórico" defasado e este mesmo direito, que serecompõe, em normações maís avançadas, como expressão da Justiça, reali-zando-se progressivamente. E tudo isto, o que é ainda mais importante, ficaligado ao movimento social e histórico, não à marcha pura e ilusória dos con-ceitos. O processo, então, foi transposto, da Justiça que os homens pensam(e que ruTo se apercebe dos seus condicionamentos sociais) para a Justiça queos homens conquistam (nas lutas só cio-políticas), tendendo a enuclear-se (co-mo depois Marx precisa, mais atentamente) num aspecto só cio-político daluta de classes e grupos, dentro de certo modo de produção.

Já mostrei que este avanço permanece no limiar de um grande risco,na medida em que pode chegar (e, eni Marx: acidentalmente chega) a perderem trânsito as ide'ias mesmas (nada obstante, insuprimfveis e que, por istovoltarão, nele e até mesmo na dita 2£ fase). Todavia, ele é traído, nisto,por um intuito poderoso e certo: desideologizar as noções de Justiça e Di-reito, isto é, vê-las, no contexto da práxis humana e na estruturação, basica-mente económica, das sociedades. O exagero, em que a desídeologização aca-ba em "desideação", de nenhum modo aniquila, porém, a fecundidade domergulho no processo: tão somente denuncia um acidente no trabalho inte-L^,lectuaí.

O que permanece faltaníe, na dialética esboçada, é outra ligação, maisampla, outro feixe de relações. Porque nVI Sagrada Família, Marx indica (ejá é muito) a ponte social e histórica e o condicionamento recíproco do Direi-to Justiça, isto é, liberdade positivada, e do Direito como norma social daclasse regente, isto é, a positivação sem a qual a liberdade é um conceito oco ea Justiça uma abstração alienada. Marx, ademais, chega a ver que, no terrenohistõrico-social,' está o campo dialético, impedindo que as normas se desvin-culem da Justiça e o Direito se torne um pseudónimo da ordem estagnada, as-sim como impede que a Justiça se desvincule das normas, transformando-senum fantasma "metafísico" (a ser cooptado pela ordem instituída, para legi-timar o seu próprio padrão).

Todavia, ali, Marx não capta, nem o impulso da liberdade vanguardeira,como libertação reivindicada e conduzida pelas classes e grupos dominados emontantes (isto é, não vê o pluralismo jurídico geral e criador de séries com-petitivas de normas — as normas em conflito, da classe e grupos dominantes edas classes e grupos dominados — por outras palavras, não chega a pensar oque o eminente colega e amigo Boaventura de Sousa Santos estudou, como

"direito dos oprimidos") (289); nem, por isto mesmo, se sente levado a cons-truir a teoria dialética do Direito, esgotando-se na proposta equívoca da"morte" do Direito, junto com o Estado (que traz o pressuposto — falso —de que só há Direito no Estado), para debater-se, depois, com a necessidadede pensar a qualificar o que seriam — em trânsito, os direitos dos oprimidos ea Justiça que reclamam, não como reflexo de ideologia, porém como arma,conteúdo e direção da práxis revolucionária e estrela condutora dos seus pro-tagonistas.

Acentuei que uma nova teoria do Direito situa-nos perante a origem doprocesso jurídico, na base (290) mesma da sociedade, isto é, no modo de pro-dução, enquanto, este se delineia como espoliativo, gerando a visão classístíca,com as formações colaterais que delineiam a oposição de grupos (oprimidos xopressor, paralelamente ao binómio — espoliado x espoliador). O modo deprodução já é, em si, violador de Direitos, o que Marx, aliás, intuí quando

289 - BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, The Law of lhe Oppressed, in Law andSociety, Denver, Law and Society Association, XX (1), 1977, p. 5-126: "uma vez que acoesão ideológica duma sociedade classista é sobreposta a inconciliáveis conflitos de clas-se, constantemente gerados pelas relações de produção, as classes dominadas —ou gruposespecíficos dentro delas — tendem a desenvolver subculturas 'legais', que, em certas cir-cunstâncias, podem associar-se a uma práxis institucional relativamente autónoma, comvariáveis objetivo e nível de organização. Reconhecer esta práxis como 'legal' e este di-reito como direito paralelo (isto é, caracterizar a situação como pluralismo 'legal') c ado-tai um ponto de vista teórico, julgando este dkeito como não inferior ao direito estatal —envolve unia opção cientifica e política; isto é, pressupõe a negação do 'monopólio radi-cal' de produção e circulação do direito pelo Estado moderno". Tal aspecto jamais seexplicita em Marx, que contorna o problema, preso ao falso dilema (iurisnaturalismo-po-sitivismo) e influenciado p,ela visão (positivista) do Estado como única fonte do Direitomoderno, absorvendo os mores e costumes da classe dominante (uma pretensão que,àquela altura, ainda não desenvolvera bastante as suas contradições ideológicas c, à basedelas, institucionais). Nada obstante, Marx "sente" e tenta exprimir a necessidade de revi-ver o Direito e a Justiça (não ideologizados) como vestimenta da práxis revolucionária earma dos seus protagonistas, em vários textos da sua obra,290 - Noutro escrito (ROBERTO LYRA FILHO, humanismo Dialético, cít., nofa 408e texto correspondente) fundamento uma resposta de estilo marxiano - ca dépend...(W/iRX-ENGIiLS, Textes sur Ia Méthode da Ia Science Économjque bilingue, Paris,Éditbns Sociales, 1974, p. 162) — à pergunta da companheira Marilena ChauiVessetermo (superestrutura) ainda possui algum sentido?" (CHAUl", Roberto Lyra Filho oua Dignidade Política do Direito, cit., p. 29).

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ldetermina que, em principio, a "Uberdade positivada" só pode configurar-seem termos de que "o livre desenvolvimento de cada um" se'estabelece como"condição de livre desenvolvimento de todos" (291). E isto, para ele, vem seruma das "leis simples da moral e da Justiça", que deve-reger as relações dos

. indivíduos e o intercâmbio entre os povos (292). Para quem não veja logo queassim se põe um Direito supra-estatal (em irresolvido contraste com a visão doDireito à guisa de expressão dos interesses e posicionamento" da classe do-minante — uma tese que Marx, ora admitej ora nega, como vimos) bastaconferir-os "direitos e deveres iguais", preconizados no preâmbulo dosEstatutos da l? Internacional (293).

Isto, por sua vez, nos encaminha para a Crítica do Programa de Goíha —um dos mais intrincados exemplos dos raciocínios tortuosos, a que se vê leva-do o próprio Marx, quando está diante da antinomia, por ele mesmo anuncia-da, entre comunismo e Direito (qualquer Direito, em tese e em concreto) e apersistência, não menos característica nele, da necessidade de invocar o Direi-to e a Justiça, para dar vigor, conteúdo e sentido ao Direito de revolução, emsua origem, peripécias e vitória final (prefigurada na utópica e futura socieda-de perfeita).

Na Crítica do Programa dsGotha (294), Marx critica o direito burguês,prcrcurando mostrar que a igualdade formal dos cidadãos, enquanto apoiadaem desigualdades efetivas e substanciais (de índole, quer individual, quer so-cial) resulta de que o "direito igual" é, como no referido direito burguês e,num salto de generalização temerária, "todo Direito", uma fonte, apenas, dereais desigualdades (295). Mais adiante, contudo, e com a passagem ao limiteapoiada na consideração de que o Direito (estatal ou costumeiro da classe do-minante) "não pode ser mais elevado do que a situação económica da socieda-de e o correspondente grau de civilização", deixa implícito, que não se tratade "todo Direito", mas das ordenações costumeiras, ou legais, talhadas aosabor dos dominadores — j á que descreve, uma sociedade comunista, em que

291 - MAR.ILENA CHAUl", Roberto Lyra Filho s a Dignidade Política do Direito, cif.,p. 28.

292 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, p. 323.291-Ibidem, I, p. 322.

294 - MARX-ENGELS, Critique dês Programmes de Gotha et d 'Erfurt, cit., p. 31-32.295 — Na análise que se segue, reproduzo os argumentos, desenvolvidos a respeito, nou-tio escrito, que a revista Direito & Avesso n9 3 (1983) — (ver aqui, nota 3) acaba de im-primir: ROBERTO LYRAFlLlíQ.NuinaiiismoDialético, cit., W, I,a partir da nota 386e ss e texto correspondente.

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some o direito burguês (296), agora adjetivado e restrito a uma sociedadeclassísta, com o que se desvenda a pertinência e endereço da crítica, mas ficasem suporte a generalização, exceto se por "todo Direito" entendermos so-mente as normas consuetudinárias ou legais da classe dominante, desconhe-cendo, deste modo, os dfreitos de espoliados e oprimidos. É o círculo viciosoe viciado, que advém da redução positivista, aliás, como notei não mantida(nem poderia sê-lo) coerentemente por Marx.

Ao ser ultrapassado, porém, naquela sociedade (comunista) o direito(burguês) admite Marx um princípio jurídico (a que, entretanto, não dá talqualificação) consistente na preceituaçãb: "de cada um, segundo as suasaptidões; a cada um, conforme as próprias necessidades" — o que, inciden-temente só numa abordagem dialética (297) pode ser conciliado com "di-reitos e deveres iguais" (298), após a proclamação da desigualdade visceraldo Direito, e perante o brocardo (jurídico também.) do comunismo: "o livredesenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de to-dos" — pressupondo, de resto, uma limitação (jurídica) da liberdade, poistan-tas liberdades particulares (de cada um) atropelariam a liberdade geral (299).

Desta maneira, vencido o direito burguês,^ Direito não se extingue,senão que se consuma, para Marx, em comunidade perfeita, que, ainda assim,exige certas "normas organizacionais" que ele se recusa a chamar de jurídicas,porque, de início, identificou (em termos gerais, embora com as escapadelasjá vistas) Direito, Estado e classe e grupos dominantes.

296 — Note-se a ambiguidade da língua alemã, em que direito civil, exprimindo o priva-tismo originário, com o Estado Geiidarme, não intervencionista, do direito burguês (masnão em suas formas posteriores e atuais), é designado corna mesma expressão que denotao direito da burguesia capitalista dominante (búrgerlisches Redit}. A origem histórica-burguesia contra o aspecto consuetuclináno, aristocrático (daí o posicionamento de Hegelpró Thibaut CONTRA Savigny - ver JACQUE D'HONDT, Hegel en son Temps, Paris,Édítíons Sociales, 19, p. 118) — marca a ascensão classísticae o privatismo primitivo des-sa classe. Vencedora, a burguesia tende a confundir o seu Estado e a sociedade global (Di-reito Público = interesse público). Mas, à medida que cresce a concentração económica,com a "livre iniciativa" sufocada, o Estado, ligando-se teoricamente ao "interesse públi-co ".deseja estabelecer-se com órgão da homeostase, no sistema capitalista e reger, à modahegeliana, os conflitos atomísticos da sociedade civil — no que não faz mais do que evi-denciar a dialética dos interesses, classe e grupos dominantes (a que permanece ligado); e,assim, o Eslado se torna autoritário (e não liberal),'intervencionista (e não simples"inspetor de veículos"), imperialista ou dependente, (no exterior), conforme a posição nosistema de forças inter-supra e multinacionais.297 - Ver, neste ensaio,a nota 96.298 — Ver, neste ensaio, a nota 293.299 - ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 124.

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Aliás, a-referida comunidade perfeita só é inteligível enquanto limiteutópico das lutas sociais libertadoras (e, como tal, muito fecunda), pois, can-celadas as aproximações sucessivas e progressivas, é a dialética histórica mes-ma que desaparece, na profecia escaíológica dum paraíso terrestre, logo apóso "julgamento final" do capitalismo e o "trânsito" para o "céu" (um tantodemorado, convenhamos, no pfêtinement sur place do pseudo-socialismo, dito"realmente existente", nas ditaduras burocráticos-políciais, que por aí vice-jam) (300).

O paralogismo do trecho ern análise está em que Marx utiliza, em suaCrítica fio Programa de Colha, duas noções de Direito ao mesmo tempo emistura as perspectivas decorrentes: o direito da classe dominante e sua igual-dade formal (burguesa) é examinado ao nível do fato (não poderia ultrapassaras condições só cio-económicas dominantes); este direito é, em seguida, toma-do como paradigma de "todo Direito", para mostrar: 1) que as desigualdadesindividuais e sociais frustram a "igualdade" de princípio (quando, na verdadeas primeiras podem ser resolvidas pela "igualdade de oportunidade para todosos-uidividualmente desiguais, o que realizaria, no desfecho utópico, a igualda-d&rfiindica preconizada, sem obstar ao/fl/o das inevitáveis desigualdades indi-viduaisj-,e as segundas1, desigualdades da posição social — em classes e gru-pos^^e que só podem ser destruídas, com a manutenção dos desníveis deaptidões1, e. a ré distribuição segundo as necessidades, após a troca da estruturasocial ̂ capitalista, por outra mais avançada, no melhor nivelamento das opor-tunidades e cobertas as necessidades básicas, através do aquínhoamento quenão distingue boca de génio e boca de idiota; as realizações e até a "apropria-ção da parte individual" (300 A) corresponderiam, porém, àsapíídões, produ-tivas, eliminados os privilégios e dissolvido o ímpeto de "fazer carreira" eamealhar fortuna); 2) que as desigualdades (individuais e sociais) brigam comtodo e qualquer Direito, que pretende ser "igual" — o que é, facticarnenteabsurdo, pois nem todo Direito da classe dominante pretendeu realizar aigualdade (mesmo em princípio e como engodo): o direito aristocrático, porexemplo, baseia-se iia desigualdade de sangue e berço; e, se é certo que o di-reito burguês (visando os privilégios aristocráticos, para destruí-los) preten-deu realizar a igualdade jurídica, adotando-a como princípio,' para negá-la naprática, a ele, e não a todo Direito, cabe a excelente crítica, desrnascarando-lhe a hipocrisia; mas, de qualquer forma, o direito burguês só pode ser contes-tado em nome de outros tantos princípios que não são menos jurídicos (tal

300 - ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capital e Direito do Trabath o. cit.300 A - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit.. I, p. 33 (Manifesto Comunista').

qual faz, Marx,'embora se recuse, em certos momentos, a dar-lhe esta qualifi-cação, para eventualmente deixá-la surgir, sem um recoríefirme das "ideias" deDireito e Justiça. Isto, aliás, que c afirmado, explicitamente cm outras pági-nas, resulta implícito m própria Critica do Programa de Gotha, pois, afinal,o que se extingue — veja-se o final do texto analisado — mo é todo e qualquerDireito, mas o direito burguês, com o que, não se sabe por que, salvo um pre-conceito positivista (301), não seria jurídico o bocardo regente da sociedadecomunista, que, diz, Marx, o inscreverá nas suas bandeiras).

Ainda aqui, Marx apresenta e confunde a afirmação do Direito (sem lhedar este nome, que, entretanto, reemerge noutros escritos da mesma fase), anegação do Direito (qu&, paia isto, é reduzido, en passant e arbitrariamente,ao modelo do Direito burguês} e a negação da negação do Direito (enquantoé, por fim, o direito burguês que fica negado e, todavia, apenas a fim de queprevaleça uma igualdade jurídica de tratamento, depois de extintas as desi-gualdades sociais e absorvidas, como irrelevantes, as diferenças pessoais —neste caso incorporando, transmudando e reenquadrando, numa igualdadejurídica mais avançada, a igualdade mesma, que a burguesia instituiu em prin-cípio, contra os aristocratas, e destruiu na prática, para manter os seus privi-légios conquistados, como nova classe dominante. Donde um Direito "alar-gado", para empregar a expressão d M Sagrada Família}. Mas esta negação danegação permanece um bocado confusa, como dialética do Direito, devido aoteimoso enfoque, em termos duma contração positivista.

Não se pense que insinuo o desvalor das análises, propostas e sugestõesmarxíanas; pelo contrário, delas me nutro, e a atitude crítica e descontraída,em relação a esse autor da minha afeição especial, é apenas o resultado dumconvívio fraternal de quatro décadas com o seu pensamento, de tal sorte queo considero meu genial amigo, Karl. O que recuso é a carolice com que certosdiscípulos fazem de Marx um deus oniciente, onipresente e todo-poderoso,saindo por aí, num festival de psitacismo, a repetir, sem conferir, nem repen-sar, uns fragmentos do itinerário intelectual que, depois, passam por teoriajurídica "marxista": mais uma, entre as mH que se digladiam, sem fazer avan-çar um milímetro a consideração sociológica e filosófica do Direito. Antes,acabam gravando as obstruções, antinomias e equívocos do acervo, nada obs-tante, rico, fecundo, original, desbravador de caminhos e "detector" de te-souros mal explorados.

Os dois textos que me serviram para demonstrar a coexistência, emMarx e em todas as ditas fases, da afirmação, negação e negação da negação

301 - ROBERTO LYRA FILHO, Para um Direito sem Dogmas, Porto Alegre, Fabris,1980, p. 13 ãpassim.

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do Direito representam, como tantos outros fragmentos e, sobretudo, o pró-prio conjunto e sentido da sua busca, aquelas "pistas" onde cintilam achadosnotáveis — a partir dos quais é possível retomar a tarefa.

Disse e repito: sem Marx, toda sociologia ou filosofia jurídicas estão fa-dadas a remoer variantes dos modelos antigos. Com Marx, a tarefa de exami-nar, dialeticamente, o Direito apenas começou. Cabe, portanto, a recomen-dação exata da companheira Marilena Chauí. Se, como entendo, o que Marxrealizou não nos ministra catecismos e orações, a rezar como beatas, ele preci-sa ser encarado, no que tem de "essencial, isto é, Marx pensando, abrindopara nós um campo, a fim de pensarmos com ele e mesmo contra ele" (302),se e quando for preciso.

Este diálogo, evidentemente, não se encerra aqui. Ele constitui o prelú-dio duma construção alternativa e supletiva, que venho esboçando. Alterna-tiva, porque, ao pensar o Direito com Marx, aqui e ali concluo contra ele.Supletiva, porque, sugerindo uma visão nova do Direito, em Marx inexistente,permanece ancorada no essencial duma contribuição imperecível, que ele nostraz e sem a qual todo avanço pretendido é um retrocesso efetivo. Aí, ou sevolta ao positivismo "que abraça Maritornes e sonha com Dulcínéia" (303);ou se reedita o antigo Direito Natural, que "casa", espiritualmente corn Dul-cinéia, mas tende a admitir Maritornes como uma espécie de concubinadiscreta (304).

Neste ensaio, não sâ"o apenas as ideias jurídicas marxianas que se dis-põem no padrão dialético da afirmação, negação e negação da negação: onosso próprio diálogo tem esta configuração.

Se afirmo, com Marx, muitos aspectos exatos do seu pensamento ju-rídico, se nego a presença nele duma teoria ou doutrina jurídica dialética eaponto, na sua reflexão, o. contrabando consequencial de algumas pedrasfalsas e o desconjuntamento das próprias ideias, também nego a negação,enquanto assinalo que a nova filosofia e sociologia jurídicas incorporam,transmudam e reenqtiadram elementos do legado insuprimível. Pertencema ele os mais belos rubis; no máximo, tento lapidá-los e tecer o fio do colar.

Assim é que igualmente a proposta final representa um prosseguimentodo diálogo, que infelizmente não terei ensejo de arrematar aqui. O traba-

302 - MARILENA CHAUÍ, Cultura e Democracia, cit., p. 219.303 - RAYMITNDO FAORO, O Que é Direito segundo Robeno Lyra Filho, in Direi-to &.Avesso, cit., n9 2 (1982), p. 34.304 - ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 34-36; MARILENA CHAUí;Roberto Lyra Filho ou a Dignidade Polir içado Direito, cit., p. 21-30; JOSÉ GERALDODE SOUSA JR., Para uma Criticada Eficácia da Direito, Porto Alegre, Fabris, 1983.

lho se acha em andamento e já fiz vários relatórios de atualização, cm dife-rentes escrilos (305).

A negação da negação, alcança, de qualquer forma, não somente o in-tercâmbio com Marx, porém até as divisões internas e convencionais daobra marxíana. Isto, a!ia's, constitui como que a espinha dorsal do presenteensaio. E, apenas acrescento que estará, porventura, na combinação de am-bas as di tas fases marxianas o ponto de arranco para a minha proposta: ela re-jeita, simultaneamente, o iurisnaturalismo e o positivismo, entre os quais sedilaceram as ideias jurídicas de Marx — conquanto, sem estas, preciso reiterar,também não seja possível atingir a almejada superação de tudo aquilo que elenos deixou como antinomia: Direito e Antidireito, Direito de revolução sociale revolução social sem Direito — ou tendente a liquidá-lo, Direito acorrentadopela dominação e Direito de libertação. De minha parte, apenas desejo trans-formar uma síntese virtual e indecisa, mas nuclear, no pensamento de Marx,em síntese efetiva, consumada e resoluta e, ao cabo, mais fiel ao anseio laten-te, que nele se frustrou.

Também é certo que Marx não criou deliberadamente uma sociologia —mas qual a sociologia avançada que, hoje, pode afirmar-se, dispensando a con-tribuição marxiana? Não menos característico é o fato de andou, a certa al-tura, às turras com a filosofia — mas qual a filosofia presente e válida que,hoje, pode criar-se, desprezando o seu impulso filosófico desbravador, inova-dor e superador da herança idealista? Ela na"o será, talvez, o materialismo irre-soluto, entre as pulsões dissolutoras do mecanicismo eventual e a aspiraçãounificante à dialética, nele cheia de ambiguidades e descaídas. Porém umacoisa é certa: ninguém há de suprimi-lo, sem regressar, para trás de Hegel ouficar debaixo deste: isto é, na "consciência infeliz" e an t identifica (tal qualos existencialismos) ou no salto en airière da consciência eufórico-burguesa(tal qual os positivismos anacrónicos, onde o rastro maior de Kant se extin-gue em positivismos cientificistas e naturalistas, da "merda" comteana — oxingamento é de Marx, mas eu o adoto (306) —, com a alternativa do coco-zinho sublimado pela Felix Áusa-ia, com seus positivismos lógicos, que servi-ram como dote, no casamento de conveniência anglo-saxa).

O caminho de vanguarda está sempre por onde passou Marx, ainda quenão nos obrigue (nem ele o queria) a parar onde ele permanece, para matá-lode novo (intelectualmente), embalsamá-lo e rezar, como beatos impotentes esolteironas intocadas, diante do seu túmulo.

305 — Os mais recentes e paiiorâjuicos são os já cílados O Que é Direito e HumanismoDialético.306 - MARX-ENGELS, Lettres sur lês Sciences de Io Nalure, cit., p. 47.

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lOs marxistas que periodizam a obra marxiana como, primeiro, filosófica

e, depois, científica só fazem agravar as coisas já passavelmente baralhadas cmalgumas fórmulas imprudentes do autor, bem maior do que estes esqtiemi-nhas. Nem é mais do que fielmente míope quem dá excessiva importância àatitude aparentemente definitiva, entre a imagem positiva da Contribuição âQ-ftica da Filosofia Jurídica de Hegel (307) e as boas piadas de polemista,que se acham n'A ideologia Alemã (308).

Aqui, de novo, Marx está brincando com paralogismos, porque a suacrítica à filosofia, enquanto esta seria um simples ingrediente ideológico e"superestrutura!" (309), concerne a um certo tipo de filosofia, e não à filoso-fia mesma —assim como a pretensa liquidação do Direito concerne ao Direitovisto apenas sob o ângulo das leis e costumes da classe dominante, e não aoDireito inteiro (que reemcrge em Marx, nas várias culmináiicias da 2? fase,embora sem articular-se numa visão expressa e de nítido perfil).

Aliás, a negação da negação da filosofia aparece também claramente,quando Engels mostra que o enterro filosófico, realizado por ele e Marx, dizrespeito a "toda filosofia"... "no sentido fradicional da palavra" (310). Anegação prendia-se à polémica travada com o idealismo, notadamente em suamáxima fioração:o sistema hegeliano.

Mas (criticamente) poderíamos acentuar que aquele próprio enterrodum sentido da palavra é declaração de princípios que não corresponde aosfatos. O nosso insígue Lima Vàz pôde, rigorosamente, demonstrar que, "ele-vando a História à atitude dum primeiro princípio" Marx apenas transpôspara lá o seu arremesso ontológico e deu à história humana o mesmo estatutoque adquirem as ideias, em Platão; a substância primeira, em Aristóteles; oDeus pessoal, na filosofia cristã; a substância causa sai, em Espínoza;o Espí-rito, em Hegel. Conclui Lima Vaz que, portanto, não é paradoxal, nem gra-tuita esta afirmativa: "a concepção marxiana da História constitui-se num no-vo capítulo, na tradição da metafísica ocidental, por mais que Marx se tenhaproposto pôr termo a essa tradição"'(311).

307 —"A cabeça desta emancipaçãq (do Homem) é a filosofia; seu coração o proletaria-do" (MARX, Critique de Ia PhUosophíe du Droit de Hegel, em apenso à Critique duDroiíPolltique Hégélien, Paris, Éditions Sociales, 1980, p. 212.308 — "A filosofia está para a investigação do mundo real, assim como a masturbaçãoestá para o amor sexual" (MARX, Oeuvres, cit., Ill, p. 1200).309 - MARX, Oeuvres, cit., I, p. 273.310 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., III, p. 175. Ver SÈVE, ob. cit., p. 255.311 -HENRIQUE LIMA VAZ, Sobre as Fontes Filosóficas do Pensamento de Marx,cit., p. 15.

De qualquer sorte, Marx não "acaba" com a filosofia: dá seguimento àtradição negada, tentando superá-la (não destruí-la propriamente), em novorumo filosófico.

A teoria dialética do Direito, com a qual fundeia Nova Escola JurídicaBrasileira - tão generosamente acolhida por meus atuais e valorosos compa-nheiros de pesquisa -jamais dissocia os ângulos científico e filosófico e o querepresenta é, em síntese, "a proposta de uma nova filosofia jurídica baseadanuma sociologia jurídica, graças à qual a primeira não se transforme num jogode fantasmas ideológicos" (312). Esta é, aliás, uma preocupação tipicamentemarxiana, euquanto Marx mesmo queria que as pessoas tirassem a ideia doDireito da cabeça, para vê-lo dentro da História (312 A).

Os caminhos filosófico e científico não são mutuamente excludentes e,sim, complementares e indispensáveis, ambos, para a apresentação da dialéticado Direito (aliás, sem isto, ela não seria dialética, no sentido correto e forte).

No caminho filosófico, as abordagens se prolongam, à procura do fun-damento sintético e englobante das coisas; no caminho científico, a pesquisados fenómenos busca os elementos de sua "coerência interna" (313), divi-dindo o campo em seíores e contentando-se com explicações limitadas e re-gionais. A filosofia é um ensaio de ligação direta com o Todo; a ciência, umtrabalho de explicitação das partes. Por isto mesmo, quando se apartam, a pri-meira tende a evolar-se, nas nuvens de intuições arbitrárias e a segunda, a per-der-se no raso das verificações míopes, com as teorias de alcance médio usur-pando a função de explicitações fmais. Nenhuma explicação é realmente satis-fatória, sem articulação com o Todo e a própria teoria da ciência e do métodojá é urna colocação meta científica. De generalização em generalização, deaprofundamento em aprofundamento — e impulsionada por uma concepçãode si mesma e do seu instrumental operatório, que é, em si, uma filosofia ~ aciência chega às portas do Todo. De dedução em dedução, de mediação emmediação — em que as próprias ideias são alimentadas por dados, colhidos norepositório científico e retrabalhados noutro nível - a filosofia chega ao li-miar dos fenómenos, em seu afã de lhes determinar o princípio geral englo-bante. Quando, porém,as duas passam chaves e trancas e giram, amuadas, cadaqual em seu próprio domínio, o Todo filosófico perde o contacto com o reale tende a' pensar que este é constituído pelas ideias que, como a mitológicaMinerva, sai feita, adulta e armada da cabeça de Júpiter-pensador; e a teoria

312 - M ARILENA CHAUI', Roberto Lyra Filho, cit., p. 28.312 Á ~ MARX, Oeuvres, cit., Ill, p. 1257.313 - MARX-ENGELS, Correspondance, VIU, p. 397; MARX-ENGELS, Textes sur Iaífethodet cit., p. 157 ss.

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científica termina aplicando unia subfilosofia, implícita, obtusa e, já o lem-brei com Ortega, inclusive sonâmbula (314).

Procurei estabelecer os parâmetros e padrões dialélicos, segundo osquais se podem ler as-ideias jurídicas marxianas, sem que se sacrifique umaparte delas, cm benefício de afirmações e negações constantes de todo movi-mento e do conjunto ou subloíalidadcda obra:dai* saltaram os indícios dumanegação das negações do Direito, que não chegam a articular-se em verdadeirae própria teoria geral do Direito inteiro. Por outras palavras, como se reco-menda, num estudo de autor e doutrina, foi procurada a sua dialética interna,que responde aos estímulos da díalética exterior das ideias e da História, dosfatos em sucessão e das concepções que deles daí resultam, para se organiza-rem como estruturas diacrõnicas de ideias e, assim, constituírem o resíduo elegado que se apresentara', simultaneamente, como um "momento imperecíveldo Todo" e uni produto, por si só, limitado ao horizonte do tempo, de queera a sincrónica expressão necessária (315).

A transfusão desta herança cultural, no que concerne à contribuiçãomarxiana, dentro do vulto global duma teoria dialética do Direito, para a qualserve de inspiração, apoio e ponto de partida, não é, porém, uma tarefa queeu possa empreender aqui e agora. Já dei notícia alhures do estado aí uai dasinvestigações, que prosseguem, à base da minha proposta, no seio da NovaEscola Jurídica Brasileira.

Entretanto, com a sugestão de que os materiais marxianos rebrilhamem toda a construção da teoria dialética do Direito, e nesta fazem convivertodas as fases — complementares, na realidade — do itinerário de Marx —posso finalmente recapitular alguns pontos de referência do intercâmbio in-cessante, em que se consuma o diálogo com o filósofo e cientista, criador domaterialismo histórico.

Não foi certamente Marx o primeiro a pensar a "essência do ho-mem" (316) como "liberdade", mas nele, sem dúvida, esta "liberdade" foipela primeira vez, inteiramente concebida como uma conquista da práxis, emque o homem se configura, a partir da trama de relações sociais, com substra-to económico, cisões dassísticas e luta de classes. Essas duas visões — liberda-

314 - ROBERTO LYRA FILHO, Filosofia Gera! e Filosofia Jurídica em PerspectivaDialética. in CARLOS PALÁCIO, Cristianismo e História (Estudos em Homenagem aHenrique Cláudio de Lima Vás), São Paulo, LovoIa, 1982, p. 147-169.315-HEGEL, Leçons d'Histoire de Ia PhHosophie, cil., I, p. 148-149; ENCELS,Ludwig Feuerbach et Ia Fin de Ia PliUnsophic Classiqite Alletnandc, cít.| p. 84-87;MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cil., III, p. 175.316- MARX, Octtvres, cit-, I I I , p. 166 (Gazeta Retiana).

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de e liberdade situada, para a conquista gradual, estabelecem a dialética dohumanismo autêntico (316 A), através do potencial tipicamente humano da li-bertação, como ciência dos condicionamentos (tese herdada de Hegel) e de talciência como um surto que emerge no amadurecimento das contradições dapráxis (colocação herdada de Marx). A consciência, então, se transforma emconscíentização possível, segundo a conjuntura, e a liberdade, em libertaçãoefetíva de classes, grupos e pessoas interminentes no processo (317).

"Ninguém combate a liberdade; no máximo combate a liberdade dosoutros", pilhéria vá Marx (318).

Tampouco foi Marx o primeiro a conceber o Direito, entendido comoexistência positiva das liberdades coexistentes (de indivíduos, classes, grupose povos) — aí existe a herança do idealismo alemão, que, sob esse aspecto,amadurece, de Kant a Hegel, para chegar, quando defronta com a lei e o Esta-do, a um impasse (de novo, atravessando a progressão de Kant a Hegel) (318 A),Neste, a liberdade positivada se fossiliza no chamado "direito positivo" esta-tal e a medida da legitimidade das leis tende a se transformar em atributo pre-sumido de um Estado abstrato, conceituai, ideológico e idealista, com suasleis de dominação das classes e grupos pri vilegiad o s sobre os indivíduos, clas-ses e grupos espoliados e oprimidos, tanto quanto de povos inteiros submeti-dos à sanha imperialista. Mas também só Marx explorou a fundo esse impasse,que lhe dilacera o pensamento, levando-o ao extremo de, às vezes, negar o Di-reito e a Justiça, no afã de os denunciar em concreto, isto e', como "direitopositivo histórico (319), e como Justiça de mera cobertura ideológica" (320).Ninguém como ele viu o sistema de relações que atam esse direito dito posi-tivo das classes, grupos e povos dominantes ao modo de produção instituído,à estrutura global das sociedades e aos seus extravasamentos internacio-nais (321) — com que se delineia uma violação jurídica na própria base(unterbaií) dos sucessivos modos de produção. Quando, entretanto, pareceque ficou enterrado o Direito, nas cinzas da crítica demolidora do "direitopositivo", eis que a fénix jurídica renasce e é ainda mais alargado o fio daque-

316 A - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 571 (A Sagrada Família}; MARX, Oeuvres, cit., II,p. 1488-1489 (O Capitai).317 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1056,1072 cpassim (Ideologia Alemã).318 - MARX, Oeuvres, cit., Hl, p. 166 (Gazeia Reiiatw).318A-ERNST BLOCH, Subfekt-Obfekt, cit., n9 14; MICHEL V1LLEY, Kant dans1'fíistoire du Droit in Leçons d'Histoire de Ia PhUosopliie dii Droit, Paris, Dalloz,1962,p. 251-269.319-MARX,Oeuvres, cit., III, p.450453 (Á Sagrada Familto).320 -MARX,Oeuvres, cit., I, p. 620, cit., 111, p. 1177: (O Capital: Ideologia Alenta).321 -MARX,Oeuvres, cit., II, p. 314-315.

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ia Justiça, realizada pela negação do "direito positivo" i\'A Sagrada Famí-lia (322). Então, Direito e Justiça negam a negação e se reafirmam como rei-vindicação e conquistas progressivas das classes, grupos ascendentes. Nemse poderia legitimamente esmagar os índivfduos, as classes e povos espolia-dos, os grupos oprimidos, já que o "livre desenvolvimento de cada um é con-dição do livre desenvolvimento de todos" (323). Mais do que isto:ainda numasociedade comunista, as pessoas físicas teriam "o poder de se apropriarem"das suas partes dos produtos sociais, apenas sendo-Lhes vedado "sujeitar, nes-ta apropriação, o trabalho alheio" (324) — o que nos propõe um direito sub-jetívo condicionante de toda normação (objetiva) legítima, e não více-versa(como no acachapado positivismo jurídico burguês, onde o direito subjetivoé mera facultas derivada de normas legais).

Os direitos humanos são em seguida reenquadraclos na perspectiva histó-rica, vendo-se o importe, progressista, a seu tempo, das declarações dumaburguesia então ascendente (325), sem prejuízo da justa crítica prospectiva,antecipada na Questão Judaica, Ali se mostrava que o liberalismo burguês nãolibertou o Homem e, esgotado o seu ciclo montante, quando os interessesuniversais coincidiam transitoriamente com o seu posicionamento contrárioaos restos do direito aristocrático feudal, estabeleceu os mais solertes des-mentidos da igualdade jurídico-formaí dos dominados, pela estrutura socialem que se encarapitara (326). Esta crítica socialista, contudo, não perfaz ociclo extintivo dos direitos humanos, figurado numa passagem d'A IdeologiaA lema(327), pois a antinomia "direito x comunismo" ~ ali referida — logo sedissolve, na medida em que este último (como imagem utópica da sociedadeperfeita) estabelece, socialmente, uma nova declaração de direitos do homem— onde, aliás, ecoa o comunismo cristão áasAtos dos Apóstolos, em sua defi-nição bíblica. "De cada um segundo as suas aptidões, a cada um segundo aspróprias necessidades" (328) projeto que incorpora, transmuda e reenquadra,evidentemente, a lição bíblica, negada em tese e em principio, pelo materialis-mo histórico. Aquele brocardo, que Marx inseriu na Critica do Programa deGotha, vai negar essa negação — em parte, ao menos, isto é, enquanto veículo

322-Ver nota 319.323 - MARX, Oeuvres, cit.. I, p. 183 (Manifesto Comunista).324 - MARX, Oeuvres, cit., I, p. 17 7 (Manifesto Cbimwsta).325-MARX, Caria a Lincoln, (1864); MARX-ENGELS, Correspondance, cit., VIIp. 327.326 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 372 ss (A Questão Judaica).327 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1177.328 -MARX-ENGELS, Critique da Programme, cit., p. 32.

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jurídico-só ciai de convivência numa comunidade justa, segundo a expressãocoincidente com a da Bíblia mesma (ATOS, II, 44-45; IV, 32-35): "e dividiamos seus bens por todos, segundo a necessidade de cada um".

Mas não será apenas em um desfecho prefigurado em utopia (nenhumaconotação pejorativa neste termo: eu o emprego no sentido de Ernst Bloch);será nos próximos, reais, históricos e acidentados rumos do trânsito e percal-ços da construção do socialismo, que o Direito e a Justiça, inevitavelmente,regressarão em Marx. Eles se tornam como já' assinalei, a vestimenta princípio-lógica e o padrão normativo por que lutam e algo conquistam, na práxis,asclasses, povos e grupos espoliados e oprimidos. A este respeito, não deixamlugar para dúvida os reclamos de Justiça e referências ao Direito, inseridospor Marx, no texto de lançamento da1 13 Internacional — 1864 —(329) e nopreâmbulo e teor geral dos Estatutos desta última, também redigido porele (330). Este documento, aliás, é jurídico em si mesmo, no item 7 A (in-cluído, conforme a emenda aprovada em Haia no 19 Congresso.de 1871 parareinserir uma distinção grata a Marx, desde a juventude, entre direito e privi-légio (331). Os Estatutos, na verdade, compendiam os padrões da práxisconjunta dos operários, para devolver ao direito, através da conquista dopoder político, mediante organização partidária, aquele teor exato de Justiçaque, segundo Marx "deve governar as relações dos indivíduos" e se constituiem "norma suprema das relações entre" os povos (332). Este impulso dosocialismo restabelece a focalização expressa do Direito e da Justiça, numponto de honra e destaque. E assim se prepara a caminhada longa do que elemesmo chama "uma evolução revolucionária de bastante longa duração" (333).

Demorei-me na recapitulação, porque desejava mostrar como ospontos assinalados, no curso da análise, permitem armar o quebra-cabe-ças e ver o quadro completo e móvel das ambíguas relações entre Marxe o Direito. Nela_s, não se chega a aperfeiçoar a negação da negação doDireito, cuja presença, nada obstante, é sensível, embora dispersa e oscilante,devido àquela falta da teoria dialética do Direito, a que me dedico nos traba-lhos da Nova Escola Jurídica Brasileira. E esta já se vai difundindo, alentado-

329 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, p. 321.330 - MARX-ENGELS, Ibidem, I, p. 322.331 -GUASTIN1, Alarx, cit., p. 45-46; MARX, Oeuvreí. cit., 111, p. 194, 247 (Gaze-ta Reiiana), 588 (Sagrada Família), 755 (Jornal Alemão de Bruxelas), 1001-1003 (Crf-tica do Direito Público de Hcgel).332-MARX, Pages..., cit., n, p. 63.333 -MARX, Pages..., cit., II, p. 56 e 59; ROBERTO LYRA FILHO, Inlorduçao aoDireito, in Direito &Avesso, cit., n9 2 (1982),p.43-47.

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rameníe, por todo o país. Núcleos de estudo surgem', de norte a sul. Recebicomo um prémio inestimável, o maior da minha vida aluai, consagrada à lutapelo socialismo, quando, em 1982, o 34° Congresso da UNE me aprovou umaestimulante moção de apoio (334). Há pouco, tive também a oportunidade,não menos grata, de dialogar com algumas centenas de estudantes no ENED(setembro 83).

E tudo isto muito tem a ver com aquele que chamo,.familiarmente, meuamigo FCarl, pois a Nova Escola Jurídica Brasileira, em última análise pretenderealizar a síntese que virtualmente sugere o acervo marxiano, onde cliega a en-tremostrar-se de forma intermitente. O nosso projeto, conforme já acentueinoutro escrito, deseja apenas captar "uma ontologia jurídica sugerida pelo jo-vem Marx (podados alguns excessos idealistas) e pela sociologia crítica dosseus anos maduros (evitando ambiguidades e um certo mecanicismo, amboscompreensíveis no desbravador empolgado pela visão e achado geniais)" (335).

Nem teoria e práxis se divorciam. Se o meio de que nos valemos é umaconstrução jurídica, a estrada que trilhamos é a do socialismo democrático.Neste,"as conquistas sócio-econômicas não se desnaturam pelo seqiiestro dasliberdades individuais e públicas, e se tornam compatíveis a herança liberal(em sua parte viva, de garantias democráticas) e o socialismo (sem ditadura,nemdesfibramento nas reformas de fachada)" (336).

A tradução em teoria política dessa direínz já foi feita, impecavelmen-te, pela companheira Marilcna Chauf e não preciso repetir-lhe as lições doestudo sobre o socialismo e democracia, que todo o brasileiro progressista eculto conhece ou devia conhecer (337). O meu campo de atuação é o jurídi-co e se entrosa perfeitamente com o dela. Se.Marilena soube ver, exatamente,o meu projeto corno uma tentativa para acentuar a dignidade política do Di-reito (338), ela mesma se empenha em acentuar a dignidade jurídica da Polí-tica. Sem o Direito, que determina os conteúdos e formas legítimos da prá-xis política e sem a Política, onde se determina e viabiliza o modelo de estru-turação jurídica da intervenção do processo, não são apenas Direito e a Polí-tica os que perdem a dignidade; é o próprio socialismo que degenera emfetiche doido, lançado p*ra lá e p'ra cá, entre ondas alternadas de anarquismoe tirania estatal.

334 - MARCUS VINÍCIUS, o 349 Congresso da UNE, in Direito & Avessa, cit., n9 2(1982), p. 88.335-ROBERTO LYRA FILHO, ob., loc. cits. (nota 333).336 — Ibidem.337 - MAR1LENA CHAUl", CUItum e Democracia, cit., p. 111-220.338-MARILENACHAUr,floier/oi)'ra Filho ca Dignidade Política do Direito, cit.

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Nosso diálogo com Marx fica situado nessa confluência e procura salvaro socialismo desse jogo tétrico.

Afinal de contas, ninguém melhor do que ele definiu a situação semtermos gerais: "a classe trabalhadora não pode simplesmente apoderar-se domecanismo do Estado, tal como o acha diante de si, prefabrícado, para mo-vimentá-lo, segundo os próprios fins" (339). De tal sorte se evidencia que épreciso construir as teorias política e jurídica sem as quais o fim se enrijeceem dogma e os meios se desgovernam, em "fraseologia revolucionária". Es-ta acaba situando, a "força motriz da história na vontade nua"'e faz da pala-vra trabalhador "um fetiche", como os liberais-democraías fazem da pala-vra povo "outro fetiche", também (340).

O pensamento de Marx é, para nós, uma "possibilidade aberta" para"compreendermos, aqui e agora, a experiência da luta de classes". Mas, poristo mesmo é que a teoria jurídico-política se torna essencial já que o "iní-cio da emancipação não nos poupa do rigor da análise e dos percalços daprática" (341).

Nffo recusamos o modelo capitalista para destruir o coraça"o perene daherança liberal e, sim, para cortar as suas aderências burguesas, sem atingiros Direitos Humanos, públicos e individuais. Pois, afinal, como assenta, irre-tocavelmente, Boaventura de Sousa Santos: "o socialismo não é outra coisasenão a globalização da democracia" e, "deste modo, não se combate o capi-talismo por ser democrático, mas antes por não o ser e não poder ser plena-mente" (342).

339-MARX,Pages.,., cit., II,p. 125 (A Comuna, 1871).340 - MARX, AÍCÍ.... cit., II, p. 59.341 - CHAUl", Gilítira e. Dcmoavcia, cit., 219-220.342 - BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, A Questão do Socialismo, in Revista Cn-líca de Ciências Sociais, n? 6 (l981), P-171 , Coimbra, Centro de Estudos Sociais.

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