interação social-tdah - dias da costa, s r

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SANDRA REGINA DIAS DA COSTA

O PAPEL DA INTERAO SOCIAL NA APRENDIZAGEM DO ALUNO COM TRANSTORNO DE DFICIT DE ATENO/HIPERATIVIDADETDAH:O CASO DO CENEP HC/UFPR

Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre. Programa de PsGraduao em Educao, Mestrado em EducaoLinha de Pesquisa Educao, Sade e Trabalho- do Setor de Educao, Universidade Federal do Paran.

Orientadora: Prof. Dra. Marta Pinheiro

CURITIBA 2006

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Para Renato meu companheiro de todas as horas, mesmo nas ausncias, pelo incentivo e apoio incondicional. Para os meus filhos, Renato e Rodrigo, pelo amor que me alimenta.

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AGRADECIMENTOS

Agradeo aos meus pais, Silvio (in memorian) e Claudette, por sempre apontarem os caminhos a seguir, sendo o meu porto seguro de afeto e amor. Ao meu filho Rodrigo, luz que iluminou meu caminhar para a Educao, por todas as conquistas que me fizeram ver que no podemos impor limites s nossas possibilidades; obrigada por ter me transformado numa pessoa melhor. Ao meu filho Renato, por fazer meu corao bater mais forte com seu olhar sereno de menino se transformando em homem, mostrando a sua integridade, sua viso de mundo, obrigada pelo prazer de ser sua me. Ao meu companheiro Renato, pelos filhos que tivemos, pelo apoio nas horas mais difceis, pelos nossos 21 anos juntos, parte deles separados pela distncia fsica, mas sempre prximos em pensamento e sentimento; pelo apoio financeiro nesta pesquisa; por ser a pessoa que me faz acreditar que a vida muito melhor se tivermos ao nosso lado algum para compartilh-la. minha orientadora Professora Dra. Marta Pinheiro, pela dedicao, pela segurana, pelos conhecimentos, por exigir e cobrar quando havia necessidade, por estimular nos momentos de desnimo, por sua afetividade muitas vezes no revelada, mas sempre presente em cada gesto. Professora Dra. Shiderlene Vieira de Almeida Lopes e Professora Dra. Ana Maria Petraitis Liblik pelas inestimveis contribuies que enriqueceram este trabalho. Professora Dra. Sandra Regina Kirchner Guimares e Professora Dra. Tnia Stoltz cujos saberes, divididos fraternalmente com seus alunos, foram fundamentais na elaborao desta pesquisa. Ao Dr. Srgio Antoniuk e equipe do CENEP pela acolhida, permitindo a realizao da pesquisa de campo deste estudo.

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Pedagoga Maria Cristina Bromberg, pelo conhecimento, a amizade, e a permanente interao cheia de significados. A todos os familiares e educadores sujeitos da pesquisa que, com muita pacincia e disposio, contriburam para a realizao deste estudo. Professora Dra. Liane Maria Bertucci-Martins, pelo incentivo e apoio nos momentos de angstias e dvidas. Professora Ms. Maria Clia Barbosa Aires, pelo exemplo de coragem e coerncia. Aos colegas de mestrado que proporcionaram momentos de troca de saberes, dilogos e aprendizagem. Ana Stella Azevedo Silveira pela doura, delicadeza e colaborao tcnica. Aos meus sobrinhos Silvio Dias da Costa Neto, Bruna Maria Ferreira da Silva e Gabriel Henrique Ferreira da Silva, pelo apoio, ajuda e incentivo. Marlia Pioto por me proporcionar a deliciosa sensao de ter uma filha. famlia, aos amigos, e a todos os que de alguma forma fizeram parte de minha vida, pois cada um deles contribuiu para aquilo que sou hoje e, portanto, para concretizao deste estudo. Aos funcionrios do programa de psgraduao do setor de Educao da UFPR pela cordialidade e solicitude. CAPES que contribuiu parcialmente para a realizao desta pesquisa.

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Se as coisas so inatingveis...ora! no motivo para no quer-las... Que tristes os caminhos, se no fora a mgica presena das estrelas!

(QUINTANA, 2005, s/p.)

6 SUMRIO LISTA DE TABELAS.................................................................................................... 9 LISTA DE ILUSTRAES ........................................................................................... 10 RESUMO ...................................................................................................................... 11 ABSTRACT .................................................................................................................. 12 1 INTRODUO........................................................................................................... 13 2 APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO NA PERSPECTIVA VIGOTSKIANA ............................................................................................................. 21 2.1 DESENVOLVIMENTO FILO E ONTOGENTICO.................................................. 23 2.2 A TEORIA HISTRICO-CULTURAL DA FORMAO SOCIAL DA MENTE ......... 26 2.3 ASPECTOS NEUROPSICOLGICOS DA FORMAO SOCIAL DA MENTE ................................................................................................................... 32 2.3.1 Aspectos histricos da Neuropsicologia......................................................... 32 2.3.2 A Teoria do Sistema Funcional luz de A. R.Luria ........................................ 37 3 NEUROCINCIA COGNITIVA NO SCULO XXI ..................................................... 44 3.1 BASES NEURAIS DA PERCEPO E DA ATENO .......................................... 48 4 IMPLICAES PEDAGGICAS DA TEORIA VIGOTSKIANA............................... 52 4.1 TEORIAS PEDAGGICAS..................................................................................... 52 4.1.1 Teorias no crticas ........................................................................................... 53 4.1.2 Teorias crticas reprodutivas ............................................................................ 54 4.1.3 Teorias crticas no reprodutivistas ................................................................ 55 5 O TRANSTORNO DE DFICIT DE ATENO/HIPERATIVIDADE ......................... 57 5.1 ETIOLOGIA............................................................................................................. 59 5.2 DIAGNSTICO E TRATAMENTO.......................................................................... 61 5.2.1 Escalas de diagnstico e classificao ........................................................... 66 5.2.2 Avaliao neuropsicolgica do TDAH ............................................................. 67 5.2.3 Intervenes....................................................................................................... 69 5.2.3.1 No mbito familiar ............................................................................................. 70 5.2.3.2 Psicoterpicas................................................................................................... 71 5.2.3.3 No mbito escolar ............................................................................................. 73 5.2.3.4 Medicamentosa................................................................................................. 76 5.2.4 Forma residual (adulto) ..................................................................................... 78

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6 ABORDAGEM TRANSDISCIPLINAR E TDAH: O ESTUDO REALIZADO NO CENTRO DE NEUROLOGIA PEDITRICA CENEP DO HOSPITAL DE CLNICAS- UFPR ................................................................................................... 80 6.1 CARACTERIZANDO O CENEP.............................................................................. 84 6.1.1 Histrico ............................................................................................................. 84 6.1.2 Equipe e atividades ........................................................................................... 85 6.1.3 O ambulatrio do TDAH .................................................................................... 85 6.2 PERCURSO METODOLGICO ............................................................................. 86 6.2.1 Estudo piloto ...................................................................................................... 86 6.2.2 Amostra e coleta de informaes..................................................................... 91 6.3 RESULTADOS E DISCUSSO .............................................................................. 94 6.3.1 Caracterizao dos entrevistados.................................................................... 94 6.3.1.2 Grupo A- Pais/Familiares.................................................................................. 94 6.3.1.2 Grupo B- Professores/Pedagogos .................................................................... 96 6.3.1.3 Grupo C- Profissionais do CENEP.................................................................... 98 6.3.2 Anlise e discusso........................................................................................... 100 6.3.2.1 Grupo A- Pais/Familiares.................................................................................. 101 6.3.2.2 Grupo B- Professores/Educadores ................................................................... 117 6.3.2.3 Grupo C- Profissionais do CENEP.................................................................... 138 7 CONSIDERAES FINAIS....................................................................................... 152 REFERNCIAS ............................................................................................................ 158 ANEXO A- ESCALA DE CONNERS-VERSO PARA PAIS E PROFESSORES........................................................................................................... 168 ANEXO B- ESCALA SNAP PARA PAIS E PROFESSORES..................................... 171 ANEXO C- ESCALA DE TRANSTORNO DE DFICIT DE ATENO/ HIPERATIVIDADE- VERSO PARA PROFESSORES ............................................... 174 ANEXO D- MODELO DE INSTRUMENTO UTILIZADO NA COLETA DE DADOS ROTEIRO DE ENTREVISTA COM O GRUPO A ( pais).............................................. 178 ANEXO E- MODELO DE INSTRUMENTO UTILIZADO NA COLETA DE DADOS ROTEIRO DE ENTREVISTA COM O GRUPO B (professores) ................................. 180 ANEXO F- MODELO DE INSTRUMENTO UTILIZADO NA COLETA DE DADOS ROTEIRO DE ENTREVISTA COM O GRUPO C(profissionais CENEP) .................. 183

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ANEXO G- MODELO DE INSTRUMENTO UTILIZADO NA COLETA DE DADOS ROTEIRO DE ENTREVISTA COM DR. SRGIO ANTONIUK..................................... 185

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LISTA DE TABELAS TABELA 1 CRITRIOS DIAGNSTICOS DO TDAH SEGUNDO o DSM-IV............... 62 TABELA 2 - HISTRIA CLSSICA DO TDAH .............................................................. 64

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LISTA DE ILUSTRAES FIGURA 1 - REA DE BROCA....................................................................................... 34 FIGURA 2 - REA DE WERNICKE ................................................................................ 34 FIGURA 3 - MODELO DE WERNICKE ATUALIZADO ................................................... 36 FIGURA 4 - AS TRS UNIDADES FUNCIONAIS DE LURIA ......................................... 39 FIGURA 5 - ESQUEMA DA FORMAO RETICULAR ATIVADORA............................ 41 FIGURA 6 FORMAO RETICULAR ......................................................................... 41 GRFICO 1 - DISTRIBUIO DO GRUPO A (PAIS/FAMILIARES) POR RELIGIO.... 95 GRFICO 2 - DISTRIBUIO DO GRUPO A (PAIS/FAMILIARES) POR GRAU DE INSTRUO................................................................................................................... 95 GRFICO 3 - DISTRIBUIO DO GRUPO A (PAIS/FAMILIARES) POR FAIXA ETRIA........................................................................................................................... 95 GRFICO 4 - DISTRIBUIO DO GRUPO A (PAIS/FAMILIARES) POR GRAU DE CONSANGINIDADE..................................................................................................... 96 GRFICO 5 - DISTRIBUIO DO GRUPO B (PROFESSORES) POR FORMAO ... 96 GRFICO 6 - DISTRIBUIO DO GRUPO B (PROFESSORES) POR PROFISSO ... 97 GRFICO 7 - DISTRIBUIO DO GRUPO B (PROFESSORES) POR TEMPO DE TRABALHO EM EDUCAO ......................................................................................... 97 GRFICO 8 - DISTRIBUIO DO GRUPO B (PROFESSORES) POR FAIXA ETRIA........................................................................................................................... 97 GRFICO 9 - DISTRIBUIO DO GRUPO B (PROFESSORES) POR VNCULO INSTITUCIONAL............................................................................................................. 98 GRFICO 10 - DISTRIBUIO DO GRUPO C (PROFISSIONAIS DO CENEP) POR SEXO .............................................................................................................................. 98 GRFICO 11 - DISTRIBUIO DO GRUPO C (PROFISSIONAIS DO CENEP) POR FAIXA ETRIA................................................................................................................ 99 GRFICO 12 - DISTRIBUIO DO GRUPO C (PROFISSIONAIS DO CENEP) POR PROFISSO ................................................................................................................... 99 GRFICO 13 - DISTRIBUIO DO GRUPO C (PROFISSIONAIS DO CENEP) POR FORMAO ................................................................................................................... 99 GRFICO 14 - DISTRIBUIO DO GRUPO C (PROFISSIONAIS DO CENEP) POR VNCULO COM A INSTITUIO UFPR.........................................................................100

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RESUMO A pesquisa tem como objetivo investigar luz da teoria histrico-cultural da formao social da mente, o papel da interao social na aprendizagem do aluno com Transtorno de dficit de ateno/hiperatividade -TDAH. A metodologia dialtica tem abordagem qualitativa, carter descritivo-participativo, modalidade estudo de caso, incluindo como tcnicas a observao participante, pesquisa bibliogrfica, entrevistas semi-estruturadas, anlise documental e por categorias. As informaes obtidas revelam que embora o TDAH apresente heterogeneidade clnica e etiolgica, este fato no deve ser impeditivo, mas imperativo para que os profissionais da educao conheam as bases neurais do transtorno. O aluno com TDAH, como qualquer outro, deve ser compreendido como uma unidade psicossomtica em que mente e corpo so interdependentes e para tanto, tornase fundamental a interdisciplinaridade entre educao e sade na formao dos educadores. A prtica social possibilitou que os familiares realizassem leituras mais amplas da realidade e com isso fossem reconstruindo sua conscincia e atribuindo novos significados ao comportamento e desenvolvimento de suas crianas; este novo nvel de pensamento levou-os a refletir sobre as possibilidades de transformao da realidade vivenciada por eles, motivando-os a um novo agir. Assim, passaram a incorporar novos discursos e aes bem como novas formas de interao com as crianas, com outros familiares, com a escola e com os profissionais da sade, fato que ensejou transformaes na escola e no modo dos educadores se posicionarem frente a essas crianas. A reflexo da prtica pedaggica revelou a necessidade dos educadores buscarem novos conhecimentos e estratgias que promovessem maior aprendizagem e desenvolvimento de seus alunos com TDAH, e mais ainda, levou-os a tomar conscincia dos benefcios que essas transformaes trouxeram para o seu trabalho com os outros alunos. Conclui-se que necessria uma mudana no modo de entender as limitaes e possibilidades do aluno com TDAH, e a partir disso se estabeleam relaes entre todos os sujeitos envolvidos; tais relaes devem ter significado para todos, de tal maneira que possibilitem a maximizao do potencial biolgico do indivduo pela ao do meio. Nesse sentido, a teoria da formao social da mente possibilita um novo olhar para o aluno com TDAH, compreendendo-o como sujeito histrico que apresenta um distrbio no substrato biolgico, mas que a partir da ao do outro, ou seja, a partir da mediao significativa pode transformar o menos da deficincia no mais da compensao.

Descritores: TDAH, educao e sade, aprendizagem, interao social.

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ABSTRACT The present study was conducted in order to investigate the role of the social interaction between educators, relatives and health professionals in the learning process of students with attention-deficit/hyperactivity disorder (ADHD), using the historical-cultural theory of the social construction of mind as basis. The dialectic methodology has a qualitative approach, a descriptive-participative character and the method chosen for doing the study was a case study. The research techniques used were participant observation, bibliographic research, semi-structured interviews, documental analysis and analysis by categories. The information obtained from literature allows us to state that although ADHD presents a huge heterogeneity of clinic symptoms, this fact should not be impeditive, but it should actually be imperative for education professionals to get to know the neural bases of the disorder. The TDAH student, as another student, should be understanding as a psychosomatic unity in which mind and body are interdependent so its basic the interdisciplinary between education and health in the formation of educators. The social practice permited that the relatives were able to have new perception of the reality and reconstruct their conscience and attribute new meanings for their children behavior and development. By doing so, they were able to incorporate new discourses and actions, as well as new ways of interaction with children, with other relatives, with school and with CENEP professionals. This fact propitiated transformations in the school and in the way educators would take their stands in front of these children, looking for knew knowledge and strategies which could help their learning and development processes. This means that it is necessary that the way of understanding the TDAH students limitations and possibilities changes, and that, by doing so, relations between all the people involved are established. These relations must have a meaning for all in such a way that it allows the maximization of the biological potential of the individual by the action of the environment. Therefore, the theory of the social construction of mind provided a different meaning for the children with ADHD, understanding them as a historic individual who presents a disorder in its biological substrate, but who, throughout the action of others, or in other words, throughout the expressive mediation can change the less of the disorder into the plus of the compensation.

Key words: ADHD, education and health, learning, social interaction.

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1. INTRODUO A aproximao entre educao e biologia vem sendo promovida h sculos nas vrias reas do conhecimento, mesmo assim ainda hoje muitos educadores mantm uma viso dicotomizada das concepes de corpo e mente. Esse entendimento da mente dissociada do corpo implica na idia que o corpo do aluno objeto de estudo dos profissionais da sade, cabendo educao, unicamente a tarefa de se preocupar com a mente. A questo mente x corpo, contudo, est presente nas discusses de filsofos e cientistas, e as vrias concepes defendidas desde a antiguidade at os dias atuais incluem-se em duas grandes vertentes: 1.monista (monismo)- admite que toda a natureza e as relaes de vida podem ser atribudas a uma unidade, seja em relao a sua substncia ou ainda em relao s leis que regem ordenao do universo; assim, segundo esta doutrina filosfica, a mente e o crebro so entidades inseparveis;- inclui, entre outras, as correntes filosficas mentalista (mentalismo), idealista (idealismo), e na modernidade o estruturalismo, a fenomenologia e o materialismo. 2. dualista (dualismo)admite a coexistncia de duas naturezas quaisquer que seja a ordem das idias, isto , dualismo da alma e corpo, matria e esprito, mente e crebro; os seus adeptos acreditam que o corpo ( crebro) e a mente so entidades separadas, sendo a natureza do corpo diferente da natureza da mente; inclui, entre outras, as correntes filosficas positivista (positivismo), empirista (empirismo) e na modernidade o racionalismo representado, por exemplo, por Ren Descartes. ( PINHEIRO, 2005, p.192-193). Mas ainda que a concepo de mente tenha passado, ao longo da histria, de algum lugar etreo para o crebro muitos educadores ainda entendem como exagero que a mente dependa das interaes crebro-corpo, em termos de filogenia, ontogenia e funcionamento atual. (DAMSIO, 1996, p.256). As discusses sobre a origem do comportamento por outro lado, historicamente relacionam a questo mente-corpo questo hereditariedade-ambiente tambm conhecida como natureza-criao, nature-nurture, inato-adquirido. A concepo nativista (inativista) em sntese admite que as caractersticas bsicas do homem esto prontas ao nascimento, devido ao seu dote nativo; a concepo ambientalista admite que o ambiente o principal responsvel pela formao das caractersticas bsicas do homem, ou seja, a mente do indivduo ao

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nascer uma tbula rasa a ser preenchida pela experincia; a concepo interacionista reconhece a participao tanto dos fatores ambientais quanto dos fatores hereditrios na determinao das caractersticas (traos, atributos, caracteres) fsicas e/ou comportamentais (normais ou patolgicas) do ser humano (PINHEIRO,1995 p.54). Destas concepes decorrem crenas sobre o comportamento humano que implicam na forma de pensar dos educadores. A posio nativista subsidia a idia que se nasce com determinadas tendncias e propenses que no podem ser alteradas pela aprendizagem, ou seja, um determinado aluno inteligente porque seu pai ou me tambm o , ou ainda, delinqente porque est no sangue da famlia. Pinheiro (1995, p.55) aponta dois erros nessa abordagem, o primeiro que no se transmite traos, caractersticas ou caracteres atravs das clulas sexuais, mas sim genes ou informao gentica, ou seja, caracteres adquiridos no so transmitidos por via biolgica. O segundo erro relaciona-se ao significado de inato, uma vez que caractersticas, traos ou caracteres que o indivduo apresente ao nascer (inato ou congnito) necessariamente no so hereditrios (genticos), pois podem ser causados por fatores ambientais. J a abordagem ambientalista implica na crena que o ambiente responsvel pela inscrio da histria de vida do indivduo em sua mente (que uma pgina em branco ao nascer). Dessa forma, o indivduo resultado da ao do ambiente que molda seu comportamento. Esta concepo implica que os docentes atribuam a aprendizagem exclusivamente a fatores ambientais tais como a determinao social, aos pr-requisitos (aquilo que o aluno deveria ter aprendido para subsidiar novos aprendizados), enfim, cabe ao professor, e antes dele famlia ensinar criana no s os contedos, mas tambm a lgica existente entre qualquer contedo. (BECKER, 2002, p.99). Embora, nos dias atuais, nenhum educador srio desconhea a concepo interacionista, a prtica pedaggica no revela este conhecimento, e o que se evidencia um nmero crescente de alunos com problemas, dificuldades, distrbios, dficits1 de aprendizagem que no so adequadamente atendidos e que tm, como conseqncia, a sua capacidade de aprendizagem comprometida.

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Os termos distrbios, dficits, transtornos, leses, entre outros, destacam a ocorrncia de disfunes neuronais, ou seja, alteraes na biologia (natureza) do indivduo. Os termos dificuldades e problemas, por outro lado, revelam a ocorrncia de alteraes no meio ambiente que acabam resultando no no aprender do aluno.

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Assim, essencial que o educador reconhea que embora constituam entidades separadas, mente e corpo so interdependentes e constituem a unidade psicossomtica que o educando. Enquanto materialista, a pesquisadora admite que as funes psicolgicas tm origem na atividade cerebral, e que no se pode pensar em desenvolvimento da inteligncia sem que se considere os vrios nveis de existncia do sistema nervoso - fenmenos psicolgicos, fisiolgicos, celulares e suas manifestaes moleculares - coexistindo simultaneamente em paralelo. (LENT, 2001, p.3). Marino (1987, p.36) ao discutir a problemtica mente crebro apresenta a teoria de identidade psiconeural ou teoria materialista da mente que tem como um dos corolrios o materialismo emergentista afirmando que os estados e processos mentais, embora sejam atividades do crebro, no so apenas fsicos, qumicos ou celulares, mas atividades complexas de conjuntos neuronais. As funes mentais seriam assim, funes especficas do Sistema Nervoso Central - SNC, emergentes em relao ao nvel fsico. Infere-se, portanto, a impossibilidade de se formar um conceito da funo mental sem sistema nervoso, isto , no h que se falar em mente sem corpo. A partir dessa concepo, tem-se claro o entendimento de educao como um processo de maximizao do potencial biolgico do indivduo, e do educador como profissional da aprendizagem que percebe cada aluno como nico. No mbito das polticas pblicas, embora a educao e a sade sejam constantemente referidas como reas prioritrias de atendimento, tem-se percebido, historicamente, que a agenda econmica sempre privilegiada em detrimento da agenda social, criando-se um abismo difcil de superar entre o desenvolvimento econmico e o desenvolvimento humano. Assim, considerando a distncia entre a universalidade e a eqidade de direito sade garantidas pela Constituio Federal, propostas a partir da abrangente definio de sade da OMS2 bem como a sucesso de fracassos evidenciados na educao, pensar a interface entre sade e educao de forma que uma promova a outra chega a parecer utpico. Entre os fatores apontados como causa desses fracassos na educao, destacam-se a desvalorizao da profisso de educador, a baixa remunerao de suas atividades, a m-formao dos docentes, o no investimento em programas de formao continuada, a superlotao das salas de aula, a falta de recursos materiais, entre outros.2

Segundo a OMS, a sade um estado de completo bem-estar fsico, mental e social e no consiste apenas na ausncia de doena ou de enfermidade. (OMS, 2005, p.1).

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Os maus resultados da educao brasileira e conseqentemente a repercusso provocada por eles em todas as outras reas (com destaque para a sade) pode ser percebida na literatura. A rea da educao prdiga em obras contemplando o fracasso escolar e suas causas, no entanto, a prtica pedaggica evidencia um distanciamento enorme entre o que se pensa e escreve, e o que se faz. A escola no est dando conta de seus alunos reais. a escola ideal para alunos ideais. a homogeneizao do ensino, todos aprendendo as mesmas coisas, da mesma forma, submetidos a avaliaes padronizadas onde, contraditoriamente, o currculo deve trabalhar a pluralidade e a diversidade, mas a prtica as desconsidera totalmente ( ABRAMOWICZ, 2003, p.166). Se isso problema para aqueles alunos considerados normais que dir quando a barreira da normalidade atravessada e se passa para o patolgico, como no caso dos distrbios de aprendizagem e das deficincias. Me de um menino com necessidades especiais, a autora comeou a se interessar por educao quando percebeu a dificuldade de todas as escolas, sejam pblicas (municipais, estaduais) ou privadas; das mais variadas concepes pedaggicas (tradicionais, construtivistas, montessorianas, entre outras); ou ainda especiais, em promover a aprendizagem e o desenvolvimento de sujeitos com necessidades especiais. Passando por vrios tipos de escola, comeou a observar que o fracasso ou sucesso na trajetria de seu filho no eram obra do acaso, mas sim estavam relacionados a alguns fatores que se repetiam, e mais ainda, que as limitaes biolgicas que ele tinha poderiam e estavam sendo superadas a partir de uma interveno social; seu filho tinha limitaes, mas no era a patologia. Perceber isto fez toda a diferena. Tudo que envolveu esta trajetria e esta descoberta faz parte do caminho percorrido pela autora at chegar ao estudo formal da educao e a esta pesquisa. A questo das diferenas individuais, das necessidades especiais, do fracasso escolar e de como isto tudo se situa no processo educacional tema de interesse da autora, despertado pela particularidade relatada, mas transcendendo a isso, pela pertinncia e atualidade do mesmo. A aceitao de que tanto os fatores biolgicos (nature) quanto os ambientais (nurture) interferem no desenvolvimento/aprendizagem do indivduo originou, como j referido antes, o paradigma interacionista. Entre os seus adeptos, contudo, h tericos

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com vises de mundo bastante diferentes. Da ser possvel discuti-lo a partir de diferentes escolas/ correntes filosficas. Destacando-se o eixo da discusso para a relao sade x doena, Minayo (2004, p.49) analisa as relaes de sade e doena e prtica mdica de acordo com trs marcos: positivismo- a concepo de sade e doena um fenmeno biolgico individual que compreende o social apenas como varivel, valorizando a tecnologia e a capacidade da medicina de erradicar doenas, alm de manifestar a dominao corporativa dos mdicos em relao aos outros campos do conhecimento; fenomenologia- a concepo de sade e doena um fenmeno abrangente, pensada como bem estar integral: fsico, mental e social, enfatizando a necessidade de se desenvolver prticas que promovam esse bem estar, bem como a reorientao do sistema de sade para o tratamento das causas ambientais, comportamentais e sociais que provoquem a doena; marxismo a concepo de sade e doena percebida como processo fundamentado na sua base material de produo e nas caractersticas biolgicas e culturais com que se manifestam; as transformaes sociais ocorrem a partir das contradies e conflitos, e os fatos humanos so historicamente determinados e tm leis e categorias prprias. O materialismo histrico a cincia filosfica do marxismo e o materialismo dialtico a sua base filosfica. O primeiro o caminho terico na busca da dinmica do real e o segundo o mtodo atravs do qual se aborda este real. (MINAYO, 2004, p.51). Como cincia filosfica do marxismo, o materialismo histrico estuda as leis sociolgicas que caracterizam a vida da sociedade, de sua evoluo histrica e da prtica social dos homens, no desenvolvimento da humanidade. (TRIVIOS, 1987, p.51), pois revela que a partir da produo das condies materiais de existncia o homem constri sua prpria histria. Neste sentido,sade representa o processo no qual o homem capaz de conceber idealmente sua existncia, dispondo de uma base material que lhe permita realizar os movimentos necessrios para buscar conferir concretude ao projeto idealizado. a condio na qual o homem capaz de humanizarse. (ALBUQUERQUE, 2002, p.9).

O materialismo dialtico prope um processo de compreenso do mundo em que se estabelea a conexo, a interdependncia e a interao. Nele esto presentes leis e categorias fundamentais. As categorias marxistas esto ligadas ao problema da filosofia,

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que a ligao entre matria e idia, e se formaram no desenvolvimento histrico do conhecimento, isto , o sistema de categorias surgiu como resultado da unidade do histrico e do lgico. (TRIVIOS, 1987, p.55). Pode-se dizer que a categoria essencial do materialismo dialtico a contradio que se apresenta na realidade objetiva, e as trs categorias bsicas so a matria, a conscincia e a prtica social. A matria a categoria que designa a realidade objetiva refletida pelas sensaes, mas que existe independente delas. A conscincia a propriedade da matria que possibilita a reflexo da realidade objetiva, atravs das sensaes, representaes, conceitos, e juzos. A prtica social entendida pelo marxismo como toda atividade material orientada para a transformao da natureza e da vida social. (TRIVIOS, 1987, p.60). Este estudo tem como raiz filosfica o materialismo marxista, tendo sua autora adotado como categorias de anlise a contradio, a conscincia e a prtica social. A crena marxista da pesquisadora aproximou-a da teoria da formao social da mente de Lev Semionovitch Vigotski3 (1896-1934), dos estudos de neuropsicologia de Aleksandr Romanovich Luria (1903-1978), e da teoria da atividade de Aleksei Nicolaevich Leontiev (1904-1979); teorias estas que tomaram a matriz marxista como referncia e passaram a fornecer elementos para a compreenso do desenvolvimento humano como histrico e social. Para estes autores, a aprendizagem gera desenvolvimento e este cultural e, portanto, histrico, pois a partir de sua ao sobre a natureza o homem transforma a si mesmo, construindo sua prpria histria. Neste contexto, elegeu-se o papel da interao social na aprendizagem e desenvolvimento do aluno com Transtorno de Dficit de Ateno / Hiperatividade (TDAH), luz da teoria scio-histrica vigotskiana, como objeto de investigao, tema e matriz terico-filosfica do estudo. O TDAH um distrbio psiquitrico que apresenta como sinais cardinais a desateno, a hiperatividade e a impulsividade. Estas caractersticas por si s afetam o desempenho acadmico, os relacionamentos familiar e social, o ajustamento psicossocial e a atividade laborativa; alm disso, em mais de 50% dos casos de TDAH3

Encontra-se na literatura vrias grafias: Vigotski, Vygotsky, Vigotskii, Vigotsky; neste trabalho optou-se pelo uso da forma Vigotski.

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existe co-morbidade com transtornos de aprendizado, transtornos do humor e da ansiedade, transtornos do comportamento, do abuso de lcool e de substncias, o que requer uma interveno especializada. (ROHDE 2003, p.12). Atualmente, na escola e na mdia, as crianas que apresentam falta de limites e indisciplina so referidas como hiperativas. O comportamento hiperativo dessas crianas, no entanto, no pode (e no deve) ser confundido com TDAH que, enquanto distrbio inclui alteraes no funcionamento cerebral, identificadas ou no pelas tcnicas atuais de neuroimagem. Ainda assim, prevalecem na escola, o desconhecimento, os pseudoconceitos do senso comum e os rtulos, fazendo com que o aluno TDAH no receba a interveno especializada necessria. Em outras palavras, embora se saiba que no contexto educacional brasileiro uma srie de fatores contribua para o fracasso escolar, no caso especfico do TDAH, um fator importante a ser considerado o desconhecimento por parte dos educadores de que este um transtorno biopsicosocial. Dessa forma, precisa ser estudado nas suas vrias dimenses. O objetivo da pesquisa investigar luz da teoria scio-histrica da formao social da mente, o papel da interao social ( entre sujeitos TDAH, educadores, familiares e profissionais da sade) na aprendizagem do aluno TDAH. Neste sentido, o estudo parte dos seguintes problemas: que tipo de interao social (teraputica, familiar, educacional) possibilita e favorece uma mediao significativa de forma que ocorra aprendizagem e desenvolvimento do aluno com TDAH? Como se desenvolve o processo de reelaborao de percepes, representaes, conceitos, juzos, isto , como os vrios grupos (terapeutas, famlia e escola), a partir da interao que estabelecem entre si constroem/reconstroem sua conscincia? Como a atividade prtica e terica de diferentes indivduos pode promover o desenvolvimento e enriquecimento da prtica social em relao ao aluno com TDAH? Quais as contradies que se apresentam nesse processo? A metodologia dialtica tem abordagem qualitativa, carter descritivo-participativo, e adota como modalidade de pesquisa o estudo de caso. Este realizado no ambulatrio do TDAH do Centro de Neurologia Peditrica (CENEP) do Hospital das Clnicas da UFPR, delimitando-se a pesquisa ao Programa desenvolvido no ambulatrio de TDAH. As tcnicas de coleta e anlise de informaes incluem reviso bibliogrfica (realizada a

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partir da localizao, leitura e discusso de fontes primrias e secundrias), observao participante, entrevistas semi-estruturadas, pesquisa e anlise documental e anlise a partir das categorias marxistas: contradio, conscincia e prtica social. O estudo est estruturado em cinco captulos. No primeiro captulo, aborda-se as idias desenvolvidas por Lev Semionovitch Vigotski sobre o desenvolvimento filo e ontogentico humano que subsidiam sua teoria da formao social da mente, teoria esta fundamentada na matriz terica filosfica marxista. Ainda, neste captulo, discute-se aspectos neuropsicolgicos da formao social da mente estudados por Aleksandr Romanovich Luria. No segundo captulo, com o objetivo de aprofundar conhecimentos sobre o desenvolvimento da inteligncia, discute-se aspectos da neurocincia cognitiva do sculo XXI, com foco nas bases neurais da percepo e da ateno que subsidiam a compreenso do TDAH. No terceiro captulo, abordam-se as teorias pedaggicas, destacando a concepo histrico crtica como teoria pedaggica que d suporte teoria psicolgica de Vigotski. No quarto captulo, aprofunda-se o conhecimento sobre o TDAH, analisando-se sua etiologia, diagnstico e tratamentos (mbito individual, familiar e escolar). No quinto e ltimo captulo, descrevem-se os procedimentos metodolgicos da pesquisa emprica, caracterizando-se a instituio CENEP, a amostra, descrevendo o percurso metodolgico e apresentando-se os resultados, a discusso e a interpretao das informaes a partir de categorias marxistas de anlise.

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2. APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO NA PERSPECTIVA VIGOTSKIANA O homem um ser social que para sobreviver necessita de condies ofertadas pela sociedade; necessita produzir sua existncia, adaptando a natureza a si e ajustando-a de acordo com as suas necessidades. E faz isso atravs do trabalho. A ao intencional do homem na natureza atravs do trabalho o que promove o desenvolvimento histrico, ou seja, a construo do mundo cultural. Essa compreenso da realidade humana como construda pelos prprios homens, a partir da produo de suas condies materiais de existncia ao longo do tempo, fundamentou o desenvolvimento da teoria scio-histrica de construo social da mente proposta por Lev Semionovitch Vigotski. Vigotski entendia ser necessria uma teoria que mediasse as idias marxistas e o estudos dos fenmenos psquicos. Apsicologia carecia de uma teoria geral, uma vez que se apresentava fragmentada em vrias correntes filosficas construdas em bases pouco consistentes. Assim, no contexto scio poltico em que vivia, a Revoluo Socialista de 1917, Vigotski desenvolveu a teoria de construo social da mente. Embora tenha morrido cedo (aos 38 anos) a vida de Vigotski foi marcada por uma intensa produo intelectual, sendo que no perodo de 1924 a 1934 (seus ltimos dez anos de vida) o ritmo de seu trabalho se intensificou, produzindo quase 200 publicaes e participando de inmeros projetos de trabalho em vrias cidades. Neste perodo, Vigotski conheceu A.R.Luria e A.N.Leontiev que se tornaram seus discpulos e permaneceram fiis a ele at sua morte; e mais ainda, pois atravs de seus trabalhos deram continuidade ao pensamento singular de Vigotski. Os trs tornaram-se conhecidos como Troika, sendo Vigotski o lder inquestionvel com sua viso crtica da psicologia e da histria. (MOLON, 2003, p.35). A matriz do pensamento de Vigotski, portanto, o marxismo; neste sentido, a base de sua concepo de homem e de mundo funda-se no materialismo histrico e no materialismo dialtico, que conforme destaca Sirgado (2000, p.3) constitui-se no ncleo duro da sua obra. O materialismo histrico de Marx a (...) teoria pela qual as idias jurdicas, morais, filosficas, religiosas, etc., dependem, so condicionadas ou so o reflexo e a justificao da estrutura econmica(...) (REALE; ANTISERI, 1991, p.196), o que significa, que existe um relacionamento entre a estrutura econmica e as produes

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mentais do homem, ou seja, o homem produz sua conscincia e mais ainda a conscincia social. Dessa forma, os homens se caracterizam por um permanente vir a ser e as relaes entre os homens precisam ser construdas pela produo material, isto , o trabalho, e historicamente pela organizao social do trabalho. Neste sentido, a teoria marxista postula o trabalho como princpio educativo, e traz para a educao a tarefa de educar pelo trabalho e no para o trabalho, isto , para o trabalho amplo, filosfico, trabalho que se expressa na prxis (articulao da dimenso prtica com a dimenso terica, pensada). (PIRES, 1997,p.86) A dialtica marxista consiste em pensar a realidade de uma forma que difere da lgica formal, isto , atravs da lgica dialtica. Para tanto, preciso que se aceite a contradio presente na realidade, e se retire desta contradio a essncia no aparente no real, ou seja, parte-se do real aparente (forma como o objeto se apresenta) e por meio de reflexes chega-se a uma compreenso mais elaborada da essncia do objeto, o real pensado. Da a importncia fundamental das categorias marxistas, pois a partir das categorias mais simples e fundamentais da teoria marxista pode-se chegar a uma compreenso mais plena do objeto estudado. A abordagem scio-histrica tendo como aporte terico o materialismo histricodialtico tenta superar os reducionismos das concepes empiristas e idealistas, agregando algumas caractersticas prprias. Freitas (2002, p.22) destaca que tal abordagem busca, entre outros, construir uma nova psicologia a partir da articulao dialtica dos aspectos internos e externos do indivduo, isto , considerando a relao do sujeito com a sociedade em que est inserido. Assim, conforme esta mesma autora, sua preocupao encontrar mtodos de estudar o homem como unidade de corpo e mente, ser biolgico e ser social, membro da espcie humana e participante do processo histrico. (FREITAS, 2002, p.22). O pensamento e o mtodo marxista tiveram papel vital na produo das idias de Vigotski, que visavam destacar a interao entre o desenvolvimento das formas superiores do comportamento consciente e as relaes sociais do indivduo com o meio externo. Dessa forma, contrapunha-se s correntes psicolgicas da poca sejam associacionistas (cujos adeptos acreditavam que a conscincia era um conjunto de contedos mentais) ou funcionalistas (cujos adeptos admitiam a conscincia como uma funo do organismo). (PADILHA, 2004, p.20).

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Para melhor compreenso da proposta terica de Vigotski, na unidade seguinte desenvolve-se algumas idias bsicas do estudo realizado por ele e Luria sobre a histria do comportamento humano.

2.1. DESENVOLVIMENTO FILO E ONTOGENTICO Na tentativa de compreender o comportamento humano, Vigotski investigou o caminho da evoluo psicolgica desde o macaco at o homem cultural, passando por trs linhas ou etapas do desenvolvimento: evolutiva, histrica e ontogentica4; e demonstrou que o comportamento do homem cultural produto dessas trs linhas, s podendo ser compreendido a partir da anlise das mesmas. Cada uma dessas etapas caracterizada por eventos que marcam a transio do desenvolvimento para um novo caminho, quais sejam, o uso de ferramentas pelos macacos antropides como fim da etapa orgnica no desenvolvimento evolutivo e como principal pr-requisito para o desenvolvimento histrico do comportamento; o trabalho e o desenvolvimento da fala humana e outros signos psicolgicos utilizados pelo homem primitivo, significando o incio do comportamento cultural ou histrico do homem e o desenvolvimento infantil, onde ocorre uma segunda linha de desenvolvimento acompanhando os processos de maturao e crescimento, ou seja, o desenvolvimento cultural do comportamento. Dessa forma, na histria do comportamento humano, cada uma dessas trs etapas crticas so consideradas como ponto de partida para um processo posterior de evoluo, no dispostas em uma mesma seqncia linear, mas sim conectadas de forma que um processo prepara dialeticamente o outro, transformando-se e mudando para um novo tipo de desenvolvimento. ( VYGOTSKY; LURIA,1996, p.51-53). Em outras palavras, o comportamento passa por trs estgios principais em seu desenvolvimento: um primeiro estgio, representado pelas reaes hereditrias ou comportamentos inatos5, estes, em geral, servem para satisfazer as necessidades bsicas de um organismo, ou seja, a autopreservao e a reproduo; o segundo

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Refere-se ao desenvolvimento do indivduo desde a fecundao at a maturidade para a reproduo opondo-se filogenia que se refere a histria evolucionria das espcies biolgicas. 5 Embora Vigotski tenha equiparado reaes hereditrias a comportamentos inatos, o conhecimento gentico atual nos permite saber que nem tudo que inato hereditrio.

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estgio o de treinamento ou de reflexos condicionados, e depende da experincia individual do animal; e o terceiro estgio representado pelo desenvolvimento do intelecto. As experincias de Kohler com macacos antropides6, forneceram subsdios para que Vigotski investigasse o surgimento do intelecto no comportamento dos animais, uma vez que aquele pesquisador relatou a capacidade dos macacos de, diante de uma situao desafiadora, encontrar uma soluo e ainda transferi-la a outras situaes. (VYGOTSKI; LURIA, 1996, p.83). Este prenncio de uma funo intelectual, no entanto, no o suficiente, para que os macacos dem um salto qualitativo para a humanizao. O que marca a linha divisria entre o macaco e o homem primitivo a ausncia, no primeiro, da capacidade de produzir um signo. Embora os macacos tenham manifestado a capacidade de inventar e utilizar instrumentos, esto muito longe de utiliz-los para a atividade de trabalho, ou seja, de ter a capacidade de utilizar estes instrumentos no para se adaptar natureza, mas para domin-la fazendo-a servir a seus fins. O trabalho o fator principal no processo de transio do macaco para o homem. O desenvolvimento da mo e sua transformao ao mesmo tempo em rgo e produto do trabalho promoveu o desenvolvimento simultneo de todo organismo humano, uma vez que o trabalho ensejou a atividade conjunta, o apoio mtuo e a necessidade de conversar, pois os homens passaram a ter algo a dizer uns para os outros. Alm disso, o trabalho passou a exigir do homem o controle de seu comportamento, controle esse que se tornou possvel na medida em que desenvolveu a capacidade de controlar a natureza. Dessa forma, o trabalho possibilitou o salto qualitativo da evoluo biolgica para o desenvolvimento histrico, uma vez que, a partir desse, surgiram os pr-requisitos para o desenvolvimento histrico e cultural humano, quais sejam, o autocontrole e o uso de signos. Para Vigotski e Luria (1996, p.95), o comportamento do homem moderno, cultural, no produto da evoluo biolgica, ou resultado do desenvolvimento infantil, mas tambm produto do desenvolvimento histrico e segundo eles, este desenvolvimento tem sido estudado menos adequadamente do que deveria uma vez que a psicologia histrica tem consideravelmente menos material sua disposio. Os autores apontam trs teorias do desenvolvimento histrico cultural: a primeira,6

que

Wofgang Khler realizou seus experimentos entre 1912 e 1920 na Ilha de Tenerife observando e utilizando como sujeitos experimentais nove macacos chimpanzs (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p.59).

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admite a lei da associao, isto , o estabelecimento de conexes entre os elementos da experincia com base na contigidade e semelhana.Dessa forma,O mecanismo da atividade mental, a prpria estrutura dos processos de pensamento e comportamento no diferem num homem primitivo e num homem cultural, e toda a especificidade do comportamento e do pensamento de um homem primitivo em comparao com a de um homem cultural pode, segundo essa teoria, ser compreendida e explicada a partir das condies em que o selvagem vive e pensa. (VIGOTSKI; LURIA, 1996, p.97).

A segunda teoria admite que tipos diversos de psicologias individuais correspondem a tipos diversos de sociedade, ou seja, na sociedade primitiva desenvolve-se o pensamento pr-lgico ou mstico, em que o trao principal a lei da participao. A terceira teoria admite que o desenvolvimento do homem como espcie biolgica completou-se basicamente quando comeou a histria do homem. Isto no significa que a biologia humana tenha se imobilizado neste momento, mas sim que se tornou dependente do desenvolvimento histrico da sociedade humana, estando a ele subordinada. Em outras palavras, a histria do homem a histria da passagem como condio para o desenvolvimento do ser scio cultural: da ordem da natureza ordem da cultura, ou seja, Vigotski considera o substrato biolgico

Podem-se distinguir, dentro de um processo geral de desenvolvimento, duas linhas qualitativamente diferentes de desenvolvimento, diferindo quanto sua origem: de um lado, os processos elementares que so de origem biolgica; de outro, as funes psicolgicas superiores, de origem scio cultural. A histria do comportamento da criana nasce do entrelaamento dessas duas linhas. (Vigotski, 2003a, p.61).

A histria pessoal faz parte da histria humana e por isso as transformaes que ocorrem no plano ontogentico so casos particulares das que ocorrem no plano filogentico. O processo de transformao do homem primitivo em homem cultural e o processo de sua evoluo biolgica contudo, no coincidem, um no representa a continuao do outro, mas cada um est sujeito a suas prprias leis especficas. (VIGOTSKI; LURIA, 1996, p.106). As idias defendidas por Vigotski e Luria (1996, p.106) superam o pensamento dualista, na medida em que postulam o substrato biolgico como condio fundamental para o desenvolvimento do homem scio-cultural. Quando consideram as funes

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elementares como naturais e as superiores como culturais, estes autores propem uma nova configurao para as funes biolgicas que no desaparecem, mas adquirem uma nova forma de existncia: elas so incorporadas na histria humana. (SIRGADO, 2000, p.5.)

2.2 A TEORIA HISTRICO-CULTURAL DA FORMAO SOCIAL DA MENTE O elemento-chave no estudo e interpretao do desenvolvimento das funes psicolgicas por Vigotski a abordagem dialtica de Engels, que admite que a ao do homem sobre a natureza de forma a modific-la, cria novas condies naturais para sua existncia. Desse modo, a psicologia proposta por Vigotski no busca a mera descrio, mas sim, as relaes dinmico-causais que subjazem ao fenmeno, e para tanto estuda essas relaes e a gnese dos fenmenos psicolgicos. Outro requisito bsico no mtodo dialtico e, portanto, no trabalho de Vigotski o estudo do fenmeno historicamente, isto , no seu processo de mudana. (VIGOTSKI, 2003a, p.85). Isto porque, coadunada ao pensamento de Marx e Lenin, a psicologia sovitica:sustenta que a conscincia a forma mais elevada de reflexo da realidade: ela no dada a priori, nem imutvel e passiva, mas sim formada pela atividade e usada pelos homens para orient-los no ambiente, no apenas adaptando-se a certas condies, mas tambm reestruturando-se. (LURIA, 1990, p.23).

A partir da utilizao do mtodo proposto em estudos com crianas bem como da anlise dos trabalhos de outros pesquisadores do desenvolvimento infantil, Vigotski afirma que:No processo de seu desenvolvimento, a criana no s cresce, no s amadurece, mas, ao mesmo tempo e isso a coisa mais fundamental que se pode observar em nossa anlise da mente infantil-a criana adquire inmeras novas habilidades, inmeras formas de comportamento.No processo de desenvolvimento, a criana no s amadurece, mas tambm se torna reequipada. exatamente esse reequipamento que causa o maior desenvolvimento e mudana que observamos na criana medida que se transforma num adulto cultural. isso que constitui a diferena mais pronunciada entre o desenvolvimento dos seres humanos e o dos animais. (VIGOTSKI; LURIA, 1996, p.177).

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Outro ponto fundamental da teoria de Vigotski a idia que a relao homemmundo mediada por instrumentos que possibilitam a atividade prtica, dentre eles a linguagem, forma de mediao responsvel no s pela comunicao mas tambm pelo pensamento generalizante, ou seja, a capacidade de ordenar o real em categorias. Para Vigotski no existe pensamento sem linguagem, e:(...) o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que d origem s formas puramente humanas de inteligncia prtica e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prtica, ento duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, convergem. (VIGOTSKI, 2003a, p.33).

O uso de instrumentos permite que o homem moderno conquiste a natureza atravs deles, diverso do homem primitivo que o fazia com as mos, pernas, olhos ou ouvidos; dessa forma, as capacidades naturais do homem moderno podem ser maximizadas atravs do uso de dispositivos artificiais tais como ferramentas, culos, telescpio, meios de comunicao e transporte, entre outros. Nesse sentido, o ambiente industrial e cultural modifica gradativa e continuamente o ser humano, uma vez que o homem aprende a usar racionalmente suas capacidades naturais. Assim, o comportamento humano torna-se social e cultural no s em seu contedo, mas tambm em seus mecanismos. Partindo desses pressupostos, Vigotski e Luria (1996, p. 180) analisam o desenvolvimento da criana, discordando da idia de que existe semelhana entre este e a evoluo da espcie humana, pois quando a criana nasce j existe um ambiente cultural-industrial formado, embora ela no esteja ainda integrada a ele. Assim, a criana passa por um perodo primitivo pr-cultural, mas na medida em que se integra num ambiente adequado, sofre transformaes rpidas de forma a ter seu comportamento reconstrudo a partir do ambiente social, isto , passa a utilizar formas de adaptao h muito tempo criadas pelos adultos que a rodeiam. Dessa forma, o processo de internalizao interpsquico, sendo posteriormente transformado em intrapsquico, pois todas as funes no desenvolvimento da criana aparecem duas vezes: primeiro, no nvel social, e, depois, no nvel individual (VIGOTSKI, 2003a, p.75). A interao social fundamental na teoria vigotskiana, pois sem ela no existe fator humano.

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Ao discutir o sentido do social no pensamento vigotskiano, Sirgado afirma queSe o desenvolvimento visto como um acontecimento de natureza individual, mesmo admitindo que ocorre em interao com o meio, a insero social do indivduo constitui realmente um problema, pois implica na adaptao das condutas individuais s prticas sociais, consideradas, em tese, fenmenos de natureza diferente. Dessas maneira, a socializao assemelha-se ao fenmeno migratrio humano que exige uma adequao das caractersticas sociais e culturais do imigrante s condies do novo meio. Vigotski inverte a direo do vetor na relao indivduosociedade. No lugar de nos perguntar como a criana se comporta no meio social, diz ele, devemos perguntar como o meio social age na criana para criar nelas as funes superiores de origem e natureza sociais. (SIRGADO, 2000, p.52)

Vigotski, por outro lado, rejeita a idia de desenvolvimento cognitivo como uma acumulao gradual de mudanas isoladas. Acredita queo desenvolvimento da criana um processo dialtico complexo caracterizado pela periodicidade, desigualdade no desenvolvimento de diferentes funes,metamorfose ou transformao qualitativa de uma forma em outra, embricamento de fatores internos e externos, e processos adaptativos que superam os impedimentos que a criana encontra. (VIGOTSKI, 2003a, p.97).

A maturao, neste contexto surge como resultado do aprendizado, no sendo, portanto, pr-requisito para este. Estas idias divergem, entre outros, da concepo de desenvolvimento e aprendizagem que Jean Piaget desenvolveu em sua teoria denominada Epistemologia Gentica. Embora este estudo no vise realizar uma anlise comparada das teorias de Vigotski e Piaget, entende-se que cabem aqui algumas consideraes, j que este tema est muito presente na educao e ainda nas obras de Vigotski, que algumas vezes se mostra simpatizante ao pensamento de Piaget e em outras bastante crtico. Piaget, por outro lado, s tomou conhecimento da obra de Vigotski vinte e cinco anos aps sua publicao, quando o autor sovitico j tinha falecido h muito tempo, dessa forma nunca tiveram a oportunidade de ter um embate direto de idias, uma vez que Piaget ao comentar as crticas de Vigotski o fez luz dos seus trabalhos mais recentes. No h dvidas, contudo, de que estas teorias tm pontos em comum, defendidos por um nmero crescente de adeptos. No que se refere ao modelo epistemolgico que as sustenta, pode-se dizer que ambas so fundamentadas no paradigma interacionista, na medida em que para Vigotski tudo se estabelece na interao entre o sujeito e o meio (essencialmente social), e para Piaget a interao ocorre entre o sujeito e o meio fsico e social; ambas so

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construtivistas j que para Piaget o sujeito constri o seu conhecimento em duas dimenses complementares, como contedo e como forma ou estrutura (BECKER, 1994, p.93) e para Vigotski o sujeito se constitui/constri a partir das relaes sociais, ou seja, ns nos tornamos ns mesmos atravs do outro. Smith, Dockrell e Tomlinson (1997, p.8-10) so alguns dos autores que defendem a aproximao das duas teorias, ressaltando que embora haja uma tendncia em interpretar o trabalho de Vigotski e Piaget de modo polarizado, possvel uma interpretao mais inclusiva, uma vez que embora o trabalho de cada um deles tenha idias nicas, tambm apresentam pontos de aproximao: a viso construtivista, o fator interao social e o substrato biolgico como necessrios para o desenvolvimento. Moscovici (1996, p.72) aponta para a influncia marxista na obra de Piaget, argumentando que ambos passaram pelo mesmo campo terico e tentaram resolver problemas similares com diferentes aportes histricos e prioridades. A pesquisadora concorda com Sawaia ( 2003, p.10) quando pontua que a obra de Vigotski apresenta grandes linhas de construo mas tambm pontos de tenso e de impreciso tanto por sua complexidade quanto por seu inacabamento, acrescentando que essas duas caractersticas favorecem diferentes interpretaes e classificaes em quadros tericos distintos mesmo que antagnicos. No se pode, portanto, esquecer as concepes filosficas que do subsdio as duas teorias, j que Vigotski fundamenta-se no materialismo e Piaget no idealismo, e embora ambas faam parte da doutrina filosfica monista, tm diferenas fundamentais, j que os idealistas acreditam na matria como mera criao da mente e os materialistas acreditam na primazia da matria, o que implica, como j referido neste trabalho, que todas as funes psicolgicas so originadas da atividade cerebral. (PINHEIRO, 2005, p.193). Feitas estas breves consideraes, retoma-se as idias de Vigotski, recorrendo a Sirgado (2000, p.53) que aponta para trs tipos de relaes estabelecidas por Vigotski em sua teoria, quais sejam, as relaes entre o social e o cultural, o social e o simblico e o social e as funes mentais superiores. Neste sentido, Sirgado afirma que, para Vigotski, o social anterior ao cultural, j que possvel se falar em sociabilidade biolgica; essa sociabilidade biolgica, sob ao humana, torna-se ao mesmo tempo condio e resultado do aparecimento da cultura e dessa forma, pode-se dizer que tudo que cultural social. O smbolo ou signo se equipara ao instrumento, sendo portanto criao do homem, e, como tal, faz parte da ordem da cultura e da natureza, tendo

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assim uma existncia independente do organismo. Desse modo, aplica-se a ele o carter social. Assim, Vigotski atribui atividade simblica uma funo organizadora especfica que invade o processo do uso de instrumento e produz formas fundamentalmente novas de comportamento. (VIGOTSKI, 2003a, p. 32), o que significa que na emergncia da atividade simblica que ocorre a passagem do plano natural para o plano cultural da histria humana. Em relao s funes superiores, Vigotski acredita que so relaes sociais internalizadas, sendo o papel do outro essencial na constituio cultural do homem, j que este se torna o que atravs do outro, e neste sentido o homem se constitui atravs da mediao do outro. No a simples mediao instrumental, mas sim a mediao num sentido mais profundo, aquela que permite a apropriao/ internalizao do mundo cultural pelo sujeito. Assim,o desenvolvimento cultural o processo pelo qual o mundo adquire significao para o indivduo, tornando-se um ser cultural. Fica claro que a significao a mediadora universal nesse processo e que o portador dessa significao o outro, lugar simblico da humanidade histrica.(SIRGADO, 2000, p.66).

A partir de vrias investigaes envolvendo a formao de conceitos cientficos na infncia, Vigotski busca estabelecer as inter-relaes em reas definidas do aprendizado escolar, quais sejam, a leitura e a escrita, a gramtica, a aritmtica, as cincias sociais e as cincias naturais. Segundo o autor, a gramtica e a escrita ajudam a criana a passar para um nvel mais elevado do desenvolvimento da fala sendo que o desenvolvimento das bases psicolgicas para o aprendizado de matrias bsicas no precede esse aprendizado, mas se desenvolve numa interao contnua com as suas contribuies. (Vigotski, 2003b, p.126). Em relao aritmtica, seus estudos demonstraram que as vrias etapas na aprendizagem da aritmtica podem no ter o mesmo valor para o desenvolvimento, ou seja, a curva do desenvolvimento no coincide com a curva do aprendizado escolar; em geral, o aprendizado precede o desenvolvimento.(VIGOTSKI, 2003b, p.127). No estudo de outras matrias escolares, o autor concluiu que todas as matrias escolares bsicas atuam como disciplina formal, cada uma facilitando o aprendizado das outras; as funes psicolgicas por elas estimuladas se desenvolvem ao longo de um processo complexo.(VIGOTSKI, 2003b, p.128).

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Os estudos de Vigotski, por outro lado, destacam a natureza social e cultural do desenvolvimento das funes superiores, que pode ser percebida na dependncia da cooperao dos adultos no aprendizado das crianas quando estes atuam na zona que o autor denominou de zona de desenvolvimento proximal:

a distncia entre o nvel de desenvolvimento real, que se costuma determinar atravs da soluo independente de problemas, e o nvel de desenvolvimento potencial, determinado atravs da soluo de problemas sob a orientao de um adulto ou em colaborao com companheiros mais capazes. (VIGOTSKI, 2003a, p.112).

Vigotski enfatiza a preocupao com o funcionamento emergente e atravs do conceito de zona de desenvolvimento proximal aponta ao educador caminhos possveis de se chegar ao desenvolvimento, ou seja, nesta distncia entre o que a criana capaz de fazer com ajuda e o que pode fazer autonomamente que o meio social pode atuar para que se atinja o mximo desenvolvimento possvel. Na perspectiva vigotskiana, o conhecimento no se explica nem como mero ato do sujeito nem como mero efeito do objeto, nem ainda como resultado da interao sujeito < > objeto, mas como uma relao dialtica mediada semioticamente, entre o sujeito e o objeto (PINO, 2001, p.40), entendendo-se como mediao semitica a mediao social. E ainda, conforme acrescenta Pino (2001, p.42), o mundo significa para o indivduo porque, primeiramente, significou para os outros. Com isso, na perspectiva histrico-cultural, afirma-se que o conhecer um processo social e histrico, no um fenmeno individual e natural. Nesse sentido, todas as funes no desenvolvimento da criana aparecem primeiro no nvel social, ou seja, entre pessoas (interpsicolgico), e, depois no nvel individual, isto , no interior da criana (intra psicolgico); esta transformao ocorre como resultado de uma srie de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento. (VIGOTSKI, 2003a, p.75). Na obra em que trata especialmente da defectologia, Vigotski desenvolve o conceito de compensao: Por um lado, o defeito a limitao, a debilidade, a diminuio do desenvolvimento; por outro lado, justamente porque origina dificuldades, estimula o movimento intensificado para o desenvolvimento (VYGOTSKI, 1997, p.14). O autor acrescenta que a possibilidade de se transformar o menos da deficincia no mais

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da compensao proporciona o caminho para se chegar s peculiaridades de como o educador deve conduzir a criana de forma que esta se desenvolva. Tal concepo permite que se tenha um novo olhar para o aluno com TDAH, no lhe impondo o diagnstico como rtulo, mas fazendo dele um instrumento para que, ao se conhecer suas possibilidades biolgicas, a escola atue construindo o ser sociocultural capaz de transformar o menos da deficincia no mais da compensao. Neste contexto, faz-se necessrio o estudo da dimenso neurobiolgica da ateno e do TDAH, iniciando-se pelos aspectos neuropsicolgicos da formao social da mente a partir do trabalho de Luria, com o qual Vigotski contribuiu antes de sua morte. 2.3 ASPECTOS NEUROPSICOLGICOS DA FORMAO SOCIAL DA MENTE 2.3.1 Aspectos histricos da Neuropsicologia Tambm chamada neurocincia cognitiva, a neuropsicologia comeou a se desenvolver em meados do sculo XX numa rea de interface entre neurologia e psicologia tendo como objeto de estudo as capacidades mentais mais complexas (como linguagem, autoconscincia, memria) a partir da relao entre o sistema nervoso, o comportamento e a cognio. Os estudos de Aleksandr Romanovich Luria, sobre a organizao funcional do sistema nervoso constituem um marco no ensino da Psicologia no Brasil, pois foi atravs de sua obra Fundamentos de Neuropsicologia que, pela primeira vez, na dcada de 1980, se buscou superar a crena na dicotomia mente/corpo na formao dos referidos profissionais. Antes, contudo de se discutir a teoria desenvolvida por Luria, faz-se necessrio retomar os primeiros avanos da cincia no estudo das funes mentais. Na Idade Mdia, filsofos j propunham a idia localizacionista ao pensarem nos ventrculos cerebrais como locais onde se situavam as funes mentais. No sculo XIX, a teoria da seleo natural proposta pelo naturalista Charles Robert Darwin (1809-1882) forneceu subsdios para se pensar a mente como produto do funcionamento do sistema nervoso humano e, a partir da descoberta da estrutura no homognea do crtex cerebral, passou-se a acreditar que as diferentes funes mentais pudessem estar alojadas nas diferentes pores do crtex. Um dos mais rduos

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defensores dessa crena foi Franz Joseph Gall (1758-1828), anatomista austraco, que acreditava que o crebro era um conjunto de rgos separados, cada um com diferentes funes. As assim chamadas faculdades mentais estavam sediadas em reas cerebrais particulares e distintas ou seja, cada uma delas tinha o seu local especfico no crebro; o grau de desenvolvimento de determinada faculdade era capaz de originar proeminncias ou depresses na correspondente regio craniana, o que implicava na possibilidade de a partir do formato da cabea se poder avaliar a personalidade do indivduo. Tais idias deram origem doutrina frenolgica7 que, embora nunca tivesse uma base cientfica, serviu e serve, ainda hoje, como argumento de defesa de idias preconceituosas manifestadas atravs de expresses como testa baixa e cabea chata em aluso a pouca inteligncia ou rebaixamento intelectual. Tais expresses tambm se fazem presentes no mbito da escola contribuindo para inferiorizar o aluno. A investigao cientfica das funes mentais, contudo, teve incio em 1861 quando o anatomista francs Pierre Paul Broca (1824-1880) postulou, a partir do estudo do crebro de pacientes que apresentavam, quando vivos, distrbios acentuados da fala, que o tero posterior do giro frontal inferior esquerdo era o centro para a memria motora das palavras e que uma leso nessa rea levava perda da fala expressiva. Esta descoberta abriu novas perspectivas para a pesquisa cientfica dos processos mentais, pois a partir deste trabalho localizou-se pela primeira vez uma funo mental complexa. (GUSMO; SILVEIRA; CABRAL FILHO, 2000, p.1149-1152). Alm disso, Broca demonstrou pela primeira vez a diferena existente entre as funes dos hemisfrios cerebrais direito e esquerdo, no que se refere s funes superiores da fala, comprovando assim o fenmeno da dominncia cerebral, isto , que na maioria dos seres humanos (99% nos destros e 30 % nos canhotos) os centros da linguagem esto no hemisfrio esquerdo. (DAMSIO e DAMSIO, 2004, p.46) Uma dcada aps a descoberta de Broca, o psiquiatra alemo Carl Wernicke (1848-1905) descreveu casos em que leses no mesmo hemisfrio esquerdo situadas mais posteriormente acarretavam a perda da compreenso da fala audvel embora em nada afetassem a fala expressiva (motora).

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Este termo (do grego phrn, phrens= alma, inteligncia, esprito) foi cunhado por Johann C. Spurzheim (17761832), colaborador de Gall que o ajudou a disseminar suas idias nos Estados Unidos e na Europa.

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Essas primeiras reas receberam os nomes de rea de Broca e rea de Wernicke em homenagem aos seus descobridores, e sua localizao pode ser vista na figura 1 e 2 abaixo: FIGURA 1- rea de Broca

Fonte: Lent (2001, p.635).

FIGURA 2: rea de Wernicke

Fonte: Lent (2001, p.636).

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Os distrbios nessas reas ficaram consagrados na literatura mdica pelo nome de afasia, denominao essa criada por Sigmund Freud (1856-1939). Entendendo-se como afasias os distrbios da linguagem devidos a leses nas regies realmente envolvidas com o processamento lingstico. (LENT, 2001, p.635). As descobertas destes pesquisadores indicavam que leses na rea de Broca so responsveis por uma afasia de expresso o indviduo torna-se incapaz de falar ou apresenta fala no fluente sem dficits motores propriamente ditos-; j leses na rea de Wernicke provocam uma afasia de compreenso embora sua fala seja fluente, demonstra no ter compreendido o que lhe foi dito, usando palavras e frases desconexas-. (LENT, 2001, p.636) Embora estas descobertas tenham representado grande avano, a delimitao anatmica delas permaneceram vagas, j que a variabilidade das leses depende dos territrios de irrigao sangunea atingidos pela leso. Alm disso, esse modelos foram atualizados a partir de novas pesquisas. Wernicke, ainda no sculo XIX, elaborou um sistema de processamento neural da linguagem prevendo outros tipos de afasia; em seus estudos, previu que haveria uma conexo entre as reas de Broca e aquela descoberta por ele; uma leso nesse feixe provocaria uma afasia de conduo os pacientes so capazes de falar fluentemente, mas cometem erros de repetio e de resposta aos comandos verbais. Esse modelo de Wernicke, em que a rea de Broca conteria as memrias dos movimentos necessrios para expressar fonemas, palavras e frases, e a rea de Wernicke conteria as memrias dos sons que compes as palavras, possibilitando a compreenso, e que estas duas reas deveriam estar conectadas para que o sujeito pudesse associar a compreenso das palavras ouvidas sua prpria fala, fez muito sentido durante vrias dcadas, no entanto tem sido atualizado recentemente a partir da observao de psicolingistas. Da mesma forma, a concepo original de Broca tambm foi revista, sendo que o modelo atual conexionista envolve a interao de diversas reas corticais, mas restritas que as definidas por Broca e Wernicke conforme se pode ver na figura 3. (LENT, 2001, p.637). Esta nova concepo surgiu a partir do estudo dos sintomas de pacientes com pequenas leses que permitiram a possvel identificao dos sistemas postulados pelos psicolingistas.

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FIGURA 3: Modelo de Wernicke atualizado

Fonte: Lent (2001, p.638). Ang+ SM= giro angular + supramarginal. BP= Broca posterior. IT=crtex nfero-temporal. M1= rea motora primria. PF= crtex pr-frontal. PT= plo temporal. TP= crtex temporal posterior. W= rea de Wernicke.

Os estudos demonstrando que formas complexas de atividade mental assim como funes elementares (tais como movimento e sensao) podiam ser localizadas em regies circunscritas do crtex cerebral ensejaram durante mais de meio sculo a realizao de vrias pesquisas com o objetivo de demonstrar que os processos mentais complexos eram resultados do funcionamento de reas locais individuais. Esta abordagem de estudo dita reducionista. Entre seus opositores, destaca-se o neurologista ingls John Hughlings Jackson (1834-1911) que defendeu a idia que a organizao cerebral dos processos mentais complexos deveria ser abordada do ponto de vista do nvel de construo destes processos e no da sua localizao. Esta idia, contudo, s foi desenvolvida 50 anos mais tarde.

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No sculo XX d-se o incio da neuropsicologia moderna, destacando-se entre os pesquisadores Donald Olding Hebb (1904-1985), Karl Spencer Lashley (1890-1958) e Aleksandr Romanovitch Luria. Em 1949, Hebb props uma teoria para a memria com base na plasticidade sinptica, isto , props uma teoria do funcionamento do crtex cerebral a partir de conexes neuronais modificveis. Hebb admitiu a possibilidade da transmisso de mensagens entre os neurnios no serem um fenmeno rgido e imutvel, mas com possibilidades de ser modulvel de acordo com as circunstncias. Assim, o trao mnsico estaria ligado formao e a persistncia de uma rede de conexes entre as clulas, embora nenhuma delas contenha a informao necessria restituio da lembrana.(SANVITO, 1991, p.89). Lashley, apoiado em seus trabalhos experimentais com ratos, formulou duas leis: a lei de ao de massa que em sntese admite que o dficit produzido por uma leso proporcional quantidade de tecido destrudo, logo, a massa cerebral, e no seus componentes neuronais, que importante para o funcionamento cerebral; e a lei da equipotencialidade segundo a qual o dficit no depende da localizao da leso. (SANVITO, 1991,p.96). Embora o trabalho deste autor tenha influenciado profundamente o conhecimento neuropsicolgico, suas leis no so mais aceitas atualmente. Luria, influenciado pelas obras de Ivan Petrovitch Pavlov (1849-1936), Pioter Kuzmitch Anokhin (1898-1974), e ainda, como j referido, por Vigotski, investigou as funes superiores nas suas relaes com os mecanismos cerebrais e desenvolveu a noo do crebro funcionando como um todo, considerando o ambiente social como determinante fundamental dos sistemas funcionais responsveis pelo comportamento humano. Os estudos de Luria mostraram-se fundamentais para a consolidao da neuropsicologia no meio cientfico e para o aperfeioamento dos especialistas em neuropsicologia.

2.3.2 A Teoria do Sistema Funcional luz de A. R. Luria Luria, tendo como fundamento a teoria da formao social da mente de Vigotski, desenvolveu uma teoria do funcionamento cerebral contrria idia da localizao estrita, postulando que:

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(...) os processos mentais humanos so sistemas funcionais complexos e que eles no esto localizados em estreitas e circunscritas reas do crebro, mas ocorrem por meio da participao de grupos de estruturas cerebrais operando em concerto, cada uma das quais concorre com a sua prpria contribuio particular para a organizao desse sistema funcional. (LURIA, 1981, p.27).

Tais idias s so corretamente compreendidas a partir da reviso dos conceitos bsicos - funo, localizao e sintoma propostos pelo autor no desenvolvimento de seu trabalho. Assim, o termo funo no deve ser compreendido como funo de um tecido particular, mas como um sistema funcional inteiro que tem como caractersticas a presena de uma tarefa constante (invarivel), desempenhada por mecanismos diversos (variveis), que levam o processo a um resultado constante (invarivel) (LURIA, 1981, p.13), e que apresenta uma composio complexa incluindo sempre uma srie de impulsos aferentes e eferentes8. Os processos mentais, especialmente as formas mais complexas de atividade mental no podem, portanto, ser encaradas como uma faculdade isolada localizada em uma rea particular do crebro, acrescentando:O fato de terem sido todas elas formadas no curso de um longo desenvolvimento histrico, de serem sociais em sua origem e complexas e hierrquicas em sua estrutura, e de serem todas elas baseadas em um sistema complexo de mtodos e meios (...) implica que as formas fundamentais da atividade consciente devem ser consideradas como sistemas funcionais complexos; conseqentemente, a abordagem bsica do problema da sua localizao no crtex cerebral deve ser radicalmente alterada. (LURIA, 1981, p.15).

Revendo o conceito de localizao a partir do estudo sobre as estruturas funcionais em geral e as funes psicolgicas superiores, Luria desenvolveu em seu trabalho a noo do sistema nervoso funcionando como um todo, considerando o ambiente social como determinante fundamental dos sistemas funcionais responsveis pelo comportamento humano. Neste sentido, afirmava que as funes psquicas a modificaes em seus elementos constitutivos. Desse modo:(...) as funes mentais, como sistemas funcionais complexos, no podem ser localizadas em zonas estreitas do crtex ou em agrupamentos celulares isolados, mas devem ser organizadas em sistemas de zonas funcionando em concerto, desempenhando cada uma dessas zonas o seu papel em um sistema funcional complexo, podendo cada um desses territrios estar localizado em reas do crebro completamente diferentes e freqentemente bastante distantes uma da outra. (LURIA, 1981, p.16).8

do

homem so produtos de uma larga evoluo, possuindo estruturas complexas e sujeitas

Impulsos aferentes so aqueles que levam a informao dos rgos sensoriais ao SNC- e impulsos eferentes so as que levam a informao do SNC para o Sistema Nervoso Perifrico SNP- (terminaes nervosas, gnglios e nervos).

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Quando reviu o conceito de sintoma, Luria utilizou suas concluses anteriores sobre funo e localizao, afirmando que, se a atividade mental um sistema funcional complexo envolvendo a participao de vrias reas corticais operando em concerto, uma leso de cada uma dessas zonas ou reas pode acarretar desintegrao de todo o sistema funcional, e dessa maneira o sintoma ou perda de funo particular no nos diz nada sobre a sua localizao. (LURIA, 1981, p.19). Dessa forma, Luria substituiu a tarefa de descobrir a localizao dos processos mentais no crtex por outra, ou seja, a de investigar de que forma a atividade mental alterada por diferentes leses cerebrais, definindo assim a direo da neuropsicologia a partir de suas investigaes. Suas pesquisas identificaram trs principais unidades (blocos) cerebrais funcionais que tm participao necessria em qualquer tipo de atividade mental. Estas unidades podem ser descritas como uma unidade responsvel pela regulao do tono e da viglia (o crebro desperto), uma segunda unidade responsvel pela obteno, processamento e armazenamento das informaes provenientes do mundo exterior (o crebro informado) e a terceira unidade para programar, regular e verificar a atividade mental (o crebro programador), conforme se pode ver na figura 4 abaixo.

FIGURA 4- As trs unidades funcionais de Luria

Fonte: Luria (1970, p.66).

Estas estruturas exibem uma estrutura hierarquizada que consiste em trs zonas corticais construdas uma acima da outra: primria, secundria e terciria. A rea primria responsvel pela projeo do impulso, caracterizando a sensao. A

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secundria se responsabiliza pela projeo e associao do impulso, processando as informaes, caracterizando a percepo. E a terciria, que se caracteriza pela percepo global, encarrega-se pela associao ou integrao do impulso, sendo responsvel pelas formas mais complexas de atividade mental no homem. A primeira unidade responsvel pela manuteno do tono cortical e o estado de viglia que so essenciais para o curso organizado da atividade mental. As estruturas responsveis por esta manuteno e regulao situam-se no tronco cerebral9 e mesencfalo. A formao reticular faz parte dessa unidade e constitui-se em estrutura formada por uma agregao de neurnios de tamanhos e tipos diferentes separados por uma rede de fibras nervosas; mantm conexes com o crebro, o cerebelo, a medula e com ncleos do nervo craniano e atravs do sistema reticular ascendente e descendente desempenha um papel decisivo na ativao do crtex e na regulao do estado de sua atividade. Segundo Luria:Essas duas partes da formao reticular constituem, assim, um nico sistema funcional verticalmente arranjado, um nico aparelho auto-regulador construdo segundo o princpio do anel reflexo, capaz de alterar o tono do crtex mas ele prprio tambm sob influncia cortical, sendo regulado e modificado por mudanas que ocorram no crtex e adaptando-se prontamente s condies ambientais e ao curso da atividade. (LURIA, 1981, p.30).

Dessa forma, Luria admite a formao reticular ativadora como a parte mais importante da primeira unidade funcional do crebro. Esta estrutura tem grande importncia nas formas mais elementares de ateno, o que ser visto mais adiante. Para que se compreenda melhor este mecanismo, na figura 5 pode-se observar o esquema de funcionamento da formao reticular ativadora descrito por Luria; j, na figura 6, tem-se a imagem da anatomia desta estrutura (imagem a partir do conhecimento atual da anatomia do sistema nervoso). A segunda unidade situa-se nas regies laterais do neocrtex sobre a superfcie convexa dos hemisfrios, ocupando regies posteriores incluindo as regies visual (occipital), auditiva (temporal) e sensorial geral (parietal); formada por neurnios isolados

Embora o termo atualmente utilizado seja tronco enceflico e no tronco cerebral (j que este no pertence ao crebro mas ao encfalo), optou-se por manter a terminologia utilizada pelo autor.

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FIGURA 5- Esquema da formao reticular ativadora

Fonte: Luria (1981, p.31)

FIGURA 6- Formao reticular

Fonte: Vilela (2005)

que recebem impulsos individualizados e os transmitem a outros grupos de neurnios. (LURIA, 1981, p.49). um sistema para a recepo, codificao e armazenamento de informaes.

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Esta unidade tem grande capacidade modal, isto , suas partes esto adaptadas para a recepo de informaes visuais, auditivas, vestibulares ou sensoriais gerais. Sua base formada por reas primrias, circundadas por zonas corticais secundrias e com zonas tercirias situadas nas fronteiras entre os lobos. O funcionamento depende, portanto, da atuao combinada das zonas corticais uma vez que envolve sensao (primria), percepo (secundria) e associao (terciria). A organizao e funcionamento desta unidade submetem-se a trs leis: a lei da estrutura hierrquica das zonas corticais em que o funcionamento da zona terciria controla o da zona secundria e este o da zona primria; a lei da especificidade modal decrescente, uma vez que nessa unidade, as zonas primrias possuem uma especificidade modal mxima, isto , um nmero grande de neurnios com funes altamente diferenciadas, enquanto que nas reas secundrias e tercirias predominam os neurnios associativos, o que implica numa especificidade modal bem menor; e a lei da lateralizao progressiva das funes, ou seja, nas reas primrias as estruturas tm papis idnticos nos dois hemisfrios cerebrais, no entanto, nas zonas secundrias e tercirias, as funes comeam a diferir radicalmente de um hemisfrio para o outro. (LURIA, 1981, p.62). Estes princpios possibilitam as formas mais complexas de funcionamento cerebral uma vez que esto na base das atividades cognitivas. A terceira unidade funcional, responsvel pela programao, regulao e verificao a organizadora da atividade consciente. Suas estruturas localizam-se nas regies anteriores dos hemisfrios, anteriormente ao giro pr-central, sendo este um aparelho efetor do crtex. De forma diferente da segunda unidade, os processos na unidade terciria seguem em direo descendente, isto , os planos e programas so formados nas zonas secundrias e tercirias, passando s estruturas da atividade motora que envia os impulsos para a periferia. Outra caracterstica que as distingue que a terceira unidade no contm zonas modalmente especficas (mas formada por sistemas eferentes, motores, estando sob influncia de estruturas aferentes). As reas pr-motoras da regio frontal desempenham o papel de zona secundria. A parte mais importante da terceira unidade representada pelos lobos frontais, uma vez que esta regio apresenta um sistema rico em conexes de natureza bidirecional tanto com os nveis inferiores do crebro quanto com outras regies do crtex, o que segundo Luria representa uma posio favorvel tanto para a recepo e sntese do complexo sistema de impulsos aferentes que chegam de todas as partes do

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crebro, como para a organizao de impulsos eferentes, de forma que elas podem regular todas essas estruturas.(LURIA, 1981, p.66). Os lobos frontais so responsveis pela orientao do comportamento tanto em relao ao presente quanto ao futuro, e no desempenham apenas a funo de sntese de estmulos externos, de preparao para a ao e de formao de programas, mas tambm a de levar em conta o efeito da ao levada a cabo e de verificar que ela tenha tomado o curso adequado.(LURIA, 1981, p.72). Realizam, ainda, papel importante no estado de ativao que acompanha todas as formas de atividade consciente, uma vez que mantm ricas conexes com a formao reticular ativadora. Estas unidades, conforme j mencionado, operam em concerto, e embora cada uma oferea sua contribuio individual, somente a partir do funcionamento combinado e interativo pode-se entender os mecanismos cerebrais da atividade mental. A concluso de Luria quanto s unidades funcionais aceita por muitos neuropsiclogos atuais na investigao dos chamados distrbios de aprendizagem, entre eles Antunha (2000, p. 33); Ciasca (2000, p.127); Palangana (2000, p.25); Damasceno e Guerreiro ( 2000, p.14); PADILHA (2001, p.43). No decorrer de seu trabalho, Luria desenvolveu mtodos qualitativos de avaliao neuropsicolgica, a partir do entendimento do crebro como uma rede interdependente, isto , uma funo mental superior pode sofrer prejuzo se qualquer conexo da estrutura funcional em que esteja envolvida tenha algum problema, mesmo que se situe distante do local que sofreu a leso ou distrbio. O trabalho de Luria foi e ainda referncia para que se investigue a neuropsicologia da aprendizagem (cotidiana ou acadmica); atravs da avaliao neuropsicolgica possvel se estabelecer a interveno necessria atravs de estratgias adequadas de forma a possibilitar o desenvolvimento do potencial de cada indivduo. Os estudos de Luria sobre algumas funes neuropsicolgicas como ateno, memria, linguagem, funes executivas contriburam de forma significativa para o grande avano das neurocincias no final do sculo XX e incio do sculo XXI, o que se abordar no prximo captulo.

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3 NEUROCINCIA COGNITIVA NO SCULO XXI

As neurocincias tm apresentado enormes avanos cientficos e a cada dia fazse mais descobertas sobre o funcionamento do sistema nervoso, incluindo tcnicas de neuroimagem, que possibilitam o estudo do encfalo vivo e viabilizam o estudo de diferentes regies enceflicas quando submetidas a distintas condies. Na neurobiologia os estudos tm apontado a estreita ligao entre a atividade bioqumica do crebro e os processos cognitivos, estabelecendo-se uma base molecular para os processos mentais, entre eles a memria e a aprendizagem. J na neurocincia cognitiva ou neuropsicologia, tem-se destacado a atuao interdisciplinar, com a contribuio de vrios profissionais possibilitando a elaborao de mais conhecimento e a aplicao deste no desenvolvimento do potencial das pessoas que apresentam distrbios cognitivos e emocionais. Entre esses profissionais ressaltamse os educadores que tm como objeto de investigao o processo ensinoaprendizagem. Segundo Gil (2002, p.1) a neuropsicologia tem trs objetivos. O primeiro, de contribuir para o diagnstico, na medida em que, a partir de um novo olhar sobre o sujeito, parte-se da anlise do distrbio e atravs de testes pode-se esclarecer a etiologia; o segundo o objetivo teraputico j que promove a reeducao do sujeito portador do distrbio; e por fim, o terceiro, que o autor denomina cognitivo, no sentido da neuropsicologia ser instrumento de promoo do conhecimento do funcionamento do crebro normal, criando um vnculo entre a neurologia e as cincias humanas. O estudo da neuropsicologia pressupe o conhecimento do funcionamento cerebral e, para tanto, parte-se da unidade fundamental do sistema nervoso que o neurnio. O neurnio a unidade sinalizadora do sistema nervoso. uma clula especializada, com vrios prolongamentos para a recepo de sinais e um nico para a emisso de sinais (LENT, 2001, p.68). Assim, os neurnios so responsveis pela recepo e transmisso dos estmulos do meio externo e do interior do corpo. Em essncia, todo neurnio possui uma membrana plasmtica que envolve um citoplasma sendo que este apresenta organelas que desempenham diferentes funes: o ncleo (que contm a maior parte da informao gentica da clula), as mitocndrias (usinas de energia para o funcionamento celular e que tambm contm DNA), entre

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outras. Axnios e dendritos so prolongamentos citoplasmticos com funes diferenciadas: axnios, especializados na transferncia de informao entre pontos distantes do sistema nervoso e dendritos, especializados na recepo de informao. Os neurnios apresentam grande variedade morfolgica e funcional, apresentando como caracterstica comum a capacidade de gerar sinais eltricos que funcionam como unidades de informao. O sistema nervoso formado ainda por uma segunda classe de clulas, os glicitos ou clulas gliais que coletivamente compem a neuroglia. Estas clulas possuem uma variedade de forma e funo menor que a dos neurnios, mas tm participao de grande importncia na infra-estrutura do tecido nervoso, pois so responsveis pela sustentao mecnica dos neurnios, conduzem nutrientes do sangue para as clulas nervosas, armazenam glicognio, so clulas de defesa no caso de infeco ou leso do tecido nervoso, entre outras. Ou seja, desempenham funes de retaguarda para que os neurnios possam exercer suas atividades sinalizadoras. (LENT, 2001, p.68). Os neurnios especializam-se em tarefas definidas associando-se entre si atravs da transmisso sinptica (transferncia de informao atravs de uma sinapse10). Lent (2001, p.98) conceitua sinapse como a unidade processadora de sinais do sistema nervoso. Trata-se da estrutura microscpica de contato entre um neurnio e outra clula, atravs da qual se d a transmisso de mensagens entre as duas. As sinapses podem ser eltricas ou qumicas, sendo que estas so majoritrias e aquelas ocorrem especialmente em neurnios imaturos e glicitos adultos. As sinapses qumicas tm a capacidade de modificar as mensagens transmitidas de acordo com inmeras circunstncias; sua estrutura especializada no armazenamento de substncias neurotransmissoras11 e neuromodeladoras12 que, liberadas na fenda sinptica (espao entre as membranas pr e ps-sinpticas), provocam alterao de potencial eltrico que poder influenciar o dis