intelectuais orgÂnicos em tempos de pÓs modernidade

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  • 373Cad. Cedes, Campinas, vol. 26, n. 70, p. 373-391, set./dez. 2006Disponvel em

    Giovanni Semeraro

    INTELECTUAIS ORGNICOS EM TEMPOS DEPS-MODERNIDADE

    GIOVANNI SEMERARO*

    RESUMO: No Brasil, a recente crise poltica e cultural vem gerandoum amplo debate para rediscutir a funo dos intelectuais na socieda-de. Tendo como pano de fundo as mudanas socioeconmicas nomundo, este texto apresenta algumas anlises da nova configuraoque os intelectuais vm assumindo no contexto da ps-modernidade.Destaca a figura do intelectual desenhada por Marx, com a criao dafilosofia da prxis, e retoma a funo do intelectual orgnicodelineada por Gramsci. O texto evidencia os traos originais que emer-gem das reflexes de Gramsci, apresenta uma releitura de algumas desuas categorias e aponta caminhos para atualiz-las em relao ao nossotempo.

    Palavras-chave: Intelectuais. Educao. Poltica. Filosofia. Gramsci.

    ORGANIC INTELLECTUALS IN POST-MODERNITY

    ABSTRACT: In Brazil, the current political and cultural crisis allowsfor a wide discussion regarding the function of intellectuals in soci-ety. Considering the worldwide socio-economic changes, this textpresents some analyses of the new role assumed by intellectuals inpost-modernity. It highlights the intellectual figure drawn by Marxwhen creating his philosophy of praxis, and goes over the functionof the organic intellectual as delineated by Gramsci. It stresses theoriginal features emerging from Gramscis reflections, presents a re-interpretation of some of his categorizations and points out ways ofadapting them to our current situation.

    Key words: Intellectuals. Education. Politics. Philosophy. Gramsci.

    * Doutor em Educao, professor de Filosofia da Educao da Universidade Federal Fluminense(UFF) e coordenador do Ncleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia Poltica e Educao (NUFIPE).E-mail: [email protected]

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    Intelectuais orgnicos em tempos de ps-modernidade

    O desenho do novo intelectual em Marx e Gramsci

    A unidade de cincia e poltica em Marx

    m 1845, quando Marx e Engels escreviam a Ideologia alem, o mun-do das ordens no existia mais. Na Europa, a intensa atividade nasfbricas e a agitao poltica revolucionavam as relaes sociais, pro-

    vando que a sociedade podia ser recriada pela iniciativa e a audcia de di-ferentes protagonistas. Ento, em contraposio burguesia instalada noscentros de poder, tambm irrompiam no cenrio da histria classes orga-nizadas de trabalhadoras que carregavam aspiraes prprias e lutavam porum outro projeto de sociedade.

    Nesse contexto, os intelectuais no podiam se limitar mais ao mun-do das idias e das palavras. Assim, enquanto lanava suas crticas ao idea-lismo abstrato, ao positivismo cientificista e ao materialismo vulgar, Marxmostrava, com seu envolvimento nas lutas operrias, que estava despon-tando um outro tipo de intelectual: um ser, ao mesmo tempo, cientista,critico e revolucionrio.

    Nascia, ento, a filosofia da prxis. E, com ela, novos intelectuaispoliticamente compromissados com o prprio grupo social para fazer eescrever a histria e, por isso, capazes de refletir sobre o entrelaamentoda produo material com as controvertidas prticas da reproduo sim-blica.

    Mais do que elucubraes mentais, agora se fazia necessrio co-nhecer o funcionamento da sociedade, descobrir os mecanismos de do-minao encobertos pela ideologia dominante e os enfrentamentos dasclasses na disputa pelo poder. Com isso, os intelectuais no podiam seesconder atrs da neutralidade cientifica e ficar alheios s contradiesdo seu tempo. Eram impelidos a se definir nos conflitos da histria e atomar partido.

    A prpria cincia descobria-se envolvida nessas vicissitudes. Paraentender em profundidade os problemas humanos e sociais, de fato, osintelectuais precisavam estar sintonizados com as dinmicas sociais, po-lticas e econmicas do seu tempo. Por isso, ao mesmo tempo em queMarx procura desvendar os mecanismos de acumulao do capital, de-fronta-se com os Philosophes que continuavam a acreditar em mudar omundo s pelo pensamento e pelas atividades da conscincia (Marx,

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    1998b, p. 9). Diversamente dessa posio, Marx indicava que a fabrica-o de conceitos e de teorias no acontece no vazio da mente, mas den-tro de determinados processos histrico-econmicos e em sintonia comseus protagonistas polticos. Desse modo, a compreenso do mundo hu-mano tornar-se-ia tanto maior quanto mais os intelectuais analisassem ascontradies dos centros de produo e mais prximos estivessem das re-voltas dos injustiados, os nicos que podiam introduzir um projetouniversalizador de sociedade. Portanto, era preciso que os intelectuais-polticos se colocassem no lugar das vitimas do sistema, adquirissem atica dos defraudados e se revestissem das suas energias revolucionriaspara fazer parte do movimento real que supere o estado de coisas exis-tentes (Marx, 1989, p. 32).

    Marx estava convencido, de fato, que as classes desapropriadas eos povos saqueados possuam a inteligncia objetiva, o ponto de vistamais concreto e radical proveniente da violncia sofrida, do trabalho ali-enado, das necessidades elementares desatendidas, das relaes sociais ehumanas dissolvidas. Assim, se a verdadeira face da sociedade burguesaencontrava-se nos trabalhadores explorados e nos territrios colonizados(Marx, 1978, p. 265), a partir destes tambm precisava ser encontradoo caminho da revoluo para fazer avanar a histria em direo liber-dade e sociabilidade universal. S o processo revolucionrio romperia ocrculo da explorao, inauguraria uma nova epistemologia, criaria umnovo individuo social e traaria as estratgias polticas para a emanci-pao dos subjugados, no se limitando a levantes eventuais da multi-do anrquica que, incomodada, podia reivindicar mudanas ou buscaransiosamente a modernizao, favorecendo, assim, o contnuo reajustedo sistema.

    A emergncia de um projeto alternativo, originado no proletaria-do, e a conquista da sua hegemonia, com o apoio dos intelectuais, leva-riam, para Marx, a uma sociedade verdadeiramente democrtica(Abensour, 1998, p. 83). Assim, enquanto desmascara o carter ideol-gico do capitalismo e a sua funcionalidade violncia e manutenodo poder centralizado, Marx promove a organizao dos trabalhadoreslocal e mundialmente e recria, de forma inaudita e desafiadora, a ativi-dade poltico-intelectual, convencido de que a filosofia encontra no pro-letariado as suas armas materiais, assim como o proletariado encontra nafilosofia as suas armas espirituais (Marx, 1983, p. 173).

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    Intelectuais orgnicos em tempos de ps-modernidade

    A originalidade do intelectual orgnico de Gramsci

    Desde que havia sido desencadeada, a nova concepo de mundoinaugurada por Marx tinha municiado muitas organizaes operrias e ins-pirado diversos intelectuais e polticos. Em sintonia com essa viso, Gramscitambm acreditava que a compreenso de si mesmo e das contradies dasociedade acontecem pela insero ativa nos embates hegemnicos. Por isso,aprofunda a estreita ligao entre intelectuais, poltica e classe social, mos-trando que a filosofia, tal como a educao, deve tornar-se prxis polticapara continuar a ser filosofia e educao (Gramsci, 1975, p. 1.066).

    Consciente da centralidade dos intelectuais no mundo contempo-rneo, Gramsci reserva a essa questo um espao significativo em seus es-critos. Ao vivenciar como poucos a nova figura do intelectual militante(Frosini, 2000, p. 108), capta as complexas dinmicas de expanso da so-ciedade civil, que vinha ampliando de forma indita as expresses intelec-tuais na superestrutura. Mas, em contraposio s teorias que na sua po-ca defendiam a elitizao dos intelectuais (Benda, 1979), que se assustavamcom o avano das massas (Ortega y Gasset, 1980), que desprezavam a de-mocracia (Nietzsche, 1990, 202-203) ou separavam a poltica da ci-ncia (Weber, 1993), Gramsci valoriza com singularidade o saber popular,defende a socializao do conhecimento e recria a funo dos intelectuais,conectando-os s lutas polticas dos subalternos (Gramsci, 1975, p.1.505-1506).

    Em seus escritos, alm de uma ampla gama de tipos de intelectuais(urbanos, industriais, rurais, burocrticos, acadmicos, tcnicos, profissio-nais, pequenos, intermedirios, grandes, coletivos, democrticos etc.), en-contra-se uma interpretao original das suas funes. Gramsci, de fato,rompe com o lugar comum que entendia os intelectuais como um grupoem si, solto no ar, autnomo e independente (idem, ibid., p. 1.513).Contra a mentalidade que definia os intelectuais a partir da sua qualificaointerior, Gramsci (op. cit., p. 1.516) observa que O erro metodolgico maisdifundido, ao que parece, consiste em ter procurado este critrio de distin-o no que intrnseco s atividades intelectuais, ao invs de busc-lo noconjunto do sistema de relaes em que essas atividades (e, portanto, os gru-pos que as personificam) se encontram, no conjunto das relaes sociais.

    Deixando de consider-los de maneira abstrata, avulsa, como castaseparada dos outros, Gramsci apresenta os intelectuais intimamente entre-laados nas relaes sociais, pertencentes a uma classe, a um grupo social

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    vinculado a um determinado modo de produo. Toda a aglutinao emtorno de um processo econmico precisa dos seus intelectuais para se apre-sentar tambm com um projeto especfico de sociedade:

    Todo grupo social, ao nascer do terreno originrio de uma funo essen-cial no mundo da produo econmica, cria tambm, organicamente, umaou mais camadas de intelectuais que conferem homogeneidade e consci-ncia da prpria funo no apenas no campo econmico, como tambmno social e poltico: o empresrio capitalista gera junto consigo o tcnicoda indstria, o cientista da economia poltica, o organizador de uma novacultura, de um novo direito etc. (Idem, ibid., p. 1.513)

    Daqui, a designao de intelectuais orgnicos distintos dos inte-lectuais tradicionais. Estes, para Gramsci, eram basicamente os intelec-tuais ainda presos a uma formao socioeconmica superada. Eram osintelectuais estagnados no mundo agrrio do Sul da Itlia. Eram o clero,os funcionrios, a casa militar, os acadmicos voltados a manter oscamponeses atrelados a um status quo que no fazia mais sentido. Dis-tantes das dinmicas socioeconmicas em fermentao do Norte da It-lia, onde os intelectuais de tipo urbano cresciam junto com a indstriae estavam ligados s suas vicissitudes (idem, ibid., p. 1.520), os inte-lectuais tradicionais ficavam empalhados dentro de um mundo antiqua-do, permaneciam fechados em abstratos exerccios cerebrais, eruditos eenciclopdicos at, mas alheios s questes centrais da prpria histria.Fora do prprio tempo, os intelectuais tradicionais consideravam-se in-dependentes, acima das classes e das vicissitudes do mundo, cultivavamuma aura de superioridade com seu saber livresco. A sua neutralidadee o seu distanciamento, na verdade, os tornavam incapazes de compre-ender o conjunto do sistema da produo e das lutas hegemnicas, ondefervia o jogo decisivo do poder econmico e poltico. Com isso, acaba-vam sendo excludos no apenas dos avanos da cincia, mas tambmdas transformaes em curso na prpria vida real.

    Orgnicos, ao contrrio, so os intelectuais que fazem parte deum organismo vivo e em expanso. Por isso, esto ao mesmo tempoconectados ao mundo do trabalho, s organizaes polticas e culturaismais avanadas que o seu grupo social desenvolve para dirigir a socieda-de. Ao fazer parte ativa dessa trama, os intelectuais orgnicos se interli-gam a um projeto global de sociedade e a um tipo de Estado capaz deoperar a conformao das massas no nvel de produo material e cul-

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    Intelectuais orgnicos em tempos de ps-modernidade

    tural exigido pela classe no poder. Ento, so orgnicos os intelectuais que,alm de especialistas na sua profisso, que os vincula profundamente aomodo de produo do seu tempo, elaboram uma concepo tico-polticaque os habilita a exercer funes culturais, educativas e organizativas paraassegurar a hegemonia social e o domnio estatal da classe que represen-tam (Gramsci, 1975, p. 1.518). Conscientes de seus vnculos de classe,manifestam sua atividade intelectual de diversas formas: no trabalho, comotcnicos e especialistas dos conhecimentos mais avanados; no interior dasociedade civil, para construir o consenso em torno do projeto da classeque defendem; na sociedade poltica, para garantir as funes jurdico-ad-ministrativas e a manuteno do poder do seu grupo social.

    Como Gramsci a apresenta, desde os tempos de LOrdine Nuovo, afuno do novo intelectual, orgnico dinmica da sociedade e con-quista da hegemonia da sua classe, no pode mais consistir na eloqn-cia e nos mpetos da emoo, mas na interpenetrao entre conheci-mento cientifico, filosofia e ao poltica. Tal intelectual deve ser umconstrutor, organizador, educador permanente, de modo que da tc-nica-trabalho se chegue tcnica-cincia, concepo humanista hist-rica, sem a qual se permanece especialista e no se chega a dirigente(especialista+poltico) (idem, ibid., p. 1.551). A interconexo do mun-do do trabalho com o universo da cincia, com as humanidades e a visopoltica de conjunto formam, em Gramsci, o novo princpio educativo ea base formativa do intelectual orgnico.

    Embora distintas, entende-se porque economia, poltica, culturae filosofia, para Gramsci, so partes orgnicas e inseparveis da mesmarealidade (idem, ibid., p. 1.591), a tal ponto que Uma reforma intelec-tual e moral no pode deixar de estar ligada a um programa de reformaeconmica. Pelo contrrio, o programa de reforma econmica exata-mente a maneira concreta pela qual toda reforma intelectual e moral seapresenta (idem, ibid., p. 1.561).

    A relao dialtica entre intelectual orgnico e povo-nao

    Contudo, para Gramsci, a organicidade dos novos intelectuais estrelacionada principalmente sua profunda vinculao cultura, histriae poltica das classes subalternas que se organizam para construir umanova civilizao. Entre as pginas mais clebres dos seus escritos esto as

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    que descrevem de maneira original e insupervel a relao entre intelectu-ais e povo-nao (Gramsci, 1975, p. 361-362; 1.042; 1.382-1.387;1.505-1506; 1.635). Nessas pginas, podemos perceber claramente oabismo que separa a concepo dos intelectuais populares que sentemcom paixo a vida dos subalternos e os intelectuais convencionais, fun-cionais elite e especializados na administrao e no controle da socieda-de. Estes se revelam preocupados com a centralizao do poder, com umuniversalismo abstrato (Losurdo, 1999, p. 121 e ss), com a coero diretaou indireta. Os intelectuais orgnicos s classes populares, ao contrrio, ca-racterizam-se pela democratizao do poder, pela expanso dos direitos,pela eliminao da violncia e do embuste. Ao desvendar as contradiesna sociedade e ao socializar o poder, os intelectuais populares, por um lado,subvertem a concepo de dominao, de autoritarismo e de burocratismo,e, por outro, criam uma nova concepo de poltica fundada sobre o con-ceito de hegemonia, de democracia, de dirigentes de uma nova civiliza-o (Semeraro, 2003, p. 270-271).

    Gramsci retrata a osmose profunda dos intelectuais com as cama-das populares, reconhecidas como sujeitos ativos imbudos de espritocriativo, porque promove a universalizao da intelectualidade. Quer di-zer, est convencido de que todos tm a capacidade de pensar e agir, deelaborar conhecimentos, de acumular experincia, de ter uma sensibili-dade, um ponto de vista prprio. Nesse sentido, combatendo a nooabstrata, aristocrtica e restrita de intelectual, Gramsci afirma que To-dos so intelectuais (...). Porque no existe atividade humana da qual sepossa excluir alguma interveno intelectual (Gramsci, 1975, p. 1.516).At no trabalho mais mecnico e alienado h sempre um componentereflexivo, assim como todo ser humano tem uma cultura e forma-se umaconcepo de mundo no interior do seu ambiente social e do seu grupo.A capacidade intelectual, portanto, no monoplio de alguns, mas per-tence a toda a coletividade, tanto no sentido diacrnico (quando se con-sidera o acmulo de conhecimento ao longo da histria), como no sen-tido sincrnico (quando se busca compreender as interconexes queformam o mundo em que vivemos).

    Daqui, a insistncia em reconhecer a relao de reciprocidade en-tre sujeitos que aprendem e ensinam ao mesmo tempo (idem, ibid., p.1.331). O exerccio da intelectualidade, portanto, funo da inteira co-letividade, dialtico, o que justifica em Gramsci a formulao de inte-lectual coletivo e de filsofo democrtico (idem, ibid., p. 1.332). As-

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    Intelectuais orgnicos em tempos de ps-modernidade

    sim, embora alguns tenham funes mais acentuadamente intelectuais nasociedade, o grau dessa atividade entre seus componentes apenas quanti-tativo, nunca qualitativo. Isso quer dizer que o desempenho de diferentesfunes intelectuais nunca deve justificar hierarquias ou diviso de clas-ses na sociedade. Com essa viso, as reflexes de Gramsci passam longe daconcepo de uma intelligentsia livremente flutuante e acima das par-tes, dotada de uma misso especial e de capacidades objetivas que, desdeMannheim (1986), tm ocupado muitas discusses contemporneas.Guardam distncia tambm das posies de Bobbio sobre a funo dosintelectuais, o qual reedita, com a sua distino entre o idelogo e oexpert (Bobbio, 1993, p. 117), entre o filsofo e o tcnico (p. 140 e159), o dualismo estabelecido por M. Weber (1980, p. 87 e ss) entre atica da convico e a tica da responsabilidade, to caro aos liberais e maioria dos nossos polticos.

    Na III tese sobre Feuerbach, Marx j havia apontado para a relao re-cproca transformadora entre circunstncias e educao (Marx, 1998a, p.100). Mas Gramsci explicita e aprofunda essa inseparvel relao dialticaentre intelectual e mundo circunstante, entre estrutura e superestrutura,entre o que est dado e a iniciativa de sujeitos organizados, de modo a geraruma catarse pessoal e social, um processo da subjetivao tico-polticaque caracteriza a construo do conhecimento e a prtica coletiva de ensi-no-aprendizagem: A personalidade histrica de um filsofo individual re-sulta tambm da relao ativa entre ele e o ambiente cultural que ele quermodificar, ambiente que reage sobre o filsofo e, obrigando-o a uma cont-nua autocrtica, funciona como mestre (Gramsci, 1975, p. 1.331). Issosignifica que a escola, embora necessria, como mostra o interesse deGramsci em recri-la profundamente (cf. particularmente o Caderno 12),no o nico espao para a formao de intelectuais. Para essa tarefa, con-tribuem tambm o partido, a fbrica, a igreja, a atividade poltica, a parti-cipao nas organizaes, nos movimentos sociais e culturais etc.

    Essa viso totalmente inovadora e revolucionria rompe com a con-cepo do intelectual superior e separado, com o filsofo detentor daverdade e guia da plis que se formou a partir da tradio platnica dofilsofo-rei. As idias de Gramsci passam a fundamentar a formao dosnovos intelectuais na prxis hegemnica dos subalternos, cujas lutas teri-cas e prticas buscam criar uma outra filosofia e uma outra poltica, capa-zes de promover a superao do poder como dominao e construir efeti-vos projetos de democracia popular.

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    Em sintonia com o marxismo e pela influncia proveniente deGramsci, muitos intelectuais no sculo passado chegaram a se engajarem partidos dos trabalhadores, em movimentos populares, mobilizaramlutas pela independncia dos povos colonizados, pela libertao das di-taduras e pela democratizao dos direitos sociais (Sartre, 1994;Lahuerta, 2001).

    Nas ltimas dcadas, no entanto, a derrota do comunismo sovi-tico, o triunfo do neoliberalismo e a difuso da cultura ps-moderna fo-ram delineando um outro perfil de intelectual que acabou prevalecendona nossa sociedade.

    A re-configurao do intelectual pela ps-modernidade

    A partir da segunda metade dos anos de 1970, um novo ciclo docapitalismo e a sua contraditria recomposio desencadearam profun-das transformaes nos processos produtivos, nas prticas polticas e nafuno dos intelectuais.

    O mundo do trabalho, remodelado pela informtica e pela micro-eletrnica, passou a incorporar novos conhecimentos, gerando uma com-plexa analtica simblica que exige um preparo intelectual mais apuradodos seus operadores. Com a revoluo digital e a reduo dos grandes con-juntos industriais, as categorias dos trabalhadores e as organizaes de mas-sa vieram se encolhendo. A velocidade e a diversificao na produo frag-mentaram ainda mais os operrios e conseguiram camuflar melhor asfeies da dominao, desconcertando a compreenso da realidade e as for-mas tradicionais de lutas polticas (Hardt & Negri, 1995, p. 49 e ss).

    Sofisticado e flexvel, nunca o capital se tornou to abrangentecomo nessas ltimas dcadas. Por meio da indstria cultural, subme-teu o conhecimento aos desgnios da produtividade e do mercado,subsumindo, praticamente, toda as esferas da vida social. Difuso por todaparte, parece ter chegado a realizar o seu sonho mais ambicioso: tornar-se poder impessoal, inconsciente social (Finelli, 2003, p. 104), m-quina que marcha por prpria conta, separado do trabalho vivo e do in-cmodo das revoltas operrias. Sem rosto e sem lugar, o novo soberanohoje se impe, feito orculo hermtico, pelos indicadores econmicosanunciados todos os dias e por um dilvio de informaes que anulam areflexo e a interlocuo. Longe dos problemas da emancipao humana

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    Intelectuais orgnicos em tempos de ps-modernidade

    e imune s investidas da poltica, essa forma de poder encontra sua lgi-ca mais acabada na cultura ps-moderna, que aprofunda o processo deesvaziamento do concreto pelo abstrato, reduzindo-o invisibilidade eao simulacro (Jameson, 1996, p. 85 e ss).

    Nesse contexto, a figura do intelectual engajado entra em declnio efala-se cada vez menos de intelectuais orgnicos, das classes trabalhado-ras, de militantes e de educadores populares. Por toda parte, despontamgestores, intelectuais cticos e polticos pragmticos. As convices de prin-cpio, a viso de conjunto e a revoluo so suplantadas pela incerteza e opensamento da errncia (Vattimo, 1996, p. 182), pelo gosto do particulare o narcisismo privado. Sob a forte influncia do neoliberalismo na econo-mia e da ps-modernidade na cultura, muitos intelectuais foram gradual-mente deslocados do cho da fbrica e dos movimentos de massa para o cam-po do marketing, da esttica e do fantasmagrico cenrio da vdeo-esfera.

    A crise do intelectual popular acontece no apenas devido revo-luo tecnolgica, mas tambm pela dissoluo dos sujeitos coletivos,pela relativizao dos valores pblicos, pela derrota do comunismo, pelaindistino entre esquerda e direita e pelo revisionismo imposto s revo-lues.

    Assim, ao longo dessas ltimas duas dcadas, vimos emergir comoonda avassaladora uma crescente categoria de intelectuais que se dissemi-naram na mdia, na publicidade, no entretenimento, em OrganizaesNo-Governamentais (ONGs), em servios administrativos e no controle dosistema. Ficamos sabendo que havamos ingressado na era da imagem, dasociedade do conhecimento, da informao just in time, na poca docapital cultural, na qual o saber deve ser servido como mercadoria nasformas folhetinescas para garantir a atrao do grande pblico. O em-blema poltico do Prncipe de Maquiavel, re-configurado depois peloModerno Prncipe (Gramsci, 1975, p. 1.558), passa a ser desempenha-do hoje pelo Prncipe Eletrnico, que redesenha um novo, complexo econtraditrio palco da poltica e da atividade intelectual (Ianni, 2003, p.141 e ss). Em um mundo em que a imagem conta mais do que o produ-to, alastra-se a convico de que o que no passa na mdia no existe. Nosurpreende, portanto, se as tecnologias informticas, eletrnicas e cibern-ticas, dominadas por gigantescos conglomerados internacionais, tomamconta de todas as esferas da vida humana, atraindo muitos intelectuais aseu servio.

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    Assim, hoje, para a sua formao, o intelectual compelido a tor-nar-se especialista da imagem, do som, dos jogos de linguagem, dasvirtualidades eletrnicas. No mundo das sensaes, das modas e dos rpi-dos contgios de massa, fundamental que se aprenda, acima de tudo, amanejar a arte da aparncia. Por isso, chega-se a falar no fim do intelectualpoltico-pedaggico vinculado escrita, escola, ao partido, s organiza-es populares. O que se celebra agora o advento da inteligncia navdeo-esfera, no simbolismo e nas criaes instantneas, nos spots co-merciais e nos insigth (Sirinelli, 2003, p. 189). O intelectual clssico,cultor da razo e da cosmoviso, da pacincia histrica e da pedagogia po-ltica popular, suplantado pela inteligncia emocional e pelos recursostecnolgicos. O objetivo da vdeo-esfera no a educao ranoiluminista! mas o entretenimento e a seduo. A busca da verdade, dajustia, do universal e a viso inspirada na histria, na dialtica, na totali-dade etc. tornaram-se meta-narrativas e produtos autoritrios. Em seu lu-gar, entram o regozijo da des-construo, a elucubrao sobre o fragmen-to, o gosto pela indefinio, a preocupao estilstica e ornamental.Vangloriando-se da sua impotncia, o intelectual solicitado a abandonaras certezas da filosofia e os projetos da poltica para entregar-se ao fluxoda narrativa e do romance (Rorty, 1999, p. 263; 2001, p. 98).

    Depois dos clrigos dogmticos na era da cristandade e dos cientis-tas do saber prtico no mundo moderno, a maior parte dos intelectuaisfuncionais classe dominante da nossa poca precisa conformar o conheci-mento s exigncias dos novos donos do poder. Assim, temos hoje umalegio de intelectuais miditicos e evanescentes em conformidade com anatureza do capital financeiro, dos fluxos da mercadoria e da informao.Entende-se porque ao capital especulativo, que quer lucrar sem se com-prometer com a produo, corresponde o intelectual ficcional que dis-cursa sem dizer nada.

    Os efeitos desse fenmeno se refletem no interesse de uma multi-do de intelectuais por um profissionalismo acrtico e hiperconcorrencial.Algo parecido acontece na poltica e na filosofia, onde se desqualifica opensamento critico e proliferam os cientistas, onde os humanistas fo-ram se eclipsando diante dos gestores, os estadistas diante dos estatsti-cos, os miditicos substituram os educadores, as sondagens de opiniotomaram o lugar dos debates democrticos, os lobbies dispensaram asorganizaes sociais. Para a nova ordem imposta pelo capital, de fato, s

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    Intelectuais orgnicos em tempos de ps-modernidade

    serve a formao de uma inteligncia tecnolgico-utilitarista, no umaformao tico-poltica.

    Estaramos assistindo decadncia dos intelectuais poltico-peda-ggicos que, de militantes, crticos e pesquisadores, estariam passando aintrpretes, gerentes, divulgadores? Faz sentido, ento, falar ainda emintelectual orgnico s classes trabalhadoras em uma sociedade na qualas organizaes de classe, os prprios partidos e os sindicatos custam a sejustificar? Onde qualquer dissenso se desintegra na voragem do sistemae no parecem existir alternativas? Ser que o novo intelectual desenha-do por Marx e Gramsci estaria vencido e superado pela funo cada vezmais virtual da produo e do conhecimento?

    O contraponto de Gramsci virtualidade ps-moderna e crisepoltica

    A evaso ps-moderna e o intelectual da prxis

    Em Marx, como em Gramsci, no h cruzadas iconoclastas contraos avanos cientficos e tecnolgicos. Pelo contrrio, em sintonia com oprprio tempo, eles se utilizam com maestria dos meios mais modernosde investigao e de comunicao. Como vimos, Gramsci no indul-gente com o mundo provinciano e estagnado do Sul da Itlia, quandocomparado com as dinmicas do Norte e do americanismo e fordismo.Mas, tambm, no facilita o surgimento de intelectuais populistas e im-provisados. Em muitas ocasies, Gramsci defende uma ampla e rigorosaformao do intelectual orgnico, uma vez que a filosofia da prxis, almde representar o coroamento de todo o movimento de reforma moral eintelectual (Gramsci, 1975, p. 1.448), deve ser a reinveno de umnovo intelectual que sabe sintetizar o melhor da filosofia, da poltica, daeconomia, da cincia e da arte (Gramsci, 1996, Carta de 1/8/1932).

    Hoje, as novas ferramentas disposio dos intelectuais no de-vem ser menosprezadas. Embora Gramsci esteja aberto ao novo, no oaceita acriticamente. Assim como o trabalhador deve se modernizar, tor-nando-se cientificamente especializado e tecnicamente habilidoso at asfronteiras mais avanadas do conhecimento e da produo, sem cair namecanizao e na escravido do sistema, tambm o intelectual deve estaratualizado e desenvolver pesquisas inovadoras, sem se deixar taylorizare comprar.

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    Mas no suficiente se defender do risco de revoluo passiva ine-rente a toda modernizao. O intelectual orgnico popular, para Gramsci,deve alcanar as fronteiras mais avanadas do conhecimento e da tecnologiasem nunca perder a referncia s lutas hegemnicas da sua classe. Almdisso, tambm para no estagnar em um marxismo dogmatizado, neces-srio promover a sua traducibilidade (Baratta, 2004, p. 225-241) paraum tempo como o nosso, que se depara com outras feies de sociedade,com o surgimento de novos atores polticos, com novas formas de luta ecom diferentes sensibilidades trazidas pela prpria ps-modernidade.

    Naturalmente, esse processo de traduo deve ser aplicado tam-bm leitura de Gramsci. Mesmo assim, o essencial das suas reflexessobre os intelectuais guarda sua atualidade at hoje. Nelas, emerge claraa distino entre os intelectuais funcionais dominao e os intelectu-ais orgnicos aos que lutam para super-la. Em outras palavras, entreos intelectuais pragmticos, que se colocam disposio de uma socie-dade gerenciada para poucos, e os que se envolvem com as organizaespopulares para construir uma democracia realmente orgnica para todoo corpo social, no apenas para uma parte dele.

    Na extensa guerra de posio que virou o nosso mundo atual, osintelectuais orgnicos ao capital transnacional lutam constantementepara mudar as mentes e expandir os mercados (Said, 1994, p. 4). Maisdo que orgnicos, na verdade, os intelectuais funcionais s classes do-minantes fazem prestao de servio a seus condomnios de luxo, no plis. Ces de guarda (Nizan, 1970) de patres e agentes imediatos(Gramsci, 1975, p. 634) ao poder de planto, so incapazes de criar umaautocrtica do grupo que representam e de apresentar projetos de alcancetico-poltico.

    Os intelectuais orgnicos aos dominados, ao contrrio, esto con-vencidos de que a verdade revolucionria. Portanto, no abdicam aformar conscincias crticas e a construir um bloco histrico (uma arti-culao dialtica) entre estrutura e superestrutura (economia e cultura),entre sociedade civil e sociedade poltica, de maneira a superar a relaovertical entre governantes e governados e a separao entre intelectuais emassa. Esto convencidos como Gramsci de que

    A filosofia da prxis no tende a resolver pacificamente as contradies exis-tentes na histria e na sociedade, mas a prpria histria de tais contradi-es; no o governo de grupos dominantes para ter o consenso e exercer a

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    Intelectuais orgnicos em tempos de ps-modernidade

    hegemonia sobre as classes subalternas; mas a expresso destas classes quequerem educar a si mesmas para a arte do governo e tm interesse em co-nhecer todas as verdades, tambm as desagradveis, e evitar os enganos (im-possveis) da classe superior e at de si mesma. (Gramsci, 1975, p. 1.320)

    Como observamos no incio, Marx havia indicado que na histriados vencidos h uma verdade que no se consegue suprimir. Escovada acontrapelo dir Walter Benjamin (1985, p. 225) mais tarde , essahistria revela os horrores da sociedade tecno-burocrtica. Ao deixar deconsiderar a histria humana na sua totalidade e evadir das contradiesque hoje se acentuam no mundo, os intelectuais dos condomnios ps-modernos perdem a sua liberdade crtica, a conscincia histrica e a pr-pria organicidade ao seu grupo.

    Concentrados nos meios de comunicao e nos servios mais so-fisticados, os intelectuais do sistema s aparentemente asseguram ahegemonia do grupo ao qual pertencem. Na verdade, nenhuma imagemtelevisiva substitui o envolvimento direto do intelectual com as lutas so-ciais, nenhuma reengenharia educativa substitui a relao mestre-aluno,nenhuma propaganda eleitoral substitui a ligao do partido com a rea-lidade de suas bases.

    Tcnicos e publicitrios de uma sociedade sem projeto como a nos-sa, seus intelectuais afastam-se de uma outra caracterstica fundamental pre-sente em Gramsci: o reconhecimento do saber popular, a construo de-mocrtica e coletiva de um projeto pblico de sociedade. Para Gramsci, defato, mais do que a centralidade do intelectual e a sofisticao de um gru-po de vanguarda irradiador de verdades, importante a elevao moral eintelectual das massas at as fronteiras mais avanadas da cincia, de modoa arrancar da classe dominante o monoplio do conhecimento que, na eradigital, pode aprofundar ainda mais o fosso com as classes espoliadas.

    As condies materiais para universalizar as ferramentas tecnolgicase para a interatividade esto dadas no mundo de hoje. Trata-se, agora, defazer com que a circulao das informaes e a criao do conhecimentono emanem de centros monopolizados e exclusivos, mas sejam construdasdemocraticamente por todos, local e mundialmente, no trabalho, nas es-colas, nas organizaes polticas, nos centros culturais, na diversidade degrupos e de etnias.

    Ento, tem ainda sentido falar em intelligentsia de um corpoespecial de pessoas que produzem idias e teorias para a sociedade e for-

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    mam conscincias? E qual a funo do partido, do Moderno Prnci-pe intelectual idealizado por Gramsci?

    O pragmatismo dos partidos e os intelectuais da grande poltica

    O intelectual que emerge dos escritos de Gramsci orgnico (vol-tado a impulsionar a sociedade inteira, no apenas uma parte), democrti-co (determinado a superar a relao de poder-dominao) e popular (sin-tonizado com a cultura e os projetos hegemnicos dos subalternos).

    Entende-se, ento, porque Gramsci afirma: Eu amplio muito a no-o de intelectual, no me limitando noo corrente que se refere aosgrandes intelectuais (...). Justamente na sociedade civil operam os intelec-tuais (Lettere dal carcere, 7 de setembro de 1931). Avano semelhante ope-ra com a concepo ampliada de Estado (Gramsci, 1975, p. 810-811),quando articula de forma dialtica sociedade poltica e sociedade civil, su-perando com isso a concepo de uma entidade separada e superior. Emsintonia com essa linha de pensamento, nele h tambm uma concepoampliada de partido, incluindo nessa tarefa a funo de um jornal, de umarevista, de um centro cultural, de grupos e movimentos organizados nasociedade civil. Em todos esses casos, as preocupaes de Gramsci so asmesmas: os governantes e os governados, o institudo e o instituinte preci-sam interagir dialeticamente para chegar a construir um organismo socialcom dimenses tico-polticas. Assim, diversamente de posies que hojereeditam o naturalismo organicista ou o pragmatismo holista, aorganicidade de Gramsci apresenta-se em termos de uma luta social, his-trica e poltica para construir a hegemonia da democracia popular(Semeraro, 2005, p. 28-39).

    No importa o lugar em que o intelectual desempenha a sua fun-o, se no partido, no Estado, no sindicato, nos movimentos populares,nas organizaes sociais e culturais ou na academia. O que conta paraGramsci a sua vinculao de classe, a relao democrtica que o intelec-tual estabelece e o horizonte tico-poltico que descortina, isto , a capaci-dade de promover um projeto socializador que reconhea os subjugadoscomo sujeitos polticos. Nesse sentido, h em Gramsci uma relao estrei-ta entre o conceito de orgnico e o de tico-poltico, se considerarmosque os dois remetem universalizao da democracia popular. E essa sacontece com a construo de uma hegemonia capaz de entrelaar em uni-dade subjetividades individuais e vontade coletiva, de transformar em li-

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    Intelectuais orgnicos em tempos de ps-modernidade

    berdade a necessidade, quer dizer, de operar o processo de catarse, desubjetivao, que o ponto de partida de toda a filosofia da prxis(Gramsci, 1975, p. 1.244). Ento, em Gramsci, os intelectuais so org-nicos a um partido, a um grupo social, ao Estado, enquanto trabalhampara superar o momento econmico-corporativo e o momento jurdico-administrativo e se lanam ao lado dos subalternos para criar a fase dauniversalidade tico-poltica (idem, ibid, p. 1.584).

    Em tempos ps-modernos, os intelectuais orgnicos no se torna-ram obsoletos, mas encontram-se diante de novas tarefas. Como nunca,precisam aprender com Gramsci a difcil arte de lidar com a diversidadesem cair no relativismo, de lutar contra os dogmas sem deixar de buscar averdade, de respeitar a particularidade sem se pulverizar, de construir a uni-dade sem transform-la em uniformidade, de realizar a democracia popu-lar contra os simulacros ps-modernos. Se essas consideraes estiverem cer-tas, torna-se necessrio pensar tambm novos partidos com dimensesticas e polticas capazes de fundar novos Estados (idem, ibid., p. 1.111).

    No Brasil, ao longo dessas ltimas duas dcadas, inmeros intelec-tuais com posies de resistncia ditadura e cumplicidade com os movi-mentos populares passaram a funcionrios de partido e a gerentes tcni-co-administrativos dos aparelhos do poder governamental. Aos poucos,vimos surgir uma legio de especialistas em estratgias eleitorais, em pro-fissionais da imagem, em artimanhas jurdicas, em hibridismo ideolgicoe trfico de influncia.

    Esse processo tem sido uma das causas da profunda crise poltica,hoje em curso, que deixa muitos intelectuais calados e dissemina o descr-dito na democracia e no sistema representativo em uma sociedade cons-ternada.

    Enquanto os partidos e seus intelectuais permanecerem na esfera doeconmico, da burocracia e do populismo, no haver o salto para a esferatico-poltica, a nica em que possvel pensar o pas como um todo e emcondies de universalizar direitos. Por isso, contrariamente ao que se pen-sa, nunca como hoje o Brasil precisou tanto de novos intelectuais orgni-cos. Dos que como Gramsci nos lembra forem capazes de se lanarem direo a uma das mais urgentes e audaciosas tarefas:

    A partir do momento em que um grupo subalterno se torna realmenteautnomo e hegemnico, suscitando um novo tipo de Estado, nasce con-cretamente a exigncia de construir uma nova ordem intelectual e moral, ou

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    seja, um novo tipo de sociedade e, portanto, a exigncia de elaborar os con-ceitos mais universais, as armas ideolgicas mais sofisticadas e decisivas.(Gramsci, 1975, p. 1.509)

    Recebido em fevereiro de 2006 e aprovado em abril de 2006.

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