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RDS IX (2017), 4, 867-911 Instrumentos de fundos próprios adicionais de nível 1: os contingent convertibles e os perigos de um “ low trigger DR. JOÃO MACHADO TELES Sumário: 1. Contextualização: nota sintética a respeito dos requisitos de fundos próprios previstos na CRD IV e no CRR: 1.1. Enquadramento geral; 1.2. Pilar I: Requisitos mínimos de fundos próprios; 1.3. Fundos próprios adicionais de nível 1. 2. Contingent Convertibles: 2.1. Caracterização genérica: 2.1.1. Conceito base; 2.1.2. Write-down CoCos e as implicações práticas do alargamento do conceito; 2.2. CoCos como instrumen- tos de absorção de perdas das instituições no panorama pós-crise: 2.2.1. Apenas capitais próprios? 2.2.2. Instrumentos convertíveis: uma solução intermédia; 2.3. Configuração dos CoCos: 2.3.1. Generalidades; 2.3.2. Termos da conversão; 2.3.3. Evento de desenca- deamento. 3. CoCos como instrumentos elegíveis como fundos próprios AT1: 3.1. Gene- ralidades; 3.2. Requisitos legais: 3.2.1. Permanência; 3.2.2. Capacidade de absorção de prejuízos; 3.2.3. Limitação aos pagamentos; 3.2.4. Instrumentos não emitidos diretamente por uma instituição; 3.3. A emissão de CoCos na União Europeia. 4. A opção legislativa por um evento de desencadeamento (mínimo) relativamente baixo e com base contabilística e o artigo 54.º, n.º 5, do CRR, como tentativa de mitigar as desvantagens daí decorrentes: 4.1. O evento de desencadeamento; 4.2. Potenciais problemas decorrentes do evento de desencadeamento mínimo previsto pelo CRR; 4.3. Genericamente: o enquadramento legal da recuperação e resolução bancária e os pressupostos para a aplicação das medidas de inter- venção precoce e de resolução; 4.4. Rácio CET1 em 5,125%: tarde demais? 4.5. O artigo 54.º, n.º 5, do CRR, como forma de mitigar os perigos de um low trigger: 4.5.1. As dili- gências a efetuar mediante a verificação do evento de desencadeamento; 4.5.2. Os momentos subjacentes ao período entre a verificação do evento de desencadeamento e a conversão/redu- ção. 5. Notas finais. Resumo: A Diretiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, e o Regulamento (UE) n.º 575/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, da mesma data, estabeleceram um novo complexo normativo no que concerne aos fundos próprios das instituições de crédito, que incluem, por ordem de “qualidade”, os fundos próprios principais de nível 1 (“CET1”, compos- Book Revista de Direito das Sociedades 4 (2017).indb 867 Book Revista de Direito das Sociedades 4 (2017).indb 867 27/12/17 18:09 27/12/17 18:09

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Instrumentos de fundos próprios adicionais de nível 1:os contingent convertibles e os perigos de um “low trigger”

DR. JOÃO MACHADO TELES

Sumário: 1. Contextualização: nota sintética a respeito dos requisitos de fundos próprios previstos na CRD IV e no CRR: 1.1. Enquadramento geral; 1.2. Pilar I: Requisitos mínimos de fundos próprios; 1.3. Fundos próprios adicionais de nível 1. 2. Contingent Convertibles: 2.1. Caracterização genérica: 2.1.1. Conceito base; 2.1.2. Write-down CoCos e as implicações práticas do alargamento do conceito; 2.2. CoCos como instrumen-tos de absorção de perdas das instituições no panorama pós-crise: 2.2.1. Apenas capitais próprios? 2.2.2. Instrumentos convertíveis: uma solução intermédia; 2.3. Confi guração dos CoCos: 2.3.1. Generalidades; 2.3.2. Termos da conversão; 2.3.3. Evento de desenca-deamento. 3. CoCos como instrumentos elegíveis como fundos próprios AT1: 3.1. Gene-ralidades; 3.2. Requisitos legais: 3.2.1. Permanência; 3.2.2. Capacidade de absorção de prejuízos; 3.2.3. Limitação aos pagamentos; 3.2.4. Instrumentos não emitidos diretamente por uma instituição; 3.3. A emissão de CoCos na União Europeia. 4. A opção legislativa por um evento de desencadeamento (mínimo) relativamente baixo e com base contabilística e o artigo 54.º, n.º 5, do CRR, como tentativa de mitigar as desvantagens daí decorrentes: 4.1. O evento de desencadeamento; 4.2. Potenciais problemas decorrentes do evento de desencadeamento mínimo previsto pelo CRR; 4.3. Genericamente: o enquadramento legal da recuperação e resolução bancária e os pressupostos para a aplicação das medidas de inter-venção precoce e de resolução; 4.4. Rácio CET1 em 5,125%: tarde demais? 4.5. O artigo 54.º, n.º 5, do CRR, como forma de mitigar os perigos de um low trigger: 4.5.1. As dili-gências a efetuar mediante a verifi cação do evento de desencadeamento; 4.5.2. Os momentos subjacentes ao período entre a verifi cação do evento de desencadeamento e a conversão/redu-ção. 5. Notas fi nais.

Resumo: A Diretiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, e o Regulamento (UE) n.º 575/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, da mesma data, estabeleceram um novo complexo normativo no que concerne aos fundos próprios das instituições de crédito, que incluem, por ordem de “qualidade”, os fundos próprios principais de nível 1 (“CET1”, compos-

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tos pelos instrumentos típicos de capital próprio), os fundos próprios adicionais de nível 1 (“AT1”, instrumentos caracterizáveis como híbridos) e os fundos próprios de nível 2 (dívida subordinada).

O objeto do presente texto incide, em especial, sobre os fundos próprios AT1, nomeadamente os requisitos para que um instrumento possa ser considerado como tal. Nessa matéria, adquire especial relevância a fi gura dos contingent convertibles (CoCos), termo originariamente utilizado por referência a instrumentos represen-tativos de dívida que, mediante a ocorrência de um evento de desencadeamento (de verifi cação incerta), se convertem em ações. O termo tem vindo, também, a ser usado no sentido de incluir instrumentos cujo valor nominal pode ser reduzido, ao invés de serem objeto de conversão.

No caso dos CoCos emitidos por instituições de crédito (contabilizáveis como instrumentos AT1), os mesmos são convertidos ou objeto de redução do valor nominal, mediante a verifi cação de que o rácio de fundos próprios CET1 desceu abaixo de determinado nível, com o objetivo de os robustecer. Pretende-se que operem, por esse efeito, como mecanismo de absorção perdas em momento prévio ao da entrada da instituição em situação de incumprimento dos requisitos legais em sede de fundos próprios ou em risco de insolvência, visando precisamente obstar a que tal suceda.

O Regulamento supra referido prevê um evento de desencadeamento mínimo para os instrumentos AT1 que consiste na verifi cação de um rácio de fundos pró-prios CET1 relativamente baixo (5,125%, quando o rácio mínimo que um banco deve possuir, e cujo incumprimento pode desencadear, no limite, medidas de reso-lução, é de 4,5%).

Conclui-se que a previsão de um evento de desencadeamento que seja o rácio de fundos próprios CET1 fi car abaixo de 5,125%, ou de um nível ligeiramente superior, comporta o perigo substancial de aquele não ser desencadeado antes de a instituição se encontrar numa situação que, à luz as regras de recuperação e reso-lução bancária, exija a intervenção das autoridades competentes, o que em caso de risco de insolvência signifi ca a aplicação de medidas de resolução, cenário bastante gravoso para todos os intervenientes.

De facto, não só aquele rácio de fundos próprios já revela uma situação de pouca solidez, como o seu apuramento tem base contabilística, com os inconve-nientes apontados em termos de suscetibilidade à manipulação e limitações quanto à atualidade da informação. Mais a mais, sucede que, por norma, a deterioração dos rácios é bastante repentina, para além de se verifi car uma potencial tendência para se atrasar o reconhecimento da verifi cação do evento de desencadeamento. Os instrumentos AT1 podem, assim, não operar como mecanismo de absorção de perdas numa lógica going concern (medida ex-ante) – funcionando, quanto muito, já só num cenário de resolução –, o que esvazia a principal fi nalidade subjacente à sua previsão legal.

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1. Contextualização: nota sintética a respeito dos requisitos de fundos próprios previstos na CRD IV e no CRR

1.1. Enquadramento geral

Como breve enquadramento para a análise que aqui se verte, cumpre, de modo muito sintético, referenciar as normas juseuropeias que, na esteira do modelo defi nido por Basileia III1, regulam os requisitos de fundos próprios das instituições de crédito2: a Diretiva 2013/36/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 (a “CRD IV”), e o Regulamento (EU) n.º 575/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, da mesma data (o “CRR”)3.

O regime visa garantir que as instituições apresentem níveis de fundos pró-prios sufi cientes para fazer face a eventuais perdas imprevisíveis, de modo a que estas sejam absorvidas por recursos próprios e numa lógica de continuação da atividade (going concern capital4). Em última instância, pretende-se evitar que as

1 Basel III: A global regulatory framework for more resilient banks and banking systems, 2010. A crise fi nanceira de 2007-2009 revelou que os requisitos de capital das instituições de crédito não eram sufi cientemente robustos, na medida em que se permitiu que os bancos não constituíssem reservas de capital sufi ciente e parte dos instrumentos contabilizáveis como capital não revelaram a capaci-dade de absorção de perdas pretendida (vide, a título exemplifi cativo, Andreas Khan e Patrick Kenadjian, Contingent Convertibles: from theory to CRD IV, Institute for Law and Finance, Wor-king Paper Series n.º 143/2014, 2014, 2 e ss; Peter Miu, Bogie Ozdemir, Michael Giesinger, Can Basel III Work? Examining the New Capital Stability Rules by the Basel Committee: A Theoreti-cal and Empirical Study of Capital Buff ers, 2010; Marianne Ojo, Basel III and Responding to the Recent Financial Crisis: Progress Made by the Basel Committee in Relation to the Need for Increased Bank Capital and Increased Quality of Loss Absorbing Capital, 2010; em português, Manuel Magalhães, A Evolução do Direito Prudencial Bancário no Pós-crise: Basileia III e CRD IV, o Novo Direito Bancário, 2012, 317 e ss.). 2 Por facilidade, na presente obra, referimo-nos indistintamente a “instituição de crédito” e a “instituição” (ainda que nos termos da CRD IV [artigo 1.º, alínea a)] e da CRR [artigo 4.º, n.º 1, ponto 3)] o segundo conceito inclua as empresas de investimento, tal como aí defi nidas). Utilizar-se-á, igualmente, a expressão corrente “banco”.3 Comparando as soluções apresentadas pela CRD IV em face do proposto por Basileia III, em especial no que concerne aos fundos próprios adicionais de nível 1 e aos fundos próprios de nível 2, ver Linklaters, CRD IV: The European Response to Basel III and the Impact on Tier 1 and Tier 2 Bank Capital, 2011.4 A Financial Services Authority, em A Regulatory Response to the Global Banking Crisis, Discussion Paper 09/2, 2009, foca, precisamente, o facto de a regulamentação sobre fundos próprios das instituições de crédito, antes da crise de 2007-2009, adotar uma abordagem “gone-concern”, i.e. focada na proteção dos credores sénior e depositantes num cenário de resolução bancária ou insolvência (medidas ex-post), ao invés de “going-concern”, ou seja, direcionada para a necessidade

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instituições entrem em resolução5 e, no limite, seja, novamente, necessário o recurso a capitais públicos para as resgatar.

Em sentido complementar, o regime visa igualmente desincentivar a ado-ção de comportamentos de risco excessivo por parte dos acionistas e adminis-tração das instituições de crédito6-7.

Os requisitos de fundos próprios previstos na CRD IV e no CRR com-portam três níveis:

(a) Pilar I: fundos próprios mínimos, que incluem (i) fundos próprios de nível 1, compostos por (1) fundos próprios principais de nível 1 (Common Equity Tier 1, “CET1”) e (2) fundos próprios adicionais de nível 1 (Additional Tier 1 Capital, “AT1”); e (i) fundos próprios de nível 2 (Tier 2, “T2”)8;

(b) Pilar II: fundos próprios adicionais, defi nidos pelo supervisor em função do perfi l de risco da instituição9;

(c) Reservas de fundos próprios, que incluem: (i) reserva de conservação de fun-dos próprios principais de nível 1, correspondente a 2,5% por CET1 em

de garantir que os fundos próprios dos bancos são sufi cientes para absorver perdas quando as suas contas ainda possuem alguma robustez e enquanto ainda se encontram em atividade e com capacidade para conceder crédito (medida ex-ante). 5 As instituições fi nanceiras europeias encontram-se sujeitas à aplicação de medidas corretivas ou de resolução nos termos da Diretiva 2014/59/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio, transposta para o ordenamento jurídico português pela Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março, que altera o RGICSF; este tema será abordado em mais detalhe infra no Capítulo 4.6 Para uma visão geral sobre o papel e importância do capital nas instituições de crédito: Daniel K. Tarullo, Banking on Basel: The Future of International Financial Regulation, 2008, 15-44; e João A. C. Santos, Bank Capital Regulation in Contemporary Banking Theory: A Review of the Literature, BIS Working Papers, n.º 90, 2000.7 V.g. considerando 90) do CRR, “Os anos que antecederam a crise fi nanceira caracterizaram-se por uma excessiva acumulação das posições em risco das instituições relativamente aos seus fundos próprios (alavancagem). Durante a crise fi nanceira, as perdas e a falta de fi nanciamento forçaram as instituições a reduzirem signifi cativamente a sua alavancagem durante um curto período de tempo. O facto aumentou as pressões no sentido da descida dos preços dos ativos, causando mais perdas às instituições o que, por sua vez, levou a novas reduções nos seus fundos próprios. Em última instância, os resultados desta espiral negativa foram a redução da disponibilização de crédito à economia real e uma crise mais profunda e mais prolongada”. 8 Nos termos previstos na Parte II do CRR.9 De acordo com o disposto no artigo 104.º, n.º 1, alínea a), da CRD IV:

“(…) as autoridades competentes devem dispor, pelo menos, de poderes para:a) Exigir que as instituições detenham fundos próprios superiores aos previstos nos requisitos estabelecidos no Capítulo 4 do presente título e no Regulamento (UE) n.º 575/2013 relacionados com os elementos dos riscos e os riscos não cobertos pelo artigo 1.º do referido regulamento (…)”

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201910; (ii) reserva contracíclica de fundos próprios11; e (iii) máximo entre (1) reserva para instituições de importância sistemática12 e (2) reserva para risco sistemático13.

10 Cfr. artigos 129.º da CRD IV e 138.º-D do RGICSF. Exige-se a manutenção de uma reserva de conservação de fundos próprios CET1 de 2,5 % do montante total das posições em risco (ver descrição infra em 1.2.), em base individual e consolidada, consoante o caso. Não obstante, o artigo 160.º da CRD IV (transposto para o direito nacional pelo artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 157/2014, de 24 de outubro) prevê a aplicação dessa regra de forma faseada, podendo a reserva ser constituída nos seguintes termos: (a) entre 1 de janeiro de 2016 e 31 de dezembro de 2016: 0,625%; (b) entre 1 de janeiro de 2017 e 31 de dezembro de 2017: 1,25%; (c) entre 1 de janeiro de 2018 e 31 de dezembro de 2018: 1,875%. O Banco de Portugal, através do Aviso 1/2015, decidiu, por aplicação da faculdade prevista no artigo 160.º, n.º 6, da CRD IV (artigo 23.º, n.º 6, do RGISF) antecipar a reserva de conservação de fundos próprios, reduzindo o aludido período transitório de aplicação. No entanto, o Aviso n.º 6/2016 veio revogar o Aviso n.º 1/2015, implicando a sujeição das entidades compreendidas no âmbito do mesmo ao regime transitório estabelecido pelo refe-rido artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 157/2014, de 24 de outubro.11 Nos termos do disposto nos artigos 130.º e 135.º e ss. da CRD IV e 138.º-E e ss. do RGICSF. Esta reserva visa proteger o setor bancário nos períodos em que o risco sistémico cíclico aumenta devido ao aumento do crédito. Exige-se a manutenção de uma reserva contracíclica de fundos próprios específi ca da instituição, constituída por fundos próprios CET1, em base individual e consolidada, consoante o caso, equivalente ao montante total das suas posições em risco (ver des-crição infra em 1.2) multiplicado pela média ponderada das percentagens da reserva contracíclica de fundos próprios. Neste âmbito, em Portugal, o Banco de Portugal é responsável por defi nir e divulgar, trimestralmente, a percentagem de reserva contracíclica aplicável a todas as insti-tuições de crédito e sociedades de investimento com posições em risco de crédito sobre o setor privado não fi nanceiro nacional. A percentagem é defi nida entre 0% e 2,5% (do montante total das posições em risco) – sujeita às disposições transitórias previstas no artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 157/2014, de 24 de outubro, por transposição do artigo 160.º da CRD IV –, exceto quando circunstâncias excecionais justifi quem a defi nição de uma percentagem mais elevada (cfr. artigo 138.º-G do RGISF). A percentagem de reserva para cada instituição é uma média ponderada das percentagens daquela reserva aplicáveis nos países onde se localizam as posições em risco de crédito dessa instituição (138.º-L do RGISF). O Banco de Portugal decidiu que a percentagem de reserva contracíclica de fundos próprios a vigorar a partir de 2 de outubro de 2017 é de 0% do montante total das posições em risco. Para mais detalhes, nomeadamente sobre a abordagem metodológica do Banco de Portugal nesta matéria: https://www.bportugal.pt/ptPT/EstabilidadeFinanceira/MedidasMacroprudenciais/ReservaContraciclica/Paginas/inicio.aspx.12 Cfr. artigos 131.º e 132.º da CRD IV e 138.º-N e ss. do RGICSF. As instituições de importân-cia sistemática dividem-se em instituições de importância sistémica global (as “G-SII”) e outras instituições de importância sistémica (as “O-SII”). O Banco de Portugal é responsável pela iden-tifi cação dessas instituições em Portugal. As G-SII mantêm, em base consolidada, uma reserva de G-SII constituída por fundos próprios CET1, dependendo da subcategoria da G-SII em causa (a reserva mediará entre 1% e 3,5% do montante total de posições de risco) (artigos 131.º, n.º 9, da CRD IV, e 138.º-P do RGICSF). O Banco de Portugal pode impor às O-SIIs, em base con-solidada, subconsolidada ou individual, consoante aplicável, uma reserva de O-SII constituída por fundos próprios CET1 de até 2% do montante total das posições em risco (artigos 131.º, n.º

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1.2. Pilar I: Requisitos mínimos de fundos próprios 13

Como se viu, os fundos próprios são constituídos pela soma dos fundos pró-prios de nível 1 e dos fundos próprios T2 (artigo 72.º do CRR).

Tal como antes referido, os fundos próprios de nível 1 subdividem-se em: (i) fundos próprios CET1 (artigos 26.º e ss. do CRR), que correspondem, grosso modo, a ações, prémios de emissão, resultados retidos e outras reservas (capitais próprios)14; e (ii) fundos próprios AT1 (artigos 51.º e ss. do CRR), onde se com-preendem instrumentos que reúnem características típicas de capital próprio e de dívida – e cujos requisitos iremos analisar infra. Estes instrumentos são os primeiros a absorver eventuais perdas.

Já os elementos respeitantes aos fundos próprios T2 (artigos 62.º e ss do CRR), correspondem, nomeadamente, a instrumentos e empréstimos subor-dinados (subordinated debt) e a prémios de emissão relacionados. Estes instru-mentos absorvem as perdas após os fundos próprios CET1 e AT1.

Nos termos do artigo 92.º do CRR, as instituições de crédito devem man-ter, no mínimo, um rácio de fundos próprios CET1 de 4,5%, um rácio de fundos próprios de nível 1 de 6% e um rácio de fundos próprios totais de 8%.

Cada um dos rácios corresponde:

(a) aos montantes de fundos próprios relevantes (numerador), i.e., (i) fun-dos próprios CET1; ou (ii) fundos próprios de nível 1 (soma dos fundos próprios CET1 e dos fundos próprios AT1); ou (iii) fundos próprios totais (soma dos fundos próprios de nível 1 e dos fundos próprios T2);

5, da CRD IV, e 138.º-R do RGICSF). Em Portugal, uma vez que não foi identifi cada qualquer G-SII, a reserva de G-SII não se aplica. O Aviso do Banco de Portugal n.º 4/2015 estabelece os elementos a divulgar pelo Banco de Portugal relativos à identifi cação das O-SII, à reserva aplicável a cada uma dessas instituições e a periodicidade dessa divulgação. Para mais detalhes, nomeada-mente demais regulamentação e abordagem metodológica do Banco de Portugal nesta matéria, consultar: https://www.bportugal.pt/pt-PT/EstabilidadeFinance ira/MedidasMacroprudenciais /ReservaOSII/Pagina s/inicio.aspx13 Tal como previsto nos artigos 133.º e 134.º da CRD IV e artigos 138.º-U e ss. do RGICSF. Exige-se uma reserva para risco sistémico de fundos próprios CET1, a fi m de prevenir e reduzir os riscos sistémico ou macroprudencial não cíclico a longo prazo não cobertos pelo CRR. O Banco de Portugal, como autoridade competente em Portugal, pode determinar a aplicação dessa reserva em base individual, subconsolidada ou consolidada, que será de, pelo menos, 1% das posições de risco a que a reserva se aplica (vide artigos 133.º, n.º 3, da CRD IV, e 138.º-U, n.º 2, do RGICSF).14 Nos termos do artigo 26.º, n.º 3, do CRR, a European Banking Authority (a “EBA”) publica e atualiza uma lista das formas de instrumentos de fundos próprios que são elegíveis em cada Estado--Membro como instrumentos de fundos próprios CET1. Ultima atualização da lista disponível em https://www.eba.europa.eu/-/eba-updates-on-monitoring-of-cet1-instruments.

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(b) expressos em montante total das posições em risco15 (denominador).

De referir que o CRR prevê um conjunto de disposições transitórias em matéria de requisitos de fundos próprios, nos artigos 465.º e ss.16.

1.3. Fundos próprios adicionais de nível 1

No que respeita, em específi co, aos elementos e instrumentos de fundos próprios AT1, o CRR prevê, no seu artigo 51.º, que nessa categoria se incluem os instrumentos que preenchem os requisitos previstos no artigo 52.º, n.º 1, e os prémios de emissão relacionados com esses instrumentos. Ora, o artigo 52.º, n.º 1, do CRR, estabelece um extenso elenco de requisitos cumulativos para que um instrumento possa ser considerado AT1, que, tal como antecipámos, inclui um misto de elementos típicos de capital próprio e de dívida. A presente obra irá debruçar-se sobre estes aspetos, mais em detalhe, no ponto 3. infra.

2. Contingent Convertibles

2.1. Caracterização genérica

2.1.1. Conceito base

Genericamente, os Contingent Convertibles (os “CoCos”) têm vindo a ser caracterizados como instrumentos17 de natureza híbrida e convertíveis automa-ticamente em ações, mediante a verifi cação de um determinado evento de desencadeamento (trigger event).

15 O valor do denominador (i.e. o valor dos ativos) para efeitos de cálculo dos rácios, corresponde, de modo sintético, à soma dos ativos da instituição ponderados em função do risco (de acordo com as determinadas categorias defi nidas), nos termos do artigo 92.º, n.º 3, do CRR. 16 Em Portugal, o Aviso do Banco de Portugal n.º 6/2013 regula esse regime transitório. 17 Por facilidade, e tendo em conta que o presente texto se debruça, essencialmente, sobre as matérias e as opções legislativas do ponto de vista comunitário, adotar-se-á a terminologia “ins-trumento”, tal como utilizado no CRR, quando fi zermos referência a CoCos. No ordenamento jurídico português, “instrumento fi nanceiro” representa uma noção central que engloba os valores mobiliários, os instrumentos monetários e os instrumentos derivados (art. 2.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários [o “CVM”]). Os CoCos, como é bom de ver, tratam-se de valores mobiliários (cfr. artigo 1.º do CVM), i.e. “posição jurídica fungível ligada em termos causais a uma operação colectiva de investimento e susceptível de negociação em mercado”, como descreve Paulo Câmara, em Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2011, 164.

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O cariz híbrido dos CoCos prende-se com o facto de os mesmos captarem características típicas de passivo e de instrumentos de capital próprio. De um lado, conferem aos seus titulares, aquando da emissão, um direito de crédito que inclui o reembolso do capital e os juros convencionados. De outro, esse direito cessa com a conversão do instrumento em ações, passando o titular do instrumento a ter o status de acionista, benefi ciando, por esse efeito, dos direitos inerentes a essa condição18.

Os CoCos enquadram-se, ainda, numa classe alargada de instrumentos con-vertíveis. A sua conversão é, em princípio, automática e ocorre por efeito da verifi cação de um acontecimento futuro incerto (i.e. não se sabe quando – nem se – ocorrerá)19.

18 Os instrumentos fi nanceiros caracterizáveis como híbridos incluem, nomeadamente (a) os ins-trumentos convertíveis (vide nota infra); (b) as ações preferenciais sem voto (em Portugal reguladas nos artigos 341.º e ss. do Código das Sociedades Comerciais [o CSC]), que conferem direito a um dividendo prioritário; (c) as obrigações com warrant (no nosso ordenamento previstas nos artigos 372.º-A e 372.º-B do CSC) – obrigações que têm associado o direito de subscrever determinado valor mobiliário; (d) as obrigações perpétuas (perpetual bonds) i.e. obrigações sem prazo de reem-bolso (entre nós aplica-se a esses instrumentos o regime das obrigações, conforme prescreve o artigo 360.º, n.º 2, al. a), do CSC); ou (e) as credit linked notes ou valores mobiliários condicionados por eventos de crédito, instrumentos caraterizados por atribuírem ao titular um direito de crédito cujo quantum ou existência fi cam dependentes da verifi cação ou não de um determinado evento de crédito defi nido no momento da emissão. A respeito dos instrumentos híbridos consultar, v.g. Tyrone M. Carlin, Nigel Finch e Guy Ford, Hybrid Financial Instruments, Cost of Capital and Regulatory Arbitrage – An Empirical Investigation, Journal of Applied Research in Accounting and Finance, Vol. 1, n.º 1, 2006, 43 e ss. e Wells Fargo Advisors, A Guide to Investing in Hybrid Securities, 2012 (disponível em https://saf.wellsfargoadvisors.com/emx/dctm/Marketing/Mar-keting_Materials/Fixed_Income_Bonds/e6728.pdf ); em português: Orlando Vogler Guiné, O fi nanciamento das sociedades por meio de valores mobiliários híbridos, AAVV, I Congresso Direito das Sociedades em Revista, 2011 e Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, 2015, 151 e ss. 19 De entre o elenco de instrumentos convertíveis destacamos ainda as obrigações convertíveis (convertible securities), os valores mobiliários convertíveis por opção do emitente (reverse convertibles) e os valores mobiliários obrigatoriamente convertíveis (mandatory convertibles). No primeiro caso, que desenvolveremos mais em detalhe em seguida, o investidor tem o direito de acionar a conversão do instrumento de dívida em ações, de acordo com determinadas condições defi nidas (em Por-tugal, encontra-se regulado pelos artigos 365.º e ss. do CSC). Já nos reverse convertibles, a faculdade de conversão pertence ao emitente do instrumento (aplica-se a estes valores mobiliários, entre nós, o regime das obrigações – cfr. al. b) do n.º 2 do artigo 360.º do CSC). Por fi m, os mandatory convertibles diferem dos instrumentos anteriormente referidos pelo facto de a conversão não estar dependente de uma mera opção, ao invés ocorrendo necessariamente na data de vencimento. A respeito dos instrumentos convertíveis consultar, por exemplo, Sandra Laurent, Convertible Debt and Preference Share Financing: an Empirical Study, 2005; em português, Fátima Gomes, Obrigações Convertíveis em Acções, 1999; Cristina Sofia Dias, Certifi cados, Valores Mobiliários Condicionados por

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Em termos simplistas, a conversão tem como efeito um aumento do capital do emitente e uma diminuição do passivo, proporcionando um incremento da sua situação líquida20.

Conquanto o presente texto se foque nas opções legislativas a nível euro-peu, cabe fazer referência ao facto de os CoCos se afi gurarem atípicos à luz da lei portuguesa21. Pode, não obstante, assinalar-se a existência de semelhanças com as obrigações convertíveis (cfr. artigos 365.º e ss. do CSC), com uma diferença assinalável: no caso das obrigações convertíveis, a conversão do ins-trumento em ações opera por efeito de uma opção exercida pelo investidor (adicionalmente, a possibilidade de se emitirem valores mobiliários convertíveis em ações por iniciativa do emitente passou a estar expressamente prevista no artigo 360.º, n.º 2, alínea b), do CSC, com a alteração operada pelo Decreto--Lei n.º 26/2015, de 6 de fevereiro, aplicando-se a esses valores mobiliários o regime das obrigações), o que se pode revelar essencial na tarefa de aferir se, e em que medida, o regime das obrigações convertíveis pode ser aplicado, por analogia, aos CoCos22.

Eventos de Crédito: algumas notas comparativas, Cadernos de Mercado de Valores Mobiliários (15), 2002 e Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, 2015, 160-170. 20 O tratamento contabilístico dos instrumentos híbridos deve ter em conta o facto de os mesmos captarem características de instrumentos de capital próprio e de passivo fi nanceiro. Donde, este tipo de instrumentos deve ser contabilizado, de acordo com as normas internacionais, em duas partes: uma parte de passivo e uma de capital próprio – Pedro Jorge Figueiredo Pulido, Instru-mentos Financeiros Contabilizados de Acordo com a IFRS 9 e Principais Questões de Auditoria, Revista da Ordem dos Revisores Ofi ciais de Contas, n.º 56, 2012, 7.21 Sendo a emissão de CoCos admissível em face do princípio da atipicidade dos valores mobiliários refl etido na última alínea do artigo 1.º do CVM.22 De qualquer forma, antecipamos que a mobilização do regime jurídico das obrigações conver-tíveis implicará uma análise à luz da ratio de cada uma das disposições do CSC em causa, de modo a aferir até que ponto as mesmas podem, por via de analogia, ser aplicáveis aos CoCos. Note-se que, como veremos de seguida, os CoCos podem assumir uma série de confi gurações diferentes, pelo que será necessário efetuar uma análise casuística de modo a concluir se, em concreto, um determinado instrumento CoCo se deve encontrar sujeito a disposições referentes às obrigações em geral (348.º e ss. do CSC) e às obrigações convertíveis. Para uma análise a respeito deste tema (ainda que à luz do CSC ainda não alterado pelo Decreto-Lei 26/2015, de 6 de fevereiro), vide Miguel Brito Bastos, A Elegibilidade de Valores Mobiliários Condicionalmente Convertíveis em Ações Comuns (Contingent Convertibles) como fundos próprios das instituições de crédito na transição para Basileia III, O Novo Direito Bancário, Almedina, 2012, 204-205, entendendo o autor que os artigos 366.º (deliberação de emissão), 367.º (direito de preferência dos acionistas) e 368.º (proibição de alteração da sociedade), todos do CSC, se aplicam, por analogia, aos valores mobiliários condicionalmente convertíveis. Para uma análise em português sobre CoCos: Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2011, 164; Miguel Brito Bastos, A Elegibilidade de Valores Mobiliários Condi-cionalmente Convertíveis em Ações Comuns (Contingent Convertibles) como fundos próprios das instituições

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2.1.2. Write-down CoCos e as implicações práticas do alargamento do conceito

Não obstante o que antecede, a terminologia “CoCo” tem vindo a ser igualmente utilizada no sentido de se aplicar a instrumentos que, mediante a verifi cação de um evento de desencadeamento, vêm o seu valor nominal diminuído (ao invés de se converterem em ações) – os write-down CoCos23. A obrigação de reembolso do capital por parte do emitente aos titulares do ins-trumento é, assim, reduzida total ou parcialmente. Existe a possibilidade de se prever a reposição do valor nominal, preenchidas certas condições24.

Ao contrário do que se verifi ca nos CoCos tradicionais, em que os acionis-tas do emitente podem – conforme os termos da conversão – vir a sofrer uma diluição do ponto de vista económico (fi nancial dilution), sendo que, em prin-cípio, sempre sucederá uma diluição a nível de percentagem do capital social e do poder de decisão (governance dilution), o mesmo não se verifi ca em relação aos write-down CoCos25, na medida em que não há lugar a qualquer conversão em instrumentos de capital próprio que possa originar transferência de valor.

de crédito na transição para Basileia III, O Novo Direito Bancário, 2012, 175 e ss.; Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, 2015, 165-166. 23 Em rigor, e como aponta George M. von Furstenberg, Contingent Convertibles [CoCos], a Potent Instrument for Financial Reform, World Scientifi c – Now Publishers Series in Business, Vol. 5, 2015, 121 ss., não será rigoroso, do ponto de vista conceptual, denominar como CoCos instrumentos em que o efeito da verifi cação do evento de desencadeamento constitui “apenas” a redução do montante de capital (write-down), podendo esses instrumentos ser denominados “CoCas” (Contin-gent Cancellable Debt Securities). Genericamente, os instrumentos write-down podem ser objeto de: (a) redução permanente ou temporária, conforme essa redução possa ou não ser objeto de repo-sição; e (b) redução total ou parcial, conforme a redução, possa ou não (mediante a verifi cação de um só evento de desencadeamento ou vários eventos de desencadeamento sucessivos) incluir a totalidade do capital; para mais detalhes, p.e., Ayowande A. McCunn, Forbearance Incentives: Undeterming The Distinction Between Going and Gone-Concern Capital, 2016, 7. 24 “Elasticidade do valor nominal”, como apelida Orlando Vogler Guiné, em Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume V, 2012, 901. 25 A diluição económica representa uma diminuição do valor económico das ações dos antigos acionistas, que se verifi cará (ou não) na medida em que dos termos da conversão dos CoCos em ações resultar a atribuição, aos detentores de CoCos, de ações por um valor inferior ao valor eco-nómico das mesmas. A outro passo, a diluição percentual dos acionistas no que concerne ao capi-tal social detido sucederá, em princípio, sempre, dado que do aumento de capital resultará uma diminuição da posição relativa dos antigos acionistas e uma diminuição do seu poder de decisão na sociedade. Para um estudo detalhado a respeito dos tipos de diluição e formas contratuais de mitigação ver, a título ilustrativo, Michel A. Woronoff and Jonathan A. Rosen, Understanding Anti-dilution Provisions in Convertible Securities, 2005, 102-112 e Marcel Kahan, Anti-Dilution Pro-visions in Convertible Securities: a Guide Throw Maze, Harvard Law School, 1995.

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O que antecede leva-nos a concluir, pois, que os write-down CoCos apre-sentam, do ponto de vista dos acionistas do emitente, a vantagem de constituí-rem um almofada fi nanceira para fazer face a eventuais perdas antes do valor da sua participação ser diretamente afetado. Por conseguinte, parecem apresentar--se como um instrumento potencialmente menos atrativo para os investidores (o que sempre dependerá da taxa de juro oferecida), tanto mais que a redução do valor nominal, excetuando nos casos em que se prevê a possível reposição, signifi ca a perda integral do montante correspondente, ao passo que a conver-são permite, pelo menos, conservar algum valor.

Assim, resultando a conversão dos CoCos numa diluição dos acionistas, tal não só constitui um fator de desencorajamento da adoção de comportamentos de risco (ex-ante), como constitui um estímulo para que os acionistas e os admi-nistradores do emitente promovam um aumento de capital antes da verifi cação do evento de desencadeamento, caso o mesmo se revele iminente26.

2.2. CoCos como instrumentos de absorção de perdas das instituições no pano-rama pós-crise

2.2.1. Apenas capitais próprios?

Tal como anteriormente referido, a crise de 2007-2009 revelou que as instituições de crédito não se encontravam sufi cientemente capitalizadas no sentido de fazer face a perdas imprevisíveis, para além do facto de alguns dos instrumentos classifi cáveis como capital não terem a capacidade sufi ciente para absorver perdas numa lógica “going concern”.

Perante a necessidade de reajustar o nível e confi guração dos fundos de capitais exigidos, uma resposta direta ao problema (e, diríamos, simplista) pode-ria ser, concomitantemente à exigência de aumento dos rácios de capital, res-tringir ao máximo a admissibilidade de instrumentos que não confi gurassem common equity, ou seja capitais próprios (v.g. ações, resultados transitados e pré-mios de emissão) para efeitos dos requisitos regulatórios em matéria de fundos próprios27.

26 No sentido de que, ao contrário dos CoCos convertíveis, os write-down CoCos criam incentivos perversos a nível do endividamento e “money burning”, vide Charles P. Himmelberg and Sergey Tsyplakov, Incentive Eff ects of Contingent Capital, 2012, 4.27 Defendendo uma abordagem regulatória centrada no aumento dos requisitos de capital common equity e desconsiderando as vantagens da utilização de instrumentos híbridos como os CoCos, Anat R. Admati, Peter M. DeMarzo, Paul Pfleiderer, Fallacies, Irrelevant Facts, and Myths

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No entanto, ainda que a preferência por capitais próprios puros se afi -gure um princípio útil e indique, potencialmente, a abordagem mais benéfi ca, podem apontar-se alguns aspetos que difi cultam a implementação prática de uma solução tão extremista, como o facto de a common equity ser a mais cara forma de capital – na medida em que o retorno exigido é superior (risco supe-rior) – e a sua remuneração (dividendos) não ser fi scalmente dedutível, ao contrário dos juros.

2.2.2. Instrumentos convertíveis: uma solução intermédia

Neste contexto, a emissão de CoCos tem sido apontada como uma solu-ção intermédia, capaz de captar algumas das vantagens associadas à dívida e ao capital próprio, facilitando a aceitação do mercado em condições comportáveis pelas instituições.

A um tempo, a sua emissão comporta um custo inferior ao da common equity para as instituições e, a outro tempo, a sua remuneração (juros) é fi scalmente dedutível.

Adicionalmente, os CoCos têm a capacidade de absorver perdas numa lógica “going concern”, através da conversão em instrumentos de capital pró-prio de qualidade superior ou da redução do seu valor nominal, mediante a verifi cação de um evento de desencadeamento indicativo de insufi ciência de capital. Ou seja, em momentos de solidez o instrumento tem a natureza de dívida, tendo os respetivos investidores direito a juros – e não a dividendos –, ao passo que, em momentos de necessidade de capital, os mesmos participam na absorção das perdas.

in the Discussion of Capital Regulation: Why Bank Equity is not Socially Expensive, 2013, 43. ss. Os autores procuram desmistifi car um conjunto de desvantagens associadas ao capital “puro”, sendo de destacar, a título de ilustração, as seguintes conclusões: (a) os capitais próprios dos bancos não são “social expensive”, nem obstam a que os mesmos desenvolvam a sua atividade do ponto de vista socialmente mais benéfi co, sendo que incentivam a promoção de políticas de concessão de crédito racionais; (b) o alto endividamento dos bancos não é socialmente benéfi co e os incentivos subja-centes à dedutibilidade fi scal dos juros criam externalidades negativas e distorções de mercado; (c) sob o fundo da teoria Modigliani e Miller, o aumento dos capitais próprios não aumenta os custos totais de fi nanciamento (i.e. média ponderada dos custos do fi nanciamento por capitais próprios [cost of equity) e por dívida [cost of debt]) porque, apesar do cost of equity ser superior ao cost of debt, a diminuição do risco dos capitais próprios por efeito de uma diminuição da dívida leva a uma diminuição do cost of equity, não se verifi cando um aumento dos custos totais de fi nanciamento. A respeito, em específi co, da utilidade dos contingent convertibles em comparação com capital “puro” (capítulo 8 da referida obra [43 e ss.]), notam os autores que aqueles permitem aos acionistas dos bancos não suportar a sua quota-parte de risco.

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Por fi m, os CoCos podem reduzir a adoção de comportamentos de risco por parte dos administradores e acionistas, dependendo do desenho do trigger event, nomeadamente em face dos sinais negativos transmitidos ao mercado por efeito da conversão/redução e da possibilidade de diluição28.

Como desvantagens à utilização destes instrumentos, podem ser apontados, genericamente, os seguintes aspetos:

(a) excessiva complexidade, podendo os riscos associados aos mesmos não ser devidamente apreendidos pelos investidores29;

(b) possibilidade de os investidores, “sedentos” de instrumentos com yields altos, projetarem como improvável a verifi cação do evento de desenca-deamento e desconsiderem o risco de conversão/redução;

(c) a conversão/redução dos CoCos (i) envia um sinal negativo ao mer-cado, diminuindo a confi ança na solidez da instituição de crédito por parte dos vários stakeholders, e (ii) pode provocar risco sistémico, afe-tando tanto instituições de crédito emitentes de CoCos30, como, even-tualmente, não emitentes (por exemplo, se forem detentoras de Cocos emitidos por outras instituições);

(d) no contexto de uma crise fi nanceira, os investidores (diríamos, prin-cipalmente os que desconsideraram o risco de conversão/redução na compra do instrumento) tenderão a procurar alienar rapidamente os seus instrumentos. Por um lado, existe a possibilidade de alienarem os instrumentos com um desconto considerável, diminuindo ainda mais o seu valor de mercado. Por outro, tendo em conta o facto de o mercado de CoCos não ser, ainda, sufi cientemente líquido, esses investidores poderão encontrar grandes difi culdades em alienar os mesmos, sendo tentados a: (i) vender ações do emitente a descoberto (short-selling)31 na

28 Ver 2.1. supra. Desenvolvendo esta temática, European Parliament, Contingent convertible secu-rities – is a storm brewing?, 2016, 6, que cita Natalya Martynova e Enrico Perotti, Convertible bonds and bank risk-taking, 2012, “By shifting the costs of the failure of a fi nancial institution from taxpayers as a whole to investors and debt – holders, the latter are thought to be incentivesed to keep a closer eye on the institution’s management and ensure that it is acting prudently”. Quanto a nós, o incentivo dependerá sempre em parte dos termos da conversão: quem perde valor por via da conversão?29 Não foi despiciente a emissão, por parte da ESMA, de uma nota sobre os vários riscos associados aos CoCos, cfr. ESMA, Potencial Risks Associated with Investing in Contingent Convertibles Instruments, 2014.30 Como demonstra o sucedido no início de 2016: com a instabilidade do Deutsche Bank e a descida do preço dos seus CoCos, o valor dos CoCos de outras instituições europeias caiu consideravelmente, como veremos no ponto 3.3. do presente texto. 31 Operação de venda em que o ordenador obteve os instrumentos fi nanceiros alienados por via de empréstimo ou por qualquer outro negócio jurídico que lhe atribua uma titularidade temporária e o

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tentativa de diminuir o valor dessas ações, saindo benefi ciados da con-versão dos CoCos (o valor das mesmas voltaria depois ao seu real valor); (ii) adquirir um swap de risco de incumprimento (credit-default swap)32, de modo a prevenir o risco de conversão, produzindo um aumento do preço desses instrumentos33; todos estes fatores convergindo numa espiral de perda de confi ança no mercado34.

As vantagens e desvantagens acima referidas, de modo exemplifi cativo, têm um peso diferente conforme as várias possíveis confi gurações dos CoCos, tema que se analisa de seguida.

2.3. Confi guração dos CoCos

2.3.1. Generalidades

Comece-se por assinalar que a escolha da confi guração dos CoCos depen-derá do peso relativo a considerar em relação aos fatores subjacentes à sua emis-são (o que inclui pressupostos factuais e os objetivos que se pretende prosseguir com a mesma), nomeadamente, a sua aceitação pelo mercado, a capacidade do emitente para o pagamento da remuneração ou a aptidão para incentivar a adoção de políticas racionais do ponto de vista da assunção de riscos e absorver de perdas em caso de necessidade.

Por exemplo, os CoCos com um trigger elevado (i.e. um rácio de capi-tal elevado), podem atuar numa fase em que a instituição ainda não está em situação crítica, para além de constituírem fator dissuasor da assunção de riscos

constitua numa obrigação de restituição desses instrumentos. Este tipo de operações encontram-se, no âmbito europeu, reguladas pelo Regulamento (UE) n.º 236/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de março de 2012, tal como alterado. 32 Um contrato derivado no qual uma parte paga uma remuneração à outra parte como contrapartida de um pagamento ou outro benefício no caso de um acontecimento de crédito relativo a essa entidade de referência e de qualquer outro incumprimento, relativo a esse contrato derivado, que tenha um efeito económico equivalente. Também regulado pelo Regulamento (UE) n.º 236/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de março de 2012, tal como alterado. 33 Este fenómeno verifi cou-se em fevereiro de 2016, aquando das dúvidas quanto aos CoCos do Deutsche Bank, tendo o valor dos credit default swaps subido a pique – European Parliament, Contingent convertible securities – is a storm brewing?, 2016, 8.34 Sobre as várias vantagens e desvantagens genéricas dos CoCos vide, a título ilustrativo, Martynova e Enrico Perotti, Convertible bonds and bank risk-taking, 2012, 4-6; Hilary J. Allen, CoCos can Drive Markets Cuckoo, 2012; Mark J. Flannery, Contingent Capital Instruments for Large Financial Institutions: A Review of the Literature, 2013.

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excessivos. No entanto, os investidores exigirão, nessa hipótese, uma remu-neração mais elevada (dada a maior probabilidade de ocorrência do evento de desencadeamento), que, no limite, o emitente não está disposto a suportar. A confi guração dos CoCos implica, assim, uma avaliação dos diversos interes-ses em jogo e dos trade-off s subjacentes, variáveis em função do caso concreto.

Podem ser identifi cados dois elementos especialmente relevantes no que respeita à confi guração dos CoCos, a saber: os termos da conversão e o evento de desencadeamento.

2.3.2. Termos da conversão

Como ponto prévio, notar que este aspeto é apenas relevante nos CoCos “puros”, ou seja, quando o efeito do evento de desencadeamento provoca a conversão dos mesmos noutro tipo de instrumento. No caso dos denominados write-down CoCos, não cumpre aferir qualquer tipo de relação de conversão, dado que a consequência da verifi cação do evento de desencadeamento é a redução do valor nominal.

A relação de conversão indica o número de ações que o titular dos CoCos recebe por efeito da conversão, em função dos CoCos por si detidos no momento do evento de desencadeamento.

A relação de conversão pode ser concretamente fi xada no momento da emissão dos CoCos (relação de conversão fi xa) ou ser apenas efetivamente aferível no momento da verifi cação do evento de desencadeamento, em função de cri-térios pré-estabelecidos no momento da emissão dos CoCos (relação de conversão variável). A relação de conversão (fi xa ou variável) baseia-se no valor atribuído a cada um dos instrumentos para esse efeito (podendo esse valor de referência ser, p.e., o valor de mercado ou o valor nominal dos mesmos).

São exemplos de relação de conversão fi xa o estabelecimento, no momento da emissão, de um valor de referência dos CoCos e das ações para efeitos de conversão ou, simplesmente, a defi nição do número de ações que serão atribuí-das por cada CoCo convertido. No primeiro caso, o valor das ações pode ser, p.e., (a) fi xado a desconto em relação ao seu valor de mercado no momento da emissão dos CoCos; (b) o valor de mercado no momento da emissão dos CoCos; ou (c) o seu valor nominal; por seu lado, o valor dos CoCos é, por norma, o seu valor nominal.

No caso de uma relação de conversão variável, poder-se-á estabelecer que a mesma tem por base: (a) no valor de mercado das ações e dos CoCos no momento da verifi cação do evento de desencadeamento; (b) no valor de mer-cado das ações no momento da verifi cação do evento de desencadeamento e

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no valor nominal dos CoCos; (c) em quaisquer outras combinações possíveis em que pelo menos o valor de referência de um dos instrumentos seja apenas concretizado no momento da verifi cação do evento de desencadeamento35.

As diferentes confi gurações terão infl uência na verifi cação – ou não – e na medida da diluição dos acionistas, o que, por sua vez, infl uenciará a conduta daqueles no que diz respeito aos riscos que se propõem a assumir e à eventual adoção de comportamentos com vista a adiar o evento de desencadeamento36. Com efeito, o estabelecimento de uma relação de conversão que implique uma diluição considerável – principalmente económica – dos acionistas, pode atuar como incentivo para que os mesmos limitem o risco e monitorizem a atividade da administração da instituição.

Tendo em conta o que antecede, poder-se-á concluir que uma relação de conversão com base no valor nominal dos CoCos e no valor de mercado das ações no momento da verifi cação do evento de desencadeamento assegura uma diluição considerável dos acionistas, constituindo um forte incentivo a que os mesmos – e a administração, tendo igualmente em conta o impacto reputacio-nal da ocorrência do trigger – atuem de forma a preservar os rácios de capital com robustez sufi ciente para que se mantenham acima do limite estabelecido como evento de desencadeamento37.

2.3.3. Evento de desencadeamento

2.3.3.1. Automático ou dependente de decisão do regulador

O evento de desencadeamento que origina a conversão pode ser automá-tico – i.e. a mera verifi cação de um critério pré-defi nido – ou fi car dependente de decisão do regulador (regulatory trigger).

Ocorrendo de forma automática existe a possibilidade de ter por base um critério contabilístico (accounting value trigger) ou um critério de mercado (market value trigger):

35 Para uma análise a respeito dos tipos de relação de conversão no contexto das obrigações convertíveis, ver Fátima Gomes, Obrigações Convertíveis em Acções, 1999, 22 e 24 e 95 e ss.. 36 Por aqui se vê que os write-down-only CoCos limitam a absorção de perdas apenas aos detento-res dos CoCos. Não obstante, a verdade é que desconfi ança do mercado gerada pela verifi cação do write-down provocará em princípio, ceteris paribus, uma redução do valor de mercado das ações.37 Daí parecer ser este o modelo preconizado por Marks Flannery e Enrico Perotti, CoCo design as a risk preventive tool, Vox, 2011, 2.

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– no primeiro caso, o evento de desencadeamento consiste na verifi cação de um rácio constituído pelo valor contabilístico dos fundos próprios CET1 do emitente (numerador) em percentagem dos ativos ponderados por risco (risk weighted assets) (denominador). Esta confi guração apresenta-se mais objetiva, mitigando-se a exposição ao mercado e à sua eventual manipulação, como poderá ocorrer com os market-value triggers38. A outro tempo, parece-nos que a efi cácia deste método variará em função da fre-quência com que os rácios são calculados e reportados, bem como o rigor e consistência dos modelos internos de mensuração dos riscos;

– no segundo caso, o evento de desencadeamento baseia-se num rácio que tem como numerador a capitalização de mercado do emitente. Verifi -ca-se, nesta hipótese, uma menor exposição ao risco de adulteração das contas e, por comparação com o regulatory trigger, é mitigado o perigo de inércia da entidade supervisora. No caso de as ações das instituições se encontrarem cotadas em mercado regulamentado, este método permite uma transparência superior aos restantes, porquanto a probabilidade de verifi cação do evento de desencadeamento pode ser aferida diariamente pelos investidores e facilmente apreensível pelos mesmos. No entanto, diversas questões podem ser suscitadas quanto à efi cácia e operacionali-dade dos market triggers, nomeadamente a possibilidade de os indicadores serem manipulados pelos titulares dos CoCos39 e as limitações quanto à aplicação deste método em relação a instituições não cotadas ou com pouco liquidez40-41.

A segunda alternativa de confi guração do modo de ativação do evento de desencadeamento consiste na sua ativação por decisão do regulador, nomeadamente

38 Louise Pitt, Amanda Hindlian, Sandra Lawson, Charles P. Himmelberg, Contingent Capi-tal Possibilities, Problems and Opportunities, 2011, 8. Poderá, no limite, existir a possibilidade de os detentores de CoCos causarem deliberadamente um evento de desencadeamento mediante uma venda a descoberto em bloco das ações do emitente de forma a baixar o seu preço de mercado que, posteriormente, voltaria ao normal. Esta possibilidade é, eventualmente, meramente teórica, tendo em conta o volume de operações que seriam necessárias para surtir o efeito pretendido. 39 Tal como vimos antes. Uma solução poderia passar por estabelecer como market trigger o valor médio da capitalização durante um determinado período. 40 As limitações no panorama europeu são óbvias: em 2012, apenas 312 das quase 7800 institui-ções de crédito europeias encontravam-se cotadas em mercado regulamentado, como nota Marie Nieto, What a role, if any, can market discipline play in supporting macro prudentiual policy?, Bank of Spain, 2012, 16. 41 Ver Marks Flannery e Enrico Perotti, CoCo design as a risk preventive tool, Vox, 2011, 2 e 3, para uma análise mais detalhada sobre a fi abilidade dos preços das ações dos bancos como indi-cadores da efetiva situação de solvabilidade dos bancos.

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com base num juízo em relação à robustez dos fundos próprios da instituição. A opção por um trigger desta natureza poderá permitir mitigar algumas desvan-tagens apontadas ao accounting value trigger e ao market trigger. No primeiro caso, permite ao regulador desencadear o mecanismo de absorção de perdas quando a instituição já apresenta uma débil situação fi nanceira e as contas não refl etem corretamente esse estado (seja por não se encontrarem atualizadas, seja porque o supervisor suspeita da sua falta de fi abilidade). No segundo, permite mitigar o risco de o desencadeamento do mecanismo de absorção de perdas ocorrer em virtude de fatores conjunturais ligados à volatilidade dos mercados ou a qualquer tipo de manipulação. Por fi m, pelo menos idealmente, os supervisores estão melhor informados sobre a situação fi nanceira real das instituições do que o mercado e, por isso, tomam conhecimento do registo de perdas consideráveis antes de as mesmas serem publicamente divulgadas.

No entanto, a colocação do desencadeamento do mecanismo no plano da discricionariedade (ainda que limitada) da autoridade supervisora retira alguma objetividade ao seu funcionamento e pode provocar alguma incerteza quanto ao timing do desencadeamento.

2.3.3.2. High Trigger ou Low Trigger?

Outro ponto relevante em relação à confi guração do evento de desenca-deamento prende-se com a possibilidade de poder consistir na verifi cação de um rácio de capital mais ou menos elevado (high trigger ou low trigger), com consequência na probabilidade do mecanismo vir a ser desencadeado.

A previsão de um low trigger permite aos bancos adiar a sua recapitalização, podendo impedir que os CoCos funcionem como um instrumento de absorção de perdas “going concern”, dado que, aquando da conversão ou write-off , poderá já ser demasiado tarde para evitar a aplicação de medidas mais drásticas, v.g. a resolução (tema que analisaremos mais adiante).

De facto, quanto mais baixo for o rácio que confi gura o evento de desen-cadeamento do mecanismo de absorção, mais o instrumento se aproxima de uma forma de bail-in. Mais a mais, a verifi cação de um low trigger provoca mais facilmente desconfi ança quanto à viabilidade do banco do que a verifi cação de um high trigger, mormente por parte dos depositantes42. Finalmente, um low trigger reduz o papel disciplinador e preventivo contra a adoção de comporta-

42 Desconfi ança essa que pode levar às famosas corridas aos bancos (bank runs), provocando graves problemas de liquidez à instituição. Recorde-se os casos do Northern Rock em 2007 ou, mais recentemente (2015), em Portugal, o Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A..

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mentos de risco, tendo em conta que permite ao banco atuar mais tempo com níveis de endividamento elevados antes de o mecanismo de absorção de perdas ser acionado.

No entanto, mesmo em face das diversas vantagens do ponto de vista regu-latório na adoção de um evento de desencadeamento que seja a verifi cação de um rácio de capital ainda relativamente consistente, a verdade é que os investidores exigirão nesse caso um yield mais alto por comparação com ins-trumentos que tenham um low trigger – em face do maior risco de conver-são/redução –, o que difi culta a sua colocação pelos emitentes em condições para si comportáveis, para além da necessidade de se ter conta que, em qual-quer caso, a verifi cação de um evento de desencadeamento é suscetível de comportar alarme no mercado e desconfi ança em relação ao banco em causa e ao sistema bancário, muitas vezes desproporcionados – e num high trigger esse evento mais facilmente ocorrerá.

Cumprirá ao emitente desenhar uma confi guração que, ponderando os efeitos positivos e negativos da adoção de cada uma das possibilidades de for-mato dos CoCos, permita alcançar um resultado mais satisfatório em face dos objetivos pretendidos43. Tal dependerá, em última instância, das características específi cas da instituição em causa e dos mercados onde opera.

Tal como se detalhará em seguida, a regulamentação europeia optou por prever que os CoCos elegíveis como instrumentos de fundos próprios AT1 devem comportar um evento de desencadeamento automático, tendo por base critérios contabilísticos e um rácio de desencadeamento mínimo relativamente baixo (5,125% de CET1), que poderemos considerar como um low trigger.

3. CoCos como instrumentos elegíveis como fundos próprios AT1

3.1. Generalidades

Para que um instrumento possa ser considerado elegível como instrumento de fundos próprios AT1, terá que respeitar um conjunto de requisitos previstos no artigo 52.º, n.º 1, do CRR.

Como se poderá constatar, esses requisitos (cumulativos) incorporam um conjunto de características típicas quer de dívida, quer de capital próprio, sendo

43 Marks Flannery e Enrico Perotti, CoCo design as a risk preventive tool, Vox, 2011, p. 5 defen-dem que a opção regulatória mais adequada será a adoção de uma confi guração (a) com uma taxa de conversão que implique perda de valor para os acionistas e (b) com um evento de desencadea-mento mecânico, a market-value e elevado.

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que, por mera facilidade metodológica, optou-se por agrupar esses requisitos em várias categorias: (a) permanência; (b) capacidade de absorção; (c) limita-ção de pagamentos; e (d) requisitos específi cos para instrumentos não emitidos diretamente pela instituição. Após um excurso a respeito desses requisitos, ire-mos, posteriormente, circunscrever a análise a um dos requisitos da categoria (b), em especial o rácio de desencadeamento mínimo exigido pelo CRR.

Tendo em conta a necessidade de densifi cação de algumas das normas a respeito dos instrumentos de fundos próprios AT1 e as dúvidas levantadas em relação à sua interpretação, cumpre dar nota que a EBA tem vindo a emanar um conjunto de indicações no sentido de clarifi car alguns aspetos do regime44.

Adicionalmente, foi aprovado o Regulamento Delegado (UE) n.º 241/2014 da Comissão, de 7 de janeiro de 2014 (o “RD n.º 241/2014”), que completa o CRR no que respeita a normas técnicas de regulamentação de fundos próprios (o seu Capítulo III versa sobre os instrumentos de fundos próprios AT1).

3.2. Requisitos legais

3.2.1. Permanência

Por forma a que constituam fundos duradouros e uma fonte sólida de fi nanciamento, o CRR exige que os instrumentos de fundos próprios AT1:

(a) sejam perpétuos e as disposições que os regem não incluam qualquer incentivo ao seu reembolso por parte da instituição45 (artigo 52.º, n.º 1,

44 No âmbito da monitorização da qualidade dos instrumentos de fundos próprios emitidos pelas instituições de crédito da União Europeia, a EBA publicou um relatório com análise à adequação das práticas que têm sido seguidas na emissão de instrumentos de fundos próprios AT1, estando a última versão atualizada a 10 de outubro de 2016 (o “EBA Report AT1”) disponível em https://www.eba.europa.eu/-/eba-updates-on-monitoring-of-additional-tier-1-instrumen-1. Adicionalmente, a mesma entidade emanou propostas de redação para as disposições que regulam os instrumentos AT1: https://www.eba.europa.eu/documents/10180 /1360107/EBA+draft+AT1+templates+-+2016. pdf. Destaque, ainda, para o Single Rule Book da EBA: https://www.eba.europa.eu/regulation-and-policy/single-rulebook/interactive-singleru lebook. 45 A título indicativo, referir que em Portugal tem vindo a ser discutido se um valor mobiliário representativo de dívida que confi ra direito ao pagamento de juro, mas que não preveja uma data para o reembolso do capital, pode ser qualifi cado como obrigação (artigos 348.º e ss. do CSC). Tem sido igualmente suscitada a possibilidade de se confi gurar a obrigação de reembolso de capital, nesse caso, como uma obrigação com cláusula cum voluerit (artigo 778.º, n.º 2, do Código Civil). Por efeito do Decreto-Lei 26/2015, de 6 de fevereiro, o CSC passou a prever este tipo de valor mobiliário (artigo 360.º, n.º 2, alínea a)), não o confi gurando como obrigação mas fazendo-lhe

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alínea g)). O artigo 20.º do RD n.º 241/2014 indica a forma e a natu-reza desses incentivos ao reembolso;

(b) caso as disposições que regem os instrumentos incluam uma ou mais opções de reembolso, o exercício da opção de reembolso dependa exclusivamente da decisão discricionária do emitente (artigo 52.º, n.º 1, alínea h));

(c) só possam ser reembolsados ou recomprados (artigo 52.º, n.º 1, alí-nea i))46:

(i) “quando estiverem preenchidas as condições estabelecidas no artigo 77.º”, que se refere à necessidade de solicitação prévia à autoridade com-petente (prevendo os artigos 28.º e ss. do RD n.º 241/2014 as regras referentes aos requisitos de informação, apresentação e con-teúdo dos pedidos de autorização);

(ii) e nunca antes de decorridos cinco anos a contar da data de emissão, exceto quando “estiverem reunidas as condições estabelecidas no artigo 78.º, n.º 4”.

O artigo 78.º, n.º 4, prevê que “as autoridades competentes só podem autorizar as instituições a reembolsar instrumentos de fundos próprios adi-cionais de nível 1 (…) antes de decorridos cinco anos a contar da data de emissão se estiverem reunidas as condições estabelecidas no número 1 ou nas alíneas a) ou b) do presente número” (destacados nossos).

Ora, por seu lado, o artigo 78º, n.º 1, estatui que a recompra ou reembolso (em qualquer caso, ou seja, quer tenham decorrido ou não 5 anos da emissão) pode ocorrer se estiver reunida uma das seguintes condições: (1) ocorra a substituição dos instrumentos por outros de igual ou melhor qualidade (ver, em complemento, o artigo 27.º do RD n.º 241/2014) ou (2) se conclua que do referido reembolso ou recompra não resulta prejuízo para o cumprimento dos requisitos mínimos de fundos próprios e o requisito combinado de reservas47 por parte da instituição.

Já as condições estabelecidas nas alíneas a) e b) do artigo 78.º, n.º 4, referem-se (1) à verifi cação de uma alteração de classifi cação regulamentar dos instrumentos que poderá resultar na sua exclusão

aplicar o seu regime. Para mais detalhes ver Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, 2015, 148 e 171, Orlando Vogler Guiné, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume V, 2012, 897-898 e Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2011.46 Ver a este respeito, genericamente, os artigos 27.º e ss. do RD n.º 241/2014 e os parágrafos 26-36, 49 e 59 do EBA Report AT1. 47 Artigo 128.º, ponto 6) da CRD IV.

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como instrumento de fundos próprios AT1 ou reclassifi cação em fundos próprios de qualidade inferior48 e (2) à verifi cação de um alteração no tratamento fi scal aplicável a esse instrumentos que seja signifi cativa e não razoavelmente previsível49.

Não nos parece que a remissão operada pelo artigo 52.º, n.º 1, alínea i), para os artigos 77.º e 78.º tenha sido redigida da melhor forma.

O primeiro ponto prende-se com a remissão para as condições constan-tes do artigo 77.°. O artigo 52.º, n.º 1, alínea i), refere a necessidade de, em qualquer reembolso ou recompra (ou seja, independentemente do momento em que tal ocorre), estarem preenchidas as “condições estabe-lecidas no artigo 77.º”. O artigo 77.º exige que instituição solicite prévia autorização à entidade competente para reduzir, reembolsar ou recom-prar instrumentos de fundos próprios CET1 (não aplicável ao caso) e/ou efetuar o reembolso ou a recompra de instrumentos de fundos próprios AT1 ou T2 antes da data do respetivo vencimento contratual.

Ora, “condições estabelecidas no artigo 77.º” parece-nos que diz respeito somente à necessidade de a instituição efetuar uma solicitação prévia para proceder ao reembolso ou recompra dos instrumentos, não se vis-lumbrando quaisquer outras “condições” previstas no artigo 77.º (será que a redação pretende aludir – desnecessariamente e de uma forma tecnicamente duvidosa – às normas que viriam a regular o pedido de autorização [emanadas, posteriormente, via RD n.º 241/2014]?).

Por outro lado, cabe sublinhar o facto de uma leitura literal da segunda parte do artigo 52.º, n.º 1, alínea i), nos levar a concluir que só se exige o preenchimento das condições estabelecidas no artigo 78.º, n.º 1 (ex-vi artigo 78.º, n.º 4) no caso de estar em causa um reembolso ou recompra antes de decorridos 5 anos da data de emissão. Tal signifi -caria, então, que os referidos requisitos não se aplicam à recompra ou reembolso após 5 anos decorridos da emissão. Essa interpretação não parece coadunar-se com o espírito da norma (garantir um carácter de permanência e estabilidade aos fundos em causa, no sentido do cumpri-mento dos requisitos de fundos próprios), nem faria sentido do ponto de vista sistemático – no caso de um reembolso ou recompra depois de decorridos 5 anos desde a data de emissão, a autoridade daria a autori-

48 “Regulatory call”. Ver EBA Report AT1, nos seus parágrafos 26. a 28. e 49. A EBA entende que são apenas admissíveis “regulatory calls” que incidam sobre o montante total da emissão, independentemente de o trigger ter sido o desreconhecimento parcial ou total do instrumento.49 “Tax calls”. Ver EBA Report AT1, nos seus parágrafos 30. a 33. e 38. A EBA aceita a possibilidade de um “tax call” sobre parte do montante da emissão.

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zação nos termos do artigo 77.º com base em que critérios? De modo puramente discricionário? A própria estrutura do artigo 78.º – tendo o n.º 1 como princípio geral e o n.º 4 como regime especial no caso de estar em causa um reembolso/recompra antes de decorridos 5 anos da data de emissão – não parece compaginável com aquela leitura literal.

Assim, quanto a nós, faria sentido que a remissão para as “condições estabelecidas no artigo 77.º” se entendesse feita para as “condições estabele-cidas nos artigos 77.º e 78.º” o que, na verdade, tornaria a segunda parte da alínea i) (“e nunca antes de decorridos 5 anos a contar da data de emis-são, excepto quando reunidas as condições estabelecidas no artigo 78.º, n.º 4”) redundante50.

O caminho acima ensaiado encerra, porém, um novo problema interpretativo: se entendermos que as condições do artigo 78.º, n.º 1, devem estar preenchidas em qualquer recompra/reembolso (indepen-dentemente de ser antes ou depois de decorridos 5 anos da emissão), então qual a diferença entre os requisitos da recompra/reembolso rea-lizada antes de decorridos 5 anos após a emissão e os requisitos da rea-lizada posteriormente?

Recorde-se que o artigo 78.º, n.º 4 (para as recompras/reembolsos anteriores a 5 anos antes da data de emissão), prevê que “as autoridades competentes só podem autorizar as instituições a reembolsar instrumentos de fun-dos próprios adicionais de nível 1 (…) antes de decorridos cinco anos a contar da data de emissão se estiverem reunidas as condições estabelecidas no número 1 ou nas alíneas a) ou b) do presente número” (destacado nosso). Desta forma a recompra/reembolso antes de decorridos 5 anos após a emis-são teria um regime mais permissivo, podendo não estar preenchido qualquer requisito do artigo 78.º, n.º 1, se estivesse verifi cado algum dos requisitos previstos nas alíneas a) e b) do 78.º, n.º 4. Obviamente, esta solução contrariaria os princípios lógicos interpretativos a maiori ad minus e a minori ad maius.

A resposta encontra-se, parece-nos, numa incorreta tradução do artigo 78.º, n.º 4, pois que, olhando à versão em língua inglesa51 onde se lê “(…) condições estabelecidas no número 1 ou nas alíneas a) ou b) do pre-

50 Em boa verdade, este entendimento parece coincidente com a cláusula relativa às condições para reembolso e recompra proposta pela EBA (EBA Standartised Templates for Additional Tier 1 Instruments – Draft, 17). 51 “The competent authorities may permit institutions to redeem Additional Tier 1 or Tier 2 instruments before fi ve years of the date of issue only where the conditions laid down in paragraph 1 and point (a) or (b) of this paragraph are met:”

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sente número”, deve ler-se “condições estabelecidas no número 1 e nas alíneas a) ou b) do presente número”.

Conclui-se, assim, que (i) em caso de recompra/reembolso antes de 5 anos após a emissão, deve exigir-se o preenchimento de um dos requisitos previstos no n.º 1 do artigo 78.º e cumulativamente a verifi -cação alternativa dos pressupostos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 78.º e (ii) na recompra/reembolso após 5 anos decorridos da emissão, cumprirá preencher um dos requisitos do n.º 1 do artigo 78.º.

(d) as disposições que regem os instrumentos não indiquem, expressa ou implicitamente, que os instrumentos são ou podem ser reembolsados ou recomprados, não devendo a instituição prestar de outra forma qualquer indicação nesse sentido, exceto em caso de liquidação ou de recompras discricionárias dos instrumentos (artigo 52.º, n.º 1, alínea j));

(e) a instituição não indique, expressa ou implicitamente, que a autoridade competente dará o seu consentimento a um pedido de reembolso ou recompra dos instrumentos (artigo 52.º, n.º 1, alínea k)).

3.2.2. Capacidade de absorção de prejuízos

No sentido de garantir a capacidade de absorção de prejuízos por parte dos instrumentos de fundos próprios AT1 e a sua subordinação em relação a outros instrumentos de dívida (repara-se aqui, uma vez mais, a natureza híbrida do instrumento e a aproximação das suas características às dos capitais próprios) exige-se que:

(a) os instrumentos devem estar emitidos e realizados, perdendo a sua ele-gibilidade se forem subscritos ou adquiridos pela instituição emitente ou por alguma das suas fi liais ou sociedade em que detenha uma parti-cipação superior a 20% (artigo 52.º, n.º 1, alíneas a) e b));

(b) a sua aquisição por terceiros não seja fi nanciada direta ou indiretamente pela instituição emitente (artigo 52.º, n.º 1, alínea c));

(c) tenham uma graduação hierárquica inferior aos instrumentos de fun-dos próprios T2 em caso de insolvência da instituição (artigo 52.º, n.º 1, alínea d)); não podendo estar garantidos ou ser objeto de qualquer garantia que aumente a senioridade do crédito (artigo 52.º, n.º 1, alínea e);

(d) não estejam sujeitos a qualquer disposição, contratual ou outra, que aumente a graduação do crédito a título dos instrumentos em caso de insolvência ou liquidação (artigo 52.º, n.º 1, alínea f));

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(e) não contribuam para determinar que os passivos de uma instituição excedem os seus ativos em situações em que tal determinação constitua um teste de insolvência, se aplicável, nos termos do direito nacional (artigo 52.º, n.º 1, alínea m));

(f) as disposições que regem os instrumentos não incluam qualquer carac-terística suscetível de impedir a recapitalização da instituição (artigo 52.º, n.º 1, alínea o), em conjugação com o artigo 53.º). O artigo 23.º do RD n.º 241/2014 estatui que aí se incluem disposições que exijam que a instituição compense os detentores existentes de instrumentos de fundos próprios quando for emitido um novo instrumento de fundos próprios;

(g) mediante a verifi cação de um evento de desencadeamento (artigo 52.º, n.º 1, alínea n) e artigo 54.º):

(i) o montante do capital dos instrumentos seja reduzido (write-off ), a título permanente ou temporário, ou

(ii) os instrumentos sejam convertidos em instrumentos CET1.

Nos termos do artigo 54.º, n.º 1, alínea a), o evento de desencadea-mento ocorre quando o rácio de capitais CET1 for inferior a 5,125% ou a um nível superior – nos termos e condições previstos nas disposições referen-tes ao instrumento – podendo, adicionalmente, prever-se outros eventos de desencadeamento.

Conclui-se, assim, que o CRR permite que se incluam como instrumentos de fundos próprios AT1 tanto CoCos “convertíveis” como write-down CoCos. Adicionalmente, acabou por prever a necessidade de o (ou pelo menos um) evento de desencadeamento ser a verifi cação de que o rácio de fundos próprios CET1 é inferior a determinado nível (no mínimo 5,125%), tal consubstan-ciando um trigger mecânico, baseado no accounting value, e relativamente baixo em função dos requisitos mínimos de capital (4,5% de CET1). Quanto aos termos da conversão, o CRR estatui apenas a necessidade de se prever, nas disposições que regem os instrumentos, a taxa de conversão e o limite para o montante de conversão autorizado, não tomando posição quanto à confi gura-ção dos termos da conversão52. Notar, por fi m, que se podem prever cláusulas anti diluição53. Estes temas serão analisados com mais detalhe em 4. infra.

52 Em Portugal, o artigo 366.º do CSC, no âmbito das obrigações convertíveis, exige que a deliberação de emissão inclua “as bases e os termos da conversão” (cfr. n.º 2, alínea a). Caberá, adicionalmente, chamar a atenção para o facto de, entre nós, não poderem ser emitidas ações abaixo do par, i.e. o valor nominal das ações não pode ser superior ao valor das entradas do acionista (artigos 25.º, n.º 1, e 298.º, n.º 1, do CSC), o que tem levado alguma doutrina a concluir, a respeito

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3.2.3. Limitação aos pagamentos 53

Um dos aspetos mais relevantes dos instrumentos AT1 diz respeito à limi-tação aos pagamentos, i.e., à possibilidade de a instituição não proceder ao pagamento da remuneração dos instrumentos, sem que tal constitua um incum-primento (aproximação às características da remuneração dos capitais próprios). A lei prevê a possibilidade de se verifi car o cancelamento de pagamentos em virtude de limitações legais ou por decisão do emitente.

3.2.3.1. Limitações legais

Nos termos do artigo 52.º, n.º 1, alínea l), as distribuições54 a título dos instrumentos têm de provir de elementos distribuíveis55, não podendo o nível de dis-tribuições efetuadas sobre os instrumentos ser alterado com base na qualidade de crédito da instituição ou da sua empresa-mãe (v.g. notação de risco) (artigo 52.º, n.º 1, alínea l), parágrafos i) e ii)).

Adicionalmente, as instituições que não cumpram o requisito combinado de reserva de fundos próprios56 devem calcular o montante máximo distribuível (o MMD)57 e notifi car a autoridade competente, sendo que (a) enquanto não o fi zerem, aplicam-se um conjunto de limitações a respeito de distribuições de dividendos, pagamento de bónus e pagamentos vinculados a instrumentos de fundos próprios AT1 (e.g. juros); (b) apenas poderão efetuar distribuições na

das obrigações convertíveis, que o valor nominal das ações atribuídas por efeito da conversão não pode exceder o valor de subscrição das obrigações. Para mais detalhes ver Carlos Osório de Castro, Valores Mobiliários: Conceitos e Espécies, 1998, 174, Orlando Vogler Guiné, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume V, 2012, 934 e demais bibliografi a aí indicada, em especial Fátima Gomes, Obrigações Convertíveis em Ações, 1999, 106. e ss.53 EBA, EBA Standardized Templates for Additional Tier 1 Instruments – DRAFT, 23.54 Nos termos do artigo 4.º, ponto 110) do CRR, pagamentos de dividendos ou de juros, sob qualquer forma. 55 Nos termos do artigo 4.º, ponto 128) do CRR, corresponde ao montante dos lucros no fi nal do último exercício: (a) acrescido dos lucros transitados e das reservas disponíveis para esse efeito antes das distribuições aos detentores de instrumentos de fundos próprios e; (b) deduzidas as perdas transitadas, os lucros que não sejam distribuíveis por força de disposições legislativas ou dos estatutos da instituição e as verbas colocadas em reservas não distribuíveis nos termos do direito nacional aplicável ou dos estatutos da instituição, sendo essas perdas e reservas determinadas com base nas contas individuais da instituição e não com base nas contas consolidadas.56 Artigo 128.º, ponto 6) da CRD IV. 57 Calculado de acordo com o artigo 141.º da CRD IV, n.º 4 e ss. No RGICSF, 138.º-AB.

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medida em que não excedam o MMD (vide artigo 141.º, n.º 2 e ss. da CRD IV e, no ordenamento jurídico português, artigos 138.º-AA e ss. do RGICSF).

3.2.3.2. Cancelamento discricionário

O cancelamento dos pagamentos pode ocorrer por decisão da instituição, dado que as disposições que regem os instrumentos devem prever que a insti-tuição tem plenos poderes discricionários para cancelar as distribuições durante um período ilimitado e numa base não cumulativa (artigo 52.º, n.º 1, alínea l), iii). O artigo 53.º refere, a título meramente exemplifi cativo, disposições que constituem restrições ao cancelamento das distribuições58.

3.2.3.3. Objetivo das limitações aos pagamentos

As referidas limitações visam, inter alia, constituir medidas de conservação do capital das instituições e um forte incentivo no sentido do cumprimento das regras referentes às reservas de fundos próprios59, transferindo risco para os detentores dos instrumentos AT1, que podem ver o seu retorno diretamente afetado antes mesmo da ocorrência de qualquer evento de desencadeamento – repare-se como os CoCos podem funcionar como instrumentos de absorção de prejuízos antes mesmos de uma conversão/redução.

De outro enfoque, a verdade é que as restrições obrigatórias permitem, se respeitadas, reduzir a possibilidade de a conversão/redução vir a ocorrer. O mesmo se aplica em relação ao cancelamento discricionário, dado que a instituição pode lançar mão deste mecanismo caso necessário, desta forma pro-movendo a manutenção do capital e mitigando o risco de conversão/redução em caso de difi culdades.

Obviamente, estes aspetos fazem com que o mercado exija uma remunera-ção adicional em face do risco de não pagamento dos juros.

58 Ver, ainda, EBA Report AT1, parágrafos 37 (supra referido), 45 (sobre a inadmissibilidade da previsão de um evento de desencadeamento duplo, em que a conversão/redução apenas ocorre se o cancelamento do pagamento dos juros não se revelar sufi ciente) e 65 e ss. (a respeito do desaconselhamento da EBA à utilização de contingente clauses que prevejam a possibilidade de o pagamento de juros se tornar obrigatório no caso de os instrumentos deixarem de ser considerados instrumentos de fundos próprios AT1). 59 A título complementar, ver o Considerando 89) da CRD IV.

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Neste âmbito, cumpre chamar à colação a instabilidade do mercado dos CoCos no início de 2016, atribuível a dois fatores distintos. A um tempo, a circunstância de, em dezembro de 2015, a EBA ter emitido um parecer no sentido de que o MMD deve ser calculado tendo em conta tanto os requisitos mínimos de capital (Pilar I) como as reservas adicionais (Pilar II), opinião poste-riormente sufragada pelo Banco Central Europeu (o “BCE”)60. A outro tempo, os receios quanto à situação fi nanceira do Deutsche Bank, que em Maio de 2014 emitiu CoCos no montante total de € 3,5 mil milhões (em tranches com cupões a 6%, 6,25% e 7,125%), e a possibilidade de ser cancelado o pagamento de juros referentes a esses CoCos.

Esta situação provocou algum abrandamento na emissão de CoCos por parte dos bancos europeus, tendo, durante o período de instabilidade, o preço dos CoCos do Deutsche Bank baixado de 93% do seu valor nominal, no início do ano, para 72%, em 8 de Fevereiro61.

3.2.4. Instrumentos não emitidos diretamente por uma instituição

Nos termos do disposto no artigo 52.º, n.º 1, alínea p), caso os instrumentos não sejam emitidos diretamente por uma instituição, devem ser emitidos atra-vés de uma entidade incluída no âmbito da consolidação e o produto da emis-são deve ser imediatamente disponibilizado a essa instituição, sem limitação, e nos mesmos moldes como se fosse emitido diretamente pela instituição. O artigo 24.º do RD n.º 241/2014 estabelece requisitos adicionais a este respeito.

3.3. A emissão de CoCos na União Europeia

Nos últimos anos, as instituições de crédito europeias têm vindo a emitir um volume bastante considerável de CoCos elegíveis como fundos próprios AT1, como demonstra o gráfi co infra.

60 Estando o parecer da EBA disponível em https://www.eba.europa.eu/docum ents/10180/983359/EBA-Op-2015-24+Opinion+on+MDA.pdf, e o entendimento do BCE, exposto no Caderno do Mecanismo Único de Supervisão sobre a metodologia do processo de análise e avaliação para fi ns de supervisão (Supervisory Review and Evaluation Process – SREP), 28, disponível em https://www.bankingsupervision.europa.eu/ecb/pub/pdf /ssm_srep_methodology_bookle t.en.pdf61 Com mais detalhe, BCE, Contingent Convertible Securities, is a storm brewing?, 2016, Financial Times, Music Stops For Buyers of Bank Coco Debt, 11 de fevereiro de 2016; Financial Times, ECB is Having Second Thoughts on “CoCo” bonds, 24 de abril de 2016.

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Fonte: Financial Times62

Não obstante, tal como referido em 3.2.3 supra, o mercado de CoCos foi, no início de 2016, objeto de alguma desconfi ança por parte investidores, verifi -cando-se, em consequência, uma descida considerável na cotação dos CoCos63. Não obstante, após algum período de congelamento do mercado, registaram-se posteriormente diversas emissões, sendo exemplo disso os CoCos emitidos pelo Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, pelo ING Bank64, pelo Bankinter ou pelo Santander65.

62 ECB is having second thoughts on “CoCo” bonds, 24 de abril de 2016. 63 Para além dos CoCos emitidos pelo Deutsche Bank, verifi cou-se, por exemplo, uma descida abrupta no preço dos CoCos emitidos pelo UniCredit e pelo Banco Popular, tendo, em ambos os casos, a cotação baixado de cerca de 85% por cento do valor nominal no início do ano de 2006, para menos de 75% em Fevereiro – Financial Times, ECB is having second thoughts on “CoCo” bonds, 24 de abril de 2016.64 Em abril de 2016, o Banco Bilbao Vizcaya Argentaria emitiu CoCos (convertíveis em ações) no valor de mil milhões, a uma taxa de 8,875%, tendo sido o primeiro banco “periférico” a colocar CoCos no mercado desde a emissão do Banca Intesa, em janeiro do mesmo ano (mais tarde, em novembro de 2017, conseguiu uma taxa de apenas 6,125%). No mesmo mês, o ING Bank emitiu, igualmente, CoCos elegíveis como AT1. Ver, p.e. Financial Times, BBVA issues fi rst peripheral CoCo bond since turmoil, 7 de abril de 2016. 65 Em julho de 2017, o Bankinter colocou 200 milhões de euros em CoCos (convertíveis em ações), a um cupão de 8,625%. Em 18 de abril de 2017, o Santander emitiu 750 milhões de euros em CoCos (convertíveis em ações), com um cupão de 6,75%, voltando a emitir 1.000 milhões de euros em setembro, já com uma taxa 5,25%.

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A nível nacional, uma nota histórica para a emissão dos denominados ins-trumentos de capital elegíveis (num panorama pré CRD IV e CRR), emiti-dos pelo Banco Comercial Português, S.A. (3 mil milhões de euros)66, pelo Banco BPI, S.A. (1,5 mil milhões de euros)67 e pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. (900 milhões de euros)68 em 2012, e subscritos pelo Estado Português no âmbito de operações de recapitalização com recurso a investimento público, ao abrigo da Lei n.º 63-A/2008, de 24 de novembro e da Portaria 150-A/2012, de 17 de maio (entretanto revogada pela Portaria 14/2014).

Os instrumentos eram elegíveis como fundos CET1 (e não AT1) – visaram que as referidas instituições atingissem os requisitos de CET1 então exigidos –, com as seguintes características genéricas: (a) não garantidos, sem termo e subordinados; (b) tendo o Estado Português direito a juros sobre o montante de capital (crescente69); e (c) estando sujeitos a conversão em ações (ações especiais).

Previu-se que a conversão era obrigatória (se o emitente cancelasse ou sus-pendesse o pagamento de juros ou se verifi casse um incumprimento relevante – nomeadamente as metas do plano de recapitalização) ou sucedesse por efeito do exercício desse direito por parte do Estado Português (no caso de o emitente se tornar inviável sem essa conversão ou sem outras subscrições de capital por parte do Estado Português).

Em 2013, verifi cou-se uma emissão semelhante por parte do Banco Inter-nacional do Funchal, S.A.70.

Já recentemente, em março de 2017, no âmbito do plano de recapitali-zação da Caixa Geral de Depósitos, S.A., essa sociedade emitiu instrumentos de fundos próprios AT1 (500 milhões de euros), sujeitos a redução do valor nominal com um trigger de 5,125% CET1 (write-down)71. Esta emissão – que terá sido uma condição imposta pela Comissão Europeia no sentido de viabilizar a recapitalização daquele banco – foi realizada de modo a que os referidos instru-mentos fossem contabilizados como AT1 de acordo com os requisitos previstos no CRR, cabendo notar que se destinou apenas a investidores qualifi cados e que a taxa de juro, em face do risco subjacente, fi cou fi xada em 10,75%. A ele-vada taxa de juro, substancialmente superior em relação às emissões dos bancos

66 Despacho do Ministro das Finanças n.º 8840-B/2012, de 28 de junho, alterado pelo Despacho 12069/2012, de 10 de setembro. 67 Despacho do Ministro das Finanças n.º 8840-A/2012, de 28 de junho. 68 Despacho do Ministro das Finanças n.º 8840-A/2012, de 28 de junho.69 Para o período de investimento de 5 anos: (a) 8,5% no primeiro ano; (b) 8,75% no segundo ano; (c) 9% no terceiro ano; (d) 9,5% no quarto ano; (e) 10% no quinto ano. 70 Despacho do Ministro das Finanças n.º 1527-B/2013, de 23 de janeiro. 71 Mais detalhes em http://web3.cmvm.pt/sdi/emitentes/docs/FR63463.pdf.

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espanhóis a que acima se aludiu, refl ete não só o risco associado a Portugal mas, eventualmente, também o facto de se tratarem de write-down CoCos – ainda que, de acordo com a informação divulgada, o valor nominal possa ser reposto.

4. A opção legislativa por um evento de desencadeamento (mínimo) relativamente baixo e com base contabilística e o artigo 54.º, n.º 5, do CRR, como tentativa de mitigar as desvantagens daí decorrentes

4.1. O evento de desencadeamento

Tal como supra referido em 3.2.2, a verifi cação do evento de desencadea-mento de um instrumento AT1 dará lugar a uma redução do valor nominal, a título permanente ou temporário, ou à conversão em instrumentos CET1 (aumentando, por esse efeito, o rácio de CET1)72. O evento de desencadea-mento ocorre quando o rácio de fundos próprios CET1 for inferior a 5,125% ou a um nível superior (ou, ainda, mediante a verifi cação de outro evento de desencadeamento adicional).

No caso de se tratar de um instrumento convertível, as disposições que regem o mesmo devem prever a taxa de conversão e o limite para o montante de conversão autorizados ou o intervalo no âmbito do qual os instrumentos serão convertidos em CET1 (artigo 54.º, alínea c) do CRR).

Tratando-se de instrumentos sujeitos a redução, esta inclui os elementos previstos no artigo 54.º, alínea d), aplicando-se a redução de forma propor-cional a todos os detentores dos instrumentos que incluem um mecanismo de redução de valor semelhante e com um nível de desencadeamento idêntico (artigo 21.º, n.º 1, do RD n.º 241/2014).

A redução pode, sob discricionariedade do emitente73, ser temporária, i.e. o valor do capital reduzido pode vir a ser reposto – “write-up”74. Nessa situa-ção, devem respeitar-se as condições previstas no artigo 21.º, n.º 2, do RD n.º 241/2014, de entre as quais destacamos a alínea f): a soma dos montantes repos-tos e pagamentos de cupões com base no montante reduzido do capital deve entender-se como pagamentos que causam redução dos fundos CET1, estando sujeitos às restrições e aos limites acima explanados a respeito do MMD.

72 Ver, genericamente, como apoio, parágrafos 39. a 48. e 85. a 98. do EBA Report AT1. 73 Não podem existir disposições que façam a reposição depender de disposições contratuais, estatutárias ou outras obrigações (cfr. parágrafo 51. do EBA Report AT1). 74 Ver parágrafo 86 do EBA Report AT1 a respeito do funcionamento do write-up em caso de existência de um duplo evento de desencadeamento.

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A redução ou conversão tem como efeito pretendido, num quadro de insu-fi ciência de capital, aumentar o rácio de CET1, donde:

(a) se exige que, do ponto de vista contabilístico, essa redução ou conver-são gere elementos que contem como instrumentos CET1 (artigo 52.º, n.º 2 do CRR);

(b) o montante reduzido ou convertido mediante a verifi cação do evento de desencadeamento não pode ser inferior ao menor dos seguintes ele-mentos: (i) montante necessário para que o rácio de CET1 atinja 5,125% (artigo 52.º, n.º 4, alínea a), do CRR); (i) totalidade do montante de capital do instrumento (artigo 52.º, n.º 4, alínea b), do CRR)75.

Parece-nos que no caso de o evento de desencadeamento ser a verifi cação de o rácio CET1 fi cou abaixo de um nível superior a 5,125%, se deve ler a alínea a) do artigo 52.º, n.º 4, do CRR, como exigindo o montante necessário para que o rácio de CET1 volte, no mínimo, ao rácio de CET1 que consubs-tancia o evento de desencadeamento. Um outro apontamento nesta matéria: fará sentido a restituição do rácio de fundos próprios CET1 para apenas o nível correspondente ao evento de desencadeamento? Eventualmente, faria sentido exigir-se uma “folga”, com o intuito de evitar que se fi que demasiado perto de novo evento de desencadeamento.

4.2. Potenciais problemas decorrentes do evento de desencadeamento mínimo previsto pelo CRR

Tendo em conta o que antecede, parece-nos importante analisar até que ponto a conversão ou redução do valor nominal de um instrumento de fundos próprios AT1 em virtude de o rácio de CET1 fi car abaixo de 5,125% – ou de um nível ligeiramente superior – pode operar como um mecanismo de absor-ção de perdas numa lógica going-concern, quando ainda é possível a instituição manter alguma solidez e antes de ser necessária a intervenção da autoridade competente, nomeadamente em caso de pré-insolvência/insolvência (evitan-do-se as consequências nefastas – e sistémicas – daí resultantes).

75 No entender da EBA, no caso de serem desencadeados dois trigger events (p.e. o emitente fez duas emissões de CoCos, uma com um trigger de 8% e outra com um trigger de 5,125% do CET1, e o CET1 baixa diretamente de 9% para 6%), as perdas devem ser absorvidas pelo trigger mais baixo e pelo mais alto, numa lógica pro-rata, até que se perfaça os 5,125% de CET1, sendo as perdas acima desse trigger suportadas apenas pelo instrumento com um evento de desencadeamento superior.

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Para tal, cumprirá articular o regime da redução/conversão por efeito da verifi cação do evento de desencadeamento e a regulação no que concerne à recuperação e resolução bancária, prevista na Diretiva 2014/59/EU do Parla-mento e do Conselho, de 15 de maio (a “BRD”)76 e no Regulamento (UE) n.° 806/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de julho de 2014 (o “SRMR”).

4.3. Genericamente: o enquadramento legal da recuperação e resolução bancária e os pressupostos para a aplicação das medidas de intervenção precoce e de resolução

O novo enquadramento para a recuperação e resolução bancária visa dar resposta aos problemas suscitados pela crise fi nanceira, nomeadamente a neces-sidade de evitar a ocorrência de novas situações de bail-out77. Ao mesmo tempo que se pretende assegurar a continuidade das funções críticas das instituições em difi culdades e evitar o contágio a todo o sistema fi nanceiro, emerge a adoção de um novo paradigma: as perdas devem ser suportadas pelos acionistas e credores da instituição – estes últimos de acordo com a sua graduação e salvaguardado o princípio “no creditors worse-off ” –, evitando-se a todo o custo a injeção de fundos por parte do Estado78.

Nessa base, a BRD confere um conjunto de poderes às autoridades compe-tentes/de resolução, nomeadamente a possibilidade de serem aplicadas medidas

76 Transposta para o ordenamento jurídico português pela Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março, que altera o RGICSF (artigos 139.º e ss.).77 Para facilidade de enquadramento quanto aos princípios orientadores do referido regime, repro-duzimos o primeiro Considerando da BRD “A crise fi nanceira demonstrou uma grande falta de instru-mentos adequados a nível da União para tratar com efi cácia o problema das instituições de crédito e das empresas de investimento pouco sãs ou em situação de insolvência. Esses instrumentos são necessários, nomeadamente, para evitar procedimentos de insolvência ou, se tal não for possível, para minimizar as suas repercussões nega-tivas, preservando as funções de importância sistémica das instituições em causa. Durante a crise, estes desafi os constituíram um fator essencial que obrigou os Estados-Membros a salvarem instituições utilizando o dinheiro dos contribuintes. A fi nalidade de um enquadramento credível para a recuperação e a resolução consiste em evi-tar, ao máximo, a necessidade de proceder a tal intervenção.” 78 O problema da interdependência entre o Estado e o sector bancário foi um dos aspetos que emergiu da crise, essencialmente sustentado na perceção sobre a existência de uma garantia implí-cita do Estado em relação ao sistema bancário, geradora da criação de um canal de contágio recí-proco (o tema é analisado p.e., pela Comissão Europeia em Updated version of fi rst memo published on 15/04/2014 – Banking Union: restoring fi nancial stability in the Eurozone, 24 de novembro de 2015 ou por Chiara Angeloni, Silvia Merler e Guntram B. Wolff, 2012, Policy Lessons from the Euro-zone Crisis, in The International Spectator Italian Journal of International Aff airs, 47 (4), 17-34).

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de intervenção precoce79 e medidas de resolução80 e ser exercido o poder de redução ou conversão de instrumentos de fundos próprios81.

Quanto à intervenção precoce, que inclui um conjunto bastante alargado de possíveis medidas (e.g. elaboração de plano de reestruturação por parte da admi-nistração da instituição, restrições à atividade, alterações nas estruturas legais, operacionais e funcionais ou destituição e substituição de membros dos órgão de administração e fi scalização), as mesmas deverão ser aplicadas quando obser-vado o incumprimento ou risco de incumprimento, a avaliar num conjunto de fatores de desencadeamento, das normas legais e regulamentares a que a instituição se encontra adstrita (incluindo, pois, os requisitos de fundos pró-prios) – cfr. artigo 27.º, n.º 1, da BRD e, em Portugal, artigo 141.º, n.º 1, do RGICSF82.

Já para situações de maior gravidade, em que as instituições se encontram em situação extremamente frágil do ponto de vista fi nanceiro, prevê-se a apli-cação de medidas de resolução (onde se incluem a alienação da atividade, a criação de instituição de transição, a segregação de ativos e a recapitalização interna), quando se verifi quem cumulativamente os seguintes pressupostos (no geral):

(a) a instituição de crédito estar em situação ou em risco de insolvência;(b) tendo em conta a situação concreta, não se afi gurar expectável que a

insolvência seja evitada em prazo razoável por efeito da aplicação de medidas promovidas pela instituição, de medidas de intervenção pre-

79 Título III da BRD (artigos 27.º e ss.), artigo 13.º do SRMR e Capítulo II do Título VIII do RGICSF (artigos 141.º e ss.). 80 Título IV da BRD (artigos 31.º e ss.), artigos 14.º e ss. do SRMR e Capítulo III do Título VIII do RGICSF (artigos 145.º-C e ss.).81 Capítulo V do Título IV da BRD (artigos 59.º e ss.) e Secção II do Capítulo III do Título VIII do RGICSF (artigos 145.º-I a 145.º-K).82 Saliente-se que a EBA emitiu orientações relativas aos fatores de desencadeamento de inter-venção precoce (EBA/GL/2015/03), identifi cando os seguintes fatores de desencadeamento: (a) notação global do processo de revisão e avaliação pela supervisão (o “SREP”) e as combinações predefi nidas da notação global do SREP e das notações dos elementos individuais do SREP; (b) alterações ou anomalias signifi cativas identifi cadas na monitorização dos indicadores-chave fi nanceiros e não fi nanceiros no âmbito do SREP, que demonstrem que as condições para uma intervenção precoce foram preenchidas; (c) acontecimentos signifi cativos que indiquem que as condições para uma intervenção precoce foram preenchidas. Documento disponível em https://www.eba.europa.eu/documents /10180/1151520/EBA-GL-201503PT+GL+on+early+intervention+measures.pdf/5d8afbdd-4f32-40eb-9b18-6dab419261a2. Em Portugal, o legislador optou por prever um conjunto de critérios indicadores do risco de incumprimento das disposições legais e regulamentares por parte das instituições de crédito, elencados no artigo 141.º, n.º 2 do RGICSF, sem prejuízo de o Banco de Portugal poder atender a outros fatores que legitimem a sua atuação à luz dos princípios enunciados no artigo 139.º do RGICSF.

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coce ou do poder de redução ou conversão de instrumentos de fundos próprios e;

(c) as medidas serem necessárias para a defesa do interesse público83.

A aplicação destas medidas encontra-se sujeita à prossecução dos objetivos constantes dos artigos 31.º da BRD e 14.º do SRMR.

Note-se, em especial, que a medida de resolução de recapitalização interna (bail in) implica a redução ou conversão de instrumentos de fundos próprios pela seguinte ordem (excetuando os denominados “passivos não elegíveis”, tal como previsto nos artigos 44.º, n.º 2, da BRD, 27.º, n.º 3, do SRMR e 145.º-U do RGICSF): CET1, AT1 e T2.

A categoria de fundos próprios seguinte só é objeto de conversão/redução após esgotada a categoria anterior e os instrumentos da mesma categoria sofrem perdas na mesma medida e proporcionalmente ao seu valor (v.g. art. 48.º da mesma Diretiva). Tal signifi ca que os detentores de instrumentos CET1 absor-vem as perdas, nestas circunstâncias, antes dos detentores de CoCos (o que poderia não suceder se a conversão/redução tivesse ocorrido pela verifi cação do evento de desencadeamento). Ademais, a conversão/redução dos instru-mentos AT1 realizada nesta sede não tem que respeitar as condições previstas na emissão, nomeadamente no que respeita aos termos da conversão.

Por fi m, para além das medidas de intervenção precoce e de resolução, as autoridades competentes podem ainda exercer o poder de redução ou con-versão de instrumentos de capital previsto nos artigos 59.º e ss. da CRD IV e 145-I e ss. do RGICSF (com regras semelhantes à recapitalização interna), se estiverem preenchidos, nomeadamente um dos seguintes requisitos:

(a) encontram-se verifi cados os pressupostos para a aplicação das medidas de resolução e não tiver sido aplicada nenhuma;

(b) se não for efetuada essa conversão ou redução, a instituição deixa de ser viável84.

Para os efeitos do que se explanou supra, as circunstâncias em que se poderá considerar que uma instituição de crédito está em risco ou em situação de insol-vência encontram-se elencadas nos artigos 32.º, n.º 4, da BRD e 18.º, n.º 4, do SRMR (à semelhança do transposto no artigo 145.º-E, n.º 3, do RGICSF),

83 Vide, nomeadamente, artigos 32.º da BRD, 18.º do SRMR e 145.º-E do RGICSF. 84 A instituição de crédito estar em situação ou em risco de insolvência e não haver nenhuma perspetiva razoável de que eventuais atuações da instituição ou a adoção de medidas de intervenção precoce possam impedir a insolvência da instituição.

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cabendo destacar a situação prevista na al. a) daqueles artigos, concernente aos fundos próprios:

“a) A instituição deixou de cumprir ou existem elementos objetivos que permitem con-cluir que a instituição irá deixar de cumprir, dentro de pouco tempo, os requisitos necessários à continuidade da sua autorização, a tal ponto que se justifi caria a retirada dessa autorização pela autoridade competente, nomeadamente, mas não exclusivamente, porque a instituição sofreu ou irá provavelmente sofrer perdas que levarão ao esgota-mento total, ou de uma parte signifi cativa, dos seus fundos próprios;

(…)”

Em cumprimento do disposto no artigo 32.º, n.º 6, da BRD, a EBA ema-nou um conjunto de orientações (EBA/GL/2015/07), onde faz notar que a instituição está em risco de insolvência quando se verifi cam que existem ele-mentos objetivos que permitem concluir, nomeadamente, que, a curto prazo, “a instituição não cumpre os requisitos de fundos próprios, nomeadamente os requisitos impostos nos termos do artigo 104.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2013/36/UE, rela-tivos à continuidade da sua autorização, a tal ponto que se justifi caria a retirada dessa autorização pela autoridade competente [nota nossa: a autorização pode ser retirada no caso de incumprimento dos rácios de capital, cfr. artigo, 18.º, alínea d) da CRD IV], nomeadamente, mas não exclusivamente, porque a instituição sofreu ou irá provavelmente sofrer perdas que levarão ao esgotamento total, ou de uma parte signifi ca-tiva, dos seus fundos próprios”

4.4. Rácio CET1 em 5,125%: tarde demais?

Tal como acima referido, o legislador europeu optou por um evento de desencadeamento mínimo consubstanciado no rácio de fundos próprios CET1 (fundos próprios CET1/montante total das posições de risco) ser inferior a 5,125%.

Tratando-se de um critério com base contabilística, existe o perigo de não reve-lar de forma fi dedigna (e atual) a situação fi nanceira da instituição, nomeada-mente no caso de existir manipulação das contas (e.g. por infl uência dos acio-nistas e administradores das instituições85, que, em defesa dos seus interesses, podem sentir-se tentados a adiar o reconhecimento de perdas).

85 85 Tal como já antes referido, p.e. 2.3.3. supra. A manipulação de contas esteve, como é sabido, na origem de diversos escândalos fi nanceiros, sendo disso exemplo os famosos casos da Enron e da Worldcom. No plano bancário destaque para a acusação sobre vários executivos do Bankia,

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Mesmo excluindo o efeito perverso decorrente da eventual manipulação dos indicadores relevantes para o cálculo dos rácios, a realidade tem demons-trado não só que as perdas das instituições de crédito podem atingir dimensões consideráveis num curto período de tempo, resultando numa descida abrupta dos seus rácios de capital (como se verá em casos recentes), como que a conta-bilidade possui limitações quanto à demonstração real e atualizada da situação fi nanceira das instituições de crédito; perigos esses que, apenas em parte, podem ser controlados através da previsão de obrigações de divulgação periódica de informação fi nanceira e da adoção de modelos de risco adequados (cuja efetiva implementação deve ser devidamente supervisionada).

Saliente-se, no entanto, que estes apontamentos são aqui vertidos apenas com o fi m de indicar os especiais cuidados a ter em conta perante a previsão de um evento de desencadeamento desta natureza, sem que tal signifi que, após ponderação dos vários fatores positivos e negativos, a preferência por um trigger de mercado, tendo em conta as suas difi culdades de implementação86.

De modo a ilustrar a forma repentina como muitas vezes ocorre a deterioração dos rácios de capital em face do adiamento do reconhecimento de perdas, cumpre referir os casos do Bankia e do Grupo Banco Espírito Santo.

O rácio de fundos próprios CET1 do Bankia, S.A., banco objeto de bail out por parte do Estado Espanhol em maio de 2012, desceu de 8,1% no fi nal de 2011 (de acordo com os critérios então aplicáveis) para 5,7% em apenas 6 meses87, abaixo dos requisitos mínimos de capital exigidos.

No caso do Banco Espírito Santo, S.A., o rácio de fundos próprios CET1 era, já aplicando as regras da CRD IV e do CRR (phasing in), de 10,2% no fi nal

banco objeto de intervenção estatal em 2012, a respeito da manipulação das contas e de diversa informação no âmbito de um IPO prévio ao resgate. Em Portugal, destacar o caso do Banco Espí-rito Santo e a circunstância de as contas da Espírito Santo Internacional terem sido falsifi cadas, de acordo com o que foi apurado pelo Banco de Portugal.86 Como referido anteriormente, um mecanismo dessa natureza seria de difícil aplicação na União Europeia, tendo em conta o número restrito de instituições de crédito que se encontram cotadas em mercado. Ademais, não nos parece que o facto de um trigger de mercado, pelo menos teorica-mente, facilitar a compreensibilidade do instrumento e consubstanciar uma fonte mais fi dedigna e atual da situação da instituição, seja sufi ciente para obstar aos perigos decorrentes de o evento de desencadeamento fi car sujeito à volatilidade do mercado. 87 Condensed consolidated interim fi nancial statements for the six months ended 30 June 2012, 45, dis-ponível em http://www.bankia.com/recursos/doc/corporativo/20121001/ingles /condensed-consolidated-interim-fi nancialtatements-for-the-six-months-ended-30-.pdf. Sublinhar que o rácio do fi nal de 2011 já tem em apreço o facto de as contas terem sido objeto de reformulação (para mais detalhes ver Las pérdidas antes de impuestos de Bankia son de 4.300 millones, El País, 26 de maio de 2012).

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do ano de 201388, 9,8% no fi nal do primeiro trimestre de 201489 – ainda antes do aumento de capital do Banco Espírito Santo, S.A. no valor de 1.045 milhões de euros que veio a ser registado em 16 de junho de 2014 – e de 5% por refe-rência a 30 de junho de 2014, já abaixo do rácio mínimo de 7% exigido então de acordo com as regras aplicáveis90, situação que precipitou a aplicação de medida de resolução por parte do Banco de Portugal em 3 de agosto de 2014.

Em adição ao que antecede, pode defender-se que existe um incentivo generali-zado no sentido de atrasar o reconhecimento da verifi cação do evento de desencadeamento.

Em primeiro lugar, as entidades competentes enfrentam um verdadeiro dilema91. Por um lado devem atuar atempadamente (momento esse difícil de aferir). Por outro, a sua atuação pode enviar um sinal negativo para o mercado, sendo que, tendo em apreço a perceção generalizada – cuja fundamentação se pode questionar – quanto à existência de um histórico de inação das entidades competentes, essa intervenção poderá ser interpretada pelo mercado como um sinal de que a instituição está numa situação ainda pior do que na realidade se verifi ca.

Os administradores da instituição poderão igualmente possuir incentivos no sentido de adiar o reconhecimento da verifi cação do evento de desencadea-mento, pela descredibilização ao desempenho das suas funções que acarreta o reconhecimento da degradação da situação económico-fi nanceira da instituição e consequente diminuição dos rácios e em virtude da potencial tendência em os mesmos tentarem remediar a situação (já verifi cada) antes de a reconhecer perante a autoridade competente e o mercado92.

88 Relatório e Contas 2013 do Banco Espírito Santo, S.A., 77, disponível em http://www.bes.pt/RelatorioseContas /2013_Relatorio_Consolidado.pdf.89 Comunicado do Banco Espírito Santo, S.A. ao mercado de 15 de maio de 2014. 90 Comunicado do Banco Espírito Santo, S.A. ao mercado de 30 de julho de 2014. 91 Para uma (interessante) análise sobre as questões e incentivos que envolvem a atuação dos reguladores e mecanismos que permitem mitigar uma atuação permissiva por parte dos mesmos: Ansgar Walther e Lucy White, Rules Versus Discretion in Bank Resolution, 2015. Destacamos alguns aspetos sublinhados pelos autores: (a) a concessão de discricionariedade ao regulador no que concerne às matérias de resolução bancárias permite uma atuação precisa e adaptada à situação em concreto e à informação (privada) que o mesmo dispõe; (b) no entanto, nessas circunstâncias, o regulador pode sentir-se compelido a não atuar, com receio de transmitir sinais adversos ao mer-cado e provocar corridas aos depósitos; (c) o mecanismo de resolução mais efi caz será aquele que permita discricionariedade ao regulador em relação a matérias cuja informação é positivamente acolhida pelo mercado, e seja altamente regulamentado quando se tratam de temas com potencial impacto negativo no mercado.92 Ayowande A. McCunn, Forbearance Incentives: Undeterming the Distinction Between Going and Gone-Concern Capital, 2016, 11-12.

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O mesmo pode suceder em relação aos acionistas, dependendo dos efeitos da conversão no que à sua diluição diz respeito93. Nos CoCos apenas sujeitos a redução, essa diluição não se verifi ca, não obstante o write-off do instrumento se afi gurar idóneo a provocar a diminuição do valor de mercado das ações, porquanto expõe a fragilidade da sociedade.

Por fi m, os próprios detentores dos CoCos podem preferir uma situação de não reconhecimento da verifi cação do evento de desencadeamento, conforme termos da conversão lhes sejam, ou não, benéfi cos. No caso de aproximação à aplicação de medidas de resolução, a preferência dependerá da comparação entre a situação em que fi cariam por efeito da conversão e a resultante da apli-cação de medidas de resolução94.

Os aspetos acima considerados produzem efeitos especialmente graves se o evento de desencadeamento for um rácio de capital baixo. Com efeito, a instituição terá mais espaço para adiar a sua recapitalização. Mais a mais, a verifi cação do evento de desencadeamento provocará, potencialmente, um efeito extremamente alar-mante no mercado (e nos próprios depositantes) – superior ao que se verifi caria no caso de o evento de desencadeamento ser um rácio de CET1 mais elevado –, o que pode precipitar a instituição para uma situação ainda pior.

Por isso, a previsão de um evento de desencadeamento nos 5,215% de CET1 pode signifi car que o mecanismo de absorção de perdas subjacente aos CoCos não opera antes da necessidade de se proceder à aplicação de uma medida corretiva por violação dos rácios mínimos (com as necessárias consequências a nível da confi ança do mercado95) e, mais gravosamente, de uma medida de resolução ou conversão e redução (desconsiderando-se os termos e condições estabelecidos aquando da emissão), por a instituição passar diretamente para uma situação de risco de insolvência/insolvência96.

93 Exercendo os acionistas infl uência sobre a administração tendo em conta os seus poderes de nomeação e destituição em sede de Assembleia Geral (em Portugal, cfr. artigos 373.º, 391.º, n.º 1, e 403.º, n.º 1, todos do CSC). 94 Ayowande A. McCunn, Forbearance Incentives: Undeterming The Distinction Between Going and Gone-Concern Capital, 2016, 14, aponta o facto de a aplicação do instrumento de recapitalização poder ser mais benéfi co para os detentores de CoCos do que a conversão/write-off por efeito da verifi cação do evento de desencadeamento, tendo em conta a prioridade na absorção de perdas prevista no artigo 48.º da CRD IV.95 Suscitar-se-á a dúvida no caso concreto: tendo em conta que a própria verifi cação do evento de conversão/redução dá, também, um sinal negativo para o mercado, o que teria sido pior do ponto de vista da salvaguarda da necessidade de repor os níveis de capital: verifi cação do evento de desencadeamento num ponto mais alto ou aplicação de uma medida corretiva? 96 A própria Prudential Regulation Authority (regulador bancário do Reino Unido) já deu nota disso mesmo: “Dependendo das circunstâncias, um instrumento com um evento de desencadeamento em 5,215% do CET1 pode não ser objeto de conversão a tempo de evitar a resolução do banco” (tradução nossa), em CRD IV and Capital, SS/13, 3.

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O papel dos CoCos como instrumento going-concern (a sua razão de ser!) pode sair, assim, totalmente desvirtuado, porquanto não atua de forma a robustecer os fundos CET1 da instituição num momento em que ainda é possível a continuação normal da atividade e evitar uma situação extremamente gravosa para todos os intervenientes (e.g. banco, trabalhadores, depositantes, outros clientes) e para o sistema bancário (especial-mente propício ao risco sistémico) como é a resolução. Funciona, ao invés, como gone-con-cern, mediante redução/conversão já naquela sede, dado o alto grau de subordinação dos instrumentos AT1.

Justifi ca-se, pois, ponderar a elevação do rácio mínimo de desencadeamento previsto no CRR, sob pena de os instrumentos AT1 nunca (ou apenas numa minoria de casos) viram a realizar a principal fi nalidade subjacente à sua previsão. Atente-se: se o objetivo fosse apenas que absorvessem perdas no âmbito da resolução bancária ou da insolvência, teria bastado que se previsse, para esses efeitos, uma graduação hierárquica inferior aos instrumentos T2 – estes sim verdadeiros instrumentos gone-concern – e superior aos instrumentos CET1.

Em boa verdade, a possibilidade de os CoCos não virem a desempenhar esse papel na plenitude pode revelar-se em dois planos. O mecanismo pode vir a ser acionado mas, em virtude da situação defi citária da instituição e dos efeitos da conversão/redução na confi ança do mercado, é ainda assim necessária a apli-cação de medidas de resolução. Outra hipótese prende-se com a possibilidade de o mecanismo não chegar a ser acionado, na medida em que a instituição passa diretamente para uma situação ou risco de insolvência.

Terá sido esta segunda hipótese que ocorreu com o Banco Popular Español, S.A., em junho de 2017, ao qual foram aplicadas as medidas de resolução de bail-in e alienação da atividade ao Banco Santander, S.A., após a declaração do Banco Central Europeu no sentido de que aquele instituição estava em situa-ção ou risco de insolvência97. O Banco Popular Español, S.A. era emitente de CoCos, convertíveis em ações a uma taxa de conversão pré-determinada mediante a verifi cação de triggers de 5,125% e 7% de CET1, mas esses instru-mentos foram totalmente amortizados no âmbito do bail-in, sem consideração das condições de conversão previstas na emissão. Curioso é, ainda, a circuns-tância de todos os pagamentos de juros desses instrumentos terem sido pagos até então, sem nunca se ter verifi cado qualquer cancelamento.

O caso do Banco Popular Español, S.A. parece surgir, portanto, como o primeiro exemplo que vem confi rmar as reticências, acima explanadas, quanto ao papel going-concern dos CoCos um low trigger. Com efeito, os rácios de capital descerem abruptamente, passando o banco diretamente para uma situação de

97 Para mais detalhes, consultar a comunicação do Single Resolution Board, disponível em https://srb.europa.eu/en/node/315.

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risco de insolvência, sem que os instrumentos AT1 tenham servido para reduzir a deterioração dos capitais próprios numa lógica preventiva da resolução (via cancelamento do cupão ou conversão em instrumentos CET1).

4.5. O artigo 54.º, n.º 5, do CRR, como tentativa de mitigar os perigos de um low trigger

4.5.1. As diligências a efetuar mediante a verifi cação do evento de desencadeamento

Tendo como ratio legis garantir a celeridade da conversão/redução dos ins-trumentos AT1 por forma a restabelecer os níveis de capital e evitar períodos de incerteza, prevê-se que, quando ocorrer um evento de desencadeamento:

(a) o órgão de administração deve determinar, sem demora, que tal suce-deu, existindo uma obrigação irrevogável de redução do valor ou de conversão do instrumento (artigo 22.º, n.º 1, do RD n.º 241/2014 da Comissão);

(b) a instituição deve informar, imediatamente, as autoridades competentes (artigo 54.º, n.º 5, alínea a), do CRR);

(c) a instituição deve informar os detentores de instrumentos AT1 (artigo 54.º, n.º 5, alínea b), do CRR);

(d) a instituição deve reduzir o montante de capital dos instrumentos, ou converter, sem demora, no prazo máximo de um mês (período que pode ser reduzido pela autoridade competente98), os instrumentos em instrumentos de fundos próprios CET1 (artigo 54.º, n.º 5, alínea c), do CRR) – por esse efeito aumentando os fundos próprios CET1 e, ceteris paribus, o rácio de CET1.

O artigo 22.º, n.º 2, do RD n.º 241/2014, indica que o período máximo de um mês se conta a partir do momento em que, nos termos do indicado em (a) supra, for determinado que o evento de desencadea-mento ocorreu.

Uma dúvida interpretativa que se poderia colocar diz respeito à necessi-dade, ou não, de as diligências previstas nas alíneas a) a c) se terem de verifi car

98 Nos casos em que a mesma considere que existe certeza quanto ao montante a converter ou reduzir ou em que considere ser necessária uma conversão ou redução imediata (cfr. artigo 22.º, n.º 3, do RD n.º 241/2014). Prevê-se, ainda, a possibilidade de reapreciação independente do valor a reduzir ou converter, que deve suceder o quanto antes, continuando a aplicar-se os requisitos elencados (artigo 22.º, n.º 4, do RD n.º 241/2014).

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por essa ordem, antes de ocorrer a redução/conversão. A EBA já se manifes-tou em sentido negativo99, ao apontar, inclusivamente, que não se exige uma comunicação aos investidores antes do instrumento ser convertido/reduzido. O mecanismo pode, pois, ser acionado independentemente de os investidores terem sido previamente informados de que tal irá ocorrer, o que facilita a sua implementação.

4.5.2. Os momentos subjacentes ao período entre a verifi cação do evento de desencadea-mento e a conversão/redução

O período entre a verifi cação do evento de desencadeamento e a conver-são/redução tem, quanto a nós, subjacente três momentos relevantes. Primeiro, o momento da verifi cação do evento de desencadeamento (i.e. o rácio de CET1 fi car abaixo do rácio previsto nos termos e condições dos instrumentos). Segundo, o momento em que esse facto é comunicado à autoridade competente/ao mercado (o que pode não acontecer concomitantemente). Terceiro, o momento em que sucede a conversão/redução dos instrumentos.

Assim, tanto quanto nos parece, o referido regime referente às diligências a verifi car entre a verifi cação do evento de desencadeamento e a conversão/redução dos instrumentos tem dois planos de tutela.

Por um lado, visa garantir que a verifi cação do evento de desencadeamento da con-versão/redução é do conhecimento da autoridade competente e do mercado o quanto antes, evitando que a instituição, eventualmente com poucos incentivos a divulgar esse facto100, o faça com alguma dilação em relação à tomada de conhecimento dessa situação – o que pode acarretar uma deterioração ainda maior da situação fi nanceira da instituição.

Por outro, procura acautelar que, após a comunicação ao mercado, o instrumento é convertido/reduzido o mais rapidamente possível, obstando à criação de uma situação de incerteza e uma espiral de desconfi ança que coloque sérias dúvidas quanto à solvabilidade da instituição (sendo esta tutela mais premente quando se estabe-leceu um rácio de desencadeamento baixo).

Ambos os planos têm, como base, a necessidade de garantir que o papel de absorção de perdas por parte dos instrumentos é efi caz numa lógica going-concern.

No primeiro plano de tutela (relevante no que concerne ao período entre o primeiro e o segundo momentos acima aludidos, ou seja, entre a verifi cação

99 EBA, Report on Monitoring of Additional Tier 1 (AT1) Instruments of EU Institutions – second update – draft, 2016, 8.100 Tal como vimos antes no ponto 4.4. supra.

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do evento de desencadeamento e a sua comunicação à autoridade supervisora e ao mercado) cumpre chamar à colação as obrigações em matéria de reporte dos rácios101, justifi cando-se que fossem mais exigentes quanto à periodicidade. Ademais, a periodicidade dessa obrigação de reporte poderia ir aumentando à medida que o rácio de CET1 se aproximasse do evento de desencadeamento.

No segundo plano de tutela (relevante no que tange ao período entre o segundo e o terceiro momentos acima aludidos, ou seja, entre a comunica-ção da verifi cação do trigger event à autoridade supervisora e ao mercado e a conversão/redução dos instrumentos), caberá dar nota da necessidade de, nos termos do disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 54.º do CRR, nos casos de conversão, a instituição assegurar que: (a) a todo o momento, o capital social autorizado é sufi ciente para garantir a conversão do instrumento em ações; (b) todas as autorizações necessárias para a conversão e emissão das ações são obti-das no momento da emissão do instrumento; (c) a instituição mantém a todo o momento a autorização prévia para emitir as ações; (d) não existem obstáculos processuais à conversão em virtude do seu ato constitutivo, estatutos, ou outras disposições contratuais102.

101 O artigo 99.º, n.º 1, do CRR prevê a necessidade de reporte dos requisitos de fundos próprios (incluindo, pois, o rácio de CET1) pelo menos semestralmente. O Regulamento de Execução (UE) n.º 680/2014 da Comissão, de 16 de abril, refere que as instituições devem apresentar as informações relativas aos requisitos de fundos próprios com uma periodicidade trimestral.102 Entre nós, no campo da regulação das obrigações convertíveis, o CSC prevê, no artigo 366.º, n.º 2, os elementos que devem constar da proposta de deliberação (para as obrigações ver art. 363.º do CSC), e no n.º 3 que a deliberação de emissão das obrigações convertíveis implica a aprovação do aumento do capital da sociedade no montante e condições necessárias para “satisfazer os pedidos de conversão” – recorde-se que as obrigações convertíveis são apenas convertíveis por opção do investidor. Para os problemas suscitados em relação à deliberação de aumento de capital no caso da relação de conversão ser variável, ver Fátima Gomes, Obrigações Convertíveis em Ações, 1999, 23. O regime das obrigações convertíveis prevê, ainda, os termos da formalização e registo do aumento de capital (artigo 370.º do CSC) e da emissão das ações (artigo 371.º do CSC). Para mais detalhes ver, a título de ilustração, Florbela de Almeida Pires, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2009, 912 e ss., Orlando Vogler Guiné, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume V, 2012, 953, e ss. e Carlos Osório de Castro, Valores Mobiliários: Conceitos e Espécies, 1998, 178-180. No caso dos CoCos, fará sentido que a deliberação de emissão contenha todos os elementos relevantes dos seus termos e condições (tomando como linha os elementos exigidos nos artigos 363.º e 366.º do CSC, com as necessárias adaptações, acrescentados de outros aspetos, v.g. o evento de desencadeamento ou se a redução do valor nominal é temporária ou permanente [sendo aplicável]). Caso se tratem de CoCos puros, a deliberação implica aprovar o aumento de capital no montante máximo necessário no caso de se verifi car a conversão da sua totalidade, sendo que, como vimos, a produção de efeitos da conversão não pode ocorrer depois de um mês decorrido da determinação, por parte do órgão de administração, da verifi cação do evento de desencadeamento.

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5. Notas fi nais

Os CoCos são instrumentos híbridos – possuindo, pois, características de instrumentos de capital próprio e de capital alheio – que podem assumir uma multiplicidade de formatos, tendo como característica estruturante, no âmbito bancário, o facto de consubstanciarem um mecanismo de absorção de perdas mediante a verifi cação (incerta) do seu evento de desencadeamento.

Ao positivar um novo regime no que concerne aos requisitos de capital das instituições de crédito – com sustento em Basileia III –, o CRR estabeleceu os requisitos para que um instrumento possa ser considerado como instrumento de fundos próprios AT1, prevendo, nomeadamente, a necessidade de o mesmo reunir certos pressupostos em matéria de permanência, subordinação, absorção de perdas e limitações ao pagamento de juros.

No âmbito da capacidade de absorção de perdas, estatui-se a necessidade de esses instrumentos serem, mediante a verifi cação do evento de desenca-deamento, sujeitos a redução do valor nominal/amortização ou conversão em instrumentos de fundos próprios CET1 – melhorando, por esse efeito, o rácio de capital CET1 (fundos próprios CET1/ativos ponderados pelo risco).

Porém, a opção por um trigger mínimo de apenas 5,125% de CET1 (muito perto dos requisitos mínimos para a continuação da atividade da instituição), comporta o perigo substancial de os CoCos não atuarem como mecanismo de absorção de perdas numa lógica going concern (ex-ante), por o evento de desen-cadeamento não ocorrer antes de a instituição se encontrar numa situação de inviabilidade, tornando necessária a aplicação de medidas de resolução, com todos os impactos para a instituição e para o mercado daí advenientes.

Essa conclusão encontra sustento não só na circunstância de um rácio de 5,125% já ser demonstrativo de um nível de capital bastante frágil (perto do mínimo legalmente exigido, 4.5%, sem ter em conta os requisitos de fundos próprios adicionais e as reservas de fundos próprios), como na conjugação de diversos fatores. Destaca-se o facto de o evento de desencadeamento ter uma base contabilística – o que pode permitir a sua manipulação por infl uência da administração e acionistas –, a existência de um histórico de diminuição muito repentina do rácio de capital dos bancos e, ainda, os incentivos dos adminis-tradores, acionistas e detentores dos instrumentos AT1 para adiar o reconheci-mento da verifi cação do evento de desencadeamento.

Conquanto o artigo 54.º, n.º 5, do CRR, preveja uma série de medidas que poderão contribuir para que esse perigo seja reduzido, garantindo que a autoridade competente e o mercado sejam, o quanto antes, informados da verifi cação do evento de desencadeamento e que a redução/conversão do ins-trumento ocorra rapidamente, tal não se afi gura sufi ciente para afastar a pro-

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babilidade séria de os instrumentos AT1 não serem objeto de conversão/redu-ção fora da aplicação de medidas de resolução. Tal esvazia o seu verdadeiro propósito de absorver perdas no sentido de evitar uma situação de risco de insolvência, acabando, previsivelmente, os instrumentos por ser apenas objeto de redução/conversão já no quadro da resolução, ao arrepio das condições previstas aquando da emissão.

Assim, devem as entidades supervisoras monitorizar com especial cuidado a evolução dos rácios de capital e modelos de risco, ao mesmo tempo que se garanta o cálculo e divulgação dos rácios com uma periodicidade sufi ciente (eventualmente crescente à medida que se aproxima o evento de desencadea-mento), urgindo ponderar, especialmente, uma subida do rácio mínimo CET1 para efeitos de trigger event.

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