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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO VIVIAN DOMÍNGUEZ UGÁ A questão social como “pobreza”: crítica à conceituação neoliberal Rio de Janeiro 2008

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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO

VIVIAN DOMÍNGUEZ UGÁ

A questão social como “pobreza”: crítica à conceituação neoliberal

Rio de Janeiro

2008

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VIVIAN DOMÍNGUEZ UGÁ

A questão social como “pobreza”: crítica à conceituação neoliberal

Tese apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas: Ciência Política.

Banca Examinadora:

Cesar Guimarães (orientador)

Luiz Antonio Machado da Silva

Maria Lúcia Werneck Vianna

Renato Boschi (presidente)

Silvia Gerschman

Rio de Janeiro

2008

Para Fábio

RESUMO O objetivo desta tese consiste em discutir o tratamento atual da “questão social” como “pobreza”. Aponta-se para a emergência do conceito de “pobreza” como um novo eixo de sua enunciação na América Latina. Procura-se questionar e desconstruir essa formulação, argumentando que, por mais que seja apresentada em caráter puramente “técnico”, sua construção pressupõe uma visão específica para o mundo social e se associa a um projeto político. Para tanto, tomam-se por objeto empírico os relatórios dos organismos internacionais que tratam da temática da pobreza e suas causas e que vem se dedicando à formulação de recomendações de políticas para combatê-la: Banco Mundial, PNUD e OIT. Discutem-se criticamente as prováveis implicações do tratamento da questão social como “pobreza”, tais como: a naturalização e a individualização de um problema que é essencialmente social; a construção de um conceito que ajuda a recortar e modelar a realidade social à luz dos marcos neoliberais; e o reforço de um discurso de poder voltado para a legitimação do projeto neoliberal-globalizante dos organismos internacionais e para o desmonte do mundo social que foi construído ao longo da “era dourada”.

Palavras-chave: questão social, pobreza, neoliberalismo, organismos internacionais.

ABSTRACT This thesis aims to debate the current treatment of the “social question” as “poverty”, pointing to the emergence of the concept of poverty as the new axis of the “social question” enunciation in Latin America. Our goal is both to question and deconstruct such formulation by arguing that, although this view is presented in a purely “technical” manner, its construction not only assumes a specific assessment of the social world, but is also associated to a political agenda. To achieve this task, international agencies’ reports concerning poverty from World Bank, UNDP and ILO have been taken as empirical source. Those agencies have been working on the poverty issue and its causes and also on the design of public policy prescriptions to overcome it.. Finally, the expected implications of the treatment of the “social question” as “poverty” are critically discussed, such as the naturalization and individualization of a issue that is essentially social; the construction of a concept that helps to design the social reality from the neoliberal outlook; and the strengthening of a discourse of power that is employed both to legitimate the neoliberal-globalized agenda and to dismantle the social world that had been built during the “golden age”.

Key-words: social question, poverty, neoliberalism, international agencies.

AGRADECIMENTOS

Expresso aqui meus agradecimentos àqueles que foram muito importantes nesse longo

processo de elaboração da tese.

À Capes, pelos apoios financeiros concedidos - bolsa de doutorado e bolsa sanduiche

(PDEE) -, sem os quais não teria sido possível ter me dedicado com exclusividade a

meus estudos.

A César Guimarães, cujo pensamento crítico sempre me inspirou e me estimulou

muito, um obrigado especial por sua leitura atenta da tese e pelos comentários e

sugestões feitos ao longo desses anos todos de orientação.

Aos professores que participaram da banca examinadora – Luiz Antonio Machado,

Maria Lucia Werneck Vianna, Renato Boschi e Silvia Gerschman -, agradeço as

observações, críticas e os comentários relevantes feitos no dia da defesa, os quais

tentarei, na medida do possível, incorporar em reflexões e estudos futuros.

Agradeço ao IUPERJ, que, ao longo desses quase sete anos, proporcionou-me um

ambiente muito rico de reflexão, debate intelectual e constante aprendizado. Foi um

prazer imenso ter podido desfrutar da excelência de seu corpo docente. Agradeço

especialmente aos professores Luiz Antonio Machado, Renato Boschi, Marcus

Figueiredo, Maria Regina Soares de Lima, pela leitura crítica de partes da tese e os

importantes comentários feitos tanto na defesa de projeto quanto em seminários de

projeto e de tese. Foi muito bom também contar com o apoio, competência e simpatia

dos funcionários da casa; um obrigado especial para Lia, Valéria, Simone, Caroline,

Ângela, Bia e Solange. Agradeço também aos colegas iuperjianos com os quais tive o

prazer de compartilhar momentos de aprendizado, reflexão e discussão.

Sou muitíssimo grata aos professores da EHESS. A Denis Merklen agradeço por sua

orientação, seus comentários críticos e construtivos, suas sugestões de leituras e a

grande atenção que me concedeu no período em que estive em Paris. A Monique de

Saint Martin agradeço a disponibilidade, enorme atenção e presteza em todos os

momentos que precisei. E a Robert Castel, pela leitura atenciosa que fez de meu

trabalho e pelo prazer de ter podido assistir seus seminários ministrados juntamente

com Denis Merklen.

Agradeço com muito carinho à minha tia Inés Menendez, quem me possibilitou um

encontro apaixonante com o idioma francês. Sem sua dedicação e paciência, com

certeza teriam surgido enormes barreiras às minhas leituras e, principalmente, à minha

ida à França. Merci beaucoup, Tinés!!

Aos amigos que me ajudaram diretamente na tese, agradeço a: Pedro Miranda e

Patricia Calazans pelo material bibliográfico que me emprestaram; Bruno Carvalho,

pelas sugestões de leituras para a tese; e Luanda Antunes, pela revisão cuidadosa do

inglês de meu abstract.

Às amigas iuperjianas Cristina Buarque e Thais Mantovani, pelo companheirismo ao

longo do doutorado e, sobretudo, nos momentos de angústia da fase de redação da

tese.

Aos amigos Laura Pelajo, Pedro Miranda, Esther Dweck, Mauricio Metri, Bruno

Carvalho, Flavio Encarnação, Luanda Antunes e Gabriel Rached, por nossa amizade

permeada de momentos sempre divertidos, interessantes e construtivos. Com certeza,

todos - cada um à sua maneira - foram muito importantes para este trabalho.

Agradeço aos meus amigos “parisienses”, Pedro Velloso, Magali Bueno, Célia

Abicalil e Paula Marcelino, com os quais construí uma bonita relação, que contribuiu

para que meu séjour tenha sido maravilhoso e muito aconchegante.

À minha família – Alicia, Pablo, Inés e Luna – que sempre me deu muita força e que,

com muito carinho, entenderam a importância desta fase em minha vida. À minha

mãe, um obrigado especial, por seu contínuo apoio, incentivo e, é claro, por sua

enorme paciência.

Um agradecimento muito especial ao Fábio, quem mais uma vez - com muito amor,

carinho, companheirismo, grande paciência e compreensão - estimulou enormemente

o meu trabalho e abrandou consideravelmente essa árdua e longa fase pela qual acabo

de passar.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1. Apresentação 11

2. Arranjo Expositivo 13

CAPITULO I – TRANSFORMAÇÕES MUNDIAIS RECENTES E O SURGIMENTO DA “NOVA QUESTÃO SOCIAL” 16

1. O processo de reestruturação econômica e social 16 1.1. A financeirização da economia 16 1.2. A reestruturação produtiva 18

2. O papel do Estado no novo contexto 23 2.1. Do Estado na “era dourada” às suas críticas 23 2.2. Europa: o desmonte dos welfares states? 34 2.3. América Latina: críticas ao Estado desenvolvimentista e as propostas para um novo tipo de Estado 36

3. Transformações do mundo do trabalho e o surgimento da nova questão social 42

CAPITULO II – NEOLIBERALISMO, JUSTIFICAÇÃO DO CAPITALISMO E AS NOVAS REGRAS DO JOGO 48

1. Da utopia neoliberal ao neoliberalismo como ideologia. 48 1.1. A utopia neoliberal 48 1.2. O neoliberalismo como ideologia 56

2. Espírito do capitalismo e as novas regras do jogo 59 2.1. O novo espírito do capitalismo. 59 2.2. As novas “regras do jogo”: flexibilidade e empregabilidade 65

CAPITULO III – O DESLOCAMENTO INTERPRETATIVO DA QUESTÃO SOCIAL NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO: DA MARGINALIDADE À POBREZA 77

1. A questão social e sua enunciação 77

2. Da marginalidade 85

3. A enunciação contemporânea da questão social 94 3.1. Algumas considerações sobre a “nova questão social” 94 3.2. Os Estados Unidos e o debate sobre a underclass 96 3.3. O debate francês sobre a exclusão social 101 3.4. América Latina: o discurso sobre a “pobreza” 107

CAPITULO IV – A QUESTÃO SOCIAL COMO “POBREZA” 118

1. A emergência do discurso internacional sobre a “pobreza” 120

2. Os discursos dos organismos internacionais: a “pobreza” e suas causas, segundo o Banco Mundial, o PNUD e a OIT 130

2.1. Banco Mundial 130 2.1.1. Relatório sobre Desenvolvimento Mundial de 1990: A Pobreza 131 2.1.2. O Relatório sobre Desenvolvimento Mundial de 2000/2001: A Luta contra a Pobreza 135

2.1.2.1. Pobreza como “privação das capacidades”: a presença das idéias de Amartya Sen 140 2.1.2.2. Indivíduo, “recursos” e limitações das “capacidades” 141 2.1.2.3. Instituições e limitações das “capacidades” 146

2.2. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) 148 2.2.1. Amartya Sen e a noção de “desenvolvimento humano” 150 2.2.2. Pobreza e “desenvolvimento humano” 158

2.3. Organização Internacional do Trabalho (OIT) 164

CAPITULO V – DAS DEFINIÇÕES CONCEITUAIS ÀS RECOMENDAÇÕES PARA O “COMBATE À POBREZA” 168

1. Segundo o Banco Mundial 169 1.1. Promoção das “oportunidades” 169 1.2. Incentivo ao empowerment 175 1.3. Promoção da segurança 176

2. Segundo o PNUD 180 2.1. Aos “pobres”, mais “capacidades” 180 2.2. Um Estado capacitador, responsável e ativo 183 2.3. Um crescimento econômico a favor dos pobres 187 2.4. Uma gestão “mais humana” da globalização 188 2.5. Reunião de forças no combate à “pobreza humana” 189

3. Segundo a OIT 191 3.1. Empregabilidade, formação profissional e aumento da produtividade 191 3.2. Estratégias específicas para a promoção do “trabalho decente” e “produtivo” 193 3.3. Crescimento a favor dos pobres e a “boa governança” do mercado de trabalho 197

4. Comentários adicionais. 199

CONSIDERAÇÕES FINAIS 202

1. Naturalização e individualização no tratamento da questão social 203

2. A construção da “pobreza” como conceito 207

3. Discurso e disputa política 210

4. Comentário final 213

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 215

Os que tentam corrigir os costumes de nossa época, com idéias em voga, só corrigem a

aparência viciada das coisas, mas não o fundo delas, o qual talvez se agrave ainda. E acho a

agravação possível, porque é fácil aceitar alguém as reformas exteriores e arbitrárias,

menos custosas e de vantagens mais tangíveis, que as interiores, satisfazendo assim os vícios

essenciais sem maiores riscos. (MICHEL DE MONTAIGNE)

Estranhem o que não for estranho Tomem por inexplicável o habitual

Sintam-se perplexos ante o cotidiano Tratem de achar um remédio para o abuso

Mas não esqueçam de que o abuso é sempre a regra

(BERTOLT BRECHT)

11

INTRODUÇÃO

1. Apresentação

A história dos últimos trinta anos é a de um mundo que sofreu profundas

transformações cujos efeitos envolveram a totalidade das relações sociais. Como fruto

da reestruturação produtiva, da financeirização da economia, das mudanças do papel

do Estado e também do enfraquecimento social e político do mundo do trabalho,

houve um agravamento das condições sociais em escala planetária. Se, para o caso

europeu, isto vem sendo interpretado como o surgimento de uma nova questão social

(ROSANVALLON, 1995; CASTEL, 2003), no caso latino-americano, pode ser

entendido como o seu aprofundamento.

A despeito da existência de vasta bibliografia que discute esse agravamento das

condições sociais como decorrente aquelas transformações mundiais, o tratamento, a

interpretação e a enunciação da questão social e também a proposição de políticas

para solucioná-la nem sempre consideram fatores sociais e estruturais como seus

causadores.

Diante da proliferação das recomendações de políticas de “combate à pobreza” dos

organismos internacionais e dos estudos voltados para a mensuração do número de

pobres, assiste-se, desde os últimos quinze anos, a uma emergência e centralidade da

“pobreza” como uma nova forma de classificação e eixo de enunciação da questão

social, sobretudo no contexto latino-americano. Nesse sentido, o objetivo desta tese é

procurar entender seus significados e implicações. Assim, procura-se responder, por

que, ao contrário de outros momentos, a questão social vem sendo tratada

predominantemente a partir da idéia de “pobreza”? Por que, quando hoje se propõem

soluções para a questão social, pensa-se em “combater a pobreza” ou ainda “reduzir a

quantidade de pobres” do mundo?

Sabe-se que, na linguagem ordinária, a “pobreza” é termo de uso comum – como um

modo de percepção da realidade social - e de longa data. Contudo, o que se quer

propor aqui é que a atual utilização do termo “pobreza” - no campo da enunciação da

questão social e das políticas públicas que buscam resolvê-la - é algo que merece

atenção, já que, envolve não apenas uma maneira de descrição ou percepção para o

12

social, mas, sobretudo, a construção de um conceito que ajuda a recortar e interpretar

a realidade e, ainda, incidir sobre ela.

Para Topalov (1994), um dos grandes objetivos das ciências sociais consiste em

procurar fornecer meios de deslegitimação de prescrições fundadas sobre afirmações

“de fato” e, portanto, em questionar as categorias de descrição do mundo que, em

dado momento, se colocam como evidência. Diante disto, a proposta desta tese reside

em desconstruir essa nova forma de enunciação para a questão social - a partir do

conceito de pobreza -, problematizando-a, desnaturalizando-a e associando-a a um

projeto político e a uma visão de mundo específicos.

Nesse sentido, discorda-se fortemente da afirmação de Øyen (1996) de que faltaria

uma filosofia às atuais medidas e discussões sobre a pobreza e, por isso, o paradigma

da pobreza não chega a lugar algum (ØYEN, 1996, p. 3). Ao contrário, procurar-se-á

mostrar, nesta tese, que o atual tratamento da questão social a partir de “pobreza” -

por mais que se esforce em assumir um caráter puramente “técnico” -, pressupõe sim

uma filosofia ou visão de mundo social próprias e que, justamente em função disso,

traz consigo implicações. É preciso, portanto, questionar e desconstruir aquele tipo de

interpretação para a questão social.

Pode-se dizer que esta tese situa-se na fronteira entre duas áreas das Ciências Sociais:

a Sociologia e a Ciência Política, já que, por um lado, trabalha-se com conceitos

próprios da primeira, sobretudo o de “questão social” (CASTEL, 2003) e, por outro,

considera-se que : (i) sua enunciação (ou tratamento) devem ser pensados a partir da

política, dado que se tratam de resultados de uma disputa política em torno da

definição de sentido sobre o mundo social; e (ii) as recomendações de políticas para

“resolver” a questão social tem mais a ver com a luta política pela destruição da

ordem social construída ao longo da chamada “era dourada” (HOBSBAWM, 1995)

do que com a questão social propriamente dita.

13

2. Arranjo Expositivo

A discussão será desenvolvida em cinco capítulos. No primeiro capítulo, procura-se

tratar das transformações mundiais recentes, interpretando-as como ponto de partida

para o entendimento do surgimento de uma nova questão social. Sugere-se que a

reaparição desta última – no caso europeu – e/ou o seu aprofundamento – nos países

periféricos - devam ser interpretados a partir das mudanças observadas no último

quarto do século passado, ou seja, a partir do processo de reestruturação produtiva, de

financeirização da economia, da transformação do papel do Estado e, ainda, do

enfraquecimento do mundo do trabalho - seja do ponto de vista sociológico

(afrouxamento da condição salarial – desemprego estrutural, precarização do

emprego, etc.), seja do ponto de vista político (enfraquecimento do mundo do trabalho

enquanto lócus da crítica ao capitalismo).

Embora, numa análise sociológica, seja possível interpretar essa nova questão social

enquanto como produto da própria dinâmica social – tal como sugere Castel (2003) -,

quando se observa como ela vem sendo enunciada e interpretada – sobretudo, no

âmbito das políticas públicas – nota-se que nem sempre o “nome” diz respeito à

“coisa”, o que torna evidente o perfil político do problema a ser discutido.

Assim, para compreender como a questão social vem sendo enunciada e interpretada,

reconhece-se que é preciso entender, primeiramente, como o capitalismo

contemporâneo vem sendo justificado e legitimado. Deste modo, no segundo capítulo,

analisa-se rapidamente o discurso neoliberal – desde quando se colocava como

“utopia”, cujo alvo inimigo era a intervenção estatal, até o momento em que consegue

chegar ao poder e, paulatinamente, afirmar-se como “ideologia” do capitalismo

globalizado.

Ainda no mesmo capítulo, discorre-se, paralelamente, sobre a interpretação de

Boltanski (1999) acerca de como o capitalismo vem sendo justificado no mundo do

trabalho. E, ainda, como elementos importantes desse novo conjunto ideológico, são

destacados os debates e discursos contemporâneos sobre flexibilidade e

empregabilidade, que vêm se apresentando como as novas “regras do jogo” do mundo

do trabalho. Como decorrente de tudo isso, discute-se a formação de um novo caráter

14

da individualidade especificamente contemporânea: o trabalhador enquanto

“empresário de si mesmo” (MACHADO DA SILVA, 2002) e como indivíduo teórico

competitivo. Essas novas figuras ajudam a pensar, posteriormente, o modo como a

questão social vem sendo problematizada.

No terceiro capítulo, aquela separação entre o “nome” e a “coisa” fica bem mais clara.

Considera-se como “coisa” o conceito de “questão social” formulado por Castel

(2003) - conceito este que traz consigo a idéia de suas próprias metamorfoses - e

como “nome” tomam-se os diversos modos a partir dos quais a “coisa” é tratada – ou

“enunciada” - ao longo do tempo. Desta maneira, aponta-se, mais especificamente,

para um deslocamento interpretativo da questão social no contexto latino-americano.

Se, no contexto do desenvolvimentismo, ela era tratada a partir da idéia de

“marginalidade” – vinculada a interpretações preocupadas com os processos

estruturais que a geravam -, nota-se que, a partir dos anos oitenta, o conceito de

marginalidade entra em desuso e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a questão

social (mais extensa e aprofundada) começa a ser enunciada, sobretudo, a partir da

idéia da “pobreza”. Mostra-se também, como contraponto, como a nova questão

social vem sendo debatida no contexto francês (como “exclusão”) e no norte-

americano (como underclass).

No quarto capítulo sugere-se que para entender melhor a centralidade, especificidade

e significado da questão social como “pobreza”, é preciso analisar os discursos e

relatórios dos organismos internacionais que tratam da temática da pobreza e suas

causas - Banco Mundial, PNUD e OIT - e que vem se dedicando à formulação de

recomendações de políticas para combatê-la – temática discutida no quinto capítulo.

Uma vez analisados, ao longo do quarto e quinto capítulos, os relatórios desses

organismos internacionais e ressaltadas as suas especificidades são feitas algumas

considerações a partir dos traços comuns que os três organismos compartilham.

A partir disso, conclui-se que o tratamento da questão social como “pobreza” traz

consigo algumas implicações. De maneira bastante resumida, podem-se ressaltar as

seguintes: (i) esse tratamento resume-se a uma abordagem individualizante e des-

historicizada, enfraquecendo perspectivas sociológicas baseadas em explicações que

enfatizem os caracteres social e político da questão (ii) vai sendo construído um

conceito (“pobreza”) que ajuda a recortar e modelar a realidade social à luz dos

marcos neoliberais; (iii) reforça-se um discurso de poder cujo objetivo fundamenta-se

15

na busca pela legitimação do projeto neoliberal-globalizante dos organismos

internacionais e, em última instância, pelo desmonte do mundo social que foi

construído ao longo da “era dourada”.

16

Capítulo I – TRANSFORMAÇÕES MUNDIAIS RECENTES E O SURGIMENTO DA “NOVA QUESTÃO SOCIAL”

1. O processo de reestruturação econômica e social

A partir de meados dos anos setenta, observam-se transformações profundas na

economia política do capitalismo. É o começo de uma nova etapa: de um lado, tem-se

um novo tipo de acumulação capitalista – que se torna visível com o aprofundamento

do processo de financeirização da economia - e, de outro, frente ao esgotamento do

modelo fordista, tem-se uma reestruturação produtiva, marcada pelo início de um

novo paradigma de organização da produção.

Ambas as transformações tiveram influência no caráter “estrutural” do desemprego,

ressaltado, por exemplo, por Hobsbawm: “o crescente desemprego dessas décadas não

foi simplesmente cíclico, mas estrutural. Os empregos perdidos nos maus tempos não

retornariam quando os tempos melhoravam: não voltariam jamais.” (HOBSBAWM,

1995, p. 403).

1.1. A financeirização da economia

As transformações que dizem respeito ao processo de financeirização da economia

foram amplamente discutidas por vários autores e são percebidas e conceituadas de

diversos modos: como a “revolução financeira global” (ARRIGHI, 1996), como

“globalização financeira” (AGLIETTA et alli, 1990), como a “financeirização global”

(BRAGA, 1997), como a hegemonia do capital financeiro na “mundialização do

capital” contemporânea (CHESNAIS, 1996), dentre outros.

Para além de suas diferenças, se tomados em conjunto, nota-se que todos esses

autores estão tratando de um mesmo fenômeno, que veio a ser chamado de

globalização financeira, cujas origens “remontam aos anos 60, ao início do processo

de desregulação financeira que começou com a criação do euromercado de dólares e

deu seu segundo passo com o fim do sistema de paridade cambial acordado em

Bretton Woods” (FIORI, 2001, p. 97).

17

A esse desmoronamento da ordem monetária internacional estabelecida em Bretton

Woods somou-se o choque do petróleo, em 1973, como mais um fator para a crise,

cujos impactos também foram bastante fortes para o contexto econômico da época;

isto gerou um aumento abrupto dos preços desse recurso energético em escala mundial e

causou forte recessão mundial, combinando baixas taxas de crescimento com altos

índices de inflação. Com a queda da rentabilidade do capital investido na indústria, a

partir dos anos setenta, os capitais industriais passam a buscar novas formas de

valorização: sobretudo, as financeiras.

Desde então, diante da possibilidade de se expandir nessa esfera financeira, o

capitalismo teve sua lógica de expansão alterada. Assim, a globalização resulta “de

dois movimentos básicos: no plano doméstico, da progressiva liberalização

financeira, e, no plano internacional, da crescente mobilidade de capitais”

(CARNEIRO, 2002). Segundo Fiori (2001), a expansão da globalização

só ocorreu nos anos 80 e foi obra das políticas desregulacionistas iniciadas pelos governos anglo-saxões, que se universalizaram, nos países centrais, por meio do efeito em cadeia – ‘desregulação competitiva’ – provocado pela competição entre os Estados pelo capital financeiro internacionalizado; e, nos países periféricos, como decorrência de sua “crise externa” e como imposição das políticas de ajuste patrocinadas pelos seus credores e governos dos países centrais. (FIORI, ibidem, p. 98)

E é nesse contexto que os operadores financeiros experimentam uma liberdade de

ação que não sentiam desde a crise de 1929 (CHESNAIS, 1996). Contudo, dizer que o

capitalismo contemporâneo é fortemente marcado pela lógica financeira não é nada

trivial. Isto significa que seu padrão de geração de riquezas e de acumulação se

transformou e que sua dinâmica agora ocorre também no processo de acumulação D-

D’, e não apenas em D-M-D’ (ARRIGHI, 1996).

Para desenvolver esse argumento, Arrighi (1996) utiliza a formulação de Karl Marx

(2002), em O Capital: D-M-D’, em que D significa capital-dinheiro (liquidez,

flexibilidade e liberdade de escolha); M é o capital-mercadoria (ou seja, aquele

investido numa certa combinação de insumos, para obtenção de lucro); e, por fim, D’,

que é o dinheiro obtido no final do empreendimento, representa a ampliação da

liquidez, da flexibilidade e da liberdade de escolha e é o resultado da reprodução do

capital. A atividade financeira seria, então, expressa por D-D’, onde D se transforma

diretamente em D’, sem passar pelo setor produtivo.

18

Tem-se, assim, um “dinheiro produtor de dinheiro, a forma mais absurda do capital”.

(HILFERDING apud BRAGA, 1997, p. 197). O capital financeiro portanto

“representa ‘a forma mais alienada, mais fetichizada da relação capitalista’, a forma

D-D’" (MARX apud CHESNAIS, 1996, p. 246). Assim, diante da possibilidade de se

expandir no âmbito financeiro (D-D’), a acumulação de capital se desloca da esfera da

produção para a esfera financeira (rentista).

É evidente que, esse novo movimento do capital, cuja valorização não tem mais a

necessidade de passar pela esfera produtiva, traduziu-se em criação de limitações ao

desenvolvimento em bases produtivas, gerando, é claro, desemprego. Embora as

mazelas da financeirização pudessem ser remediadas ou revertidas através da política,

tudo fica mais difícil num momento em há um reforço da hegemonia do capital

financeiro e de seu discurso liberal-globalizante.

Ao lado do processo de financeirização, o problema do desemprego estrutural foi

também reforçado pelo fenômeno da reestruturação produtiva, que será o tema da

próxima seção.

1.2. A reestruturação produtiva

Tal como o processo de financeirização, o de reestruturação produtiva tem sua origem

na crise dos países capitalistas centrais, no pós-1973. Após um longo período de

prosperidade econômica, durante o auge do fordismo, a depressão dos anos setenta e a

revolução tecnológica acabaram por impulsionar e possibilitar a criação de novos

métodos de organização da produção e da força de trabalho. Esse momento de

inflexão é marcado pela passagem do modelo fordista para o “regime de acumulação

flexível” (HARVEY, 1992; ANTUNES, 1995).

O regime fordista1, que representava o motor de desenvolvimento econômico dos

países que a ele aderiram, perdurou até meados dos anos setenta, quando, após anos

de crescimento, seus limites (mercados saturados) se tornam evidentes.

1 O regime de acumulação fordista atingira sua maturidade no pós-1945, embora tenha sido simbolicamente inaugurado por Henry Ford, em 1914, quando introduziu o sistema de linha de montagem, em busca da contínua redução do tempo de fabricação dos veículos, tornando o processo mais simples e eficiente e, os produtos, as ferramentas e as peças, mais padronizados. A grande

19

Antunes (1999) avalia a crise do fordismo como uma “expressão fenomênica” da crise

estrutural do capitalismo cujos traços foram evidenciados nesse período. Nesse

quadro, chama a atenção para: queda da taxa de lucro (em função do aumento dos

salários na “Era Dourada”); incapacidade do fordismo em responder à crescente

retração do consumo; hipertrofia da esfera financeira2 (ibidem, p. 30), além da crise

do petróleo que passa a ser o estopim e o marco simbólico do fim de uma era.

Simultaneamente a esta crise estrutural, uma revolução tecnológica se encontrava em

curso. Castells (2000) observa a reestruturação produtiva como conseqüência da

revolução tecnológica, que é definida por ele como o advento do paradigma da

tecnologia da informação3. Certamente, sua análise vai muito além da compreensão

da reestruturação produtiva a partir do desenvolvimento de tecnologias de

informação, já que procura explicar suas conseqüências transformadoras sobre a

organização social4.

Propiciadas pelo surgimento e difusão de novas tecnologias, transformações

estruturais passam a ser freqüentes nas estratégias dos agentes do setor produtivo:

automação, alteração do padrão tecnológico, reestruturação da produção e da

organização do trabalho e deslocalização do processo produtivo.

Assim, como resposta ao novo contexto, iniciava-se, desse modo, a passagem para um

novo regime de acumulação. Esse novo “modelo” tem sido caracterizado por

novidade desse modelo de produção se baseava em sua visão de que produção em massa significava consumo em massa, o qual era possibilitado pelos baixos preços dos produtos, pelos maiores salários dos trabalhadores e pela existência de uma enorme demanda reprimida. Era nessas inovações que se percebia o caráter estruturante do fordismo, já que, junto ao Estado interventor e de bem-estar, conseguiu transformar profundamente a sociedade do pós-guerra. Essa capacidade de transformação social e cultural do fordismo foi analisada por Gramsci (2001), que ressaltou: “a racionalização determinou a necessidade de elaborar um novo tipo humano, adequado ao novo tipo de trabalho e de processo produtivo” (idem, p. 248). Assim, a partir da centralidade da nova forma do processo de trabalho, ele percebe uma nova forma da vida moderna e compreende que, como ressalta Finelli (1997), analisando Gramsci, há uma “produção de toda uma organização social, em seu nexo articulado de plano material, plano relacional-social e plano ideológico-simbólico, a partir da centralidade da fábrica”. 2 Como foi visto na seção anterior. 3 Ou “informacionalismo” - conjunto convergente de tecnologias em microeletrônica, computação, telecomunicações/radiodifusão e optoeletrônica. 4 Como ressalta Cardoso, no prefácio de A sociedade em rede, Castells encontra “no paradigma tecnológico baseado na informação os princípios organizadores de um novo ‘modo de desenvolvimento’, que não se substitui ao modo de produção capitalista, mas lhe dá nova face e contribui de forma decisiva para definir os traços distintivos das sociedades do final do século XX. A análise se desdobra na identificação de uma nova estrutura social, marcada pela presença e o funcionamento de um sistema de redes interligadas” (p. II).

20

“acumulação flexível” (HARVEY, 1992; ANTUNES, 1995), ou por “toyotismo”

(ANTUNES, 1995) – o modelo japonês. Não cabe aqui um estudo pormenorizado

desses novos modelos5, mas simplesmente ressaltar aspectos mais gerais da

reestruturação produtiva, tal como a questão da flexibilização.

Para Castells (2000), o sistema flexível decorrente do advento do

“informacionalismo” surgiu como uma resposta para enfrentamento da rigidez

característica do modelo anterior, que se mostrava obsoleta frente ao novo ritmo de

transformação tecnológica. As novas tecnologias permitiram, por um lado, a

“transformação das linhas de montagem típicas da grande empresa em unidades de

produção de fácil programação” (CASTELLS, 2000, p. 176), tornando-as mais

flexíveis e possibilitando o atendimento das variações do mercado e das

transformações tecnológicas.

Por outro lado, as inovações tecnológicas propiciaram a formação de redes de

empresas, que, de modo geral, procuram ser

capazes de gerar conhecimentos e processar informações com eficiência; adaptar-se à geometria variável da economia global; ser flexível o suficiente para transformar seus meios tão rapidamente quanto mudam os objetivos sob o impacto da rápida transformação cultural, tecnológica e institucional; e inovar, já que a inovação torna-se a principal arma competitiva. (ibidem, p. 192).

Boltanski (1999), por sua vez, ressalta como um dos eixos principais da

transformação das estratégias das empresas a flexibilização, que pode ser dividida em

flexibilização interna e externa. Ele entende a primeira como a transformação

profunda da organização do trabalho e das técnicas utilizadas (polivalência,

autocontrole, desenvolvimento da autonomia) e destaca como flexibilização externa a

transformação do tecido produtivo, que passa a estar assentado numa organização do

trabalho dita “em rede”.

As transformações tecnológicas e a reestruturação produtiva tiveram profundas

conseqüências sobre o mundo do trabalho. A substituição dos homens por tecnologia -

máquinas muito mais eficientes – não foi compensada por uma criação de empregos

satisfatória. Nas palavras de Hobsbawm: “a produção agora dispensava visivelmente

5 Para tanto, ver Antunes (1995) ou Harvey (1992).

21

seres humanos mais rapidamente do que a economia (...) gerava novos empregos para

eles.” (HOBSBAWM, 1995, p. 404)

Castells (2000) reconhece que durante processo de transição para a sociedade

informacional e uma economia global assiste-se ao problema do desemprego e o da

deterioração das condições de trabalho e de vida para os trabalhadores. E considera

ainda que, “sob o paradigma informacional, os tipos de emprego mudam em

quantidade, qualidade e natureza do trabalho executado.” (ibidem, p. 284). Nesse

sentido, além de gerar desemprego e precarização do trabalho, o novo sistema

produtivo começa a requerer um novo tipo de força de trabalho. Os indivíduos

passam, portanto, a ter a obrigação de se adaptarem às novas exigências.

A hipótese de Castells é a de que a transformação mais importante ocorrida no mundo

do trabalho foi o processo de individualização do trabalho: a “nova organização social

e econômica baseada nas tecnologias da informação visa à administração

descentralizadora, trabalho individualizante e mercados personalizados e com isso

segmenta o trabalho e fragmenta as sociedades.” (ibidem, p. 285) Para o autor, a

flexibilidade extrema proporcionada pela tecnologia acaba por impor condições

produzindo uma individualização da relação entre trabalhador e empresa e uma

individualização do trabalho em si.

Em suma, esse processo de individualização do trabalho é entendido como o

“processo pelo qual a contribuição da mão-de-obra ao processo produtivo é definida

de forma específica para cada trabalhador e em razão de cada uma de suas

contribuições, seja na forma de trabalho autônomo, seja como mão-de-obra

assalariada contratada individualmente e com base em um mercado amplamente

desregulamentado.” (CASTELLS, 1999, p. 97).

Assim, ao contrário do que Marx (2002) havia percebido em O Capital - que, com o

desenvolvimento do capitalismo, o trabalho se tornava cada vez mais coletivo -,

Castells (2000) afirma que, no capitalismo contemporâneo, o trabalho tende a ser cada

vez mais individual, o que acaba por desorganizar estruturalmente a classe

trabalhadora.

Além disso, tendo como resultados para o mundo do trabalho o desemprego e

precarização do emprego, a reestruturação produtiva é entendida por Boltanski (1999,

p. 356) como fonte para a dessindicalização.

22

Ademais, outro fator que contribui para a perda de poder de barganha dos

trabalhadores é a flexibilização geográfica da produção ou a “deslocalização do

processo produtivo”. Possibilitada pelas inovações tecnológicas e adequada à lógica

da competição de livre comércio mundial, essa deslocalização da produção se dá em

termos, por um lado, da possibilidade de se fragmentar o processo produtivo,

realizando suas variadas etapas em distintos países – especialmente naqueles em que

as condições lhes sejam mais favoráveis, isto é, baixos salários, mão-de-obra barata,

subsídios, isenções fiscais. Por outro, ocorre através da transferência direta do

processo produtivo para países nos quais os custos de produção – sobretudo, o da mão

de obra – são menores.

Assim, assiste-se hoje, por exemplo, ao deslocamento das plantas produtivas dos

Estados Unidos para o México, da Europa Ocidental para o Leste Europeu, do Japão

para a Índia e China, sempre em busca dos menores custos de produção. Nesse

sentido, por um lado, os trabalhadores dos países do centro do sistema, tendo seu

poder de barganha reduzido, se vêem obrigados a diminuir suas reivindicações e, por

outro, esses países começam a alinhar suas legislações trabalhistas e de proteção

social àquelas do Estado onde lhes forem mais favoráveis - leia-se: onde a proteção

for menor (CHESNAIS, 1996, p. 306).

Paralelamente, nos países periféricos, para fazer frente às exigências da abertura das

fronteiras comerciais, as empresas se vêem numa necessária corrida à reestruturação

produtiva, no sentido de enfrentar a competição globalizada imposta por produtos

produzidos a custos mais baixos.

De modo geral, como resultado dessa profunda reorganização da vida econômica, há

uma tendência à globalização do desemprego e da precarização, ou seja, um

enfraquecimento do mundo do trabalho, afetando tanto países mais desenvolvidos

quanto os periféricos.

23

2. O papel do Estado no novo contexto

2.1. Do Estado na “era dourada” às suas críticas

A discussão sobre surgimento da tendência intervencionista observada em grande

parte do século XX está presente em A Grande Transformação, escrita por Polanyi

em 1947. O autor a interpreta como resultante de um movimento de “auto-proteção”

de uma sociedade que precisava de alternativas aos efeitos perversos da economia de

mercado. Ele procurou mostrar como a crise da civilização liberal, que teve seu auge

no século XIX, explica-se a partir do próprio esforço utópico do liberalismo em tentar

estabelecer um sistema de mercado auto-regulador.

Polanyi argumenta que, ao procurar moldar a sociedade à sua imagem (tentando

transformar o homem e a natureza em mercadorias), a economia de mercado acabou

destruindo o tecido social, não sendo capaz de criar modos alternativos de reconstruí-

lo. Com isso, colocou-se em marcha o que ele chama de “contra-movimento”

(POLANYI, 2000, p. 161) de resistência da própria sociedade - um “princípio de

proteção social” (ibidem, p. 164) – com o objetivo de frear os mecanismos de

mercado destruidores do tecido social.

Assim, quanto mais o princípio do liberalismo econômico – que utopicamente visava

estabelecer um mercado “auto-regulável” - se expandia e as tensões entre as classes

sociais se acirravam (ibidem, p. 165) e ameaçavam a ordem social vigente, tanto mais

o princípio de proteção social - “coletivista” e intervencionista – ia sendo acionado,

com o objetivo de preservar a coesão social.

Pode-se dizer que esse movimento de proteção nacional e social contra os efeitos

nefastos do “moinho satânico” atingiu seu auge no pós-guerra, período (1945-1973)

que ficou conhecido como a “era de ouro” (HOBSBAWM, 1995) e foi marcado6 pela

6 Vale lembrar aqui que a “era dourada” teve significados diferentes nos países centrais e periféricos. Enquanto nos países centrais essa era representou o auge do Welfare State, na Europa, e do liberalismo keynesiano – o “embedded liberalism” -, nos Estados Unidos, nos países da periferia (particularmente na América Latina), esse período foi marcado pelo desenvolvimentismo (WALLERSTEIN, 2000).

24

forte presença estatal tanto na esfera econômica (keynesianismo) quanto no âmbito da

proteção social (welfare state).

Dentre os estudos sobre o welfare state que surgiram no pós-guerra, hoje

considerados clássicos (PIERSON e CASTLES, 2002), está o de T. H. Marshall

(1950), que discutiu a questão do welfare state a partir da história do desenvolvimento

da cidadania. Marshall analisa a formação da cidadania como um desenvolvimento

dos direitos civis, políticos e sociais, que foram conquistados, respectivamente, nos

séculos XVII, XVIII e XIX.

Sua contribuição foi mostrar que a cidadania não se resume às dimensões civil e

política, mas contém também a social, que faz com que os “direitos sociais”, tais

como os civis e os políticos sejam fundamentais ao “cidadão”. Assim, Marshall

sugere que um indivíduo só pode ser considerado “cidadão” completo se possuir os

três elementos da cidadania. Deste modo, ao analisar a história da consolidação dos

direitos na Inglaterra, entende o welfare state como o momento final do

desenvolvimento da cidadania.

A despeito das críticas7, a contribuição de Marshall é de grande importância, já que,

por um lado, afirma que a cidadania é universal – ela diz respeito a todos os membros

da comunidade -, o que faz com que todos os indivíduos tenham o mesmo status. Por

outro, enfatiza o elemento “social” como parte constitutiva da cidadania e, portanto, a

sua recíproca: a ausência de direitos sociais significa incompletude da cidadania. E

aprofunda: ao perceber que a cidadania social como algo que vai além da provisão de

políticas sociais, Marshall sustenta que, embora ela não interfira na estrutura de

classes existente na sociedade capitalista, a cidadania consegue alterar as relações

7 As críticas referem-se, por um lado, à visão evolucionária da cidadania de que Marshall lança mão e, por outro, à tentativa de generalização a partir da análise da experiência inglesa (TURNER, 1993). Quanto ao “evolucionismo” de Marshall, não estaria claro porque os direitos civis e políticos devem vir antes dos direitos sociais e, em última instância, pareceria que Marshall dá pouca importância às lutas sociais na promoção dos direitos de cidadania. Assim, segundo Turner, a trilogia de Marshall acabaria sugerindo que a transição rumo à cidadania é um processo pacífico e gradual, menosprezando, portanto, a importância dos movimentos e lutas sociais. Mas Santos (2001) lembra que, embora haja polêmica em torno dessa questão – em que medida a cidadania social é uma conquista do movimento operário (TURNER apud SANTOS) ou uma concessão do Estado capitalista (Barbalet apud SANTOS) – é evidente que, sem as lutas sociais do movimento operário, aquelas conquistas não teriam sido alcançadas (ou, ainda, aquelas “concessões” não teriam sido feitas).

25

existentes entre Estado, sociedade e economia e, com isso, gerar efeitos sobre a

desigualdade social.

Esping-Andersen (1990) também trabalha com a idéia de que direitos sociais estão

para além da provisão de serviços sociais. A proteção social deve ser analisada a

partir de sua capacidade de moldar as relações de poder existentes na sociedade. Essa

possibilidade é explicada a partir da capacidade de desmercadorização da proteção

social.

Para Ensping-Andersen, o conceito de desmercadorização refere-se à capacidade que

a cidadania social tem de, ao garantir direitos sociais aos cidadãos, reduzir o grau de

dependência desses indivíduos em relação ao mercado – e também, em última

instância, em relação ao empregador. Assim, a introdução de direitos sociais implica

no afrouxamento do status de mercadoria que o indivíduo tem na sociedade

capitalista. A desmercadorização ocorre plenamente quando a prestação de um

serviço social é vista como um direito adquirido (que não depende da relação do

indivíduo com o mercado) e, portanto, quando implica um certo grau de emancipação

do indivíduo, que passa a ser menos dependente do mercado.

Esping Andersen (1990) se propõe a analisar diferentes tipos diversos de welfare

state, definidos a partir dos diferentes graus de desmercadorização que conseguem

produzir. O autor descreve três modelos diferentes: o liberal (ou residual), o

corporativo e o social-democrata.

Ele postula que, no modelo liberal, o mercado é o mecanismo central de promoção

dos serviços sociais. O papel do Estado é resumido à concessão de benefícios e

programas direcionados apenas àqueles que comprovam ser pobres. Assim, é um

modelo residual e seletivo de intervenção, em que os benefícios são modestos e sua

clientela é essencialmente de baixa renda. Na medida em que o mercado é a

instituição central do modelo, os serviços oferecidos são mercadorias que as pessoas

compram. Só são atendidos pelo Estado aqueles que comprovam não ter condições de

adquirir esses serviços por conta própria. Fica claro, portanto, que esse modelo tem

um efeito de desmercadorização mínimo, uma vez que sua capacidade de transformar

mercadorias em direitos é muito baixa. Ele é característico dos Estados Unidos, por

exemplo.

26

O segundo modelo é o corporativista, preponderante na Itália, Alemanha, França e

Áustria.

Nestes welfare states (...), a obsessão liberal com a mercadorização e a eficiência do mercado nunca foi marcante e, por isso, a concessão de direitos sociais não chegou a ser uma questão seriamente controvertida. O que predominava era a preservação das diferenças de status; os direitos, portanto, estavam ligados à classe e ao status. (ibidem, p. 27)

A idéia de proteção é muito forte nesse modelo, porém não para todos. Apenas

algumas categorias ou grupos estão protegidos. O regime acaba sendo muito

segmentado e estratificado, inclusive do ponto de vista da cidadania, pois ela acaba

não dependendo do fato de a pessoa ter nascido no país, mas apenas de sua posição no

mercado de trabalho e na estrutura social8.

Por fim, o modelo “social-democrata” é o que tenta promover a igualdade com os

melhores padrões de qualidade, e não uma igualdade de necessidades mínimas. Seus

programas são altamente desmercadorizantes e universalistas. Este modelo tenta

excluir o mercado e constrói uma solidariedade universal em favor do welfare state,

em que “todos se beneficiam; todos são dependentes; e supostamente todos se

sentirão obrigados a pagar” (ibidem, p. 28). Assim, engendra-se, na sociedade, uma

expectativa de ganho igual para todos, que é obtida através de uma coalizão política,

ou seja, um compromisso, em função de uma determinada realidade política. Esse

modelo é exemplificado pelos países escandinavos.

A partir de Polanyi (1947), Marshall (1950) e Esping-Andersen (1990) é possível

perceber que a mais forte característica do welfare state é sua capacidade de

domesticar o poder destrutivo do mercado e do capitalismo, uma vez que, ao

promover a cidadania social, inscreve os indivíduos na categoria “cidadãos”, em um

sistema de direitos sociais, e, assim, consegue alterar, de forma duradoura, a relação

existente entre o Estado, o mercado e a sociedade.

Em suma, o welfare state, nas palavras de Offe (1982):

serviu como a principal fórmula de paz das democracias capitalistas durante o período seguinte à segunda guerra mundial. Esta fórmula de paz

8 O caso do welfare state francês foi exemplarmente discutido por Castel (2003) a partir da noção de “sociedade salarial”, construída a partir da idéia e da realidade do “trabalho protegido”. (CASTEL, 2003, pp. 415-493).

27

consiste, primeiro, na obrigação explícita do aparato estatal de prover assistência e apoio (...) como direitos garantidos para os cidadãos. Em segundo lugar, o welfare state é baseado no reconhecimento do papel formal dos sindicatos tanto em negociações coletivas quanto na formação de políticas públicas. Esses componentes estruturais do welfare state são ambos voltados para limitar e mitigar o conflito de classe, para balancear a relação de poder assimétrica entre trabalho e capital, e, assim, superar (...) conflitos e contradições que eram as características mais marcantes do (...) capitalismo liberal (OFFE, 1982, p. 67, tradução livre).

Assim, como lembra Domingues (2003), ainda que o welfare state não tenha superado

a questão da dominação na sociedade capitalista9, a cidadania social atacou os efeitos

da tensão da sociedade capitalista. O welfare state serviu para remediar os danos da

dominação e para promover uma distribuição que pôde reduzir, em certa medida,

através de direitos sociais universalistas, a desigualdade e o privilégio.

(DOMINGUES, 2003, p. 224)

Sabe-se que o Estado de Bem Estar Social teve seu auge nos trinta anos seguintes à

segunda guerra. Em meados dos anos setenta, ele começa a ser alvo de ataques tanto

pela esquerda quanto pela direita.

Resumidamente, segundo Offe (1982), a crítica a partir da esquerda denunciava que a

estrutura do welfare state havia alterado muito pouco a distribuição de renda entre as

classes do capital e do trabalho. Argumentava que o mecanismo de redistribuição só

funcionava entre as diferentes frações da classe trabalhadora. Nesse sentido, não

eliminava as causas das contingências e necessidades individuais, mas apenas atuava

sobre algumas das conseqüências de seus eventos; consistia numa intervenção post

facto.

Por outro lado, o welfare state passou a ser visto como fonte de falsas concepções

sobre as realidades históricas, que prejudicavam a consciência, a organização e a luta

da classe trabalhadora. Ela criaria a imagem de duas esferas independentes entre si: de

um lado, a esfera da produção, do trabalho, da economia e, de outro, uma esfera mais

abstrata ou superficial – a da cidadania, do Estado, dos direitos – que acabaria por

ocultar as relações de classe. Enfim, a esquerda afirmava que a crise do welfare state

revelava, em última instância, a contradição básica da sociedade capitalista entre as

9 Domingues (2003) argumenta que a dominação foi re-introduzida na modernidade pelos direitos de propriedade, que são cruciais e instrumentais para o capitalismo e para a sociedade de classes.

28

forças produtivas e a permanência de relações de produção de caráter privado

(FLEURY, 1994).

Já as críticas oriundas da direita representaram a defesa de um retorno das idéias do

laissez-faire – através do “neoliberalismo” 10 - que diagnosticavam a crise como uma

conseqüência do excesso da presença estatal que, por um lado, desincentivaria o

investimento, em função das altas taxas de arrecadação, dos crescentes salários e

encargos trabalhistas e, por outro, estimularia uma excessiva geração de expectativas

(BRITTAN, 1975) para as demandas sociais, causando, conseqüentemente, uma

“ingovernabilidade” (HUNTINGTON et alli, 1975).

Samuel Brittan - teórico inglês com proximidade à Margareth Thatcher – ressaltava,

em The Economic Contradictions of Democracy (BRITTAN, 1975), que as

democracias apresentam duas ameaças internas, que colocam em risco a efetividade

da governabilidade: (i) a excessiva geração de expectativas e (ii) uma busca da

satisfação dos interesses dos diversos “grupos” (leia-se: sindicatos) no mercado que

gera efeitos perturbadores ao sistema democrático.

A partir de uma visão schumpeteriana de política, ou seja, interpretando a democracia

como um mercado político11, Brittan entende a primeira “ameaça” - a geração

excessiva de expectativas - como um problema decorrente da falta de consciência, por

parte dos eleitores, de quanto o orçamento do governo é limitado. Dessa maneira, os

eleitores esperaram demais da ação governamental, como se fosse possível realizar as

vontades e os interesses de cada um: tendem “a elogiar ou a culpar os governos por

coisas que estão fora de seu controle”. (ibidem, p. 139) Por outro lado, como o

resultado do “mercado político” depende da capacidade dos candidatos de

conseguirem votos, acaba sendo para eles irresistível estimular a formação de

expectativas falsas entre o eleitorado. Assim, o problema da “governabilidade” do

sistema democrático torna-se evidente quando o eleitorado percebe que suas

expectativas não serão correspondidas. Tal situação aumenta as chances, segundo

Brittan, de que se gere um clima de grande instabilidade social.

10 Será discutido no próximo capítulo. 11 Faz-se uma analogia entre economia e política – e, conseqüentemente, entre os empreendedores e os políticos -, pressupondo que os objetivos dos políticos resumem-se simplesmente a ganhar as eleições, isto é, a conseguir o maior números de votos.

29

Quanto à segunda “ameaça”, Brittan argumenta que ela deriva basicamente do

conflito existente entre os vários sindicatos que lutam, sobretudo, por aumento de

salários. Para Brittan, o efeito direto da ação dos sindicatos é o aumento do

desemprego, e não o da inflação, que seria um efeito indireto. O autor afirma que se

não houver um aumento da base monetária, a ação dos sindicatos gera desemprego12

e, diante desta situação, o governo é obrigado a aumentar seus gastos – e seu déficit

orçamentário –, ou ainda, aumentar a oferta monetária, para combater o desemprego,

gerando assim inflação. Desta maneira, conclui que a existência de fortes sindicatos

cria um impasse para os governos, que têm de escolher entre altas taxas de

desemprego e altas taxas de inflação, ou seja, alternativas difíceis de serem

sustentadas sem descontentamentos numa democracia.

Percebe-se que, para Brittan, a origem das duas contradições da democracia

ressaltadas está no próprio processo de democratização representado pela conquista da

cidadania social, quando a questão da igualdade deixou de ser restrita à garantia de

liberdades, e passou a significar também a garantia de uma mínima igualdade

econômica-social. Nessa crítica à democracia própria da “era dourada”, cuja novidade

consistiu na incorporação do tema da questão distributiva na esfera pública, o autor

ressalta que (a) “não há razão para supor que alguma redução na ‘desigualdade’ (...)

proveria uma base consensual para a estrutura social ou econômica” (ibidem, p. 158) e

(b) essa tentativa de se estabelecer uma política de distribuição de renda e de redução

da desigualdade só faria aprofundar o conflito social, em vez de amenizá-lo (ibidem,

p. 159).

Já para Huntington et alli (1975), em The Crisis of Democracy, o processo de

democratização da sociedade americana, nos anos sessenta, é visto como um processo

de explosão das demandas sociais sobre o governo, sobrecarregando a agenda pública.

Essa saturação geraria um declínio da capacidade de governabilidade nas democracias

dos países avançados. Assim, problemas de governabilidade do sistema emergiriam

quando não fosse mais possível satisfazer as demandas, gerando-se, portanto, uma

perda de legitimidade do governo.

12 Aqui Brittan pressupõe o modelo neoclássico para o mercado de trabalho. Nessa lógica, um aumento do salário decorrente da pressão exercida pelos sindicatos gera um aumento no preço do fator de produção « trabalho » e, consequentemente, uma redução da demanda por trabalhadores. É nesse sentido que ele entende que a ação dos sindicatos gera desemprego.

30

Pode se perceber que Huntington ataca diretamente o Estado de Bem Estar Social,

tratando-o como um excesso de compromissos assumidos pelo governo para com os

diversos segmentos da sociedade e como o causador da ingovernabilidade. Santos

(1988) argumenta que não surpreende que, dentre suas conclusões, Huntington

“sustente que a operação efetiva de um sistema político democrático usualmente

requer certa medida de apatia e de não envolvimento por parte de alguns indivíduos e

grupos.” (SANTOS, 1988, p. 106)

Diante do diagnóstico da explosão das demandas, ele propõe uma “moderação na

democracia” (HUNTINGTON et alli, 1975, p. 113), que serviria para conter13 as

demandas excessivas dos diversos setores da sociedade, assim se ampliando as

condições de governabilidade. Esse argumento também se insere na defesa da

redução do Estado. Com o tempo, o termo governabilidade progressivamente ganhou

força, e passou a ser visto como um valor em si mesmo, que todo governo deveria

estar preocupado em atingir.

Tal como Gramsci havia observado, em seus “Cadernos do Cárcere”, em momentos

de crise, são criados “terrenos favoráveis à disseminação de certas maneiras de

pensar, e certos modos de colocar e de resolver os problemas” (Gramsci apud

CLARKE e NEWMAN, 2004, p. 1). Esses modos de pensar oriundos de um neo-

conservadorismo neoliberal conseguiram fazer valer seus argumentos e se afirmar

como a forma hegemônica de fundamentar as críticas ao welfare state e de propor

soluções e alternativas a ele. As “novas” idéias e propostas liberalizantes só começam

a se difundir pelo mundo, a partir do final dos anos setenta e, sobretudo, após a queda

do muro de Berlim e do fim da União Soviética – momento em que se proclamava o

“Fim da História” (FUKUYAMA, 1992).

O resultado da propagação dessas idéias foi uma desvalorização generalizada do

modo de intervenção estatal característico da “era dourada”. Aos poucos, foram

conseguindo conquistar o senso comum com sua retórica e seus argumentos,

alcançando o governo no final dos anos setenta. Em 1979, na Inglaterra, assiste-se à

chegada do discurso neoliberal à realidade política com Margaret Thatcher, em 1980,

13 Para garantir a governabilidade, passa a se defender uma despolitização dos problemas sociais, de modo a reduzir o tamanho do Estado – transferindo ao máximo suas atribuições ao “mercado”.

31

nos Estados Unidos, com Ronald Reagan e, a partir daí, um crescente processo de

difusão do ideário neoliberal pelo mundo.

Em suma, o diagnóstico da “nova direita” para a crise dos anos setenta era o de que

ela seria resultado de um excesso de democracia, de Estado, de regulação da

economia e, ainda, de poder de barganha dos sindicatos e dos movimentos operários,

cujas pressões reivindicativas por salários e por aumento dos gastos sociais sobre o

Estado acabavam corroendo as bases de acumulação capitalista. Para “salvar” a

economia, era preciso livrá-la da política.

A solução prescrita consistia em que o Estado deveria conter os já enfraquecidos

sindicatos, promover a estabilidade monetária e, ainda, reduzir seu papel interventor

na economia (desregulamentação, privatização e abertura comercial), diminuir o

montante de seus gastos sociais e flexibilizar o mercado de trabalho.

De modo geral, podem-se encontrar semelhanças entre os diagnósticos (e propostas)

apresentados pela “nova direita” para explicar (e solucionar) a pretensa crise do

Estado dos países latino-americanos e dos países centrais, já que o argumento central

foi o de que o problema estava em seu tamanho excessivo.

Contudo, enquanto para os países centrais a questão se centrava em um Estado

demasiadamente permeado e acessível às reivindicações sindicais, para os países

periféricos, o problema apontado era que o Estado era “gastador”, em função do

endividamento estatal financiador do desenvolvimentismo14.

Assim, na América Latina, a difusão do neoliberalismo se manifestou como uma

crítica ao Estado desenvolvimentista e atuou em busca de seu desmonte. Assim, as

pretensões desenvolvimentistas passaram a ser fortemente criticadas e consideradas

“populismo econômico” (PEREIRA, 1991) 15, nos países latino-americanos, que

14 O processo de desenvolvimento econômico realizado na América Latina, nos anos cinqüenta e sessenta, foi feito via endividamento externo, e, nas palavras de Castro (1985), referindo-se ao Brasil, em marcha forçada, ou seja, os governos fizeram a escolha de se endividarem naquele momento para, depois, resolverem o que fazer com a dívida externa resultante. O Brasil entrou em crise no fim dos anos setenta, com o segundo choque do petróleo (1979), momento no qual sua economia sofreu drasticamente: por exemplo, houve um aumento da dívida externa em função do aumento das taxas de juros internacionais e uma drástica redução da entrada de recursos externos no país (decorrente da perda de confiança na administração da economia brasileira, sobretudo após a moratória mexicana, em 1982). 15 Este conceito tem sido abundantemente utilizado por economistas (ortodoxos) como uma maneira pejorativa de atacar o desenvolvimentismo. “Populismo econômico” vem sendo associado ao período desenvolvimentista e, ao ser analisado através de um olhar dos anos noventa - período em que o tema

32

passam a adotar o receituário neoliberal. Primeiramente, houve a experiência da

ditadura de Pinochet, o governo precursor das práticas neoliberais: forte desregulação,

privatização dos bens públicos, repressão sindical, desemprego massivo,

redistribuição de renda em favor dos ricos, etc. (ANDERSON, 1995, p. 19). E, em

seguida, todos os países da região passam a adotar o receituário liberalizante como

condicionante para a renegociação de suas dívidas16:

O fardo do serviço da dívida e os planos de ajuste estrutural impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial deram o quadro de um conjunto de medidas, impondo aos países devedores o pagamento dos juros da dívida e a reorientação de sua política econômica (CHESNAIS, 1996, p. 220).

Embora as idéias vindas da “nova direita” tenham influenciado muito os rumos da

política e das propostas de transformação do Estado, elas não foram as únicas a

sugerirem mudanças. A reconstrução do Estado foi influenciada por dois tipos de

ideologias: tanto por aquelas idéias liberalizantes da “nova direita” quanto pela

ideologia do gerencialismo (managerialism). (CLARKE e NEWMAN, 2004, p. 34)

O gerencialismo é um conjunto de teorias da administração que criticavam o Estado

do ponto de vista da organização da administração pública, afirmando a existência de

um esgotamento do modelo burocrático weberiano. Defendiam a idéia de que

reformas no Estado são necessárias, sobretudo aquelas cujas propostas estão voltadas

para uma transformação do modelo de gestão pública, de modo a assemelhar muitos

de seus traços às características próprias do setor privado. De modo geral, como

alternativa ao modelo já “obsoleto”, seu objetivo principal era introduzir uma

disciplina mais rigorosa no setor público, para que seus serviços fossem mais

eficientes, menos custosos e, assim, os gastos públicos se reduzissem. A proposta se

resumia na criação de condições propícias para uma gestão eficiente do Estado, e é

teorizada a partir dos pressupostos de funcionamento do setor privado17.

Seus proponentes tendem a endeusar os grandes executivos privados e a apresentar como vilões burocratas públicos, políticos e sindicatos. De acordo com esta perspectiva, o problema do Estado reduz-se a criar condições para que os administradores possam fazer aquilo que sabem

em voga era o do “ajuste” -, foi caracterizado da seguinte maneira: “um tipo de afrouxamento fiscal que se define pela prática política de dizer sim às demandas de todos os setores da sociedade à custa do setor público” (PEREIRA, 1991). 16 Ver essa discussão mais adiante. 17 São recomendados, por exemplo, o corte de custos e de pessoal, o desmonte da estrutura burocrática tradicional, etc.

33

melhor, isto é, gerir (ANDREWS e KOUZMIN, 1998 apud BORGES, 2000).

Percebe-se que a principal proposta do gerencialismo consiste em inserir a lógica da

empresa na própria estrutura estatal. Com isso, promove-se uma despolitização do

Estado. Se, por um lado, o welfare state reconhecia os conflitos e contradições sociais

e políticas existentes no mundo social, o Estado pressuposto pelo gerencialismo os

interpreta como "problemas a serem administrados". Conflitos e contradições sociais

passam a ser avaliados em termos de eficiência, efetividade e desempenho.

Segundo Clarke e Newman (2004, p. 159), a partir da análise do caso inglês18, isso

acaba despolitizando as questões sociais19 e moldando a política real e as escolhas

políticas de acordo com a lógica de imperativos gerencialistas. Ao não conseguir criar

formas institucionais de articulação satisfatória entre Estado e cidadãos, esse novo

tipo de Estado, mais cedo ou mais tarde, acaba criando suas póprias lacunas e

problemas de legitimação, já que não há como “reconciliar as contradições sociais e

conflitos da Inglaterra contemporânea dentro do cálculo gerencialista.” (idem).

Embora a partir dos anos oitenta tenham ocorrido mudanças institucionais e

organizacionais no seio do aparelho estatal no mundo todo, o diagnóstico da crise do

Estado e o discurso da necessidade de sua transformação se manifestaram de formas e

intensidades diferentes em cada país. De um modo geral, é possível perceber que, nos

países centrais, o diagnóstico centrava-se nas excessivas permeabilidade e

acessibilidade do Estado às reivindicações sindicais e, em última instância, à política.

Já para os países periféricos, o problema apontado era que o Estado era “gastador”,

“populista”, já que, dos anos trinta aos anos setenta, atuou como “Estado

desenvolvimentista” e expandiu o sistema de proteção social.

As conseqüências decorrentes das críticas ao Estado de Bem Estar assumiram formas

diferentes: enquanto na Europa os debates sobre essa questão resultaram na

introdução de reformas que não alteraram a essência dos sistemas de proteção social e

os direitos a eles associados, na América Latina, muito em função das pressões

exercidas pelos organismos internacionais sobre os países endividados, observaram-se

reformas muito mais radicais, sob a égide da pretensa “necessidade” da retração do 18 Não é, contudo, uma peculiaridade da Inglaterra ; as propostas de reforma de Estado segundo os pressupostos gerencialistas estão presentes em vários países. 19 Clarke e Newman (2004) questionam : “eficiência de quem? Efetividade para quem?”.

34

papel o Estado, e que resultaram, na maior parte dos casos, na privatização das

políticas sociais e na focalização das ações empreendidas pelo Estado tanto em termos

da população beneficiária quanto no que diz respeito ao leque de bens e serviços

providos.

2.2. Europa: o desmonte dos welfares states?

Pierson (1996) aponta que uma combinação de fatores – as transformações

econômicas, a guinada da política à direita e os altos custos associados à maturação

dos welfare states – estimulou a emergência de grandes debates, nos quais o tema da

redução do Estado entra em cena. Contudo, embora as transformações geradas pela

reestruturação produtiva, globalização e financeirização da economia tenham gerado

adversidades para a realidade dos welfares states – provocando questionamentos e

reformas -, elas não implicaram no desmonte dos welfares states no contexto europeu

(VIANNA, 1997). Vianna (1998) argumenta que embora tenha havido mudanças nos

mecanismos de funcionamento do aparelho estatal [não se alterou] a sua dimensão pública. Cidadãos, na Europa, continuam plenos cidadãos, a despeito de (alguns) mais pauperizados, da privatização dos serviços telefônicos, de maior seletividade no acesso dos hospitais públicos. (VIANNA, 1998, p. 12)

Esping-Andersen (1995) faz avaliação semelhante:

os sintomas de crise [do welfare state] tornaram-se cada vez mais claros (...). Contudo, e a despeito de percepções bastante difundidas, longe de se poder falar em mudanças significativas nos países centrais, o grau de redução dos welfare states foi modesto. Isso fica claro nas tendências do gasto social (...), que permaneceu essencialmente estável, embora haja uma quebra em relação ao passado, significando que a fase de crescimento, que havia durado décadas, foi interrompida. (ESPING-ANDERSEN, 1995, p. 84)

Como não há evidências convincentes de que qualquer desmonte tenha ocorrido em

países do Ocidente desenvolvido, Vianna (1997) defende que é preciso romper com a

idéia de que a crise do welfare state seja conseqüência necessária da globalização. Ela

adverte e enfatiza que, se assim for entendida, essa “suposta crise do welfare state se

torna irremediável, implicando, no limite, uma tendência ao seu desmonte.”

(VIANNA, 1997, p. 157) Assim como o nascimento e a expansão dos welfare states

podem ser bem explicados por fatores políticos, estes – e não argumentos econômicos

35

- poderiam também esclarecer as reformas dos welfare states ou ainda “as diferenças

entre as respostas dadas às novas condições econômicas”.

Vianna sugere que a fragilização sofrida pelos atores a partir dos quais foi construído

o welfare state – fragmentando suas organizações e destituindo de “poder as

instâncias de legitimação e efetivação das macropolíticas concertadas” (ibidem, p.

161) – certamente trouxe conseqüências nefastas para a política social (as reformas),

mas não apontaram, entretanto, “nem para a consumação do desmonte nem para a

destruição das bases de apoio do welfare state” (ibidem, p. 162).

Esping-Andersen (1995) ressalta, por sua vez, que a “maior parte dos países limitou

suas intervenções a ajustes marginais, enquanto alguns – principalmente no interior do

grupo de países anglo-saxões liberais – iniciaram programas mais radicais de

reformas que, a longo prazo, podem ter conseqüências profundas.” (ESPING-

ANDERSEN, op. cit., p. 84)

Houve diferentes respostas (reformas superficiais ou profundas) às transformações

econômicas e sociais por parte dos diferentes países. Dos países da Europa Ocidental,

o que mais seguiu a “rota neoliberal” foi o Reino Unido, adotando “deliberadamente

estratégias de desregulamentação orientadas para o mercado (...) [, que apresentou]

transformações radicais nos regimes (...) [uma vez que foi um] welfare state pioneiro

e com um forte compromisso com o pleno emprego.” (ESPING-ANDERSEN, op. cit.,

p. 90) A mudança foi percebida nas “políticas de liberalização [que se] associaram

(...) a um notável enfraquecimento das organizações coletivas, tais como sindicatos”,

cujo objetivo era “enfrentar o declínio econômico e o desemprego (...) com uma maior

flexibilidade do mercado de trabalho e dos salários, por meio da carga de encargos

sociais e de impostos, e da depreciação do salário mínimo” (ibidem, p. 91)

Além disso, a partir do marco proposto pelo gerencialismo (managerialism), foram

realizadas reformas predominantemente voltadas para a gestão do sistema de proteção

social, mas não para o seu desmantelamento. Como já observado, o gerencialismo

norteou as reformas do Estado com o objetivo de implantar no setor público os

imperativos de funcionamento do setor privado. Foram recomendadas, portanto,

medidas que visavam aumentar a eficiência da gestão pública e reduzir/cortar os

custos.

36

Dessa maneira, embora tenham sido implementadas reformas importantes no Reino

Unido - onde, na Europa, o neoliberalismo foi mais visível -, não foi observado um

desmantelamento do welfare state. Diante desse quadro europeu, Esping-Andersen

(1995) argumenta que as resistências às mudanças já eram bastante esperadas:

políticas estabelecidas há muito tempo se institucionalizam e criam grupos interessados na sua perpetuação. Assim, sistemas de seguridade social não se prestam facilmente a reformas radicais, e, quando estas se realizam, tendem a ser negociadas e consensuais. (ibidem, p. 104)

De fato, não é nada fácil remover ou destruir um sistema garantidor de direitos.

Entretanto, embora a maioria dos países da Europa Ocidental tenha realizado reformas

marginais sem desmantelar seus sistemas de proteção social, no que diz respeito aos

países periféricos, “os sinais de mudança do sistema são mais evidentes: de um lado, a

ativa privatização na Europa central e oriental e na América Latina; e de outro, a

construção de embrionários welfare states no Leste Asiático.” (ESPING-

ANDERSEN, op. cit., p. 84)

2.3. América Latina: críticas ao Estado desenvolvimentista e as propostas

para um novo tipo de Estado

Nos países latino-americanos, “a segunda metade dos anos 1980 correspondeu ao

aprofundamento da globalização, impondo o esgotamento da via da industrialização

por substituição de importações e a busca de novas formas de inserção no mercado

internacional. Ao mesmo tempo, observou-se a difusão da agenda neoliberal de ajuste,

preconizando o refluxo do Estado e a primazia do mercado.” (DINIZ, 2000)

Nesse novo contexto, a tese do desenvolvimento vinculado diretamente à ação ativa

do Estado começa a ser fortemente depreciada. Além dos argumentos contra a

proteção social, essas críticas incidiram sobre o “Estado desenvolvimentista”. Ao

mesmo tempo em que os argumentos pró-mercado ganham força, vão surgindo

propostas de um novo desenho para Estado, formuladas com o objetivo de reconstruí-

lo de acordo com as novas “exigências” do mundo globalizado. Essas recomendações

de reformas aos países periféricos foram amplamente difundidas nos anos noventa em

dois momentos: reformas de primeira e de segunda geração.

37

As reformas de primeira geração foram aquelas incluídas no chamado de “Consenso

de Washington” (WILLIAMSON, 1992), cujo objetivo consistiu na proposição de

conjunto de políticas “necessárias” para que a América Latina conseguisse sair da

crise por que passava (estagnação, inflação, dívida externa) e retomar a trajetória do

crescimento.

Williamson (1992; 1993) destaca dez propostas do receituário do “Consenso de

Washington”: (1) disciplina fiscal, ou seja, redução dos gastos públicos, na tentativa

de manter um superávit orçamentário; (2) prioridades de gasto público – reduzir o

papel do Estado na economia, redirecionando o gasto para as áreas desinteressantes

para o investimento privado – geralmente, bens públicos; (3) reforma tributária,

tornando a tributação menos progressiva; (4) liberalização financeira, cujo objetivo

máximo é deixar que a taxa de juros seja determinada pelo mercado; (5) manter a taxa

de câmbio estável; (6) liberalização comercial; (7) abolição das barreiras à entrada de

investimentos externos diretos no país; (8) privatização das empresas estatais; (9)

abolição das regras que impedem a entrada de novas firmas do setor e (10) o sistema

legal deve assegurar direitos de propriedade.

Esse conjunto de políticas dizia respeito, em suma, à tentativa de inserção das

economias nacionais no processo de internacionalização do capital e ao início do

processo de reforma do Estado, que procuravam reduzir o seu tamanho e reconstruir

sua estrutura administrativa. Assim, por um lado, o Estado cedeu espaço ao mercado,

foi, progressivamente, deixando de lado seu papel de “Estado empresário” e

assumindo uma forma mais “enxuta” e o papel de “Estado regulador”. Por outro,

começou a ser reformado administrativamente, de modo a estabelecer, no setor

público, uma “administração pública gerencial”, com o objetivo de alcançar a

chamada “boa governança”.

As medidas de redução do tamanho do Estado estão inseridas na lista das propostas do

“Consenso”, dentre as quais, destacam-se o ajuste fiscal e o processo de privatizações,

que foram realizados a partir do argumento de que serviriam para proporcionar a

“saúde financeira” do Estado.

Esse conjunto de reformas acabou sendo apresentado, pelos organismos

internacionais, como um condicionante para as renegociações da dívida latino-

americana e como o caminho para a adequação necessária no novo mundo em

38

transformação. Assim, esses países seguiram passo a passo a cartilha do “Consenso”,

sempre levando em conta a idéia de que, para que pudessem renegociar suas dívidas,

era indispensável gerar confiança nos órgãos financeiros internacionais, deixando de

lado, portanto, a prática do chamado “populismo econômico”.

No que diz respeito à reforma administrativa, ela também surge como a necessidade

de tornar “o setor público coerente com o capitalismo contemporâneo, que permita

aos governos corrigir as falhas do mercado sem incorrer em falhas20 maiores”

(PEREIRA, 1996, p. 7). A administração pública deveria deixar de ser burocrática e

se tornar gerencial – uma nova forma de administração que se assemelharia à

administração do setor privado -, voltada para a redução de custos e aumento da

eficiência.

Depois de mais de uma década desse conjunto de políticas voltadas para o

enxugamento do Estado e para a liberalização da economia terem sido implementadas

na América Latina, a “primeira geração” de reformas se mostrou incapaz de criar as

condições para o desenvolvimento da região; muito pelo contrário, verificou-se que

seus resultados econômicos e sociais na região foram, de modo geral, traumáticos:

desemprego, vulnerabilidade econômica, desintegração social, diminuição da

qualidade de vida, maior concentração da renda, etc.

A despeito do contexto desastroso resultante das “reformas”, é curioso perceber como

a “comunidade epistêmica” 21 (HAAS, 1992) internacional hegemônica22 - defensora

das idéias difundidas a partir do “consenso de Washington” – e os organismos

internacionais interpretam aqueles resultados. Ao invés de assumirem que os

resultados negativos foram frutos das políticas liberalizantes e reformadoras pró-

mercado implementadas ao longo dos anos noventa nos países da América Latina, 20 São as chamadas « falhas de governo », tais como o problema de rent-seeking. 21 Haas (1992) entende “comunidades epistêmicas” como redes de conhecimento baseadas em “expertos” que compartilham uma mesma episteme (visão de mundo). Tendo sua competência reconhecida e seu conhecimento valorizado e difundido socialmente, elas são capazes de moldar o debate público e, ainda, de influenciar as tomadas de decisão em questões variadas da política pública. Para Haas, os membros dessas comunidades “podem influenciar interesses do Estado seja identificando-os diretamente aos decisores, seja iluminando as dimensões relevantes de uma temática a partir das quais os decisores podem então deduzir seus interesses” (HAAS, 1992, p. 4) 22 Por exemplo, os autores cujos trabalhos estão na coletânea organizada por Williamson e Kuczynski:

“Depois do Consenso de Washington – Retomando o crescimento e a reforma na América Latina”, 2004.

39

afirmam que eles se explicam justamente pelo fato de as políticas do “consenso” não

terem sido aplicadas em sua completude. Ou seja, as reformas trariam sim o

desenvolvimento, o problema é que houve algumas lacunas em sua implementação.

Assim, começou-se a sugerir uma “segunda geração” de reformas, que teriam como

objetivo, por um lado, dar continuidade e aprofundar o que já havia sido feito – ou

seja, completar as “reformas de primeira geração” 23 - e, por outro, iniciar outro ciclo

reformista, a “segunda geração”, que se refere, por um lado, à reestruturação

(“desenvolvimento”) institucional, envolvendo o “fortalecimento” de instituições que

garantam as bases para o crescimento voltado para o mercado (WILLIAMSON, 2004,

p. 288) – ou seja, transformar o Estado de modo que ele se torne funcional ao

mercado (GUIMARÃES, 2002) - e, por outro, à ênfase na importância dos

investimentos em educação, incentivando as discussões sobre o papel do capital

humano e o capital social no processo de desenvolvimento econômico, tal como se

discutirá adiante.

Fundamentando-se nos teóricos do neoinstitucionalismo24, as propostas de reformas

institucionais sugeriam, resumidamente, que os Estados latino-americanos fossem,

progressivamente, deixando de lado seu papel ativo no desenvolvimento nacional e se

“enxugassem” de modo a assumir um papel funcional - de facilitador - ao

desempenho dos mercados.

Essa funcionalidade do Estado em relação ao mercado é o ponto normativo essencial

da teoria neoinstitucionalista, segundo a qual o Estado deve adequar suas atribuições

de modo a satisfazer as necessidades do mercado, tais como: reduzir custos de

transação, ocupar-se da existência de externalidades, definir direitos de propriedade,

23 Para ilustrar sua incompletude, vale destacar uma afirmação de Williamson (2004): “embora muita privatização tenha ocorrido, permanecem setores – mais notavelmente o bancário, com a existência continuada de muitos bancos estatais – em que o processo está bastante incompleto.” Embora haja problemas, o “remédio (...) não é interromper o processo [de privatizações], mas, antes, assegurar que ele seja cuidadosamente realizado, e que as empresas recentemente privatizadas estejam expostas à concorrência ou sujeitas a regulamentações adequadas”. (ibidem, p. 10) 24 Os teóricos do neoinstitucionalismo ressaltam a importância das “instituições ” para o funcionamento da economia, uma vez que existem imperfeições no mercado, o que exige o estabelecimento de regras que possibilitem, articulem e organizem as transações indiviuais realizadas no mercado. Por exemplo, NORTH (1990) e seu slogan que afirma que “as instituições importam”. Trata-se do institucionalismo de viés neoliberal; há outros e diversos neo-institucionalismos contemporâneos – por exemplo, os de vertente histórica e sociológica. Conferir: Hall e Taylor (1996).

40

coordenar os agentes econômicos, gerar informações relevantes e reduzir incertezas.

(CARVALHO, 2006, p. 203- 211)

É possível perceber esse novo papel do Estado através da análise das propostas de

reforma do Estado do Banco Mundial – sobretudo, os relatórios de 1997 e 2002. Num

“mundo em transformação” (BANCO MUNDIAL, 1997), o Estado precisa adaptar-

se, no sentido de aumentar sua eficiência: “Reconhece-se cada vez mais que um

Estado efetivo – e não um Estado mínimo – é essencial para o desenvolvimento

econômico e social, mais, porém, como um parceiro e facilitador do que como diretor.

Os Estados devem complementar os mercados, e não substituí-los” (idem, p. 18).

Ser efetivo significa que Estado não deve ser mais o promotor direto do

desenvolvimento, este modelo de Estado já seria anacrônico. Ele deve deixar essa

tarefa para os mercados e resumir a sua atuação, de modo a se tornar um catalisador,

facilitador e parceiro dos mercados em tal empreitada. Tem-se a idéia, portanto, de

que o Estado deve ser complementar aos mercados – não seu substituto -, voltando

sua ação para a implantação e adaptação de instituições para que tenham um melhor

desempenho.

O Estado deve deixar de lado seu papel intervencionista e de provedor de bem-estar,

para preocupar-se apenas com seu caráter funcional, voltando-se basicamente para a

promoção do “bom” funcionamento do mercado: “instituições são criadas para,

servem funcionalmente ao mercado” (GUIMARÃES, 2002, p. 14)

O relatório de 2002 vai também na mesma direção: “é necessário um Estado forte e

capaz para apoiar os mercados” (WORLD BANK, 2002, p. 5), e, para isso, afirma que

é necessário que se criem instituições efetivas e sugere o modo de garanti-lo.

Obviamente, essa redução do papel do Estado a um mero complemento dos mercados,

criador de enabling environments para o setor privado, também teve implicações

sobre o campo social, sobretudo no que diz respeito aos obstáculos criados à

consolidação e à ampliação do sistema de proteção social nos países latino-

americanos.

Se, de acordo com as recomendações de reformas, o Estado ainda conserva algum

papel (funcional) no âmbito econômico – complementar e estimular os mercados –,

41

no que diz respeito ao campo das políticas sociais, percebe-se também que lhe sobra

papel bastante residual.

Embora, nos países latino-americanos, não tenha sido observada a completude do

processo de instauração e de consolidação dos welfare states – tal como ocorrido nos

países europeus -, Laurell (2002) lembra que:

há entretanto uma série de elementos relacionados ao conteúdo e à amplitude de suas políticas sociais que permitem considerar a maioria dos Estados latino-americanos como Estados de bem-estar antes da aplicação das políticas neoliberais. Entre esses elementos, está o fato de que muitos deles reconhecem na sua legislação o conceito de direitos sociais, e escolheram o seguro ou a seguridade social públicos como forma institucional de garantir assistência médica; aposentadoria; auxílios à perda da renda por acidente, doença ou maternidade; e, em muitos casos, programas de habitação, de subvenções familiares e de lazer. (...) Por outro lado, na grande maioria dos países, o Estado é o principal responsável pela educação em todos os níveis (LAURELL, 2002, p. 160).

Assim, se para o “Estado de Bem Estar” a política social é entendida como

garantidora dos direitos de cidadania e, numa interpretação keynesiana, um estímulo

ao desempenho macroeconômico, a partir do início dessa era das reformas, tal política

começa a ser vista como fonte geradora de gastos públicos e, entende-se que ela deve

ser “enxugada” e se moldar a um novo formato: compensatória e focalizada do ponto

de vista do público-alvo (pobres), e residual no que diz respeito aos produtos/serviços

oferecidos.

Desde então, dá-se início a uma luta pela destruição daquilo que foi construído

enquanto proteção social e pela deslegitimação do processo da universalização de

direitos, seja pelas propostas de enxugamento do Estado em seu papel de garantidor

da proteção social, seja pela transformação do próprio entendimento do que é o social.

42

3. Transformações do mundo do trabalho e o surgimento da nova questão social

Até a metade dos anos setenta, o trabalho era amplamente considerado fonte de valor

e de riqueza social, dada a sua inquestionável centralidade e importância no processo

produtivo. A partir dos anos oitenta, contudo, frente às profundas transformações, já

discutidas, começam a surgir teses que proclamaram o “fim do trabalho” (RIFKIN,

1995) e o “adeus ao proletariado” (GORZ, 1982) e, ainda, questionamentos

enfatizando a desconstrução e transformação do trabalho como peça-chave da

organização social contemporânea (OFFE, 1989).

O argumento genérico sobre esse fim do trabalho foi (e ainda vem sendo) bastante

questionado por vários autores (ANTUNES, 1995, 1996 e 2003; SCHNAPPER, 1997;

CASTEL, 1998a), que sustentam, a partir de argumentos variados, que, por um lado,

seria um contra-senso a negação da importância do trabalho – tanto para a

organização social capitalista quanto para a própria vida das pessoas - e, por outro,

que a categoria trabalho deve continuar sendo objeto central da investigação

sociológica.

Antunes (1995) argumenta, por exemplo, que é impensável falar em “fim do trabalho”

quando se observa o contexto do mundo periférico, onde se encontram dois terços da

população humana que trabalha. Outro exemplo é Robert Castel que, em variados

trabalhos (CASTEL, 1998a, 2003), defende que, por mais que se fale hoje em “fim do

trabalho”, não se pode perder de vista o seu papel de “grande integrador” (BAREL

apud CASTEL, 2003).

Para Castel (2003), o fato de que o trabalho tenha perdido sua onipresença na

organização social não implica nem que ele tenha deixado de ser importante nem que

deva ser deixado de lado enquanto categoria de análise. A tese da liberação pelo não-

trabalho e da exaltação do tempo livre está muito longe de ser efetivada, já que aquele

que não tem trabalho padece, já que está desvinculado dos laços sociais.

Portanto, a categoria “trabalho” não deve sair do foco da análise sociológica, nem

muito menos deixar de ser um tema fundamental da pauta do dia, uma vez que “o

43

trabalho (...) é mais que o trabalho e, portanto, o não-trabalho é mais que o

desemprego, o que não é dizer pouco” (Ibidem, p. 496). Em suma, para Castel,

a renúncia a fazer do trabalho um objetivo estratégico fundamental constitui um duplo erro. Um erro de análise que desconhece (...) o lugar central que o trabalho continua a ocupar na vida das pessoas. Mas constitui também um erro prático e político, pois implica desconhecer a importância fundamental do mercado (...) e as ameaças que ele faz à coesão da sociedade. Em outras palavras, deixar de fazer do trabalho uma questão central é inclinar-se diante do mercado e deixar-lhe o campo livre. (CASTEL, 1998b , p. 158).

A questão que urge, portanto, é a de entender e procurar alternativas à problemática

do trabalho e não a de decretar o fim de sua centralidade. Contudo, reconhecer a

problemática do “trabalho” como questão sociológica fundamental não significa

desconsiderar que o mundo do trabalho sofreu profundas e drásticas transformações.

É evidente que, hoje, o mundo do trabalho não é mais o mesmo.

De fato, a partir dos anos setenta, como resultado das mudanças estruturais e das

transformações no papel do Estado, o mundo do trabalho entra em crise: assiste-se a

profundas transformações na classe trabalhadora, à precarização das condições de sua

existência, ao desemprego de massa e ao enfraquecimento dos sindicatos. Nesse

processo, o trabalho (em sua forma antiga) vai perdendo tanto sua onipresença

(problema estrutural) - enquanto elemento de integração social (MACHADO DA

SILVA, 2002; CASTEL, 2003) - quanto sua força política.

Antunes (2003) destaca algumas conseqüências das transformações estruturais que

afetaram a classe trabalhadora, alterando seu perfil: (i) diminuição do operariado

manual, fabril, concentrado - típico do fordismo; (ii) aumento acentuado das inúmeras

formas de subproletarização do trabalho parcial, temporário, sub-contratado,

terceirizado; (iii) expansão do "setor de serviços"; (iv) um processo de desemprego

estrutural em níveis explosivos que, ao lado do trabalho precarizado, atinge algo em

torno de um terço da força humana mundial que trabalha. Oliveira (2003) ressalta,

ainda, que há hoje uma forte presença da idéia de “ocupação” 25 no lugar da noção de

“emprego”. Ademais, há também o tema da informalidade, que embora tenha

aparecido com grande freqüência como o elemento-chave de inúmeras interpretações

25 Para exemplificá-la: “grupos de jovens nos cruzamentos vendendo qualquer coisa, entregando propaganda de novos apartamentos, lavando-sujando vidros de carros, ambulantes por todos os lugares”, dentre outros. (OLIVEIRA, 2003, p. 142)

44

sobre o impacto das mudanças na estrutura do mercado de trabalho e suas

conseqüências sociais (MACHADO DA SILVA e CHINELLI, 1997)26, tem sido

considerado como um conceito sem substância analítica e sem força prática

(MACHADO DA SILVA, 2002b).

Antunes (2003) ressalta, ainda, que “não [se] caminha no sentido da eliminação da

classe trabalhadora, e sim da sua precarização, intensificação e utilização de maneira

ainda mais diversificada” (ibidem, p. 191). É nesse sentido que o autor afirma que a

classe trabalhadora se tornou fragmentada, heterogênea e complexificada, mas, a

despeito dessas profundas transformações ocorridas no mundo do trabalho, não é

possível considerar nenhuma possibilidade de eliminação da “classe-que-vive-do-

trabalho”. Ou seja, ao “invés do adeus ao proletariado, temos [hoje] um amplo leque

diferenciado de grupamentos que compõem a ‘classe-que-vive-do-trabalho’”.

(ANTUNES, 1996, p. 282).

Diante deste contexto de transformações do mundo salarial, assiste-se também, do

ponto de vista político, a uma tendência ao declínio do sindicalismo e ao

enfraquecimento dos sindicatos, se comparados com sua atuação e força na “era

dourada”.

Em primeiro lugar, com a heterogeneização da classe trabalhadora, os sindicatos

começam a ter dificuldades em representá-la. É como se, diante das transformações

estruturais, o mundo da representação existente não conseguisse dar mais conta da

expressão política de seus atores; ou seja, as dificuldades enfrentadas pelos sindicatos

seriam a tradução, no mundo representativo, da nova era em que entra o capitalismo

(ROSANVALLON, 1998, p. 5).

Em segundo lugar, os problemas objetivos e subjetivos - por exemplo, o fator medo -

da precarização dos empregos e do aumento do desemprego tiveram por efeito

fragilizar e enfraquecer a combatividade dos trabalhadores, desencorajando-os do

sindicalismo e diminuindo sua propensão a se sindicalizar (BOLTANSKI, 1999, p.

356; BALAZS e PIALOUX, 1996).

26 Machado da Silva e Chinelli (1997) analisam o tema da informalidade a partir de dois grupos de interpretação presentes no debate sobre o tema: os que abordam seus efeitos de exclusão social e os que exaltam a formação de novos empreendedores como resultado benéfico da terceirização.

45

O medo da precarização e do desemprego foi analisado também por Dejours (2000),

mas em outra chave. Segundo Dejours, o medo serviria como fonte de estratégias

defensivas (de ordem psicológica) que têm efeitos sobre a esfera da moral e da

política. O autor mostra como a passividade coletiva e a atenuação da indignação

frente às condições de sofrimento no ambiente de trabalho emergem no novo contexto

como a saída encontrada pelos trabalhadores para manterem seus empregos e, ainda,

para simplesmente não enlouquecerem.

Desse modo, com o objetivo de continuarem inseridos, os trabalhadores se tornam

(inconscientemente) indiferentes em relação aos problemas sociais, e acabam

reforçando a perversidade do sistema. Assim, paradoxalmente, precarizam, em última

instância, não só o emprego, mas toda sua condição existencial, através da

banalização e desdramatização do mal e, ainda, da conseqüente diminuição das

reações de indignação e de mobilização coletiva que possam emergir contra a

injustiça do sistema (DEJOURS, 2000).

Assim, frente à precarização das condições de existência dos trabalhadores, ao

esgotamento das chances de promoção social - individual e coletiva – e ao

esvaziamento da esperança de mudança política, há um enfraquecimento da

organização dos trabalhadores, impedindo a “reprodução das antigas formas de visão

política que contribuíam largamente para unificar as [suas] reivindicações” (BALAZS

e PIALOUX, 1996, p. 4). Em outras palavras, há uma “crise da herança operária” que

expressa uma crise da militância, a desvalorização simbólica do operariado e a sua

desilusão política (ibidem).

Em terceiro lugar, a disseminação do ideário neoliberal também contribuiu para o

enfraquecimento do sindicalismo. Os ataques e repressões ao movimento sindical -

somados à tendência de retração do tamanho do Estado e às suas propostas de

flexibilização e de re-mercadorização dos trabalhadores - tiveram conseqüências

destrutivas para o mundo sindical.

Por fim, não se deve descartar também o efeito simbólico produzido pela queda do

muro de Berlim sobre o movimento sindical. A partir do desmoronamento do Leste

Europeu, começa a se propagar a idéia do "fim do socialismo” e do "fim do

marxismo", no interior do mundo do trabalho, gerando-se, assim, desilusão política no

seio da classe operária. Além disso, ainda como conseqüência do fim do chamado

46

"bloco socialista", os países capitalistas centrais passaram a defender um

afrouxamento dos direitos e das conquistas sociais dos trabalhadores, em função da

inexistência do "perigo socialista"; ter-se-ia, com isso, uma acomodação social-

democrática da esquerda e da classe trabalhadora (ANTUNES, 2003, op. cit.).

Como conseqüência desse conjunto de transformações tem-se, por um lado (político),

um enfraquecimento da crítica ao capitalismo, decorrente principalmente do

enfraquecimento das “defesas” do mundo do trabalho (BOLTANSKI, 1999), e,

consequentemente, um declínio dos meios formais de pressão sobre o Estado,

juntamente com a decomposição dos mecanismos tradicionais de representação

política dos trabalhadores27 (WACQUANT, 2001).

Por outro lado (sociológico), tem-se um enfraquecimento ou mesmo desconstrução da

condição salarial, que é resumido por Castel (1998b) em torno de três constatações

principais: (i) “processo de desestabilização dos estáveis”; (ii) instalação da

precariedade no mundo do trabalho; (iii) geração de excessos ou “supranumerários”.

A primeira refere-se à “situação dos trabalhadores que ocupavam uma posição sólida

na divisão clássica do trabalho (...) e que se encontram hoje expulsos dos circuitos

produtivos. (...) A segunda diz respeito à instalação da precariedade, ou seja, às

alternâncias de períodos de desemprego, de trabalho temporário, de ‘pequenos

trabalhos’” (ibidem, p. 152). A terceira refere-se a uma contínua produção de “inúteis

para o mundo”, ou seja, pessoas que, tal como os vagabundos da sociedade pré-

industrial, “não encontram seu lugar na sociedade” (idem).

Tem-se aqui, portanto, a emergência daquilo que veio se chamar a “nova questão

social” (ROSANVALLON, 1995), ou seja, um conjunto de efeitos sociais negativos

decorrentes da globalização e financeirização da economia, da reestruturação da

produção e, ainda, do enfraquecimento do mundo do trabalho, fatores estes que foram

intensificados - sobretudo, na maioria dos países latino-americanos - pela progressiva

adoção de políticas fortemente marcadas pelo predomínio do neoliberalismo.

27 Frente a esse enfraquecimento das formas tradicionais de ação política, Wacquant (2001) chama atenção para as formas alternativas de manifestação ("violência vinda de baixo"): "Na ausência de um mecanismo político apto a formular demandas coletivas em uma linguagem compreensível aos administradores do Estado, o que resta aos jovens urbanos senão tomar as ruas?" (WACQUANT, 2001, p. 34).

47

Contudo, paradoxalmente, essa “nova questão social” nem sempre é tratada como

“social”. Entender como a nova questão social vem sendo enunciada é fundamental. O

modo pelo qual as políticas voltadas para o tratamento desse novo problema têm sido

formuladas e justificadas também é motivo de questionamento. Porém, antes de lidar

com o tema do atual tratamento e enunciação da “questão social” propriamente dita, é

fundamental compreender minimamente como o capitalismo tem se justificado.

48

Capítulo II – NEOLIBERALISMO, JUSTIFICAÇÃO DO CAPITALISMO E AS NOVAS REGRAS DO JOGO

Para entender como o social vem sendo interpretado e enunciado, num momento em

que o capitalismo entra numa etapa nova, é importante discorrer, ainda que

brevemente, sobre a maneira como ele próprio – esse “novo” capitalismo - tem se

justificado. Para tanto, discute-se aqui rapidamente o discurso neoliberal – desde

quando se colocava enquanto “utopia” cujo alvo inimigo era a intervenção estatal até

o momento em que consegue chegar ao poder e, paulatinamente, se afirmar enquanto

“ideologia” para o capitalismo contemporâneo. Além disso, discute-se também, a

partir da interpretação de Boltanski (1999), como esse capitalismo vem sendo

justificado no mundo do trabalho. Por fim, destacam-se os debates e discursos

contemporâneos sobre “flexibilidade” e “empregabilidade”, que vêm se constituindo

como as novas “regras do jogo” para os trabalhadores.

1. Da utopia neoliberal ao neoliberalismo como ideologia.

1.1. A utopia neoliberal

Não se deve entender o neoliberalismo simplesmente como um retorno das idéias do

liberalismo econômico e político clássico. Embora se percebam traços de

continuidades – sobretudo no que diz respeito à crítica aos excessos do governo

(FOUCAULT, 2004a) e à defesa da liberdade individual -, é fundamental que se

considere o contexto em que cada um se engendrou e se desenvolveu. Assim,

enquanto o liberalismo clássico se voltava, de modo geral, à crítica aos esquemas de

dominação e aos excessos característicos do absolutismo, em nome de um sistema

preocupado com o respeito aos sujeitos de direito e com a liberdade de iniciativa dos

indivíduos, o chamado neoliberalismo é construído a partir do contexto de intervenção

estatal.

Rosanvallon (1992, p. 59) propõe o entendimento do neoliberalismo como uma

“crítica da crítica da economia de mercado”, ou seja, uma crítica ao Estado

49

interventor. Nesse sentido, tal como sintetizam Laclau e Mouffe (2004), o que o

neoliberalismo “põe em questão é o tipo de articulação que conduziu o liberalismo

democrático a justificar a intervenção do Estado para lutar contra as desigualdades, e

a instalação do Welfare State.” (LACLAU e MOUFFE, 2004, p. 216).

Na medida em que as idéias neoliberais nascem num contexto em que o capitalismo

havia sido “domesticado” pela atuação do Estado e se voltam contra ele, é possível

entendê-las enquanto “utopia”, tal como define Mannheim (1976). Ou seja, como um

tipo de “pensar” que busca a destruição e transformação de uma dada condição da

sociedade e que, por isso, ressalta os elementos da situação que tendem a negá-la.

(MANNHEIM, 1976, p. 67) Desta forma, enquanto “utopia”, o neoliberalismo nasce

voltado para criticar a intervenção estatal e propor um modelo alternativo para a

sociedade. O Caminho da Servidão (HAYEK, 1944), de Friedrich Hayek, marca sua

inauguração e é considerado o manifesto do neoliberalismo.

O argumento central de Hayek (1977) voltado para a crítica à intervenção estatal e às

políticas de bem-estar consiste em mostrar que a idéia de “justiça social” (ou “justiça

distributiva”) carece de sentido. Seu ponto de partida é a defesa da liberdade dos

indivíduos, vista como um valor fundamental que deve estar acima de qualquer outro

valor e, portanto, ser garantida e ampliada ao máximo - até o ponto em que não

prejudique a liberdade dos demais indivíduos.

Do ponto de vista político, a liberdade individual para Hayek é uma liberdade

negativa, ou seja, é entendida como a ausência de obstáculos ou males que atrapalhem

as ações humanas. Por outro lado, defende a liberdade econômica sustentada por

Adam Smith, cujo ponto de partida é idéia da “mão invisível” do mercado como

regulador social (SMITH, 1983). Assim, conclui que, ao agirem espontaneamente no

mercado, seguindo seus próprios interesses, os indivíduos acabam, sem perceber,

produzindo o melhor resultado possível para a sociedade como um todo. É como se o

mercado organizasse de tal modo a economia que nenhum resultado melhor do que

aquele obtido através da espontaneidade da livre atuação dos indivíduos fosse

possível. Assim, a ordem social desejada por Hayek é aquela que segue os

movimentos e mecanismos do mercado.

Desse modo, um Estado intervencionista ou planejador fere, segundo Hayek, a ordem

natural do mundo social (que é reduzido ao mercado) e submete a liberdade individual

50

a interesses que deveriam estar em segundo plano (o público). O Estado deveria ser

reduzido ao mínimo: por um lado, para garantir a liberdade dos indivíduos,

preocupando-se apenas em impedir que alguns indivíduos se imponham sobre outros;

e, por outro lado, para deixar que as questões econômicas sejam resolvidas através da

mão invisível do mercado.

Hayek defende a idéia de que as instituições do welfare state são essencialmente

irreconciliáveis com a ordem social fundamentada no valor da liberdade humana. O

argumento é defendido em O Caminho da Servidão como um alerta para os perigos

trazidos pela intervenção estatal, ou seja, a partir do que Hirschman (2001) chamou de

a tese conservadora do “risco”28. Resumindo,

a estrutura básica do argumento se baseava no seguinte raciocínio: i) as pessoas não conseguem entrar em acordo a não ser em algumas poucas tarefas comuns; ii) para ser democrático o governo tem de ser consensual; iii) o governo democrático só é possível portanto quando o governo confina suas atividades às poucas sobre as que as pessoas conseguem chegar a um acordo, e iv) daí que quando o Estado aspira empreender importantes funções adicionais, encontrará que apenas consegue fazê-lo por coerção, e tanto a liberdade quanto a democracia serão destruídas (...) Em outras palavras, [para Hayek], a propensão à ‘servidão’ de qualquer país é uma função direta (...) do tamanho do governo. (HIRSCHMAN, tradução livre, 2001, p. 129).

Para sustentar que a noção de “justiça social” é uma fórmula vazia, Hayek (1977)

argumenta:

o conceito carece de aplicação aos resultados de uma economia de mercado: não pode haver justiça distributiva onde ninguém distribui nada. A justiça apenas tem sentido como norma da conduta humana, e nenhuma norma concebível para a conduta dos indivíduos que se proporcionam mutuamente bens e serviços numa economia de mercado seria capaz de produzir uma redistribuição que pudesse ser qualificada sem absurdo de justa ou injusta. (HAYEK, 1977, p. 39)

Para o autor, avaliar algo como justo ou injusto é algo que apenas pode dizer respeito

às ações humanas; apenas os homens podem ser responsabilizados moralmente por

seus atos. O mercado “é o resultado de um processo impessoal e de uma acumulação 28 Albert Hirschman (2001), em seu livro Retóricas de la Intransigência, ressalta três tipos de argumentos ou teses centrais que estão sempre presentes nas grandes “ondas” do pensamento conservador, a saber: tese da perversidade, tese da futilidade e tese do risco. “Segundo a tese da perversidade toda ação deliberada para melhorar algum traço da ordem política, social ou econômico apenas serve para exacerbar a condição que se deseja remediar. A tese da futilidade sustenta que as tentativas de transformação social serão inválidas, que simplesmente não conseguem gerar efeitos. Finalmente, a tese do risco argumenta que o custo da mudança ou reforma proposta é muito alto, dado que coloca em perigo algum logro prévio e apreciado.” (HIRSCHMAN, tradução livre, 2001, p. 17-18)

51

de conseqüências não intencionais. Não há nenhum agente sozinho decidindo qual

deveria ser a parte de cada um. (...) não há no mercado alguém que possa ser acusado

por ter um comportamento injusto” (KLEY, tradução livre, 1994, p. 200). Ademais,

Hayek argumenta que como o funcionamento do mercado não pressupõe um

conhecimento do que a justiça social a priori abrange, ele é imparcial e a distribuição

que dele resulta seria isenta de moralidade, ou seja, não poderia ser considerada nem

justa nem injusta, mas apenas natural.

Assim, ao considerar a ordem espontânea do mercado e a distribuição dela decorrente

como naturais, ele afirma que são isentas de valor e, por conseguinte, não existem

falhas morais no sistema. É por isso que considerava que o debate da justiça social tal

como era posto – avaliação dos males sociais como resultantes da sociedade ou do

funcionamento do mercado - era fruto de um erro intelectual. Apenas os indivíduos

podem, para Hayek (1977), ser julgados moralmente e, por conseguinte, ser

responsabilizados. Se alguém está desempregado ou é miserável não pode ser visto

como culpa do sistema, mas sim de sua falta de destreza, esforço ou, ainda, sorte. A

responsabilidade é, portanto, individual, e não social.

Por outro lado, acrescenta o autor, tendo em vista que nem todos têm a mesma

opinião sobre o que deve ser feito para se alcançar à justiça social, e já que o mercado

é capaz de resolver as questões de distribuição e, ainda, dado que não é possível haver

um consenso sobre a questão distributiva, qualquer proposta de política redistributiva

tem um caráter autoritário e, dessa forma, nunca poderia ser legitimada nem aceita.

Nos anos sessenta, nos Estados Unidos, outros teóricos contribuíram para o

desenvolvimento das idéias neoliberais. Dentre eles, estava Milton Friedman - figura

central da Escola de Chicago. Seu trabalho buscava basicamente combater a política

do New Deal do presidente Franklin D. Roosevelt e suas continuidades; a intervenção

– seja por suas políticas keynesianas, seja por seus programas de seguridade social -

era alvo de crítica do autor.

Tal como Hayek, Friedman (FRIEDMAN, 1980; 1984) se considera um liberal. Mas

faz questão de sublinhar que é um liberal no sentido “original” do termo, ou seja,

aquele que enfatiza a liberdade do indivíduo como valor mais importante a ser

defendido e o fim último a ser perseguido. Assim, a proposta de Friedman consiste

num retorno ao liberalismo econômico e político e na negação do que ele chama de

52

“liberalismo moderno”, ou seja, um liberalismo “descaracterizado” pela presença

estatal, configurado nos Estados Unidos, a partir das políticas do New Deal:

Ao desenvolver-se em fins do século XVIII e princípios do século XIX, o movimento intelectual que tomou o nome de liberalismo enfatizava a liberdade como o objetivo último e o indivíduo como a entidade principal da sociedade. (...) A partir do fim do século XIX e, especialmente, depois de 1930, nos Estados Unidos, o termo liberalismo passou a ser associado a pontos de vista bem diferentes (...). As palavras-chave eram (...) bem-estar e igualdade, em vez de liberdade. O liberal do século XIX considerava a extensão da liberdade como o meio mais efetivo de promover o bem-estar e a igualdade; o liberal do século XX considera o bem-estar e a igualdade ou como pré-requisitos ou como alternativas para a liberdade. (FRIEDMAN, 1984, p. 14).

Em Capitalismo e Liberdade (1984), a tese central sugere que a questão da liberdade

política está diretamente vinculada ao modo como a economia se organiza. Assim,

Friedman defende que só o capitalismo competitivo, organizado através do livre

funcionamento do mercado, é capaz, por um lado, de promover a liberdade econômica

e, por outro, de alcançar a liberdade política dos indivíduos. Tema correlato a esse diz

respeito, em repúdio à intervenção estatal, “ao papel que o governo deve desempenhar

numa sociedade dedicada à liberdade e contando principalmente com o mercado para

organizar sua atividade econômica.” (FRIEDMAN, 1984, p. 13) Nessa discussão,

argumenta-se que é preciso restringir o papel do Estado/governo a objetivos limitados,

de modo que não prejudique ou cerceie – mas proteja - as liberdades dos indivíduos.

Friedman (1984) considera que o governo deve ser um meio através do qual os

indivíduos podem assumir suas responsabilidades, alcançar seus propósitos e

objetivos e, ainda, um instrumento que sirva para que eles protejam e garantam sua

liberdade. O “governo é necessário para preservar nossa liberdade (...); entretanto,

pelo fato de ser concentrado em mãos políticas, ele é também uma ameaça à

liberdade.” (ibidem, p. 12). Coloca-se, assim, a seguinte questão: “o que devemos

fazer para impedir que o governo, que criamos, se torne um Frankenstein e venha a

destruir justamente a liberdade para cuja proteção nós o estabelecemos?” (idem).

Deste modo, tendo em vista que, segundo o autor, a preservação da liberdade dos

homens deve ser o fim último de qualquer sociedade, ele propõe que o governo seja

limitado às suas funções específicas: “Sua principal função deve ser a de proteger

nossa liberdade contra os inimigos externos e contra nossos próprios compatriotas;

preservar a lei e a ordem; reforçar os contratos privados; promover mercados

53

competitivos.” (idem) E, ainda, “arbitrar as divergências em que nos envolvermos e

dar-nos meios para concordar sobre que regras iremos seguir” (FRIEDMAN, 1980, p.

21). Em suma, a presença do governo deveria se resumir ao estabelecimento das

“regras do jogo” e à arbitragem “para interpretar e por em vigor as regras

estabelecidas.” (FRIEDMAN, 1984, p. 23).

A expansão do mercado e retração do Estado é assim justificada: “O que o mercado

faz é reduzir sensivelmente o número de questões que devem ser decididas por meios

políticos – e, por isso, minimizar a extensão em que o governo tem que participar

diretamente do jogo.” (idem) Para Friedman (1984), apenas o capitalismo

competitivo, organizado pela lógica do livre mercado, e a existência de um governo

limitado que se ocupe somente das funções já ressaltadas são capazes de promover a

liberdade plena do indivíduo.

Em conseqüência deste tipo de raciocínio – no qual o governo é bastante limitado –, o

autor critica severamente os programas de bem-estar, cujo problema residia “no fato

de se querer, com meios ruins [intervenção estatal], alcançar objetivos bons [bem-

estar].” (FRIEDMAN, 1980, p. 104). Afirma que “a maioria dos (...) programas de

bem-estar jamais deveria ter sido lançada” (ibidem, p. 125). Assim, o tipo de política

social proposta deve, por um lado, operar através do mercado e, por outro, ser de

caráter residual - isto é, sua ação é destinada apenas àqueles indivíduos que

comprovam ser pobres.

Na verdade, Friedman (1984, p. 173) afirma que o “mais desejável” no que diz

respeito à solução dos males sociais seria a caridade privada, determinada pela livre

escolha ou vontade dos indivíduos. Mas, embora a entenda como a mais desejável, ele

lamenta que nem sempre ela é exeqüível, sobretudo em sociedades grandes. Nas

pequenas comunidades, a pressão pública pode ser suficiente para a existência da

caridade privada. Mas, em grandes sociedades, isto não ocorre e a “caridade privada é

insuficiente porque seus benefícios se estendem a pessoas não envolvidas (...)”

(FRIEDMAN, 1984, p. 173). O raciocínio de Friedman (1984) pode ser percebido no

seguinte trecho:

Fico angustiado com o espetáculo da pobreza, e sou beneficiado com o alívio de tal situação. Mas sou igualmente beneficiado, quer seja eu quer seja outra pessoa que contribua para tal alívio. Portanto, os benefícios da caridade de outras pessoas estendem-se a mim. Colocando a questão de outra forma, nós todos estamos dispostos a contribuir para minorar a

54

pobreza, desde que todos os outros também contribuam. Podemos não estar dispostos a contribuir com a mesma importância, se não tivermos certeza disso. (idem).

Assim, diante dessa insuficiência da ação da caridade privada, Friedman (1980; 1984)

percebe que a atuação (residual) do Estado é necessária. Desse modo, sua proposta

divide-se em dois tópicos:

em primeiro lugar, a reforma do atual sistema de bem-estar social mediante a substituição da mixórdia de programas existentes por um único, global, de suplementação em dinheiro da renda – um imposto de renda negativo vinculado ao imposto de renda positivo; em segundo, desenfatizar a Previdência Social enquanto se atendem aos atuais compromissos e, aos poucos, exigir do público que tome suas próprias providências para a aposentadoria. (ibidem, p. 126).

O autor ressalta ainda que sua proposta do “imposto de renda negativo (...) só seria

uma reforma satisfatória do atual sistema de bem-estar social se substituísse o grande

número de outros programas específicos” (FRIEDMAN, 1984, p. 128). As

justificativas que ele dá para o sucesso do “imposto de renda negativo” são que (i)

atacaria diretamente a pobreza, uma vez que a ajuda ao beneficiário seria na forma de

dinheiro; (ii) justamente por ser em forma de dinheiro, o imposto de renda negativo

atuaria de maneira a não prejudicar o funcionamento do mercado; e (iii)

provavelmente ele eliminaria a burocracia que administrava a maioria dos programas

sociais. No momento em que escrevia seu livro, Friedman considerava que “o

lançamento de um programa desses é (...) um sonho utópico”. (FRIEDMAN, 1980, p.

126) Hoje, como se verá adiante, frente às recomendações de “combate à pobreza”

dos organismos internacionais, percebe-se que a utopia de Friedman vem

paulatinamente se tornando realidade.

De modo geral, Friedman defende com firmeza que a questão da proteção social deve

ser retirada do rol de atribuições do Estado, fazendo com que se valorize a

responsabilidade individual e se reduzam os gastos do governo. Ao Estado caberia

apenas compensar os “pobres” com pequenas quantias que aliviassem sua penúria,

durante o período em que esses indivíduos não estejam em condições de garantir sua

própria existência. No lugar de promover uma “seguridade social”, propõe-se que o

Estado ajude com um mínimo apenas alguns indivíduos (mediante comprovação de

sua necessidade). Com isso tudo, percebe-se que Friedman sugere, de um lado, uma

individualização da política social e, de outro - para os que “podem” -, uma

privatização dos mecanismos de proteção social.

55

Outro teórico neoliberal é Robert Nozick (NOZICK, 1991), que dedica seu Anarquia,

Estado e Utopia, escrito em 1974, ao estudo sobre natureza do Estado, suas funções

legítimas e suas justificações, com o objetivo de reforçar argumento contrário à

intervenção estatal, sobretudo no que diz respeito à questão distributiva.

Ele afirma que apenas um “Estado mínimo” – que garanta a lei e a ordem - é

justificável: “O Estado mínimo é o mais extenso que pode se justificar. Qualquer

outro mais amplo viola os direitos da pessoa.” (ibidem, p. 170) Ou seja, as únicas

funções que o Estado deve ter referem-se à proteção da propriedade privada contra a

coerção, roubo, fraude e, ainda, à fiscalização do cumprimento dos contratos. Um

Estado que vá além do mínimo violará os direitos de os indivíduos não serem

forçados a fazerem certas coisas e, portanto, é injustificável. (ibidem, p. 9)

Nessa proposta, a questão distributiva também é considerada um excesso. E Nozick

(1991) argumenta que ela é destituída de sentido, uma vez que a única função do

Estado compatível com a liberdade dos indivíduos – e, portanto, “justificável” - é a da

proteção àquilo que lhes pertence.

Contra a chamada “justiça distributiva”, ele argumenta:

A expressão “justiça distributiva” não é neutra. (...) Não há distribuição central, nenhuma pessoa ou grupo que tenha o direito de controlar todos os recursos, decidindo em conjunto como devem ser repartidos. (...) Na sociedade livre, pessoas diferentes podem controlar recursos diferentes e novos títulos de propriedade surgem das trocas e ações voluntárias de pessoas. Não há essa de distribuir (...) O resultado total é produto de muitas decisões individuais que os diferentes indivíduos envolvidos têm o direito de tomar. (NOZICK, 1991, p. 170-171)

E, assim, sugere que a “visão correta” ou o único princípio de justiça29 que é “neutro”

é aquele previsto por sua “teoria da propriedade”, ou seja, “um princípio de justiça

que descreve (...) o que a justiça nos diz (exige) sobre propriedades.” (ibidem, p. 171).

29 É explícita, em Nozick (1991), a crítica a Uma Teoria da Justiça, escrito em 1971 por John Rawls (RAWLS, 1993). Em defesa de uma “justiça como equidade”, Rawls estabeleceu dois princípios básicos de justiça, que foram bem sintetizados na seguinte passagem de O Liberalismo Político (RAWLS, 2000): “a. Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido. b. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, em segundo, elas devem representar o maior benefício possível dos membros menos privilegiados da sociedade.” (ibidem, p. 47) Este segundo requisito é definido como o “princípio da diferença”, no qual se percebe uma ambiguidade: não está nada claro o que Rawls entende por os “menos privilegiados da sociedade”. A provocação de Perry Anderson (2002) vai nesse sentido: “Seria o princípio da diferença

56

Nesse sentido, para Nozick, só serão justas as propriedades de uma pessoa se forem

observados um dos três “princípios de justiça” previstos pela teoria da propriedade. A

saber: (i) princípio de justiça na aquisição inicial (apropriação de coisas anteriormente

não possuídas); (ii) princípio de justiça nas transferências de propriedade (de uma

pessoa a outra) e (iii) reparação da injustiça na propriedade (seguindo o que dizem os

dois primeiros princípios). Assim, se “as propriedades de cada pessoa são justas,

então o conjunto total (distribuição) das propriedades é justo.” (ibidem, p. 174) Caso

contrário, a distribuição será injusta. Percebe-se, portanto, um ataque frontal a

qualquer tipo de política redistributiva.

O mais importante a ser destacado no pensamento dos autores neoliberais indicados

aqui é a defesa da redução do Estado – conservando, entretanto, seu papel de

garantidor da propriedade privada e do cumprimento dos contratos -, em oposição à

intervenção estatal, e da idéia do “mercado” como o melhor organizador das relações

sociais e o único capaz de promover a plena liberdade do indivíduo.

1.2. O neoliberalismo como ideologia

Com a chegada do pensamento neo-conservador ao poder, com Margareth Thatcher,

na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, as idéias neoliberais ganham

espaço e, a partir então, vão sendo difundidas pelo mundo todo e dá-se início a uma

era de reformas voltadas para transformar o mundo social, econômico e político aos

moldes daqueles pressupostos teóricos.

É claro que em cada realidade nacional a implementação dessas idéias assumiu uma

forma diferente; mas o fato é que expressões de Margareth Thatcher como “there is no

such thing as community” ou “there is no alternative” ganharam força e

impulsionaram uma retomada generalizada da crença, descrita por Karl Polanyi em

1947, no ímpeto totalizante do mercado e em sua capacidade “auto-regulatória”. É o uma convocação para uma redistribuição de renda quase socialista (...) Ou seria ele (...) apenas uma defesa sensata da operação normal do capitalismo (...)? Para entender completamente a profundidade da indeterminação no âmago da construção de Rawls, basta notar que ela é aplaudida no extremo à esquerda por John Roemer, e no outro por Friedrich von Hayek à direita, cada um deles afirmando que sua própria mensagem coincide com a de Rawls.” (ANDERSON, 2002, p. 348)

57

retorno da vontade e da mobilização voltadas para a implementação e expansão

daquilo que ele havia chamado de “moinho satânico”30 (POLANYI, 2000)

Com isso - somado ao fim da guerra fria e ao enfraquecimento das utopias de

esquerda e da “crítica”31 (BOLTANSKI, 1999) -, o neoliberalismo vai se afirmando

enquanto “ideologia”, tal como conceituada por Mannheim (1976), ou seja, um tipo

de pensamento que serve como meio de legitimação para o (novo) status quo e que

contribui, assim, para a sua manutenção. Uma vez tornado ideologia, há uma

constante reafirmação de seus valores, pressupostos, enfim, de sua visão de mundo –

propagando-se a partir do mainstream acadêmico (norte-americano, sobretudo) e dos

organismos internacionais para o resto do mundo.

Assim, enquanto ideologia, o neoliberalismo se impõe como o caminho necessário e

como o projeto de reorganização social a ser seguido. Quanto a este último ponto,

Foucault (2004a) argumenta que a especificidade do neoliberalismo contemporâneo

refere-se à concepção sobre a arte de governar. Ao contrário do liberalismo clássico,

os neoliberais não apostam no laissez-faire, mas num tipo de intervenção cujo objeto

é a própria sociedade.

As idéias de mercado, competição, concorrência32 são trazidas para o centro da ação

governamental enquanto modelo a ser seguido e implementado. Assim, na verdade, o

neoliberalismo não é um simples um retorno da crença no livre funcionamento do

mercado, mas uma nova mobilização (inclusive do próprio Estado) cujo objetivo é

fazer com que a idéia de mercado se torne possível. Para tanto, a ação governamental

passa a intervir sobre a própria sociedade com a tarefa de tornar possível o

funcionamento dos mecanismos concorrenciais próprios do mercado.

30 Processo a partir do qual o mercado foi, paulatinamente, se separando das demais instituições sociais até se tornar autônomo - “auto-regulável” - e, ao mesmo tempo, foi dominando e incorporando o trabalho, a terra e o dinheiro à sua lógica, transformando-os em “mercadorias”. 31 Ver mais à frente. 32 Foucault (2004) vê a inserção da idéia de “concorrência” no conceito de “mercado” como algo característico do neoliberalismo contemporâneo. “Para os neoliberais, o essencial do mercado não está na troca, nessa espécie de situação primitiva e fictícia com que os economistas liberais do século XVIII se preocupavam. Está além. (...) [Para os neoliberais,] o essencial do mercado é a concorrência, ou seja, [o que importa] não é a equivalência, mas, ao contrário, a desigualdade.” (FOUCAULT, 2004, p. 122)

58

Nesse sentido, enfatiza Foucault (2004a), a intervenção governamental própria do

neoliberalismo “não é menos densa, menos freqüente, menos ativa, menos contínua

que num outro sistema.” (FOUCAULT, 2004a, p. 151) O que importa é perceber que

seus objetivos mudaram. Se, com o liberalismo clássico, pregava-se o laissez-faire e,

com o keynesianismo/welfare state, o foco se voltava para a correção dos efeitos

nefastos e destruidores do mercado e do capitalismo sobre a sociedade, agora, com o

neoliberalismo, o objetivo da ação governamental reside numa intervenção sobre a

própria sociedade, de modo a inserir nela os mecanismos competitivos e

concorrenciais inerentes aos fundamentos do mercado, para que, assim, ela possa dele

se aproximar. Percebe-se que essa “novidade” destacada por Foucault reforça o

argumento de que o Estado neoliberal é funcional ao mercado.

Deste modo, o que se procura com isso é a obtenção de uma sociedade submetida à

dinâmica concorrencial, uma generalização da forma “empresa” no interior do corpo e

do tecido social, tendo a concorrência como fundamento. “O homo economicus que se

quer reconstituir não é o homem da troca, não é o homem consumidor, mas sim o

homem empresarial” (ibidem, p. 152). Trata-se de inserir no tecido social a lógica da

diferenciação social, dividindo-o e multiplicando-o em indivíduos a partir do modelo

“empresa”, ou seja, enfatizando seu lado competitivo e empreendedor como novas

necessidades.

Tudo isso pode ser percebido a partir do contínuo esforço do neoliberalismo,

enquanto a nova ideologia, em moldar o mundo à imagem do “mercado”, em lutar,

por um lado, pela diminuição do tamanho do Estado (privatizações, corte dos gastos,

focalização de políticas, etc.) e transformação de seu papel - objetiva-se agora um

formato para o Estado que seja funcional ao mercado - e, por outro, em destruir

aquele mundo social edificado na “era dourada”, inserindo mecanismos

individualizantes e concorrenciais no corpo do tecido social.

59

2. Espírito do capitalismo e as novas regras do jogo

No âmbito específico do mundo do trabalho, a inserção da lógica empresarial,

concorrencial e competitiva é perceptível também pelo modo pelo qual o capitalismo

tem se justificado e pela difusão dos debates e discursos da “flexibilidade” e da

“empregabilidade” como a construção de novas regras do jogo para a realidade dos

trabalhadores.

2.1. O novo espírito do capitalismo.

Para entender a atual justificação do capitalismo, é importante acompanhar, além da

trajetória das idéias do neoliberalismo, a discussão específica de Boltanski e Chiapello

(1999) sobre a questão em Le Nouvel Esprit du Capitalisme. A proposta fundamental

do livro é a elaboração de um quadro teórico geral que possibilite compreender a

maneira pela qual se modificaram as ideologias associadas às atividades econômicas,

e, assim, entender as mudanças ideológicas que acompanharam as transformações do

capitalismo no último quartel do século XX.

Antes de desenvolver o quadro teórico, os autores explicitam um ponto fundamental:

o que entendem por capitalismo. Para Boltanski e Chiapello, o capitalismo tem uma

definição bastante sucinta. É utilizada uma fórmula mínima, decorrente das múltiplas

caracterizações já realizadas sobre o capitalismo, que enfatiza sua característica

essencial: a exigência de acumulação ilimitada do capital por meios formalmente

pacíficos. Ou seja, o capitalismo é definido a partir do contínuo movimento do capital

cujos objetivos consistem na obtenção de lucros e na geração de mais capital. Esse

processo confere ao capitalismo “uma dinâmica e uma força de transformação que

fascinaram todos seus observadores, mesmo os mais hostis.” (ibidem, p. 37)

Tal como Marx (2002), Boltanski e Chiapello consideram que, nesse movimento de

ampliação contínua do capital, os dois grupos de personagens principais são: de um

lado, os capitalistas (aqueles encarregados da acumulação e do crescimento do capital

e que tem como objetivo central a “maximização dos lucros”) e, de outro, os

trabalhadores assalariados: aqueles que não detêm capitais e em benefício do qual o

60

sistema não está orientado. Os assalariados tiram sua renda da venda do próprio

trabalho e são, teoricamente, livres para recusarem o trabalho nas condições propostas

pelos capitalistas (como também estes últimos são livres para não ofertarem empregos

às condições demandadas pelo trabalhador). Se, por um lado, é claro que esta relação

é desigual – já que os trabalhadores não podem ficar um período muito longo sem

trabalho -, Boltanski ressalta que existe sempre uma adesão ou engajamento ao

sistema por parte dos trabalhadores.

Contudo, “o capitalismo é (...) um sistema absurdo” (ibidem, p. 41), ele não faz

sentido para ninguém: nem para os trabalhadores nem para os capitalistas. Para os

assalariados, o sistema em si - através de sua simples definição (acumulação de

capital) - não faz sentido, já que eles não detêm a propriedade do resultado de seu

trabalho e não conseguem levar uma vida ativa fora da subordinação. Mas o

capitalismo tampouco tem sentido para os capitalistas. Estes estão encadeados num

processo sem fim e insaciável, totalmente abstrato e dissociado inclusive da satisfação

de suas necessidades de consumo. Assim, para Boltanski e Chiapello, não haveria

sentido no engajamento no processo capitalista para nenhum dos dois protagonistas.

Mas, ao mesmo tempo, a acumulação capitalista necessita a adesão ou engajamento

de um número muito grande de pessoas para poder se realizar. Os autores

argumentam que, nas práticas sociais concretas, o engajamento das pessoas acontece

e, portanto, precisa ser explicado. Boltanski e Chiapello (1999) explicam tal adesão a

partir da idéia de “espírito do capitalismo”: a ideologia que justifica o engajamento

das pessoas no capitalismo.

Embora partam de uma noção de “espírito do capitalismo” diferente da de Max

Weber33 (2004), há, no argumento, uma recuperação da idéia weberiana segundo a

qual as pessoas aderem ao capitalismo por estímulos morais, que são interiorizados e

justificados e que são externos à lógica capitalista, dado que os motivos dessa adesão

não podem ser encontrados nela.

33 Weber (2004) considera o “espírito do capitalismo” como a gênese de um complexo substantivo – o capitalismo – que, uma vez instalado, não teria mais necessidade do “espírito”. Outro ponto de divergência em relação a Weber é que Boltanski e Chiapello não têm como objetivo explicar a origem do espírito do capitalismo, mas sim compreender seus diferentes estados históricos. Assim, tentam desvincular a categoria “espírito do capitalismo” dos conteúdos substantivos e reconhecer que seu conteúdo pode variar em diferentes momentos da história dos modos de organização das empresas e dos processos de extração do lucro capitalista.

61

O “espírito do capitalismo” é definido, então, como um conjunto de crenças

associadas à ordem capitalista que contribuem para justificar, legitimar e sustentar os

modos de ação e os dispositivos que lhe são coerentes. Essas justificações são

expressas em termos de virtude ou de justiça e possibilitam a realização de práticas e,

mais geralmente, a adesão a um estilo de vida favorável à ordem capitalista. Em

suma, como o capitalismo é uma forma histórica ordenadora de práticas coletivas

desvinculada totalmente da esfera moral, e não se pode encontrar nele mesmo

nenhuma fonte explicativa para os motivos de engajamento dos atores sociais

importantes para sua manutenção e reprodução, ele se apóia em construções de outra

ordem (nas crenças), que não a da busca do lucro para se justificar e poder persistir.

Em cada momento histórico, o espírito de que carece o processo de acumulação está

impregnado de produções culturais que lhes são contemporâneas. Como, segundo os

autores, a ideologia vem “de fora” do capitalismo, a adesão dos atores sociais ao

capitalismo é, na verdade, uma adesão ao espírito, uma vez que o capitalismo não tem

sentido e, por isso, não é capaz de se justificar34.

Essa adesão ao espírito pode ser a cada momento, questionada e criticada pelos atores

sociais. Aqui entra em cena outro conceito fundamental do quadro analítico de

Boltanski e Chiapello: o de “crítica”. É partir da idéia de crítica que são teorizadas as

mudanças do espírito, as transformações do capitalismo e, ainda, a legitimação do

espírito num determinado momento.

É a partir desse quadro geral - cujos componentes centrais são as definições de

“capitalismo”, “espírito do capitalismo” e “crítica” -, que a história de capitalismo é

teorizada. São destacados três estados históricos35 (BOLTANSKI, 1999, p. 54) do

34 Para explicar como as justificações são construídas, Boltanski lança mão de seu arcabouço teórico desenvolvido em De La Justification (1991), obra na qual ele constrói a noção de cités (“cidades”). As “cidades” são modelos teóricos que expressam os variados tipos de convenções gerais orientadas para um bem comum. Nas situações concretas de disputa, os atores recorrem a esses modelos universais para construírem seus argumentos e justificações. As cidades são utilizadas em Le Nouvel Esprit du Capitalisme como pontos de apoio normativos para a construção das justificações. Seis lógicas de justificação (seis cidades) são identificadas por Boltanski (1999, p. 63) na sociedade contemporânea. São elas: cidade inspirada, doméstica, do renome, cívica, mercantil, industrial. Em cada momento do capitalismo, o espírito do capitalismo evoca justificações diferentes que pertencem a cidades diversas.

35 Cada um desses espíritos, quando fazem referência ao bem comum, evoca justificações que se baseiam nos modelos das diversas “cidades” (cités). O primeiro espírito retirava suas justificações das cidades doméstica e mercantil. Já o segundo, das cidades industrial e cívica. O “novo espírito do capitalismo”, por sua vez, para formular suas justificações, se apóia num tipo de cidade que vem se formando a partir dos anos 90, que foi chamada de “cidade por projetos”.

62

espírito do capitalismo. O primeiro espírito do capitalismo do século XIX, que era

centrado na figura do empreendedor burguês. A segunda caracterização do espírito

tem seu desenvolvimento pleno entre os anos trinta e os anos sessenta, sua figura

central é a organização (e não mais o empreendedor individual) e teve seu

desenvolvimento centrado na produção em massa e marcado pela confiança no

progresso. E, a partir dos anos oitenta, começam ser percebidas grandes

transformações no modo de justificação do capitalismo e a se formar uma nova

configuração ideológica portadora de justificações para o capitalismo, ou seja, um

“novo espírito do capitalismo”.

Os autores utilizam a literatura de management (sobre gestão) voltada para os

executivos (cadres) como fonte de normatividade para esse novo espírito. Essa

literatura tem como objetivo oferecer aos executivos as informações sobre as últimas

inovações em termos de gestão de empresas e de direção. E ela é tomada pelos autores

como principal lugar de inscrição e manifestação do novo espírito do capitalismo36.

Como essa literatura não pode ser justificada apenas a partir da orientação de

maximização do lucro, não obteria a adesão necessária se assim o fosse, ela deve

também justificar moralmente a maneira como esse lucro é obtido, de modo que o

engajamento dos trabalhadores no processo capitalista seja mais fácil e, por outro

lado, para que sejam construídos “argumentos para resistir às críticas [direcionadas ao

capitalismo] que não deixam de emergir”37. (ibidem, p. 95).

Para entender melhor o “novo espírito” do capitalismo que estaria surgindo, os

autores lançam mão da análise de textos voltados aos gestores, produzidos nos anos

noventa, que propõem - para enfrentar o jogo capitalista no novo contexto

mundializado - um conjunto de inovações gerenciais articuladas em torno de algumas

idéias-chave: empresas “magras” (lean production), trabalhando em rede e o trabalho

organizado por projetos.

36 Boltanski e Chiapello (1999) ressaltam que poderiam ter escolhido outro lugar de manifestação dessa “ideologia dominante” (ibidem, p. 94) – tal como discursos políticos e sindicais, textos jornalísticos e outros -, mas escolheram a literatura de management em função de seu acesso mais direto às representações desse novo espírito. 37 Parte-se da idéia de que as crenças associadas ao capitalismo estão sendo submetidas constantemente a “provas” cotidianas. Se essas crenças são derrubadas, a legitimidade do capitalismo entraria em crise, sendo necessárias novas formas de justificação.

63

Eles fazem uma comparação dessa literatura com a vigente nos anos sessenta38; e tem-

se, de um lado - pela literatura dos anos sessenta -, um ambiente de “trabalho

protegido”, da “estabilidade”, do “plano de carreira”, e, de outro – a partir da

literatura dos anos noventa -, percebe-se uma excessiva atenção aos temas da

“adaptação”, da “mudança” e da “concorrência”, fazendo da “flexibilidade”,

“criatividade” e “reatividade” as novas palavras de ordem da atualidade.

Eles notam que a grande dimensão sedutora desse novo contexto é o alcance da

“verdadeira autonomia”, fundada sobre um conhecimento de si mesmo, uma liberdade

e um desenvolvimento pessoal. A hipótese de Boltanski (1999, p. 143) é a de que, a

partir dessa nova gramática, vai emergindo um novo “sentido de justiça”, que pode

ser teorizado em termos de “cidade” (cité), segundo a matriz teórica de De La

Justification (BOLTANSKI, 1991). Essa nova “cidade” foi chamada de “cidade por

projetos”39 tendo como “referência o mundo flexível constituído pelos múltiplos

projetos levados pelas pessoas autônomas”. De fato, a novidade do mundo do trabalho

de hoje é que, cada vez mais, as pessoas tendem a não fazer mais carreira profissional,

mas passam de um projeto a outro. A cada projeto conquistado, maiores são as

possibilidades de acesso a novos projetos no futuro e, ainda, de aprendizado e de

enriquecimento das competências e habilidades pessoais (que, por sua vez, são

fundamentais para outros projetos que virão).

A utilização dessa nova gramática, que ressalta as novas promessas do capitalismo (de

realização pessoal, liberdade, excitação, mobilidade, “conectividade social”) e que

fundamenta os dispositivos atuais de justificação do capitalismo, passa a ser cada vez

mais utilizada no cotidiano do mundo do trabalho, incluindo empregadores e

trabalhadores (empregados ou não). Cada um deles passa a mobilizar seus

argumentos/dispositivos no seu dia-a-dia.

38 E percebem que a literatura de management dos anos sessenta acompanhou a passagem da burguesia patrimonial (centrada na empresa pessoal) à burguesia de dirigentes (assalariados, diplomados, e integrados às grandes administrações públicas ou privadas) e, nesse sentido, enfatizou a meritocracia e a valorização do progresso social baseado na empresa e da proteção no trabalho (associada ao estatuto, à hierarquia e burocracia).

39 A formação e o desenvolvimento dessa nova “cidade” por projetos serve como ponto de apoio normativo para o “novo espírito do capitalismo”, que passa a justificar o capitalismo a partir dos temas valorizados no novo contexto: mudança, adaptação, risco, mobilidade, flexibilidade e concorrência.

64

Por exemplo, essa nova gramática pode ser facilmente identificada na declaração do

executivo James Meadows (vice-presidente do Departamento de Recursos Humanos

da AT&T) em entrevista ao Nem York Times, quando, em 1996, dava início do

programa de demissão de 40 mil trabalhadores: “as pessoas devem ver a si mesmas

como trabalhadores autônomos, como vendedores que vêm para esta companhia

vender suas habilidades.” E continua: “Na AT&T temos que promover toda uma

concepção de que a força de trabalho é temporária. Em vez de empregos, as pessoas

têm cada vez mais projetos ou campos de trabalho.” (TILLY e TILLY apud SORJ,

2000).

Consequentemente, o trabalho na empresa vai se transferindo “do emprego

assalariado [e protegido] típico para outras formas de contratos de prestação de

serviços que, no limite, tenderiam a transações individuais.” (SORJ, ibidem, p. 32).

E, a partir dessa nova gramática descrita por Boltanski, é possível perceber como ela

passa a servir como base para a construção de argumentos utilizados no cotidiano dos

atores sociais, sobretudo no que diz respeito ao tema do desemprego. Esta realidade

social passa a ser reconstruída a partir da nova gramática, formando, aos olhos dos

atores, novas percepções para a questão.

Tanto para os empresários/capitalistas quanto para os trabalhadores, os “novos

tempos” exigem que estes últimos se adaptem, invistam em si mesmos, sejam

autônomos, dinâmicos, criativos e “livres”. Ou seja, por um lado, eles constituem os

novos self made men que se realizam profissionalmente pelas habilidades que

possuem e pelo número de projetos que conseguem acumular e, ainda, por estarem

“bem” relacionados e conectados nas redes. Mas, por outro, se eles não conseguirem

ou não quiserem nada daquilo, sua situação de desemprego já estará explicada...

Percebe-se, assim, que, embora em outros termos e a partir de uma matriz teórica

diferente, a discussão de Boltanski (1999) se aproxima e até mesmo reforça aquele

argumento de Foucault (2004a) acerca do projeto neoliberal cujo objetivo é o de

inserir continuamente a lógica concorrencial do mercado em todas as esferas do tecido

social. Nessa nova dinâmica, o indivíduo precisa se afirmar enquanto homem-empresa

e, nesse sentido, é obrigado, em nome de sua sobrevivência e permanência no “jogo”,

a fortalecer constantemente sua “competitividade” e sua condição de “empreendedor”.

65

Diante dessa forma atual de justificação do capitalismo, Boltanski e Chiapello (1999)

se preocupam hoje com o enfraquecimento da crítica contemporânea, “que nunca

pareceu tão desarmada, no último século, quanto nos últimos quinze anos, seja porque

ela manifesta apenas uma indignação sem acompanhar proposições alternativas, seja

porque, mais freqüentemente, ela tem renunciado [a exercer a prática da] denúncia

[frente à realidade contemporânea]” (ibidem, tradução livre, p. 17). No fim das

contas, admite-se, assim, tacitamente, uma postura fatalista, ou seja, a dificuldade em

se denunciar a atual justificação do capitalismo. Como, no esquema analítico de

Boltanski e Chiapello, é a crítica ao “espírito do capitalismo” aquela capaz de fazer

com que o sistema realmente se transforme, é natural que eles se preocupem com a

atual apatia e passividade da crítica - sobretudo se comparada com aquela dos anos

sessenta -, que acabam por naturalizar o mundo social e, assim, neutralizar qualquer

anseio por mudanças e transformações do sistema.

Na próxima seção, serão discutidos os debates contemporâneos sobre

empregabilidade e flexibilidade. A hipótese que aqui se levanta diz respeito à

possibilidade de identificação de uma linha de raciocínio comum entre os debates

anteriores e as temáticas sobre a justificação do capitalismo –a partir tanto da

primazia do mercado como modelo para a ordem social quanto da nova lógica de

justificação do funcionamento social inscrita na “cidade por projetos”, descrita por

Boltanski e Chiapello (1999).

2.2. As novas “regras do jogo”: flexibilidade e empregabilidade

Após uma breve alusão às lógicas de interpretação de mundo que vem justificando o

capitalismo atual, é possível apontar a flexibilidade e a empregabilidade como as

novas “regras do jogo” desse novo capitalismo. Mais especificamente, pode-se

relacionar a forma como o debate contemporâneo sobre questão do desemprego vem

sendo estruturado (recorrendo às temáticas da empregabilidade e a da flexibilidade)

com o modo pelo qual o capitalismo se justifica tal como exposto anteriormente.

Numa chave bastante geral, percebe-se que a flexibilidade aparece como uma

característica fundamental do ambiente de trabalho no novo capitalismo. É vista como

66

a liberdade40 que o indivíduo tem para moldar e guiar sua vida. Ele não estaria mais

preso ou limitado às amarras impostas pela rigidez característica do momento

anterior. No novo contexto flexível, no qual o indivíduo deve ser livre e solto, ele é

obrigado a ser criativo, um homem de intuição, de visão, de contatos, de capacidade

de se reinventar a toda hora, sempre em movimento, para que possa se adaptar ao

novo, ao momentâneo, ao instável, enfim, aos projetos e trabalhos de curto prazo que

aparecem e se lhe impõem como cotidiano.

Assim, a flexibilidade seria uma forte característica desse novo ambiente de liberdade

aparente, o qual esconde, em última instância, novos tipos de imposições, já que

obriga o indivíduo a se moldar e se adaptar permanentemente, de acordo com as

novas situações que precisa enfrentar, num universo profissional muito movimentado

e incerto. A empregabilidade apareceria como o meio pelo qual o indivíduo vai

conseguir tudo isso; ela acaba sendo a capacidade que o indivíduo deve ter para que

possa ser requisitado para os trabalhos e projetos de curto prazo.

Por outro lado, num sentido mais específico, os temas da flexibilidade e da

empregabilidade são mobilizados também nas discussões sobre o problema do

desemprego.

Segundo Cardoso (2003), o desemprego como mazela decorrente da reestruturação

tem sido visto, pelo mainstream ortodoxo, como um mal já esperado.

Primeiro, porque os sistemas nacionais de relações de trabalho estariam caducos, pejados de legislação rígida que não permitiria ao capital a mobilidade necessária para fazer frente ao aumento da competitividade global. Em segundo lugar, por culpa, teimosia ou irracionalidade dos trabalhadores, que se recusam à melhoria de sua ‘empregabilidade’ (CARDOSO, 2003, p. 88).

Assim, para que o problema do desemprego possa ser remediado, emergem duas

“soluções”: é preciso, por um lado, que o mercado de trabalho seja “flexibilizado” e,

de outro, que os trabalhadores invistam em sua “empregabilidade”.

40 É interessante perceber como Sennet (1999) mostra que, embora a flexibilidade apareça como liberdade, ela acaba gerando impactos profundos na esfera moral da vida dos indivíduos. Isto porque o novo ambiente de trabalho moderno (cuja ênfase recai sobre projetos de curto prazo e na flexibilidade), por um lado, dificulta que as pessoas desenvolvam uma narrativa coerente para suas vidas e, por outro, impede a formação do caráter (uma vez que o desenvolvimento do caráter depende de virtudes estáveis - como lealdade, confiança, comprometimento e ajuda mútua – que estão desaparecendo no novo capitalismo).

67

A atual ênfase na desregulação do mundo do trabalho emerge a partir da defesa

hegemônica da desregulação dos outros mercados. Assim, a volta do diagnóstico

neoclássico41 sobre o trabalho é clara. Para que o “mercado de trabalho” - o qual é

visto como um dos mais imperfeitos - se livrasse de suas “imperfeições”42, deve-se

recorrer à receita flexibilizadora. Esta propõe que se desregulamente o mercado de

trabalho de modo que o trabalho seja mercantilizado43 novamente e se aproxime com

o ideal de mercado que tanto se busca.

Em suma, o conceito de “flexibilidade” pressupõe que há, na desregulamentação, o

caminho para a eliminação das “falhas de mercado” presentes no mercado de

trabalho, o que levaria ao equilíbrio deste “mercado” e, assim, a um caminho para a

solução do problema do desemprego.

O argumento utilizado é que, nesse novo ambiente mais flexível, os capitais teriam

maior liberdade para agir, estariam livres das amarras dos direitos, podendo investir

mais e, portanto, gerar mais empregos. Em realidade, a flexibilidade significa que se

permite ao empresário utilizar a mão-de-obra necessária ao menor custo possível (já

que os encargos, que antes recaíam sobre os empresários, devem agora se voltar sobre

os trabalhadores...).

Do outro lado da moeda (CARDOSO, 2003), aparece a idéia de “empregabilidade”.

Embora este conceito não seja novo, atualmente vem ganhando centralidade no debate

contemporâneo e assumindo um significado distinto do original.

Gazier (1990) faz uma análise - uma “radiografia” - desse conceito, mostrando que a

evolução de seus significados reflete transformações das concepções de mundo que a

ele estão associadas. Na França dos anos setenta, por exemplo, o conceito de

“empregabilidade” significava a “esperança objetiva ou a probabilidade (...) que uma

pessoa pode ter na busca de um emprego em encontrar um [emprego]” (ibidem, p. 41 Dentre as políticas voltadas para o mercado de trabalho implementadas pelos governos latino-americanos, como parte das medidas de ajuste das economias, tendem a predominar as políticas de corte neoliberal que seguem esse diagnóstico neoclássico sobre a desregulação do mercado de trabalho. 42 As “imperfeições” do mercado de trabalho ressaltadas pela teoria neoclássica são justamente aquelas características que, como nos mostra Castel (2003), fizeram do estatuto do trabalho uma fonte de proteção : existência de instituições, conflitos coletivos e regulações coletivas de direitos do trabalho e da proteção social. 43 Aqui “mercantilização” assume exatamente o sentido oposto do de “desmercantilização” ressaltado por Esping-Andersen (1990), que via na introdução dos direitos sociais (inclusive os vinculados ao trabalho) modernos a implicação de um afrouxamento do status de mercadoria do indivíduo-trabalhador.

68

576). A ênfase recaía sobre as condições gerais da economia e da sociedade. Estava

presente, portanto, uma inteligibilidade que associava à empregabilidade uma

causalidade econômica conjuntural (ou seja, tudo dependia do crescimento do

emprego e, logo, da economia). A responsabilidade de gerar um contexto favorável -

de alta “empregabilidade” - dizia respeito ao Estado e ele deveria ser alcançado pela

ação dos economistas no seio do aparelho estatal. É claro que, naquele contexto, em

que havia tendência ao pleno emprego, esse conceito acabava não sendo muito

importante e tampouco muito utilizado, dado que para uma pessoa ser “empregável”

era necessário apenas uma mínima constatação, por meio de um atestado

qualificatório de que pudesse ocupar determinado emprego.

Tudo muda de configuração a partir dos anos oitenta e, sobretudo, dos anos noventa,

quando o problema do desemprego (estrutural, inclusive) se agrava. O conceito de

“empregabilidade” vai perdendo seu significado original e ganha, paulatinamente,

novos contornos.

Deixando de lado as especificidades da evolução desse conceito na França, em linhas

gerais, percebe-se que o diagnóstico passa a ser progressivamente individualizado. O

foco passa a ser a “empregabilidade” das pessoas – e não uma empregabilidade

gerada pelo contexto - e a nova exigência passa a ser a mobilização dos

desempregados, buscando melhorar e dinamizar seus atributos pessoais.

Gazier (1990, p. 579) alerta que essa perspectiva individualizada encontra seus limites

justamente naquilo que a funda: o fracasso macroeconômico induziu a mobilização da

perspectiva micro, mas acabou perdendo de vista as perspectivas de emprego que a

estrutura econômica é capaz de gerar.

Assim, com a análise da empregabilidade voltada para as características individuais

de cada um, o olhar em direção ao problema do desemprego deixa de levar em conta a

estrutura social e econômica e passa a jogar a responsabilidade de “ter um emprego”

sobre o indivíduo. Ou seja, a responsabilidade pela inserção profissional dos

indivíduos se transfere do estrutural – ou dos formuladores de políticas de geração de

emprego - para o individual – do trabalhador, que se vê obrigado a entrar num

processo permanente de busca pelo aumento de sua empregabilidade.

Esse atual significado do conceito de “empregabilidade” vem sendo considerado

como uma reedição dos pressupostos fundamentais da teoria do capital humano

69

(GENTILI, 2001; FRIGOTTO, 2001). Esta teoria começou a ganhar expressão e a ser

sistematizada pela Economia a partir dos anos sessenta, embora muitas de suas idéias

já tivessem sido citadas anteriormente de maneira esporádica. Tentou-se integrar o

conceito de “capital humano” à teoria econômica neoclássica, que vinha sendo

criticada pela sua incapacidade de explicar totalmente as causas do crescimento

econômico e questões relativas à distribuição de renda.

Foucault (2004a) sugere que a teoria do capital humano44 seja entendida a partir de

dois processos: por um lado, um avanço da análise econômica num domínio que era

até então inexplorado e, por outro lado, a partir desse avanço, uma tentativa de

reinterpretação, em termos econômicos, de todo um domínio (o da educação, por

exemplo) que até então podia ser considerado como não sendo econômico.

(FOUCAULT, 2004a, p. 225)

Dentre os teóricos principais da teoria do capital humano estão Theodore Schultz

(1973), Gary Becker (1993), Jacob Mincer (1974), dentre outros. Eles sugerem que a

teoria econômica neoclássica não vinha conseguindo explicar inteiramente o

desempenho das economias observado na “era de ouro” através de explicações

tradicionais, baseadas na questão da acumulação de capital físico e no avanço

tecnológico. Os autores procuraram preencher tal “lacuna” teórica tanto a nível macro

quanto a nível microeconômico. A idéia central da teoria do capital humano é tratar o

trabalho dos indivíduos como uma forma de capital e, por conseguinte, entender sua

escolaridade como resultado de uma decisão deliberada de “investimento” (aumento

de seu capital humano).

Foucault (2004a) sugere que embora seu objetivo fosse inserir a temática do trabalho

na discussão econômica, os teóricos do capital humano não prestaram – ou não

quiseram prestar - atenção (ou não quiseram mesmo discutir) naquilo que Marx havia

dito em relação ao trabalho, em O Capital (MARX, 2002). Em seus escritos, os

teóricos do capital humano não entendem o “salário” como aquilo que é obtido pelo

trabalhador mediante a venda de sua força de trabalho45 (ou seja, como o “preço”

44 Foucault (2004) entende a teoria do capital humano como elemento próprio da concepção neoliberal americana e se refere a esses teóricos como os “neoliberais americanos”.

45 Como se sabe, Marx (2002) entendia que o trabalhador vende sua força de trabalho, durante certo tempo, em troca do salário. Mas o valor desse salário é inferior ao valor do trabalho criado pelo trabalhador, em função das relações de exploração existentes no sistema capitalista: uma parte do valor

70

desta última), mas sim como “renda”, isto é, como uma “remuneração” do trabalho.

Ou seja, como uma remuneração de um “capital”, como um outro qualquer. É desse

modo que se constrói o entendimento do “trabalho” como “capital humano”.

Nota-se, portanto, que os teóricos do capital humano naturalizam o sistema capitalista

e não entendem a economia como um sistema social, mas como:

a maneira pela qual os recursos escassos são alocados em fins que são concorrentes [dentre os quais se deve escolher] (...) [Assim,] a análise econômica deve ter como ponto de partida e como quadro geral de referência o estudo da maneira como os indivíduos fazem a alocação de seus recursos escassos aos fins que são alternativos. (FOUCAULT, 2004, p. 228).

Em última instância, cabe à economia estudar o comportamento humano e analisar a

racionalidade interna a esse comportamento. Foucault conclui que, com isso, a

economia vai deixando de ser uma análise dos processos, e se transforma na análise

de uma atividade: da racionalidade interna ou da programação estratégica dos

indivíduos. Nesse sentido, a análise do “trabalho” passa a ser o entendimento de como

aquele que trabalha utiliza os recursos que dispõe. Para esse tipo de teoria, é preciso,

portanto, colocar-se do ponto de vista do trabalhador e entender sua racionalidade

estratégica enquanto agente econômico ativo. E, nesse sentido, “do ponto de vista do

trabalhador, o salário não é o preço de venda de sua força de trabalho, é uma renda.

(...) Por conseqüência, se se admite que o salário é uma renda, o salário é então a

renda de um capital.” (ibidem, p. 230) E o “trabalho” é, por sua vez, um capital: o

“capital humano”.

Assim, o trabalho passa a ser visto como um tipo de capital que não era levado em

conta pela teoria econômica. E é diante desta “lacuna” que os teóricos do capital

humano se dedicam à inserção da temática do “trabalho” na análise econômica. Essa

abordagem aparece a nível macro e a nível microeconômico.

Do ponto de vista “micro”, associavam um aumento do capital humano da força

trabalhadora à garantia de emprego ou a aumentos na renda e, do outro, no plano

macro, apontavam o aumento da educação (resultante do somatório das escolhas

individuais) como um possível elemento causal para o crescimento econômico. Mas,

desse trabalho (mais-valia) é apropriada pelo capitalista (o dono dos meios de produção). A própria lógica do sistema faz com que o valor daquilo que o trabalhador recebe (salário) seja inferior ao valor daquilo que ele produz (trabalho abstrato).

71

embora esses autores criticassem a teoria neoclássica46 nessa questão específica (da

lacuna), isto não significa que eles a tenham abandonado; muito pelo contrário,

apenas tentaram complementá-la, sem deixar de lado seus postulados básicos47.

Para elucidar os fatores não-explicados do crescimento econômico e entender as

diferenças de rendas existentes entre os indivíduos, a teoria do capital humano afirma

que essas questões dependem do “capital humano” que cada indivíduo escolhe

investir em si mesmo.

Nas palavras de Theodore Schultz:

apesar do fato de que os homens adquirem habilidade e conhecimento úteis seja algo evidente, não é evidente entretanto que habilidade e conhecimentos sejam uma forma de capital, que esse capital seja em grande parte um produto do investimento deliberado, que nas sociedades ocidentais cresceu num ritmo muito mais rápido que o capital convencional (não humano), e que seu crescimento pode ser o traço mais característico do sistema econômico. Se observou amplamente que os incrementos da produção nacional têm sido relacionados em grande medida com os incrementos da terra, horas de trabalho e capital físico reproduzível. Mas o investimento em capital humano é provavelmente a principal explicação dessa diferença. (SCHULTZ, op. cit , p.31)

Em suma, o raciocínio básico pode ser assim sintetizado: (i) aumento da educação dos

trabalhadores, (ii) estes terão suas habilidades e conhecimentos melhorados, (iii)

quanto maiores as habilidades e conhecimentos, maior a produtividade do

trabalhador; (iv) essa maior produtividade acaba gerando (v) maior competitividade e,

assim, (vi) maiores rendas para o indivíduo. Ou seja, ao optarem em investir em seu

capital humano, os indivíduos se tornam mais aptos para competirem no mercado e,

assim, obterem maiores rendas.

Quanto ao conceito de “empregabilidade”, Gentili (1999) ressalta que, além de partir

dos mesmos pressupostos (individualistas) da teoria do capital humano, sua invocação

acaba recorrendo a uma concepção mais individualista ainda que a teoria do capital

humano, uma vez que, enquanto esta última procurava, em suas abordagens mais 46 A teoria neoclássica tem como ponto de partida o estudo de unidades isoladas (consumidores e firmas), cujo comportamento segue a lógica racional do homo economicus, que relaciona racionalmente suas preferências com os preços dos bens, de modo a atingir sempre a melhor escolha possível. A partir dessa análise atomizada, agregam-se os comportamentos individuais de consumidores e produtores e obtém-se um resultado para a economia como um todo: o ponto de equilíbrio do mercado, onde oferta e demanda se satisfazem uma à outra. 47 Aliás, para resolverem teoricamente as questões e chegarem àquelas conclusões, utilizam a premissa do bom funcionamento do mercado.

72

“macro”, estabelecer também vínculos entre o desenvolvimento do capital humano

individual e o capital humano social, o conceito de empregabilidade diz respeito

unicamente ao indivíduo.

Desta maneira, o conceito de “empregabilidade” aparece como uma continuação de

um lado da interpretação proposta pela teoria do capital humano: aquele que enfatiza

o nível microeconômico e que diz respeito ao capital humano como aumento das

chances de obtenção de emprego em decorrência de um aumento do investimento em

educação realizado pelo indivíduo.

Em outras palavras, a educação deixa de ser chamada à promoção do

desenvolvimento econômico (conforme formulava a teoria do capital humano) e passa

a estar voltada ao aumento da empregabilidade, ou seja, das chances individuais de

inserção no mercado de trabalho. E, pior ainda: ao tomar o aumento da

“empregabilidade” como seu novo objetivo, a educação vai progressivamente

deixando de lado seu papel integrador. Há uma “desintegração da promessa

integradora” da escola (GENTILI, 2001). A lógica atual seria estritamente privada e

guiada pela ênfase nas capacidades e competências que cada pessoa deve adquirir no

mercado educacional para atingir uma melhor posição no mercado de trabalho.

Enfraquecida a promessa de pleno emprego, o indivíduo passa a ter de definir suas

próprias opções e escolhas que permitam conquistar uma posição mais competitiva no

mercado de trabalho. (GENTILI, ibidem, p. 81). A nova promessa da educação se

resumiria a simplesmente gerar “empregabilidade” nos indivíduos.

E, tal como o “capital humano”, “a noção de empregabilidade remete a ativos, àquilo

que o trabalhador tem a oferecer no mercado de trabalho de tal maneira a tornar-se

atraente para os empregadores”. (CARDOSO, 2003, p. 100)

Segundo a rationale desta noção de empregabilidade, isto é, analisando-a por dentro e a partir de seus pressupostos, dizer de alguém que ele ou ela não é empregável é dizer que não há no mundo empregadores dispostos a dar-lhe um lugar na estrutura de produção ou distribuição de mercadorias e serviços. Como o empregador é agente racional e seu empreendimento uma empresa racionalmente gerenciada, não é de se esperar que crie postos de trabalho impossíveis de ser ocupados. Se só existem postos que podem ser ocupados, um indivíduo qualquer só não é empregável porque outro o é, quer dizer, porque há pessoas com as habilidades requeridas pelos postos de trabalho disponíveis (...). A empregabilidade como conceito geral, pois, assenta-se sobre a desigualdade efetiva de distribuição de recursos ou ativos empregáveis entre os indivíduos trabalhadores. Ela pressupõe a desigualdade de oportunidades de acesso a postos de trabalho já que, se todos fossem igualmente empregáveis, e não

73

haveria necessidade desse conceito, que não distinguiria coisa alguma. (CARDOSO, 2003, p. 101)

Esse conceito contribui para aquele objetivo do neoliberalismo contemporâneo a que

se referia Foucault (2004a), isto é, o de generalizar e difundir as formas “empresa” no

interior do corpo social (FOUCAULT, 2004a, p. 154), fazendo do modelo econômico

(modelo da competição ou concorrência) uma arquitetura para as relações sociais, um

modelo de existência, de forma de relação do indivíduo com ele mesmo e dele com

seu entorno. (ibidem, p. 247)

Já no que diz respeito à dimensão simbólica da categoria “empregabilidade” que

interfere sobre a formação da auto-imagem e da visão de mundo dos trabalhadores,

Machado (2002a) ressalta:

Como categoria ideológica, a empregabilidade carrega um ideal de mobilidade técnica representado pela proposta de substituir a especialização por uma polivalência que torne o trabalhador apto ao desempenho de ocupações com conteúdos diferenciados, caminhando junto com a defesa da competitividade, da autonomia profissional e da independência pessoal. Resumindo e simplificando, projeta-se a imagem do “novo trabalhador” como um ser que substitui a carreira em um emprego assalariado de longo prazo pelo desenvolvimento individual através da venda de sua força de trabalho em uma série de ocupações contingentes e de conteúdos diferenciados, obtidas através da demonstração pública da disposição e competência para atividades e condições de trabalho em constante mudança, isto é, como empresário de si mesmo (Machado, 1998; Hirata, 1997; Spink, 1997; Frigotto, 1998; Souza, Santana e Deluiz, 1999). Mais do que segmentada, a estrutura do mercado torna-se individualizada; mais do que de conhecimento fragmentado e objetivado, a mobilização do trabalho depende do deslocamento e/ou combinação entre conteúdos, sempre contingente e dependente das disposições subjetivas de cada trabalhador (ibidem, p. 94).

Se, por um lado, o conceito de empregabilidade pressupõe um ambiente de mercado

no qual os indivíduos possam competir por empregos, mediante os ativos de

empregabilidade que possuem, por outro, esse conceito parece ser totalmente

adaptável (e pode funcionar, inclusive, como noção chave) para o novo contexto do

mundo do trabalho, esquematizado por Boltanski (1999), no qual o padrão não é mais

o trabalho protegido nem a carreira profissional do trabalhador, mas sim sua busca

incessante por “projetos” de trabalho.

Assim, em outras palavras, empregabilidade nada mais é que “a capacidade de que as

pessoas devem ser dotadas para que possam ser chamadas nos projetos. A passagem

de um projeto a outro é a ocasião de aumentar sua empregabilidade. Esta aqui é o

74

capital pessoal que cada um deve gerar e que é constituído da soma de suas

competências mobilizáveis.” (BOLTANSKI, ibidem, p. 145).

Nesse momento, os conceitos de “flexibilidade” (se esta for aplicada ao indivíduo, no

sentido de estar “livre” de seus direitos, de seu emprego, de tudo que seja “fixo”) e de

“empregabilidade” se unem e se acoplam num sentido de adaptabilidade para o

indivíduo, moldando um novo modo de ser e de dever ser para o trabalhador.

É nesse sentido, portanto, que flexibilidade e empregabilidade se tornam os novos

imperativos, que emergem do contexto de predomínio da retórica neoliberal. Diante

dessas novas “regras do jogo”, às quais todos os membros da sociedade devem se

conformar, percebe-se, por um lado, o estabelecimento de critérios para um processo

de seleção de quem entra e quem sai do mundo do trabalho e, por outro, a emergência

de um novo tipo de individualidade, a partir daquelas novas retóricas sobre o mundo

social.

Assim, esse processo de seleção-exclusão – que, aliás, nada tem de “natural”, mas

que, ao contrário, tem sua origem na lógica do atual capitalismo e, segundo Boltanski

(1999), em grande medida, nas novas práticas de gestão das empresas e, ainda, que

tem, como horizonte, o “mercado” como metáfora da ordem social - acaba definindo

os que devem ser expulsos ou precarizados: os menos competentes, os mais frágeis,

os menos maleáveis, os menos adaptáveis, enfim, os “inempregáveis”, nos termos de

Robert Castel (2003).

A responsabilidade nesse novo darwinismo social recai justamente sobre os

indivíduos, já que, nesse processo de seleção aparentemente “natural”, as

oportunidades de emprego são criadas “justificadamente” para os mais aptos,

enquanto que, para menos competitivos, imputam-lhe a responsabilidade por terem

empregos precarizados ou, ainda, serem expulsos do processo.

Cabe aqui uma comparação com o significado que a noção de “responsabilidade”

assumiu em outros momentos. Domingues (2000), mobilizando autores como

François Ewald, lembra como a categoria responsabilidade era tratada pelo

liberalismo clássico: ela se apoiava sobre os ombros do indivíduo. Não que o

liberalismo desconhecesse a “precariedade”, a “instabilidade”, a “incerteza” como

características da vida social, mas conquistar a segurança consistia numa “exigência

da liberdade”. Por isso, a conquista da segurança é antes um dever que um direito, o

75

qual deve ser respondido mediante a “previdência”. Assim, a formulação original do

liberalismo implicava a responsabilidade absoluta e exclusiva do próprio individuo.

Domingues (2000) contrasta a noção de responsabilidade liberal com a vigente na era

dourada.

Na medida em que a equação liberal mostrou-se cada vez mais problemática e a emergência do movimento operário pôs na ordem do dia novas formas de solidariedade social (afinal cristalizadas na cidadania social garantida estatalmente) a responsabilidade assumiu um novo caráter. Agora surgia claramente a conexão entre sociedade e responsabilidade, uma vez que nem os indivíduos eram tão livres assim, nem se podia atribuir tanta responsabilidade (...) a ele no que tange às agruras que eram muitas vezes obrigados a suportar na vida. (DOMINGUES, ibidem, p. 77-78)

Assim, nesse momento, o Estado era o responsável pelo bem-estar da comunidade.

Hoje, percebe-se que os discursos do “neo”-darwinismo social buscam legitimar o

retorno da responsabilidade ao indivíduo, postulando que ele deve ser o responsável

pela sua inserção (ou não) no mundo do trabalho – que é determinada, por sua vez,

pela posse (ou não) das características exigidas pelo modelo de competição do

mercado.

Já no que diz respeito ao novo tipo de individualidade, é possível abordá-lo a partir de

duas chaves que se complementam. Ele pode ser observado tanto como resultante da

geração de uma nova imagem para o trabalhador – que se processa no próprio mundo

do trabalho - quanto como um novo padrão teórico de individualidade que emerge

daquelas retóricas e discussões já referidas.

Pode-se sugerir que emerge uma nova imagem para o trabalhador que vem sendo

construída no próprio mundo do trabalho, resultante, por exemplo, do novo modo de

justificação do capitalismo, tal como discutiu Boltanski (1999). Tendo a obrigação de,

num mundo flexível, ser maleável, adaptável e empregável, a imagem do indivíduo

vai se transformando. Assim, retomando Machado da Silva (2002a), o “novo

trabalhador” vai se tornando um “empresário de si mesmo”. Ele passa a estar

convencido de que suas conquistas – o emprego – e seus fracassos – o desemprego –

dependem exclusivamente de si mesmo. Essa nova auto-imagem do trabalhador, no

fim das contas, acaba ferindo “de morte os valores de solidariedade social tão

dificilmente institucionalizados sob a fórmula ‘trabalho livre, mas protegido’ e torna-

76

se o centro de legitimação ideológica da fragmentação social que, nesta hipótese, se

tornaria irreversível” (ibidem, p. 95).

Ao mesmo tempo, nota-se que aquelas retóricas e discussões sobre o mundo social

pressupõem um padrão teórico de individualidade que atua, por sua vez, no sentido de

reforçar essa imagem que vem sendo construída para o trabalhador. Foucault (2004a)

dizia justamente que o próprio objetivo do neoliberalismo consistia em inserir

mecanismos competitivos e concorrenciais no tecido social, de modo que a sociedade

fosse progressivamente se aproximando da idéia de “mercado”, tão cara aos

neoliberais.

Isso pode ser claramente percebido nas discussões acerca da flexibilidade, do capital

humano e da empregabilidade, uma vez que esses debates pressupõem um padrão

teórico de individualidade: o indivíduo competitivo. Sendo teórico e também

ideológico, a exaltação desse indivíduo competitivo acaba por fundamentar um “dever

ser” e, com isso, reforçar aquela nova imagem que vem sendo construída entre os

trabalhadores contemporâneos.

Esse novo tipo de individualidade do trabalhador – como “empresário de si mesmo”

ou como um indivíduo teórico “competitivo” – é de fundamental importância para

este trabalho, cujo objetivo é tentar mostrar, mais à frente, que o atual significado do

conceito de “pobreza” vem se afirmando justamente como o inverso desse modelo de

individualidade contemporânea.

77

Capítulo III – O DESLOCAMENTO INTERPRETATIVO DA QUESTÃO SOCIAL NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO: DA MARGINALIDADE À POBREZA

1. A questão social e sua enunciação

O objetivo deste capítulo é apontar para um deslocamento interpretativo da “questão

social” no contexto latino-americano. Se, no contexto do desenvolvimentismo, ela era

tratada enquanto “marginalidade” – a partir de interpretações preocupadas com os

processos estruturais que a geravam -, a partir dos anos oitenta, o conceito de

marginalidade entra em desuso e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a questão

social (mais extensa e aprofundada) começa a ser enunciada, sobretudo, a partir da

idéia da “pobreza”. Como contraponto, mostrar-se-á como a nova questão social vem

sendo debatida também no contexto francês (como “exclusão”) e norte-americano

(como underclass).

Se é verdade que a palavra “pobreza” é de uso comum e de longa data, sobretudo na

linguagem ordinária, não se pode negar, entretanto, que hoje esse termo tem assumido

um conteúdo bastante específico e ganhado notória centralidade.

A propósito, tal centralidade precisa ser enfatizada, uma vez que, como se sabe, a

“questão social” nem sempre foi enunciada a partir do conceito de “pobreza”. A

História mostra que ela já foi tratada de diversas maneiras e que sofreu mutações,

tanto no que diz respeito a seu conteúdo quanto em relação à forma de como é

enunciada. Em cada momento histórico, a questão social teve sua própria significação

social e política e, por conseguinte, se expressou de uma maneira. Nesse sentido, para

cada uma das sucessivas representações sobre o social observadas na história – suas

categorizações, os tratamentos que lhe são concedidos, dentre outros aspectos - é

possível encontrar um específico imaginário de sociedade que a fundamenta.

Embora a expressão “questão social” tenha surgido no século XIX48 com o objetivo

de ressaltar os problemas e disfunções inerentes à sociedade industrial nascente

48 Segundo Castel (2003), ela foi explicitamente problematizada como tal pela primeira vez nos anos 1830, decorrente da tomada de consciência das condições de existência das populações que foram os agentes e as vítimas da revolução industrial. É o questionamento acerca do “pauperismo”. (CASTEL, 2003, p. 30).

78

(ROSANVALLON, 1995), ela vem sendo apropriada ultimamente por alguns autores

- por exemplo, Castel (2003) –, e assim tendo sua utilização ampliada no tempo e no

espaço: “antes desta ‘invenção do social’49 já havia social”. Para identificá-lo

historicamente e poder entender suas mutações, Castel sugere que a questão social

deva ser definida a partir do eixo da integração:

A questão social é uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade (...) existir como um conjunto ligado por relações de interdependência. (ibidem, p. 30).

Cada sociedade possui uma dinâmica específica de integração e a questão social é

resultante dessa lógica e determinada, segundo o autor, por seus pontos de ruptura.

Assim, segundo Castel (ibidem), embora em cada estrutura social e em cada momento

histórico específico, os conteúdos concretos da questão social sejam distintos e

específicos, é possível, por um lado, estabelecer homologias entre as questões sociais

e, por outro, comparar os processos que as produzem – os quais são também

“homólogos em sua dinâmica e diferentes em suas manifestações” (ibidem, p. 28). É

partir disso que ele ressalta a capacidade do conceito de “questão social” trazer

consigo suas próprias metamorfoses. Ou seja,

‘Metamorfoses’, dialética do mesmo e do diferente: evidenciar as transformações históricas desse modelo, sublinhar o que suas principais cristalizações comportam, ao mesmo tempo, de novo e de permanente, ainda que sob formas que não as tornam imediatamente reconhecíveis. (CASTEL, 2003, p. 27)

Essa seria uma possibilidade, portanto, de se analisar as transformações do social

enquanto “realidade” social. Entretanto, no que diz respeito à enunciação ou à

conceituação da questão social, não se pode dizer nem que elas sejam reflexo direto

da “realidade”, nem que sempre digam respeito a problematizações sobre a integração

social.

Ao contrário, a relação entre o nome e a coisa não é direta. Diversas vezes, a

enunciação evidencia muito menos os processos que produzem a questão social que as

representações e/ou discursos acerca da sociedade que são propostos pelo pensamento

49 Aqui Castel (2003) faz referência ao livro de Jacques Donzelot – L’Invention du Social -, de 1994, no qual o autor afirma que o “social” foi inventado a partir da necessidade de tornar governável a sociedade francesa do pós-1848.

79

político hegemônico ou, ainda, contra-hegemônico. Por exemplo, como se disse, a

“questão social” nem sempre foi expressa a partir de “pobreza”. Ao contrário, em

cada momento específico, ela é enunciada a partir de conceitos ou problemas que, em

última instância, refletem uma “batalha de classificações” (TOPALOV, 1994) entre a

manutenção do status quo e a vontade de transformação da realidade social.

Segundo Himmelfarb (1988), a linguagem e a percepção da realidade têm grande

correspondência com o esforço dos contemporâneos que conscientemente tentam

manter ou transformar a realidade e que, para tanto, deliberadamente forjam teorias e

políticas. Assim, em determinado momento, o fato uma de determinada linguagem

prevalecer - se sobrepondo às outras possíveis -, diz bastante sobre como se dá o jogo

entre hegemonia e contra-hegemonia, ou entre “ideologia” e “utopia” (MANNHEIM,

1976) ou, ainda - no caso do específico do capitalismo - entre “justificação” (“espírito

do capitalismo”) e “crítica” (BOLTANSKI, 1999).

Nesse sentido, é interessante analisar, sobretudo, os momentos de inflexão em que a

enunciação do social se transforma, a partir dos quais é possível perceber também

mudanças no entendimento sobre o mundo social.

Topalov (1994) afirma que, embora as operações de classificação se apresentem como

um enunciado verdadeiro, elas sempre dizem respeito a uma determinada ordem

cognitiva. Enunciar “os problemas, estabelecer as causalidades, classificar as

populações e prescrever soluções são momentos inseparáveis de um mesmo discurso”

(ibidem, p. 192). E, seria possível complementar: são inseparáveis também de um

mesmo modo de entender o mundo social.

É a partir dessa idéia que Topalov (1994) se propõe a analisar o “nascimento” do

“desemprego”, e destaca a importância do papel dos reformadores franceses da virada

do século XX na construção do “desemprego” enquanto categoria de descrição do

mundo - como expressão da questão social. O autor afirma que, longe de ser uma

descoberta - fruto de uma tomada de consciência de uma nova realidade -, o conceito

de “desemprego” foi “inventado”, foi um produto de uma elaboração teórica e

resultado de uma “batalha de classificações”, resultante dos sucessivos afrontamentos

entre os distintos “produtores de saber”.

Topalov (1990) argumenta que o conceito moderno de desemprego preexistiu à

realidade que ele iria prescrever:

80

Os reformadores sociais (...) procuraram e encontraram na realidade industrial o objeto que lhes correspondia. Mas, ao mesmo tempo, implantaram instrumentos de intervenção que procuravam modelar a realidade a partir do conceito classificatório que haviam forjado. É nessa dialética das mudanças industriais e das políticas sociais, da experiência operária e da ação reformadora sobre o povo das cidades, que vai nascer (...) o desempregado moderno. (TOPALOV, 1990, p. 384-385).

Gautié (1998) argumenta a partir desse mesmo raciocínio: “o desemprego é bem mais

do que o novo nome de uma realidade muito antiga, a falta de trabalho, que teria

adquirido dimensões particularmente importantes com a industrialização. Ele remete,

antes, a uma categoria de ação, elaborada pelos reformadores sociais, e com isso se

coloca inteiramente na perspectiva da intervenção pública.” (GAUTIÉ, ibidem, p. 74).

Antes da construção do desemprego enquanto categoria para descrever o social, é

possível distinguir nas sociedades européias, segundo Gautié (1998), duas

problematizações distintas para questão social:

A primeira, que se estende, grosso modo, do século XIV ao fim do século XVIII, é a da pobreza nas sociedades pré-industriais. A segunda, que domina o século XIX, é a do pauperismo associado à industrialização. Foi para tentar responder ao desafio que este último lança à ordem social que ‘foi inventado o desemprego’ na virada do século. (GAUTIÉ, 1998, p. 69).

Assim, a questão social nas sociedades pré-industriais européias foi expressa, de

modo geral, a partir da idéia do “pobre”, que remetia ao lugar que esse personagem

ocupava na sociedade. Gautié (1998) lembra que a “ordem social organiza-se, na

época, em torno da casa senhorial e da paróquia, e tem, portanto, uma inscrição no

espaço muito forte. A integração social faz-se segundo uma dimensão vertical – a

sociedade das ordens (...) – e horizontal – a comunidade local dos paroquianos.”

(idem). Os pobres dessa época eram aqueles que não se inscreviam em nenhuma

profissão (corporações) e nem possuíam vínculos geográficos.

Himmelfarb (1988) sugere que, até o século XVI, a concepção de pobreza era

fortemente marcada por um pensamento religioso. Assim, a pobreza era vista ou como

uma benção que se buscava devotamente ou como uma desgraça que deveria ser

suportada piedosamente. Esses dois tipos de pobreza eram personificados pelas

figuras do pobre santo – que adotava a pobreza como voto sagrado (para cumprir

melhor a vontade de Deus) – e do pobre ímpio, sem religião, que tinha de tolerar a

pobreza como um fato lamentável em sua vida.

81

Nesse momento, aqueles que não eram pobres tinham o dever sagrado da caridade,

eram obrigados a manter os pobres santos e a aliviar a miséria dos pobres ímpios.

Assim, todos os aspectos da pobreza e da caridade estavam imbuídos de um espírito

religioso e a Igreja constituía um instrumento de melhoria social e de salvação

espiritual. (HIMMELFARB, 1988) E a esmola seria, por sua vez, um meio de

salvação pessoal, fazendo do rico um “funcionário de Deus”. (SASSIER apud

GAUTIÉ, op. cit.).

Embora essa concepção de pobreza não tenha perdido toda sua justificação religiosa,

ela foi paulatinamente deixando de ser pensada a partir de idealizações do pobre, ou

seja, de uma natureza enobrecedora da pobreza. A pobreza vai deixando de ser uma

virtude e passa a ser entendida como uma desgraça a ser suportada piedosamente – o

pobre deveria tolerar a pobreza como um fato lamentável em sua vida

(HIMMELFARB, 1988).

A partir do século XVI, com a progressiva secularização da concepção de pobreza,

vai emergindo uma dificuldade conceitual: a de distinguir entre os verdadeiros e os

falsos pobres. Essa distinção se traduzia na preocupação em diferenciar aqueles que

deveriam ser socorridos daqueles que não deveriam receber nenhuma ajuda, uma vez

que eram vistos como aproveitadores de seus próximos.

Desse modo, entre o século XVI e o século XVIII, passa a haver dois tipos de

“pobres”: o “bom pobre” e o “mau pobre” e, para cada um desses tipos, cria-se um

tratamento específico. A figura do “bom pobre” referia-se aos indivíduos inválidos, às

crianças e aos velhos – ou seja, àqueles que eram incapazes de trabalhar. Apenas esse

“bom pobre” era “merecedor” da assistência da caridade cristã.

O “mau pobre” era definido como o pobre válido, que podia e deveria trabalhar, mas

que preferia viver de benefícios dos outros. O “mau pobre” foi personificado na figura

do “vagabundo” 50 ou mendigo, ao qual não cabia nem a assistência nem a caridade,

mas a repressão.

50 Castel (2003) interpreta a figura do “vagabundo” em outra chave, a partir do ponto de vista da integração social. Nesse sentido, ele entende a existência dos “vagabundos” como a primeira evidência de uma “questão social”. Sugere com isso que, naquele momento, já estava presente a problemática social da insuficiência de trabalho para todos. Percebe-se que, na chave sugerida por Castel, a incapacidade de auto-sustento passa a ser interpretada não como uma simples questão do indivíduo, tal como era pensado na época, mas como um problema da própria sociedade.

82

Assim, como lembra Topalov (1994), a essa estratégia de classificação, os teóricos da

caridade iam definindo também planos de ação, que associavam aos “bons pobres”

um princípio caritativo (assistência aos inválidos, doentes e impotentes) e, aos “maus

pobres”, um princípio repressivo (proibição da mendicância, a expulsão dos

vagabundos, obrigação de trabalhar). É dessa maneira, portanto, que o tratamento da

questão social relacionava-se com ações que oscilavam entre a assistência (ou

caridade) e a repressão ou, ainda, entre a “força” e a “piedade”, tal como sugere a

discussão de Bronislaw Geremek, em La Potence ou la Pitié (GEREMEK, 1987).

Já no século XIX, a despeito do progresso e da riqueza decorrentes da

industrialização, a questão social não desapareceu - como esperavam os mais

otimistas -, mas se agravou consideravelmente. Nessa época, existia um sentimento de

se estar diante de um fenômeno social novo, o qual não podia mais ser visto em

termos de “pobres” (enquanto indivíduos), mas sim como algo que era conseqüência

direta do desenvolvimento do novo sistema econômico. Essa nova problemática

começa a ser enunciada como “pauperismo”. Assim, não é de se estranhar que, no

início da industrialização, a expressão “classes dangereuses” (classes perigosas) – que

originalmente se referia, na França, aos vagabundos, criminosos e marginais – começa

a se estender aos trabalhadores como um todo: “classes labourieuses, classes

dangereuses” (CHEVALIER apud SCHWARTZMAN, 2004, p. 87).

Percebe-se, portanto, que o problema social não dizia respeito apenas àqueles que não

tinham trabalho, mas, ao contrário, era um problema vivido também por aqueles que

trabalhavam e, portanto, muito mais amplo que a questão anterior. A novidade do

sistema capitalista consistia em que mesmo aqueles que trabalhavam (e que eram,

portanto, “integrados”) viviam numa condição de miséria: “A era industrial começa: o

pauperismo nasceu”, resumia Émile Laurent (apud HATZFELD, 1971). A mesma

idéia é percebida numa citação inglesa lembrada por Hatzfeld (1971): “Uma

manufatura é uma invenção para fabricar dois artigos: algodão e pobres.” (ibidem, p.

9). Assim, o problema deixa de ser visto como uma desgraça providencial e/ou como

um vício individual e vai passando a ser entendido como fruto da nova dinâmica da

sociedade.

Nesse mesmo período, a questão social decorrente da industrialização, além de ser

entendida como “pauperismo”, foi também enunciada em outros termos. Por exemplo,

com Engels (1845), em seu livro “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”.

83

Segundo Himmelfarb (1988), a inovação de Engels foi ter se referido à miséria

decorrente da sociedade industrial inglesa através da noção de “proletariado”.

Nesse tratamento, percebe-se, por um lado, uma ênfase na novidade de sua condição:

embora sempre tenha existido “gente pobre e classes trabalhadoras, (...) estes pobres,

estes trabalhadores que estão vivendo nas condições indicadas [anteriormente] (...),

por conseguinte proletários, não existiram sempre” (Engels apud HIMMELFARB, p.

332). A especificidade é clara na seguinte passagem: “A história do proletariado na

Inglaterra começa na segunda metade do século passado [século XVIII] com a

invenção da máquina a vapor e das máquinas destinadas a trabalhar o algodão”

(ENGELS, 1975, p. 15).

Mas, por outro lado, nota-se, em Engels (idem) um tratamento do “proletário” não

apenas como uma simples mazela social decorrente da industrialização – para tanto, o

termo “pauperismo” lhe serviria. Ele entende o proletário também como um ator

social e político. Afinal de contas, “o proletariado não é só uma classe que sofre; de

fato, esta situação vergonhosa do proletariado o impulsiona (...) e o faz lutar por sua

emancipação política”. (Engels apud HIMMELFARB, p. 331). E, ainda, nas palavras

de Engels:

A questão fundamental é a seguinte: que vai acontecer a esses milhões de seres, que não possuindo nada, consomem hoje o que ontem ganharam, cujas descobertas e trabalho fizeram a grandeza da Inglaterra, que se tornam dia após dia mais conscientes da sua força e exigem mais imperiosamente a sua parcela nas vantagens da sociedade? (...) é também tudo isto que explica a profunda cólera de toda a classe operária (...) contra os ricos que a exploram sistematicamente e em seguida a abandonam sem piedade, cólera que em bem pouco tempo (...) explodirá numa revolução tal, que a seu lado a primeira revolução francesa e o ano de 1794 serão, por certo, uma história de crianças. (ENGELS, op. cit., p. 34-36)

Outro modo de enunciação alternativa para o “pauperismo” que, na época, se

aproximou muito da idéia de “proletariado” foi a utilização da “linguagem de classe”,

destacada por Asa Briggs (apud HIMMELFARB, p. 352), cuja utilização foi se

tornando, a partir do século XIX, cada vez mais freqüente para definir e descrever os

que antes eram chamados de pobres. Essas duas noções - operariado e classe - se

aproximam, sobretudo, quando a idéia de “classe” entende o pobre enquanto ator. O

exemplo mais óbvio dessa aproximação se encontra em Marx (em, por exemplo,

84

“Manifesto do Partido Comunista”, de 1848) (MARX e ENGELS, 1998) e no

marxismo.

Asa Briggs ressalta a importância dessa “linguagem de classe” e sugere que ela tenha

representado “uma mudança básica não apenas na maneira como os homens viam a

sociedade, mas [também uma mudança] na própria sociedade” (idem). Ou seja, na

medida em que a percepção social muda, criam-se novas possibilidades para o futuro

da sociedade. Não é à toa, portanto, que a enunciação do social tanto como

“proletariado” quanto como “classe” foi tão fundamental para o rumo da história do

século XX – seja do ponto de vista da construção de regimes comunistas, seja do

ponto de vista da organização política dos trabalhadores, sobretudo em torno dos

sindicatos.

Em outra chave, paralelamente à história do conceito de “proletariado” e de “classe”,

o social passa a ser pensado também, a partir do final do século XIX, enquanto

“desemprego” (TOPALOV, 1994). Mas essa “nova” categoria de representação do

social só se tornou plenamente operatória (no sentido de ser mobilizada pelas políticas

públicas) no contexto dos anos trinta do século XX (GAUTIÉ, 1998, p. 74), momento

marcado pela possibilidade do pleno emprego criada pela construção do Estado

interventor (com suas políticas keynesianas).

Assim, de modo geral, é possível perceber algumas variações do modo pelo qual a

questão social foi tratada ao longo da história. É evidente que, neste trabalho, não se

tem o objetivo (nem a pretensão) de esgotar essa temática. Mas, trazendo a discussão

para a especificidade do contexto latino-americano, nota-se que aqui também a

questão social nem sempre foi enunciada a partir simplesmente da idéia de “pobreza”.

Ou melhor, embora a idéia de pobreza tenha sempre existido – de fato, ela faz parte da

linguagem da vida cotidiana -, em certos momentos, outros conceitos foram mais

importantes que o de pobreza, quando o objetivo era explicar a questão social.

Neste capítulo, procura-se apontar para um deslocamento do tratamento da questão

social no contexto da América Latina: passando do tema da “marginalidade” para uma

abordagem bem específica da “pobreza”. É importante destacar que não se nega aqui

que, na América Latina, muitos outros conceitos (como os de desemprego, de

cidadania, etc.) tenham tido seu papel. A preocupação central consiste, contudo, em

85

apontar para a especificidade da região no que se refere à enunciação da questão

social e, sobretudo, para o seu deslocamento.

2. Da marginalidade

No contexto latino-americano, ao longo dos anos sessenta e setenta, o conceito de

“marginalidade” ganhou extraordinária importância e foi amplamente utilizado no que

diz respeito ao tratamento do “social”. Sua ampla utilização pode ser percebida nas

teorias que procuraram entender as causas da questão social, associando-as às

especificidades da região.

De maneira bastante resumida, pode-se dizer que as interpretações sobre o tema da

“marginalidade” se apresentaram, na América Latina, através de dois grandes eixos.

Por um lado, a partir da chamada “teoria da modernização” - e seus desdobramentos

enquanto “teoria da marginalidade”51 - e, por outro, a partir de teorias explicativas da

“marginalidade” com o enfoque marxista (MACHADO, 1983).

Desenvolvida no auge do período desenvolvimentista, a teoria da modernização

procurou interpretar a questão social nos países periféricos a partir dos fundamentos

do funcionalismo. O funcionalismo pressupunha a noção de “sistema social” e

considerava a existência de uma harmonia entre as variadas partes que constituem a

sociedade. Assim, “os diversos subsistemas interpenetram-se e a mudança num

elemento deve, por hipótese, acarretar transformações em outros, provocando uma

seqüência de ajustamentos recíprocos que mantém o todo social integrado. (...) impera

a idéia de que as estruturas sociais possuem funções e que estas servem para manter o

conjunto da sociedade de modo relativamente ordenado” (PARSONS apud

KOWARICK, 1975, p. 44).

Assim, a teoria da modernização, influenciada pelo funcionalismo, diagnosticava a

“marginalidade” como um problema de desajuste do sistema que se encontrava em

transformação (o processo de urbanização e de industrialização latino-americano).

51 Machado da Silva (1983) sustenta que as várias vertentes da chamada « teoria da marginalidade » não representaram de fato a adesão a um marco teórico novo – isto é, alternativo à teoria da modernização. Ao contrário, aplicaram o mesmo esquema analítico utilizado por esta teoria – sobretudo, o modelo de sociedade dual do funcionalismo -, só que enfatizando as questões mais problemáticas do desenvolvimento na América Latina.

86

Kowarick (1975) lembra que o processo de modernização pressuposto pela teoria da

modernização implicava:

desarticulações e rupturas, na medida em que desorganiza o quadro social preexistente e que a ‘nova’ situação estrutural não é atingida simultaneamente por todas as partes da sociedade. (...) Em outros termos, o desenvolvimento gera desequilíbrios, tanto sociais quanto econômicos, que são equacionados pela teoria da modernização em termos de padrões polares. (KOWARICK, 1975, p. 47)

Assim, a nova situação - decorrente daquelas grandes mudanças ocorridas na América

Latina a partir dos anos cinqüenta - era retratada a partir de um dualismo marcado

pela coexistência de um setor tradicional (atraso/ campo) e um setor moderno

(avanço/ cidade).

Domingues e Maneiro (2004) ressaltam que Gino Germani entendia a estrutura social

- mundo “sociocultural” – a partir da idéia de interdependência, salientando que

modificações em alguma das partes da sociedade afetam, embora não de forma

imediata, as outras partes da sociedade e a estrutura social em geral. O processo de

modernização gerava, portanto, assincronias que se expressavam por aquele dualismo

social.

A “marginalidade” constituiria, segundo Germani (1973), “uma das perspectivas

desde as quais se pode encarar o tema da modernização, dos aspectos sociais e

humanos do desenvolvimento e a problemática gerada pelos contrastantes modelos de

processos e sociedades que se propõem como resposta ou solução aos problemas do

mundo contemporâneo, tanto em suas áreas ‘centrais’ como, sobretudo, nas

‘periféricas’” (GERMANI, tradução livre, 1973, p. 34). A idéia de marginalidade se

relacionaria, portanto, diretamente com a noção de modernização,

incluindo desenvolvimento econômico, modernização social e política tanto no plano estrutural como no psico-social (...). O fato fundamental que gera marginalidade e sua percepção como problema é o caráter assincrônico ou desigual do processo de transição. (...) Estas assincronias geram a coexistência de instituições, valores, atitudes, modelos de comportamento, estruturas parciais, grupos ou categorias sociais, regiões no interior de um país, que no mesmo lapso alcançam diferentes graus de modernização e desenvolvimento. (ibidem, p. 42).

E continua:

Desde este ponto de vista se tornam marginais os grupos, categorias sociais e áreas geográficas (...) que se encontram em tal situação de atraso, exclusão ou deterioração crescente (seja como efeito direto ou como

87

causa, ou bem como conseqüência indireta, do desenvolvimento de outras áreas). (ibidem, p. 44)

Assim, “a marginalidade é vista a partir de uma dualidade estrutural que opõe dois

termos ao longo de um contínuo em que um pólo, o marginal, é definido pela

ausência de um conjunto de características existentes no pólo inverso, o integrado.”

(KOWARICK, 1983, p. 48). E a idéia dessa figura do “integrado” é construída a partir

de uma concepção de cultura urbana. Assim, “os centros urbanos passam a constituir

um ambiente social peculiar, marcado por um modo específico de existência. (...) [O]

fenômeno da urbanização supõe uma maneira de viver” (ibidem, p. 50).

Segundo Machado (1983), a teoria da modernização “afirmava a tendência de

passagem do ‘tradicional’ ao ‘moderno’ (...) pela via do aprofundamento da

racionalidade econômica. Mencionavam-se seguidamente as ‘resistências à mudança’,

que não representariam mais que obstáculos culturais impostos por bolsões de valores

tradicionais que era mister transformar. A oposição campo (tradicional) x cidade

(moderno) era ao mesmo tempo o rebatimento espacial da teoria da modernização e

seu símbolo mais recorrente.” (ibidem, p. 219).

“O implícito, do ponto de vista da lógica do modelo, é que o setor não-participante da

população venha a se integrar” (KOWARICK, op. cit, p. 53). E, nesse sentido, a

existência da marginalidade é entendida, pela teoria da modernização, como um

fenômeno transitório que, por um lado, evidenciava a persistência do tradicional no

processo de desenvolvimento do moderno e, por outro, poderia ser resolvido pela

assimilação dos “desajustes”, pelo próprio processo de modernização. Essa teoria teve

seu auge justamente no período de maior euforia do desenvolvimentismo latino-

americano.

Quando o desenvolvimentismo começa a mostrar limitações e a ser questionado,

surgem teorias voltadas para a questão da “marginalidade” propriamente dita,

marcadas pelo pessimismo que se consolidava frente a questão do desenvolvimento

na região. Contudo, embora essas “teorias da marginalidade” se mostrassem como o

reverso da teoria da modernização, se voltando para as questões problemáticas do

desenvolvimento - os “pontos de estrangulamento” -, elas não deixaram de lado,

segundo Machado (1983), o esquema analítico proposto pela teoria da modernização.

88

Como exemplo dessas “novas” teorias estavam: a noção de “cultura da pobreza”52, as

abordagens culturalistas que enfatizavam comportamentos e a “incapacidade” dos

indivíduos em absorver plenamente os padrões culturais da parte moderna da

sociedade e a “teoria da participação” defendida pelo DESAL53 (Centro para el

Desarrollo Econômico y Social de América Latina) – uma discussão que, segundo

Machado (1983, p. 222), “não extravasou o âmbito da perspectiva funcionalista, em

cuja base estava a concepção de uma sociedade dual”.

Machado aponta Anibal Quijano (1966) como o primeiro a criticar a abordagem

dualista representada pela teoria da modernização. Este autor faz um balanço crítico

sobre as diferentes definições e utilizações do conceito de marginalidade e afirma que

“se se comparam as definições propostas, pode-se notar que, deixando de lado os

aspectos específicos em que cada uma delas põe particular ênfase, todas apontam

fundamentalmente a um problema único: a falta de integração em.” (QUIJANO,

1966, p. 27). E, assim, ele se propõe a distinguir “dois níveis de integração social: a

integração no sistema e a integração do sistema, chamando a atenção para a segunda.

Na medida em que o sistema social como um todo estava fracamente integrado (...)

esta situação afetava a própria inserção no sistema de crescentes segmentos

populacionais” (MACHADO, 1983, p. 223).

Segundo Machado (1983), o abandono do arcabouço teórico da “teoria da

modernização” começa a ser percebido com o surgimento de trabalhos sobre a

marginalidade a partir da teoria marxista, no início dos anos setenta.

Jose Nun (1978) explicita inclinação marxista ao expor a proposta de seu trabalho:

“situar teoricamente o tema da marginalidade no nível das relações de produção, com

especial referência ao caso dos países capitalistas da América Latina” (NUN, 1978, p.

75). Seu objetivo específico é “estruturar a noção de massa marginal a partir de uma

crítica à identificação corrente entre as categorias de superpopulação relativa e de

exército industrial de reserva, assinalando as vantagens que derivam destas precisões

52 Conceito elaborado por Oscar Lewis (apud KOWARICK, 1975). A “cultura da pobreza” seria marcada por “uma falta de participação e integração efetiva dos pobres nas instituições sociais mais abrangente da sociedade inclusiva” (LEWIS apud KOWARICK, ibidem, p. 34) e representaria um mundo à parte – uma subcultura. E “no âmbito do indivíduo os principais traços são um forte sentimento de marginalidade, de desamparo, de dependência e inferioridade.” (idem). Assim, segundo Kowarick, na noção de “cultura da pobreza”, está presente uma idéia de “marginalidade enquanto essência”, uma ontologia própria da pobreza que se diferenciava do resto da sociedade. 53 O DESAL entendia a marginalidade como ausência de participação política.

89

teóricas.” (idem). O autor considera fundamental diferenciar esses dois conceitos da

teoria marxista que geralmente são vistos como sinônimos.

Resumidamente, como uma primeira diferenciação, Nun afirma que os dois conceitos

se situam em diferentes níveis de generalidade. Enquanto o exército industrial de

reserva corresponderia à teoria particular do modo de produção capitalista, o conceito

de superpopulação relativa pertenceria à teoria geral do materialismo histórico e

poderia ser usado para qualquer modo de produção. Assim, cada modo de produção

específico teria “suas próprias leis de crescimento da população e da superpopulação”

e determinaria os efeitos ou conseqüências que a existência da população excedente

vai provocar no sistema. Para avaliar e detectar as conseqüências ou os efeitos

produzidos pela superpopulação no sistema, Nun (op. cit) propõe a utilização da idéia

de função: “dados um elemento x e y, a relação entre ambos pode ser funcional,

disfuncional ou afuncional” (ibidem, p. 80).

A relação seria funcional quando a sobrepopulação serve ao sistema, quando ela tem

alguma função no desenvolvimento ou manutenção do mesmo. Seria disfuncional

quando a sobrepopulação é prejudicial ao sistema e a resposta deste último consiste

em eliminar o excedente de população - por exemplo, os povos primitivos em sua fase

coletora-caçadora. E, por fim, seria afuncional quando a sobrepopulação é supérflua e

indiferente ao sistema – por exemplo: os vagabundos medievais. O autor destaca que

o afuncional às vezes pode virar disfuncional, por exemplo, quando a consciência

política da sobrepopulação começa a questionar a dominação vigente.

Nun (1978) ressalta, portanto, a necessidade de se questionar qual a funcionalidade,

em cada modo de produção, do excedente da população. Assim, o autor afirma que é

importante perceber que nem toda sobrepopulação observada no modo de produção

capitalista pode ser classificada como exército industrial de reserva, já que este

implica especificamente uma relação funcional com o sistema capitalista em seu

conjunto. Assim, embora seja uma população excedente, o exército industrial de

reserva tem uma função ao sistema, ele é “uma alavanca da acumulação capitalista, e

mesmo condição de existência do modo de produção capitalista.” (MARX, 1987, p.

733).

Essa “função” é desempenhada, segundo Marx (1987), a partir de dois eixos: por um

lado, “grandes massas humanas têm de estar disponíveis para serem lançadas nos

90

pontos decisivos, sem prejudicar a escala de produção nos outros ramos. A

superpopulação fornece-as.” (ibidem, p. 734). Ou seja, esse “exército” deveria estar

disponível para quando o sistema demandasse mais mão-de-obra para a produção.

Por outro, a existência desse “exército” serve para controlar o patamar dos salários

daqueles que estão “na ativa”. Ou seja, regular os salários, não deixando que uma

eventual escassez de mão de obra faça com que os salários aumentem: “Em seu

conjunto, os movimentos gerais dos salários se regulam exclusivamente pela

expansão e contração do exército industrial de reserva, correspondentes às mudanças

periódicas do ciclo industrial.” (ibidem, p. 739)

Para Nun (1978), nem toda população excedente cumpre, na fase monopolista do

capitalismo latino-americano, essas funções de “exército industrial de reserva”. “O

cerne do pensamento [de Nun] orienta-se no sentido de afirmar que, à diferença do

capitalismo competitivo, na fase monopolista a relação entre superpopulação e

processo de acumulação tende a não ser mais ‘funcional’, isto é, a não se configurar

enquanto um exército industrial de reserva. Isto significa que parcelas da população

excedente tornam-se ‘afuncionais’ ou ‘disfuncionais’ para o processo produtivo”

(KOWARICK, 1975, p. 110).

Assim, para Nun, no contexto do capitalismo monopolista, passaria a ser fundamental

a utilização de um novo conceito para essa parte afuncional ou disfuncional da

superpopulação. Esse novo conceito seria o de “massa marginal”, uma massa que não

tem esperança alguma de voltar a estar ocupada e que “está destinada a ser engrossada

com uma afluência constante de desocupados adicionais.” (TROTSKY apud NUN,

op. cit., p. 100).

Esse novo conceito implicaria “uma dupla referência ao sistema que, por um lado,

gera este excedente e, por outro, não precisa dele para continuar funcionando” (NUN,

op. cit., p. 100). Nun esclarece que o conceito de massa marginal “se trata de uma

distinção puramente analítica e que essas ‘partes’ só estão separadas no plano

conceitual. Sem prejuízo de que estudos concretos possam determinar quem tem uma

probabilidade maior ou menos de achar emprego (...) aqui se categorizam as relações

entre população excedente e o sistema, e não os agentes ou suportes mesmos dessas

relações.” (idem).

91

Mas o que deve ser enfatizado é que, para Nun, o fenômeno da massa marginal é

decorrente do surgimento do capital monopolista, já que grandes parcelas da

população vão perdendo suas funções que desempenhavam na época do capitalismo

do século XIX – “seu papel de redutor de salários, bem como deixam de servir ao

sistema nos momentos de sua expansão” (KOWARICK, op. cit., p. 111).

Quijano (1978) se aproxima da interpretação de Nun (1978), ao entender e

argumentar que a “população marginal” não poderia ser explicada a partir do conceito

de “exército industrial de reserva”, já que não desempenhava suas funções e

representava uma massa de força de trabalho para além das necessidades do sistema

capitalista.

Já Kowarick (1975), por sua vez, também adota uma abordagem marxista para a

questão da marginalidade, mas diverge de Nun (1978) e de Quijano (1978) a partir do

questionamento da idéia de “massa marginal” ou “população marginal”, afirmando

que o fato de a população excedente aumentar, no contexto do capitalismo

monopolista, não significa que ela não tenha “funções” para o capital.

Resumidamente, o autor afirma que, embora a relação entre acumulação e exército de

reserva não seja mecânica e direta, “[t]udo leva a crer que os ‘grupos marginais’, não

obstante as transformações ocorridas no processo de acumulação, continuam

desempenhando o ‘papel’ de exército industrial de reserva e que este ‘papel’ é

decorrente do movimento contraditório, básico e necessário que opõe o trabalho ao

capital.” (ibidem, p. 123).

Assim, Kowarick (1975)54 se contrapõe a Nun (1978), afirmando a condição da

população marginal enquanto “exército de reserva” e ao entendê-la, portanto, como

um elemento fundamental para o processo de acumulação capitalista. O autor indaga,

inclusive, se o conceito “grupos marginais” é realmente adequado:

O conceito pode ser usado na medida em que defina um segmento de classe trabalhadora que se distingue do assalariado a partir de um modo

54 Kowarick (1975, p. 168) fundamenta sua análise da marginalidade no trabalho de Francisco de Oliveira (2003), “Crítica da Razão Dualista”, de 1972, para quem a persistência de culturas de subsistência na economia latino-americana não deveria ser interpretada como vestígios do passado, mas ao contrário, como sendo funcionais ao sistema capitalista que se desenvolvia. Essa funcionalidade existia já que aquelas atividades contribuíam: (i) para a redução do custo de reprodução da força de trabalho nas cidades e, portanto, para o processo de acumulação e (ii) para financiar a acumulação urbana, já que aquelas culturas de subsistência produziam um excedente que não podia ser reinvestido em si mesmo. (OLIVEIRA, 2003, p. 129). É nesse sentido, portanto, que Oliveira criticou a interpretação dualista, propondo que o sistema capitalista brasileiro fosse analisado como um todo.

92

peculiar de inserção nas estruturas produtivas, não-tipicamente capitalista, mas também não é destituído de importância no processo de acumulação. Para compreender o seu significado, é necessário analisá-lo à luz da teoria das classes sociais que implica numa contradição básica e necessária entre o capital e o trabalho (KOWARICK, op. cit, p. 173).

Dessa maneira, Kowarick (1975) rejeita tanto o dualismo da teoria da modernização

quanto essa interpretação de Nun (1978) da marginalidade. Essa dupla negação pode

ser percebida na seguinte passagem:

As massas populares presentes no mundo urbano bipartem-se em dois grandes segmentos. Um que consegue se inserir nas estruturas tipicamente capitalistas de produção. Outro que não é por elas absorvido. Mas é bom que se repita: tal colocação não implica na adoção da imagem de uma sociedade formada por duas estruturas, uma “moderna”, outra “tradicional”, que respondem a dinâmicas de acumulação distintas e opostas. Ao contrário, se nossa análise acerca da ‘teoria da marginalidade’ é correta, parece falacioso, aceitar a polaridade que retoma a dicotomia entre o campo e a cidade, transferindo-a para o contexto urbano, onde setores ‘arcaicos’ por oposição aos ‘dinâmicos’, são vistos como disfuncionais para expansão do sistema. Os grupos marginais não podem ser percebidos como integrantes de uma estrutura à parte, desvinculada do processo de acumulação imperante na sociedade. O inverso é o verdadeiro, ou seja, que eles preenchem papéis de relativa importância no processo de acumulação capitalista. (KOWARICK, op. cit, p. 145)

Mas, a despeito das divergências existentes entre esses autores, o que importa é

perceber que, de modo geral, a marginalidade é, para os marxistas, interpretada e

explicada a partir das relações sociais existentes no modo de produção capitalista; a

partir dessas relações, os autores explicam como a marginalidade é gerada, qual seu

lugar ou, ainda, qual sua função para o sistema capitalista.

Fazendo uma avaliação geral sobre as interpretações para a questão da

“marginalidade”, percebe-se que, seja do ponto de vista das perspectivas sobre a

marginalidade que seguem o modelo dual da teoria da modernização, seja pelo

enfoque marxista, é evidente que a questão social, quando tratada a partir de

“marginalidade”, mobilizava uma preocupação com os processos sociais que a

geravam, ao invés de abordá-la simplesmente a partir de seus sintomas - como é o

caso do tratamento contemporâneo a partir da “pobreza”.

Machado (1983) sugere que a noção de marginalidade, a despeito de seus limites,

levantava algumas questões importantes: “Por exemplo, como se dá a articulação dos

diferentes processos responsáveis pelas diferenciações sociais borradas pela teoria da

93

marginalidade, articulação esta que produz identidade ao menos ao nível da aparência

do fenômeno percebido?” (ibidem, p. 227)

E, de modo geral, a discussão sobre a marginalidade era uma manifestação teórica que

trazia consigo uma crítica social. Segundo Fassin (1996), o uso da noção de

marginalidade não se resumia simplesmente a uma enunciação da questão social, mas

participava de sua denúncia. A “marginalidade (...) [era] um sinal do fracasso do

projeto modernista.” (ibidem, p. 268)

Era clara, portanto, a influência do contexto do desenvolvimentismo latino-americano

nas reflexões sobre a questão social. Do lado da teoria dualista, havia uma visão mais

otimista - da teoria da modernização de Gino Germani (1973), por exemplo - sobre o

futuro das sociedades periféricas, baseada na esperança em relação ao

desenvolvimentismo, entendendo a marginalidade como um fenômeno transitório, a

ser “resolvido” no futuro. E vertente uma mais pessimista (a “teoria da

marginalidade”) que a entendia como resultado da maneira pela qual o

desenvolvimento se deu na região.

De outro lado, estava a teoria marxista que era mais crítica e pessimista, uma vez que

entendia a marginalidade como um problema gerado pelo próprio funcionamento do

capitalismo na região. Ou seja, o problema estava no próprio sistema - era preciso

reconhecê-lo. Mas, ao mesmo tempo em que era uma visão pessimista em relação ao

sistema, abria espaço para um certo otimismo em relação ao futuro, através da idéia

do conflito revolucionário, decorrente do agravamento e acentuação das contradições

sociais do sistema capitalista na região.

De modo geral, pode-se dizer que a idéia da “marginalidade” pertencia ao debate

acadêmico. Constituía um conceito “analítico” (WACQUANT, 2001) utilizado pela

pesquisa social como uma maneira de tentar compreender e explicar a questão social

das sociedades periféricas.

Já no âmbito da política pública, conduzida pela concepção desenvolvimentista, havia

a crença de que o desenvolvimento social seria produto natural do crescimento

econômico (a famosa “teoria do bolo”); a “marginalidade”, portanto, não era uma

questão. Na realidade do jogo político, aliás, era a figura do trabalhador o principal

personagem das camadas populares.

94

De fato, a figura do trabalhador (ou da “classe trabalhadora”) foi, desde princípios do

século XX – ou um pouco mais tarde, dependendo do país -, tradicionalmente um ator

chave nessas sociedades capitalistas que se modernizavam. Segundo Merklen (2005),

os “setores populares se integravam à sociedade através da Nação, adotando a

identidade de um povo trabalhador.” (MERKLEN, 2005, tradução livre, p. 120)

Se, nesse contexto, a questão social se expressou e foi entendida a partir da noção de

“marginalidade” - relacionada com interpretações preocupadas com os processos

estruturais que a geravam -, mostrar-se-á posteriormente que, a partir dos anos oitenta,

o conceito de marginalidade entra em desuso e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a

questão social (mais extensa e aprofundada) começa a ser enunciada, na região, a

partir da idéia da “pobreza”.

3. A enunciação contemporânea da questão social

3.1. Algumas considerações sobre a “nova questão social”

Se, ao longo da “era dourada”, a questão social nos países centrais esteve

minimizada55, seja pela realidade da social-democracia – políticas de pleno emprego

associadas ao Estado de Bem Estar Social, no caso dos países da Europa Ocidental56 –

seja “via os efeitos ‘conta-gotas’ do crescimento sustentado do mercado livre nos

Estados Unidos”57 (WACQUANT, 2001, p. 22), na América Latina, durante esse

período, como já se viu, a questão social foi apresentada e discutida a partir da noção

de “marginalidade”.

55 Como entende a “questão social” do ponto de vista da integração, Castel (2003) sugere que, em certos momentos, ela não está presente em algumas sociedades. Por exemplo, a sociedade até pode ter muitos pobres, mas se isso não representar uma ameaça à coesão da sociedade como um todo, a “questão social” não se coloca enquanto tal. Era o caso, por exemplo, da “sociedade salarial” – a sociedade do welfare state francês. 56 Wacquant (2001) lembra que nesse período, na França, havia uma imagem rósea da “Nova Sociedade” e afirma, citando Sinfield (apud Wacquant, p. 23), que “no decorrer dos anos 1970 não houve ‘debate sobre a pobreza na França’, nem mobilização política em torno da questão, nem política oficial para combatê-la.” A questão social era entendida como resíduo de desigualdades ou como atrasos passados que poderiam ser resolvidos com as políticas do welfare state. 57 Nos Estados Unidos, a questão social era vista como produto de deficiências individuais, mas se acreditava que esse problema tendia a retroceder e, inclusive, a desaparecer com a modernização da nação. (WACQUANT, 2001).

95

Em decorrência daquelas profundas transformações discutidas rapidamente no

primeiro capítulo – reestruturação produtiva, financeirização da economia,

transformação do papel do Estado -, a partir dos anos oitenta, a questão social é

agravada em todas as partes do mundo. Se, para os países centrais, há o surgimento de

uma “nova questão social” (ROSANVALLON, 1995), há, no mundo periférico, seu

aprofundamento e expansão.

Essa novidade, reaparecimento, ou mesmo aprofundamento da “questão social”

decorre daquelas profundas transformações, que geraram não simplesmente uma

retração do crescimento nem mesmo o fim do quase-pleno-emprego, a menos que se veja aí a manifestação de uma transformação do papel de ‘grande integrador’ desempenhado pelo trabalho. (...) a característica mais perturbadora da situação atual é (...) o reaparecimento de um perfil de ‘trabalhadores sem trabalho’ que Hannah Arendt evocava, os quais, literalmente, ocupam na sociedade um lugar de supranumerários. (CASTEL, 2003, p. 496).

Essa novidade da questão social foi comparada, por alguns autores, com a emergência

da questão do “pauperismo” decorrente das mutações que marcaram a sociedade da

nascente revolução industrial. Segundo Paugam (1996, p. 8), cada período de grandes

transformações é marcado pelo nascimento e a difusão de um novo paradigma social.

A revolução industrial e suas conseqüências sobre o social provocaram indignação e

novas indagações nos observadores da época: o “pauperismo” caracterizava a entrada

na sociedade industrial.

Assim, as novas transformações pelas quais passaram as sociedades nos últimos trinta

anos, influenciaram também os modos pelos quais as sociedades se pensam, se

representam, formulam e enunciam os problemas a serem resolvidos. Desta maneira,

com o enfraquecimento do consenso em torno das políticas de bem-estar e de pleno

emprego, a fratura do modelo de sociedade - “a sociedade salarial”, nos termos de

Castel (2003) - da social-democracia e a ascensão do neoliberalismo – e de suas

tentativas em desvalorizar politicamente os problemas relacionados às políticas de

welfare -, a própria auto-imagem das sociedades começa a ser abalada e, com isso,

surgem mudanças no modo pelo qual a questão social é formulada.

Diante da magnitude do novo problema (desemprego estrutural, “desestabilização dos

estáveis”, precarização do trabalho, etc.), o eixo do debate político e acadêmico sobre

o social se transforma. Nos países centrais, o debate deixa de ser sobre a desigualdade

96

social ou sobre uma pobreza residual - como era tratado nos prósperos anos dourados

- e se desloca, passando a receber novos tratamentos.

Mas é claro que o social não vem sendo tratado do mesmo modo urbi et orbi. Ao

contrário, em cada lugar, a questão social vem sendo debatida à sua maneira, uma vez

que existe uma variedade na maneira de conceber o mundo social – o que reflete

realidades sociológicas diferentes e, ainda, tradições intelectuais e políticas distintas

(FASSIN, 1996).

Embora o foco deste trabalho seja o atual tratamento dedicado à questão social na

América Latina, abordar-se-á sucintamente o modo como vem se desenvolvendo o

debate em outros contextos. Tomar-se-ão aqui, como exemplos, o enfoque dado à

nova questão social nos Estados Unidos, que parte da idéia de underclass, e o debate

na França, onde ele gira em torno da noção de exclusão. Finalmente, será tratada com

maior atenção a enunciação do social na América Latina, onde vem ganhando

centralidade uma idéia específica de “pobreza”.

É importante ressaltar que o fato de aqui ser apontada apenas uma abordagem para a

questão social (underclass, exclusão ou pobreza) para cada uma dessas realidades

(Estados Unidos, França e América Latina, respectivamente) não significa que sejam

os únicos modos usados para abordá-la, mas apenas que são os mais utilizados em

cada contexto.

3.2. Os Estados Unidos e o debate sobre a underclass

Nos trinta anos que seguiram a Segunda Guerra Mundial, a questão social não

representava um grande problema para a sociedade americana. A despeito de ela

sempre ter existido nos Estados Unidos, havia a idéia de que a pobreza existente era

algo residual. O discurso público dominante era o de que a pobreza não tinha um

lugar no imaginário social daquele momento (CASTEL, 1978).

É significativo que nessa época o livro “A Sociedade da Abundância” (The Affluent

Society), de 1958, de John K. Galbraith (apud TRATTNER, 1974) tenha se tornado

um “best-seller”. Galbraith sugeria nesse livro que “a civilização americana tinha

essencialmente resolvido os problemas de escassez e pobreza da era dourada. Ele não

97

disse que não havia absolutamente nenhuma pobreza, (...) [mas a definiu] como um

problema minoritário.” (TRATTNER, op. cit, p. 251) Problema este que seria logo

resolvido, através daquela própria “abundância”. Era simplesmente uma questão de

tempo... O presidente Lyndon Johnson calculava, por exemplo, que – antecipando os

resultados de sua “Guerra à Pobreza”, lançada em 1964 - os Estados Unidos a

eliminariam por volta de 1976 (WACQUANT, 2001, p. 22).

Mas Castel (1978) reparou que não se tratava de uma negação da existência da

miséria, por parte do discurso dominante que exaltava a “sociedade da opulência”. O

fato era que não a entendia enquanto social, ou seja, ela não tinha um “estatuto” na

sociedade americana. Como não era uma questão, não precisava ser problematizada

nem gerava grandes preocupações. Era vista apenas como o inverso, a sombra, um

acidente, enfim, algo exótico, se comparado com a “normalidade” da sociedade

americana.

Essa imagem construída por oposição – e por negação – ao “normal” não existia

apenas enquanto efeito do discurso dominante, mas ela era, sobretudo, efeito do

próprio

conjunto de práticas de assistência que negam ao pobre um estatuto social. (...)[Na sociedade norte-americana,] a pobreza não existe, existem apenas pobres. Ou seja, pessoas responsáveis por sua pobreza. A miséria não é uma conseqüência estrutural da organização social, ela é (...) um somatório de indivíduos dos quais cada um leva consigo a razão de seu fracasso. (CASTEL, 1978, p. 48)

Desse modo, nos Estados Unidos, a pobreza apenas assume um caráter “social” no

que diz respeito aos problemas que ela pode gerar para a sociedade; ela não é “social”

em sua origem nem em seu significado, uma vez que diz respeito apenas àquele

indivíduo que é “pobre”. E, nessa lógica de culpabilização da vítima - Blaming the

Victim (Ryan apud Castel, 1978) -, as políticas sociais se resumem a apenas uma

gestão social das deficiências individuais. E é esse, então, o fundamento das políticas

do bem-estar norte-americano, o qual se inscreve no modelo “liberal” (ou residual),

descrito por Esping-Andersen (1990).

Quando os movimentos pelos direitos civis dos anos sessenta ganham força e

mostram que a realidade dos negros não era simplesmente um detalhe ou um resíduo

da sociedade americana, aquela noção idealizada da sociedade americana começa a

98

ser questionada. Passa-se a entender a questão como conseqüência da existência de

uma forte relação entre falta de direitos civis e pobreza (TRATTNER, op. cit, p. 254).

O debate passa a ser fortemente marcado pela idéia de “igualdade de oportunidades”

dos liberais e, consequentemente, a insuficiência de atributos individuais (que era

vista como a determinante da pobreza) começa a ser entendida também como

conseqüência de uma distribuição não eqüitativa das oportunidades. Assim, a pobreza

e a injustiça do sistema passam a ser explicadas por essa desigualdade de

oportunidades.

Para atuar sobre a desigualdade de oportunidades seriam necessárias políticas voltadas

à capacitação e qualificação dos indivíduos – ou seja, políticas educacionais e de

qualificação profissional. Uma vez “corrigido” o sistema e alcançada a “igualdade de

oportunidades”, a “pobreza” que ainda existisse se justificaria pela falta de esforço ou

capacidade dos indivíduos.

Por outro lado, aquele otimismo em relação à sociedade americana foi questionado

por Gunnar Myrdal (apud WACQUANT, 2001, p. 96), em seu livro Challenge to

Affluence, de 1963, uma referência direta e contrária à idéia de The Affluent Society de

Galbraith. Naquele livro, Myrdal lança mão da noção de “underclass”, referindo-se a

existência de uma camada indivíduos que tendiam a se tornar mão-de-obra

inutilizável - um estrato supérfluo e miserável que era conseqüência dos progressos da

produtividade e da generalização do acesso à formação profissional (idem). Em última

instância, seu objetivo era mostrar que a existência da pobreza não seria absorvida

pelo crescimento econômico da sociedade norte-americana e, assim, sugerir que ela

estava vinculada a questões estruturais.

Entretanto, Wacquant (2001) demonstra que o conceito de “underclass” forjado por

Myrdal – cujo conteúdo fazia referência direta ao tema do desemprego e a questões

mais estruturais – foi muito pouco utilizado nos trabalhos de pesquisadores. A grande

utilização do conceito de underclass só se manifesta a partir dos anos oitenta, com um

significado bastante distinto daquele a que Gunnar Myrdal se referia.

O termo underclass começa a se popularizar através de sua ampla utilização em

artigos das revistas Newsweek, Fortune, Reader’s Digest, dentre outras, paralelamente

à guerra ao welfare state americano conduzida pelos governos conservadores de

Ronald Reagan e George Bush (ibidem, p. 98).

99

Por influência dos discursos midiáticos, ganhava força um novo conteúdo para a

noção de underclass: as dimensões comportamental e racial começaram a se tornar

cada vez mais dominantes. As novas abordagens para a underclass passam a estar

preocupadas em descrever estilos de vida, valores e “deficiências” comportamentais

de alguns indivíduos. É nesse momento que a underclass foi definida como uma

“coleção de comportamentos anti-sociais” (WACQUANT, 1996, p. 253).

Pierson e Castles (2002) afirmam que, no que diz respeito às críticas ao welfare state

norte-americano, Charles Murray esteve dentre os acadêmicos que sustentaram e

reforçaram as críticas “pela direita”, associando as políticas de welfare com o

aumento da pobreza e da criminalidade. “Murray foi fortemente identificado com a

idéia de que instituições de welfare state tendem a produzir uma ‘underclass’ social

ligada à criminalidade”. (PIERSON e CASTLES, tradução livre, 2002, p. 3)

De fato, Murray (2002) propõe uma leitura peculiar para os resultados da “Guerra à

Pobreza”. Embora os dados oficiais mostrassem que a pobreza tinha diminuído, o

autor argumenta que ela na verdade cresceu a partir do momento em que aumentaram

os gastos do governo. Murray defende que a pobreza não deve ser avaliada pela renda

– como faziam as estatísticas oficiais – mas a partir do conceito de “pobreza latente”.

Este conceito refere-se àquelas pessoas que seriam pobres se não tivessem a ajuda

governamental, na medida em que elas constituiriam uma “população dependente”

dessa renda. E, a partir dessa idéia de pobreza latente, o autor aponta para os efeitos

trágicos das políticas da War on Poverty, tais como os de desestimular as pessoas ao

trabalho, desestruturar as famílias estáveis, estimular atividades ilegais. Para ele, esses

efeitos faziam com que a “pobreza latente” aumentasse, uma cultura da dependência

se desenvolvesse e a underclass se formasse. Em outras palavras, Murray argumenta

que as políticas de War on Poverty tiveram como efeito a formação de uma

underclass.

Assim, aos poucos foi se popularizando a idéia - oriunda da crítica “pela direita” – de

que as políticas de bem-estar para pobres (residuais), ao invés de ajudar a amenizar a

questão da pobreza, haviam intensificado esse problema, já que os programas sociais

implementados teriam supostamente criado dependência em seus beneficiários,

corroído sua vontade de trabalhar, estimulado a desorganização das famílias e,

inclusive, aumentado à propensão à criminalidade.

100

Com isso, segundo Wacquant (WACQUANT, 1996, p. 254), a noção de underclass

passa a representar “a criminalidade violenta, (...) a depravação moral dos pobres (...)

e o peso fiscal julgado intolerável dos programas sociais instaurados sob a pressão dos

movimentos reivindicativos dos anos 1960” (idem) e a referir-se a “uma ladainha de

‘comportamentos’ tidos como contrários à ética americana. Sua localização

geográfica fixou-se no gueto e sua dimensão racial se enrijeceu ao mesmo tempo em

que se eufemizou: o termo condena os negros pobres, sem efetivamente se referir à

sua dimensão cor.” (idem)

Frente à confusão que envolve o debate sobre a underclass, Wacquant (2001) levanta

algumas questões que o ajudam a argumentar que esse termo é uma “palavra

perigosa”. Dentre essas questões, o autor afirma que: (i) a noção de underclass é uma

expressão daquela reviravolta ideológica (à direita) ocorrida nos EUA; (ii) seus

critérios definidores são múltiplos, imprecisos e heterogêneos – essa indeterminação

seria uma das fontes de sua popularidade, já que “permite aos que a invocam

redesenhar à vontade as fronteiras do grupo conforme seus interesses ideológicos”

(ibidem, p. 104) e, ainda, (iii) ao ser focalizada apenas a underclass, a importante

proliferação das populações em abandono (de todas as cores e origens) - resultante da

reestruturação em curso do capitalismo - acaba sendo deixada de lado.

Por fim, o autor conclui que o rótulo de underclass não é capaz de apresentar

nem a consistência morfológica nem a ‘homogeneidade moral’ e a ‘tendência à unidade’ que estabelecem um coletivo social, segundo Durkheim. (...) a underclass é, na melhor das hipóteses, uma classe-imagem que exibe a todos os que a ela não pertencem um espetáculo assustador de tudo o que todo bom norte-americano deve esforçar-se para não ser (ibidem, p. 105).

101

3.3. O debate francês sobre a exclusão social

A partir dos anos oitenta, o debate francês sobre a “nova questão social” passa a ser

configurado a partir da idéia de precariedade e de “nova pobreza” (PAUGAM, 1991),

e, sobretudo nos anos noventa, em torno da noção de “exclusão”, que se tornou o

centro do debate público sobre a questão social na França. Essa centralidade do termo

“exclusão” é apontada por Serge Paugam:

Ela [a exclusão] nutre, (...) de modo quase cotidiano, as discussões sobre o futuro social de nosso país [França] e contribui (...) à renovação dos modos de intervenção voltados para as populações julgadas desfavorecidas. (...) A exclusão é (...) o paradigma a partir do qual nossa sociedade [francesa] toma consciência dela mesma e de suas disfunções, e procura, às vezes na urgência e na confusão, soluções aos males que a atormentam (PAUGAM, 1996, tradução livre, p. 7).

O termo “exclusão” aparece pela primeira vez no início dos anos setenta com o livro

Les Exclus, de 1974, de René Lenoir, cujo objetivo era o de denunciar a realidade dos

“esquecidos do progresso”: prisioneiros, doentes mentais, alcoólatras, deficientes, etc.

(DONZELOT, 1996, p. 88). Tratava-se de uma “outra França” - outro possível título

para o livro de Lenoir, segundo Paugam (1996) -, na qual eram evidentes os

problemas dos excluídos (les exclus), que, a despeito do caráter “dourado” do período,

não deixavam de existir.

A noção de exclusão se propunha a designar a existência de uma população mantida à

margem do progresso econômico. Assim, o livro de Lenoir mostrava que, a despeito

do progresso e da abundância, a sociedade francesa não conseguiu bloquear certos

mecanismos de geração de miséria.

Contudo, se, por um lado, a evidência da exclusão gerava “amargas desilusões”

(ARON apud PAUGAM, ibidem, p. 9) - a negação do destino esperado por (e para)

todos -, por outro, a “exclusão social” apenas representava um fenômeno residual

formado pelos handicapés sociaux, ou seja, os “esquecidos” pela sociedade. É bom

lembrar que, embora fosse um problema residual, a exclusão não se tratava, para

Lenoir, de um fenômeno ou uma noção de ordem individual, tal como se configurava

o debate sobre a pobreza nos Estados Unidos. Sua origem era apontada como social e

102

deveria ser investigada nos próprios funcionamentos da sociedade francesa

(PAUGAM, 1996). Mas, de todo modo, era uma questão residual.

Tentando sintetizar um pouco, é possível afirmar que, no período “dourado",

momento no qual a questão social se encontrava minimizada - uma vez que existia a

possibilidade de se pensar em pleno emprego, a ampla garantia e respeito aos direitos

sociais, etc. –, o debate sobre o social se apresentava de duas formas. Por um lado, a

crítica social - verbalizada por uma esquerda fortalecida e organizada - girava em

torno dos debates que apontavam para as formas capitalistas de dominação e de

exploração como geradoras das desigualdades sociais, etc. - com o tema da

“emancipação” sempre presente nas discussões. E, por outro lado, a questão social

aparece como exceção ou resíduo, através da idéia de excluídos enquanto “esquecidos

do progresso”.

A partir daquelas transformações já ressaltadas e do conseqüente agravamento dos

problemas sociais, o debate sobre o social sofre uma mutação e deixa de estar

centrado na questão das desigualdades, da exploração, da dominação ou, ainda, na

questão do “resíduo” e passa a girar em torno das idéias de precariedade e da “nova

pobreza” (e, mais tarde, “exclusão”).

Paugam (ibidem) explica que o debate na França passa a se organizar em torno desses

‘novos pobres’ e a nova preocupação passa a ser a de como tornar possível a sua (re-)

inserção no sistema econômico, num contexto de desemprego estrutural. Neste

momento, a RMI58 - instituída em 1988 - entra em cena como a política social

destinada a enfrentar – ou melhor, amenizar - o novo problema.

A partir do início dos anos noventa, o debate sobre a RMI e sobre políticas de

inserção se intensifica e, paralelamente, a noção de exclusão social se expande no

debate público e se torna uma noção chave para as reflexões e as polêmicas sobre a

nova malaise social. (DONZELOT, 1996). Durana (2002) também associa a aparição

e o uso generalizado da idéia de “exclusão social” - nos Estados europeus em geral -

ao aumento das políticas assistencialistas concebidas “para prestar ajuda ou proteção a

quem não a obteve por outros modos” (DURANA, 2002, p. 2).

58 A RMI (Revenu Minimum d’Insertion) é uma “renda mínima de inserção” destinada aos residentes na França cujos rendimentos sejam inferiores a um determinado piso.

103

Donzelot (1996) argumenta que a constante preocupação com a “luta contra

exclusão”, além de referir-se a um novo problema social, serve, sobretudo, para

mascarar uma transformação nas formas de intervenção social. Isto pode ser

percebido inclusive ao se observar a mutação que sofre o próprio significado de

“exclusão”.

Percebe-se que, no momento anterior (era dourada), as preocupações das políticas de

intervenção giravam em torno do processo de produção (buscando o pleno emprego) e

da noção de cidadania (e a conseqüente garantia de direitos sociais), e a noção de

“exclusão” designava apenas aquele resíduo social formado pelos “esquecidos do

progresso” – a noção original para les exclus, de Lenoir.

Tudo se transforma no momento em que aqueles temas prediletos das políticas

públicas começam a se enfraquecer diante das transformações estruturais e a ser

criticados com o avanço do neoliberalismo. As políticas deixam de estar voltadas para

o pleno emprego e passam a se orientar pelo tema da “inserção”, ou ainda, da

exclusão. Esta última, por sua vez, muda de conteúdo, a partir dos anos noventa: deixa

de significar aqueles “esquecidos” do progresso e passa a representar as “vítimas” da

nova ordem sócio-econômica. E essas vítimas não são mais os marginais ou os

handicapés sociaux, mas sim “uma população em plena expansão de ‘normais

tornados inúteis’ a essa ordem, uma população [que passa a representar] (...) o novo

espectro que veio assombrar as nações desenvolvidas”. (DONZELOT, tradução livre,

ibidem, p. 89). Assim, ao mesmo tempo em que o termo exclusão ganha força e se

torna central para o debate público, seu significado se transforma.

Boltanski (1999) ressalta que, no âmbito específico das ciências sociais, a maneira de

articular e formular seus questionamentos também sofreu mutações:

as análises em termos de classes, categorias, grupos profissionais, etc., tiveram um papel central no desenvolvimento (...) da sociologia francesa. (...) Ora as análises em termos de classes se tornaram muito mais raras desde o início ou meados dos anos 80, ou seja, paradoxalmente, durante um período em que as mudanças muito importantes que afetaram a atividade econômica (...) [mostram os] efeitos que puderam exercer sobre as classes e as relações entre classes. (BOLTANSKI, 1999, tradução livre, p. 383).

E o autor continua:

104

a literatura abundante acumulada durante os dez últimos anos sobre organizações e trabalho (...) deixa cada vez mais essa questão na sombra. Nós assistimos de fato a uma transformação do debate social: estruturado em torno do tema das desigualdades até fim dos anos 70, ele pouco a pouco se deslocou para [a temática] (...) da exclusão. (idem).

Contudo, tendo em vista as implicações políticas dessa transformação, pode-se

afirmar que não se trata de um simples deslocamento de enunciado. De fato, o novo

“consenso” que gira em torno da noção de exclusão traz consigo o desmoronamento

de certos questionamentos que eram, outrora, de suma relevância. Questionamentos

estes, é bom lembrar, que estimulavam tensões e antagonismos na sociedade. É o que

ocorria, por exemplo, com a noção de “exploração” - o centro da crítica social durante

todo o século XX.

Com o abandono do quadro teórico geral das “classes” e a progressiva centralidade da

noção de exclusão (como contrário de inclusão) enquanto representação das mazelas

do mundo social, a noção de “exploração” foi também sendo deixada de lado, aos

poucos, pelos debates da teoria social. (BOLTANSKI, ibidem, p. 425)

Essa ausência de uma crítica social mais profunda (como a sugerida pela noção de

“exploração”) no debate francês contemporâneo pode ser percebida na maneira pela

qual a “exclusão” tem sido entendida. Na maior parte das análises, ela é vista como

um estado (dos excluídos), e não como um processo social. O uso da noção de

exclusão acaba sendo frequentemente associado - seja no debate público em geral,

seja no debate acadêmico – a um simples esforço descritivo dos “excluídos”,

procurando traçar suas variadas formas de manifestação.

Segundo Procacci (1996a), a noção de exclusão deve ser criticada porque ao enfatizar

a condição do excluído, ela obscurece o processo social que a gera. Assim, ao mesmo

tempo em que a ênfase recai na análise de trajetórias dos excluídos – isto é,

quantifica-se e descreve-se sua condição -, em vez de identidades coletivas, por

exemplo, toma-se como pressuposta uma sociedade dual (dentro-fora).

Consequentemente, a “exclusão” é entendida simplesmente como aquilo que está “de

fora” – uma realidade aparentemente autônoma -, e não enquanto resultado de um

processo social.

De fato, se a ênfase recaísse sobre a dinâmica social, perceber-se-ia que a questão

social não está “de fora”, mas no interior dessa dinâmica, produzida e reforçada por

105

suas instituições. E é justamente isso que a “exclusão” ajuda a mascarar. (BALIBAR

apud PROCACCI, 1996a)

Boltanski (1999) critica a noção de exclusão a partir do mesmo raciocínio,

argumentando que não faz sentido nenhum apreender “os excluídos” como uma

categoria, já que eles são, no fim das contas, definidos não pelo que são, mas por sua

negatividade. Assim, não ajuda nem na compreensão dos processos geradores de

exclusão, nem como fonte constituidora de uma força social a ser mobilizada – já que

os “excluídos” não têm um interesse comum nem representam uma agregação ou

identidade coletiva. (BOLTANSKI, op. cit., p. 735)

Entretanto, ao ser inespecífica, essa noção tem, ao mesmo tempo, mais facilidade de

se generalizar. Ela pode ser utilizada para explicar ou caracterizar situações ou

populações das mais diversas, que muito pouco têm em comum. (PAUGAM, 1996, p.

17) Essa abrangência, generalidade e banalização da exclusão podem ser percebidas

nos textos sobre “exclusão” reunidos no livro L’Exclusion – l’État des Savoirs,

organizado por Serge Paugam, cujo objetivo é reunir trabalhos de áreas variadas que

ajudem a esclarecer o conceito de exclusão – o novo “paradigma societal”. (ibidem, p.

7)

Muitos dos trabalhos ali presentes, embora se proponham a discutir o tema da

“exclusão”, têm a necessidade de: (i) relativizar essa noção – dizendo que é fluida,

vaga, excessivamente ampla, etc. -; (ii) explicitar e definir bem a qual temática a ser

abordada sob o rótulo de “exclusão”59 – ou seja, na verdade, os artigos têm como

abordagem central outros temas, que não o da exclusão, mas que se “encaixam” nesse

rótulo; e, ainda, (iii) criticar (ou mesmo rejeitar) a noção de exclusão, como é o caso

de Castel (1996) e Procacci (1996b).

Michel Messu (MESSU, 1997) critica fortemente o esforço de Paugam (op.cit.),

ressaltando uma série de paradoxos existentes na coletânea L’Exclusion – l’État des

Savoirs. O primeiro paradoxo consistiria, segundo Messu, em indicar que o objetivo

comum é o de esclarecer a noção de “exclusão”, enquanto que a maior parte dos

59 Ao lado do objetivo inespecífico de tratar da “exclusão”, sempre há um objetivo central. Paugam (1996) aponta três grandes orientações ou preocupações teóricas que estão presentes nos artigos do livro: (i) reprodução das desigualdades; (ii) enfraquecimento dos laços sociais; (iii) atuais limites das políticas sociais.

106

autores participantes do livro a problematizam ou a rejeitam (rejeição pela ênfase em

sua inespecificidade ou pela recusa de sua utilização).

O segundo [paradoxo] refere-se [ao fato de] as tentativas de elucidação da noção que se encontram ao longo dos capítulos não serem cumulativas – ou ao menos não foram acumuladas na síntese do editor. Ao contrário, um outro paradoxo, esse último se afasta das contribuições que ele reuniu, para propor uma perspectiva pouco convincente. Enfim, a ambição de clarificação proposta na introdução é abandonada na conclusão. (MESSU, tradução livre, 1997, p. 148)

Frente à generalidade dessa noção, percebe-se que ela acaba servindo para designar

quase tudo, não tendo, portanto, muito valor do ponto de vista das ciências sociais.

Assim, se, por um lado, “exclusão” tenta ser uma noção crítica – na medida em que

procura apontar para os novos contornos das mazelas sociais existentes no capitalismo

contemporâneo -, por outro lado, é falha ou inespecífica no que diz respeito à

denúncia dos processos sociais geradores dessas mesmas mazelas. É o que aponta, por

exemplo, Claude Dubar (autor participante da obra L’Exclusion – l’État des Savoirs),

referindo-se a Jean-Marie Delarue, na seguinte passagem:

[A palavra exclusão] representa geralmente uma facilidade de linguagem que esconde uma dificuldade de análise. (...) trata-se de uma noção que faz um amálgama entre situações muito diferentes e tende a “abandonar a questão das relações de produção e os objetivos coletivos.” (DELARUE apud DUBAR, 1996, tradução livre, p. 111)

Como a “exclusão” aparece na discussão enquanto situação e não como resultado de

um processo social - tal como sugere, por exemplo, o conceito de “desfiliação”60, de

Robert Castel (2003) -, Boltanski (1999) afirma que esse debate acaba por reforçar,

por um lado, o enfraquecimento do discurso da crítica social tradicional que se

fundamentava na denúncia das causas das desigualdades sociais (Boltanski, op. cit., p.

397), e, por outro, se mostra sem condições de propor uma teoria crítica capaz de

interpretar satisfatoriamente a sociedade atual e de transformar a indignação social

num aparelho argumentativo para a construção de uma nova crítica social.

Messu (1997) sustenta que aquelas considerações feitas por Loïc Wacquant (1996)

sobre a underclass nos Estados Unidos – apontadas na seção anterior – se aplicam

60 Castel (2003) prefere utilizar o termo “desfiliação”, uma vez que a noção de exclusão: “é estanque. Designa um estado, ou melhor, estados de privação. Mas a constatação de carências não permite recuperar os processos que engendram essas situações.” (p. 26) A idéia de “desfiliação”, segundo o autor, permite que se reconstrua o processo social e remete, ao mesmo tempo, aos desafios da integração social.

107

“mutatis mutandis, à “exclusão” na França. A underclass, mostra o autor [Wacquant]

retraçando a história tumultuosa da noção, engendra uma grande ‘indeterminação

semântica’” (MESSU, tradução livre, ibidem, p. 159). E, com isso, Messu (ibidem)

sugere que o peso exercido pelo senso comum (influenciado pelo discurso midiático)

sobre as noções de exclusão e de underclass é tal que acaba fazendo delas “pseudo-

conceitos”. Ou seja, são termos que não tem valor cognitivo e que, por isso, devem

ser descartados por uma sociologia que pretenda ser “rigorosa” e que se recuse a se

reduzir a uma “sociologia do senso comum”. (ibidem, p. 161)

Embora o debate sobre a exclusão social tenha nascido na França, a atual utilização

desse conceito não é de exclusividade francesa. O protagonismo das instituições

européias no ressurgimento do debate sobre a nova questão social constitui, segundo

Durana (2002), o antecedente do surgimento e generalização do conceito de exclusão

social nas discussões sobre políticas sociais na Europa como um todo. Não cabe aqui

um estudo pormenorizado sobre a utilização desse conceito nessas instituições, mas

vale a pena apontar e sublinhar a relevância e influência que têm as suas discussões

sobre os debates (acerca da questão social) dentro de cada realidade nacional,

principalmente no âmbito das políticas públicas.

3.4. América Latina: o discurso sobre a “pobreza”

Observou-se até aqui que, no período desenvolvimentista, o debate sobre a questão

social na América Latina girava em torno da discussão sobre a “marginalidade”.

Simultaneamente, a questão social na Europa e nos Estados Unidos tinha sido até

certo ponto “resolvida”, uma vez que se vivia num contexto em que o pleno emprego

era tido como meta alcançável e as políticas de bem-estar eram bastante valorizadas

(principalmente, nos países europeus, dado que nos EUA o sistema de welfare sempre

foi “residual”).

Viu-se também que, a partir dos anos oitenta, há uma preocupação em se explicar e

entender a “novidade” social decorrente daquelas transformações já ressaltadas no

primeiro capítulo. Nos países do centro do sistema, essa novidade se apresenta

enquanto reaparecimento de algo que havia sido, em grande medida, superado pela

realidade das sociais-democracias européias ou, ainda, como o surgimento de um

108

“corpo estranho” que se contrapõe ao padrão de sociabilidade norte-americana. Para

expressá-la, novos termos passam a ser utilizados, tais como “exclusão” e underclass.

Já na América Latina, pode-se dizer que só há “novidade” na medida em que o

problema foi aprofundado e expandido, pois a questão social sempre foi bastante

significativa na região. Mas, a despeito disso, percebe-se também na América Latina

um deslocamento no modo de enunciar a questão social: enquanto no período

desenvolvimentista – sobretudo anos sessenta e setenta - a questão social era colocada

em termos de “marginalidade”, a partir dos anos oitenta e, sobretudo, nos noventa -

em tempos de neoliberalismo e de hegemonia dos organismos internacionais - a

questão social passa a ser expressa a partir de uma idéia bastante específica da

“pobreza”.

Embora a idéia de pobreza tenha uma longa história, não se pode negar que ela tem

conquistado notória centralidade e assumido um conteúdo bastante específico,

sobretudo nos últimos vinte anos. Para desenvolver um pouco essa idéia da

especificidade da atual utilização do conceito de “pobreza”, é de grande utilidade que

se parta da afirmação feita por Koselleck (1992) acerca da novidade dos conceitos: “A

história dos conceitos mostra que novos conceitos, articulados a conteúdos, são

produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas possam ser as mesmas.”

(KOSELLECK, 1992, p. 140)

Nesse sentido, o autor argumenta que a utilização de uma mesma palavra - em

contextos variados, e, consequentemente, com significados e conteúdos diversos -

pode representar a utilização de conceitos diferentes ou novos conceitos.

Para desenvolver essa idéia, Koselleck (1992) dá o exemplo de societas civilis. Esta

expressão aparece em Cícero como uma tradução para o latim do conceito de

koinonia politike (a Política), uma formulação de Aristóteles. Koselleck afirma que

embora a palavra permaneça a mesma (como tradução daquele conceito), o fato de ela

ser utilizada num quadro histórico totalmente diverso da realidade da pólis grega -

com sua comunidade de cidadãos, etc. – faz com que seu conteúdo se altere

substancialmente, reafirmando, portanto, o caráter único dos conceitos.

A distinção que ele faz entre koinonia politike e societas civilis (a despeito de esta

última ser uma tradução daquela) fica clara na seguinte passagem: “O que portanto é

uma societas civilis depende do momento em que o termo é empregado, se no

109

primeiro ou quarto século depois de Cristo. Isto significa assumir sua variação

temporal, por isso mesmo histórica, donde seu caráter único (einmalig) articulado ao

momento de sua utilização.” (KOSELLECK, 1992, p. 138)

Assim, de uma mesma palavra, um novo conceito pode ser forjado e, portanto, “ele é

único a partir de uma nova situação histórica que não só engendra essa nova

formulação conceitual, como também poderá se tornar através dela inteligível.”

(ibidem, p. 140)

Articulando com a discussão anterior, pode-se afirmar que, embora as palavras

exclusão e underclass sejam pré-existentes ao “boom” de sua utilização, elas

acabaram constituindo novos conceitos, na medida em que seus atuais conteúdos são

diferentes de seus significados originais, e dizem respeito a um contexto bastante

específico, a partir do qual são definidos e reforçados.

O mesmo pode se afirmar sobre a palavra “pobreza”. Embora essa palavra tenha

sempre existido na história da humanidade, ela hoje assume um conteúdo e um

significado específicos, que dizem respeito ao mundo contemporâneo, no qual o

ideário neoliberal tem se mostrado hegemônico. Assim, se no contexto do

desenvolvimentismo latino-americano a nação era composta por um povo trabalhador

(MERKLEN, 2005) e sua questão social era expressa em termos de “marginalidade” e

o conteúdo dessa idéia estava diretamente relacionado a esse contexto, pode-se dizer

que hoje não o é mais.

Diante do agravamento das mazelas sociais, decorrente do processo de reestruturação

produtiva e das políticas neoliberais de ajuste propostas pelos organismos

internacionais e implementadas na América Latina, há uma renovação da preocupação

– de governos, pesquisadores, organismos internacionais, organizações não-

governamentais - com a questão social expressa agora em termos de “pobreza”.

Segundo Merklen:

Os setores populares que tinham levado meio século para se constituir como classe trabalhadora sob a identidade de um povo trabalhador, se converteram em pobres no espaço vinte anos. (MERKLEN, tradução livre, 2005, p. 121)

A partir desse “deslizamento da problemática do trabalhador à do pobre”

(MERKLEN, 2003; 2005), os problemas sociais deixam de ser tratados enquanto tais

- como o alto nível de informalidade do trabalho, o aumento do desemprego,

110

precarização do emprego –, inclusive, sem se referir às atuais formas de exploração e

de dominação das classes populares. Com isso, eles acabam sendo sintetizados e

tratados pelo termo “pobreza”, cuja “resolução” é entendida simplesmente como uma

redução da quantidade de pobres no mundo.

Embora a noção de “exclusão” também tenha sido relativamente incorporada ao

debate latino-americano, é a noção de “pobreza” que vem se constituindo como o eixo

central da enunciação da questão social na região.

Loïc Wacquant (2001, p. 10) faz uma distinção entre as noções de “conceito

folclórico” e “conceito analítico” e afirma que os conceitos folclóricos são aqueles

usados pelos administradores públicos, pelas autoridades urbanas, pela população,

etc., enquanto que os conceitos analíticos são aqueles que a pesquisa social deve se

preocupar em construir para desvendar a “maquiagem” da sociedade, para assim

poder compreendê-la. De modo geral, é possível sugerir que a noção de “exclusão”61

estaria mais inserida no debate acadêmico, sobretudo nas ciências sociais, ou seja,

como “conceito analítico”, enquanto que a noção de “pobreza” tem ganhado enorme

centralidade tanto quanto “conceito folclórico”, como quanto “conceito analítico”,

num debate que vem sendo fortemente influenciado por economistas.

Nesse novo contexto, a questão social é discutida a partir de duas preocupações

centrais sobre a “pobreza”: (a) definir e mensurar a pobreza, preocupação que nasce

nos anos oitenta e (b) propor medidas voltadas ao “combate à pobreza”, tema que

emerge com força a partir dos anos noventa e ao qual os organismos internacionais

têm se dedicado ultimamente.

Embora a preocupação de definição e mensuração da pobreza tenha aparecido antes

da temática da “luta contra a pobreza”, percebe-se que hoje essas duas preocupações

acabam se reforçando mutuamente. Na medida em que se propõem políticas

focalizadas de combate à pobreza, é cada vez mais preciso definir com maior precisão

e estimar qual o tamanho de seu público-alvo – ou seja, o número de “pobres” -; por

outro lado, quanto mais se criam métodos específicos de definição e mensuração da

pobreza, vai se tornando legítimo o debate pautado pelas cada vez mais “necessárias”

políticas voltadas para os pobres. 61 Segundo Nascimento (1994), os dois maiores divulgadores da idéia de exclusão social no Brasil foram Helio Jaguaribe e Cristóvão Buarque. Posteriormente, o tema foi discutido também em outros trabalhos, como é o caso de Escorel (1999).

111

Diante do aprofundamento dramático da questão social, começam a ser criadas

múltiplas metodologias para definir e mensurar a pobreza e, na medida em que as

políticas de “combate à pobreza” se tornam hegemônicas enquanto proposta de

intervenção sobre o social – como se verá mais à frente -, esses critérios de definição

e mensuração da pobreza se desenvolvem continuamente.

De fato, atualmente, a maior parte da pesquisa sobre pobreza está concentrada na

mensuração do tamanho da pobreza e em quem são os pobres62. Se o objetivo agora

consiste nisso, e não tanto em explicar as causas da questão social, percebe-se que a

questão social vai sendo reduzida a um problema fácil e simplesmente diagnosticado

pela “técnica”. A partir de certa definição, contam-se os pobres. Para desempenhar a

nova tarefa, são propostos métodos diversos - cada vez mais refinados - tanto pelos

organismos internacionais (cada organismo tem o seu próprio método) quanto por

economistas da academia (que, frequentemente, possuem algum tipo de vínculo com

tais organismos).

Embora o conceito de pobreza esteja geralmente relacionado com a idéia de carência,

penúria, ausência ou falta de algo, privação, há ênfases diferenciadas quando o

objetivo é definir quais são os elementos capazes de identificar e diagnosticar uma

dada situação como de pobreza. Segundo Barros (2001): “não pode ser definida de

forma única e universal, contudo, podemos afirmar que a pobreza refere-se a situações

de carência em que os indivíduos não conseguem manter um padrão mínimo de vida

condizente com as referências socialmente estabelecidas em cada contexto histórico”.

(BARROS, 2001, p. 2)

A forma mais simples de definir a pobreza baseia-se em medidas monetárias de

pobreza, que toma a renda do indivíduo como parâmetro. Segundo Salama e

Destremau (1999), a “pobreza monetária” pode ser medida de maneira absoluta e de

maneira relativa.

A pobreza absoluta representaria a insuficiência de renda do indivíduo para se

reproduzir, ou seja, a renda do indivíduo é inferior a um patamar de rendimentos

capaz de satisfazer condições mínimas de sobrevivência. Merklen (2005) lembra que

já “em 1979 a CEPAL publica um importante trabalho de Oscar Altimir [“La 62 Por exemplo: Pobreza no Brasil. Afinal, de que se trata ? , livro de Sônia Rocha (2003) voltado para a conceituação da pobreza - algo tido como indispensável quando o objetivo é a sua mensuração e a implementação de políticas focalizadas nos pobres.

112

dimension de la pobreza em América Latina”] com o objetivo de determinar a

amplitude da pobreza na América Latina” (MERKLEN, 2005, tradução livre, p. 112)

cujo método se baseava justamente no critério “absoluto” da pobreza. Merklen

destaca a importância desse estudo, enfatizando que ele “influenciou os institutos

públicos de estatísticas de cada país assim como outros numerosos centros de

pesquisa que se voltaram à avaliação da pobreza. De fato, (...) a CEPAL ocupa uma

posição que a permite irradiar [suas idéias] tanto sobre [o meio] acadêmico [quanto]

em direção aos Estados.” (idem).

Um instrumento de mensuração decorrente da idéia de “pobreza absoluta” são as

conhecidas “linha de pobreza”, ou ainda, “linha de indigência” (ou de “pobreza

extrema”), que são traçadas a partir de certos patamares de renda, de modo a

determinar quem são pobres ou indigentes, respectivamente. A linha de indigência é

definida, segundo Rocha63 (1998), pelo valor da cesta alimentar básica e, desta

maneira, traça o limite entre os famintos e os não-famintos. Já a linha de pobreza

dependeria das necessidades básicas totais de consumo, ou seja, inclui, além do

mínimo alimentar definido pela linha de indigência, outros bens de consumo

indispensáveis, de acordo com o padrão de vida da sociedade analisada. Assim, os

pobres (ou indigentes) são definidos como aqueles cujos rendimentos se situam

abaixo da linha de pobreza (ou de indigência) e o tamanho da pobreza é calculado a

partir do somatório do todos os pobres (ou indigentes) - aqueles que vivem abaixo das

linhas.

Essa metodologia que procurar estabelecer ou traçar linhas de pobreza tem sido

utilizada a nível regional - por exemplo, sugerida pela CEPAL (2000) –, a nível

nacional – elaborada e discutida pelos institutos de pesquisa e de estatística de cada

país - e, ainda, a nível internacional - por exemplo, por iniciativa do Banco Mundial,

que em certos momentos sugere que o limite entre a pobreza e a não-pobreza esteja no

limiar de US$1/dia ou US$2/dia, per capita.

Já a pobreza relativa é determinada em comparação com a renda média da sociedade.

Por exemplo, “seriam pobres aqueles cujo nível de renda fosse aquém da metade, ou

de 40%, ou ainda de 60% do rendimento mediano (...) ou, algumas vezes, inferior à

63 Desde o início da década de oitenta, Rocha têm sido uma das referências no que diz respeito à definição de linhas de indigência e de pobreza no Brasil.

113

metade da renda média.” (ibidem: 51) A pobreza relativa “situa o indivíduo na

sociedade (...) seu rendimento é comparado ao dos outros”. (idem)

Além dessas medidas monetárias de pobreza, existem medidas mais abrangentes – as

“medidas de pobreza humana” -, cujo objetivo é dar à pobreza “dimensões não-

monetárias e, particularmente, sociais e políticas, indo da noção de necessidades

básicas insatisfeitas à noção de capacidades.” (SALAMA e DESTREMAU, 1999, p.

73).

De acordo com a abordagem das Necessidades Básicas Insatisfeitas (NBI), são

considerados pobres aqueles indivíduos que não possuem ou não têm acesso a certos

bens que são considerados básicos – por exemplo, saúde, educação, etc. Segundo

Vuolo (2004), a idéia central da abordagem das Necessidades Básicas Insatisfeitas

(NBI) é que, “dentro do sistema de elementos e relações que definem o bem-estar de

uma pessoa ou grupo de pessoas, existem hierarquias que é necessário reconhecer.”

(VUOLO, 2004, tradução livre, p. 28-29) Ela parte da idéia de que a não-satisfação

de certas necessidades “pode resultar num mal funcionamento do ser humano”

(ibidem, p. 29) Nesse sentido, essa abordagem propõe uma “classificação das

necessidades entre aquelas que são básicas para a condição humana e as que não são”

(idem).

Segundo Salama e Destremau (1999), a abordagem das Necessidades Básicas

Insatisfeitas (NBI), ao contrário da linha de pobreza, tem como característica o fato de

ela ser universal, na medida em que pressupõe a existência de níveis (mínimos) de

necessidades básicas que podem ser universais e assim serem aplicadas a todos os

homens, de culturas e países diferentes. A conseqüência desse tipo de enfoque é que

se supõe a possibilidade de se realizar um exame exógeno das necessidades de uma

pessoa. Ou seja, “a pobreza não depende (...) da percepção subjetiva dos envolvidos

[na pobreza].” (VUOLO, op. cit., p. 29) Por outro lado, se o objetivo em última

instância é mensurar a quantidade de pobres e identificar quem eles são, essas

“necessidades fundamentais” acabam sendo expressas em termos que sejam

quantificáveis. Além disso, tem como fundamento a idéia de que sua satisfação torna

o homem mais produtivo (SALAMA e DESTREMAU, op. cit.). Pode-se perceber que

aqui há a influência da teoria do capital humano, uma vez que quanto maior a

quantidade de necessidades básicas satisfeitas, maior a produtividade do indivíduo e,

conseqüentemente, maior sua competitividade em relação aos outros.

114

As Necessidades Básicas Insatisfeitas (...) formam a base de um método de avaliação da pobreza que compara a situação de cada grupo familiar, quanto a um conjunto de necessidades específicas, com uma série de normas que expressam o piso de necessidades de cada um, abaixo do qual o grupo familiar é considerado insatisfeito. Se uma ou várias necessidades essenciais do grupo familiar não são satisfeitas, a família é considerada pobre, da mesma forma que todos os seus membros. (SALAMA e DESTREMAU, op. cit, p. 76)

Pode-se perceber que a lógica de interpretação desta medida de pobreza é análoga à

daquelas linhas (de pobreza e de indigência). As únicas diferenças entre os dois tipos

de mensuração da pobreza são o fato de que as NBI, por um lado, englobam quesitos

universais e, por outro, são medidas “mais humanas”, não se restringindo apenas à

categoria renda.

Já no que diz respeito à noção de capacidades, a grande referência é Amartya Sen

(por exemplo, com seu trabalho Desigualdade Reexaminada), para quem a questão da

pobreza deve ser encarada sob a idéia de privação de capacidades básicas de realizar

(ou seja, de cada um alcançar os seus objetivos de vida) e não como uma carência de

determinadas necessidades. O autor argumenta que:

(1) a pobreza pode sensatamente ser identificada em termos de privação de capacidades; a abordagem concentra-se em privações que são intrinsecamente importantes (em contraste com a renda baixa, que é importante apenas instrumentalmente); (2) Existem outras influências sobre a privação de capacidades – e, portanto, sobre a pobreza real – além do baixo nível de renda (a renda não é o único instrumento de geração de capacidades); (3) A relação entre baixa renda e baixa capacidade é variável entre comunidades e até mesmo entre famílias e indivíduos (o impacto da renda sobre as capacidades é contingente e condicional). (SEN, 2000, p. 110)

Sen parte do pressuposto de que existem variações entre os indivíduos no que diz

respeito à conversão na conversão de meios (recursos ou bens primários) em

“liberdade de realizar” (fazer ou alcançar seus objetivos ou fins). Ou seja, o fato de

duas pessoas possuírem os mesmos recursos não significa que necessariamente elas

serão igualmente livres para realizar, dado que cada uma delas irá converter seus

recursos em liberdade de maneiras diferentes – uma podendo ter mais facilidade de

convertê-los que a outra. Deste modo, os recursos (ou bens primários) que uma pessoa

tem – por exemplo, a renda - não são um bom indicador de quanta liberdade de fato

ela consegue desfrutar.

Nesse sentido, percebe-se que “o autor opera o deslocamento do ter para o ser e

fazer.” (HASENBALG, 2003, p. 459) Sen (2001) recomenda que a abordagem da

115

“capacidade para realizar” seja incorporada aos estudos sobre a pobreza – que deve

ser entendida como uma deficiência de capacidades básicas para alcançar certos

níveis minimamente aceitáveis de bem-estar - e aqui reside a inovação prática de seu

trabalho. É um avanço em relação à abordagem da “linha de pobreza” e uma crítica a

ela.

Segundo Hasenbalg (2003), a “crítica central à abordagem convencional sobre a

pobreza (LP) [linha de pobreza] está em que essa abordagem concentra-se nos meios

para alcançar o bem-estar. Esses meios, segundo Sen, são importantes, mas

insuficientes para fazer avaliações de vantagem individual porque não levam em

conta as variações nas taxas de conversão de meios em capacidades.”

(HASENBALG, 2003, p. 460)

Esta nova concepção de pobreza trazida por Amartya Sen, isto é, a partir de uma

abordagem muito mais ampla do que aquela que a define a partir da renda, teve

conseqüências práticas, por exemplo, quando o PNUD a aproveitou para transformá-

la em base conceitual e metodológica de seus trabalhos sobre o desenvolvimento dos

diversos países. Um exemplo disso foi a criação do IDH (Indicador de

Desenvolvimento Humano), que é uma medida (e não um patamar) das realizações

médias do desenvolvimento humano básico num único índice composto, que engloba:

renda (calculada pelo PIB per capita ajustado ao custo de vida local com o emprego

da metodologia conhecida como paridade do poder de compra - PPC); longevidade

(medida pela esperança de vida ao nascer); e instrução (medida por uma combinação

entre as taxas de alfabetização e de escolaridade primária, secundária e superior).

(PNUD, 2001: 144). O IDH é publicado pelo PNUD anualmente, desde 1990, em seu

“Relatório de Desenvolvimento Humano”.

Em 1997, o PNUD construiu um indicador adicional: o IPH (Indicador de Pobreza

Humana), que é uma medida multidimensional da pobreza e reúne, num índice

composto, as quatro dimensões da “privação” humana: uma vida longa e saudável,

conhecimento, provisão econômica e inclusão social (ibidem: 150). O IPH é dividido

em IPH-1 – para medir a pobreza humana em “países em desenvolvimento” – e IPH-2

- para medi-la nos países industrializados. Cada índice é formado por variáveis com

pesos diferentes, de acordo com o grupo de países a que se refere; por exemplo, o

IPH-1 mede a privação de uma vida longa e saudável pela percentagem de pessoas

116

que não devem passar dos 40 anos, enquanto o IPH-2 considera a percentagem de

pessoas que não devem passar dos 60 anos. Esta distinção decorre da idéia de que a

“privação humana varia com as condições sociais e econômicas da comunidade”.

(ibidem, p. 18)

Além dos trabalhos voltados para a mensuração da pobreza, tem se considerado

necessária a realização de trabalhos voltados para a construção de mapas de pobreza

(ou da fome), para que se possa identificar onde, especificamente, se localiza a

pobreza, para que, desta forma, se facilite a implementação das políticas públicas que

a combata pontualmente.

No Brasil, por exemplo, ao longo dos anos noventa, foram lançados os “mapas da

fome” Mapa da Fome I, II e III - pelo IPEA (1993), em 1993, e o “mapa do fim da

fome” (elaborado pela Fundação Getúlio Vargas, em julho de 2001), por exemplo,

tem como objetivo “[avaliar] a extensão da indigência e o custo da sua erradicação a

nível nacional e das unidades da federação na década de 90; (...) apresentação do

sistema de metas de pobreza e do conceito de metas sociais; apresentação (...) dos

índices de pobreza.” (CPS/FGV, 2001, p. 3)

Assim, o trabalho mapeia a “população indigente” em número absoluto e em

porcentagem para cada estado brasileiro e, ademais, calcula o montante necessário de

transferências para se erradicar a miséria em cada estado. Deste modo, o projeto

apresenta, ou melhor, justifica a sua validez: “No momento em que o Congresso

oficializa o fundo de erradicação da pobreza, é oportuna a avaliação do custo mínimo

da empreitada. (...) Cabe ao fundo financiar a gestação das boas práticas nos bolsões

de miséria.” (ibidem, p. 2) Ou seja, num momento em que se priorizam as políticas

compensatórias, estudos desta natureza são expressamente requisitados. Dando

continuidade a esse trabalho, a FGV lançou, em abril de 2004, o Mapa do Fim da

Fome II.

Outro indício importante da atual centralidade do conceito de “pobreza” enquanto

eixo de enunciação da questão social pode ser encontrado na proliferação de

recomendações de políticas voltadas para “combater a pobreza”, formuladas pelos

organismos internacionais (Banco Mundial, PNUD e OIT). Esses organismos tem se

esforçado na difusão da idéia de que o tema do combate à pobreza é a grande questão

117

a ser resolvida no mundo contemporâneo, ponto que será desenvolvido mais adiante,

no próximo capítulo.

Por agora, o que importa é enfatizar, por um lado, essa atual centralidade da temática

da “pobreza” no tratamento da questão social e, por outro, o deslocamento da

discussão que é percebido de um momento ao outro: da marginalidade à pobreza.

Se, por um lado, é possível dizer que a enunciação se deslocou porque houve grandes

transformações estruturais na sociedade – como sugere a seguinte passagem de Mary

Douglas (1998):

Como ela [a comunidade] usa a divisão do trabalho como fonte de metáforas no intuito de afirmar-se, o auto-conhecimento e o conhecimento que a comunidade tem do mundo deve passar por mudanças quando a organização do trabalho muda. Quando ela alcança um novo nível de atividade econômica, novas formas de classificação devem ser conceituadas. (DOUGLAS, 1998, p. 107)

Ou seja, enfatizando a gênese social das categorias à qual Émile Durkheim se referia

(DURKHEIM, 1996; 1999), poderia ser sugerido que, diante de novos problemas, são

necessárias novas maneiras de pensá-los, tratá-los, enunciá-los – para que seu

enfrentamento seja possível.

Mas, por outro lado, é possível afirmar que a transformação da enunciação da questão

social ocorra também pela predominância de certa(s) visão(ões) de mundo – ou

ideologias – que se fazem presentes a cada momento na sociedade. Cada ideologia

tem uma maneira específica de perceber e entender o mundo e, portanto, de entender a

“questão social”. Consequentemente, como se verá mais adiante, é a partir da política

que “questão social” é moldada, enunciada e problematizada.

118

Capítulo IV – A QUESTÃO SOCIAL COMO “POBREZA”

Como já se viu, um dos grandes objetivos das ciências sociais é o de em questionar as

categorias de descrição do mundo que, em determinado momento, se colocam como

evidência. (TOPALOV, 1994) Diante disto, o objetivo deste capítulo consiste em

apontar para a emergência e centralidade da “pobreza” como uma nova forma de

“classificação” na América Latina e entender porque ela vem se articulando como o

eixo de enunciação do social, para que, mais adiante, se possa desnaturalizá-la e

associá-la a um projeto político e a uma visão de mundo específicos.

Sabe-se que, na linguagem ordinária, a “pobreza” é termo de uso comum - enquanto

modo de percepção da realidade social - e de longa data. O que merece atenção aqui é

perceber que o fato de esse termo ter se tornado o eixo da questão social – e das

políticas que se propõem a resolvê-la - tem implicações de grande importância.

Nesse sentido, por que hoje a questão social tem sido predominantemente tratada a

partir de “pobreza”? Por que, quando se fala hoje em resolver a questão social, se

pensa em “combater a pobreza” ou ainda “reduzir a quantidade de pobres” do mundo?

Num momento em que a crítica se encontra enfraquecida (BOLTANSKI, 1999) –

sobretudo se comparada com aquela forte crítica existente nos anos sessenta – e de

hegemonia do pensamento neoliberal, aquela “batalha de classificações” destacada

por Topalov (1994) parece não ser tão intensa. A luta pela classificação do mundo

parece ter sido facilmente dominada pelos “porta-vozes”64 da globalização: os

organismos internacionais.

Faz-se necessário, portanto, entender melhor como vem se constituindo essa nova

forma de classificação do social. Diante da proliferação das recomendações de

políticas de “combate à pobreza” e dos estudos voltados para a mensuração do

número de pobres, percebe-se que o social vem sendo enunciado a partir da

64 Tomando, por exemplo, o relatório (World Development Report) do Banco Mundial de 1991, dedicado inteiramente ao tema do “desenvolvimento” - The Challenge of Development -, é possível perceber claramente esse papel de porta-voz da globalização neoliberal. Além de propor que o Estado não atrapalhe o “bom” funcionamento dos mercados e que só atue “naquelas áreas que são inadequadas para o mercado” (WORLD BANK, 1991, p. iii), destaca-se também outra das afirmações/metas enfatizadas: o “desenvolvimento econômico de sucesso requer a integração dos países na economia global. Abertura para os fluxos internacionais de bens, serviços, capitais, trabalho, tecnologia e idéias estimula o crescimento econômico” (idem).

119

“pobreza”. É preciso, portanto, compreender quais são as conceituações e

instrumentos de intervenção que vem sendo propostos como modelo a ser seguido

pelos governos do mundo todo, sobretudo, os dos países periféricos.

Assume-se neste trabalho que os organismos internacionais, suas recomendações e

seus discursos constituem um lócus fundamental para a análise de como a questão

social vem sendo tratada nos últimos anos e que devem ser tomados como objeto

importante da pesquisa. Para tanto, serão analisados os relatórios de organismos que

vêm fazendo do “combate à pobreza” a grande prioridade para suas atuações, tais

como o Banco Mundial, o PNUD e a OIT. Uma vez analisado como aquelas questões

se manifestam em cada um deles, procurar-se-á comparar essas abordagens, de modo

a perceber até que ponto falam da mesma coisa, que os pontos que seus discursos têm

em comum, a fim de fazer um balanço geral sobre o atual tratamento da questão

social.

A partir de uma análise dos documentos dos organismos internacionais, mostrar-se-á

como a “pobreza” aparece em seus discursos, procurando elucidar qual o significado

tratamento da questão social enquanto “pobreza”. Quais são as implicações da

abordagem da questão social a partir desse conceito? Por que se tornou tão importante

definir e contar os pobres? Além disso, tentar-se-á mostrar como esse tratamento se

traduz em estratégias de políticas e quais suas implicações.

Embora o discurso do “combate à pobreza” seja voltado muitas vezes para o “mundo

inteiro”, seus principais receptores são os países periféricos. Isto não quer dizer que

esse discurso não repercuta nos países centrais65, mas é inegável que ele tem maior

influência sobre os periféricos.

65 O debate sobre a “pobreza” é relevante nos países centrais, mas, como já visto no capítulo anterior, na França ou nos EUA, trata-se da questão social de maneiras diversas: a partir da noção de “exclusão” e de “underclass”, respectivamente.

120

1. A emergência do discurso internacional sobre a “pobreza”

Pode-se dizer que a consolidação da agenda do “combate à pobreza” nos países

latino-americanos é, em grande parte, fruto da proliferação de propostas e

recomendações de políticas dessa natureza produzidas pelos organismos

internacionais e de sua conseqüente adoção por parte de seus governos.

A relação entre as instituições internacionais e os governos latino-americanos não é

algo recente. Nascidas no mundo pós-guerra, as instituições resultantes dos Acordos

de Bretton Woods66 - o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial – e aquelas

ligadas à Organização das Nações Unidas67 (ONU) operam nos países da América

Latina desde final dos anos quarenta.

Entretanto, é a partir dos anos oitenta que as intervenções do Banco Mundial e do

FMI se tornam mais freqüentes e influentes na região. De fato, diante da dificuldade

financeira e da necessidade de renegociarem suas dívidas externas e aliviarem a

situação de seus balanços de pagamentos, a maioria dos países latino-americanos

começa a estreitar suas relações com os organismos internacionais, cujas idéias,

propostas e recomendações passam a interferir direta (sob forma de condicionalidades

- por exemplo, em troca da renegociação da dívida ou da contração de novos

empréstimos) ou indiretamente - a partir de sua influência ideológica e de suas

“recomendações” de políticas - na política interna daqueles países.

O Banco Mundial e o FMI passam a difundir a agenda do ajuste estrutural. Num

primeiro momento, os programas de ajuste liderados pelas instituições internacionais

consistiram numa “resposta à possibilidade de interrupção dos fluxos de pagamentos

dos países devedores latino-americanos, cujo momento mais crítico foi o default

66 Conferência proposta pelo governo norte-americano, em 1944, e cujo principal objetivo foi organizar a nova ordem econômica do pós-guerra. 67 A ONU foi fundada após a 2ª Guerra Mundial com o objetivo de manter a paz e a segurança no mundo. As Nações Unidas são constituídas por seis órgãos principais: a Assembléia Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela, o Tribunal Internacional de Justiça e o Secretariado. Ligados à ONU, há organismos especializados que trabalham em áreas tão diversas como saúde, agricultura, aviação civil, meteorologia e trabalho – por exemplo: a OMS (Organização Mundial da Saúde) e a OIT (Organização Internacional do Trabalho).

121

mexicano de 1982” (COELHO, 2004). Nesse sentido, Coelho (2004) ressalta que

esses programas tiveram “uma roupagem inicial de curto prazo” (ibidem, p. 2)

Mas, aos poucos foi se percebendo que essas propostas não eram de curto prazo. Seu

conteúdo se mostrava em total consonância com o receituário do chamado “Consenso

de Washington” e se resumia a recomendações de políticas de ajuste de cunho

neoliberal, cujos eixos principais eram a retração do papel estatal, privatizações,

abertura comercial e desregulamentações. Muitas dessas propostas foram colocadas

em termos condicionalidades (isto é, a adoção de determinadas políticas) em troca da

concessão de empréstimos.

Sobre essas condicionalidades dos organismos internacionais, Stiglitz (2002a) afirma

que os países foram "forçados a aceitar um amplo conjunto de condições [que são, na

prática, programas de políticas] para que recebam a assistência. Muitas das condições

não têm nada a ver com a crise (...); algumas entram mesmo em áreas que são de

natureza altamente política." (STIGLITZ, 2002a, p. 15) Segundo Stiglitz (2002b),

suas propostas estavam baseadas

em premissas que se referiam a como os mercados funcionam mas que não são adequadas nem para países desenvolvidos, muito menos para países em desenvolvimento. O FMI forçou a adoção dessas políticas econômicas sem uma visão ampla de sociedade ou do papel para a economia no interior da sociedade. E ele forçou a adoção dessas políticas de modo que enfraqueceu as democracias emergentes. (STIGLITZ, tradução livre, 2002b).

Ao FMI, coube a disseminação das propostas de políticas liberalizantes que diziam

respeito a questões macroeconômicas, tais como: políticas monetárias, controle da

inflação, questões de balança comercial e controle fiscal. Já o Banco Mundial se

preocupou com questões mais estruturais, tais como as referentes ao destino do gasto

do governo, às políticas comerciais, às instituições financeiras (STIGLITZ, 2002c) e,

ainda, assumiu também o papel de formulador de recomendações de natureza política

(GUIMARÃES, 2002, p.13).

Com a progressiva ampliação de suas funções, o Banco Mundial vai atuando cada

vez mais como órgão político central, como uma espécie de coordenador do processo

global de desenvolvimento. Para tanto, o Banco elabora “documentos políticos, nos

quais se destaca uma considerável produção teórico-conceitual na área da política

econômica e social a qual, certamente, sinaliza a sua relação com as nações-

membros” (FONSECA, 1998).

122

Na prática, portanto, esses organismos não atuaram simplesmente como fornecedores

de uma ajuda momentânea, de curto prazo. Ao contrário, ampliaram suas funções

técnicas e financeiras, assumindo cada vez mais um papel político, mediante a

formulação de políticas globais e setoriais capazes de influenciar a agenda dos países

credenciados para seu financiamento. Eles passaram a atuar, em última instância,

como poderosos propagadores da ideologia legitimadora da globalização neoliberal,

conseguindo interferir na condução das políticas domésticas daqueles países, as quais

representaram, em seu conjunto, uma ampla agenda baseada, nos termos de Stiglitz

(2002b), num “fundamentalismo ideológico de mercado”.

Seria simplificador, entretanto, afirmar que a adoção das políticas de ajuste estrutural

nos países periféricos tenha sido resultante pura e simplesmente de uma imposição

por parte dos organismos internacionais. Se, por um lado, esses países passavam por

dificuldades e precisavam negociar suas dívidas externas – e, nesse sentido,

precisavam obedecer ao que lhes estava sendo proposto -, por outro lado, é preciso

levar em conta também houve uma adesão ao caminho neoliberal por parte dos

governos conservadores latino-americanos. É o que se percebe na afirmação de

Batista (1994) acerca da guinada conservadora:

Tudo se passaria, portanto, como se as classes dirigentes latino-americanas se houvessem dado conta, espontaneamente, de que a gravíssima crise econômica que enfrentavam não tinha raízes externas – a alta dos preços do petróleo, a alta das taxas internacionais de juros, a deterioração dos termos de intercambio – e se devia apenas a fatores internos, às equivocadas políticas nacionalistas (...). Assim, a solução residiria em reformas neoliberais apresentadas como propostas modernizadoras, contra o anacronismo de nossas estruturas econômicas e políticas. (idem)

E o autor continua:

Contribuía para a pronta aceitação do diagnóstico e da proposta neoliberal – dessa visão economicista dos problemas latino-americanos – a existência de um grande número de economistas e cientistas políticos formados em universidades norte-americanas, de Chicago e Harvard, onde passara a pontificar uma visão clássica e monetarista dos problemas econômicos. Alguns desses economistas seriam chamados a ocupar posições de comando em seus países de origem. (idem)

Desse modo, não se pode dizer que a implantação de uma agenda neoliberal nos

países latino-americanos tenha sido pura imposição, mas sim que ela conseguiu

construir uma hegemonia no continente. De qualquer maneira, seja porque precisavam

renegociar suas dívidas externas e tomar novos empréstimos – e, portanto, era preciso

123

“obedecer” às condicionalidades -, seja porque na década de oitenta observou-se um

predomínio do neo-conservadorismo nos governos latino-americanos – ou ainda (o

mais provável) pelos dois motivos -, o fato é que a agenda desses governos esteve

voltada para a implementação do neoliberalismo na região, e, portanto, alinhada com

as recomendações dos organismos internacionais.

Se, nesse período, essas propostas estiveram voltadas para o ajuste estrutural, diante

do agravamento das condições sociais decorrentes das políticas de ajuste (por

exemplo, aumento do desemprego, da informalidade, da precarização do emprego,

redução dos salários), dimensões mais “sociais” ou “humanas” (que tinham

desaparecido da formulação de políticas “de desenvolvimento” - em prol da dimensão

econômica) vão emergindo pouco a pouco. Cling, Razafindrakoto e Roubaud (2003)

ressaltam três motivos para que os organismos internacionais tenham se voltado para

questões daquelas naturezas, lançando estratégias de “luta contra a pobreza”, as quais

vêm, por sua vez, ocupando o centro de suas ações: (i) a constatação dos altos custos

do ajuste, (ii) a proliferação das críticas (internas e externas) ao Consenso de

Washington e à globalização neoliberal e (iii) os questionamentos da legitimidade dos

organismos internacionais.

Em primeiro lugar, a constatação dos altos custos sociais do ajuste é divulgada, no

mundo dos organismos internacionais, com a publicação, em 1987, de Adjustment

with a Human Face, organizado por membros da UNICEF. Esta obra surge como

alerta sobre as conseqüências nefastas dos programas de ajuste estrutural. Embora

tenha colocado seus impactos negativos em evidência, não foi proposto um abandono

do ajuste. Apenas se considerou necessário dar-lhe uma “face humana”, ou seja,

incluir em seu receituário as políticas de alívio (CORNIA et alli, 1987, p. 2). Mas, de

qualquer modo, esse alerta da publicação chamou a atenção para a questão e, ainda,

funcionou como um reconhecimento, no mundo dos organismos internacionais, de

que as políticas de ajuste tinham um “custo” social.

Ao longo dos anos noventa, várias conferências internacionais das Nações Unidas

contribuíram em seguida à uma tomada de consciência dessa questão. O primeiro

Human Development Report do PNUD aparece em 1990 com a preocupação de tratar

da “dimensão humana do desenvolvimento” (PNUD, 1990) e, nesse mesmo ano, o

124

Banco Mundial dedica inteiramente seu World Development Report ao tema da

pobreza68 (WORLD BANK, 1990).

Em 1995, realizou-se em Copenhague uma sessão extraordinária da ONU sobre o

tema da pobreza. E, um ano depois, “a Assembléia geral das Nações Unidas

proclamou 1996 o ‘ano internacional da erradicação da pobreza’ e, o decênio 1997-

2006, foi considerado como o ‘Primeiro decênio das Nações Unidas para a eliminação

da pobreza’” (CLING et alli, 2003, p. 3). Desde então, cada vez mais os organismos

internacionais fazem do “combate à pobreza” uma prioridade, o que se tem mostrado

como novo consenso da retórica internacional.

Em segundo lugar, é ressaltada a importância das críticas - internas e externas - ao

“Consenso de Washington” e à globalização neoliberal.

Quanto às críticas ao “Consenso de Washington”, pode-se dizer que, frente ao

fracasso das políticas de ajuste estrutural e diante de seus custos sociais, que se

somam aos efeitos das crises mexicana (1995), tailandesa (1997) e russa (1998),

foram surgindo, dentro dos próprios organismos internacionais, autores que passaram

a questionar e a criticar o que foi definido no Consenso de Washington, tanto em

relação a suas conseqüências sócio-econômicas quanto à excessiva instabilidade

decorrente da complacência diante da volatilidade dos fluxos de capitais para as

economias emergentes.

Stiglitz (1998), por exemplo, critica o Consenso de Washington afirmando que se

deve ir além dele – o que ele chama de “pós-Consenso de Washington”. Para ele, o

consenso confundia meios com fins: ele considerava a privatização e a liberalização

do comércio como fins em si mesmos, em vez de considerá-los como meios para se

alcançar um crescimento mais sustentável, eqüitativo e democrático. Além disso, o

consenso de Washington estava muito enfocado na estabilização dos preços, em lugar

do crescimento e da estabilidade da produção.

Ao dizer que se deve ir além, percebe-se que Stiglitz assume que a proposta do

Consenso de Washington já é um começo, embora seja insatisfatória para o

68 Embora o Banco Mundial já tivesse se dedicado antes à temática da pobreza – nos tempos em que era presidido por Robert McNamara (o que pode ser percebido pelos relatórios de 1978, Prospects for Growth and Alleviation of Poverty, e o de 1980, Poverty and Human Development) -, o fato de a instituição ter se dedicado uma década inteira aos programas de estabilização e de ajuste estrutural faz com que o reaparecimento do tema da pobreza, no relatório de 1990 – Poverty -, possa ser entendido como uma “novidade”.

125

desenvolvimento da sociedade. Em última instância, Stiglitz acaba não discordando

de suas premissas e acreditando nos benefícios do capitalismo globalizado. Fiori

(2001) argumenta nesse sentido:

A nova posição, representada por Stiglitz, não está em desacordo com os objetivos gerais do Consenso. O que ela não aceita e critica é a convicção de que ‘os mecanismos de mercado’ possam resolver, automaticamente, os problemas do crescimento econômico e da distribuição eqüitativa da riqueza. Mas critica também a forma descontrolada e selvagem dos processos de privatização, que acabaram substituindo o Estado por novos monopólios privados; a obsessão do ‘velho consenso’ com o problema da inflação, que Stiglitz considera um dos grandes responsáveis pelo baixo crescimento das economias submetidas à terapia de Washington. (FIORI, 2001, p. 89)

Stiglitz (2002c) aprofundou suas críticas em relação ao “Consenso de Washington” no

livro Globalization and its Discontents, no qual critica a maneira como o processo de

globalização foi pensado e conduzido pelos organismos internacionais, destacando a

importância do papel do Estado em regular e complementar os mercados - tal como

havia sito descrito nos relatórios do Banco Mundial de 1997 (O Estado num Mundo

em Transformação) e o de 2002 (Building Institutions for Markets) - e em promover a

eliminação da pobreza.

Além de ter sido questionado desde o interior do establishment multilateral, o

Consenso de Washington, os fundamentos das ações dos organismos internacionais e

a globalização neoliberal também sofreram fortes críticas por parte das resistências

políticas organizadas, sobretudo a partir dos movimentos contra-hegemônicos e anti-

globalização (ou “antimundialização”) que tiveram suas primeiras manifestações em

Chiapas (em 1996, no “Primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra

o Neoliberalismo”) – o “primeiro elo do movimento internacional contra a

mundialização liberal” (SEOANE e TADDEI, 2001) -, passando, por exemplo, por

Seattle, em 1999 – “momento de consolidação de vasto, diverso e novo movimento

planetário contra a injustiça” (ibidem, p. 163) -, Praga, Genova e Porto Alegre - onde,

em 2000, nasceu o Fórum Social Mundial.

O término da década de 90 na América Latina mostra um aumento significativo dos protestos sociais, que parece reverter a menor conflitividade registrada no começo da década. (...) O terrível impacto social das transformações estruturais veiculadas pelas políticas neoliberais começa a sacudir a ‘paz social’ do continente a partir de meados dos anos 90. Os protestos assumem um impulso decisivo (...)[em] 1999-2000, dando origem a novas formas de luta e a novos atores e movimentos sociais, que manifestam as profundas transformações experimentadas

126

pelas estruturas sociais da região sob o influxo das políticas neoliberais durante a década. (SEOANE e TADDEI, 2001, p. 169)

Desde 1999, dezenas de milhares de pessoas reuniram-se em dois tipos distintos de iniciativas: o protesto contra os projetos das grandes instâncias mundiais de decisão – Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI), OMC, União Européia – e o outro, mais institucional, os Fóruns mundiais, continentais, nacionais, locais. Essas reuniões tornaram-se um fato político central. (HOUTART, 2003).

Sem entrar muito numa discussão sobre as conquistas69 e os limites70 desses

movimentos do altermundialismo71, é possível afirmar que suas críticas direcionadas

ao neoliberalismo (ou à globalização neoliberal) somadas aos questionamentos ao

“Consenso de Washington” oriundos do interior do próprio establishment cumpriram,

em alguma medida, o papel de “crítica” - enfatizado por Boltanski (1999) - e, de

alguma maneira, abalaram a legitimidade do discurso defendido pelos organismos

internacionais, que se viram na necessidade de mudar suas estratégias de justificação,

em prol da manutenção de sua legitimidade e de seu projeto de poder. Ou seja, de

algum modo, essas críticas pressionaram o modo de justificação do capitalismo

globalizado, que se viu na necessidade de se transformar. Nos termos de Boltanski

(1999), a crítica cumpriu, nesse momento, o papel de “motor nas mudanças do

espírito do capitalismo” (BOLTANSKI, 1999, p. 69), mudanças estas que raramente

são radicais72.

69 A grande conquista desses movimentos parece ser a de tentar recriar a utopia no mundo contemporâneo. Na medida em que se afirma que “um outro mundo é possível”, é questionada, ou mesmo derrubada, a tese do “fim da história” dos anos oitenta/noventa e abrem-se novos horizontes para o mundo social, muito embora não esteja claro de que horizontes se tratam. 70 Em relação ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre, por exemplo, Emir Sader (2003) afirma que o fato de seu Comitê Organizador ter sido composto majoritariamente por organizações não-governamentais fez com que o caráter do evento fosse o de “espaço de aglutinação da ‘sociedade civil’”, fato do qual Sader destaca duas problemáticas. Por um lado, ressalta a possibilidade de “coincidências perigosas do resgate da “sociedade civil” com movimentos neoliberais (...), [as quais, contudo,] não tiveram até aqui efeitos negativos que desfigurassem o caráter (...) antineoliberal dos fóruns” (SADER, 2003, p. 86). Por outro lado, Sader afirma que essa opção pela “sociedade civil” também “deixa de fora os partidos e os governos, ao assumir a oposição sociedade civil/Estado. Esse aspecto é mais grave, não apenas porque um movimento antineoliberal não pode prescindir de nenhuma força numa luta ainda tão desigual, mas principalmente porque se abstrai das temáticas do poder, do Estado, da esfera pública, da direção política e até mesmo, de alguma forma, da luta ideológica.” (idem). E continua: “esse aspecto termina sendo grave porque, se levado estritamente adiante, limita a formulação de propostas alternativas ao neoliberalismo. Nesse caso, a busca de alternativas fica restrita ao marco local (...) sem propostas globais de projetos negadores e superadores do neoliberalismo como proposta global do capitalismo” (ibidem, p. 87). 71 Reunidos em torno da idéia de que “um outro mundo [ou outra globalização] é possível”. 72 Boltanski (1999, p. 70-71) destaca três possíveis efeitos da crítica sobre o “espírito do capitalismo”: (i) ela pode deslegitimar o espírito vigente, minando as modalidades de adesão social a ele associadas; (ii) a crítica força o capitalismo a respondê-la. Para conservar a adesão social, o espírito do capitalismo

127

Por fim, em terceiro lugar, somado àqueles dois fatores já ressaltados – a evidência

das mazelas sociais e a proliferação das críticas - um outro motivo é destacado por

Cling et alli (2003) para que os organismos internacionais tenham se voltado para

questões “mais sociais”. Cling et alli (2003) o entendem como uma “crise de

legitimidade” dos organismos internacionais. Embora o termo seja demasiado forte, e

não pareça ser o caso, é importante perceber que esses organismos passaram por

questionamentos73 de sua legitimidade, o que também contribuiu para uma

“mudança” da retórica internacional.

Se, por um lado, os defensores mais radicais do “Consenso de Washington”

diagnosticaram seu fracasso a partir do argumento da “não-completude” de sua

agenda - como é o caso de John Williamson (WILLIAMSON e KUCZNSKI, 2004) -,

percebe-se que, por outro, sem negar esses últimos, os organismos internacionais

acabam adaptando suas estratégias e incorporam elementos das críticas em sua

própria justificação.

Se no momento anterior eles eram os propagadores da “modernidade”, do ajuste

estrutural e da globalização neoliberal, num momento seguinte eles passam, sobretudo

o PNUD e o Banco Mundial, a ser os defensores da eliminação da pobreza - “o nosso

sonho é um mundo sem pobreza”74 : “O Banco Mundial assumiu a missão de

combater a pobreza com paixão e profissionalismo, colocando essa luta no centro de

todas as suas atividades.” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. v)

Outro exemplo para essa mudança de retórica seria também o fato de o FMI ter

mudado a denominação e o enfoque de seus programas:

Em setembro de 1999, o FMI adotou um novo enfoque de luta contra a pobreza em suas relações com os países de baixa renda. Como parte desta reorientação, o FMI considerou terminado o serviço reforçado de ajuste estrutural (SRAE) e o substituiu com um novo serviço financeiro em favor

absorve ou incorpora em si mesmo alguns dos elementos ressaltados (denúncias, valores, etc.) pela crítica; (iii) a crítica leva a transformações internas no próprio processo de valorização do capital que demandam outras formas de justificação. O “mundo [fica] momentaneamente desorganizado em relação aos referentes anteriores e (...) [se torna indecifrável]. (...) a crítica se encontra desarmada durante um tempo. O velho mundo que denunciava desapareceu, mas ainda não se sabe o que dizer do novo. A crítica atua como um estimulante para acelerar a transformação dos modos de produção, os quais entram em tensão com as expectativas dos assalariados formados com a base nos processos anteriores, o que chamará a uma recomposição ideológica destinada a mostrar que o mundo do trabalho tem ainda um «sentido»”. (BOLTANSKI, tradução livre, 1999, p. 71) 73 No lugar de “crise”, parece se adequar melhor à situação a idéia de “questionamentos”. 74 Esta frase se encontra escrita na parede da entrada da sede do Banco Mundial, em Washington.

128

(...) [daqueles] países (...), o serviço para o crescimento e a luta contra a pobreza (SCLP). (FMI, 2001)

Essa “nova agenda” poderia ser interpretada, em certa medida, como uma resposta

dos defensores (e legitimadores) do sistema àquelas críticas, a partir da incorporação

de alguns dos pontos por elas levantados – um dos efeitos da crítica levantados por

Boltanski (1999, p. 71). Ou seja, diante da necessidade de levar em consideração os

efeitos sociais nefastos resultantes da implementação da agenda do ajuste, a retórica

internacional começa a se transformar e passa a levar em consideração o “lado social”

e a centrar-se na questão do “combate à pobreza”.

Essa “virada” de ênfase nas preocupações (e recomendações) dos organismos

internacionais - passando do “ajuste estrutural” ao “combate à pobreza” – poderia ser

percebida como uma mudança de rumo da retórica internacional, tal como afirmam

Cling et alli (2003). Afinal de contas, estaria se deixando de falar em questões

estritamente econômicas, voltando-se para questões mais “humanas”. Contudo, por

mais “humanas” ou “politicamente corretas” que possam parecer essas novas

propostas de políticas de cunho mais social – afinal de contas, quem seria contra a

redução da pobreza? -, e, ainda, por mais que aqueles três fatores ressaltados por

Cling et alli (ibidem) tenham, de fato, influenciado essa pretensa mudança no

discurso, é difícil aceitar o argumento de que essa nova retórica represente realmente

uma transformação em seus projetos. Afinal de contas, a “importância” das reformas

do ajuste não é questionada; elas são vistas como necessárias pelo rumo quase

“natural” das coisas: o mundo “em transformação”, a globalização.

Assim, ao contrário - antecipando um pouco o que será discutido mais à frente –, a

retórica internacional sobre a pobreza, longe de representar mudanças, compartilha os

fundamentos ideológicos das estratégias neoliberais. Ou seja, o mundo social

pressuposto pelo tratamento da questão social a partir do conceito de “pobreza” é

justamente o mundo social característico do neoliberalismo. Embora os organismos

internacionais se preocupem em tratar do humano e do social em suas propostas de

políticas de “desenvolvimento”, é preciso distinguir bem em que consiste esse

“humano” e “social”; em suma, em que consiste esse conceito de “pobreza” de que

tanto se fala e o que se pressupõe quando se trata da questão social enquanto

“pobreza”.

129

Os organismos internacionais que mais têm se dedicado ao tema da pobreza e do

“combate à pobreza” são o Banco Mundial75 e o PNUD76 (Programa das Nações

Unidas para o Desenvolvimento). Embora a OIT (Organização Internacional do

Trabalho) não faça do “combate à pobreza” seu principal objetivo ou mesmo sua

raison d’être, ela também tem se dedicado à questão e, portanto, também merece

atenção77.

Para entender como a questão social vem sendo tratada atualmente, é preciso atentar

para o conceito de “pobreza”, como ele vem sendo formulado e mobilizado. Para

tanto, serão analisados os relatórios anuais desses organismos, com destaque para

aqueles que se dedicam especificamente à temática da “pobreza”.

É possível delinear os significados desse novo tratamento para a questão social, ou

seja, o que se quer dizer quando se fala hoje em “pobreza” a partir de três eixos. Em

primeiro lugar, a partir das definições e conceituações explícitas para o termo

“pobreza” nas análises daqueles organismos internacionais. Em segundo lugar, é

possível apreender significados para a “pobreza” a partir do que se ressalta como

causas para ela. Ou seja, a partir de suas “causas” é possível entender melhor como se

trata o objeto em questão. Por fim, um terceiro eixo para entender como a “pobreza”

vem sendo tratada - e quais os pressupostos normativos desse tratamento - partiria das

recomendações de políticas para “solucioná-la”: as políticas de combate à pobreza.

No presente capítulo, discutir-se-á o primeiro e o segundo eixos. O terceiro eixo será

deixado para o próximo capítulo.

75 “Atualmente, a principal meta do trabalho do Banco Mundial é a redução da pobreza no mundo em desenvolvimento.” - http://www.obancomundial.org/index.php/content/view/6.html 76 “O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento tem como mandato central o combate à pobreza.” - http://www.pnud.org.br/pnud/ 77 Num primeiro momento, talvez pudesse se considerar que seria também conveniente examinar a CEPAL, uma vez que é uma instituição que, desde sua criação, procurou assumir uma postura crítica em relação ao pensamento dominante e construir uma interpretação alternativa para os problemas e desafios latino-americanos. Mas, a despeito disso, tal empreitada não se justifica para os propósitos deste trabalho, uma vez que a CEPAL não tem a temática da “pobreza” no centro de suas preocupações - só incorpora o discurso do “combate à pobreza” a partir do ano 2000 - e, sobretudo, porque, a despeito dessa incorporação, percebe-se que não há uma discussão específica sobre o que é a pobreza e quais são suas causas. Ao contrário, sua preocupação para com a pobreza é mais em descrevê-la - e de fornecer informações sobre sua realidade (evolução da pobreza, sua distribuição espacial, dentre outros) (CEPAL, 2004) - do que em trabalhar conceitual e teoricamente a questão. Assim, quando a CEPAL trata da “pobreza”, ela utiliza definições externas, tal como a de “linha de pobreza” – bastante presente em seu Panorama Social (CEPAL, 2000; 2004). Desse modo, para evitar repetições cansativas, a CEPAL não entrará nesta discussão.

130

2. Os discursos dos organismos internacionais: a “pobreza” e suas causas, segundo o Banco Mundial, o PNUD e a OIT

2.1. Banco Mundial

Diante da vasta lista de publicações do Banco Mundial, é necessário que se escolha

quais dos documentos devem ser analisados. Frente a grande importância dedicada

aos World Development Reports - os quais são, segundo o próprio Banco Mundial,

são sua melhor contribuição para “pensar o desenvolvimento” -, eles são tomados

como material empírico para a presente pesquisa.

Com publicação anual, esses relatórios se apresentam como um guia para o mundo no

que diz respeito às questões econômicas, sociais, políticas e ambientais atuais. “Cada

ano o WDR fornece uma análise profunda sobre um aspecto específico do

desenvolvimento. (...) [são abordados] tópicos como o papel do Estado, economias em

transição, trabalho, infra-estrutura, saúde, meio ambiente, e pobreza.”78 Embora cada

relatório se dedique a um tema específico79, os World Development Reports não são

estudos isolados ou independentes; eles dialogam entre si. Cada relatório novo faz

referências às questões discutidas nos anteriores imediatos ou aos relatórios mais

antigos que discutiram o mesmo tema, ressaltando os avanços, as limitações

anteriores, etc.

Além de cada relatório ter os objetivos de “promover o debate” e de “inspirar

mudanças políticas” (WORLD BANK, 1995) para seu tema específico, cada WDR

acaba constituindo uma parte que formará um todo. Assim, ao se complementarem e 78 Retirado do site do Banco Mundial: http://www.worldbank.org/ 79 Prospects for Growth and Alleviation of Poverty (1978), Structural Change and Development Policy (1979), Poverty and Human Development (1980), National and International Adjustment (1981), Agriculture and Economic Development (1982), Management in Development (1983), Population Change and Development (1984), International Capital and Economic Development (1985), Trade and Pricing Policies in World Agriculture (1986), Industrialization and Foreign Trade (1987), Public Finance in Development (1988), Financial Systems and Development (1989), Poverty (1990), The Challenge of Development (1991), Development and the Environment (1992), Investing in Health (1993), Infrastructure for Development (1994), Workers in an Integrating World (1995), From Plan to Market (1996), The State in a Changing World (1997), Knowledge for Development (1998/1999), Entering the Twentieth Century (1999/2000), Attacking Poverty (2000/2001), Building Institutions for Markets (2002), Sustainable Development in a Dynamic World (2003), Making Services Work for Poor People (2004), A Better Investment Climate for Everyone (2005), Equity and Development (2006), Development and the Next Generation (2007), Agriculture for Development (2008).

131

dialogarem uns com os outros, esses relatórios parecem ter também, em seu conjunto,

a pretensão de formar um grande modelo teórico a ser recomendado como referência

normativa para o mundo inteiro. No que diz respeito ao tema da “pobreza”, os World

Development Reports (os “Relatórios sobre Desenvolvimento Mundial”) que se

dedicaram a esse tema específico foram o de 1990 - A Pobreza - e o de 2000-2001 – A

Luta contra a Pobreza.

2.1.1. Relatório sobre Desenvolvimento Mundial de 1990: A Pobreza

O discurso presente no relatório de 1990, que justifica a importância do tema da

pobreza nada tem a ver com algum tipo de reconhecimento do fracasso das políticas

de ajuste estrutural. Ao contrário, segundo o Banco Mundial (WORLD BANK, 1990,

p. 1), o “mundo em desenvolvimento” teve “um enorme progresso” nas últimas

décadas. Mas, a despeito desse “enorme progresso”, o Banco Mundial constata que há

“mais de um bilhão de pessoas no mundo em desenvolvimento que vivem na

pobreza” (idem). Assim, é a partir disso que a questão da pobreza é problematizada no

relatório de 1990, que se propõe a entender e a explicar a pobreza, para poder

mensurá-la, assim como propor políticas para combatê-la.

Em 1990, o Banco Mundial definiu a pobreza como: “a incapacidade de atingir um

padrão de vida mínimo” (ibidem, p. 26). Desta definição, podem ser destacadas duas

questões diferentes: (i) o que é um padrão de vida mínimo?; (ii) o que se entende por

“incapacidade”? A primeira se coloca como uma questão mais de caráter

metodológico; já a segunda envolve temas mais amplos e diz respeito às “causas” da

pobreza e também às estratégias de combate à pobreza, as quais serão analisadas no

próximo capítulo.

Em relação à primeira questão, o Banco Mundial apresenta a seguinte resposta: o

padrão de vida mínimo deve ser avaliado pelo consumo, isto é, a despesa necessária

para que se adquira um padrão mínimo de nutrição e outras necessidades básicas e,

ainda, uma quantia que permita a participação da pessoa na vida cotidiana da

sociedade. Assim, trata-se de calcular um valor mínimo para cada país (ou região) e,

em seguida, comparar o valor encontrado com a renda dos indivíduos. Aqueles que

tiverem uma renda inferior a esse valor poderão ser considerados pobres e, portanto,

132

sem condições de viver minimamente bem. Percebe-se, portanto, que a definição de

pobreza é, em 1990, baseada em critérios monetários (renda).

Para transformar a definição de “padrão de vida mínimo” num instrumento mais

objetivo de definição do que é ser pobre, o Banco Mundial propõe a utilização da

“linha de pobreza”, que separa os pobres dos não-pobres a partir de um valor

estipulado para o “padrão de vida mínimo”. O valor proposto varia entre US$275 e

US$ 370 por pessoa por ano, ou seja, em torno de um dólar por dia por pessoa.

Além de determinar o critério que distingue o pobre do não-pobre, o Banco Mundial

se preocupa também em medir e criar índices: por um lado, propõe calcular o número

de pobres como proporção da população - headcount index (WORLD BANK, 1990,

p. 27). Mas esse índice teria o defeito de não permitir a medição do quanto os pobres

estão abaixo da linha de pobreza. Para resolver esse problema, é proposto um outro

índice – o “hiato de pobreza” (poverty gap) – (ibidem, p. 28) que mede a quantia

necessária (transferência) para cada pobre “subir” exatamente até a linha de pobreza.

Ou seja, seria o indicador da quantia exata necessária para “eliminar a pobreza”, de

modo que todos os pobres “subam” exatamente até o limite (entre pobre e não-pobre)

representado pela linha de pobreza.

Assim, um dos lados da pobreza caracteriza-se por estar aquém de um padrão de vida

mínimo (traduzido por um valor monetário exato). Percebe-se que, quando se define e

se ressalta a pobreza como o fato de estar abaixo de um determinado valor, estão

presentes duas preocupações centrais: por um lado, a de distinguir ou separar com

exatidão quem é pobre de quem é não-pobre e, por outro, a de contar o número exato

de pobres. Esses objetivos podem ser claramente percebidos quando, mais à frente,

forem analisadas as recomendações de estratégias para “combater” a pobreza.

No que diz respeito à questão (ii) ressaltada anteriormente - o que se entende por

“incapacidade”? -, ou seja, o “outro lado” do que é pobreza, é possível afirmar que ela

remete àquilo que o Banco Mundial ressalta como causas da pobreza. Pode-se afirmar

que a renda insuficiente do pobre é explicada a partir de duas noções que se

relacionam entre si: falta de “ativos” (assets) e falta de oportunidades.

Embora não seja explicada explicitamente, a questão das “oportunidades” é a grande

chave para entender a pobreza, já que ela significa oportunidades de obter renda. A

133

existência ou falta de oportunidades é vinculada diretamente à carência de “ativos”.

Assim, possuir ou não ativos afeta diretamente as “oportunidades” dos indivíduos.

Contudo, esse fato de “possuir ou não ativos” não é explicado: ou a pessoa tem ativos,

ou ela não tem. Talvez, o pressuposto seja de que o indivíduo optou ou decidiu por

não investir, por exemplo, em seu “capital humano” - tal como afirma a teoria do

capital humano, por exemplo: Schultz (1973) -, porém isso não está claro no relatório.

Mas, de qualquer forma, essa questão não é discutida, não há um porquê exterior ao

indivíduo.

Assim, além de ser definido a partir do “consumo” medido em termos monetários, ou

seja, como aquele que não tem renda suficiente para satisfazer a nutrição e outras

necessidades básicas, e, portanto, não pode estar acima da “linha de pobreza”, o pobre

também é visto como aquele cujo problema é a falta de “ativos” (ibidem, p. 31). Ou

seja, a causa da situação de pobreza reside no próprio pobre, no fato de ele ser assim -

sem “ativos” que lhe criem “oportunidades”: “A dotação de ativos afeta diretamente

as oportunidades de renda”. (WORLD BANK, tradução livre, 1990, p. 32) A causa da

renda insuficiente residiria na ausência de ativos.

Esses ativos podem ser de vários tipos, e os dois “ativos” mais importantes para a

criação de oportunidades para os pobres são: “capital humano” (para o pobre urbano)

e o acesso à “terra” (ao pobre rural). Entretanto, como se ressaltou anteriormente, não

há um significado explícito para oportunidades. A partir do que o Banco Mundial

coloca enquanto meios para aumentá-las, é possível entender um pouco mais o que

vem a ser “oportunidades”.

No caso das oportunidades ampliadas pela terra, no mundo rural, a idéia é simples, já

que oportunidades representariam as possibilidades de plantio, seja para consumo

próprio (satisfazendo as necessidades de nutrição), seja para venda da produção, e

assim, aumentando suas rendas. Com mais rendas, o pobre poderia ultrapassar a

“linha da pobreza” e ser considerado um não-pobre.

Mas, no que diz respeito às oportunidades ampliadas pelo aumento de “capital

humano”, a lógica sobre o “aumento das rendas” é menos trivial. A influência da

“teoria do capital humano” é bastante clara na argumentação exposta no relatório de

1990.

134

Como foi visto no segundo capítulo, a “teoria do capital humano” – que tem como

referência Theodore Schultz (SCHULTZ, 1973) - afirma que as diferenças de rendas

entre os indivíduos são influenciadas pelo capital humano (principalmente educação)

que cada um investe em si mesmo. E seu raciocínio básico pode ser assim sintetizado:

(i) aumento da educação dos trabalhadores, (ii) estes terão suas habilidades e

conhecimentos melhorados, (iii) quanto maiores as habilidades e conhecimentos,

maior a produtividade do trabalhador; (iv) essa maior produtividade acaba gerando

maior competitividade e, assim, maiores rendas para o indivíduo.

Desse modo, embora o Banco Mundial (1990) não defina muito bem as

oportunidades, parece estar subentendido que são oportunidades no “mercado” de

trabalho. Com mais educação, os indivíduos pobres passam a ser mais produtivos, a

ter maior poder para escolher alternativas para suas vidas e, assim, ter “maiores

chances” de renda; tudo isso porque estariam mais aptos para competir no mercado.

Ou seja, uma das grandes causas enfatizadas para a pobreza é o fato de que os

“pobres” não conseguem competir. Seria por isso que apresentam dificuldades de

obterem rendas. No fim das contas, o que se pressupõe é que se, por um lado, as

oportunidades podem ser geradas pelo crescimento econômico (alcançado a partir do

aprofundamento e aceleração da inserção da economia na globalização), por outro,

elas são criadas pelo próprio indivíduo através de seus “ativos” - seu “capital

humano”, por exemplo.

Resumindo, o pobre é caracterizado, no Relatório de 1990, a partir de dois critérios:

por um lado, como aquele que não tem renda suficiente para estar acima da “linha de

pobreza” (critérios monetários determinado por um determinado padrão de consumo)

e, por outro, como aquele que não tem “ativos” suficientes que lhes criem

oportunidades para conseguir auferir aquela renda suficiente para ultrapassar a “linha”

– critério este que faz do “pobre” um indivíduo “não-competitivo”.

135

2.1.2. O Relatório sobre Desenvolvimento Mundial de 2000/2001: A Luta

contra a Pobreza

O relatório de 2000/2001 define a pobreza como “privação acentuada de bem-estar”.

Se o relatório de 1990 definia privação a partir de critérios monetários – tal como

renda e consumo - e apontava para o “capital humano” – medido pelos níveis de

educação e saúde do indivíduo – como idéia fundamental para pensá-la, o de

2000/2001 se propõe a ampliar a visão “tradicional” sobre a pobreza, enfatizando as

suas “múltiplas dimensões”.

Nesse sentido, pretendendo ir além da abordagem monetária da pobreza, o relatório de

2000/2001 afirma que a entende a partir de três eixos centrais: (i) falta de renda e

recursos para atender necessidades básicas, incluindo níveis aceitáveis de educação e

saúde; (ii) falta de voz e de poder nas instituições estatais e na sociedade; (iii)

vulnerabilidade a choques adversos e exposição a riscos, combinados com uma

incapacidade de enfrentá-los. Percebe-se, portanto, que as novidades do relatório de

2000/2001 referem-se aos itens (ii) e (iii).

Embora ressalte as “múltiplas dimensões” da pobreza e traga “novidades”, o novo

tratamento da “pobreza” pelo Banco Mundial se mostra um tanto ambíguo; ao tentar

definir quem é pobre e propor critérios de mensuração da pobreza, ou seja, contar o

número de pobres ou a proporção de pobres existente num determinado país, o

relatório de 2000/2001, “em vez de tentar definir um índice composto ou medir

compensações entre dimensões, focaliza a privação em diferentes dimensões e, em

particular, as múltiplas privações por que passam os pobres de renda.” (BANCO

MUNDIAL, 2000, p. 21).

Ou seja, a despeito de o relatório levar em conta certas privações múltiplas, para dizer

quem é pobre e “medir” a pobreza (e dizer quem é “pobre” e quem é “não-pobre”),

continua utilizando os indicadores monetários – aqueles mesmos de 1990 -, quais

sejam: linha de pobreza – “instrumento essencial no desenvolvimento de medidas de

pobreza”: um dólar por dia - e hiato de pobreza (poverty gap). (ibidem, p. 18)

Para dar conta das outras dimensões, são indicados, paralelamente, critérios (índices)

de avaliação dos níveis de saúde e educação; e é ressaltada a dificuldade de se medir

136

os dois elementos novos: a vulnerabilidade e a falta de voz e de poder dos pobres.

Quanto à “vulnerabilidade”, que é entendida como a taxa de entrada e saída da

pobreza, ressalta-se a dificuldade de se mensurar um conceito “dinâmico”; já no que

diz respeito aos meios de avaliação da falta de voz e de poder dos pobres, são

propostos métodos participativos, pesquisas de opinião, levantamento de variáveis

qualitativas.

Percebe-se, então, que a “necessária” distinção entre pobres e não-pobres parte de

critérios monetários; as outras facetas da pobreza – suas “múltiplas dimensões” - são

consideradas apenas num momento posterior - ou seja, quando se quer explicar e

ressaltar quais são as “causas” da pobreza e como incidir (através de políticas) sobre

elas.

Para examinar, explicar e discorrer sobre as causas da pobreza e, assim, evidenciar

seu lado inovador, o relatório do Banco Mundial de 2000/2001 toma, como ponto de

partida, o estudo The Voices of the Poor, realizado em 2000, cujo objetivo consistiu

em ouvir o que os “pobres” de cinqüenta países do mundo “em desenvolvimento” têm

a dizer sobre a “pobreza”. Assim, o estudo partiu de uma avaliação “participativa” da

pobreza, que consiste num método que procura o expressar a voz dos pobres, a partir

do que eles têm a dizer sobre a pobreza, uma vez que são considerados os únicos

expertos sobre essa temática.

Logo na introdução desse estudo, constata-se que:

A pobreza dói. As pessoas pobres sofrem dor física como conseqüência de

comer pouco e trabalhar muitas horas; dor emocional em função das

humilhações diárias que gera a dependência e a falta de poder e dor moral

por se verem forçadas a fazer escolhas. (NARAYAN, 2000, p. 3)

Diante de tal constatação, logo vem a seguinte indagação: já que a pobreza é tão

dolorosa, por que os pobres “permanecem na pobreza”? (idem) Ou seja, por que eles

não procuram sair da pobreza? Para analisar a questão, duas perspectivas são

ressaltadas: (i) a partir das realidades, experiências e pontos de vista dos pobres; e (ii)

a partir de um ponto de vista institucional, centrando a atenção nas instituições

informais e formais da sociedade com as quais interagem as pessoas pobres.

137

Do ponto de vista das realidades dos pobres, uma das conclusões desse estudo foi que

“a pobreza tem várias dimensões” (NARAYAN, 2000, p. 4) que estão

interconectadas. Dentre as definições de pobreza dadas pelas pessoas que se

encontram nessa situação prevalecem seis dimensões:

Primeiro, (...) o essencial é sempre a fome e a falta de alimentos. Segundo, a

pobreza tem dimensões psicológicas importantes como a impotência, a falta

de voz, a dependência, a vergonha e a humilhação. (...) Terceiro, as pessoas

pobres carecem de acesso à infra-estrutura básica (...). Quarto, (...) as

pessoas pobres se dão conta de que a educação brinda uma saída da pobreza

(...). Quinto, (...) mau estado de saúde e doença como fontes de miséria. (...)

Finalmente, os pobres falam poucas vezes de renda, mas se centram (...) na

administração dos ativos —físicos, humanos, sociais e ambientais — como

maneira de fazer frente a sua vulnerabilidade. (ibidem, p. 4-5)

Já do ponto de vista institucional, o livro destaca que o Estado tem sido ineficaz em

chegar aos pobres; a função que as Ongs cumprem na vida dos pobres é limitada e os

pobres dependem fundamentalmente de suas próprias redes informais; e o tecido

social — o único “seguro” das pessoas pobres — está se desmanchando. (ibidem, p.

5-7)

Partindo das considerações feitas nesse estudo, o Banco Mundial (2000, op. cit., p.

34) resume as diversas dimensões da pobreza nos três tópicos já ressaltados: (i) falta

de renda e recursos para atender necessidades básicas (incluindo níveis de educação e

saúde); (ii) falta de voz e de poder nas instituições estatais e na sociedade; (iii)

vulnerabilidade a choques adversos, combinada com uma incapacidade de enfrentá-

los.

Uma vez identificadas as “dimensões” da pobreza, o Banco Mundial (2000) ressalta o

melhor modo de apreender suas causas:

Para compreender os fatores determinantes da pobreza em suas múltiplas dimensões, o melhor é raciocinar em termos de recursos80, dos seus rendimentos (ou da sua produtividade) e da volatilidade dos rendimentos. (ibidem, p. 34)

Esses recursos (ou “ativos”) podem ser de vários tipos:

80 No original, em inglês: assets (ativos).

138

recursos humanos, como a capacidade de trabalho básicos, as aptidões e a boa saúde; recursos naturais, como a terra; recursos físicos, como o acesso à infra-estrutura; recursos financeiros, como a poupança e o acesso a crédito; recursos sociais, como as redes de contatos e obrigações recíprocas a que se possa recorrer em tempos de necessidade, e a influência política sobre os recursos. (idem, grifos no original)

Afirma-se que os “rendimentos” (ou produtividade) desses recursos (“ativos”)

dependem do acesso aos mercados – criadores de “oportunidades” – “e de todas as

influências globais, nacionais e locais que sofrem nesses mercados. Contudo, os

rendimentos não dependem apenas do comportamento dos mercados, mas também do

desempenho das instituições estatais e sociais.” (idem)

Percebe-se, portanto, as duas perspectivas da abordagem: por um lado, (i) a partir da

realidade do pobre, enquanto detentor (ou carente) de “recursos” e suas limitações

enquanto ator. É importante ressaltar que os motivos do acesso restrito aos “ativos”

não são explicados, ou seja, por que essas pessoas pobres têm poucos “ativos” ou

quase nenhum? Não se trata de questões desse tipo; a ênfase recai sobre os

“rendimentos” desses ativos, que, em última instância, são entendidos como um tipo

de “capital”. Já no que diz respeito à “volatilidade”, afirma-se que ela “resulta de

flutuações de mercado, condições meteorológicas e, em certas sociedades, da

turbulência das condições políticas” (idem) e, ainda, que ela pode afetar tanto os

rendimentos quanto os próprios recursos (podem destruí-los).

Por outro lado, (ii), centrando a atenção nas instituições – e, sobretudo, nas limitações

que elas criam para a realidade dos pobres: o acesso aos recursos e os seus

rendimentos (ou produtividade) dependem de como elas atuam. As instituições podem

impor “uma pesada carga aos pobres, impedindo que eles aproveitem novas

oportunidades econômicas e se dediquem a atividades que transcendam sua zona de

segurança imediata” (ibidem, p. 36). Abusos de poder das instituições “dificultam sua

participação nos assuntos públicos e a expressão de seus interesses. Além disso,

instituições estatais irresponsáveis e insensíveis são uma das causas da expansão

relativamente lenta dos recursos humanos dos pobres”. (idem).

Percebe-se que o relatório de 2000/2001 apresenta continuidades e novidades em

relação ao de 1990. Como continuidade, pobre continua sendo considerado aquele

cuja renda está abaixo da “linha de pobreza” e, ainda, que não possui “ativos”

suficientes. Destaca-se o eixo econômico das “oportunidades” de mercado,

139

oportunidades que podem ser ampliadas tanto pelos indivíduos – aumentando a

produtividade de seus ativos – quanto pelo próprio mercado, através do crescimento

econômico.

Como novidades, são ressaltadas novas dimensões tanto do ponto de vista dos

“ativos” – por exemplo, inclui-se no rol dos “recursos” a discussão sobre o “capital

social” - quanto da pobreza propriamente dita. O novo relatório entende essa última

como multidimensional e, além das econômicas, leva em conta também dimensões

políticas, institucionais e sociais, como a “falta de voz” (voicelessness) e “falta de

poder” (powerlessness) – as quais impediriam que os pobres exercessem influência

sobre as instituições estatais e que participassem politicamente - e, ainda, a dimensão

da “vulnerabilidade”.

“Falta de voz” (voicelessness) e “falta de poder” (powerlessness) seriam, por um lado,

um problema institucional, resultantes dos abusos de poder sofridos pelos “pobres”

relatados em The Voices of the Poor (NARAYAN, 2000, p. 5). De acordo com este

estudo, “as pessoas pobres percebem que suas interações com os representantes do

Estado são marcadas por rudeza, humilhação, abuso e indiferença” (idem). Assim,

essa falta de voz e de poder seria resultante, segundo o Banco Mundial (2000), das

próprias características das instituições públicas - como as ressaltadas: falta de

“responsabilidade”, falta de “sensibilidade” perante os pobres e, ainda, “ineficiência”

– que dificultam que os pobres tenham “influência sobre as instituições estatais”

(ibidem, p. 39), impedindo-lhes o empowerment81. Em suma, a ênfase recai sobre a

estrutura inadequada e o mau funcionamento das instituições do Estado, os quais

reforçariam a condição de pobre. Por outro lado, as duas faltas – voicelessness e

powerlessness - seriam resultantes do próprio fato de o pobre ser pobre (enquanto

carente de recursos, ou ainda, enquanto ator incompleto). A carência de recursos gera

uma “impotência [que] sujeita-os a grosserias, humilhações, vergonha, tratamento

desumano” (ibidem, p. 36).

Assim, tanto a falta de recursos quanto o problema das “instituições” seriam

empecilhos para que os pobres exercessem influência sobre as instituições estatais e

que participassem politicamente: que tivessem “voz” e “poder”.

81 Muitas vezes o termo empowerment tem sido traduzido como “empoderamento”. Palavra esta que não faz parte contudo da língua portuguesa, segundo dicionários como Aurélio e Houaiss.

140

Por fim, no que diz respeito à “vulnerabilidade”, o Banco Mundial (2000) faz algumas

considerações:

é companheira constante da privação material e humana, dadas as circunstâncias dos pobres e quase pobres. (...) Os riscos que os pobres enfrentam em conseqüência de suas circunstâncias são a causa da sua vulnerabilidade. Porém, uma causa mais básica é a incapacidade de reduzir ou mitigar o risco ou de absorver os choques, que tanto se origina das causas de outras dimensões da pobreza, como as alimenta. Os baixos níveis de recursos (...) torna, os pobres especialmente vulneráveis a choques adversos (...). A falta de recursos adequados pode dar margem a um círculo vicioso, em que as ações de defesa a curto prazo agravam as privações a longo prazo. (...) Outra causa subjacente de vulnerabilidade é a incapacidade do Estado ou da comunidade de desenvolver mecanismos de redução ou alivio dos riscos (ibidem, p. 37).

Em última instância, nota-se que há duas causas principais para a “vulnerabilidade”:

primeiro, a dotação insuficiente de “recursos” (ou ativos) que o indivíduo possui

parece ser novamente central para a argumentação. Segundo o relatório, portanto, são

os baixos níveis de “ativos” que geram no pobre essa incapacidade de enfrentar os

riscos, deixando-o numa situação de vulnerabilidade. Em segundo lugar, destaca-se o

problema institucional – a “incapacidade”, “ineficiência”, dentre outras falhas das

instituições estatais - que não ajuda os pobres no enfrentamento dos riscos.

De um ponto de vista teórico, é possível sugerir que as duas perspectivas – do pobre

enquanto agente e dos obstáculos institucionais - são articuladas, embora de maneira

frouxa, a partir da noção de “capacidades” de Amartya Sen (2000), ou melhor,

enquanto “privação das capacidades”.

2.1.2.1. Pobreza como “privação das capacidades”: a presença das idéias de Amartya Sen

Embora o recurso à teoria de Amartya Sen no Banco Mundial (2000) não seja tão

explícito quanto nos relatórios do PNUD, como se verá adiante, a ampliação da

agenda da pobreza, a partir do relatório de 2000/2001, está diretamente relacionada

com a incorporação no tratamento da pobreza, ainda que um tanto frouxa, das idéias

daquele autor. Seria possível afirmar que tal incorporação é frouxa na medida em que:

(i) o autor é pouco citado – apenas quatro vezes ao longo do relatório; (ii) a

incorporação de suas idéias não explicita seu arcabouço teórico e (iii) ocorre

141

simplesmente a partir da utilização da noção de “capacidades”82. Parece, contudo, ser

importante destacar essa incorporação, ainda que frouxa, na medida em que (i) a

pobreza como “privação de capacidades”83 é ressaltada como uma “novidade” ou

“avanço” e que (ii) a carência de “recursos” (dos mais variados tipos) por parte dos

indivíduos e, ainda, o ambiente institucional aparecem enquanto limitações nas

“capacidades” dos indivíduos:

todas essas formas de privação restringem severamente o que Amartya Sen chama de ‘capacidades inerentes à pessoa, ou seja, as liberdades substantivas de que desfruta para levar a vida que ela prefere’ (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 15)

Por terem suas capacidades limitadas por aquelas duas perspectivas, os pobres “vivem

sem a liberdade fundamental de ação e escolha que os que estão em melhor situação

dão por certo”. (ibidem, grifo meu, p. 1)

2.1.2.2. Indivíduo, “recursos” e limitações das “capacidades”

Pode-se perceber que parte da problemática sobre a pobreza exposta anteriormente diz

respeito ao indivíduo pobre e essa abordagem baseia-se em sua carência de recursos

(assets). Segundo Narayan (2000), os próprios

pobres quase nunca falam das rendas, mas sim se referem repetidamente aos ativos que consideram importantes. A carteira de ativos que administram é diversa: ativos físicos, humanos, sociais e ecológicos. (NARAYAN, 2000, p. 49)

Esta afirmação aparece, em The Voice of the Poor, logo após a citação de quatro

depoimentos de “pobres” tomados como exemplos para ilustrar como o tema dos

“ativos” é crucial para eles. Contudo, nenhum desses depoimentos é colocado em

termos de “ativos”.

A escolha do termo “recursos” (ou “ativos”) como elemento sintetizador dos

depoimentos dessas pessoas e, ainda de modo geral, como um dos pilares da 82 Sem se referir a outros conceitos importantes do autor, tal como o de “funcionamentos” ou à discussão sobre meios e fins no que diz respeito às liberdades (SEN, 2000; 2001). A noção de “capacidades” é definida rapidamente como “as liberdades substantivas de que desfruta para levar a vida que [a pessoa] prefere” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 15) 83 Nas palavras de Amartya Sen: “a pobreza deve ser vista como privação de capacidades básicas” (SEN, 2000, p. 109).

142

problemática pobreza é, portanto, bastante reveladora. Tem-se por pressuposto que,

tal como uma empresa, esse indivíduo deveria possuir ativos, cujos “rendimentos” (ou

produtividade) são fundamentais para a sua existência. Ele é considerado “pobre”

porque carece desses ativos e, portanto, não consegue nem criar “oportunidades” para

si, nem gerar “segurança” para enfrentar os “riscos”. Por mais que esses ativos

ressaltados possam ser “humanos” ou “sociais”, sua associação a idéias e objetivos

essencialmente econômicos é evidente.

O conceito de “capital humano” é utilizado e definido enquanto meio de aumentar as

oportunidades do indivíduo no mercado. É considerado “capital” porque “tal como o

capital físico é criado por mudanças materiais para formar instrumentos que facilitem

a produção, o capital humano é criado por mudanças nas pessoas que tragam

habilidades e capacidades que as tornem capazes de agir de maneiras novas.”

(COLEMAN, tradução livre, 2000, p. 19) Tal como foi ressaltado no segundo

capítulo, o argumento fundamental é o de que o capital humano gera – sobretudo a

partir de incrementos em educação - “produtividade” no indivíduo, tornando-o mais

apto a competir no mercado e, com isso, contar com maiores “oportunidades” de

auferir rendas.

Já no que diz respeito ao “capital social”, a abordagem presente no relatório84

(BANCO MUNDIAL, 2000) também tende ao entendimento do termo enquanto um

tipo particular de recurso disponível para o indivíduo. Além de ressaltar brevemente

como o capital social pode ser importante para o desenvolvimento econômico

(ibidem, p. 133), fazendo uma pequena resenha das variadas teorias sobre o “capital

social”85, o relatório do Banco Mundial (ibidem) enfatiza o entendimento desse termo

sobretudo como recursos aos quais o indivíduo pode ter acesso.

84 Aqui se analisa o relatório de 2000-2001, mas a discussão sobre “capital social” no Banco Mundial começou em 1996, a partir da Social Capital Initiative (disponível na internet http://www.worldbank.org/ ) cujos trabalhos tiveram como objetivo “contribuir tanto para um entendimento conceitual do capital social quanto para a sua mensuração” (WORLD BANK, 1998, p. 7) e buscaram, em geral, testar duas hipóteses: (i) que a presença do capital social melhora a eficácia dos programas de desenvolvimento; (ii) que através das intervenções externas - do próprio Banco Mundial, por exemplo - é possível estimular o acúmulo de “capital social”. 85 Vale notar que não há referências a Pierre Bourdieu, muito embora este autor tenha sido um dos pioneiros no tratamento do tema do “capital social”, entendendo-o - juntamente com o “capital econômico” e o “capital simbólico” - a partir da lógica da reprodução das relações de classe. Ele define “capital social” como “o conjunto dos recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de mútuo conhecimento e reconhecimento; ou, em outros termos, ao pertencimento a um grupo, como conjunto de agentes que não são apenas dotados de propriedades comuns (...), mas que são também unidos pelas relações

143

Neste ponto, a aproximação com Coleman (2000) é evidente, uma vez que este último

afirma que, embora o “capital social”, ao contrário das outras formas de “capital”,

“não [esteja] (...) alojado nem nos próprios atores nem nos instrumentos físicos de

produção” (COLEMAN, tradução livre, 2000, p. 16) – mas, ao contrário, seja

“inerente à estrutura das relações entre os atores e dentre os atores” (idem, grifo meu)

–, é possível entendê-lo a partir do ponto de vista dos próprios indivíduos, ou seja,

enquanto “recursos para as pessoas” (idem, grifo meu).

Coleman (2000) afirma que a importância do conceito de “capital social” consiste no

fato de ele identificar ou iluminar certos aspectos da estrutura social a partir de suas

funções:

A função identificada pelo conceito de ‘capital social’ é o valor desses aspectos da estrutura social para os atores enquanto recursos que eles podem usar o para alcançar seus interesses. (COLEMAN, tradução livre, ibidem, p. 19)

Quanto à utilização do conceito de “capital social” na abordagem especificamente da

questão da pobreza no Banco Mundial percebe-se que ela vai na mesma direção dos

argumentos de Coleman. Tal como o “capital humano”, o conceito de “capital social”

é considerado em tal abordagem como um tipo “recurso”: “recursos sociais”. Assim,

embora o termo “capital social” objetive abarcar as relações sociais - as relações

informais, as relações de parentesco, organizações locais, as redes sociais -, elas

apenas são importantes na medida em que podem atuar como "recursos” de capital

para os indivíduos – e só assim podem ser consideradas "capital social". O modo

como este termo é abordado no relatório (enquanto “recursos”) está essencialmente

relacionado a questões de produtividade e de instrumentalidade para o indivíduo.

permanentes e úteis.” (BOURDIEU, 1980, p. 2). E afirma que o “volume de capital social que um agente particular possui depende da extensão da rede de relações que pode efetivamente mobilizar e do volume do capital (econômico, cultural e simbólico) que possui cada um daqueles indivíduos aos quais o agente está ligado.” (idem) Embora Bourdieu também trate da importância do “capital social” enquanto recursos para o indivíduo, é importante ressaltar que ele considera este indivíduo situado num contexto de uma estrutura social fundamentada em classes. Além disso, como lembra Swain (2003), é importante perceber também que o autor se refere ao “capital” numa sociedade capitalista. Nesse sentido, segundo Bourdieu, apenas a burguesia possui “capital social” (SWAIN, ibidem, p. 189). Assim, a análise do capital social em Bourdieu pressupõe questões que estão ausentes tanto nos teóricos do “capital social” quanto no próprio Banco Mundial, tais como uma sociedade baseada em classes, as relações e a desigualdade existentes entre essas classes.

144

Tal como afirma Coleman (2000), embora o “capital social” seja uma forma de capital

menos tangível que o “capital humano” – já que ele existe nas relações entre as

pessoas -, ele deve ser considerado um facilitador da atividade produtiva. Dessa

forma, o que importa, em última instância, é o quanto de “capital social” o indivíduo

possui (ou ainda, quanto de capital social existe nas relações sociais em que tal

indivíduo se insere), de modo que lhe seja útil e produtivo e que, assim, faça jus ao

estatuto de “capital”: “redes sociais e organizações sociais são ativos claramente

essenciais na carteira de recursos a que recorrem os pobres para manejar riscos e

oportunidades.” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 133).

A abordagem do Banco Mundial (2000) parte da diferenciação de três tipos de

“capital social”: (i) unificador, que se refere aos fortes vínculos que ligam os

membros da família, vizinhos, amigos, parceiros nos negócios; são laços que ligam

pessoas que têm características demográficas comuns; (ii) conectivo, que é definido

pelos fracos vínculos entre os indivíduos de diferentes antecedentes étnicos e

ocupacionais; ele implica em conexões horizontais com pessoas de situação

econômica e poder político geralmente comparáveis; (iii) vinculador, que consiste em

elos verticais entre pobres e as pessoas que ocupam posições influentes nas

organizações formais. (ibidem, p. 134) Percebe-se, portanto, que essa utilização do

“capital social”, na discussão sobre a pobreza, delineia e enfatiza um sentido

instrumental para o termo, associando a importância desse tipo de “capital” para o

indivíduo pobre a seu atributo de facilitador da transformação do indivíduo pobre em

um “não-pobre”.

As implicações do capital social para o pobre são analisadas, por exemplo, por

Collier86 (1998). Procurando adequar a discussão sobre “capital social” a uma

perspectiva mais econômica, o autor explica porque o “capital social” deve ser

entendido tanto como “social” quanto como “capital”: (i) é ‘social’ porque ele “gera

externalidades emergentes da interação social. Tanto a iniciação quanto suas

conseqüências geram efeitos que não estão internalizados na decisão de cálculo de

cada agente.” (ibidem, p. viii); (ii) “capital social é ‘capital’ “apenas se seus efeitos

persistirem. [Essa] persistência pode se dar tanto porque a interação social ela mesma

86 Paul Collier foi diretor do Grupo de Pesquisas sobre Desenvolvimento (Development Research Group) do Banco Mundial entre 1998 e 2003.

145

tem alguma característica que a torna persistente, ou porque os efeitos são capazes de

fazer durar a interação que os causa.” (idem)

Collier (1998) sugere que o capital social é “economicamente benéfico” porque as

interações sociais podem causar uma ou outra de três “externalidades”:

Ele facilita a transmissão de conhecimento sobre o comportamento dos outros e isso reduz o problema do oportunismo. Ele facilita transmissão de conhecimento sobre tecnologia e mercados e isso reduz as falhas de informação nos mercados. Ele reduz o problema do carona [free-riding] e isso facilita a ação coletiva. (idem)

Assim, as implicações do capital social sobre o pobre são articuladas pelo autor como

variações a partir de uma tipologia da teoria dos jogos. Não cabe aqui maior digressão

sobre cada uma dessas variações, mas apenas apontar para o fato de que a pobreza

vem sendo entendida e discutida também à luz da teoria dos jogos. A idéia de “pobre”

vai se aproximando, portanto, de um indivíduo racional-maximizador em condições

adversas para “jogar”.

De modo geral, pode-se perceber que, embora o conceito de “capital social” possa ser

associado a discussões sobre sociabilidade, civismo e política – como é o caso de

Putnam (1996), por exemplo – e a utilização desse conceito pelo Banco Mundial na

discussão sobre a pobreza possa representar uma “novidade” (quando se compara com

o relatório anterior), suas limitações e implicações são evidentes. Ao entender o

“capital social” enquanto recursos disponíveis para o indivíduo, essas discussões

mostram estar na maior parte das vezes associadas e reduzidas apenas a objetivos

econômicos – sendo explicadas a partir de um ponto de vista instrumental.

Nesse sentido, a despeito de serem exaltadas como “novidades” e de terem a

pretensão de dar conta de fenômenos que estão para além da dimensão econômica, as

discussões sobre “capital social” partem simplesmente de interpretações que o tratam

simplesmente como um “acúmulo” de meios (recursos) tanto para gerar

“oportunidades” para o indivíduo quanto para reduzir e enfrentar sua

“vulnerabilidade”, ou seja, atuando como uma possibilidade de tornar alguém um

não-pobre.

É nesse sentido que, no relatório, a carência desses recursos - dos mais variados tipos,

incluindo, “capital humano” e “capital social” - por parte dos indivíduos aparece

relacionada a limitações em suas “capacidades”, aproximando-se do sentido atribuído

146

por SEN (2000): “todas essas formas de privação restringem severamente o que

Amartya Sen chama de ‘capacidades inerentes à pessoa, ou seja, as liberdades

substantivas de que desfruta para levar a vida que ela prefere’” (BANCO

MUNDIAL, 2000, p. 15)

Dessa maneira, ao serem carentes de “recursos”, os pobres têm suas “capacidades”

limitadas e é justamente por isso que eles “vivem sem a liberdade fundamental de

ação e escolha que os que estão em melhor situação dão por certo”. (ibidem, grifo

meu, p. 1)

2.1.2.3. Instituições e limitações das “capacidades”

Outro pilar sobre o qual se sustenta a discussão da pobreza como “privação de

capacidades” pode ser identificado na discussão sobre as instituições, que são tratadas

como limitadoras das capacidades dos indivíduos.

A importância das instituições reside em que elas “afetam as oportunidades das

pessoas ao brindar e manter seu acesso aos recursos sociais, materiais e naturais.

Também reforçam a capacidade de ação coletiva e de auto-ajuda, enquanto que sua

falta pode contribuir à imobilização e à inércia.” (NARAYAN, 2000, p. 9)

As instituições aparecem classificadas em dois tipos: “instituições sociais” e

“instituições estatais”. O Banco Mundial (2000) define as primeiras como: “os

sistemas de parentesco, as organizações locais e as redes dos pobres” e resume que

elas devem ser entendidas enquanto “capital social”. Às vezes sob o título – um tanto

indefinido - de “sociedade civil”, as “instituições sociais” aparecem, de modo geral,

enquanto “capital social” ou “recursos sociais” de que os indivíduos dispõem (ou não)

e que afetam suas “oportunidades” e suas “capacidades”. As “instituições sociais”

(entendidas como “capital social”) afetam as capacidades dos indivíduos na medida

em que lhes servem enquanto recursos para atuar e, assim, ampliar suas

“oportunidades” de sair da pobreza.

As “instituições estatais” são abordadas a partir da “constatação” de seu fracasso -

ineficiência, ineficácia, insensibilidade e irresponsabilidade. Diante de tal

“constatação”, as instituições estatais são entendidas como uma das causas da

perpetuação das condições de pobreza. Elas são entendidas como entraves ao acesso

147

aos recursos, às oportunidades e ao empowerment dos pobres – contribuindo para a

sua falta de voz (voicelessness) e de poder (powerlessness). Em última instância, são

percebidas como limitadoras das capacidades dos indivíduos. A partir da questão

“como tornar as instituições do Estado mais sensíveis aos pobres” (BANCO

MUNDIAL, 2000, p. 103), prescrevem-se inúmeras “recomendações” de mudança

para as instituições estatais que muito têm a ver com as diretrizes do Banco Mundial

sobre a reforma do Estado (por exemplo, os relatórios de 1997 e de 2002). A questão

do melhoramento das instituições estatais diz claramente respeito ao enxugamento do

Estado, reduzindo-o à função de facilitador dos mercados.

Assim, mais parece que esse discurso do “combate à pobreza” diz respeito à tentativa

de transformação do Estado do que à questão social propriamente dita. De todo modo,

não cabe ainda entrar numa discussão sobre o que é recomendado para tornar o Estado

mais “sensível” aos pobres, mas vale destacar que as propostas consistem, por

exemplo, em reduzir o tamanho da administração pública, concentrando a ação

pública sobre os “mais pobres”, privatizar empresas públicas, descentralizar

(reduzindo o poder do Estado e transferindo-o para as esferas locais) e, ainda,

construir “coalizões em prol dos pobres” (ibidem, p. 113) em torno da “política de

redução da pobreza”.

Organizando e resumindo o que o Banco Mundial (2000) diz sobre a conexão entre as

instituições estatais e a “pobreza”, poderia se afirmar que: (i) elas são vistas como

“ineficientes” porque não conseguem atuar sobre as “oportunidades” dos pobres; é

por isso que elas devem se adequar ou se retrair87, dando espaço e/ou criando as

condições necessárias para o “bom” funcionamento dos mercados; (ii) elas também

são ineficazes porque não conseguem atuar sobre os “recursos” dos pobres – por

exemplo, seu “capital humano” -; é por isso que os esforços da atuação pública devem

se concentrar ou “focalizar” (e, assim, ser mais “sensíveis”) em promover educação e

saúde básicas para eles; e, ainda, (iii) elas são irresponsáveis e abusam de poder

porque inibem o empowerment (a voz e o poder) dos pobres – para estimulá-lo, é 87 Como foi visto no primeiro capítulo, o Banco Mundial (1997; 2002) sugere que o Estado tenha um tamanho “moderado”, que se reduza (atuando apenas em setores que não interessem ao setor privado) e que fortaleça suas instituições (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 64), tornando-as favoráveis (funcionais) ao “bom” funcionamento dos mercados - atuando nos casos em que esses últimos apresentem “imperfeições”. Assim, o Estado deve ser “eficiente”: um catalisador, facilitador e encorajador dos negócios privados, isto é, dos mercados. (BANCO MUNDIAL, 1997). E as instituições (BANCO MUNDIAL, 2002) devem ser “eficazes”, garantindo o marco legal (direitos de propriedade, garantia do cumprimento dos contratos, etc.) “necessário” para o “bom” funcionamento dos mercados.

148

preciso descentralizar (isto é, transferir formalmente o poder do Estado para os

centros locais de decisão), garantir liberdades políticas e o “bom funcionamento” dos

processos democráticos, tudo isso visando garantir a “participação” dos “pobres”.

Mas é importante ressaltar que esta “participação” nada tem a ver com a construção

de vontades ou identidades coletivas – inseridas num Estado-nação -, mas

simplesmente com uma idéia de participação local da população previamente definida

como pobre88.

É por aí, portanto, que a problemática das instituições - enquanto motivo para a

“perpetuação das condições de pobreza” (NARAYAN, 2000, p. 11) - é entendida

como limitação das “capacidades humanas” dos indivíduos.

2.2. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)

No mesmo ano em que o Banco Mundial publica seu World Development Report

sobre a pobreza (BANCO MUNDIAL, 1990), o Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD) divulga o seu Human Development Report, o primeiro de

uma série cujo objetivo consistiu em trazer o tema do “desenvolvimento humano”

para o centro da discussão sobre o desenvolvimento e em enfatizar a importância

dessa nova abordagem. Desde então, o Human Development Report tem sido

publicado anualmente e procurado direcionar o debate sobre o “desenvolvimento

humano”, através da discussão de temas89 diversos. Sua “questão central tem sido

88 Por exemplo, a própria experiência do projeto Voices of the poor (NARAYAN, 2000) – baseada no método participativo de avaliação da pobreza (isto é, a pobreza segundo os pobres) - é entendida como um exercício de participação, na medida em que implicaria em empowerment aos “pobres”. Diante disto, duas considerações: por um lado, percebe-se que o significado de “participação” para o Banco Mundial é bastante amplo (que pode significar quase qualquer coisa) e, por outro, ressalta-se, mais uma vez (por exemplo, tal como no caso de “criação” de “capital social”), a importância da intervenção externa - dos organismos internacionais – enquanto elemento de estímulo à participação ou à democracia. 89 Os temas dos Human Development Reports foram: Concept and Measurement of Human Development (1990); Financing Human Development (1991); Global Dimensions of Human Development (1992); People's Participation (1993); New dimensions of Human Security (1994); Gender and Human Development (1995); Economic Growth and Human Development (1996); Human Development to Erradicate Poverty (1997); Consumption for Human Development (1998); Globalization with a Human Face (1999); Human Rights and Human Development (2000); Making New Technologies Work for Human Development (2001); Deepening Democracy in a Fragmented World (2002); Millennium Development Goals: A Compact among Nations to End Human Poverty (2003); Cultural Liberty in Today's Diverse World (2004); International Cooperation at a Crossroads: Aid, Trade and Security in an Unequal World (2005); Beyond Scarcity: Power, Poverty and the Global Water Crisis (2006).

149

sempre as pessoas como objetivo do desenvolvimento e a sua capacitação enquanto

participantes no processo de desenvolvimento.” (PNUD, 1999, p. 18)

O Human Development Report foi idealizado pelo economista paquistanês Mahbub ul

Haq a partir da preocupação crítica com o economicismo recorrente na percepção e

avaliação do “desenvolvimento”, abordagens que partiam da renda ou do crescimento

do PIB. No início dos anos noventa, Mahbub ul Haq reuniu algumas pessoas – tais

como Amartya Sen, Frances Stewart e Richard Jolly90 - para ajudá-lo na elaboração

dos relatórios, cujo objetivo central seria o de abordar de modo inovador a temática

do desenvolvimento.

Desde o primeiro relatório da série (UNDP, 1990), o PNUD insiste na importância de

trazer a dimensão “humana” para o centro do debate econômico e político do

desenvolvimento. O objetivo proposto é o de que a análise do desenvolvimento vá

além da renda e busque alcançar o nível de bem-estar das pessoas.

Dentro dessa perspectiva, o “desenvolvimento humano” é definido como um processo

de alargamento das escolhas, oportunidades e liberdades das pessoas (UNDP, 1990).

Percebe-se, portanto, que o referencial teórico desses relatórios está fortemente

marcado pelas reflexões de Amartya Sen.

Se, como já foi visto, a incorporação das idéias de Sen pelo Banco Mundial (2000) se

dá de uma maneira um tanto frouxa, o mesmo não pode ser dito em relação ao modo

como o PNUD mobiliza a teoria do economista laureado pelo Nobel91. Como

Amartya Sen fez parte do “painel de consultores” na elaboração de vários dos Human

Development Reports, seria de esperar a presença de suas idéias nesses documentos.

Mas a seguir mostrar-se-á como essas idéias são centrais e fundamentais para toda

essa argumentação, sobretudo no que diz respeito à construção da noção de

“desenvolvimento humano” e ao tratamento da questão da pobreza.

90 Em 1987, Frances Stewart e Richard Jolly participaram - juntamente com Giovanni Andrea Cornia – da publicação da UNICEF “Adjustment with a Human Face”, já mencionada anteriormente. 91 Amartya Sen ganhou o Nobel de Economia em 1998.

150

2.2.1. Amartya Sen e a noção de “desenvolvimento humano”

Se outrora - durante a chamada “era dourada” (HOBSBAWM, 1995) - o tema do

“desenvolvimento” remetia a questões relacionadas a profundas mudanças nas

características internas dos países e, sobretudo, às relações e interações existentes

entre eles (DOMINGUES, 2003), percebe-se que, aos poucos, o conceito de

“desenvolvimento” foi se esvaziando e atualmente quer dizer muito menos. Tal idéia

deixou de significar uma preocupação “tanto com o aspecto internacional quanto com

aquele interno do desenvolvimento (...) [passando a se resumir a] um problema às

vezes de crescimento econômico puro e simples ou [a] uma questão de mudança das

perspectivas e vidas das pessoas individualmente.” (ibidem, p. 202)

Amartya Sen (2000) lida com a idéia de “desenvolvimento” dentro desta última

perspectiva (DOMINGUES, 2003) - e contra o “economicismo” da primeira

perspectiva -, através de sua noção de “desenvolvimento como liberdade”.

Sen (2000) defende que a melhor maneira de entender o “desenvolvimento” é

destacando sua relação com a questão da liberdade, através de sua abordagem das

“capacidades”. A liberdade individual deve ser identificada como o grande objetivo

ou, ainda, a “perspectiva norteadora” (ibidem, p. 10) do processo de desenvolvimento.

Para explicar o que entende por “liberdade” e, consequentemente, por

“desenvolvimento”, Sen parte das noções de “funcionamentos” e de “capacidades”.

O autor (ibidem, p. 94) quer situar a discussão para além da questão da “utilidade”

(como para os utilitaristas) e da questão “bens primários” - como em Rawls (1993).

Assim, propõe a dimensão das “capacidades” – as liberdades substantivas – “de

escolher uma vida que se tem razão para valorizar” como a abordagem mais

apropriada para discutir temas como desenvolvimento, bem-estar, justiça, igualdade,

etc.

A discussão sobre a abordagem mais apropriada para tanto aparece claramente em

Desigualdade Reexaminada (SEN, 2001), em que o autor afirma que, diante de (i) a

diversidade existente entre os homens e (ii) a multiplicidade de variáveis a partir das

quais a questão da “igualdade” pode ser avaliada ou julgada, é impossível que se

obtenha a igualdade de tudo ao mesmo tempo e que há que escolher qual o tipo de

igualdade mais relevante, e que sendo assim, de modo a impedir que conceito se

151

esvazie. Defender simplesmente “igualdade”, não quer dizer muita coisa; para Sen, é

necessário que se especifique de que igualdade se está falando, é preciso responder à

questão central para o autor: “igualdade de que?”.

A partir desta questão, escolhe-se uma “variável focal” para a análise da igualdade.

Além de ter como objetivo problematizar a avaliação da igualdade, no livro

Desigualdade Reexaminada, Sen se propõe a mostrar, explicar e justificar qual é a

melhor “variável focal” – é neste momento, então, que o autor vai defender sua

“abordagem das capacidades”.

Antes de discutir sua proposta de “variável focal”, Sen (2001) ressalta que é

fundamental que se distinga entre os conceitos de “realização” e de “liberdade para

realizar”. Para o autor, a realização refere-se ao que uma pessoa conseguiu fazer ou

alcançar; enquanto que a liberdade para realizar diz respeito à oportunidade que tem

para fazer ou alcançar aquilo a que ela dá valor.

O objetivo proposto por Sen (2000; 2001) é concentrar-se na oportunidade real de o

indivíduo promover seus objetivos de vida. Nesse sentido, é “preciso levar em conta

não apenas os bens primários que as pessoas possuem, mas também as características

pessoais relevantes que governam a conversão de bens primários na capacidade de a

pessoa promover seus objetivos.” (SEN, 2000, p. 95) Ou seja, para o autor, o fato de

duas pessoas possuírem os mesmos recursos não significa que necessariamente elas

serão igualmente livres para realizar, dado que cada uma delas irá converter seus

recursos em liberdade de maneiras diferentes – uma podendo ter mais facilidade de

convertê-los que a outra. Deste modo, os recursos (ou bens primários) que uma pessoa

tem não seriam um bom indicador de quanta “liberdade” de fato ela consegue

desfrutar.

Para discutir sua abordagem das capacidades, Sen começa pela noção de

“funcionamentos”. O conceito de “funcionamentos” serve para dar conta da

pluralidade existente na sociedade no que diz respeito aos objetivos de vida de cada

pessoa. Segundo o autor, tal conceito “reflete as várias coisas que uma pessoa pode

considerar valioso fazer ou ter” (ibidem, p. 95). A potencialidade de esses

funcionamentos serem efetivados refere-se ao conceito de “capacidade de realizar

funcionamentos” – ou simplesmente “capacidades” (capabilities) -, que representa a

liberdade que cada pessoa tem de escolher a vida que deseja ter. Ou seja, a

152

“capacidade de realizar funcionamentos” significa a liberdade da pessoa para

concretizar de fato seu bem-estar. Em outras palavras, as “capacidades” são

“combinações alternativas de funcionamentos cuja realização é factível para ela [a

pessoa]. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a liberdade substantiva de

realizar combinações alternativas de funcionamentos.”

Como a avaliação do desenvolvimento está voltada para a questão da “liberdade” que

as pessoas desfrutam, se a análise se detivesse na idéia de “funcionamentos”

(realizados), seria limitada ou incompleta do ponto de vista do “desenvolvimento

como liberdade” (ALKIRE, 2002), uma vez que, num dado momento,

funcionamentos significariam aqueles que já foram alcançados pela pessoa, não

dando, portanto, a idéia de possibilidades de agência ou liberdade dos indivíduos.

Percebe-se, então, que o conceito de “capacidades” é usado pelo autor para poder dar

conta dessas idéias de liberdade e agência das pessoas, uma vez que ele representa um

conjunto de possibilidades (ou potencialidades; isto é, ainda não realizadas) de

funcionamentos e reflete, em última instância, a liberdade da pessoa de levar a vida

que valoriza.

Assim, “liberdade” de modo geral significa, para Sen (2000), a capacidade da pessoa

se realizar como agente, isto é, poder agir de acordo com suas próprias vontades e

escolhas. Antes de discutir melhor como a liberdade e desenvolvimento estão

vinculados nos trabalhos de Sen, é importante ressaltar que o autor faz uma distinção

entre dois tipos de liberdades, que, em última instância, refere-se a uma indicação dos

dois lados da liberdade: como fim e como meio.

De um lado, está a “liberdade substantiva”, a liberdade com valor intrínseco e sendo,

portanto, um fim em si mesma. Em última instância, é a liberdade humana em geral

como objetivo supremo do desenvolvimento. De outro lado, estão as liberdades

instrumentais, as quais atuam como meio e ajudam na promoção de liberdades de

outros tipos. O autor destaca cinco tipos de “liberdades instrumentais”:

(1) liberdades políticas, (2) facilidades econômicas, (3) oportunidades sociais, (4) garantias de transparência e (5) segurança protetora. Cada um desses tipos distintos de direitos e oportunidades ajuda a promover a capacidade geral de uma pessoa. Eles podem atuar complementando-se mutuamente. As políticas públicas visando ao aumento das capacidades humanas e das liberdades substantivas em geral podem funcionar por

153

meio da promoção dessas liberdades distintas mas inter-relacionadas. (...) Na visão do ‘desenvolvimento como liberdade’, as liberdades instrumentais ligam-se umas às outras e contribuem para o aumento da liberdade humana em geral. (SEN, 2000, p. 25)

Desse modo, “as liberdades não são apenas os fins primordiais do desenvolvimento,

mas também os meios principais.” (idem) A “liberdade” significa tanto a capacidade

da pessoa de se realizar como agente, isto é, de poder agir de acordo com suas

próprias vontades e escolhas (as “liberdades substantivas”) quanto os meios (as

“liberdades instrumentais”) pelos quais aquela “condição de agente” é ampliada ou

expandida.

Assim, o “desenvolvimento” é definido como o processo de expansão dessas

liberdades reais que as pessoas desfrutam (ibidem, p. 17). Se, por um lado, a

“abordagem das capacidades” ou o “enfoque nas liberdades humanas contrasta com

visões mais restritas de desenvolvimento, como as que identificam desenvolvimento

com o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB), aumento das rendas pessoais,

(...)” (idem), por outro lado, percebe-se, como havia sugerido Domingues (2003), que

o “desenvolvimento” para Amartya Sen nada tem a ver com questões socialmente

mais amplas, que envolvam nações ou países, mas, ao contrário, refere-se

simplesmente a “uma questão de mudança das perspectivas e vidas das pessoas

individualmente.” (DOMINGUES, 2003, p. 202) E, nas palavras de Sen: “Essa

concepção da economia e do processo de desenvolvimento centrado na liberdade é em

grande medida uma visão orientada para o agente.” (SEN, 2000, p. 26). O

“desenvolvimento como liberdade” diz respeito, portanto, apenas aos indivíduos, ou

melhor, a cada indivíduo, em qualquer lugar do mundo.

A “novidade” trazida pelo primeiro Human Development Report do PNUD, em 1990,

refere-se justamente a uma proposta de incorporação dessa nova concepção de

desenvolvimento na discussão sobre o tema. Ou seja, quando se enfatiza que é preciso

colocar “as pessoas” no centro do debate sobre o desenvolvimento, parece que está

sendo sugerido também que o desenvolvimento seja entendido enquanto

“desenvolvimento como liberdade”, tal como propõe Amartya Sen.

Durante todo o período, a causa dos pobres e a necessidade de centrar a atenção nos interesses das pessoas foram consideravelmente ajudadas pelo trabalho teórico de Amartya Sen e o seu conceito central de promoção das capacidades humanas. (...) A expansão das capacidades humanas implica numa maior liberdade de escolha - para que as pessoas possam explorar

154

um leque mais variado de opções que considerem merecer a pena. (PNUD, 1996, p. 49)

A incorporação das idéias de Sen (2000; 2001) é, portanto, bastante clara no PNUD.

Seus relatórios estão permeados pelas noções de funcionamentos, capacidades

humanas, oportunidades, escolhas, liberdades, as quais parecem estar todas

articuladas por intermédio das idéias do autor. Sua influência é evidente na discussão

do PNUD sobre “desenvolvimento humano”. Este último tem como finalidade o bem-

estar humano e é definido como “um processo de alargamento das escolhas das

pessoas” (UNDP, 1990, p. 10). E esse processo de "alargamento das escolhas das

pessoas é alcançado através da expansão das capacidades humanas e dos

funcionamentos." (UNDP, 1998, p. 17).

Para o PNUD (1990), o “termo desenvolvimento humano significa tanto um processo

de ampliação das escolhas das pessoas como o seu nível de bem-estar que foi

alcançado. [O termo] (...) também ajuda a distinguir claramente entre dois lados do

desenvolvimento humano. Um lado é a formação de capacidades humanas (...). O

outro é o uso que as pessoas fazem de suas capacidades adquiridas.” (UNDP, 1990, p.

10)

E, assim, argumenta-se que “este modo de olhar para o desenvolvimento difere das

abordagens convencionais do crescimento econômico, formação de capital humano, o

desenvolvimento dos recursos humanos, bem estar humano ou necessidades humanas

básicas.” (ibidem, p. 11). A grande diferença ou novidade trazida pela idéia de

“desenvolvimento humano” seria, em comparação92 com esses outros tipos de

abordagens, o fato de que enquanto estes últimos ressaltam e apontam para questões

relacionadas apenas a meios, a abordagem do “desenvolvimento humano” – tal como

a “abordagem das capacidades” de Amartya Sen (2000; 2001) – aponta, sobretudo,

para fins. Ou seja, para a ampliação das escolhas, oportunidades e liberdades de cada

pessoa como um fim si mesmas, e não como simples instrumento ou meio para outro

objetivo qualquer (econômico, por exemplo).

92 Sen (1997) fez comparação semelhante, contrastando o conceito de “capital humano” com o de “capacidade humana”. Para ele, o conceito de capital humano é mais limitado já que apenas concebe as qualidades humanas em relação com o crescimento econômico, enquanto que o conceito de capacidades dá ênfase à expansão da liberdade humana para levar o tipo de vida que as pessoas valorizam. Ou seja, o “capital humano” é um conceito instrumental, enquanto o conceito de “capacidades” implica num fim em si mesmo, já que se refere à “condição de agente” do indivíduo.

155

A abordagem das “capacidades” não visa prescrever nem fixar uma agenda ou uma

lista de capacidades a priori importantes a serem alcançadas, já que isso depende,

segundo Sen (2000; 2001) de valores pessoais: cada pessoa quer realizar

“funcionamentos” diferentes. Isso faz com que essa abordagem pressuponha certo

grau de pluralismo, já que considera que as pessoas têm valores diferentes.

Amartya Sen tem sido alvo de críticas, tanto no que diz respeito a problemas e

limitações de sua teoria (DOMINGUES, 2003) quanto às dificuldades de

operacionalização da abordagem das capacidades (CLARK, 2006; ALKIRE, 2002).

Domingues (2003) valoriza o esfoço de Sen em incluir um pluralismo de valores em

sua análise, uma vez que, na modernidade - que tem implicado progressivos

“desencaixes” dos indivíduos -, “somente meios autoritários poderiam introduzir um

universo fechado a priori de valores” (ibidem, p. 217) para todos. Contudo,

Domingues argumenta que, nesse pluralismo de Sen, é bastante problemática a

fragmentação da liberdade que é defendida a partir do conceito de “capacidades”.

Adverte que a idéia de “liberdade” foi introduzida na modernidade como “um

conceito unificado em sua luta contra a ordem feudal”. Ou seja, na idéia de liberdade,

estava pressuposta um combate à dominação feudal. No trabalho de Amartya Sen,

embora trate do tema da liberdade, não há uma discussão sobre a “dominação”, não é

uma questão para ele. Nesse sentido, a proposta de Sen é, para Domingues,

problemática e se aproxima da

concepção pré-moderna de liberdade (...). A fragmentação da liberdade como capacidade corresponde a várias imunidades que podiam ser encontradas no mundo feudal. Enquanto para o Esclarecimento a liberdade tinha de ser vista como liberdade igualitária (...) Sen prefere quebrar o espaço-tempo em uma miríade de ‘espaços’ avaliativos. (...) Ou a liberdade é igual para todos ou não é liberdade moderna; em vez disso é privilégio, de forma similar àqueles da era feudal. (...) Ademais, ou a liberdade se põe contra a dominação ou simplesmente não é liberdade, porém tão-somente a aceitação de um status quo no qual se admitem as desigualdades sociais, a dominação e o controle de certas coletividades sobre outras – classes, gêneros, raças, nações, estados – de forma mitigada e possivelmente muito ideologizada, sem questioná-las. (DOMINGUES, 2003, p. 219-220)

Assim, com essa fragmentação da idéia de liberdade proposta por Sen, a questão da

dominação não é problematizada, abrindo espaço para que ela perdure no mundo

social. Domingues chega à conclusão de que a proposta de Sen representa um recuo

em relação à social-democracia. Embora esta última não tenha conseguido superar a

156

dominação capitalista, o Welfare State serviu para remediar seus efeitos e, em grande

medida, atacou a desigualdade decorrente da sociedade de classes através dos direitos

sociais. Nas discussões de Sen não se encontra nada disso, ele apenas “contenta-se

com medidas discretas que não requerem direitos universais” (ibidem, p. 225) e uma

“eqüidade” nas capacidades de indivíduos que não parecem estar inseridos em

relações sociais em que estão presentes o poder e a dominação.

A partir de críticas mais brandas a Amartya Sen, outros ressaltam as dificuldades no

que diz respeito à operacionalização da abordagem das capacidades, ou seja, à

transformação de sua teoria em políticas públicas. Como levar a abordagem das

capacidades para os policy makers? Alguns afirmam que há uma contradição nessa

abordagem, já que ela pressupõe um pluralismo de valores sobre qual é a natureza da

boa vida (CLARK, 2006) e, para ser posta em prática, requer a escolha de certas

capacidades como universalmente valorizadas/boas. Alkire (2002) argumenta, por sua

vez, que as exigências de informação da abordagem das capacidades seriam tão altas,

que isso poderia impossibilitar a coleta de dados sobre os múltiplos “funcionamentos”

das pessoas, inviabilizando, portanto, sua aplicação.

O PNUD reconhece algumas dessas dificuldades na operacionalização do conceito de

“desenvolvimento humano”. Afirma que “nenhum índice, por si só, poderia traduzir a

complexidade desse conceito” (PNUD, 1994, p. 90) e que para a “escolha de aspectos

particulares da vida para uma investigação (...) torna-se necessária uma discussão

pública. Existe um inevitável elemento de juízo em qualquer seleção que se faça. Na

construção de qualquer índice (...) as seleções e as ponderações têm que ser

explicitamente estabelecidas e classificadas para que possam ser alvo de apreciação

pública.” (PNUD, 1997, p. 16)

A despeito de reconhecer a dificuldade de operacionalizar o conceito de

desenvolvimento humano, o PNUD definiu como essenciais três tipos de

“funcionamentos” para toda pessoa: poder levar uma vida longa e saudável, adquirir

conhecimento, ter acesso a recursos necessários para levar um nível de vida decente.

A partir daí, propôs a construção de um índice para medir o desenvolvimento

humano: o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que é uma medida das

realizações médias do “desenvolvimento humano” básico reunidas num único índice

composto, que engloba três variáveis para representar aquelas dimensões: renda

157

(calculada pelo PIB per capita ajustado ao custo de vida local com o emprego da

metodologia conhecida como paridade do poder de compra - PPC); longevidade

(medida pela esperança de vida ao nascer); e instrução (medida por uma combinação

entre as taxas de alfabetização e de escolaridade primária, secundária e superior)

(PNUD, 2001, p. 144).

O PNUD argumenta que embora o IDH não seja capaz de traduzir a complexidade do

conceito de “desenvolvimento humano”, ele é um indicador mais completo que o PIB,

capaz de melhor avaliar e comparar a realidade – o “progresso nacional” (PNUD,

1994, p. 91) - dos diferentes países, incorporando questões “mais humanas” à sua

mensuração93.

A partir de 1997, o PNUD (1997) começa a se dedicar especificamente à temática da

pobreza, que passa a ser discutida, como se verá a seguir, a partir da concepção de

“desenvolvimento humano”.

93 A cada ano, o PNUD faz, em seus relatórios, uma revisão do IDH e eventuais “correções, melhoramentos e ajustamentos resultantes quer da evidência das suas deficiências quer da aceitação de críticas e sugestões feitas por acadêmicos e políticos” (PNUD, 1994, p. 90) para, assim, melhorar a mensuração do desenvolvimento humano.

158

2.2.2. Pobreza e “desenvolvimento humano”

Foi em 1995, com a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social94 - realizada em

Copenhague -, que a luta contra a pobreza se tornou um objetivo da ação

internacional. Nesta conferência, surgiu um novo consenso entre os países a propósito

de se colocar as pessoas no centro do debate do desenvolvimento. Ou seja,

estabeleceu-se então uma condordância para com a maneira como o PNUD entendia o

desenvolvimento95. Enfatizou-se a erradicação da pobreza como uma meta para 185

países, que assumiram o compromisso de reduzir a pobreza mundial pela metade até

2015 e de adotar medidas para alcançar tal objetivo.

Em 1997, o PNUD dedica seu relatório anual ao tema do combate à pobreza - sob o

título “Desenvolvimento Humano para Erradicar a Pobreza”. Este relatório tem como

objetivo entender e analisar esse “desafio mundial numa perspectiva de

desenvolvimento humano. Não focaliza apenas a privação de rendimento, mas a

pobreza numa perspectiva de desenvolvimento humano – a pobreza como uma

negação de escolhas e oportunidades para viver uma vida aceitável.” (PNUD, 1997, p.

2).

Da mesma maneira que o “desenvolvimento humano” se coloca como um conceito

mais avançado e complexo que o de “desenvolvimento” (como crescimento do PIB),

a idéia de “pobreza humana” se propõe a ir além das concepções mais comuns de

“pobreza” – seja na perspectiva de “rendimentos”96, seja na de “necessidades

básicas”97. A noção de pobreza proposta pelo PNUD - embora também considere

essas duas perspectivas de pobreza - vai além delas, assumindo que a “pobreza tem

94 The World Summit for Social Development – cf. http://www.un.org/esa/socdev/wssd/ 95 O relatório do PNUD de 1994 (PNUD, 1994) fixou, como um de seus objetivos, o de sugerir uma proposta concreta de agenda para essa Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social. 96 Concepção de pobreza mais comum definida a partir de critérios monetários. Uma pessoa é pobre se, e só se, seu nível de rendimento se situa abaixo da linha de pobreza definida. 97 A pobreza é vista como privação de condições materiais para uma satisfação minimamente aceitável das necessidades humanas. Este conceito de privação vai além da falta de rendimento privado – uma vez que considera as “necessidades básicas insatisfeitas”, mas se limita a uma avaliação do bem-estar material da pessoa.

159

muitas dimensões” (PNUD, 1997, p. 15) e afirmando que ela precisa ser entendida a

partir de sua concepção de “desenvolvimento humano”.

Como foi visto anteriormente, o desenvolvimento humano é definido como um

processo de alargamento das escolhas das pessoas. A pobreza, por sua vez, é

entendida como negação das oportunidades e escolhas mais elementares para

desenvolvimento humano. É a abordagem das “capacidades” que fundamenta a

definição de pobreza, enfatizando, assim, as noções de Amartya Sen (2000; 2001) de

privação de “capacidades básicas para funcionar” (PNUD, 1997, p. 16), ou seja, a

privação de oportunidades e liberdades da pessoa para realizar níveis mínimos

aceitáveis de “funcionamentos”, como viver uma vida longa, saudável e criativa, e

gozar de um padrão de vida decente, liberdade, dignidade, respeito próprio e dos

outros, por exemplo. (ibidem, p. 5)

Para tornar o conceito de “pobreza humana” operacional, de modo que a pobreza

enquanto privação ou “negação de escolhas e oportunidades para uma vida aceitável”

(idem) possa ser “medida”98, não é possível levar em conta todas suas dimensões.

Desse modo, para medir a “pobreza humana” e para construir um indicador para ela -

o IPH (Indicador de Pobreza Humana) - são tomados apenas aqueles

“funcionamentos” - três elementos fundamentais da vida humana99 – já considerados

no IDH (longevidade, conhecimento e padrão de vida adequado), mas a partir do

enfoque da “privação”:

A primeira privação refere-se à sobrevivência (...) e é representada no IPH pela percentagem de pessoas que se espera [que] morram antes dos 40 anos. A segunda dimensão relaciona-se com o conhecimento (...) e é medida pela percentagem de adultos analfabetos. O terceiro aspecto refere-se a um nível de vida adequado (...) [que] é representado por um composto de três variáveis – percentagem de pessoas com acesso a serviços de saúde e [à] água potável e percentagem de crianças subnutridas menores de 5 anos. (PNUD, 1997, p. 18)

O IPH é construído, portanto, a partir da média100 entre esses três componentes. O

IPH é dividido em IPH-1 – para medir a pobreza humana em “países em

98 É importante perceber a dupla finalidade de “medir”: não apenas para “fornecer informação mas [para] (...) também ser utilizada na política” (PNUD, 1997, p. 17). 99 A escolha desses elementos é “feita procurando equilibrar, por um lado, as considerações sobre a relevância e, por outro, a disponibilidade e qualidade dos dados.” (PNUD, 1997, p. 19) 100 Não cabe explicar aqui os procedimentos matemáticos da construção do IPH, em termos de ponderação e agregação. Tudo isto é detalhado na nota técnica 1 do relatório (PNUD, 1997, p. 118).

160

desenvolvimento” – e IPH-2 - para medi-la nos países industrializados. Cada índice é

formado por variáveis com pesos diferentes, de acordo com o grupo de países a que se

refere, procurando refletir as diferentes realidades dos dois grupos de países.

O PNUD chama a atenção para o fato de que, na construção do IPH, não estão

presentes medidas de rendimentos, ou seja, diferentemente do IDH, o Índice de

Pobreza Humana não inclui uma dimensão “monetária”. O PNUD justifica essa

escolha afirmando que é difícil estabelecer um mesmo limiar de pobreza (linha) que

possa ser utilizado por diferentes países. Assim, justifica-se afirmando: “uma

possibilidade mais pragmática é a de ser menos ambicioso e centrar a privação

material na fome e subnutrição, e não no rendimento.” (ibidem, p. 19)

A discussão sobre pobreza humana tem a mesma matriz teórica que a de

desenvolvimento humano. “Enquanto o desenvolvimento humano foca o progresso da

comunidade como um todo, a pobreza humana centra-se na situação (...) das pessoas

mais pobres da comunidade.” (ibidem, p. 20) Assim, tanto o IDH quanto o IPH “têm

de utilizar as categorias de informação associadas ao desenvolvimento humano e da

qualidade de vida que vão para além da informação que o rendimento pode fornecer.”

(idem) Mas o IPH aparece como se fosse um reverso do IDH: “enquanto o IDH

aborda estas características na perspectiva globalizadora, o IPH deve utilizá-las na

perspectiva da privação.” (idem)

Em última instância, parece que o novo conceito proposto pelo PNUD - a "pobreza

humana" - e seu indicador (IPH) buscam servir de base para um entendimento mais

“humano” sobre o que é a pobreza e propor um modo de “medir” quanta pobreza há

num país.

Contrariamente ao Banco Mundial, percebe-se que os relatórios do PNUD não tratam

especificamente do tema das causas da pobreza. Não se dedicam a uma explicação

clara de quais sejam as causas da “privação de capacidades” e, portanto, quais as

causas da pobreza. Apenas o fazem de modo bastante simplificador, em certos

momentos em que o tema aparece rapidamente, como no trecho abaixo:

Numa concepção de capacidade, a privação de uma vida relaciona-se não só com o estado de empobrecimento em que a pessoa vive mas, também, com a ausência de oportunidades reais – devidas tanto a constrangimentos sociais como a circunstancias pessoais – para levar uma vida com valor e estimada. Na concepção de capacidade focam-se (...) [os

161

“funcionamentos”] que uma pessoa pode ou não desenvolver, dadas as oportunidades que têm. (PNUD, grifo meu, 1997, p. 16)

Ou seja, a “privação de capacidades” poderia ter sua origem tanto em

“constrangimentos sociais”101 quanto em “circunstancias pessoais” (estas últimas

seriam aquelas variações existentes entre uma pessoa e outra, para as quais Sen (2001)

chama a atenção, no que diz respeito à conversão de recursos em capacidades). Mas,

de qualquer modo, esse tema das causas ou origens das “privações de capacidades”

não é desenvolvido satisfatoriamente nos relatórios do PNUD.

Tampouco há um esforço explícito no PNUD de propor maneiras de identificar ou

definir quem é pobre. Embora o PNUD não proponha uma medida simples - como

traçar uma “linha” – para identificar quem é pobre ou não-pobre, isso não significa,

contudo, que essa questão esteja ausente.

Dentro da perspectiva proposta pelo PNUD - a do “desenvolvimento humano”

baseado na abordagem das “capacidades” -, percebe-se que o “pobre” aparece como o

reverso daquele indivíduo “livre” – ou “com capacidades” - de Sen (2000). Ou seja, o

pobre aparece como um indivíduo “sem capacidades”, sem “condição de agência”,

carente de oportunidades e de escolhas em sua vida.

Trazendo essa distinção conceitual para a realidade do atual “mundo em mudança”, o

PNUD afirma que a “globalização tem seus vencedores e seus perdedores.” (PNUD,

1997, p. 82). A globalização encerra em si mesma, lembra o PNUD (1997), uma

descrição e uma prescrição:

A descrição é o alargamento e aprofundamento dos fluxos internacionais de comércio, finança e informação no mercado global único e integrado. (...) A prescrição é a liberação dos mercados nacionais e globais, na convicção de que os fluxos livres de comércio, capital e informação conduzirão ao melhor resultado possível em termos de crescimento e bem-estar humano. Tudo é apresentado com um certo ar de inevitabilidade e com uma convicção esmagadora. Nunca, desde o surgimento do comércio livre no século XIX, a teoria econômica demonstra tanta certeza. (ibidem, p. 82)

O PNUD acredita claramente no “poder da globalização para trazer benefícios

econômicos e sociais para sociedades (...) Contudo, (...) defende uma agenda dos

fracos de todo mundo, os marginalizados pela globalização, e apela para uma agenda

(...) para atingir uma globalização com face humana.” (PNUD, 1999, p. v) Assim, há

101 Ver exemplos mais à frente.

162

uma naturalização da globalização, na medida em que ela é entendida como o novo (e

único) caminho pelo qual o desenvolvimento virá. Contudo, nesse novo contexto, há

os que conseguem ter “condição de agência” e conseguem atuar livremente e se

beneficiar do novo contexto – os “vencedores do mercado” (ibidem, p. vi) – e há

também os “perdedores”, sem “capacidades” de agir: os pobres.

Na busca do “desenvolvimento humano”, a tarefa passa a ser a de alcançar uma

“globalização humana”, isto é, uma globalização que tome conta de seus “perdedores”

- os “pobres” – dando-lhes capacidades e condições básicas de “agência”, para que

possam atuar no novo contexto. Nesse sentido, parece que a idéia de “globalização

humana” parte do mesmo raciocínio do “ajuste com face humana” - Adjustment with a

Human Face -, da UNICEF (1987), ressaltando a necessidade de correções que

aliviem as conseqüências negativas da globalização, sem negar, contudo, o papel

desempenhado por esta última no “progresso humano”. Ao mesmo tempo em que “a

globalização expande as oportunidades para o progresso humano sem precedentes

para alguns, (...) [ela] reduz essas oportunidades para outros e (...) falha nos objetivos

de equidade e de erradicação da pobreza” (PNUD, 1999, p. 44).

Assim, argumenta o PNUD (2003), embora uma visão muito otimista da globalização

deva ser relativizada – uma vez que se revelou inadequada para milhões de pessoas

pobres -, é preciso reconhecer o mérito da globalização para grande parte do mundo

(PNUD, 2003, p. 16). “Apesar dos protestos contra a globalização nos últimos anos,

as forças do mercado mundial contribuíram para o crescimento econômico - e para a

redução da pobreza” (idem) - em vários países em desenvolvimento. Se o

desenvolvimento econômico deixou a desejar – e não trouxe o progresso esperado -,

isso se deve, argumenta o PNUD, a dois fatores (que serviriam como exemplos

daqueles “constrangimentos sociais” ressaltados como causas da “privação de

capacidades”).

Por um lado, devido à “má governança” – ou seja, onde os “governos são corruptos,

incompetentes ou irresponsáveis perante cidadãos as economias nacionais vacilam”

(idem) –. Ou seja, a discussão se assemelha àquela proposta pelo Banco Mundial

acerca das instituições, sobretudo, as estatais, que são apresentadas como um

empecilho ou limitação às “capacidades” dos indivíduos.

163

Por outro lado, em função de uma insuficiência de investimentos dos governos em

educação e saúde. Neste ponto, é importante ressaltar como o argumento é baseado

numa interpretação de saúde e educação enquanto “capital humano”: como

conseqüência dessa falta de investimentos, “o crescimento econômico acabará por se

extinguir por causa do número insuficiente de operários saudáveis e qualificados.”

(idem) Nota-se também, nessa discussão, uma proximidade àquela sugerida pelo

Banco Mundial acerca dos “recursos” dos indivíduos como criadores ou alargadores

das “capacidades” individuais.

Embora o PNUD apresente o tema do “desenvolvimento humano” como uma

abordagem radicalmente inovadora para o desenvolvimento, parece que as

conseqüências consideradas por essa concepção não questionam o processo de

globalização em si, mas se resumem a sugerir uma conciliação entre os fundamentos

do processo e novas questões: “o desenvolvimento humano e a redução da pobreza

devem ser levados para o topo da agenda dos decisórios políticos e econômicos”

(PNUD, 1996, p. 10) – temáticas cada vez mais presentes no centro do debate e da

agenda mundiais102.

102 Em 2000, ocorre, em Genebra, uma continuação da conferencia de 1995: o Social Summit +5 cujos objetivos foram o de rever o que se alcançou até então e o de criar compromissos em torno de novas iniciativas. Em setembro do mesmo ano, ocorre a “Cúpula do Milênio”, em Nova Iorque, na qual foram acordados os oito “objetivos do milênio”, dentre os quais está o combate à pobreza (até 2015, ter reduzido a pobreza à metade, em comparação com a pobreza de 1990). Em 2005, realizou-se a Cúpula do Milênio + 5, com o objetivo de avaliar o progresso das metas da Declaração do Milênio da ONU, aprovada na Cúpula do Milênio em 2000.

164

2.3. Organização Internacional do Trabalho (OIT)

Voltada tradicionalmente para a questão do trabalho, do emprego e da justiça social,

pode-se dizer que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) incorporou a

preocupação com a pobreza só recentemente, a partir de 2000. Embora afirme que o

tema da pobreza esteve presente em seu rol de prioridades desde 1944103, reconhece

também que o tema só foi “reforçado” no momento em que um compromisso

internacional para alcançar os “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio” foi

estabelecido.

É nesse contexto, portanto, que a instituição incorpora a temática da luta contra a

pobreza, apontando-a como o grande objetivo mundial, mas encaixando-a em seu

discurso do “trabalho decente” (OIT, 1999), enfatizando, assim, que “o mundo do

trabalho é precisamente a chave para se alcançar uma erradicação contundente,

progressiva e duradoura da pobreza” (OIT, 2003, p. 3).

Segundo a OIT (1999), o trabalho decente é o ponto de convergência de seus quatro

objetivos estratégicos: (i) promover e cumprir as normas e os princípios e direitos

fundamentais no trabalho; (ii) gerar maiores oportunidades para que mulheres e

homens possam ter empregos e rendas dignos; (iii) melhorar a cobertura e a eficiência

de uma seguridade social para todos; (iv) fortalecer o diálogo social. Assim, a noção

de “trabalho decente” é um conceito que vem sendo considerado pela OIT um marco

geral para as suas propostas de desenvolvimento econômico e social. E, também, para

a discussão da temática da pobreza. Percebe-se, deste modo, que a incorporação da

temática da “superação da pobreza” na OIT se dá a partir de uma discussão sobre

trabalho, apontando para a necessidade de se buscar o “trabalho decente”, frente ao

reconhecimento da existência de uma crise do emprego em âmbito mundial.

Para "superar a pobreza", a OIT enfatiza que é necessário:

mudar o paradigma da formulação de políticas para reconhecer que o emprego, e o fomento das empresas que o geram, constitui a via mais eficaz para a erradicação da pobreza. (...) Na maioria das receitas em matéria de formulação de políticas não se percebe a criação de emprego

103 Quando declarava que a "pobreza constitui um perigo à prosperidade em todo lugar". Cf.: www.ilo.org .

165

como um objetivo explícito, mas sim como um resultado que se confia que deriva da aplicação de políticas macroeconômicas fundadas. (...) a chave consiste em garantir que tal crescimento seja equilibrado e propicie o emprego de mão de obra, isto é, que dê lugar à criação de tantos postos de trabalho decente quanto seja possível. Podemos alcançar este objetivo geral? Não podemos, devemos. Voltemos a dirigir nosso olhar ao investimento e à iniciativa empresarial, o emprego, a geração de renda e o trabalho decente para todos. (OIT, tradução livre, 2006)

Assim, embora a OIT trate do tema da erradicação da pobreza, ela o discute dentro de

sua temática central, indicando que, para enfrentar a questão do trabalho, é preciso

“mudar o paradigma” da política pública, incluindo e difundindo a noção de “trabalho

decente” como seu objetivo central.

A discussão sobre a pobreza aparece na OIT de duas formas : (i) em certos momentos,

recorre-se àquelas conceitualizações feitas pelos outros organismos, ora segundo o

Banco Mundial104, ora seguindo a noção elaborada pelo PNUD105 ; (ii) em outros

momentos, aparece a figura do “trabalhador pobre”, sem se discutir muito, entretanto,

quem são os pobres, as causas da “pobreza”, etc. Mas, embora não haja uma discussão

específica sobre as “causas” da pobreza na OIT (2003), é possível perceber que, em

última instância, considera-se que “os pobres não são os causadores da pobreza. A

pobreza é resultado de falhas estruturais e de sistemas econômicos e sociais

ineficazes. É o fruto de uma resposta política inadequada, de políticas muito pouco

imaginativas e de um apoio internacional insuficiente.” (OIT, 2003, p. 2). Ou seja, a

pobreza é função da insuficiência de “trabalho decente” no mundo.

Dos fundamentos do “trabalho decente”, os que parecem ser mais peculiares à OIT e,

também, estar em oposição àquelas outras abordagens presentes nos discursos

internacionais sobre a pobreza são as idéias de direitos, centralidade do emprego e

proteção social. Contudo, quando se busca entender melhor de que se tratam essas

dimensões do “trabalho decente”, percebe-se que o discurso da OIT não é tão

alternativo assim. 104 Para tratar da quantidade de “trabalhadores pobres” que há no mundo, por exemplo, a OIT utiliza a abordagem da pobreza monetária utilizada pelo Banco Mundial, como se percebe na nota a seguir: “utilizamos (…) a expressão extrema pobreza/pobreza extrema dos trabalhadores como sinônimo do nível de pobreza geral ou o da população trabalhadora equivalente a renda diária de 1 dólar (…), e a expressão pobreza moderada/ pobreza moderada dos trabalhadores quando se trata do nível de pobreza geral ou o da população trabalhadora equivalente a renda diária de 2 dólares.” (OIT, 2004, p. 25) Mas, de toda maneira, a questão da definição e conceituação da pobreza propriamente dita não aparece em seus relatórios. 105 Em outros momentos, a OIT enfatiza o caráter multidimensional da pobreza, recorrendo às formulações do PNUD.

166

No que diz respeito aos “direitos do trabalho”, eles estão relacionados com a questão

da liberdade no âmbito do trabalho, tais como a liberdade de associação, a luta contra

a discriminação, o combate ao trabalho forçado e ao trabalho infantil, dentre outros.

Embora sejam temas de grande relevância, os “direitos do trabalho” ressaltados não

têm a ver com direitos sociais – os quais remetem à idéia de “trabalho protegido” -,

mas a direitos civis e políticos do trabalhador.

A questão do “emprego” é discutida, por sua vez, nos World Employment Reports106,

uma série de relatórios da OIT dedicados a essa temática. No relatório de 2004-2005,

Empleo, Productividad y Reducción de la Pobreza, propõe que a relação entre

emprego e pobreza seja examinada a partir da “produtividade”.

A razão fundamental para abordar conjuntamente as três questões é a simples observação de que uma porcentagem significativa da população pobre no mundo todo já trabalha: a fonte da sua pobreza não é a falta de atividade econômica, mas o caráter pouco produtivo de suas ocupações. (OIT, tradução livre, 2005, p. 1)

Ressalta-se também que aumentos na produtividade têm efeitos positivos para o

trabalhador e para a empresa. Segundo a OIT (2005, p. 2):

Para os trabalhadores, um aumento da produtividade dá lugar, em teoria, a salários mais altos (...). Para as empresas, um aumento da produtividade se traduz em custos unitários de produção mais baixos (...) O fato de produzir mais com menos permite ademais que as empresas que atuem em mercados competitivos reduzam seus preços, e, ainda, é uma das principais formas de reforçar a competitividade (e conseguir, ao mesmo tempo, que outras empresas sejam relativamente menos competitivas). (ibidem, p. 2)

Embora reconheça que existe uma polêmica em torno da questão da produtividade

(OIT, 2005, p. 83) – no que diz respeito à destruição de postos de trabalho –

argumenta-se que, para a macroeconomia em geral, num mundo globalizado, ela gera

benefícios - os quais são explicados a partir da crença107 num ajuste “natural” da

106 World Employment Report 1995/96; World Employment Report 1996/97: National Policies in a Global Context; World Employment Report 1998/99: Employability in the Global Economy. How training matters; World Employment Report 2001: Life at Work in the Information Economy; World Employment Report 2004-05: Employment, Productivity and Poverty Reduction. 107 Esta passagem reflete bem essa crença: “As pessoas se beneficiam da redução dos custos graças aos aumentos da produtividade obtidos em outro setor da economia, embora esses aumentos provoquem uma perda de postos de trabalho no setor no qual se produziram. Os efeitos do crescimento da produtividade e, determinado setor da economia dependem da existência de «mecanismos de compensação » mediante os quais a economia se ajusta.” (OIT, 2005, p. 8)

167

economia. Dessa maneira, o aumento da produtividade (tanto dos próprios

trabalhadores quanto do processo produtivo) seria um caminho para se combater a

pobreza (o “trabalhador pobre” e o “desempregado”).

No que diz respeito ao trabalhador pobre, seu problema é que é mal pago – o que é

explicado pelo fato de ele não ser “produtivo”. Assim, ele precisa aumentar sua

produtividade (aumentar seu capital humano e, portanto, a sua “empregabilidade”), de

modo que sua remuneração aumente. Já no que diz respeito ao desemprego, afirma-se

é preciso estimular a produtividade da economia (tanto com “capital humano”, quanto

com produtividade para criar mais empregos na economia como um todo).

É nesse sentido, portanto, que a “produtividade” representa peça chave na relação

entre emprego e pobreza, segundo a OIT. Consequentemente, percebe-se que a

temática do “emprego”, longe de estar referida ao debate do pleno emprego tal como

se colocava no pós-guerra – emprego este promovido pela ação estatal, através de

suas políticas -, ela se fundamenta na defesa da importância da “produtividade” – de

indivíduos e de empresas - como meio para estimulá-lo.

Por fim, quanto à “proteção social” como elemento central do “trabalho decente”, a

OIT refere-se a “direitos sociais básicos” – tal como assistência médica e educação

básicas -, mas sem se aprofundar muito na questão.

Em suma, seria possível afirmar que a incorporação da temática do “combate à

pobreza” teria vindo “de fora” da instituição, por pressão do novo contexto das

resoluções “do milênio”. Ao trazer para si essa problemática, a OIT por um lado

reforça o discurso internacional – assumindo que o grande objetivo do milênio é

acabar com a pobreza -, mas, por outro, se esforça em moldar e situar a discussão a

partir de seu enfoque específico do “trabalho decente”, cuja discussão é desenvolvida

sobretudo a partir da temática da “produtividade”.

168

Capítulo V – DAS DEFINIÇÕES CONCEITUAIS ÀS RECOMENDAÇÕES PARA O “COMBATE À POBREZA”

A questão social a partir dos anos noventa começou a ser tratada predominantemente

sob a noção de “pobreza”, cujo debate esteve centrado em grande parte nas

formulações dos organismos internacionais. O quadro abaixo busca sintetizar as

análises dos significados e causas para o termo “pobreza”, tal como indicado no

capítulo anterior.

Quadro 1 – A pobreza e suas causas.

O quadro exposto sintetiza as peculiaridades de cada organismo. Nota-se que o Banco

Mundial trata a pobreza em termos monetários (Banco Mundial, 1990) e,

posteriormente, a partir da abordagem das capacidades (Banco Mundial, 2000).

Embora tenha alargado sua concepção, em 2000, entende as capacidades (a agência)

do indivíduo sempre a partir de um ponto de vista instrumental (capacidades como

“meio”, enquanto recursos que o indivíduo possui). Já o PNUD, por sua vez, parte da

abordagem das capacidades tal como sugerida por seu teórico, Amartya Sen (2000),

ressaltando os seus dois lados: como meio (instrumental) e como fim em si mesmo.

Por fim, a OIT trata da pobreza basicamente de dois modos: por um lado, incorpora e

se apropria da abordagem daqueles outros dois, dependendo do momento. E, por

outro lado, a entende como sendo decorrente da falta de “trabalho decente”,

enfatizando os direitos (políticos e civis) do trabalhador e a necessidade de fazer com

Banco Mundial PNUD OIT Temática central "Luta contra a pobreza" "Desenvolvimento

humano" "Trabalho decente” e produtivo

Pobreza Definição monetária (linha de pobreza) (1990) e “pobreza multidimensional” (2000)

"Pobreza humana" - privação de capacidades humanas

Trabalhador pobre

Causas da pobreza

Falta de recursos ("ativos") e de oportunidades e, ainda, limitações geradas pelas instituições (as duas questões são expressas em termos de limitação das "capacidades")

Má governança, falta de oportunidades e fatores pessoais (tais como as variações no modo de conversão de recursos em capacidades)

Falta de "trabalho decente"

169

que ele seja “produtivo”. Percebe-se, portanto, que o quadro anterior refere-se à

dimensão descritiva, isto é, ao diagnóstico que vem sendo feito sobre a questão social.

Tal como sugere Topalov (2004), a ação ou a política pública não resulta da

existência ‘objetiva de um problema’, mas do seu enunciado. Assim, uma vez

diagnosticado o problema em termos de “pobreza”, os organismos internacionais

propõem maneiras de lidar com ele, indicando-lhe “soluções”. É aqui que entram,

portanto, as estratégias de “combate à pobreza” – as recomendações de políticas para

“resolver” aquilo que é visto como a grande malaise contemporânea. A seguir,

analisar-se-á o que é sugerido por cada organismo para que seja possível tal

empreitada.

1. Segundo o Banco Mundial

Pelos relatórios do Banco Mundial (BANCO MUNDIAL, 1990; 2000), percebe-se

que as estratégias de “combate à pobreza” estão centradas em três pilares: promoção

das oportunidades, incentivo ao empowerment e promoção da segurança. Estes dois

últimos objetivos são relativamente recentes, já que só foram incorporados como

recomendações no relatório de 2000/2001 (BANCO MUNDIAL, 2000).

1.1. Promoção das “oportunidades”

O primeiro pilar – o da promoção das “oportunidades” – consiste na mais “antiga”

recomendação para combater a pobreza, presente desde o World Development Report

de 1990 (WORLD BANK, 1990) – momento em que se ressaltava como causas para a

pobreza a falta de ativos.

A importância dos ativos, definidos de modo geral, sugere que as políticas deveriam procurar aumentar os ativos que o pobre tem – especialmente habilidade, saúde, e outros aspectos do capital humano, e, nas economias agrícolas, terra. (WORLD BANK, tradução livre, 1990, p. 32)

Assim, como medidas recomendadas para ampliar as “oportunidades” dos pobres, no

relatório de 1990, são ressaltadas: (a) adotar um modelo de crescimento que estimule

170

o uso “eficiente” dos ativos que o pobre detém; (b) ampliar o acesso dos pobres aos

ativos; (c) investir nas pessoas (aumentar o capital humano dos pobres).

Quanto à primeira medida (a), propõe-se identificar políticas que estimulem um

modelo de crescimento econômico que use a mão-de-obra de maneira eficiente, de

modo que sejam criadas novas oportunidades para os pobres obterem rendimentos. De

modo geral, a ênfase é no crescimento econômico a partir de medidas liberalizantes,

ou anti-intervencionistas, já que se considera que “quando o governo intervém no

mercado, ele geralmente gera um viés anti-emprego.” (ibidem, p. 62) A idéia é que,

através do estímulo ao mercado, novas oportunidades serão criadas e, assim, os

pobres poderão obter maiores rendimentos. Com mais renda, o indivíduo poderia

ultrapassar a “fronteira” da pobreza (linha da pobreza) e, assim, ser considerado um

não-pobre.

A segunda estratégia de ampliação das oportunidades para combater a pobreza refere-

se ao aumento do acesso dos pobres a “ativos” – terra e crédito, por exemplo. No caso

da terra, é proposta uma “reforma agrária”. Segundo o Banco Mundial (1990),

políticas que expandam a propriedade, que definam bem os direitos de propriedade

nas terras onde “sistemas tradicionais falharam” e que melhorem o gerenciamento dos

recursos das propriedades comunais podem criar oportunidades para os pobres rurais.

(ibidem, p. 64)

Se, por um lado, o Banco Mundial aparentemente rompe um tabu e passa a falar em

“reforma agrária”, por outro lado, ao se apropriar dessa expressão, retira o conteúdo

historicamente construído pelos movimentos sociais, ou seja, pela política, e passa a

propagar pelo mundo todo a sua própria versão de “reforma agrária” – “que é

basicamente a abordagem neoliberal do mercado aplicada à terra” (ROSSET, 2004, p.

16). O Banco Mundial se livra, assim, facilmente da noção tradicional de reforma

agrária - ou seja, como sinônimo de expropriação –, afirmando simplesmente que

“não é politicamente possível no contexto atual, porque as elites econômicas resistem

e ocorrem muitos conflitos” (ibidem, p. 22). Ou, ainda, nas palavras do próprio Banco

Mundial (1990): “realidades políticas proíbem reformas que desviem muito do status

quo” (WORLD BANK, tradução livre, 1990, p. 64). Conseqüentemente, a partir de

uma afirmação como esta - que proclama a impossibilidade de transformações do

mundo como ele é e que, aliás, se encaixa bem naqueles três tipos de argumentos da

retórica reacionária destacados por Albert Hirschman (HIRSCHMAN, 2001) - o

171

Banco Mundial propõe uma “reforma agrária” cuja realização se daria através da

criação e/ou ampliação do “mercado de terras”. Desse modo, para que os pobres

tenham acesso às terras, seria preciso que se criasse um mercado de terras, de modo

que as transferências para os pobres pudessem ocorrer. Nesse sentido, aquelas

políticas que visam criar oportunidades para os pobres rurais (WORLD BANK, op.

cit., p. 64) através do acesso ao “ativo” terra acabam servindo e atuando como passos

em direção da construção ou aprofundamento de um “mercado de terras”. Percebe-se

aqui que por mais que o Banco Mundial esteja preocupado com a pobreza rural, a

política para superá-la coincide com os propósitos neoliberais de inserir em todas as

instâncias do mundo social a dinâmica própria ao sistema mercado.

Por fim, a questão (c) diz respeito ao “investimento nas pessoas”. “Há uma evidência

esmagadora de que o capital humano é uma das chaves para a redução da pobreza”

(ibidem, p. 79) Os pobres – sobretudo os urbanos – são vistos como carentes de

“capital humano”. Ou seja, eles não têm “oportunidades” porque lhes falta um “ativo”

fundamental que é o “capital humano” – educação, saúde e nutrição; mas é dada

ênfase especial à educação. A influência da “teoria do capital humano” é bastante

clara na argumentação exposta no relatório de 1990.

Se a resolução da falta do ativo “terra” é proposta pelo Banco Mundial (ibidem, p. 64)

a partir do desenvolvimento de um “mercado de terras”, no caso do aumento do

“capital humano” dos pobres são propostas reformas nos sistemas de saúde e de

educação no sentido da retração da provisão estatal, voltando-se apenas para os

serviços básicos.

Argumenta-se que o objetivo é que a saúde e a educação alcancem os pobres. O

raciocínio pressupõe uma manutenção do status quo e desconsidera qualquer mudança

política. Ou seja, parte-se do pressuposto que o montante a ser gasto com serviços

públicos não pode ser alterado (uma mudança política não entra, portanto, no

horizonte de possibilidades) - para que o “equilíbrio” fiscal do governo não se

modifique - e enfatiza-se que “gasto extra em serviços sociais em geral não ajuda

automaticamente o pobre.” (1990, p. 79) Assim, dado que o gasto não pode ser

alterado e que os serviços não alcançam os pobres, sugere-se que o

modelo existente precisa ser alterado em favor deles [dos pobres] em termos de quantidade e de qualidade dos serviços. As medidas mais importantes nos setores sociais para melhorar as condições de vida do

172

pobre são também as mais básicas: expandir e melhorar a educação primária e a atenção primária em saúde. (idem)

Defende-se uma reforma nesses setores para que se “liberem” recursos – ou seja, uma

focalização - que possam ser usados na expansão e melhoria dos serviços básicos e na

promoção de um melhor acesso para o pobre. Sugerem-se, portanto, mudanças na

alocação dos recursos – dos serviços de maior complexidade e de alto nível para os de

saúde básica e educação primária. Afirma-se que recomendar essas mudanças não

significa negar a importância dos serviços de alto nível:

Qualquer país que queira competir na economia mundial precisa de uma política educacional abrangente que inclua gastos na educação superior, ciência e tecnologia, e treinamento profissional. Hospitais são uma parte essencial de um sistema de saúde balanceado (...) Entretanto, [isso] não justifica usar serviços de alto nível como meio de transferir dinheiro público a estudantes privilegiados e pacientes urbanos das classes média e alta (WORLD BANK, 1990, p. 86)

Assim, propõem-se duas linhas de ação: por um lado, deslocar recursos dos serviços

de alto nível para serviços básicos (atenção primária de saúde e educação básica) e,

por outro, introduzir taxas para aqueles que podem pagar (por exemplo, pela educação

superior) - o que arrecadaria recursos para melhorar os serviços para os pobres. Em

suma, nota-se, nesse ponto, mais uma proposta de enxugamento do Estado e de

estímulos ao mercado (setor privado) – seja de saúde, seja educacional.

O tema da promoção das “oportunidades” é trabalhado no Relatório Sobre o

Desenvolvimento Mundial de 2000-2001 (BANCO MUNDIAL, 2000) basicamente a

partir das mesmas questões levantadas pelo de 1990, e também são pontuadas a partir

de três itens: (a) estimular o crescimento (ibidem, p. 45); (b) tornar os mercados

favoráveis aos pobres (ibidem, p. 61); (c) ampliar os recursos (ativos) dos pobres

(ibidem, p. 79).

Em primeiro lugar, afirma-se que as oportunidades para os pobres serão aumentadas a

partir do crescimento, para o qual contribuem:

Algumas políticas econômicas - como a abertura ao comércio internacional, boas políticas monetárias e fiscais (representadas por déficits orçamentários moderados e ausência de alta inflação), um sistema financeiro bem desenvolvido e um governo de tamanho moderado (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 50).

Também se chama a atenção para a ajuda externa, a qual só “poderá fomentar o

crescimento se essas políticas estiverem implantadas; não poderá se elas não

173

existirem”. Ou seja, afirma-se que o crescimento deve ser alcançado com a

continuidade das medidas e reformas, dando ênfase, portanto, aos ditames da

globalização neoliberalizante.

No que se refere a “tornar os mercados favoráveis aos pobres”, a ênfase recai sobre as

reformas que favoreçam os mercados, já que “mercados em bom funcionamento são

importantes para gerar crescimento e expandir oportunidades para os pobres”

(BANCO MUNDIAL, 2000, p. 61). Ressalta-se, entretanto, que as reformas nem

sempre geram, no curto prazo, benefícios para todos. Do “impacto das reformas de

mercado (...): há ganhadores e perdedores, e estes últimos podem incluir os pobres”

no curto prazo (ibidem, p. 38). Argumenta-se que “esses custos não negam os

benefícios das reformas” (ibidem, p. 66). Assim, insiste-se em que é preciso

implementar rapidamente as reformas pró-mercado para que cheguem logo os

benefícios para os pobres e, enquanto elas não se completam, seus “efeitos adversos

(...) sobre os pobres podem ser compensados por ações (...) como as redes de

segurança para aliviar os custos da transição.” (ibidem, p. 38).

Recomenda-se o prosseguimento das reformas, sobretudo as de “segunda geração”108,

tidas como fundamentais para a consolidação dos resultados das reformas de

“primeira geração”109. Além disso, enfatiza-se que “os mercados podem beneficiar os

mais pobres” (ibidem, p. 73) através de reformas específicas. Como exemplo, é

ressaltado o “alívio do ônus da regulamentação (...). Uma cuidadosa revisão dos

regulamentos e a adoção de requisitos mais flexíveis.” (ibidem, p. 74) Ou seja,

flexibilizar como meio de beneficiar os pobres. Outro exemplo é a promoção de um

melhor acesso dos pobres aos mercados financeiros: “O acesso aos mercados

financeiros é importante para os pobres. (...) Estes serviços ajudam a manejar o risco e

nivelar o consumo em face de alguma das flutuações” (ibidem, p. 75). Isto se refere à

proposta do microcrédito110 ou microfinanciamento – a oferta de produtos financeiros

destinada aos pobres.

108 Reformas que dizem respeito ao fortalecimento institucional, recomendadas sobretudo nos relatórios que dizem respeito ao Estado (1997, 2002), as quais foram discutidas brevemente no primeiro capítulo. 109 Estabilização de preços, equilíbrio fiscal, abertura comercial e financeira, por exemplo. Este ponto foi também discutido no primeiro capítulo. 110 Em 2006, o bengalês Muhammad Yunus recebeu o prêmio Nobel da Paz. É conhecido como “o banqueiro dos pobres” e considerado o grande idealizador do microcrédito destinado aos pobres de Bangladesh.

174

Por fim, no que diz respeito à ampliação dos ativos dos pobres (c), sugere-se que isso

deve ser feito a partir de três eixos. Primeiro, a utilização do poder do Estado para

redistribuir recursos (ibidem, p. 81) – isto é, focalizar e orientar a despesa pública para

os pobres.

Uma orientação maior da despesa pública para os pobres envolverá a redução (...) dos subsídios aos não-pobres. A privatização de empresas públicas deficitárias e ineficientes libera fundos que podem ser utilizados no atendimento das necessidades dos pobres. (...) Uma gestão macroeconômica prudente pode reduzir o serviço da dívida e abrir espaço para a despesa orientada para os pobres. (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 85)

Ou seja, partindo da premissa de que o Estado não pode alterar seu padrão de gastos,

recomenda-se que os focalize nos pobres, deixando que as demandas dos não-pobres

sejam satisfeitas pela iniciativa privada, isto é, pelos mercados. Assim, caberia ao

Estado direcionar sua ação aos pobres, no sentido de simplesmente aumentar seus

“ativos”, através, por exemplo, da educação e saúde – entendidas enquanto “capital

humano”. Aumentando o capital humano dos pobres, suas “oportunidades” também

seriam expandidas.

O segundo eixo parte de uma implementação de reformas institucionais para

assegurar uma efetiva prestação de serviços: “Boa administração pública,

concorrência e mercado bons, bem como a livre participação de múltiplos agentes,

seja governamentais, não-governamentais ou privados, são essenciais para uma

efetiva prestação de serviços, especialmente para pobres.” (ibidem, p. 88).

O terceiro eixo para promover a expansão de recursos dos pobres refere-se à

participação dos pobres. É indicada uma incorporação dos pobres aos processos de

escolha, acompanhamento e avaliação de programas e serviços que ampliem seus

recursos (ibidem, p. 91). O tema da participação é entendido como um dos pilares do

combate à pobreza e como meio para a expansão dos recursos dos pobres, no sentido

de que, quanto mais os pobres participam, mais eles têm seu “capital social” ampliado

- aumentando assim suas “oportunidades” e perspectivas de escapar da pobreza.

175

1.2. Incentivo ao empowerment

O segundo pilar do “combate à pobreza” refere-se ao estímulo ao empowerment dos

indivíduos pobres, para combater aquela falta de voz e de poder - destacada como

uma das dimensões da pobreza. Tal como foi visto no capítulo anterior, a questão da

falta de empowerment dos indivíduos pobres está relacionada, segundo o Banco

Mundial (2000), com as instituições – as estatais e as sociais.

Por um lado, parte-se de uma ênfase na ineficiência, insensibilidade e

irresponsabilidade das instituições estatais. As instituições estatais aparecem como

entraves que limitam as “capacidades” dos indivíduos. Nesse sentido, afirma-se que é

preciso fazer com que as instituições do Estado se tornem mais eficientes, mais

responsáveis e mais sensíveis aos pobres (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 103).

Recomendam-se, assim, a redução do tamanho da administração pública,

concentrando a ação pública sobre os “mais pobres” e privatizando empresas públicas,

questões conectadas como se vê:

É preciso racionalizar a estrutura funcional e orgânica da função pública, melhorando a distribuição de recursos para programas que constituem prioridades sociais e têm maior capacidade para reduzir a pobreza. Ainda mais importante dinamizar o “tamanho apropriado” das entidades públicas administrativas e privatizar as empresas públicas e outros programas operacionais públicos. (ibidem, p. 104).

Outro meio ressaltado para beneficiar o empowerment dos pobres é a criação de

mecanismos de descentralização. Entendida como uma “transferência formal de poder

aos centros de decisão locais”, a descentralização serviria para levar os programas

para mais perto dos pobres e estimular mecanismos de “participação” da população

pobre local. Além disso, recomenda-se que se construam “coalizões em prol dos

pobres” (ibidem, p. 113), em torno da “política de redução da pobreza”.

Por outro lado, no que diz respeito às propostas de empowerment no âmbito social,

enfatiza-se que é preciso remover as barreiras e fortalecer o capital social dos pobres.

As instituições sociais (...) afetam consideravelmente a pobreza. Assim fazem afetando a produtividade dos ativos econômicos, as estratégias para enfrentar os riscos, a capacidade de buscar novas oportunidades e a medida que determinadas vozes se fazem ouvir ao serem tomadas importantes decisões. As instituições sociais podem ajudar os pobres a sobreviver e subir na vida. Mas podem também erguer barreiras entre os

176

pobres (...) e as oportunidades e os recursos de que necessitam para promover seus interesses. (ibidem, p. 121).

Afirma-se que as “barreiras sociais podem assumir muitas formas. (...) [Tais como]

barreiras resultantes da desigualdade entre os sexos, da estratificação social e da

fragmentação social.” (idem) Essas barreiras restringem "a mobilidade ascensional,

limitando a capacidade de participar nas oportunidades econômicas, beneficiar-se do

crescimento econômico e contribuir para o desenvolvimento.” (ibidem, p. 136) Assim,

segundo o Banco Mundial (2000), é “importante assegurar a igualdade na lei e na

atuação das instituições do Estado. Além disso, pode haver necessidade de políticas

de ação afirmativa para reduzir as desvantagens cumulativas das práticas

discriminatórias.” (idem)

Assim, dentre os objetivos das propostas de empowerment no âmbito social estão: (i)

a promoção da equidade entre homens e mulheres; (ii) a superação das barreiras

sociais que impedem a ascensão social dos pobres - barreiras estas que podem ser

fruto da discriminação (racial, étnica, de gênero, etc.), contra a qual podem ser

estabelecidas políticas de “ação afirmativa” que servem “para compensar as

incapacidades resultantes de uma prolongada discriminação” (ibidem, p. 130); (iii) o

reforço do “capital social”, ou seja, apoiar as redes sociais de pessoas pobres -

aumentar suas “capacidades”, melhorando a eficácia dos projetos e programas dos

organismos internacionais de combate à pobreza.

Pode-se perceber que, em nome da expansão das “capacidades” humanas dos pobres,

as estratégias de empowerment estão vinculadas, por um lado, a reformas e

transformações nas instituições estatais e, por outro, às propostas referentes às

instituições sociais – seja removendo as “barreiras sociais” (discriminação, por

exemplo), seja estimulando “capital social”, isto é, reforçando um instrumento (meio)

para que os pobres saiam da pobreza.

1.3. Promoção da segurança

Por fim, a terceira estratégia de luta contra a pobreza proposta pelo Banco Mundial

consiste na promoção da segurança (security) dos pobres, voltada para o combate da

vulnerabilidade, de modo que os pobres consigam enfrentar os riscos que estão

177

sempre presentes em suas vidas. Viu-se, no capítulo anterior, que a “vulnerabilidade”

é problematizada a partir de duas questões. Por um lado, ressalta-se a dotação

insuficiente de “ativos” (físicos, humanos e sociais) que o indivíduo possui. Assim,

seus baixos níveis de “ativos” fazem com que o pobre seja incapaz de reduzir os

riscos e enfrentar os “choques”, deixando-o numa situação de vulnerabilidade. Por

outro lado, destaca-se o problema institucional – a “incapacidade”, “ineficiência”,

dentre outros problemas das instituições estatais, que não ajudam os pobres no

“manejo” e enfrentamento dos riscos.

Nesse sentido, percebe-se, primeiramente, que o problema da vulnerabilidade se

relaciona, no relatório do Banco Mundial, com aquelas estratégias de promoção de

“oportunidades” e de empowerment para os pobres. Com maiores “oportunidades” e

mais empowerment, os pobres teriam mais capacidade de enfrentar os riscos e,

portanto, teriam sua “vulnerabilidade” reduzida.

Paralelamente, como estratégia específica para reduzi-la, afirma-se que o Estado deve

intervir “para melhorar a gestão dos riscos” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 151), ou

seja, promover uma segurança para os pobres.

Antes de especificar quais seriam as estratégias específicas que o Estado deve se

empenhar para ajudar os pobres no manejo de seus riscos, discutem-se “princípios

gerais” sobre os riscos e seu enfrentamento. Dessa discussão mais “geral”, questiona-

se acerca de como o Estado deve intervir no que diz respeito aos riscos:

Quando, e como, deve o Estado intervir em proporcionar uma rede segurança social para o público? A resposta mais ampla é a de que isso depende dos tipos de choque (...) e dos tipos de seguro privado existentes. (ibidem, p. 154)

Argumenta-se, então, que, numa situação em que os esquemas informais (mecanismos

que envolvem indivíduos, famílias ou grupos) oferecem um seguro adequado contra

os riscos “idiosincrásicos”111, o Estado deve intervir apenas para proteger contra

riscos covariantes112.

Contudo, quando os esquemas informais de seguro não funcionam, devem ser criados

“mecanismos formais” - uma rede de segurança social - para o manejo dos riscos 111 Segundo o Banco Mundial (2000, p. 140), são os riscos que afetam o indivíduo ou a família, ou seja, são os que ocorrem em nível “micro” – decorrentes de doença, velhice, morte. 112 São riscos que afetam grupos de famílias ou comunidades (nível “meso”) – tais como chuvas, epidemias - ou, ainda, regiões ou países (“macro”) – como terremotos, inundações, seca.

178

(tanto “idiosincrásicos” como “covariantes”), de modo a garantir o bem-estar das

pessoas. Numa situação como esta, afirma-se que Estado e mercado precisam atuar:

Decidir se a cobertura deve proceder do Estado ou de seguradores privados depende muito do tipo de risco. Muitas vezes, o Estado tem mais capacidade para cobrir riscos covariantes, mas a maioria dos riscos idiosincrásicos pode ser mais bem manejada por provedores privados (comunidades, companhias de seguros). Neste caso, o papel do governo seria facilitar e, se necessário, regulamentar a provisão do setor privado. (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 155)

Ou seja, é recomendado que o setor privado atue onde é possível estabelecer

mecanismos de mercado, ou seja, onde os riscos (“idiosincrásicos”) são

individualizados. Em situações onde não é de interesse do setor privado atuar113,

afirma-se que o Estado deve intervir, argumentando-se que “faltam-lhe [ao setor

privado] a força institucional, os recursos financeiros ou a capacidade de gestão”

(ibidem, p. 156). Faltaria mencionar também que não há interesse do setor privado em

atuar nesses casos, uma vez que não geram lucros.

Assim, a partir dessa discussão dos “princípios gerais da gestão dos riscos” (ibidem, p.

153), cria-se um modelo, no qual são delineados papéis específicos e diferentes para

Estado e mercado (setor privado) e onde inicia e termina, respectivamente, o papel de

cada um.

Entretanto, embora, segundo esses “princípios gerais”, caiba ao Estado intervir

especificamente no caso dos riscos do tipo “covariantes”, existem casos de riscos

“idiosincrásicos” em que a não é de interesse do setor privado atuar – segurança para

o público “pobre” – e, portanto, se justifica a intervenção estatal. São destacados

alguns “instrumentos específicos” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 157) da ação estatal

voltada para melhorar a capacidade de manejo dos riscos dos “pobres”, tais como:

seguro-saúde, programas de micro-financiamento, transferências monetárias, dentre

outros.

Assim, “o governo deve proporcionar seguro-saúde e orientar os gastos em saúde

pública para serviços que atendam principalmente aos pobres” (ibidem, p. 158), dado

que estes últimos não conseguem comprar seguros de saúde privados.

Afirma-se que os programas de microfinanciamento

113 Por exemplo, como criar um “seguro” privado contra terremotos e inundações?

179

podem ajudar as famílias pobres a nivelar o consumo durante um choque adverso. (...) Mas os programas de microfinanciamento fazem mais do que ajudar as famílias a enfrentar os choques: podem também proporcionar capital para criar ou expandir microempresas. Assim, o microfinanciamento a ajuda as famílias a diversificar suas fontes de renda e reduzir sua vulnerabilidade a choques de renda. (ibidem, p. 162)

As transferências de dinheiro, por sua vez, “compreendem pagamentos aos idosos a

título de assistência social, abonos de família, programas orientados de

desenvolvimento humano e vales para pagamento de serviços básicos.” (ibidem, p.

163) Esses programas transferem renda com base em critérios – como a comprovação

de a pessoa estar “abaixo da linha de pobreza” – e, muitas vezes, estão ligados a certas

condicionalidades, como a freqüência escolar dos filhos. Afirma-se que o programa

ligado a esse tipo de condicionalidade serve a um duplo objetivo: redução da pobreza

no curto prazo (redução da vulnerabilidade do pobre) e estímulo às “oportunidades”

da próxima geração, a partir do investimento em seu “capital humano” dos filhos

dessas pessoas.

Dessas propostas, percebe-se que é recomendado que o mercado (setor privado) atue

oferecendo “seguros” para aqueles que podem comprá-los. O Estado teria o papel de,

por um lado, oferecer a segurança para enfrentar os riscos do tipo “covariantes” e, por

outro, ajudar os pobres a manejarem seus riscos “idiosincrásicos”, através de

instrumentos específicos tais como os ressaltados: seguro-saúde, programas de micro-

financiamento e transferências monetárias, por exemplo. Em suma, propõe-se uma

expansão do setor privado, uma intervenção do Estado em campos pouco lucrativos e

também em políticas assistenciais focalizadas nos pobres.

180

2. Segundo o PNUD

Como já mencionado, o PNUD entende a pobreza enquanto “pobreza humana”,

partindo da perspectiva do “desenvolvimento humano” - um desenvolvimento que dá

prioridade ao pobre, buscando alargar suas escolhas e oportunidades e estimulando

sua participação em decisões que afetam suas vidas. (PNUD, 1994) A temática

específica do “combate à pobreza” aparece no relatório de 1997 - “Desenvolvimento

humano para erradicar a pobreza” – propondo a análise desse “desafio mundial numa

perspectiva de desenvolvimento humano. Não destaca apenas a privação de

rendimento, mas a pobreza numa perspectiva de desenvolvimento humano – a

pobreza como uma negação de escolhas e oportunidades para viver uma vida

aceitável.” (PNUD, 1997, p. 2).

Embora a perspectiva do desenvolvimento humano não constitua “uma rígida receita

de prescrições políticas, com uma lista de ‘destinação’ e uma lista de ingredientes

indicando como chegar lá” (FUKUDA-PARR, 2003, p. 10), é possível sistematizar

um pouco e destacar, a partir dos relatórios que tratam do “combate à pobreza”

(PNUD, 1997; 1999; 2003), cinco grandes eixos para suas estratégias: (i) dar

“capacidades” aos pobres; (ii) tornar o Estado “capacitador” e responsável; (iii)

promover um crescimento econômico a favor dos pobres; (iv) alcançar uma gestão

mais humana da globalização; (v) encorajar novas parcerias para combater a “pobreza

humana”.

2.1. Aos “pobres”, mais “capacidades”

Viu-se que a pobreza é entendida como “privação de capacidades” básicas. Assim, em

primeiro lugar, recomenda-se que seja dedicada grande atenção às estratégias de

ampliação das “capacidades” dos pobres, de modo que eles possam realizar níveis

mínimos de “funcionamentos”, ganhando um pouco mais de controle sobre suas

vidas.

181

Esse “investimento” nas capacidades das pessoas aparece a partir de duas dimensões:

(i) a libertação dos pobres de privações (ii) o empowerment, referido à dimensão da

participação dos pobres em decisões que afetam suas vidas.

Os pobres estariam mais “capacitados” - e mais libertos de suas privações - através de

serviços sociais básicos – tais como educação básica e cuidados primários de saúde –

garantidos pelo Estado. (PNUD, 2003, p. 85) A idéia é que, com mais educação e

saúde, as pessoas aumentam seus recursos “para realizar” e, com isso, se tornam mais

capazes de levar o tipo de vida que valorizam. Nota-se que o argumento se aproxima

daquele do “capital humano” – utilizado pelo Banco Mundial -, só que, desta vez,

adaptado à idéia de “capacidades”.

A dimensão do empowerment é bastante destacada no PNUD. Ele é entendido

enquanto capacitação política das pessoas pobres, de modo que elas sejam agentes de

seu próprio desenvolvimento; elas “devem se organizar em ações coletivas que

influenciem as circunstâncias e decisões que afetam suas vidas. Para que possam fazer

valer seus interesses, as suas vozes devem poder ser ouvidas nos corredores do

poder.” (PNUD, 1997, p. 95).

Enquanto grupo, os pobres “podem influenciar as políticas estatais e exigir uma

alocação adequada de recursos para as prioridades de desenvolvimento humano, para

mercados mais acessíveis às pessoas e para um crescimento econômico favorável aos

pobres.” (ibidem, p. 96) Assim, contra a carência de poder inerente à pobreza, a

organização dos pobres se faz necessária:

A redução da pobreza se baseia em que os pobres se organizem por si mesmos

na comunidade; esse é o melhor antídoto contra a carência de poder, fonte

básica da pobreza. Uma vez organizados, os pobres podem influir no governo

local e exigir-lhe responsabilidade. Também podem formar coalizões com

outras forças sociais e criar organizações mais amplas para influir na adoção

de decisões nos planos regional e nacional. Portanto, o que os pobres mais

necessitam são recursos para desenvolver sua capacidade de organização.

(PNUD, 2000).

Até aqui, percebe-se que é recomendado que os “pobres” (previamente definidos, por

exemplo, os “abaixo da linha”) se organizem em função do fato de serem “pobres”, ou

de se situarem “na pobreza”, com o objetivo de “sair da pobreza”, já que “os pobres

182

são o melhor recurso que se pode mobilizar na luta contra a pobreza” (PNUD, 2000,

p. 74).

Argumenta-se, ainda, que são as organizações internacionais que devem dar o

impulso, “a assistência (...) para a formação de capacidade” (idem). Esta “assistência

técnica deve se dirigir a desenvolver a capacidade de organizações da sociedade civil

para representar os pobres e conseguir que os formuladores da política nacional

abordem questões relacionadas com a pobreza. O objetivo estratégico é forjar uma

aliança entre o Estado e a sociedade civil para a redução da pobreza.” (idem) Assim,

enfatiza-se, por um lado, que o “combate à pobreza” é a grande meta a se atingir e,

por outro, que os organismos internacionais são uma peça chave para o seu alcance.

Tal como o Banco Mundial114, o PNUD também ressalta como importante estímulo à

participação dos pobres a criação de fóruns de discussão sobre a “guerra contra a

pobreza”. Nessas reuniões públicas, os pobres se engajariam descrevendo suas

condições de vida e contando suas experiências na “pobreza”. Assim, o empowerment

– ou o “aumento do poder dos pobres” - acaba sendo um fim e um meio do combate à

pobreza. Fazer com que os pobres “participem” é um objetivo da empreitada, mas

também a maneira através da qual ela se realizará. É, em última instância, um dos

lados da tão almejada “expansão das capacidades dos indivíduos – expansão que

envolve o alargamento das escolhas e, portanto, um aumento da liberdade”. (PNUD,

1996, p. 55)

Percebe-se que a questão do poder é apresentada de forma vaga, simplista e, ainda,

despolitizada. As relações de poder não são consideradas. O poder é visto

simplesmente como as “capacidades” que os indivíduos têm, ou melhor, que precisam

ter, desvinculando-os das relações sociais em que estão inseridos. Desse modo, nota-

se que se desconsideram as definições mais clássicas das ciências sociais sobre o

poder115 - entendido a partir de seu caráter relacional - nas discussões sobre

empowerment.

114 O Banco Mundial ressalta a experiência do projeto The Voices of the Poor. 115 Por exemplo, ver Stoppino (2000).

183

2.2. Um Estado capacitador, responsável e ativo

Juntamente com a “capacitação” dos pobres, reformas nas instituições do Estado são

sugeridas como estratégias de luta contra a pobreza. Segundo o PNUD, o Estado é,

muitas vezes, ineficiente, irresponsável e “incapacitador”, agindo contra os interesses

dos pobres. As medidas propostas referem-se: a uma retração do papel do Estado –

como é o caso da defesa do mercado/iniciativa privada e da descentralização –; a uma

transformação de seu papel – por exemplo, a ênfase na regulação -; e, ainda, a uma

concentração ou direcionamento – isto é, focalização - de sua atuação e recursos para

os pobres. No que diz respeito a sua retração, é enfatizado um papel “capacitador”

para o Estado. Há forte recomendação de incentivo aos mercados e ao papel da

iniciativa privada:

A concorrência de mercado é uma forma importante de as pessoas, especialmente as mais pobres, escaparem à dominação econômica. São várias as forças que podem encorajar a concorrência real, mesmo quando os governos são fracos e servem a seus próprios interesses. Em primeiro lugar, as ambições dos produtores (...) que visam lucro. Em segundo lugar, as influências e interesses externos - competidores estrangeiros desejosos de entrar no mercado, governos doadores e outros que querem oportunidades para as suas exportações e para seus investidores. Em terceiro lugar, as agências internacionais que apóiam a doutrina do comércio livre e da livre concorrência. (...) as pessoas pobres podem se beneficiar desta difusão do poder de mercado - e certamente se desvencilharão melhor do que se estivessem sob monopólios ou sobre a dominação total da economia pelo governo. (PNUD, 1997, p. 103)

Ao invés de atuar ativamente em certas áreas, o Estado deveria transferi-las para o

setor privado, estimulando a concorrência e beneficiando, segundo o argumento, os

pobres. Embora o PNUD não mencione o termo “privatização”, parece ser disso que

se trata, em certos casos. Em outros, ele ressalta a importância das parcerias público-

privadas (PNUD, 1997, p. 106; 2003, p. 111).

Outra discussão acerca da retração do Estado bastante presente no PNUD diz respeito

à descentralização (PNUD, 2003, p. 134). Entendida como a transposição da

autoridade política da administração central aos níveis locais e destes para a

comunidade, que passa a se co-responsabilizar pela gestão (e, em alguns casos,

também pelo financiamento) das políticas públicas, o papel da descentralização no

“combate à pobreza” é fortemente enfatizado. Afirma-se que ela contribui para

melhorar a situação dos mais pobres, pois “aumenta a participação popular nos

184

processos de tomada de decisão, uma vez que aproxima o governo das pessoas”

(ibidem, p. 135). Esse processo é entendido como imprescindível para a promoção da

democracia, das liberdades e das capacidades dos indivíduos. Entretanto, trata-se,

também, da transferência de atribuições e responsabilidades do Estado para a

comunidade, como é o caso típico da gestão e do financiamento de alguns programas

de saúde nos países africanos.

Contudo, embora essa transferência de poder possa ser realizada independente da

organização dos pobres, para que ela seja importante para o combate à pobreza é

fundamental, argumenta o PNUD, que essas pessoas estejam organizadas de modo

que possam participar, buscar e promover seus próprios interesses frente ao governo

local. Percebe-se então que há uma estreita relação entre a “capacitação dos pobres”

(empowerment) e a descentralização:

deve se reforçar o vínculo entre a descentralização e a capacitação da população para avançar na luta contra a pobreza. Se a descentralização inclui uma verdadeira transferência de poderes aos níveis locais, provavelmente se reforce o entorno propício para a mitigação da pobreza. Que os pobres se beneficiem ou não é realmente uma questão mais complexa relacionada com seu próprio nível de organização e capacitação. (PNUD, 2000, p. 63)

As indicações referentes ao papel do Estado enquanto regulador são inerentes, por sua

vez, à transformação de sua atuação. A questão da regulação está diretamente

relacionada àquela do estímulo à concorrência de mercado. Ao mesmo tempo em que

se recomenda que o Estado se retire e diminua sua atuação enquanto produtor ou

empresário, de modo que a iniciativa privada entre em ação, sugere-se que, para que a

concorrência seja garantida, é necessário que o Estado atue como regulador. Isto é o

que o PNUD entende por “reforçar o Estado” (PNUD, 2003, p. 119): “A capacidade

reguladora nos países em desenvolvimento tem que ser desenvolvida e melhorada, de

modo que a provisão pública e privada funcione para todos os serviços e utilizadores.”

(idem).

Ainda no que diz respeito ao Estado, estão presentes nos relatórios do PNUD (2000;

2003) recomendações de concentração ou direcionamento de sua atuação, esforços e

recursos para os pobres: “Uma boa parte do êxito dos programas nacionais contra a

pobreza descansa na ‘orientação’ de seus benefícios para os pobres.” (PNUD, 2000, p.

84).

185

Se os pobres carecem de poder, é improvável que lhes cheguem os benefícios dos programas contra a pobreza, ou que lhes cheguem com efeito duradouro. A orientação efetiva dos benefícios é o resultado da capacitação dos beneficiários, e não o inverso. Provavelmente a própria palavra orientação enfraqueça a compreensão do problema: é melhor falar em termos gerais sobre concentração dos recursos para a redução da pobreza. (idem)

Assim, depois de tomada como pressuposto a capacitação dos pobres, sugerem-se

diversas maneiras para a “concentração dos recursos” (focalização) do Estado para os

pobres, dentre as quais: (i) concentração em zonas geográficas; (ii) benefícios

específicos a grupos desfavorecidos; (iii) orientação por tipo de intervenção.

Quanto à primeira forma, o PNUD (2000) argumenta:

Uma maneira de concentrar os recursos é vinculá-los a unidades geográficas, como províncias ou comunidades. Em vez de direcionar os recursos a determinados setores, o governo os aloca nas zonas pobres. Os custos administrativos desta medida são geralmente reduzidos. Em muitos programas nacionais contra a pobreza a orientação geográfica dos benefícios é o principal método de intervenção, frequentemente com a assistência do PNUD. (idem)

O primeiro passo desse método seria determinar quais são as regiões mais pobres,

coletar dados e elaborar “mapas geográficos da pobreza”, de modo a identificar as

regiões mais pobres e orientar-lhes especificamente as intervenções prioritárias.

No Brasil, por exemplo, ao longo dos anos noventa, alguns mapeamentos foram feitos

especificamente para a fome. Em 1993, foram lançados os “mapas da fome” - Mapa

da Fome I, II e III -, pelo IPEA (1993), e, mais tarde, o “Mapa do Fim da Fome I”

(CPS/FGV, 2001) e o “Mapa do Fim da Fome II” (CPS/FGV, 2004), ambos

elaborados pela Fundação Getúlio Vargas.

Quanto aos benefícios específicos:

A orientação geográfica dos benefícios, inclusive no nível da comunidade, talvez não permita chegar aos grupos sociais desfavorecidos. As mulheres, as minorias étnicas, as castas inferiores, os refugiados e as populações indígenas provavelmente necessitam de intervenções especiais. (PNUD, 2000, p. 88)

Já o terceiro modo de orientação parte da indicação de tipos específicos de

intervenção, tais como a alocação de recursos a serviços sociais básicos e o

microfinanciamento.

186

Assim, visando o “desenvolvimento dos recursos humanos”, recomenda-se a

“promoção do investimento em serviços sociais básicos, como a educação e a atenção

médica básicas, a nutrição, a água e o saneamento, e a saúde reprodutiva.” (ibidem, p.

91) Mas a sugestão limita-se a serviços básicos. O PNUD argumenta que para os

serviços não-básicos, há, desde os anos noventa, uma tendência no sentido de uma

forte expansão da iniciativa privada ou ainda, dependendo do caso, das parcerias

público-privado para sua provisão. (PNUD, 2003, p. 111)

Quanto ao microfinanciamento, sugere-se um aumento do acesso a esse tipo de

mecanismo. O PNUD explica sua importância, sugerindo que se trata de um modo

poderoso de abrir os mercados para os pobres (criar “oportunidades”) – possibilitando

que diminuam seus riscos e que, ainda, venham a se tornar pequenos

“empreendedores” - e que “com freqüência o microcrédito contribui à capacitação da

comunidade” (PNUD, 2000, p. 92) e é por isso que ele “vem apoiando muitas das

novas iniciativas de microfinanciamento, e está ampliando essas atividades a nível

mundial”.

Como muitas das instituições que oferecem os micro-financiamentos têm dificuldades

de sobrevivência - de se sustentarem do ponto de vista financeiro116 e de seu

funcionamento -, argumenta-se que elas precisam de ajuda, de modo que tenham sua

capacidade institucional fortalecida. “Esse fortalecimento (...) melhoraria seu acesso

ao capital dos bancos comerciais e, por conseguinte, sua capacidade para outorgar

empréstimos aos pobres”. (ibidem, p. 93) Assim, o PNUD destaca a necessidade de se

fortalecer117 a capacidade institucional das instituições de microfinanciamento, de

modo que elas possam se sustentar e, assim, cumprir seu papel no “combate à

pobreza”.

Por fim, quanto ao Estado, o PNUD afirma que ele deve ser responsável para com os

pobres, no sentido de estar sempre empenhado na luta contra a pobreza, no aumento

das capacidades dos indivíduos, na criação de um ambiente propício à participação e

às parcerias para a erradicação da pobreza. 116 Segundo o PNUD, “uma instituição de microfinanciamento tem um funcionamento sustentável quando pode cobrir todos os gastos de funcionamento, e é sustentável desde o ponto de vista financeiro quando pode cobrir todos os gastos de capital.” (PNUD, 2000, p. 92) 117 É destacado o exemplo das licenças concedidas a essas instituições de microfinanciamento. Com as licenças, elas conseguem obter mais facilmente empréstimos no mercado de capitais, tornando mais provável sua sustentalibidade enquanto instituição tanto do ponto de vista financeiro, quanto do de seu funcionamento.

187

2.3. Um crescimento econômico a favor dos pobres

Outra ação recomendada como estratégia para combater a pobreza consiste na

promoção do “crescimento a favor dos pobres”, que, para o PNUD, “não é apenas

crescimento (...) significa centralizar a questão da redução da pobreza na tomada de

medidas políticas a nível nacional.” (PNUD, 1997, p. 111)

Para gerar crescimento, as principais componentes da política econômica são: garantir uma gestão macroeconômica saudável e a estabilidade macroeconômica, impulsionar a procura interna através de um ajustamento adequado das taxas de juro reais, adotar uma disciplina fiscal, acelerar a produção industrial, reformar as instituições do setor financeiro e promover uma boa governança. Mas o crescimento econômico por si só não é suficiente. Deve ser a favor dos pobres – expandindo suas capacidades, oportunidades e escolhas de vida. (PNUD, 1999, p. 94)

O PNUD (2003) argumenta que o crescimento econômico é necessário por dois

motivos:

Primeiro porque o crescimento econômico reduz diretamente a privação de rendimentos de muitas famílias, aumentando as suas poupanças e libertando recursos para investimentos em desenvolvimento humano. Sem crescimento econômico, os países não podem esperar reduzir para metade a percentagem de pessoas que vivem com privação de rendimento, a primeira meta dos Objetivos. Segundo, porque o crescimento econômico tende a aumentar as receitas do governo. Porque a maioria dos investimentos em desenvolvimento humano – saúde, nutrição, educação, infra-estrutura – vem do setor público, mais recursos fiscais são decisivos para atingir os Objetivos. (PNUD, 2003, p. 67)

Contudo, se, para a promoção do desenvolvimento humano, é necessário um maior

investimento público naqueles setores, o crescimento econômico por si só não basta.

O PNUD defende que é preciso vontade política para colocar o lado “humano” no

centro das atenções, isto é, que se busquem políticas públicas voltadas para a redução

das várias dimensões não-econômicas da pobreza. (ibidem, p. 68)

Com isso, conclui-se que o crescimento econômico não garante que os países em

desenvolvimento consigam reduzir a pobreza. Para tanto, são necessários esforços do

setor público - investimentos em “desenvolvimento humano”. E as políticas voltadas

para o “crescimento favorável aos pobres” devem procurar “reduzir desigualdades e

aumentar as capacidades humanas”. (PNUD, 1999, p. 94)

Diante disto, recomenda-se, dentre outras medidas: (i) enfatizar a industrialização

trabalho-intensiva, de modo a expandir as oportunidades de emprego; (ii) “construir

188

capacidades humanas através da educação e garantir o acesso às pessoas pobres. A

educação foi considerada (...) o fator mais importante para a explicação das

disparidades de rendimentos e a dispersão salarial entre níveis de qualificação tornou-

se significativa.”; (iii) tornar acessíveis mais ativos financeiros (exemplo, o

microcrédito) e recursos produtivos (como o acesso à terra) aos pobres; (iv)

transferências de rendimento e perseguir programas contra a pobreza para os mais

pobres – um mecanismo bastante enfatizado são os programas de transferência de

renda. Em suma, são políticas que buscam ampliar as oportunidades e as capacidades

dos mais pobres.

2.4. Uma gestão “mais humana” da globalização

O problema central não é a globalização em si, nem a utilização do mercado enquanto instituição econômica, mas a desigualdade presente nos arranjos institucionais globais - o qual produz por sua vez uma distribuição desigual dos dividendos da globalização mesma. A pergunta, portanto, não reside em se os pobres do mundo podem ou não obter algo do processo de globalização, mais sob que condições podem obter uma parte realmente justa. Urge reformar os acordos institucionais – juntamente como os nacionais - para erradicar os erros que resultam tanto das omissões como das constrições, que tendem a reduzir drasticamente as oportunidades dos pobres no mundo todo. A globalização merece uma defesa razoável, mas também requer uma reforma da mesma ordem. (SEN, 2001a, p. 50)

A passagem supracitada - texto sobre a globalização de Amartya Sen - ilustra bem o

entendimento do PNUD sobre a globalização e como sua reforma importa para o

“combate à pobreza”. Tal como Sen, o PNUD sugere que se, por um lado, é preciso

defender a globalização, por outro, também é necessário que ela se transforme - que a

globalização seja mais justa e mais humana, de modo que a luta contra a pobreza se

torne possível.

Com a globalização, afirma o PNUD, foram criadas grandes oportunidades nos

mercados mundiais (PNUD, 1999, p. 84). O problema é que nem sempre elas se

distribuem igualmente e que, ademais, com a volatilidade dos mercados, novas

vulnerabilidades são criadas.

Diante disto, é preciso ajustar a globalização, adequando-a a partir dos ditames do

“desenvolvimento humano”. As noções de justo e humano referem-se, por

189

conseguinte, a essa perspectiva. Para que a globalização seja justa é preciso que ela

amplie as oportunidades (promova a “equidade”) e para que ela se torne humana é

necessário que ela dê atenção aos pobres (dotando-os de capacidades humanas).

Nota-se, ainda, que a argumentação do PNUD é circular: para que a pobreza seja

combatida é preciso uma globalização que promova o “desenvolvimento humano” e

para promover este último é preciso que o processo de globalização combata a

pobreza (crie oportunidades e capacite as pessoas pobres).

2.5. Reunião de forças no combate à “pobreza humana”

Por fim, outro ponto frequente em vários relatórios que tratam do combate à pobreza

(PNUD, 1997; 1999; 2003) diz respeito ao estímulo à formação de parcerias em torno

daquele objetivo. “Todos os agentes da sociedade precisam se juntar numa parceria

com vista a abordar a pobreza humana em todas as suas facetas.” (PNUD, 1997, p.

95)

O sucesso da mobilização política contra a pobreza depende do apoio vasto e diversificado que se consegue angariar. As pessoas pobres, por melhor organizadas que estejam, não podem forçar alteração de políticas no sentido da erradicação da pobreza. Devem ser envolvidos todos os grupos da sociedade - e não apenas aqueles que representam os pobres. As alianças, as parcerias e os compromissos são os únicos veículos para uma reforma pacífica e sustentada. (ibidem, p. 100)

Essa defesa de que é necessária a reunião de forças para uma mobilização política

contra a pobreza: (i) enfraquece aquele argumento do PNUD de que o empowerment

dos pobres consegue por si só promover a “redução da pobreza”; (ii) parece ser um

artifício utilizado para dar um tom “progressista” às políticas de combate à pobreza e

mais “humano” às políticas da própria globalização liberalizante e (iii) serve como um

recurso para a reafirmação da retórica internacional.

Em primeiro lugar, a argumentação do PNUD nem sempre é clara. Como já se viu, o

PNUD argumenta que empowerment dos pobres é fundamental para que eles “saiam

da pobreza”, já que, uma vez organizados, eles “podem influir no governo local e

exigir-lhe responsabilidade. Também podem formar coalizões mais amplas para

influir na adoção de decisões nos planos regional e nacional.” (PNUD, 2000). Ao

mesmo tempo, argumenta-se que a participação dos pobres não é suficiente e que,

190

para se combater a pobreza, é preciso que se forme um consenso em torno de políticas

"em favor dos pobres" é fundamental.

Em segundo lugar, esforça-se em afirmar que o “combate à pobreza” precisa ser

entendido como uma mudança de rumos, até mesmo uma utopia possível de ser

colocada em prática: “Quando se juntam as pessoas suficientes em favor de uma

causa muitos dos ideais tornam-se realistas.” (PNUD, 1997, p. 100) Com isso, ao ser

ressaltada a necessidade de fazer com que todos se engajem no “combate à pobreza”,

quer-se imprimir um tom progressista ao entendimento desse tipo de política, como se

representasse uma alteração das políticas, quando, na verdade, nada mais é que um

esforço em dar ao neoliberalismo uma face humana.

Por fim, percebe-se que essa necessidade de reunir forças em torno do “combate à

pobreza” aponta e serve também para um reforço justificativo da importância do papel

dos organismos internacionais na nova empreitada do milênio. Atualmente, dizer que

é preciso buscar consenso em torno daquele objetivo acaba sendo afirmar que as

forças políticas nacionais precisam se alinhar ao que prescreve o discurso

internacional.

191

3. Segundo a OIT

Já se viu que a OIT sugere que é preciso “superar a pobreza mediante o trabalho”

(OIT, 2005). Mais especificamente, defende-se a perspectiva do “trabalho decente”

(OIT, 2003) e produtivo (OIT, 2005). Assim, para propor o que fazer, parte-se dos

objetivos considerados por esse enfoque, a saber: (i) promover e cumprir os princípios

e direitos fundamentais no trabalho; (ii) gerar maiores oportunidades para que

mulheres e homens possam ter empregos produtivos e maiores rendas; (iii) promover

a proteção social; (iv) fortalecer o diálogo social. Para tanto, a OIT (2003) defende

que uma política de redução e erradicação da pobreza requer uma expansão das

oportunidades do trabalho decente e produtivo, uma estratégia de crescimento a favor

dos pobres e, ainda, uma melhora da “governança” do mercado de trabalho.

3.1. Empregabilidade, formação profissional e aumento da produtividade

A principal estratégia de expansão das oportunidades do trabalho decente e produtivo

– para assim reduzir a pobreza - diz respeito a um tema bastante recorrente: o do

aumento de “capital humano” dos trabalhadores.

Nos debates sobre o modo de reduzir a pobreza é muito comum afirmar que a principal riqueza, ou a única, dos pobres é seu trabalho. Parece óbvio que a formação cumpre uma função essencial na hora de aumentar a produtividade e as rendas e de propiciar o acesso eqüitativo às oportunidades de emprego. (OIT, tradução livre, 2003, p. 42)

As propostas de aumento de capital humano aparecem na OIT a partir de discussões

de temas próximos, como o aumento da empregabilidade dos trabalhadores (OIT,

1998), a formação profissional e a capacitação dos trabalhadores (OIT, 2003) e o

aumento da produtividade do trabalhador (OIT, 2005).

A discussão sobre a “empregabilidade” é central para essa organização. Em 1998, a

instituição dedicou seu World Employment Report à questão: Employability in the

Global Economy. How Training Matters, destacando a importância do investimento

em educação e do desenvolvimento de habilidades, no atual contexto mundial. Com a

globalização, ressalta a OIT (1998):

192

As mudanças na tecnologia e na organização do trabalho (...) resultaram numa mudança na natureza da demanda por qualificação. O caráter mutante das novas tecnologias requer trabalhadores que possam aprender e se adaptar a essas mudanças rapidamente e eficientemente. (ILO, 1998, p. 46)

Desse modo, no novo contexto a demanda por trabalho exige que os trabalhadores

estejam investindo permanentemente em sua qualificação (e treinamento) e formação

profissional, de modo que mantenham e sempre renovem sua “empregabilidade”. A

ênfase na importância e na necessidade de políticas de desenvolvimento de recursos

humanos enquanto estratégia para enfrentar a atual situação de declínio do emprego e

de rápida globalização é assim justificada.

Embora o tema do “combate à pobreza” ainda não apareça no relatório de 1998 (OIT,

1998), é importante perceber que a “minimização dos custos sociais” da globalização

é proposta a partir do aumento do capital humano.

No relatório Superar la Pobreza mediante el trabajo, de 2003, a OIT trata da

formação profissional e da capacitação dos trabalhadores como um dos caminhos para

atingir aquele objetivo. E ressalta que nem sempre essas dimensões estão presentes

nas estratégias de redução da pobreza. Geralmente, argumenta a OIT (2003), enfatiza-

se o papel da educação (ou ensino), mas não o da contínua qualificação profissional

ao longo da vida do trabalhador: “A formação deixou de ser um investimento único

no começo da vida laboral para se converter num processo de aprendizagem

permanente no qual as qualificações se renovam e adaptam de maneira constante.”

(ibidem, p. 43) E, especificamente, “no caso dos jovens economicamente vulneráveis

e socialmente excluídos resulta especialmente indispensável adquirir umas

qualificações básicas que os preparem para uma ampla gama de possíveis postos de

trabalho.” (idem) Ou seja, essa questão evidencia a ênfase dada ao papel e

importância da “empregabilidade” na redução da pobreza; com mais educação e

melhor formação profissional, o indivíduo pode expandir sua produtividade, e assim,

aumentar suas rendas e o acesso às oportunidades de emprego.

Essa questão é abordada no relatório de 2004-2005, Informe sobre el Empleo en el

Mundo 2004-2005: Empleo, productividad y reducción de la pobreza, a partir de uma

discussão específica sobre como o emprego e a pobreza se relacionam através da

questão da “produtividade”. Para a OIT, “a fonte da pobreza [da maioria dos

trabalhadores] não é a falta de atividade econômica, mas o caráter pouco produtivo de

193

suas ocupações.” (OIT, 2005, p. 1) Assim, a OIT defende que o aumento da

produtividade - tanto dos próprios trabalhadores quanto do processo produtivo118 –

deve ser visto como um caminho para se combater a pobreza (o “trabalhador pobre” e

o pobre desempregado).

No que diz respeito ao trabalhador pobre, seu problema é que é mal pago – o que é

explicado pelo fato de ele não ser “produtivo”. Assim, ele precisa aumentar sua

produtividade (aumentar seu capital humano e, portanto, a sua “empregabilidade”), de

modo que sua remuneração aumente. Já no que diz respeito ao desemprego, a OIT

(2005) afirma que é preciso estimular a produtividade da economia - tanto com

“capital humano”, tornando o pobre mais competitivo e mais empregável, quanto com

inovações tecnológicas, criando novos empregos na economia como um todo.

Em suma, percebe-se que as temáticas abordadas pela OIT (1998; 2003; 2005)

referem-se, em última instância, a uma discussão sobre o papel do “capital humano”

no combate à pobreza: é preciso aumentá-lo para que o pobre possa competir e, assim,

aumentar sua renda e sair da pobreza. Ao lado das propostas de aumento da

empregabilidade, da qualificação e da produtividade do trabalhador, são

recomendadas também outras políticas voltadas para a promoção do “trabalho decente

e produtivo”. É o que se discute a seguir.

3.2. Estratégias específicas para a promoção do “trabalho decente” e

“produtivo”

Para superar a pobreza e “atender as necessidades e aspirações dos pobres” (OIT,

2003, p. 42), a OIT sugere os seguintes instrumentos específicos de política: (i)

criação de novos postos de trabalho; (ii) estímulo ao espírito empresarial de pobres

interessados em montar micro e pequenas empresas; (iii) financiamento da redução da

118 Tal como já observado no capítulo anterior, embora a OIT (2005) reconheça a polêmica existente em torno da questão da produtividade – o fato de ela poder destruir empregos, já que o progresso tecnológico permite que as empresas produzam mais com menos trabalhadores – ela defende que, para a macroeconomia em geral, num mundo globalizado, ela gera benefícios – já que a tecnologia cria igualmente novos produtos e novos processos, cujo resultado é a expansão dos mercados e a aparição de novas oportunidades de emprego. Segundo a OIT, do ponto de vista da macroeconomia em geral, há uma “destruição criativa de emprego”. (OIT, 2005, p. 81)

194

pobreza; (iv) promoção da proteção social; (v) combate ao trabalho infantil; e (vi)

superação da discriminação.

Quanto ao primeiro item, recomenda-se um investimento em projetos cuja técnica seja

trabalho-intensiva (sobretudo, os de infra-estrutura, por exemplo a construção de

estradas) de modo que a criação de novos postos de trabalho seja impulsionada. “A

curto prazo, a pobreza se reduz ao aumentar as rendas daqueles que trabalham no

projeto e, a longo prazo, se reduz ao fornecer bens públicos indispensáveis para uma

elevação para as rendas de toda a população.” (OIT, 2003, p. 48)

Já segundo ponto diz respeito ao apoio ao espírito empresarial e empreendedor dos

pobres que aspiram criar suas próprias empresas. Recomenda-se que se dê ao pobre

capacidade empresarial e de gestão – um apoio específico que o ajude a montar seu

próprio negócio. São, assim, sugeridos programas e serviços de apoio e orientação aos

pobres que atuam na economia informal, de modo que seu empenho seja convertido

em “capacidade empresarial”. Com o próprio negócio, o pobre pode trabalhar para si,

aumentar sua renda e, assim, ultrapassar a “linha” da pobreza.

O terceiro campo de atuação refere-se ao financiamento da redução da pobreza. Ou

seja, facilitar o micro-financiamento, a prestação de serviços financeiros aos

trabalhadores pobres que carecem do acesso ao crédito. Esta questão é também

indicada, como já se viu, pelo Banco Mundial e pelo PNUD. Ressalta-se a

importância do microcrédito no combate à pobreza e se relaciona com o item anterior,

como se percebe na seguinte passagem:

É impossível montar uma empresa sem acesso ao crédito. No mundo todo, os pobres têm um acesso muito limitado aos serviços financeiros formais. As atividades de micro-financiamento estão indissoluvelmente relacionadas com o dinamismo empresarial e permitem aos pobres obter empréstimos com fins produtivos, poupar e acumular ativos. (OIT, 2003, p. 10)

Além dessa importância para o pequeno empreendedor, a OIT (ibidem, p. 56) ressalta

que o micro-financiamento reforça o conceito de “trabalho decente” em três sentidos:

(i) com os investimentos feitos nas pequenas empresas, é facilitada a criação de novos

postos de trabalho; (ii) com a poupança, seguros e a possibilidade de empréstimos de

urgência, se estabilizam as rendas e reduz-se a vulnerabilidade dos pobres, ou seja,

sua “segurança” é reforçada (não se menciona, contudo, que, em algum momento, os

pobres terão de honrar os compromissos financeiros assumidos nesses momentos de

195

urgência); (iii) estímulo ao sentido de responsabilidade nos pobres, reforçando seu

capital social, capacitando essas pessoas.

Tal como os outros organismos internacionais, a OIT fixa para si o papel de

assessorar os bancos centrais no que é relativo à formulação de leis e regulamentos

para os bancos que estão a serviço dos pobres. Argumenta que isto contribuiria para

criar um entorno propício para a criação e o desenvolvimento de bancos que

favoreçam aos pobres e o “combate à pobreza”.

“Para uma família pobre, a condição sine qua non para participar produtivamente na

sociedade e na economia consiste em dispor de renda básica, de uma assistência

médica elementar e de vagas nas escolas para seus filhos.” (ibidem, p. 12). Assim, a

garantia de nível de renda básica e a promoção da proteção social são exigências

básicas para superação da pobreza.

A OIT lembra que, embora sua importância seja patente, grande parte da população

pobre está à margem de qualquer tipo de proteção. Em junho de 2001, chegou-se a

“um novo consenso sobre a seguridade social na 89ª reunião da Conferência

Internacional do Trabalho.” Decidiu-se que é preciso “máxima prioridade às políticas

e iniciativas que levem seguridade àquelas pessoas que não estão cobertas pelos

sistemas vigentes”. (OIT, 2003, p. 60)

Além de ser condição básica para a vida dos pobres, a OIT ressalta o papel funcional

que a seguridade social pode ter: ela “pode elevar a produtividade e facilitar um

desenvolvimento econômico e social sustentável. (...) facilita as mudanças estruturais

e tecnológicas que requerem uma força de trabalho adaptável e móvel. (...) Os

sistemas desenhados com acerto melhoram o rendimento econômico e, desta maneira,

contribuem à vantagem comparativa dos países nos mercados mundiais.” (ibidem, p.

61).

São sugeridos tipos variados de micro-seguros e mutualistas locais de saúde. Além

disso, é ressaltada a conveniência de que governos e organismos internacionais

estudem a possibilidade de estabelecer programas de renda mínima.

A OIT propõe uma estratégia de expansão gradual dos sistemas, mas aponta, ao

mesmo tempo, para a necessidade de se preocupar com a questão dos gastos em

proteção social e a análise dos resultados, de modo a adequar essas políticas aos

limites fiscais e financeiros. Assim, para a OIT, a expansão da proteção social deve

196

depender e ser limitada por questões fiscais e financeiras: “a extensão aos mais pobres

da seguridade social exigirá uma combinação integrada de regimes que possam se

ampliar progressivamente, ao compasso do aumento da capacidade administrativa e

dos recursos econômicos do país.” (ibidem, p. 63)

Por fim, os dois últimos campos apontados pela OIT para a luta contra a pobreza – o

combate ao trabalho infantil e a superação da discriminação – dizem respeito aos

princípios e direitos fundamentais que devem estar presentes no “trabalho decente”.

Nas suas piores formas, [o trabalho infantil] prejudica a saúde das crianças, priva-os de educação e até pode levar-lhes a vida. Enquanto a pobreza impulsiona certas famílias a colocar seus filhos a trabalhar, a geração seguinte estará condenada a mesma sina. (ibidem, p. 11)

Segundo a OIT (2003, p.11), o trabalho infantil é, ao mesmo tempo, uma causa e um

sintoma da pobreza. Assim, “o combate ao trabalho infantil está intrinsecamente

ligado às estratégias de redução da pobreza.” (ibidem, p. 67) A erradicação do

trabalho infantil requer uma estratégia integrada que leve em conta questões de

gênero, que se centre na família, e que procure retirar as crianças do trabalho,

levando-as à escola e, por outro lado, oferecendo trabalho aos pais que estiverem

desempregados. Assim, além de impedir que as crianças trabalhem – reafirmando o

direito fundamental da criança de estar fora do trabalho -, OIT procura também

promover o desenvolvimento de alternativas adequadas de educação para crianças, o

acesso a rendas e proteção para seus pais, vinculando, assim, o combate ao trabalho

infantil às estratégias já mencionadas para a superação da pobreza.

Já no que diz respeito à discriminação, a OIT sustenta que ela se relaciona com a

pobreza de duas maneiras. Por um lado, existe uma discriminação da sociedade contra

a própria pobreza. Com freqüência, a sociedade “não trata num plano de igualdade as

pessoas que vivem na pobreza.” (OIT, 2003, p. 71) Para justificar essa afirmação,

recorre ao estudo financiado pelo Banco Mundial The Voices of the Poor, no qual um

pobre argumenta que: “a pobreza é uma humilhação e provoca a sensação de não

sermos independentes e de ter que aceitar grosserias, insultos e a indiferença quando

buscamos ajuda” (NARAYAN apud OIT, 2003, p. 71)

Por outro lado, a discriminação também pode se manifestar de múltiplas outras

formas, que reforçam as situações de pobreza: “As conseqüências derivadas da

pobreza se vêem agravadas como conseqüência da discriminação em função de raça,

197

casta, origem étnica, cor da pele, religião, sexo, orientação sexual, estado de saúde e

deficiência.” (idem)

A OIT afirma que o ponto de partida para todas as suas atividades destinadas a

superar a discriminação consiste na afirmação do direito à igualdade de oportunidades

e de trato no emprego. Mas lembra que a “chave para o êxito de um enfoque inclusivo

da promoção da igualdade no mercado de trabalho é a participação ativa dos

sindicatos, as organizações de empregados e outros interessados na luta contra a

discriminação e a proposição de soluções construtivas” (idem) que busquem melhorar

as oportunidades de emprego para mulheres, negros, dentre outros.

Uma vez que a discriminação reforça as situações de pobreza, criando barreiras às

oportunidades de emprego, é essencial, segundo a OIT, “promover a igualdade de

gênero e eliminar todas as formas de discriminação no trabalho. A chave para

eliminar a pobreza é a compreensão cabal das formas concretas que reveste a

discriminação no plano local, já que variam segundo os países e as culturas.” (OIT,

2003, p. 11)

Essas são, portanto, as seis estratégias específicas voltadas para a promoção do

“trabalho decente” como meio de combater a pobreza - aumentando a produtividade

do trabalhador: “Com uma aplicação mais intensa e ampla das políticas e programas

de trabalho decente se eleva a produtividade e aumentam os recursos nacionais e as

rendas das pessoas ameaçadas pela pobreza.” (ibidem, p. 73)

3.3. Crescimento a favor dos pobres e a “boa governança” do mercado de

trabalho

Pelo que já foi visto, percebe-se que, para a OIT, a erradicação da pobreza deve ser

alcançada através de um crescimento a favor dos pobres, que, por sua vez, significa a

promoção de “trabalho decente”, a partir daquelas estratégias mencionadas na seção

anterior. Contudo, ela argumenta que, para garantir um crescimento a favor dos

pobres, mudanças institucionais são necessárias.

Construindo seu argumento a partir das idéias de Douglass North (1990), a OIT

afirma que as instituições são importantes para os resultados da economia e, ainda,

198

que muitas das regras podem (e precisam) ser transformadas. Assim, para gerar e

manter um crescimento a favor dos pobres, é preciso que cada vez mais se discuta a

governança, isto é, “a influência reguladora das instituições, normas e medidas que

determinam o funcionamento da economia e da sociedade”. (OIT, 2003, p. 78)

Argumenta, ainda nessa chave, que:

A persistência da pobreza em grande escala indica que, em muitos países, as instituições, entre elas as que regem o mercado de trabalho, não levam nada a um grande número de pessoas. (...) O problema pendente consiste em formular normas oficiais que confluam com os valores amplamente aceitos e definir normas não oficiais que paliem a incerteza e a desconfiança, melhorando com isso o funcionamento dos mercados. A qualidade das instituições que configuram o marco de governança dos mercados de trabalho é um fator capital numa estratégia que promova a produtividade, o crescimento e um desenvolvimento sustentável e que permita reduzir a pobreza e, em última instância, a elimine. (OIT, 2003, p. 76)

O que a OIT procura oferecer e difundir, portanto, com a perspectiva do “trabalho

decente” é “um marco integrado para fomentar uma mudança institucional, fundada

em valores universais, que possa ajudar os países a configurar a governança do

mercado de trabalho” (ibidem, p. 77)

Esse novo marco para as instituições é, segundo a OIT, elemento crucial para a

erradicação da pobreza. A necessidade de melhorar a “governança" do mercado de

trabalho - garantindo o cumprimento de certos princípios básicos - é justificada de

duas maneiras. Por um lado, porque o mercado de trabalho não é como os outros

mercados. Sua peculiaridade se dá pelo fato de afetar as pessoas. Por outro lado,

ressalta-se uma instrumentalidade para a garantia dessas normas básicas: a sensação

de estar sendo tratada com justiça repercute no seu rendimento. A equidade

“percebida” (e não tanto a equidade “real”) é fator fundamental na criação de

condições de trabalho que estimulem os trabalhadores, de modo que sua

produtividade seja aumentada. (ibidem, p. 78)

Dentre os princípios básicos que devem estar presentes no mercado de trabalho, são

ressaltados os seguintes direitos fundamentais: a) a liberdade de associação e a

liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; b) a

eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) a abolição

efetiva do trabalho infantil; e d) a eliminação da discriminação em matéria de

emprego e ocupação. (ibidem, p. 79) Nota-se, dessa forma, que embora sejam

199

destacados alguns dos direitos civis e políticos importantes da tradição da luta sindical

no contexto do capitalismo, não são ressaltados os direitos sociais - conquistas estas

fundamentais para a proteção do trabalho.

A vinculação entre a garantia desses direitos básicos e o aumento da renda do

indivíduo é assim resumida:

O estabelecimento de sistemas de governança dos mercados de trabalho que garantam que os trabalhadores que têm de encontrar algum modo de sobreviver possam reivindicar seus direitos fundamentais é um fator fundamental para melhorar a renda que podem obter de seu trabalho. (OIT, 2003, p. 80)

Percebe-se também que o enfoque do “trabalho decente” da OIT se aproxima da

abordagem do PNUD, já que ele “se baseia na convicção de que um objetivo primário

do desenvolvimento, e o meio principal para erradicar a pobreza, é a criação de

condições nas quais se tenha a liberdade de desenvolver a capacidade própria [dos

indivíduos].” (idem)

4. Comentários adicionais.

A partir do que foi exposto anteriormente, é possível sintetizar as recomendações dos

três organismos através do quadro abaixo.

Quadro 2 – O “combate à pobreza”. O que fazer?

Assim, uma vez diagnosticada a questão social em termos de “pobreza”, são

recomendadas “soluções” para enfrentá-la. Juntando as informações do quadro 1 com

Banco Mundial PNUD OIT

Recomendações para o

“combate à pobreza”

- Promoção das “oportunidades” - Incentivo ao empowerment - Promoção da

segurança

- Capacitar os pobres

- Reformar o Estado - Crescimento econômico pró-pobre - Reunir novas forças - Promover uma globalização “mais humana”

- aumentar o “capital humano” do trabalhador e a produtividade da economia - expandir as oportunidades de trabalho decente e produtivo - boa governança do mercado de trabalho

200

as do quadro 2, tem-se um quadro mais abrangente, que possibilita uma comparação

entre as abordagens dos três organismos.

Quadro 3 - Comparando os organismos.

Banco Mundial PNUD OIT Temática central

"Luta contra a pobreza" "Desenvolvimento humano"

"Trabalho decente” e produtivo

Pobreza Definição monetária (linha de pobreza) (1990) e “pobreza multidimensional” (2000)

"Pobreza humana" - privação de capacidades humanas

Trabalhador pobre

Causas da pobreza Falta de recursos ("ativos") e de oportunidades e, ainda, limitações geradas pelas instituições.

Má governança, falta de oportunidades e fatores pessoais.

Falta de "trabalho decente"

Recomendações para o “combate à pobreza”

- Promoção das “oportunidades” - Incentivo ao empowerment - Promoção da segurança

- Capacitar os pobres - Reformar o Estado - Crescimento econô-mico pró-pobre

- Reunir novas forças - Promover uma globalização “mais humana”

- aumentar o “capital humano” do trabalhador e a produtividade da economia - expandir as oportunidades de trabalho decente e produtivo - boa governança do mercado de trabalho

De modo geral, o Banco Mundial seria mais “economicista”, o PNUD se apresenta

com pretensões “humanistas” e, a OIT, a partir da temática do “trabalho”. Mas, a

despeito de suas peculiaridades, nota-se que não há grandes divergências no que diz

respeito ao “que fazer” para “combater a pobreza”.

Suas estratégias comuns referem-se às temáticas da retração do Estado, da capacitação

dos pobres, do assistencialismo e focalização dos recursos públicos nos que

comprovam ser pobres (crescimento “pró-pobre”), do incentivo à transformação do

201

pobre num “pequeno empresário” (através do “micro-crédito”) e, ainda, do incentivo

à “participação” dos pobres. E, de modo geral, pressupõe-se que, quando esses

objetivos forem alcançados, estarão criadas (e expandidas) a “oportunidades”

necessárias para que os “pobres” saiam da pobreza.

202

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerou-se, nesta tese, a expressão “questão social” a partir do entendimento

sugerido por Castel (2003), ou seja, definindo-a a partir do eixo da integração como:

uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade (o que em termos políticos, se chama nação) para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência. (CASTEL, 2003, p. 30).

Uma vez construída a “questão social” como categoria sociológica e assim definida,

Castel (2003) se permite fazer uma releitura da história a partir da idéia de

“metamorfoses da questão social”, ou seja, como uma “dialética do mesmo e do

diferente”, mostrando que em toda sociedade há uma questão social, que deve ser

entendida enquanto uma produção social cuja origem reside nas estruturas básicas da

sociedade, na organização do trabalho e no sistema de valores dominantes a partir dos

quais se atribui dignidade ou indignidade social. (CASTEL, 1996)

Sugeriu-se que a reaparição da questão social (no caso europeu) e/ou o seu

aprofundamento (nos países periféricos) podem ser entendidos a partir daquelas

transformações mundiais recentes analisadas no primeiro capítulo. Embora seja

possível, numa chave sociológica, interpretar essa nova “questão social” a partir do

processo social que a gera – tal como sugere Castel (2003) -, quando se observa como

ela vem sendo enunciada – especialmente no âmbito das políticas públicas – percebe-

se que o “nome” nem sempre diz respeito à “coisa”, o que evidencia o lado político do

problema. Nesse sentido, para elucidar a atual formulação da questão social,

argumentou-se que é preciso entender, primeiramente, como o capitalismo

contemporâneo vem sendo justificado e legitimado. Discutiu-se esta temática no

segundo capítulo, analisando-se rapidamente o discurso neoliberal (como utopia e

como ideologia) e, paralelamente, discorreu-se sobre a justificação do capitalismo no

mundo do trabalho (BOLTANSKI, 1999). Ainda como elementos do novo conjunto

ideológico, destacaram-se os debates e discursos contemporâneos sobre flexibilidade

e empregabilidade, que vêm se constituindo nas novas regras do jogo do mundo do

trabalho.

203

Procurou-se esclarecer melhor a separação entre o “nome” e a “coisa” no terceiro

capítulo. Considerou-se como “coisa” o conceito de Castel (2003) de “questão social”

- conceito que traz consigo a idéia de mutações ou metamorfoses - e como “nome”

tomaram-se os diversos modos a partir dos quais a “coisa” é tratada ou “enunciada”

ao longo do tempo. Apontou-se, assim, para um deslocamento interpretativo da

questão social no contexto latino-americano: se, no contexto do desenvolvimentismo,

ela era tratada enquanto “marginalidade” – a partir de interpretações preocupadas com

os processos estruturais que a geravam -, viu-se que, a partir dos anos oitenta, o

conceito de marginalidade entra em desuso e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a

questão social (mais extensa e aprofundada) começa a ser enunciada, sobretudo, a

partir da idéia da “pobreza”. No quarto capítulo sugeriu-se que para entender melhor a

centralidade, especificidade e significado da questão social enquanto “pobreza”, é

preciso tomar como material empírico os relatórios dos organismos internacionais que

tratam dessa temática - Banco Mundial, PNUD e OIT - e que têm se dedicado – tal

como foi visto no quinto capítulo - à formulação de recomendações de políticas. Uma

vez analisados esses relatórios e ressaltadas as suas especificidades, é preciso fazer

agora algumas considerações a partir de seus traços comuns.

1. Naturalização e individualização no tratamento da questão social

A partir da análise dos relatórios daqueles organismos internacionais, é possível

perceber que, de modo geral, a “pobreza” aparece de uma forma bastante naturalizada

e, por diversas vezes, o problema é visto como algo que simplesmente existe e que

sempre existiu. É colocada enquanto um problema em si mesmo, quase que como

uma questão ontológica. Isso é bastante claro, por exemplo, no tratamento do Banco

Mundial (1990; 2000), a partir da “linha de pobreza”. A pobreza acaba sendo vista

como o conjunto daqueles que estão abaixo da linha. Definida enquanto tal, o objetivo

da política pública acaba sendo o de reduzir o tamanho dessa massa, do número de

“pobres” do mundo. Esta solução acaba se satisfazendo com o simples movimento

desses indivíduos para cima da linha. É nesse sentido, portanto, que o objetivo do

“pobre” ou da política contra a pobreza nada tem a ver com emancipação das pessoas,

mas apenas com “sair da pobreza”.

204

A idéia é a de que, embora a pobreza seja um problema em si mesmo e tenha sempre

existido, agora, no século XXI, chegou o momento de entendê-la melhor e de

enfrentá-la. Assim, para expandir um pouco o entendimento sobre a pobreza e não

limitar a discussão a questões monetárias e de identificação da pobreza, propõe-se que

suas causas sejam entendidas.

Entretanto, a despeito de que sejam apresentadas “causas” para o fenômeno, percebe-

se que o pressuposto da naturalização do fenômeno permanece. Isto porque, as

principais causas identificadas referem-se ou aos próprios indivíduos (aqueles que não

têm “ativos” ou “capacidades” minimamente satisfatórios) ou às instituições – sendo

que os problemas que delas decorrem são vistos (i) como entraves criados pelo Estado

às ações dos indivíduos (“instituições estatais”) ou, ainda, (ii) como insuficiência ou

carência de “instituições sociais”, entendidas enquanto recursos ou ativos a serem

usados pelos indivíduos. No caso do Banco Mundial (2000) e do PNUD (1990; 1994;

1997), isto facilmente percebido e é geralmente tratado a partir da idéia de

“capacidades” de Amartya Sen (SEN, 2000; 2001).

Já no caso da OIT (2003; 2005), como a questão da pobreza é colocada a partir da

noção de emprego decente, percebe-se que as causas da pobreza são entendidas de um

modo menos “naturalizado”, na medida em que lida com a questão a partir do campo

do “trabalho”. Este tratamento diferente pode ser explicado tanto em função da

própria natureza da instituição (como o próprio nome já diz, é um organismo voltado

para a questão do “trabalho”), quanto pela incorporação tardia da temática da

“pobreza” em sua agenda.

Mas, na medida em que a OIT (2003; 2005) aborda o tema do “trabalho decente” e da

pobreza enfatizando principalmente lado “produtivo” do trabalho, há um reforço da

idéia de que o problema é dos próprios indivíduos (falta de empregabilidade, de

capital humano, de capacitação adequada, etc.), mantendo encobertas, portanto, as

relações e causalidades de caráter mais social ou estrutural. E, além disso, ao lançar

mão em vários momentos das abordagens dos outros organismos (linha de pobreza,

capacidades, etc.), há também na OIT o pressuposto de naturalização do problema.

Nesse sentido, a pobreza, de modo geral, não é entendida como o fruto do sistema

social, ou seja, como uma “questão social”. Ao contrário, o próprio modo pelo qual

ela é tratada acaba escondendo que o problema é social. Há, dessa forma, uma

205

semelhança com tratamento dado à “questão social” pela “Guerra à Pobreza” nos

Estados Unidos dos anos setenta (CASTEL, 1978).

Segundo Castel (1978), o problema na época não era visto como “social”, mas

consistia na simples existência dos “pobres”, através da lógica de culpabilização da

vítima (blame the victim). Ou seja, a “pobreza” era vista como algo natural (um

problema em “si mesmo”) e observada a partir dos “sintomas” da questão social

(ibidem, p. 57).

Hoje, além de serem ressaltados os “sintomas” - por exemplo, a partir do estudo The

Voices of the Poor (NARAYAN, 2000) -, são apontadas “causas” para a pobreza, as

quais, além de se identificarem por “problemas” dos indivíduos, envolvem as

deficiências das instituições que criam entraves ou barreiras limitadores das

capacidades dos indivíduos. Desta maneira, a pobreza acaba sendo tratada de modo

descontextualizado ou, ainda, des-historicizado: o conjunto daqueles indivíduos que

estão “abaixo da linha” e que se encontram em tal situação devido a uma falta de

recursos ou ativos (BANCO MUNDIAL, 2000), de “capacidades” (PNUD, 1990;

1997), ou ainda, de trabalho decente (leia-se: produtivo) – sobretudo, por carência de

“capital humano” ou empregabilidade (OIT, 1998; 2003; 2005).

Ao lado dessa naturalização, há ainda uma individualização do problema. Se em

outros tempos – no contexto do desenvolvimentismo latino-americano, por exemplo -,

a questão social era tratada como um “mal social”, um problema da própria sociedade

(ou, ainda, do sistema capitalista), a partir da idéia de “marginalidade”, hoje ela é

tratada individualmente, ou seja, enquanto “pobreza”, que nada mais é que um

somatório de “pobres”.

O problema se desloca, portanto, da sociedade para o indivíduo. A discussão sobre a

“pobreza” passa a estar centrada nos “pobres” individualmente. Seja porque lhes

faltam recursos, ativos ou capacidades, seja porque não conseguem agir livremente

em função dos empecilhos gerados pelas “instituições”. Percebe-se, portanto, que

questões concernentes à sociedade, ao Estado, ao sistema social, etc., são tratadas

através do ponto de vista das “instituições” conceituadas num vezo reducionista: ou

como “recursos” para os indivíduos (por exemplo, as “instituições sociais”, através de

conceitos como o de “capital social”) ou como obstáculos às suas ações (ou seja, as

206

instituições estatais, que são ineficazes, ineficientes, enfim, que precisam ser

“reformadas”).

No que diz respeito aos próprios indivíduos, percebe-se que a ênfase na carência de

ativos (BANCO MUNDIAL, 2000), de capacidades humanas (PNUD, 1997; BANCO

MUNDIAL, 2000), ou ainda, de capital humano (OIT, 2003; 2005), denota, por sua

vez, um tratamento do pobre como, no limite, um “não-indivíduo”. Ele aparece como

alguém que precisa se desenvolver mais, se capacitar, se equipar e, ainda, se organizar

com outros “pobres”, em busca de mais “voz”, com o fim último de “sair da pobreza”.

Desta maneira, nota-se que está sempre presente nas argumentações sobre a pobreza

um indivíduo teórico - ou um “não-indivíduo” -, e não um indivíduo real. Por mais

que haja o esforço em mostrar que os estudos sobre “pobreza” são bastante “reais”, já

que eles vão ao campo – por exemplo, em The Voices of the Poor – perguntar às

pessoas que vivem na “pobreza” quais são suas reais problemáticas e “realidades”,

percebe-se que a avaliação de suas causas e a formulação de seu conceito são feitas a

priori, ou seja, a partir de um modelo teórico para o indivíduo, que, por contraste,

torna o “pobre” um não-indivíduo ou um indivíduo incompleto. Isto é percebido no

modo como as respostas ou declarações dadas pelos “pobres” sobre a “pobreza” no

referido estudo são sempre encaixadas em uma daquelas problemáticas: ou o

problema é a carência de “ativos” ou ele reside nas “instituições”.

Assim, pelo que foi visto, a figura do “pobre” é construída pela negação. O pobre é o

não-empregável, o não-competitivo, o não-produtivo, ou seja, ele acaba sendo o

inverso daqueles padrões de individualidade tratados no segundo capítulo, que, em

última instância, são convergentes. O pobre é o inverso do individuo teórico

competitivo, enfim, daquele homem-empresa - o novo homo economicus do

neoliberalismo - descrito por Foucault (FOUCAULT, 2004a), ou, ainda, do

“empresário de si mesmo” (MACHADO DA SILVA, 2002a).

Por mais contraditório que possa parecer, percebe-se uma naturalização e uma

individualização no tratamento de algo que é essencialmente social. Os “pobres” ou a

“pobreza” não são definidos nem pelos processos que os geram nem por aquilo que

são, mas por sua negatividade. É possível imaginar sem dificuldades, portanto, que

essa nova abordagem para a questão social traz consigo uma série de pressupostos e

implicações que merecem análise mais detida.

207

2. A construção da “pobreza” como conceito

Foucault (2004a) sugeriu que para entender o neoliberalismo contemporâneo é preciso

levar em conta seu projeto de transformação do mundo social. Ao contrário dos

liberais clássicos que defendiam a não-intervenção estatal e, portanto, argumentavam

em favor do laissez-faire, os neoliberais contemporâneos apostam num

intervencionismo peculiar. Bem diferente do keynesianismo, o Estado deve se retrair

daquelas funções que anteriormente desempenhava (enquanto propulsor do

desenvolvimento, protetor social, etc.) e voltar-se para a transformação da sociedade.

Com o objetivo de fazer da “empresa” um modelo generalizável, o Estado deve se

empenhar em inserir no tecido social os mecanismos concorrenciais do mercado, de

modo a propagar e a multiplicar aquela forma em todo o corpo social. (FOUCAULT,

2004a, p. 247) Assim, ao mesmo tempo em que Estado se torna complementar e

funcional ao mercado, tal como sugere o Banco Mundial (1997; 2002), adequando

suas instituições e tornando-se um “facilitador” dos mercados, ele busca também

inserir na própria sociedade (nos indivíduos) a lógica concorrencial do mercado

(FOUCAULT, 2004a).

Do ponto de vista da incorporação dessa argumentação ao debate sobre o mundo do

trabalho, percebe-se que há uma defesa da inscrição do indivíduo na forma “empresa”

(ibidem) – voltada para a concorrência - através dos debates da teoria do capital

humano, da empregabilidade, enfim, do modelo do indivíduo como “empresário de si

mesmo” (MACHADO DA SILVA, 2002a), ou seja, aquele novo homo economicus

pressuposto pelo neoliberalismo (FOUCAULT, 2004a).

O que se pretende sugerir aqui é que, diante do aprofundamento da questão social, que

se torna cada vez mais evidente, os neoliberais não conseguem dar conta dessa

realidade simplesmente a partir da idéia do indivíduo competitivo ou do “empresário

de si mesmo”. Para tanto, eles lançam mão de um novo conceito que está relacionado

com esse tipo de indivíduo, entendido justamente como o seu inverso: os pobres ou a

pobreza (como o conjunto ou somatório de pobres).

Embora a “pobreza” seja uma palavra antiga que sempre foi usada enquanto categoria

de percepção social, é possível sugerir, diante do conteúdo específico que vem

assumindo, que ela seja “nova” enquanto conceito - no sentido destacado por

208

Koselleck119 (1992). Assim, pode-se dizer que a pobreza como “conceito” tem

aparecido – sobretudo, nos discursos dos organismos internacionais - como se

referindo àquele indivíduo que ainda está incompleto, que precisa se “equipar” com

recursos ou ativos, enfim, se capacitar, aumentar sua empregabilidade, de modo que

consiga competir e, assim, ultrapassar a fronteira da linha da pobreza. Ou seja, esse

“pobre” aparece como o reverso do indivíduo competitivo neoliberal.

Assim, a pobreza deixa de ser uma simples categoria de percepção social e passa a ser

construída enquanto conceito, o qual, por sua vez, ajuda a recortar a realidade de uma

maneira diferente, contribuindo assim para o reforço de uma visão de mundo

específica: a neoliberal. O conceito de “pobreza” atua, portanto, como um elemento

importante do modelo proposto.

Neste sentido, discorda-se aqui do que argumentou Øyen (1996), num dos artigos da

coletânea Poverty: A Global Review. O autor sugeriu que falta uma filosofia às atuais

medidas e discussões sobre a pobreza e, por isso, o paradigma da pobreza não chega a

lugar algum (ØYEN, 1996, p. 3). Ao contrário, entende-se nesta tese que o tratamento

das mazelas sociais contemporâneas a partir do conceito de “pobreza” – e, por

conseguinte, as propostas para enfrentá-las -, por mais que se esforce em assumir um

caráter puramente “técnico”, pressupõe, sim, uma filosofia ou uma visão de mundo

social específica e que, justamente por isso, traz consigo algumas implicações. Ou

seja, é justamente a partir de uma determinada filosofia (visão de mundo) que a

questão da pobreza e as recomendações para enfrentá-la são estruturadas120.

119 Sobre a novidade dos conceitos, Koselleck (1992) sugere que: a “história dos conceitos mostra que novos conceitos, articulados a conteúdos, são produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas possam ser as mesmas.” (KOSELLECK, 1992, p. 140) Assim, ele pondera que a utilização de uma mesma palavra - em contextos variados, e, consequentemente, com significados e conteúdos diversos - pode representar a utilização de conceitos diferentes, ou seja, “novos conceitos”. 120 Lessa (1998) sustenta que todo paradigma de teoria política é dotado de duas dimensões analíticas obrigatórias: (i) a dimensão descritiva; (ii) a dimensão normativa. Em relação à “dimensão descritiva”, Lessa a considera “o domínio dos diagnósticos de diferentes states of affairs, através da descoberta do que se toma como as suas propriedades básicas” (LESSA, 1998, p. 29). Quanto à dimensão normativa, sugere que ela se refere “a que alternativas devem ser construídas para tais contextos. O leque de possibilidades dessa segundo dimensão inclui: a manutenção do referido state of affairs; a eliminação de fontes potenciais de desestabilização, ou a construção de um modelo alternativo.” (idem) Trazendo as considerações de Lessa para a presente discussão, percebe-se, portanto, que, a partir de uma visão de mundo específica, são destacadas as dimensões: descritiva (a “pobreza”) e normativa (o “combate à pobreza”).

209

Assim, a partir das análises dos organismos internacionais, percebe-se que, embora

cada um construa sua argumentação de uma maneira e apresente suas peculiaridades,

eles guardam afinidades no que diz respeito: (i) a uma concepção do “pobre” como

um indivíduo incompleto ou, ainda, um não-indivíduo; e (ii) ao “que fazer” (as

propostas de políticas e instrumentos de intervenção).

Viu-se que, quanto ao que fazer, suas estratégias comuns referem-se às temáticas da

capacitação dos pobres, do assistencialismo e focalização dos recursos públicos nos

que comprovam ser pobres (crescimento “pró-pobre”), do incentivo à transformação

do pobre num “pequeno empresário” (através do “micro-crédito”) e, ainda, do

incentivo à “participação” dos pobres. E, de modo geral, pressupõe-se que, quando

esses objetivos forem alcançados, estarão criadas (e expandidas) as “oportunidades”

necessárias para que os “pobres” saiam da pobreza.

Assim, nessa perspectiva a ordem social básica é o mercado. Visto como o grande

mecanismo de integração, o mercado estabelece que todos os indivíduos devem seguir

sua lógica concorrencial. Aqueles que conseguem competir, ou seja, atuar livremente

nessa arena do mercado, são considerados indivíduos completos considerados

autônomos. Aqueles que não conseguem acompanhar essa engrenagem - ou seja, os

pobres - precisam de ajuda. Seja através de uma assistência “momentânea”, seja por

ações que os transformem em indivíduos por inteiro: capacitação para poderem

competir e microcrédito para abrirem seus próprios empreendimentos. Percebe-se,

portanto, que ao lado da naturalização da “pobreza”, há também uma naturalização do

próprio “mercado”, que é pressuposto como o fundamento da ordem social.

O Estado deve, por sua vez, se retirar em algumas áreas, abrindo espaço para a

iniciativa privada (expandindo o “mercado”), concentrar seus esforços nas áreas onde

o capital privado não tem interesse e, ainda, fortalecer suas instituições de modo que o

mercado funcione melhor. Além disso, deve “enxugar” suas instituições para que, de

um lado, não atrapalhem as ações dos indivíduos e, por outro, concentre suas ações

naqueles que se mostram incapazes. Assim, compete ao Estado dar assistência aos

pobres, focalizar seus recursos e suas ações sobre os pobres, voltando-se para o

objetivo de capacitá-los, ou seja, dar-lhes condições de se tornarem exemplares do

indivíduo competitivo: mais ativos (BANCO MUNDIAL, 2000), mais capacidades

(BANCO MUNDIAL, 2000; PNUD, 1997), mais empregabilidade e “capital

210

humano” (OIT, 1998; 2003) aos pobres, de modo que possam competir e que, assim,

suas “oportunidades” sejam expandidas.

Ao mesmo tempo em que se enfatiza essa transformação do pobre num indivíduo

mais completo, ressalta-se também um lado “político” para a questão. Recomenda-se

que esses pobres devem-se organizar, devem ser “empoderados” (empowered), para

que, assim, possam ter “voz” e “participar” em busca do que se considera seu o fim

último dos pobres: “sair da pobreza”. Esta “participação” muitas vezes refere-se

simplesmente ao levantamento das opiniões dessas pessoas definidas como “pobres”

acerca de temas relativos à “pobreza”.

Assim, uma vez implementadas todas as recomendações, os indivíduos pobres

estariam prontos para competir e, assim, abrir-se-iam as condições para a expansão de

suas “oportunidades”. Dessa maneira, a visão de mundo pressuposta parece ser

mesmo a do neoliberalismo, que, com a ajuda do conceito de pobreza, procura abarcar

a realidade contemporânea e propor medidas para transformá-la.

3. Discurso e disputa política

Uma vez sugerido que a atual utilização do conceito de “pobreza” pressupõe uma

visão de mundo específica, e que dela faz parte, pode-se identificar uma íntima

relação do discurso do “combate à pobreza” com o poder, tal como ressaltava

Foucault (2004b). Para o autor, os discursos não são neutros; ao contrário, eles são

justamente lugares onde a política exerce um de seus maiores poderes. E, dessa

maneira, o “discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de

dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos

apoderar.” (ibidem, p. 10) O discurso é, portanto, segundo Foucault, um instrumento

de poder na luta pela imposição de sentido no mundo social.

Entendido dessa maneira, duas considerações podem ser feitas acerca do discurso do

“combate à pobreza”. Em primeiro lugar, tal como argumenta Mestrum (2002), ele é

um discurso de “legitimação” da globalização neoliberal. Ele funciona como um

guarda-chuva atrás do qual se escondem e se reforçam as reformas de que a

globalização (neoliberalizante) necessita. (MESTRUM, 2002, p. 78)

211

De fato, pelas recomendações de políticas anteriormente analisadas, percebe-se que o

“combate à pobreza” aparece como um pretexto para outras recomendações das mais

diversas naturezas (a transformação do papel do Estado, privatização, o estímulo à

abertura dos mercados, a ampliação da área de atuação do capital privado, a

focalização das políticas sociais) que coincidem realmente com a agenda neoliberal e

que, de modo geral, são mais polêmicas. Afinal de contas, é muito mais fácil e

“justificável” ser favorável ao “combate à pobreza” do que defender aquelas outras

políticas.

Nesse sentido, apresentar o “combate à pobreza” como uma mudança na retórica

internacional - na medida em que ela deixa de estar centrada no tema específico do

“ajuste” e se volta para questões “mais humanas” – acaba fazendo parte da própria

estratégia de legitimação do discurso dos organismos internacionais e de suas

políticas. E, em última instância, nada mais é que uma aplicação da mesma lógica à

temática específica do tratamento da questão social.

Em segundo lugar, o discurso do “combate à pobreza” deve ser entendido como um

instrumento de poder que está em disputa com a ordem social anterior (a do Welfare

State – seja enquanto realidade, seja enquanto paradigma a ser seguido) e que luta por

sua destruição. Ao lutar pela construção de narrativas, pela imposição de sentido no

mundo social e por um monopólio da decisão de formulação de políticas, aquele

discurso toma como objetivo a progressiva destruição da ordem social anterior.

Assim, quando se defende a necessidade do “combate à pobreza”, o que está em jogo

é uma tentativa de destruição do mundo do welfare state. Ao reforçar a “pobreza”

como conceito chave para a compreensão do mundo social e ao procurar combatê-la

através daquelas recomendações, percebe-se que o que está sendo proposto é um tipo

de sociedade individualizada, que tem como fundamento o mercado, no qual atuam

indivíduos atomizados – os competitivos e os incapazes (pobres) – e, ainda, um

Estado que assume dois papéis: por um lado, o de ser complementar e funcional ao

mercado, fortalecendo suas instituições, tornando mais fácil o funcionamento do

mercado e, por outro, assumindo a obrigação de se dedicar àqueles indivíduos que não

conseguem competir.

O problema é que, num contexto de escassez das “utopias” – no sentido de Karl

Mannheim (1976) - e em que a “crítica social” se encontra enfraquecida

212

(BOLTANSKI, 1999) ou, ainda, não tão articulada e estruturada quanto nos anos

sessenta, por exemplo, vai se abrindo espaço para que os discursos quase religiosos

dos organismos internacionais - que “ensinam” o que o mundo todo deve fazer –

consigam se disseminar amplamente, ganhando uma adesão cada vez maior,

inclusive, de vozes tradicionalmente ligadas à crítica - como partidos de esquerda,

movimentos sociais, dentre outros.

Assim, tal como os próprios organismos propõem, vem sendo formado um amplo

consenso que estabelece que os “pobres” precisam de políticas de “combate à

pobreza” – simplesmente isso. Ao fazer daquelas recomendações - que são,

entretanto, políticas das mais variadas naturezas - a grande necessidade dos “pobres”,

tomam-se silenciosamente medidas que visam muito mais destruir o que foi

conquistado pela realidade do welfare state (e do que poderia, por hipótese, ser

conquistado se este ainda fosse visto enquanto horizonte paradigmático), do que

resolver de fato a “questão social”.

Diante disto, não parece estranho, portanto, que, em nome da luta contra a pobreza,

conceitos que outrora eram de suma importância – tais como cidadãos, direitos

universalizados, classes sociais – estejam hoje enfraquecidos. São conceitos que se

busca desmoralizar e que têm sido associados a coisas do “passado” ou a “privilégios”

que merecem ser destruídos.

Na disputa pela construção do sentido do mundo social, o discurso neoliberal do

“combate à pobreza” ajuda a recortá-lo à sua maneira : fragmentando o tecido social,

tratando-o como um conjunto de indivíduos atomizados e submetidos à dinâmica da

competição.

Do ponto de vista do mundo do trabalho, há também uma clara transformação: o que

antes, na chamada era dourada, constituía uma “classe social” - composta por

trabalhadores empregados e desempregados e, de modo geral, unidos por uma

identidade coletiva capaz de gerar solidariedade e força política – tem sido tratado

agora como uma massa de indivíduos atomizados: os “empresários de si mesmos” que

podem competir e os incapazes (pobres) que precisam de ajuda.

No que diz respeito à proteção social na América Latina, nota-se que também houve

uma transformação. Se antes a ênfase recaía sobre os “trabalhadores” (MERKLEN,

2005, p. 116), ou ainda, sobre os “cidadãos”, ambos detentores de direitos sociais,

213

hoje o alvo central da política social – agora, “focalizada” - passa a ser os “pobres”.

Criam-se, assim, as bases para que os sistemas de proteção social sejam questionados

e criticados por não constituírem o melhor modo de “combater a pobreza”. E emerge,

assim, a polêmica “focalização x universalização” das políticas sociais, sugerindo que

aqueles que defendem a “focalização” lutam realmente os interesses dos “pobres” e

buscam a “justiça social”, enquanto os que defendem a “universalização” apenas estão

preocupados em manter os “privilégios” de “alguns”.

Nota-se, por fim, que o dever ser contemporâneo da política social inscrito nas

recomendações de “combate à pobreza” sugere que seu eixo se desloque da noção de

direitos e passe para as esferas das capacitações, compensações e caridades. Diante

disto, torna-se evidente que um novo (e perigoso) registro epistêmico vem sendo

usado e difundido no tratamento e entendimento do mundo social.

4. Comentário final

Frente ao objetivo ressaltado por Topalov (1994) para as ciências sociais, esta tese

teve como objetivo central o de desnaturalizar o tratamento da questão social baseado

na temática da “pobreza”, procurando propor um entendimento para seus significados

e suas implicações.

Consequentemente, pode-se concluir que enquanto a questão social continuar sendo

tratada a partir dessa noção específica de “pobreza”: (i) as perspectivas sociológicas121

capazes de dar alguma explicação para a questão social entram em declínio, dando

lugar a uma abordagem individualizante e des-historicizada; (ii) vai sendo construído

um conceito que ajuda a recortar e modelar a realidade social à luz dos marcos

neoliberais; (iii) reforça-se um discurso de poder que tem como objetivo legitimar o

projeto neoliberal-globalizante dos organismos internacionais e, ao mesmo tempo,

desmontar o mundo social construído pelo welfare state.

Ao escrever sobre o “esgotamento das energias utópicas” dos trabalhadores,

Habermas (1987) alertou para o risco de eles estarem sendo conservadores, ao

defenderem, contra a guinada neoliberal, algo “do passado” (o welfare state). Diante

121 Que enfatizem o lado “social” e “político” da questão – seja iluminando suas problemáticas mais estruturais, seja – tal como propõe Domingues (2003) - se preocupando com o tema da “dominação”.

214

disso, argumentou Habermas, a classe trabalhadora estaria deixando de ser o lócus da

construção das utopias, que estariam se esgotando.

É evidente que as utopias no mundo contemporâneo precisam ser reconstruídas,

estruturadas e fortalecidas. É importante lembrar, que quando as utopias e as críticas

eram radicais, as respostas dadas pelo status quo tiveram algo de substantivo - é isto o

que mostra a história da construção dos welfare states122.

Contudo, enquanto as utopias não se estruturam e se organizam, é preciso defender o

que já existe. Assim, não está se defendendo aqui o welfare state como um mundo

“ideal”, mas apenas como algo que já foi construído123, e que se pretende desmontar.

Assim, ao contrário do que Habermas aponta, a defesa dos welfare states não seria um

“retorno” ao passado, mas um esforço, na ausência de uma utopia clara, pela

manutenção daquilo que um dia já foi conquistado.

122 Essa história mostra que os welfares states foram resultantes da política, num contexto em que a democracia liberal não conseguia mais dar conta das reivindicações das classes operárias. Ou seja, quando as tensões entre as classes sociais se acirraram e passaram a ameaçar a ordem social, o princípio de proteção social (POLANYI, 2000) - “coletivista” e intervencionista – foi acionado, com o objetivo de preservar a coesão social. Ou, ainda, tal como mostrou Marshall (1967), para lidar com o acirramento da questão das classes, incluiu-se o elemento “social” na cidadania. 123 Nem que seja no “papel”, como é o caso da Constituição Brasileira de 1988.

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