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INSTITUTO SUPERIOR MIGUEL TORGA LICENCIATURA em SERVIÇO SOCIAL POLÍTICAS E SISTEMAS DE SAÚDE TEXTOS ACADÉMICOS I Coimbra, Outubro de 2003 Sónia Guadalupe Abreu

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INSTITUTO SUPERIOR MIGUEL TORGA LICENCIATURA em SERVIÇO SOCIAL

POLÍTICAS E SISTEMAS DE SAÚDE TEXTOS ACADÉMICOS I

Coimbra, Outubro de 2003 Sónia Guadalupe Abreu

Políticas e Sistemas de Saúde – Textos Académicos I

Sónia Guadalupe Abreu Outubro, 2003 2

SUMÁRIO

I. Uma Perspectiva Histórica do Direito à Saúde

1. Breve olhar sobre os percursos históricos do direito à saúde a nível mundial

2. O caso português

2.1. Grandes períodos

2.2. Princípios ideológicos e determinação normativa: os principais marcos legislativos

Políticas e Sistemas de Saúde – Textos Académicos I

Sónia Guadalupe Abreu Outubro, 2003 3

I.

UMA PERSPECTIVA

HISTÓRICA DO

DIREITO À SAÚDE

Políticas e Sistemas de Saúde – Textos Académicos I

Sónia Guadalupe Abreu Outubro, 2003 4

1.

Breve olhar sobre os

percursos históricos do

direito à saúde

a nível mundial

A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) foi, desde o início, mais do que um documento

jurídico, sobretudo, um ideal a atingir, uma utopia humanista, uma ética para todos os seres humanos, por igual

merecedores de um tratamento em que é a dignidade humana que fundamenta os direitos.

Declaração Universal dos Direitos do Homem

Artigo 1º

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de

consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Artigo 25º

1. Toda a pessoa tem o direito a um nível de vida suficiente para assegurar e à sua família a saúde e o bem-

estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos

serviços sociais necessários, e tem direito a segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na

velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.

� «Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas

circunstâncias, caracterizados por muitos, em defesa de novas liberdades contra velhos poderes e nascidos de

modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.» BOBBIO (1990)

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� «É preciso saber definir objectivamente os valores da solidariedade, para entendermos que posição devemos

tomar face ao direito à saúde como um acto significativo que marca e define uma etapa humanística e cultural.»

ANTÓNIO GALHORDAS (1994)

� «O respeito dos direitos humanos, direito à educação, direito à habitação, direito ao trabalho, direito à justiça, liga-

se inexoravelmente ao conceito de saúde [e] afirma-se como um dos meios essenciais para a prática da saúde

pública, que tem como primeiro objectivo assegurar as condições que permitem às pessoas permanecerem

saudáveis.» JORGE TORGAL (1995)

� «Os direitos do homem são os direitos dos outros. E os outros são os que mais precisam de nós, os mais frágeis,

os mais vulneráveis, os mais esquecidos, os mais solitários, os mais descriminados, os que só são notícia,

porventura, num dia fatídico, que já passou.» ALBERTO MARTINS (1994)

O direito à saúde, como os restantes direitos sociais, surge na sequência, e em resultado, da força sócio-

política das doutrinas e movimentos sociais, iniciados em meados do século XIX, e que no século XX se apresentam

como normas legais que todos os Estados se obrigam a incluir nas suas leis e constituições.

As políticas sociais são, assim, “uma aquisição recente das sociedades industrializadas e desenvolvidas dos

países capitalistas. Iniciaram-se na Europa, nos finais do século XIX e vigoram num número muito reduzido de países

de outros continentes. Pressupõem uma razoável capacidade de organização social e económica, viável onde o

desenvolvimento tenha ultrapassado certos limites mínimos. E a sua necessidade em geral, só se faz sentir com

premência quando alguns problemas sociais atingem uma fase de aguda deterioração, decorrente do próprio

desenvolvimento.” H. MEDINA CARREIRA (1996)

Há pelo menos três ordens de medidas que condicionam o estabelecimento das políticas de saúde:

• De ordem económica: necessidade de criação de melhores condições básicas de nível de vida, de trabalho

e de ambiente social (alimentação, habitação, higiene, poluição, ...).

• De ordem educativa, cultural e emocional: necessidade de criação de uma (nova) mentalidade crítica,

que permita a todos os elementos da população conhecimentos claros do que é a saúde, da sua importância, bem

como a forma de a manter e melhorar, o que implica a organização de meios de ensino, instrução e informação

permanente.

• De ordem técnica: necessidade de organização duma rede de serviços de prestação de cuidados de

saúde, cobrindo os aspectos sanitários, cuidados primários, diferenciados e de reabilitação.

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Durante séculos, havia atitudes, consciência e cultura solidária, face ao fenómeno da saúde, como

demonstravam as iniciativas, de base religiosa e ética, que se organizavam no sentido de proteger os enfermos, mas

no domínio dos valores sociais não havia nem uma obrigação de quem fazia, nem um direito de quem

beneficiava.

Assistência: «Forma tradicional de auxílio às pessoas em situação de inferioridade, pelo seu estado de miséria,

doença, condição física ou moral, que leva os indivíduos, de livre vontade e por sentimento de caridade ou

solidariedade, a ajudarem-se mutuamente. De forma caritativa inicial, privada e em grande parte irregular, e que ainda

hoje representa em países atrasados papel importante na minoração das privações e dos sofrimentos físicos, morais e

da doença, sem os resolver, a assistência foi-se disciplinando e organizando, até se institucionalizar em forma pública,

fiscalizada e orientada por grupos, autoridades locais e o próprio Estado (assistência social). Com os progressos feitos

na estruturação da sociedade moderna, grande parte das atribuições da assistência passaram para serviços

organizados da previdência, baseados em sistemas de seguro, durante o fim do século passado e todo o presente; e

em alguns países, já na nossa época, para os serviços mais completos e cobrindo toda a população da segurança

social, mantidos pelo Estado. Outras designações, como assistência médica na doença, materno-infantil, hospitalar,

etc., correspondem a formas organizadas de apoio médico, paramédico e social, de índole colectiva (organizada), para

grupos da população mais do que para indivíduos isolados, com acesso independente das condições sócio-

-económicas.» F. A. GONÇALVES FERREIRA (1989)

«Os Estados, pressionados, iniciaram uma adaptação orgânica e social, no domínio da segurança e da saúde, de

acordo com parâmetros de uma nova mentalidade cultural.» ANTÓNIO GALHORDAS (1994)

«O direito à saúde e as políticas de saúde que o concretizam são uma das dimensões básicas do chamado Estado

Providência ou Estado de bem-estar. Ao contrário do conceito de «Estado Social», muito em voga nas hostes

socialistas do virar do século, enquanto forma política do Estado asseguraria a transição para o socialismo, o conceito

de Estado Providência, bem mais tardio, designa a forma política do Estado nos países capitalistas avançados num

período em que o socialismo deixa de estar na agenda política do curto e médio prazo.» BOAVENTURA SOUSA

SANTOS (1990)

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Outros marcos importantes na história do direito à saúde.

Na Conferência de Alma-Ata (1978) “é reconhecida à sociedade um papel importante na defesa do direito à

saúde, não só como um direito individual, mas também como uma responsabilidade individual.” O seu teor consta de

“princípios e recomendações que exprimem o critério de grande confiança na mudança decisiva das características

inquietantes do actual binómio saúde-doença, no sentido de se atingir um estado de saúde positiva para todas as

pessoas.” F. A. GONÇALVES FERREIRA (1989)

«As metas de saúde para todos constituem uma afirmação de que o direito à saúde e aos cuidados de

saúde são indissociáveis e constituem atributos do direito à liberdade e à igualdade individual e social. São, por isso,

independentes da organização política do Estado e, ao terem sido subscritos por todos os Estados membros da OMS,

transformaram-se na primeira política de saúde comum europeia.» OMS (1985)

A Organização Mundial de Saúde (OMS) é a agência internacional das Nações Unidas para a saúde. Tem

sede em Genebra (Suíça) e seis subagências no mundo, sendo a da Europa em Copenhague (Dinamarca). Foi

constituída em 1948 no dia 7 de Abril, tendo sido este instituído como “Dia Mundial da Saúde”. A OMS é designada

por WHO (World Health Organization) em inglês.

A Declaração de Alma-Ata é o resultado da Conferência Internacional sobre os Cuidados de Saúde Primários

da OMS realizada em 1978 com a finalidade de se conseguir saúde para todos no ano 2000.

� www.who.int

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2.

O Caso Português

Na actualidade consideramos que, em Portugal a Saúde é um Direito e um Dever, mas nem

sempre assim foi.

A Constituição da República Portuguesa consagra o Artigo 64º à Protecção da Saúde. Apesar de este ser

o único artigo que se refere expressamente à saúde, encontram-se, contudo, na Constituição outros preceitos que lhe

dizem respeito: o Direito à Vida (Art. 24º), o Direito à Integridade Pessoal (Art. 25º), o Direito ao Ambiente e Qualidade

de Vida (Art. 66º), etc..

Artigo 64º - Saúde

1. Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover.

2. O direito à protecção da saúde é realizado:

a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e

sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;

b) Pela criação de condições económicas, sociais e culturais que garantam a protecção da infância, da juventude

e da velhice, e pela maioria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura

física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo.

3. Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado:

a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da

medicina preventiva, curativa e de reabilitação;

b) Garantir uma racional e eficiente cobertura médica e hospitalar de todo o país;

c) Orientar a as acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;

d) Disciplinar e controlar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de

saúde;

e) Disciplinar e controlar a produção, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos

e outros meios de tratamento e diagnóstico.

4. O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, 2ª REVISÃO, 1989

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O direito à protecção da saúde concede-nos a possibilidade de obter do Estado prestações ou serviços que

permitam a sua efectivação, implicando, por isso, um dever do Estado. Deste modo, este direito não impõe apenas

ao Estado a obrigação de criar condições para a protecção da saúde, mas também lhe impõe que se abstenha de

actuar de forma a prejudicar ou fazer perigar a saúde dos cidadãos.

Se bem que o Estado seja o principal destinatário do Artigo 64º, ele não é, contudo, o único. À sociedade

também compete a defesa e promoção da saúde. Este dever fundamental significa que todos os cidadãos devem

desenvolver actividades que prossigam aquelas finalidades.

Associando este artigo com o artigo 25º da Declaração universal dos Direitos do Homem temos duas

vertentes de direitos: direito a ter condições sociais para a manutenção da saúde (...) e cuidados de saúde a prestar

aos cidadãos que ficaram doentes” (Lopes e Pinto, 2003).

Como foi referido, ao longo do tempo, na história do nosso país, têm havido várias perspectivas e práticas no

que diz respeito à protecção social da saúde.

Em conformidade com o atrás referido, assistiu-se, “durante séculos, espontaneamente e em obediência a

um dever de caridade, foi prestada assistência sanitária aos indigentes enfermos por pessoas privada ou por

instituições públicas” (CARREIRA, 1996), tendo cabido em especial às instituições particulares (com grande relevo

para as Misericórdias, que administravam a maior parte dos hospitais) a assistência no domínio da saúde, desde a

Idade Média. Desta forma, “por caridade procurou-se apoiar e curar os doentes pobres nos hospitais. Ali se ministrava

o socorro gratuito aos doentes sem meios patrimoniais próprios para se tratarem à sua custa” (CARREIRA, 1996).

Algumas transformações e reformas houve, nomeadamente nos séculos XVIII e XIX, embora “limitando-se a

pequenas ampliações ditadas pelo progresso” (CARREIRA, 1996).

O conceito e a expansão do direito geral e universal à saúde, com igualdade de oportunidades, instala-se na

Europa a partir de 1945 (no pós-guerra). As políticas sociais, nesta época, passam de um modelo onde se

contemplavam apenas os trabalhadores (através dos seguros sociais obrigatórios) para um modelo universalizante

que passa a abranger todos os cidadãos de cada país.

Na década de 50, Portugal, geograficamente na Europa, mas dela repressivamente isolado culturalmente,

mantinha-se à margem do direito à saúde e do generalizado movimento de institucionalização das políticas sociais .

A ideologia do Estado Novo tinha, relativamente à Segurança Social e Saúde, uma atitude que se alicerçava

em todos os suportes culturais da caridade paternalista. Oficialmente, competia ao Estado um papel supletivo das

acções de solidariedade ético-religiosas, sintetizada no lema “dos que podem aos que precisam” que existiu e foi

resistindo.

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2.1.

Grandes Períodos

Quadro 1. Periodificação (Henrique Medina Carreira)

Assistência

Pública

*

Até 1946

- Assistência privada e pública;

- Importância das instituições particulares (Misericórdias);

- Serviços de Saúde da responsabilidade da iniciativa privada (excepção para os

serviços de sanidade geral – 4 hospitais);

- Caridade no apoio aos doentes;

- Acção curativa promovida pelo Estado nos seus hospitais era escassa;

- Acção preventiva: “polícia sanitária” (saúde pública).

Assistência

Pública e o

Seguro Social

Obrigatório

*

De 1946 a 1976

- Publicação do Estatuto da Assistência Social e Organização da Assistência Social

(1944 e 45 respectivamente);

- Papel supletivo no domínio da saúde assumido pelo Estado;

- Acção de profilaxia e defesa contra algumas doenças;

- São definidos responsáveis pelos encargos da assistência: organização, cadastro

e recenseamento de pobres e indigentes;

- Cuidados médicos da responsabilidade do indivíduo e família;

- Seguro Social Obrigatório (1935) – Previdência Social;

- Federação das Caixas de Previdência (1946) – permite a expansão dos serviços

médico-sociais à margem dos serviços assistenciais e “policiais” de saúde do

Estado;

- Lei de Bases da Organização Hospitalar (1946) (construções hospitalares

entregues às Misericórdias);

- Estatuto da Saúde e Assistência (Lei n.º 2120 de Julho de 1963);

- 1971 (Dec.-Lei n.º 413/71): ensaio reformista que reconhece direito à saúde, da

promoção de uma política unitária de saúde, de integração das actividades de

saúde e assistência e do planeamento central e descentralizado da execução; Não

conseguiu a integração dos Serviços Médico-sociais da Previdência para a criação

de um sistema de saúde;

- Criação dos Centros de Saúde (1971).

Políticas e Sistemas de Saúde – Textos Académicos I

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Quadro 1. (continuação)

O Serviço

Nacional de

Saúde

*

De 1976 a 1990

- Revolução de 25 de Abril de 1974: novo contexto político;

- Constituição da República Portuguesa (1976) institui o Serviço Nacional de Saúde

(em 1979) universal e gratuito;

- O SNS pretende a criação de uma organização estatal de prestação de cuidados a

toda a população, garantindo o acesso a todos os cidadãos em regime de

gratuitidade;

- É atribuída ao Estado a incumbência de mobilizar os recursos financeiros

indispensáveis aos SNS para a sua implantação e realização;

- Lei do SNS: primeiro diploma que efectiva o direito universal e gratuito à saúde e

que define o conteúdo das prestações que são objecto daquele direito;

- Transferência dos Serviços Médico-sociais das Instituições de Previdência para a

Secretaria de Estado da Saúde (1977);

- Medicina Privada.

A Reforma do

Serviço Nacional

de Saúde

*

De 1990 à

Actualidade

- Dificuldades financeiras de sustentação do SNS;

- Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto);

- Estatuto de Serviço Nacional de Saúde (Dec.-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro) que

regulamenta a anterior;

- Financiamento passa a ser da responsabilidade do Estado e de outras entidades,

nomeadamente dos beneficiários (com várias modalidades);

- Regime de convenção;

- Gestão privada de serviços de saúde;

- Alterações à Lei de Bases: criação dos chamados “Hospitais SA” (Sociedades

Anónimas)

- ? ? ?

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2.1. Princípios ideológicos e

determinação normativa: os principais marcos

legislativos

O direito à saúde está consignado na Constituição da República Portuguesa e tem carácter geral e universal.

Este é, de facto, o ponto de partida para todas as análises que se façam sobre a problemática da saúde em

Portugal.

Podemos afirmar em traços longos, que do séc. XV até ao início do séc. XX pouco ou nada havia mudado na

prestação de cuidados de saúde no nosso país, para além da organização de alguns aspectos higieno-sanitários e da

criação das autoridades sanitárias durante o século XVIII e XIX.

“No final do século XIX, os serviços de saúde portugueses, ligados aos objectivos das reformas liberais de

Passos Manuel (1835) e de Alves Martins (Bispo de Viseu) (1868), ainda que procurassem seguir os conhecimentos

vindos do estrangeiro nessa matéria, depararam-se com os seguintes obstáculos (Gonçalves Ferreira, 1975):

- falta tradicional de interesse colectivo;

- incapacidade técnica;

- carência de sentido de organização.”

Legislação de 1899-1901 de Ricardo Jorge

Ao dobrar do século, Ricardo Jorge surge como o grande obreiro de importantes reformas sanitárias, para

além de criador do ensino da medicina sanitária e da regulação definitiva das autoridades de saúde. Foi encarregado

de proceder à reorganização dos serviços de saúde e beneficência pública, tendo publicado a extensa legislação de

1899-1901, baseado em grande parte na orientação e disciplina da "política sanitária" alemã.

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Três princípios caracterizaram a reforma: • A implantação de medidas (algumas obrigatórias) de luta contra as doenças evitáveis, por meio das

imunizações e da vigilância dos factores de risco do meio ambiente, sobretudo a água de abastecimento e os

alimentos do comércio;

• A vigilância e a repressão de fraudes e atentados à higiene no fabrico e comércio de géneros alimentícios;

• A preparação de técnicos de saúde (médicos, engenheiros, agentes sanitários) pelos próprios serviços de

saúde.

Os meios postos à disposição da reforma foram insuficientes e, aquando da implantação da República em

1910, Ricardo Jorge preparou nova reforma (publicada em 1912), seguida por duas outras em 1926 e 1929.

Os resultados práticos na melhoria da saúde da população situaram-se apenas na diminuição de algumas

doenças infecciosas (tifo e varíola).

A grande reforma de 1899-1901 (Regulamento Geral de Saúde) manteve-se por 70 anos nos seus

principais aspectos normativos das actividades de higiene e política sanitária.

• Nesta reforma não foram considerados os problemas da “assistência médica” à população, excepto no que

dizia respeito aos pobres e indigentes, que a ela tinham direito no regime de gratuitidade prestada especialmente

pelas autoridades de saúde e serviços de hospitalização sob vigilância e encargo das autarquias ou de entidades

benévolas caritativas (Misericórdia).

A assistência médica em Portugal mantinha-se do tipo caritativo, para os pobres, e do tipo comercial,

de clínica livre, para o resto da população.

• Até à década de 30, o Estado não intervém e apenas assegura, sob a forma de assistência pública, uma

protecção mínima dos elementos da população completamente destituídos de meios próprios (pobres e indigentes).

Os seguros privados e o seguro social nas grandes empresas industriais, comerciais e de transportes, cobrem um

número reduzido de pessoas e desempenham papel ínfimo na segurança da sua saúde.

• Nos 15 anos seguintes, até 1945, assiste-se à estruturação legal do princípio de que o Estado e as

autarquias devem limitar-se a intervenção supletiva das iniciativas particulares e que estas devem ser estimuladas de

forma a satisfazerem as necessidades principais. Verifica-se uma descoordenação das actividades principais da

saúde por inexistência de planeamento e programação e duma administração eficiente. Só no começo da década de

40 é que o Estado Novo inicia a separação das actividades preventivas das curativas e se verifica a edificação de

"grandes" hospitais, a reorganização das maternidades e se concedem subsídios às Misericórdias para prestação de

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Sónia Guadalupe Abreu Outubro, 2003 14

serviços.

Durante a década de 40 e, sob a pressão das grandes mudanças sociais e políticas do pós-guerra, é criada a

Previdência, inspirada no modelo de segurança social da Alemanha de Bismarck (1893), com um atraso, portanto, de

quase 50 anos. (Configurava um sistema de seguro doença obrigatório para diversos grupos de trabalhadores e suas

famílias, deixando os funcionários públicos e os servidores do Estado num subsistema próprio, organizado em regime

livre de convenção)

Em 1945 (Decreto n.º 35108 de 7 de Novembro), sobre a égide de Trigo de Negreiros, criam-se os Institutos

de organização vertical da tuberculose, malária, lepra, etc., a Direcção Geral de Saúde e serviços executivos

independentes, profissionalizando o pessoal médico.

Até 1945 considera-se haver uma fase “caritativo-corporativista” (Machado, 1994, cit in Gonçalves e Costa,

2003).

• Em 1958 é criado o Ministério da Saúde e Assistência (Dec.-Lei n.º 40825 de 13 de Agosto), sem que tenha

sido modificada a orientação das estruturas sanitárias, nem a sua orgânica, continuando a não haver uma direcção

única superior para os serviços de saúde e assistência.

• No início dos anos 60 a situação económica e social modifica-se com a emigração crescente para a Europa

e o início da guerra colonial. A Previdência assume progressivamente a direcção das responsabilidades da prestação

de cuidados curativos aos seus beneficiários, criando-se em 1966 os Serviços Médico-Sociais. Os S.M.S. são uma

rede nacional de serviços prestadores de cuidados de saúde em regime ambulatório, que numa primeira fase cobriam

apenas os indivíduos sujeitos a um regime contributivo, sendo já no período Marcelista alargados à parte da

população não coberta por qualquer outra forma de protecção da saúde, federados em Caixas Distritais. Durante este

período mantêm-se os subsistemas A.D.S.E., Forças Armadas, Bancários, Caminhos de Ferro, etc..

Previdência:

“Sistema, a cargo do Estado ou sob vigilância deste, que procura cobrir os riscos do trabalho, da velhice e da

invalidez, e, em formas mais evoluídas, o desemprego, a doença e outras condições de inferioridade social, por meio

de seguro obrigatório. A previdência estende-se apenas aos grupos da população para que é organizada e sobre

situações e riscos limitados, constantes de listas ou tabelas uniformes, proporcionalmente às contribuições que

recebe. A previdência está a evoluir em muitos países para a forma mais completa de segurança social,

correspondendo-lhe no sector da saúde uma organização de serviços de prestação de cuidados, não do tipo de

serviços médico-sociais da previdência, mas de serviço nacional de saúde (Gonçalves Ferreira, 1989).

O período compreendido entre 1945 e 1971 foi chamada de fase assistencial, mantendo-se uma filosofia de

acção baseada na caridade (Gonçalves e Costa, 2003).

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Os anos 70

A reforma de 1971 e a universalização

dos cuidados de saúde

“O Dec.-Lei 413/71 de 27 de Setembro inaugura uma nova filosofia de protecção da saúde, apelando à

intensificação das actividades de saúde pública, no sentido de ser assegurada a cobertura médico-social, sanitária e

assistencial das populações, através de uma melhor integração dos serviços públicos, não dispensando contudo a

iniciativa de instituições particulares” (Carapinheiro e Pinto, 1987).

“Publicada com a designação de "Organização do Ministério da Saúde e Assistência" em plena era Marcelista, e sob a

égide de Gonçalves Ferreira, a reforma de 1971 coloca no eixo do sistema os cuidados de primeira linha,

denominados de essenciais, promove a integração funcional de serviços dispersos, reconhece o direito à saúde a

toda a população abrindo caminho à universalização dos cuidados” (Correia de Campos, 1986).

Segundo Gonçalves Ferreira (1975), "a reforma de saúde de 1971 teve em vista o delineamento das

grandes soluções de carácter nacional no campo da saúde, aproveitando as experiências de outros países,

especialmente da Inglaterra e que nas suas linhas gerais teve por base os seguintes princípios:

1. Uma política unitária de saúde da responsabilidade do ministério da saúde;

2. O reconhecimento do direito à saúde a todos os cidadãos, sem discriminação, e delineamento das tarefas

legislativa e administrativa a empreender para o generalizar em termos de utilização prática a toda a população;

3. Reconhecimento da intervenção do Estado como difusor da política de saúde e assistência, responsável

pela sua execução e fomentador das actividades que a esta dizem respeito;

4. Integração de todas as actividades de saúde e assistência existentes, designadamente nos planos local e

regional. Cria-se uma rede interligada de Centros de Saúde;

5. Planeamento geral dessas actividades, a elaborar ao nível central.”

Objectivos prioritários da reforma de 1971:

a) A definição de uma política nacional de saúde que considere o direito à saúde a toda a população;

b) Organização de orgãos e serviços (conceber, planear, programar e avaliar as tarefas de saúde);

c) Criação de uma rede de serviços de cuidados primários e hospitalares, contribuindo para uma maior

acessibilidade aos cuidados de saúde.

Começa aqui a fase sanitarista (Gonçalves e Costa, 2003), em que “a intervenção do Estado deixa de ser

supletiva para ser responsável pela política de saúde, bem como pela sua execução” (idem:96).

Em 1973 quando surge o Ministério da Saúde as actividades da saúde separam-se das actividades de

assistência. O Estado português considera a saúde e a segurança social como dois domínios autónomos.

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25 de Abril de 1974

“A análise do Sistema de Saúde em Portugal centra-se no contexto histórico das mudanças estruturais introduzidas

pela Revolução de 25 de Abril de 1974.” GRAÇA CARAPINHEIRO e M. G. PINTO (1987)

Segundo Correia de Campos (1986) a evolução político-social neste período torna-se visível

através da modificação do sistema através dos movimentos de universalização, nacionalização,

funcionarização, e no tipo de financiamento e organização encontradas; e da movimentação social que se

verificou.

Modificação do Sistema

a) Universalização - não nasce com a revolução de Abril de 1974, mas inicia-se em 1971 com a política de Marcelo

Caetano e a doutrina do Estado Social, isto é, com a reforma orgânica no sector da saúde, reconhecendo o direito à

saúde a toda a população. A revolução de 1974 trouxe no programa do M.F.A. o objectivo de lançamento das bases

de um verdadeiro serviço nacional de saúde. A Constituição da República Portuguesa de 1976 estipulava no artigo 64

o direito de protecção à saúde de todos os cidadãos e o direito de a defender e promover. (Esta formação de direito à

saúde é considerada pelos juristas internacionais como a mais inovadora no conjunto das constituições europeias,

pois deposita nos indivíduos a responsabilidade da defesa e promoção da saúde de todos). Por outro lado consagra,

finalmente, um S.N.S. universal, geral e gratuito que reuna serviços de cuidados médicos hospitalares, cobrindo todo

o país, combinando-os com cuidados preventivos e de reabilitação.

b) Nacionalização ou oficialização de uma parte do sector privado – a partir de 1975 desenvolve-se um processo

de nacionalização de hospitais distritais e concelhios pertencentes às Misericórdias, passando para o Estado uma

grande parte deste sector privado não lucrativo, equivalente a 38% da rede hospitalar portuguesa. Faz-se a

reconversão dos sanatórios em hospitais centrais, representando um ganho de duas mil camas.

c) Funcionalização do pessoal de saúde – passagem ao estatuto de funcionário público do pessoal da saúde e

aumento médio dos vencimentos.

d) Financiamento estatal – aumento da responsabilização do Estado no financiamento dos gastos públicos com a

saúde. Se em 1974, 97% dos portugueses já estavam cobertos por esquemas de protecção de saúde, em 1976 a

cobertura da população por serviços de saúde é total. A partir de 1979, o sistema de saúde português passa a ser

financiado substancialmente por uma única fonte - o O.G.E. (Orçamento Geral do Estado).

e) Integração dos serviços numa estrutura única – este fenómeno não acontece de uma só vez nem de uma vez

por todas. Em 1974 os S.M.S. iniciam a sua futura integração no S.N.S., assumindo no enquadramento ideológico do

programa da revolução, uma feição socializante, um carácter universal, geral e gratuito, remetendo para o Estado o

seu financiamento total.

f) Organização segundo o modelo S.N.S. - um serviço nacional de saúde que reúna serviços de cuidados médicos

hospitalares, cobrindo todo o país combinando-os com cuidados preventivos e de reabilitação; este S.N.S. deverá

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ainda orientar a sua acção para a socialização da medicina e da produção médico-medicamentosa. A revisão

constitucional de 1982 acrescenta que o S.N.S. deverá ter gestão descentralizada e participada.

Movimentação Social

a) Após o 25 de Abril de 1974 inicia-se a democratização das estruturas de administração dos serviços de saúde.

b) A participação directa da população na administração dos serviços de saúde, através de: comissões

integradoras de serviços de saúde locais; estruturas médicas ambulatórias; reivindicação de cuidados médicos e

serviços de saúde na periferia (28 de Junho de 1975 - criação do S.M.A.P.) – contribuiu para um aumento substancial

da oferta e da procura-utilização dos serviços de saúde, resultando numa melhoria relativa do estado de saúde das

populações, bem expresso, por exemplo, na diminuição da taxa de mortalidade infantil de 58% em 1970 para 38.9%

em 1975.

c) O movimento de descentralização das estruturas de saúde teve início em 1975 (Dec.-Lei nº 488/75 de 4 de

Setembro) com a criação das administrações distritais de serviços de saúde (A.D.S.S.), com personalidade jurídica e

autonomia administrativa, integrando todos os serviços oficiais de saúde do distrito (hospitais, centros de saúde e a

rede dos S.M.S.).

d) A movimentação a favor de melhores condições de trabalho obteve a sua primeira vitória com a

funcionalização de todos os trabalhadores de saúde pertencentes aos antigos hospitais das misericórdias. O segundo

movimento foi de ordem salarial e ainda de exigência de carreiras:

- 1977 - carreira de enfermagem;

- 1977 - carreira de técnicos auxiliares de serviços de saúde;

- 1980 - carreira de pessoal dos serviços gerais;

- 1982 - carreira de técnicos superiores de saúde.

e) Paralelamente à exigência de carreiras desenvolve-se uma reivindicação de pleno emprego em algumas

profissões, sobretudo as que exercem grande domínio sobre o sector - médicos e enfermeiros.

f) Finalmente importa referir todo um novo conjunto de parceiros sociais que a democratização fez surgir. Trata-se

de actores movidos por interesses meramente profissionais ou económico-grupais; o caso mais típico é o da Ordem

dos Médicos, poderoso lobby de defesa profissional, com intervenção, tanto na definição global da política do sector,

como na negociação de condições de trabalho. Os sindicatos do sector têm também uma certa força, exercendo uma

acção importante na reivindicação de condições salariais e organização de carreiras. Também as entidades patronais

privadas que actuam na saúde se organizaram em associações, como por exemplo a Associação Nacional de

Farmácias, Associação de Hospitalização Privada, associações de Cardiologistas, Radiologistas, etc..

Do outro lado do sistema, no campo dos utentes, desenvolveram-se também associações categoriais:

Movimento Unitário dos Reformados, Pensionistas e Idosos (M.U.R.P.I.) e o Movimento Nacional dos Aposentados da

Função Pública (M.O.N.A.F.), e ainda o movimento de doentes com doenças específicas como os insuficientes renais

crónicos, os hemofílicos, os diabéticos, associações ou cooperativas de pais de crianças diminuídas mentais, ou

deficientes físicos ou motores, etc.

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Novos Conceitos surgem:

Medicina Socializada: medicina completamente organizada, sob controlo do Estado, com socialização dos meios

empregados.

Serviço Nacional de Saúde: conjunto de serviços de acção coordenada destinados a prestar à população, dentro da

orientação da política de saúde estabelecida pelo Governo, os cuidados primários de saúde e os cuidados

hospitalares, incluindo as medidas de reabilitação, sob a forma de cobertura médico-sanitária completa, a qual não

deve sofrer restrições, para além das impostas pelos recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis. Um

serviço nacional de saúde deve ser, por definição, universal (para servir todos os indivíduos), integral (fornecendo

todos os cuidados de saúde), gratuito, progressivo no seu funcionamento e aperfeiçoamento, e pragmático na escolha

das actividades prioritárias de saúde que mais interessam à população e seu planeamento (Gonçalves Ferreira,

1975).

A Lei Arnaut de 1979

(Dec.- Lei n.º 56/79)

~ A criação do Serviço Nacional de Saúde ~

Passados dois anos sobre a Constituição de 1976, António Arnaut, Ministro dos Assuntos Sociais, prepara a

Lei de Bases que daria execução à disposição constitucional de criar entre nós um sistema do tipo S.N.S.

• A discussão desta lei, no Parlamento, foi acesa, enfrentando a oposição dos partidos mais à direita e da

Ordem dos Médicos, considerando-a esta última, atentatória dos princípios de medicina liberal.

• A Lei Arnaut não consegue passar no Parlamento e os conflitos gerados na sua apresentação constituirão

um dos pretextos para a ruptura governativa e a passagem a um novo ciclo político, constituído por governos de

iniciativa presidencial.

• À falta da publicação da Lei do S.N.S., surge em Julho de 1978 um despacho ministerial de António Arnaut

que oferece a todos os cidadãos o acesso aos serviços de saúde através de uma inscrição prévia nos S.M.S.

• Só em 15 de Setembro de 1979 é publicada a Lei n.º 56/79. Esta Lei apresenta-se sob a forma jurídica de

uma Lei de Bases (nela apenas se definem as bases gerais do regime jurídico do S.N.S., carecendo de posterior

desenvolvimento legislativo).

- No 1º artigo consigna que o seu objectivo é assegurar o direito à protecção da saúde, nos termos da

Constituição. São garantidas a universalidade, a generalidade e a gratuitidade.

- No 7º artigo não deixa de considerar que a gratuitidade se faz sem prejuízo do estabelecimento de taxas

moderadoras, diversificadas, tendentes a racionalizar a utilização das prestações.

- No 2º artigo é apresentada a sua constituição por uma rede de órgãos e serviços previstos neste diploma,

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que, na dependência da Secretaria de Estado da Saúde e actuando de forma e sob direcção unificada, gestão

descentralizada e democrática, visa a prestação de cuidados globais de saúde a toda a população.

Esta Lei prevê também a articulação com o sector privado, mas na sujeição à disciplina e controle do Estado,

sendo contemplada a possibilidade de estabelecer convénios com instituições privadas, no domínio da hospitalização

e dos meios de diagnóstico, quando os serviços oficiais não conseguirem responder à procura (Carapinheiro e Pinto,

1987).

Lei de Bases/ Estatuto de Saúde: “Medida legislativa que estabelece as bases regulatórias da forma como os

problemas da saúde são resolvidos pela sociedade, nos aspectos políticos e técnicos. O estatuto de saúde, ou lei de

bases, é acompanhado de outras estruturas jurídicas (lei orgânica e respectivos regulamentos, estatuto profissional),

que definem os tipos de serviços e as normas do seu funcionamento e de formação do pessoal” (Gonçalves Ferreira ,

1989).

Os Anos 80

Durante os anos 80 desenvolve-se um novo modelo de sistema de saúde, cujos contornos se vão definindo

progressivamente no decorrer desta década, culminando na aprovação da nova Lei de Bases no ano de 1990.

Este modelo dos anos 80 afasta-se progressivamente do que era consignado na Constituição,

caracterizando-se principalmente pelos seguintes aspectos:

• Continua a integração já iniciada dos S.M.S., definitivamente extintos em 1982 e são regulamentados os

Centros de Saúde integrados.

• Criação das A.R.S. pelo Dec.- Lei n.º 254/82 de 29 de Junho – órgãos regionais do S.N.S. (em regime de

instalação).

• Mantém-se a universalidade, mas com uma elevada participação das famílias nas despesas totais com a

saúde.

• Mantém-se a gratuitidade do sistema, com várias tentativas para implementação de co-pagamentos. Em

finais de 1981 o Governo decreta a introdução de taxas moderadoras. Os utentes das consultas dos postos dos

S.M.S. começam a pagar uma pequena quantia por consulta e as taxas moderadoras alargam-se a outras prestações

de serviços tais como: hospitalização, urgências, consultas hospitalares, meios auxiliares e complementares de

diagnóstico e medicamentos.

• Agudiza-se a tendência para uma forte centralização da administração, com nomeações político-partidárias

para os órgãos de gestão, muitas vezes sem qualquer critério técnico.

• O Estado deixa de se assumir como produtor, passando a transferir para o sector privado parte substancial

do orçamento do S.N.S..

• Início da medicina convencionada.

• Aumenta o recurso ao sector privado para execução de intervenções de cirurgia electiva, para os partos e

para as consultas de especialidade (novas tecnologias de diagnóstico e terapêutica).

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• Altera-se a qualidade dos serviços prestados, como consequência dos cortes orçamentais, das reduções de

pessoal, do diminuto investimento realizado no serviço hoteleiro e de relações humanas.

A lei do S.N.S. continua por regulamentar e ao longo deste período o Governo pratica medidas de Política de

Saúde assentes no desenvolvimento de convenções com o sector privado, na racionalização das despesas e na

aplicação de taxas moderadoras como mecanismo de contenção da procura.

Em 1989, a revisão constitucional altera a expressão “gratuitidade” do SNS, substituindo-a por

“tendencialmente gratuito.

Os Anos 90

Em 1990 é aprovada a Lei de Bases da Saúde (Lei 48/90 de 24 de Agosto) que marca até hoje as políticas

de saúde, sendo regulamentada passados três anos através do Decreto-Lei 11/93.

A revisão constitucional introduz novidades relativamente à sua redacção anterior relativamente à saúde. A

Lei Constitucional n.1/92 de 25 de Novembro, consagra a protecção à saúde como um direito de todos os cidadãos e

da comunidade, assegurado pelo SNS, de âmbito universal, global e tendencialmente gratuito e que abrange não só a

promoção da saúde e a prevenção da doença, como a prestação de cuidados de saúde.

Assim, “de um papel supletivo na área da prestação de cuidados, o Estado passou a assumir todos os papéis

releventes: no planeamento, no financiamento, na organização, na prestação e na avaliação” (Gonçalves e Costa,

2003:97). Configurando-se desta forma, este é um modelo considerado normativista (CRES, 1998, cit in Gonçalves e

Costa, 2003).

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Sónia Guadalupe Abreu Outubro, 2003 21

BIBLIOGRAFIA BARRETO, António (org.) (1996). A Situação social em Portugal, 1960-1995, Lisboa: Ed. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa BARRETO, António (org.) (2001). A Situação social em Portugal II, 1960-1999, Lisboa: Ed. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa BOBBIO, Norberto (1990). A Era dos Direitos, Lisboa: Campos BOQUINHAS, José Miguel (1995). A reforma do Sistema, Ordem dos Médicos, Setembro CAMPOS, Alexandra (1993). Estatuto do Serviço Nacional de Saúde – breve apresentação e comentário, Revista Portuguesa de Saúde Pública, 1 (11) CAMPOS, A.C. (1985). Política de Saúde, IED, Conferência sobre Política de Desenvolvimento Económico e Social, Caderno 10 (2). CAMPOS, A.C. (1986). Um Serviço Nacional de Saúde em Portugal: Aparência e Realidade, Revista Crítica de Ciências Sociais, 18/19/20. CAMPOS, A.C. (1990). Estado Providência, perspectivas e financiamento. O caso da saúde, Sociologia, Problemas e Práticas, 9. CARAPINHEIRO, Graça Pinto e GAMEIRO, Margarida (1997). Políticas de saúde num país em mudança: Portugal nos anos 70 e 80, Sociologia, Problemas e Práticas, 3. Constituição da República Portuguesa – 2.ª Revisão (1989). Edição Imprensa Nacional, Casa da Moeda FERREIRA, F.A. Gonçalves (1975). Política de Saúde e S.N.S. em Portugal, Biblio. C.P.C., Vol. 1, Lisboa FERREIRA, F.A. Gonçalves (1989). Sistemas de Saúde e seu Funcionamento, ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa FERREIRA, F.A. Gonçalves (1990). História da Saúde e dos Serviços de Saúde em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. JUSTO, Cipriano (1991). A importância dos cuidados de saúde primários no contexto do direito à saúde e do direito aos cuidados de saúde, Ver. Da Federação Nacional dos Médicos, n.º 5/6, Maio/Junho MOZZICAFREDO, Juan (1992). O Estado Providência em Portugal: estratégias contraditórias, Sociologia, Problemas e Práticas, 12 NUNES, Rui (coord.) (2003). Política de Saúde. Porto: Universidade Portucalense Infante D. Henrique. PEREIRA, João (1991). Saúde e ambiente socio-económico em Portugal, Análise Social, 110 (26). PRIMAVERA, Rosa da et al. (1993). Cidadania e Serviço Social – A Questão do Direito à saúde em Portugal nos Governos referentes ao período compreendido entre 1983/1993, Relatório de Licenciatura em Serviço Social, ISSSC, Coimbra Saúde Em Portugal – O grande desafio do final do Século (1997), Separata da Revista Ordem dos Médicos, Julho/Agosto SANTOS, Boaventura S. (1990), O Estado e a Sociedade em Portugal (1974 -1988). Porto: Afrontamento.

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Documentos

� Conselho de Reflexão sobre a Saúde (1997). Opções para um Debate Nacional, Porto � Declaração Universal dos Direitos do Homem – ONU (1948) � Ministério da Saúde (1997) Saúde em Portugal – Uma Estratégia para o Virar do Século. Orientações

para 1997 � Ministério da Saúde (1998) Saúde em Portugal – Uma Estratégia para o Virar do Século 1998-2002,

Orientações para 1998 � Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE) (1995), A Reforma dos

Sistemas de Saúde – Análise Comparada dos Sete Países da OCDE, ed. Conselho Económico e Social