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INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA ALLANA CRISTINI BORGES DE RESENDE APRENDIZAGEM EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA DE UMA CRIANÇA COM TRISSOMIA 8: DISCUSSÕES A PARTIR DA TEORIA DAS AÇÕES MENTAIS POR ETAPAS Vitória 2016

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INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E

MATEMÁTICA

ALLANA CRISTINI BORGES DE RESENDE

APRENDIZAGEM EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA DE UMA CRIANÇA COM

TRISSOMIA 8: DISCUSSÕES A PARTIR DA TEORIA DAS AÇÕES MENTAIS

POR ETAPAS

Vitória 2016

ALLANA CRISTINI BORGES DE RESENDE

APRENDIZAGEM EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA DE UMA CRIANÇA COM

TRISSOMIA 8: DISCUSSÕES A PARTIR DA TEORIA DAS AÇÕES MENTAIS

POR ETAPAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática do Instituto Federal do Espírito Santo como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Educação em Ciências e Matemática.

Orientador: Prof. Dr. Edmar Reis Thiengo

Vitória 2016

(Biblioteca Nilo Peçanha do Instituto Federal do Espírito Santo)

R433a Resende, Allana Cristini Borges de. Aprendizagem em ciências e matemática de uma criança com

trissomia 8 : discussões a partir da Teoria das Ações Mentais por Etapas / Allana Cristini Borges de Resende. – 2016.

133 f. : il. ; 30 cm Orientador: Edmar Reis Thiengo.

Dissertação (mestrado) – Instituto Federal do Espírito Santo,

Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemática, Vitória, 2016.

1. Matemática - Estudo e ensino. 2. Ciências - Estudo e ensino . 3.

Trissomia. 4. Doenças mentais. I. Thiengo, Edmar Reis. II. Instituto Federal do Espírito Santo. III. Título.

CDD 21: 510.7

DECLARAÇÃO DA AUTORA

Declaro, para fins de pesquisa acadêmica, didática e técnico-científica, que esta

Dissertação de Mestrado pode ser parcialmente utilizada, desde que se faça

referência à fonte e à autora.

Vitória, 9 de novembro de 2016.

Allana Cristini Borges de Resende

DEDICATÓRIA

Aos meus primos Pé de Xaxim e Tiane, por me

apresentarem a normalidade no sentido de ser natural.

E para nossa família o natural é nos amar,

independente de como nosso corpo se apresenta e a

nossa mente se deixa expressar.

AGRADECIMENTOS

Dizer obrigada nem sempre traduz o quanto de fato sou grata e reconheço a

participação de outras pessoas em minhas conquistas ou nossas. Embora as

palavras não traduzam o meu sentimento, tentarei! Não há pessoa mais importante

que mereça palavras mais bonitas e agradecimento mais extenso, sou grata a todos

que participaram desse longo, dolorido e proveitoso processo de aprendizagem.

Portanto, obrigada...

A Deus, meu Senhor, pelos dons que me deu e pela ausência de outros que me

impulsionam a querer mais.

Á minha família, em especial minha doce sobrinha Vitoria, por compartilhar minha

ansiedade à espera do resultado de aprovação ao ingresso no mestrado. Sua

doçura tornou mais branda essa espera.

A Eduardo Moscon, quem primeiro acreditou em mim, sem mesmo me conhecer.

Obrigada por me permitir tão sutilmente estudar o que enche os meus olhos e o meu

coração.

A Edmar Reis Thiengo, por aceitar me orientar de braços abertos e mostrar pelos

olhos marejados e sorriso fácil que finalmente minha pesquisa tinha sentido,

sentimento, razão de ser...

A todos os meus colegas de turma que compartilharam das angústias dos trabalhos

a serem feitos concomitantemente com a pesquisa, em especial Rafaela e Graziani.

Aos professores do programa EDUCIMAT e à FAPES, por auxiliar financeiramente a

pesquisa.

A Janivaldo Cordeiro e Robson Onofre, colegas de profissão. Em um momento em

que nem eu mesma acreditava em mim, foram vocês meus pilares.

A Flávio Lopes, pelo tempo a mim disponibilizado em detrimento das próprias férias.

A Letícia Mattos, aluna querida! Ao compartilhar comigo a própria vitória e dizer o

quanto eu a incentivei, despertou em mim novamente a vontade de querer mais, de

poder dar mais aos meus alunos.

À pedagoga, professores, aluno e sua família, que permitiram esta pesquisa.

A Saulo Coelho, pelas palavras de incentivo e carinho.

A você leitor, pela leitura e crítica à pesquisa.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E

MATEMÁTICA

RESUMO

Essa dissertação teve como objetivo analisar a aprendizagem de um aluno com Trissomia 8, conhecida como Síndrome de Warkany, nas disciplinas de Ciências e Matemática com base na Teoria das Ações Mentais por Etapas. Para tanto, buscou-se problematizar os momentos que envolvem as situações de aprendizagem do aluno, analisar a aprendizagem de alguns conteúdos nas disciplinas de Ciências e Matemática com a Teoria das Ações Mentais por Etapas, e discutir o desenvolvimento das funções psíquicas. Para isso, de setembro a dezembro de 2015 adentramos o ambiente escolar de um estudante do 8° ano do ensino fundamental de uma escola da rede pública da Grande Vitória/ES, referência em atendimento a alunos com necessidades especiais, no sentido de entender quais contribuições a Teoria das Ações Mentais por Etapas traz para a aprendizagem de um aluno com necessidade especial. Nas discussões dialogamos com Vigotski, Galperin e Núñez, os quais colaboram com os conceitos da formação das funções superiores, formação da mente humana e organização do processo de ensino, respectivamente, e que formam o aporte teórico e metodológico desta pesquisa. No desenrolar da pesquisa concluímos que as funções psíquicas de atenção e memória apresentam-se fragilizadas e possuem relação direta com as condições escolares ofertadas. Para que o aluno se atente é preciso primeiramente sentir-se motivado a aprender; uma vez atento, facilita o processo mnemônico, que tem como ponto forte a repetição de informações. Palavras-chave: Teoria das Ações Mentais por Etapas. Galperin. Ensino. Aprendizagem. Síndrome de Warkany.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E

MATEMÁTICA

ABSTRACT

This dissertation aimed to analyze the learning of a student with Trisomy 8, known as Warkany syndrome, in the subjects of science and mathematics from the Theory of Stage-by-stage Formation of Mental Actions. Therefore we seek to problematize the moments that involve situations of student learning; analyze learning some content in the subjects of science and mathematics from the Theory of Stage-by-stage Formation of Mental Actions; discuss the development of psychic functions. For this, from September to December 2015, we enter the school environment a student of the 8th grade of elementary school in a public school in the Greater Vitória - ES, reference services to students with special needs in order to understand what contributions to the Theory of Stage-by-stage Formation of Mental Actions bring to the learning of a student with special needs. In the discussions we dialogue with Vigotski, Galperin and Núñez which collaborate with the concepts of formation of higher functions, training of the human mind and organization of the teaching process, respectively, and form the theoretical and methodological contribution of this research. In the course of the research we concluded that the mental functions of attention and memory have become fragile and have a direct relationship with the school conditions offered. For the student to watch it is necessary first to feel motivated to learn; once attentive facilitates the mnemonic process that has the strength to repeat information. Keywords: Theory of Stage-by-stage Formation of Mental Actions. Galperin. Teaching. Learning. Warkany syndrome.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................12

2 TRISSOMIA 8: EXISTE ALGO A MAIS........................................................16

2.1 PROBLEMA DE PESQUISA.........................................................................19

3 CONTRIBUIÇÕES DA ESCOLA DE KHARKOV.........................................22

3.1 ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL – SINFONIA INCOMPLETA.........22

3.1.1 Psicologia histórico-cultural e a concepção sobre o comportamento

anormal.........................................................................................................29

3.2 “À LUZ DA SUA GLÓRIA, QUEM É O CAVALEIRO A CAVALO SOLITÁRIO –

PETER YA. GALPERIN?”........................................................................... 32

3.2.1 Teoria da Formação das Ações Mentais por Etapas ..............................33

3.2.1.1 Momento funcional: orientação......................................................................34

3.2.1.2 Momento funcional: execução........................................................................37

3.2.1.3 Momento funcional: controle..........................................................................40

3.3 O QUE DIZEM OS PESQUISADORES EM SUAS PESQUISAS ...... ........43

4 TRAJETÓRIA DA PESQUISA.......................................................................50

4.1 PARTICIPANTES E LOCAL DA PESQUISA................................................50

4.2 PLANEJAMENTO PARA A INTERVENÇÃO ...............................................54

4.3 ELABORAÇÃO PARA A INTERVENÇÃO.....................................................57

4.3.1 Etapas de Execução....................................................................................57

4.3.2 Controle da Execução.................................................................................62

4.4 ANÁLISE DOS DADOS.................................................................................65

5 APLICAÇÃO DA TEORIA DAS AÇÕES MENTAIS POR ETAPAS.............66

5.1 UM POUCO DO QUE VIMOS....................................................................... 66

5.2. O DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES NA DISCIPLINA

MATEMÁTICA...............................................................................................71

5.2.1 Sobre os conhecimentos matemáticos prévios ......................................72

5.2.2 Singularidade da motivação – parte I ..................................................... 73

5.2.3 Sobre a orientação à atividade Matemática...............................................77

5.2.4 Desenvolvimento da Etapa Material/ Materializada em Matemática........79

5.3 O DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES NA DISCIPLINA DE

CIÊNCIAS......................................................................................................88

5.3.1 Sobre os conhecimentos prévios em Ciências........................................88

5.3.2 Singularidade da motivação – parte II.......................................................91

5.3.3 Sobre a orientação à atividade de Ciências............................................ 92

5.3.4 Desenvolvimento da Etapa Material/Materializada em Ciências.............95

6 O PAPEL DA ESCOLA NA FORMAÇÃO DO SUJEITO...........................102

6.1 AS FUNÇÕES DA ATENÇÃO E MEMÓRIA E O DESENVOLVIMENTO

COGNITIVO................................................................................................103

7 PRODUTO EDUCATIVO............................................................................116

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................118

Referências................................................................................................122

APÊNDICE A...............................................................................................126

APÊNDICE B...............................................................................................128

APÊNDICE C...............................................................................................129

APÊNDICE D...............................................................................................130

APÊNDICE E...............................................................................................131

APÊNDICE F...............................................................................................132

ANEXO A.....................................................................................................133

12

1. INTRODUÇÃO

Ao assistir a uma qualificação de mestrado, uma das professoras disse ao

mestrando que sentiu falta dele dizer o que o levou a estudar o tema, e completou

seu raciocínio afirmando que quando o pesquisador escolhe a abordagem histórico-

cultural, ele compreende a importância da própria história na pesquisa. Eu nunca

tinha pensado por esse prisma e confesso que fez minha atitude relutante de falar

sobre mim mesma esmorecer.

Consigo, assim, entender seu pensamento de que a exposição de parte da minha

vida não é importante para a escolha do tema desta pesquisa. Contudo, o convido a

romper com essa visão e perceber, assim como eu, que foi o tema que me escolheu

e não o contrário.

Sou a quarta filha de um mineiro e uma capixaba. Nasci, cresci e vivo em Vitória,

mas sempre que posso viajo para Minas Gerais para visitar meus familiares. Quando

criança, esperava ansiosa pelas férias de junho e julho, pois sabia que veria meus

primos (as), tios (as) e avó.

Minha avó, mãe do meu pai, teve dezoito filhos (isso mesmo!), alguns morreram

ainda bebês e outros enquanto crianças; dos dezoito filhos convivi com oito deles.

Exceto uma tia, todos tiveram filhos, a família que já era grande ficou enorme.

Minhas férias eram repletas de alegria, energia, gritaria e brincadeiras com meus

primos.

Minha tia que não teve filhos recebia todos os sobrinhos em sua casa. Era a casa

em que – quase – tudo era permitido. Comíamos muito, subíamos no telhado,

pulávamos na piscina o dia todo, entrávamos em casa molhados, enfim, éramos

crianças! Todos brincavam juntos e, a não ser pela preocupação das mães, todos

podiam tudo.

Como qualquer criança, sempre tinha um primo mais atazanado que o outro e, com

o passar do tempo, sabíamos que o primo mais velho iria tirar o mais novo do melhor

lugar do sofá, as meninas ficariam horas no chuveiro, que a Tiane empurraria quem

13

estivesse na borda da piscina e que o Pé de Xaxim comeria todas as batatas fritas.

Que família não é assim?

Divertida, amorosa, brigona, que toma conta do que não lhe diz respeito, que tem

filhos ou que não tem. Mas, pela quantidade de tios, tias, primos, primas, tias-avós

que tenho, posso afirmar que nos destacamos entre as famílias que conheço. Até

por volta dos meus doze anos essa era a visão que eu tinha. Mas algo, não me

lembro do que, começou a chamar minha atenção. As pessoas não viam a Tiane e o

Pé de Xaxim como eu os via. Eles eram meus primos que brincavam comigo e que

se comunicavam de maneira diferente e só. Mas os outros olhavam torto, falavam

baixo, cochichavam e meu coração ficou machucado até hoje pelo que aprendi: as

pessoas veem o outro como diferente, inconveniente, estranho, esquisito, mal

quisto. E assim percebi que meus primos eram especiais.

Especiais porque ele é autista e ela tem Síndrome de Down. Especiais porque ele

era o meu Pé de Xaxim e ela o sorriso pertinho da piscina de quem iria me empurrar.

De certa forma, movida pela dor e indignação sentida, por volta dos meus 15 anos

fui servir como voluntária em uma associação para crianças carentes.

Nessa associação conheci crianças que me faziam refletir todos os dias sobre o

comportamento do ser humano. Crianças eram abandonadas pelos seus pais por

diversas razões: por serem surdas, porque eram arteiras e por isso foram mutiladas,

por terem Síndrome de Down, por serem autistas, ou qualquer outra característica

alheia ao padrão. Permaneci por um ano indo aos sábados para brincar com elas.

Por volta dos 20 anos, cursei Ciências Biológicas em outra cidade e novamente fui

voluntária em uma associação que tinha como objetivo o ensino. Como toda

voluntária, fiz o que ninguém mais queria. Estar com um menino hiperativo, que

tomava remédios fortíssimos para dormir e não dormia, corria a sala pela manhã

toda em círculos e na hora do almoço só comia banana. Corri com ele, comi com

ele, chorei com ele e finalmente dormimos. Ganhar a confiança dele demorou

semanas e me esgotou emocionalmente. Aos poucos saí da associação.

14

Ao avaliar minha vida, percebi que o assunto “necessidades especiais” me

acompanhou desde cedo e por isso decidi que minha profissão deveria relacionar-se

a ele. Ao terminar o curso de licenciatura e bacharelado em Ciências Biológicas, fiz

especialização em Educação Especial/Inclusiva. Fui voluntária por dois anos no

Programa Fazendo a Diferença - PROFAD, ofertado pelo município de Vila

Velha/ES, que desenvolvia lazer e recreação para alunos da prefeitura com

necessidades especiais.

Após o término do PROFAD, fiquei por dois anos sem contato com pessoas com

necessidades especiais, até que um professor surdo veio trabalhar na escola em

que eu atuava. Ficamos amigos e senti a necessidade de fazer o curso, básico e

intermediário, de Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. O que me ajudou muito nos

anos seguintes, pois tive alunos surdos. Assim, comecei a pensar em todos aqueles

que apresentavam surdez e que poderiam precisar de mim, porém, se não tivesse

conhecimento para ajudá-los, só a minha boa vontade não seria o bastante. Decidi,

então, ingressar no mestrado em 2014, na linha de pesquisa “Diversidade”,

retornando para a escola em que lecionei por três anos, agora como professora

pesquisadora.

Na escola conversei com a professora do atendimento educacional especializado

(AEE) e com a pedagoga sobre os alunos que precisam desse atendimento a fim de

identificar as possibilidades de pesquisa. Embora já tivesse em mente uma pessoa,

considerei importante fazer essa identificação e dialogar com as profissionais, haja

vista que elas estavam com os alunos diariamente e sabiam de algumas facilidades

ou obstáculos que poderia enfrentar, como a baixa frequência do aluno na escola.

Esta foi a primeira desconstrução do pensamento durante a pesquisa, uma vez que

não fui eu quem escolheu o sujeito, me senti por ele escolhida.

Embora não tivesse estudado comigo nos anos anteriores, pois ainda era dos anos

inicias do ensino fundamental, Filipe1 lembrou-se de mim e com um lindo sorriso me

recebeu, perguntou o que eu fazia na escola e me falou dos seus planos. Esse

pequeno gesto despertou em mim a curiosidade em estudar sua condição genética,

1 Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos participantes da pesquisa.

15

e como ocorre o aprendizado desse aluno. Após uma breve explicação do que faria

lá, o convidei a fazer parte da pesquisa. Assim começou a pesquisa sobre trissomia

e a aprendizagem de uma criança com trissomia, a qual será detalhada no capítulo

seguinte.

16

2. TRISSSOMIA 8: EXISTE ALGO A MAIS

É bem provável sentir-se desconfortável com o erro gramatical da palavra trisssomia.

Assim como é possível sentir-se da mesma forma ao estar perto de uma pessoa que

visivelmente tem diferença e essa diferença não está presente na maioria das

pessoas que o cerca. O incômodo provocado é intencional para que possamos

apresentar a trissomia 8.

Alguns educadores, inclusive da área da Biologia, desconhecem o que seja

trissomia, e talvez por isso tendem a homogeneizar todas as pessoas com

trissomias. Afinal, o que é?

Somos formados por conjunto de células que em seu núcleo abriga o código

genético, ou seja, as informações que nos caracterizam. Essas informações

conhecidas como Ácido Desoxirribonucleico – DNA 2 – organizadas em longas

cadeias enroladas em proteínas são chamadas de cromossomos (JUNQUEIRA;

CARNEIRO, 2004). A espécie humana possui 23 pares, sendo vinte e dois pares

autossômicos referentes às características comuns para ambos os sexos, como

formação do baço, fígado, coração, e um par heterossômico que, além de algumas

características, irá determinar o sexo.

Essas células sofrem continuamente um processo de renovação e para isso devem

produzir novas células delas mesmas. As células autossômicas se multiplicam por

meio da mitose, na qual a célula-mãe divide-se formando duas células-filhas com a

mesma quantidade de cromossomos. Já a meiose irá formar as células reprodutivas,

óvulo e espermatozoide, cujo resultado se apresenta com quatro células-filhas e a

metade do número de cromossomos (Figura 1). É importante essa redução do

número de cromossomos na meiose, pois o óvulo com 23 cromossomos, ao se unir

ao espermatozoide com também 23 cromossomos, irá formar um zigoto com 46

cromossomos, ou 23 pares, a quantidade regular nos seres humanos (JUNQUEIRA;

CARNEIRO, 2004).

2 Sigla em inglês (deoxyribonucleic acid).

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Figura 1 – Divisão celular, meiose, na qual a célula-mãe irá gerar quatro células-filhas com metade do número de cromossomos.

Fonte: Wikimedia Commons3

Entretanto, essas divisões podem sofrer interferências, como erros e mutações,

gerando variações tanto nas informações genéticas quanto no número de

cromossomos; este é o caso da não disjunção. Durante a divisão celular há um

momento em que os cromossomos que foram inicialmente duplicados devem se

separar, porém, por motivo desconhecido, tal fato não ocorre e ambos se destinam

para o mesmo polo da célula. Consequentemente, o resultado das células filhas

apresentará três configurações: duas com a metade do número de cromossomos,

uma com o dobro do número de cromossomos, e a outra sem cromossomos,

conforme representado na Figura 2.

Figura 2 - Divisão celular, meiose, na qual a célula-mãe irá gerar quatro células-filhas diferindo entre si quanto ao número de cromossomos.

Fonte: Wikipedia

4

O gameta com duplicidade cromossômica, ao fecundar outro com a quantidade

regular formará um zigoto com um exemplar a mais, ou seja, 47. Como exposto

3 Disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:M%C3%A9iose.png Acesso em: 3 fev 2016.

4 Disponível em https://de.wikipedia.org/wiki/XYY-Syndrom Acesso em: 3 de set 2016.

Células filha com o dobro do

número de cromossomos e

sem cromossomos

18

anteriormente, os cromossomos estão organizados em pares, porém, ao ter uma

cópia extra, um desses pares terá três peças, sendo o evento denominado trissomia.

A trissomia pode ocorrer em qualquer par dos cromossomos, gerando diferentes

características. A mais comum é a Síndrome de Down, resultado da trissomia no

cromossomo de par 21, enquanto outras com menor incidência podem ocorrer nos

cromossomos sexuais, como a Síndrome de Klinefelter, a Síndrome de Patau no par

13 e a Síndrome de Edwards nos cromossomos 18. O evento pode ser letal para

esses casos, mas há taxa de sobrevivência (GRIFFTHS, WESSLER, LEWONTIN,

CARROLL, 2008), e em outros casos não.

A Síndrome de Warkany, presente no par 8, e por isso escrita como T8M, só não é

letal quando algumas células apresentam 46 e parte delas 47 cromossomos,

fenômeno denominado de mosaico. As condições e causas dessa trissomia foram

identificadas pela primeira vez pelo pediatra Josef Warkany na década de 60, assim,

ficou conhecida também como Síndrome de Warkany. A síndrome é rara 1: 25.000-

50.000, na maioria das vezes em homens (RICCARDI, 1977 apud RODRÍGUEZ;

MORENO-CID; RUBIO; PASTOR; DE LEÓN; PUERTO; GARCÍA; RODÍGUEZ,

2013).

Fenotipicamente não se pode dizer que há um padrão (ATKINS; HOMES;

RICCARDI, 1974), embora alguns sujeitos possuam orelhas menores e rosto com

resultado similar. A característica mais recorrente é a ausência da patela e há outras

características, como limitação da supinação do cotovelo, seis vértebras lombares,

espinha bífida oculta, postura anormal dos pés, perda auditiva, peso e altura dez por

cento abaixo do normal, anormalidades neurológicas, incluindo falta de jeito e

subnormalidade mental leve. O desenvolvimento mental dos sujeitos T8M é melhor

que as outras trissomias, provavelmente por algumas células não serem afetadas,

ressaltam os autores.

A descrição na literatura está sempre relacionada às características clínicas em

relatos médicos ou genéticos, sendo referido ao processo de aprendizagem somente

“retardo mental” ou subnormalidade; no campo da educação a denominação é

deficiente intelectual. É importante que estudos na área educativa sejam realizados,

pois nela estão os profissionais que se dedicam ao processo de ensino e

19

aprendizagem. Embora cada um possua características únicas, inclusive na maneira

de aprender, acredita-se que a investigação no ambiente escolar por pesquisadores

da área da educação possa contribuir significativamente.

Pesquisas sobre T8M na área da educação não foram encontradas, sendo a busca

realizada nos sites da Capes, Scielo, USP, UNB, UFBA, UFES, IFES, Google

Acadêmico e inclusive Google não acadêmico. Para essa investigação foram

utilizadas as expressões: Trissomia 8, Trisomy 8, Syndrome Trisomy 8, Warkany.

Pela ausência de resultados, esta pesquisa mostra-se inovadora por tratar não dos

aspectos biológicos e clínicos de uma pessoa com Síndrome de Warkany, mas dos

aspectos do processo de ensino e aprendizagem, tendo a possibilidade de auxiliar

os profissionais da área educacional em tal processo.

Para intensificar a assimilação dos conteúdos de um aluno em relação aos

conhecimentos desenvolvidos no ambiente escolar, particularmente na disciplina de

Ciências e Matemática, e na própria formação do sujeito, buscamos fundamentação

teórica e metodológica na Teoria das Ações Mentais por Etapas.

2.1 PROBLEMA DE PESQUISA

A naturalidade com que aqueles denominados com necessidades especiais se fez

presente em minha vida foi mudando à medida que o tempo passava. Não que eu

deixasse de olhar as pessoas da mesma forma, mas a reação dos adultos em torno

das diferenças me levou a refletir sobre tais problemas, e assim continuei

observando as posturas dos amigos, professores e principalmente dos colegas de

escola. Dessa forma, aconteceu minha formação e enquanto professora refletia

sobre a contribuição da escola no processo de construção da autonomia de um

aluno, e como as questões culturais podem se constituir em barreiras maiores do

que as questões biológicas.

Para alguns docentes, pessoas com diferenças das ditas normais, no que tange à

questão biológica, podem ter seu processo educacional trabalhado com os mesmos

métodos. Igualam todos os alunos que possuem diferenças, como se os ditos

normais fossem também exatamente iguais entre si. Quando reconhecem a

20

necessidade de uma metodologia específica justificam a ausência da mesma por

não terem sido capacitados na formação inicial. É possível que a ignorância, no

sentido de não ter conhecimento, faça com que ajam assim, sendo, então,

importante mostrar que uma síndrome, doença, transtorno ou qualquer que seja a

denominação, não faz com que as pessoas sejam idênticas.

Para ilustrar, tomemos como exemplo os sujeitos com Síndrome de Down, cujas

características físicas marcantes são compartilhadas, mas não obrigatórias. Na

escola, as técnicas de ensino utilizadas com eles diferenciam-se dos demais alunos,

mas não entre eles; isso em um cenário otimista no qual o professor trabalha sob a

perspectiva de um ensino para todos. Se a esse cenário adicionarmos sujeitos com

Síndrome de Edwards, Síndrome de Patau, Síndrome de Wakany e diversas outras,

é provável que tudo, na visão dos educadores, se resuma a uma característica:

dificuldade de aprendizagem.

Por entender que a dificuldade é provavelmente a mesma, o método utilizado não se

diferencia e nem se fundamenta em autores que estudam tais dificuldades. Assim, é

necessário apresentar alternativas aos métodos conhecidos e autores que darão

suporte teórico, uma vez que desenvolver uma tarefa com mais conhecimento da

metodologia desses estudiosos permitirá que o resultado seja mais próximo ao

esperado e, dessa maneira, seja possível superar o estigma de que alunos com

necessidades especiais não aprendem.

Sendo assim, nos indagamos sobre as síndromes genéticas, sobre esses sujeitos

que frequentam a escola, a escolha dos métodos utilizados pelos professores, a

superação da não aprendizagem e como ser um facilitador da mesma. Diante

dessas ponderações, chegamos ao seguinte problema de pesquisa: quais as

contribuições da Teoria das Ações Mentais por Etapas para a aprendizagem de

um aluno com trissomia no cromossomo 8?

Para responder à pergunta, temos como objetivo geral analisar a aprendizagem de

um aluno com trissomia no cromossomo 8 nas disciplinas de Ciências e Matemática,

com base na Teoria das Ações Mentais por Etapas proposta por Galperin.

21

Para alcançar o objetivo geral, temos como objetivos específicos:

Problematizar os momentos que envolvem as situações de aprendizagem de um

aluno.

Analisar a aprendizagem de alguns conteúdos nas disciplinas de Ciências e

Matemática, com base na Teoria das Ações Mentais por Etapas.

Discutir o desenvolvimento das funções psicológicas da atenção e memória.

Uma vez apresentada a justificativa e os objetivos desta pesquisa seguiremos com a

apresentação das contribuições da psicologia histórico-cultural acerca do

desenvolvimento das funções psíquicas, e da Teoria das Ações Mentais por Etapas,

a qual será o suporte teórico-metodológico para o desenvolvimento das atividades a

serem realizadas. No capítulo três descreveremos o percurso metodológico

percorrido, cujos resultados serão mostrados e discutidos no capítulo cinco,

enquanto as considerações finais serão apresentadas no capítulo seis.

Toda pesquisa de mestrado profissional deve produzir além da dissertação um

produto final, o qual representa materialmente parte do processo da pesquisa. Esse

produto pode se apresentar de diversas formas: sequências didáticas,

documentários, relatórios, kits de ensino, softwares educativos, entre outros. Ele

será abordado no capítulo quatro.

22

3. CONTRIBUIÇÕES DA ESCOLA DE KHARKOV

Este capítulo objetiva apresentar as bases teóricas de suporte e apoio a esta

pesquisa. No primeiro subitem analisaremos as contribuições de L. S. Vigotski 5

acerca do desenvolvimento do sujeito, o psiquismo, o ensino escolar, a importância

da zona de desenvolvimento iminente, a defectologia, e como essas contribuições

influenciaram os estudos de P. Ya. Galperin, fundador da Teoria das Ações Mentais

por Etapas, a qual será tratada nos subitem seguinte.

3.1 ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL – SINFONIA INCOMPLETA6

A etimologia da palavra psicologia nos remete ao objeto de estudo nos primórdios

dessa ciência: doutrina ou estudo da alma. Lentamente essa ciência ganhou

diferentes concepções, ora vislumbrando a alma ou questões internas da psique ora

estudando o comportamento como adaptação do ser no meio em que vive. Uma

nova abordagem psicológica surgiu no início do século XIX em um grupo de

pesquisadores, que a intitularam de psicologia histórico-cultural 7(VIGOTSKI, 2004).

Essa nova maneira de pensar a ciência da alma foi fundamentada nos ideais de Karl

Marx e se diferencia das abordagens da época e anteriores por quatro traços.

O primeiro traço distintivo da nova psicologia é seu materialismo, uma vez que ela considera todo o comportamento do homem como constituído de uma série de movimentos e reações dotado de todas as propriedades da existência material. O segundo traço é seu objetivismo, uma vez que ela coloca como condição sine qua non das investigações a exigência de que estas tenham por base a verificação objetiva do material. O terceiro traço é seu método dialético, que reconhece que os processos psíquicos se desenvolvem em indissolúvel ligação com todos os outros processos no organismo e estão sujeitos exatamente às mesmas leis a que está todo o restante na natureza. O quarto e último traço é o seu fundamento biossocial cujo sentido definimos anteriormente (VIGOTSKI, 2004, p. 8).

No materialismo, é necessário analisar o fato concreto, material, enquanto a dialética

considera a relação do agir do homem sobre a natureza, como transformá-la e por

5 Embora haja diferentes grafias para o nome do autor será adotada a escrita Vigotski. Somente nas

citações o nome será escrito como na obra referida. 6 Denominada por Pozo (1998, apud Núnez, 2009, p. 19)

7 Também denominada sócio-histórica.

23

ela ser transformado. Essa produção é feita entre pessoas, em um meio social; é a

relação interpessoal construída historicamente pelos homens que será aprendida

pelo sujeito e propiciará seu desenvolvimento. Assim sendo, o aprendizado acontece

primeiramente no plano social entre pessoas para posteriormente ser internalizado e

ser um processo individual (VIGOTSKI, 2004; 2007).

A conversão de um processo interpsíquico para intrapsíquico ocorre pela

internalização dos signos, como a escrita, o desenho, a leitura, e o uso do sistema

de números, os quais foram construídos ao longo da evolução humana. É esse

universo simbólico que representa a realidade concreta e objetiva que existe fora da

nossa consciência, que são internalizados. Ao utilizar os signos, as ações humanas

passam a ser mediadas, modificando as formas superiores do nosso

comportamento, do nosso psiquismo (VIGOTSKI, 2007; MARTINS, 2013a).

Martins (2011a, p. 45, destaque da autora) define psiquismo como “[...] unidade

material e ideal expressa na subjetivação do objetivo, isto é, na construção da

imagem subjetiva do mundo objetivo”. E continua a explicar que é material do ponto

de vista orgânico, o cérebro, e ideal, pois é a representação que cada um faz da

realidade. Para Luria (ibidem) tal unidade é organizada como um sistema complexo

composto por funções psicológicas - sensação, percepção, atenção, memória,

linguagem e pensamento – que trabalham de maneira interdependente e atuam no

comportamento humano.

A sensação, porta de entrada das funções psíquicas para a formação da imagem,

capta as propriedades dos objetos através dos analisadores. Estes podem ser

visuais, táteis, auditivos, gustativos, e de respostas à fome, sede, sono, dor, entre

outros, fazem parte do sistema arco-reflexo que se encarrega de receber o estímulo,

o qual será conduzido e interpretado pelos receptores, nervos aferentes e pelas

zonas corticais respectivamente. As sensações, que constituem os reflexos que

inicialmente são incondicionados, devido ao desenvolvimento biológico e as

experiências sociais, sofrem transformações para reflexos condicionados e

constituem-se como sensações humanas culturalmente formadas (MARTINS,

2013a; 2013b; VIGOTSKI, 2004).

24

São as diversas exposições a estímulos e o processo biológico que promoverão a

integração primária entre os analisadores, formando uma imagem unificada das

coisas, função da próxima função psíquica, a percepção (MARTINS, 2013a; 2013b).

Embora a percepção, diferentemente da sensação, forme uma imagem sintética,

ambas estão inseridas em um sistema cuja relação é de dependência. São

elementares, uma nasce a partir da outra, e tornam-se complexas ao serem

mediadas pela fala8. É do pareamento da imagem e palavra que ocorrerá o processo

de formação de conceito dos objetos, e essa significação decorre da experiência

social e cultural do ser humano (VIGOTSKI, 2007).

O papel da linguagem na percepção é surpreendente, dadas as tendências opostas implícitas na natureza dos processos de percepção visual e da linguagem. Elementos independentes num campo visual são percebidos simultaneamente; nesse sentido, a percepção visual é integral. A fala, por outro lado, requer um processo sequencial. Os elementos, separadamente, são rotulados e, então, conectados numa estrutura de sentença, tonando a fala essencialmente analítica (VIGOTSKI, 2007, p. 23, destaque do autor).

Signos e palavras se constituem como um meio de contato social entre as pessoas,

logo é por meio da fala que o comportamento humano é direcionado para um fim

específico. Para isso é necessário selecionar um estímulo entre vários, reter o foco

no mesmo e inibir a ação de outros, tarefa possível com o desenvolvimento da

atenção. (MARTINS, 2011b; MARTINS 2013b).

A atenção no início da vida tem sua natureza quase exclusivamente como instinto-

reflexo. Reflexo, pois são reações de origem hereditária que se constituem como

importantes mecanismos de sobrevivência, como, por exemplo, o choro, a reação do

medo, o grito de dor. Está relacionada diretamente ao meio, sendo para este uma

resposta momentânea. Em contrapartida, “O instinto é a forma mais complexa do

comportamento hereditário” (VIGOTSKI, 2004, p. 22), e distingue-se pela relação

com o meio, por não ser previsível e acionar vários movimentos e órgãos para sua

8 Os termos fala e linguagem são bastante discutidos nas traduções das obras de Vigotski. É uma

discussão importante, mas não inserida nos objetivos desta pesquisa. Optamos pelo primeiro termo, e para justificar nossa escolha sugerimos a leitura do capítulo V da tese “QUANDO NÃO É QUASE A MESMA COISA: Análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil Repercussões no Campo Educacional, de Zoia Ribeiro Prestes (Brasília, 2010). Disponível em: https://www.cepae.ufg.brup80oZOIA_PRESTES_-_TESE.pdf1462533012 Acesso em: 3 jan 2017.

25

execução, por exemplo, o ato de mamar. Em comum, tanto o reflexo e o instinto de

origem hereditária não são aprendidos, diferentemente dos não hereditários

(VIGOTSKI, 2004).

As reações inatas sob a influência do meio e baseadas na experiência individual irão

suscitar no indivíduo respostas singulares, sendo estas reações condicionadas.

Tanto o reflexo quanto o instinto estão presentes em todos os animais, inclusive o

homem, e

[...] gradualmente, através de um treino longo e complexo, transforma-se em atitude arbitrária que é orientada pelas necessidades mais importantes do organismo e, por sua vez, orienta todo o desenrolar do comportamento humano (VIGOTSKI, 2007, p. 161-162)

Desenvolve, assim, a função da atenção. Esta que pressupõe motivo e finalidade irá

superar o interesse reflexo-instintivo por volta da idade adulta, ou seja, até a

adolescência o indivíduo terá a atenção oscilando entre involuntária e voluntária

(MARTINS, 2013b). Esse aspecto deve ser considerado por professores e

pedagogos ao planejar e executar as aulas.

Ambos, professores e pedagogos, por meio das ações desenvolvidas devem

interferir diretamente na atenção dos alunos, apresentando o objetivo da ação

didática proposta e o caminho a ser percorrido. Cabe aos educadores mostrar o

motivo da ação, e não aos alunos descobri-lo, uma vez que eles ainda não possuem

a atenção desenvolvida e, dessa forma, convergir o interesse propriamente dito à

ação proposta, direcionando assim o comportamento do aluno (MARTINS, 2013b,

VIGOTSKI, 2004).

Comportamento que é influenciado e determinado pela organização do meio e a

forma de realizar a ação. Por isso, professor e pedagogo devem “[...] antes de

explicar, interessar; antes de obrigar a agir, preparar para a ação; antes de apelar

para reações, preparar a atitude; antes de comunicar alguma coisa nova, suscitar a

expectativa do novo” (VIGOTSKI, 2007, p. 163), promovendo condições para a

atenção voluntária. Assim, o comportamento do ser humano rompe com a ação

26

estímulo-reflexo e se torna mais elaborada, dando significados e conceitos aos

objetos que foram internalizados (MARTINS, 2013b).

Novamente os signos, a fala e a relação com o outro são responsáveis pela

mediação da representação mental do objeto material que resultará na formação de

imagens Estas deixam vestígios no sistema nervoso que podem ser recordadas. A

habilidade em recrutar as imagens formadas resultará no desenvolvimento da

memória, definida como “[...] a quem cumpre a formação de imagem por evocação

daquilo que no passado foi sentido, percebido e atentado. Isto é, a quem compete

fixação, o armazenamento e evocação das experiências” (MARTINS, 2011a, p.46,

destaque da autora). Este último momento determinará a qualidade da memória.

Vigotski (2007) distingue a memória, assim como a velha psicologia, chamada por

ele dessa maneira, em mecânica e a associativa. A primeira é a capacidade de

preservar os vestígios de reações repetidas inúmeras vezes a ponto de produzir

modificações nervosas. A segunda refere-se às modificações sofridas no sistema

nervoso em decorrência das experiências vividas. O acionamento dela é como um

efeito dominó, ao passo em que, quando uma reação é lembrada, esta desencadeia

o surgimento de outras, sendo influenciada pela riqueza das experiências passadas.

Ambas fazem parte da composição da memória propriamente dita, a qual se

apresenta heterogênea, complexa e seu funcionamento é desigual para os

indivíduos.

A maneira pela qual uma pessoa memoriza está também relacionada ao campo

perceptivo. Enquanto um sujeito recorda melhor utilizando a visão, outro pode

identificar-se com a audição e um terceiro com a combinação audiovisual. São

várias as possibilidades e todas estão relacionadas ao processo de reação às

experiências as quais são expostas (VIGOTSKI, 2004; 2007).

No campo da educação é útil ao professor identificar o tipo de memória do aluno e

dessa forma selecionar as ferramentas facilitadoras do processo mnêmico. Todavia,

ainda que os recursos mais indicados sejam utilizados, na memorização mecânica

ou associativa a qualidade da imagem formada está relacionada aos motivos e às

intencionalidades da ação (VIGOTSKI, 2007).

27

A imagem mental formada é ligada ao conceito de um objeto que foi sentido,

percebido, atentado, logo, memorizado. A conversão de imagens em linguagem

permite ao ser humano sobrepujar a representação imediata da realidade, e “Dessa

superação resulta a possibilidade para a construção de ideias, que são a rigor, os

conteúdos do pensamento” (MARTINS, 2011b).

As funções que antes eram elementares se desenvolveram em superiores e

modificam o comportamento humano.

Na forma elementar alguma coisa é lembrada; na forma superior os seres humanos lembram alguma coisa. [...] no segundo caso, os seres humanos, por si mesmos, criam um elo temporário através de uma combinação artificial de estímulos (VIGOTSKI, 2007, p. 50).

Assim, é encerrada a necessidade de ter presente o objeto; as ações mediadas

pelos signos influenciam as funções psicológicas de tal maneira que as modificam

estruturalmente e na relação entre as mesmas, e passam a ser denominadas

funções psíquicas superiores ou comportamento superior (VIGOTKI, 2007). Este é o

resultado da internalização da cultura influenciando o indivíduo e transformando-o

em sujeito. A apropriação dessa cultura pode ser feita de diferentes maneiras, como

no seio familiar, entre amigos, na igreja, no esporte, nos museus, zoológicos e na

escola, que dispõe de importante papel no desenvolvimento, mas tem se mostrado

deficiente quanto aos métodos de ensino.

A relação da aprendizagem e desenvolvimento de crianças em idade escolar é tema

recorrente na psicologia pedagógica e a questão metodológica é um ponto

desafiador para os pesquisadores. Diante do exposto, compreendemos que as

funções psicológicas tornam-se complexas com a internalização cultural, que ocorre

primeiramente no plano interpsíquico e posteriormente no plano intrapsíquico;

formando, portanto os valores, juízos, comportamentos, e a cultura do sujeito. No

âmbito escolar, essa formação está relacionada ao ensino que é ofertado e o como

se oferta.

Para a psicologia histórico-cultural é a instrução realizada em uma ação

colaborativa, seja com o professor ou com os colegas, que possibilitará o

28

desenvolvimento (PRESTES, 2010). E como deve ser esse ensino? Vigotski (2004,

p. 509) diz que deve ser aquele “[...] que supera o desenvolvimento, ou seja, arrasta

atrás de si o desenvolvimento, desperta para a vida, organiza e conduz o processo

de desenvolvimento [...]”, e complementa dizendo que o ensino “ [...] fácil demais e

difícil demais é igualmente pouco eficaz”. Por essa razão, o professor deve atuar

com o que o aluno é capaz de fazer ao ser orientado, e não com o que ele realiza de

maneira independente, uma vez que já tem domínio; nem com o que não é capaz de

fazer mesmo com orientação. Esse pensamento relaciona-se com a ideia da Zona

de Desenvolvimento Iminente 9 (ZDI) e Zona de Desenvolvimento Real (ZDR)

(VIGOTSKI, 2004; 2007), conceituadas por Vigotski (apud PRESTES, 2010, p. 173-

174) da seguinte maneira:

No mínimo, deve-se verificar o duplo nível do desenvolvimento infantil, ou seja, primeiramente, o nível de desenvolvimento atual da criança, isto é, o que hoje já está amadurecido e, em segundo lugar, a zona de seu desenvolvimento iminente, ou seja, os processos que, no curso do desenvolvimento das mesmas funções, ainda não estão amadurecidos, mas já se encontram a caminho, já começam a brotar; amanhã trarão frutos; amanhã passarão para o nível de desenvolvimento atual. Pesquisas mostram que o nível de desenvolvimento da criança define-se, pelo menos, por essas duas grandezas e que o indicador da zona de desenvolvimento iminente é a diferença entre esta zona e o nível de desenvolvimento atual. Essa diferença revela-se num grau muito significativo em relação ao processo de desenvolvimento de crianças com retardo mental

10 e ao de crianças normais. A zona de desenvolvimento

iminente em cada uma delas é diferente. Crianças de diferentes idades possuem diferentes zonas de desenvolvimento.

A relevância desse conhecimento para o docente é a compreensão de que alunos

com a mesma idade cronológica podem ter diferentes idades mentais, por

conseguinte, como ensinar a cada um deles também deverá ser diferenciado.

Conhecer a idade mental do aluno possibilitará ao professor elaborar as atividades

de ensino, pois trabalhar sobre o que os alunos estão na iminência de aprender

promoverá e facilitará o desenvolvimento desse aluno. Essa ideia veio contrapor a

9 Essa será a nomenclatura adotada embora sejam encontradas na literatura outras expressões como

Zona de Desenvolvimento Potencial, Zona de Desenvolvimento Proximal e Zona de Desenvolvimento Imediato; será mantido o termo das citações diretas. Tal escolha está fundamentada na tese de Zoia Prestes (2010, p.173, destaque da autora) que traz a seguinte explicação: “[...] a tradução que mais se aproxima do termo blijaichego razvitia é zona de desenvolvimento iminente, pois sua característica essencial é das possibilidades de desenvolvimento, mais do que do imediatismo e da obrigatoriedade de ocorrência [...]”. 10

Vigotski utiliza termos que estão em desuso, porém os mesmos foram mantidos nas citações diretas.

29

pedagogia que aplicava testes para diagnosticar o desenvolvimento mental real do

aluno e, baseado nas etapas que já haviam sido internalizadas, orientava a

aprendizagem para o estágio seguinte. Desconsiderava-se se o aluno era ou não

capaz de realizar a atividade com auxílio e, assim, se tomava como pressuposto que

não sabiam realizá-la (VIGOTSKI, 2004; 2007).

Essa conjuntura torna-se ainda mais evidente quando aborda o público deficiente

intelectual. Ao serem submetidos a testes, os resultados indicavam que o ensino

deveria ser baseado no método direto, ou seja, sem utilizar signos, haja vista a

pouca habilidade em abstração dos conceitos. Experiências posteriores mostraram

que esse método não só não ajudava na superação da deficiência como também o

intensificava, permitindo ao autor propor que só é bom o ensino que supere o

desenvolvimento (VIGOTSKI, 2004).

Acerca desse público, Vigotski também teve um olhar diferenciado, principalmente

pela época em que viveu, início do século XX.

3.1.1 Psicologia histórico-cultural e a concepção sobre o comportamento

anormal

Qual é o limite entre normal e anormal? Linha tênue e inexistente, assim como o

conceito de norma que é “[...] puramente abstrato de certa grandeza média dos

casos mais particulares e, na prática, não é encontrada em forma pura, mas sempre

em certa mistura de formas anormais (VIGOTSKI, 2004, p. 379)”. Entretanto,

ressalta o autor, há comportamentos que se afastam de tal maneira que nos dão o

direito de falar sobre o anormal.

O comportamento anormal, cujas origens podem ser diferentes, é reunido em três

grandes grupos: aqueles em que o comportamento anormal é breve e casual, como

esquecimentos, omissões, delírios; o comportamento constante e vitalício,

decorrente da ausência de um membro, deficiência física; e o comportamento

duradouro e estável, representado pelas neuroses, psicoses e deficiências mentais.

Estes são o foco da discussão quanto ao processo de ensino, aprendizagem e

desenvolvimento, embora possa ser estendido para todos os grupos.

30

O que dizer do processo de ensino e aprendizagem para os sujeitos que foram

marginalizados ao longo do tempo? Seja pela sua condição física, genética ou

psicológica, o desvio da norma fez com que fossem excluídos, tendo o papel social

restrito a um ser parasita que dependia da benevolência do outro. À escola cabia a

tarefa de olhá-los de maneira piedosa, “[...] mantê-los com recursos sociais, ajudá-

los a levar aos trancos e barrancos uma deplorável sobrevivência humana”

(VIGOTSKI, 2004, p. 382). Apesar das mudanças ao longo dos séculos, pouco

mudou para os deficientes intelectuais.

Sob o ponto de vista do desenvolvimento natural é necessário esperar que as

funções biológicas amadureçam para que possam aprender. O item anterior abordou

que, sob a perspectiva da psicologia histórico-cultural, a humanização é um

processo no qual as funções elementares tornam-se superiores a partir das relações

sociais mediadas pelo outro e pelos signos (VIGOTSKI, 2004). Contudo, se

deixarmos o indivíduo à própria sorte, ressalta Martins (2013b), ele nunca passará

pelo processo de humanização.

O comportamento da criança sofrerá mudanças quando ela sentir necessidade de tal

atitude, exigir que ela diga a palavra para referir-se a um objeto, memorize para falar

de um fato acontecido e pense para resolver problemas. Daí a importância da

participação da criança no meio cultural, pois só haverá desenvolvimento psíquico

pelos meios externos da cultura, fala, escrita, aritmética e pela própria função

psíquica, atenção voluntária, lógica e pensamento abstrato. A criança com

deficiência intelectual permanece nessa carência justamente nesses aspectos não

por questões orgânicas, mas pelas possibilidades que são oferecidas para que eles

se desenvolvam (VIGOTSKI, 2004; 2011).

No âmbito escolar é comum utilizar os mesmos métodos de ensino a todos os

alunos, independente de suas especificidades. Entretanto, compete ao professor e

ao pedagogo selecionar técnicas com signos especiais que atendam às

necessidades desse público.

Para a criança intelectualmente atrasada, deve ser criado, em relação ao desenvolvimento de suas funções superiores de atenção e pensamento, algo que lembre o sistema Braille para a criança cega ou a dactilologia para

31

a muda, isto é, um sistema de caminhos indiretos de desenvolvimento cultural, quando os caminhos diretos estão impedidos devido ao defeito (VIGOTSKI, 2011, p. 869).

Além disso, Vigotski (2004) demonstra a importância de trabalhar com atividades

que incitem nos alunos à formação da imagem mental dos objetos, uma vez que os

sujeitos com deficiência intelectual “não são muito capazes de ter pensamento

abstrato”, e justamente terem dificuldade na representação mental é que a “[...]

escola deveria fazer todo esforço para empurrá-las nessa direção, para desenvolver

nelas o que está intrinsecamente faltando no seu próprio desenvolvimento” (idem, p.

101). Porém, ao desenvolver as atividades, pedagogos e professores enfatizam o

plano concreto e reiteram a cada tarefa a deficiência intelectual do aluno, uma vez

que não fomentam situações que promovam o desenvolvimento cognitivo

(VIGOTSKI, 2004; 2007; 2011).

O desenvolvimento cognitivo à luz da psicologia histórico-cultural é formado com

base na internalização da cultura vivenciada na sociedade. A privação da mesma

interfere significativamente no processo de humanização, tanto dos ditos normais

como anormais. A escola enquanto espaço de construção de conhecimento deve

criar oportunidades para que esse desenvolvimento ocorra, ainda que para alcançar

os objetivos precise modificar seus métodos. Vigotski contrapôs o pensamento da

época afirmando que é o ensino que estimula o desenvolvimento, porém não

explicou como ocorre a abstração do que antes era concreto.

A resposta a isso foi exaustivamente pesquisada por Galperin, que esteve presente

na fundação da Escola de Khrakov (HAENEN, 2001). Pouco conhecido no ocidente,

as contribuições do psicólogo para a nova psicologia são de extrema relevância;

pois assim como os demais pesquisadores que continuaram a obra de Vigotski,

aquele preenche lacunas deixadas por este.

A obra inacabada de Vigotski decorreu de sua morte ainda jovem, aos 38 anos. A

Sinfonia Incompleta é assim referenciada em decorrência de suas ideias brilhantes,

sendo considerado ‘O Mozart da Psicologia’, além de formar junto aos seus

colaboradores, Leontiev e Luria, a Troika (HAENEN, 2001). Troika, que significa

32

trinca de cavalos, deixou um quarto cavaleiro solitário, o qual será apresentado a

seguir.

3.2 “À LUZ DA SUA GLÓRIA, QUEM É O CAVALEIRO A CAVALO SOLITÁRIO –

PETER YA. GALPERIN?” 11

Nascido em outubro de 1902, filho de um médico e professor universitário, Galperin

tinha em casa uma vasta biblioteca com artigos sobre Filosofia, Medicina e

Psicologia. Sua formação pode ter sido influenciada pelo seu contexto familiar e

assim formou-se em medicina na década de 30, direcionando sua atuação para a

área da Psicologia (NÚÑEZ; OLIVEIRA, 2013).

Pouco conhecido no ocidente, foi um dos psicólogos mais influentes nas escolas da

antiga União Soviética a partir da década de 50, quando “formulou hipóteses sobre a

teoria da formação por etapas da atividade mental e dos conceitos” (NÚÑEZ,

OLIVEIRA, 2013, p. 288). Participou do seleto grupo de psicólogos do país e esteve

envolvido na fundação da Escola de Jarkov, Ucrânia, sendo o último dessa geração

a ter contato com Vigotski (HAENEN, 2001). Além de outros importantes psicólogos

da época, trabalhou com A. R. Luria, A. N. Leontiev e foi orientador de V. V. Davidov

e N. F. Talízina, contribuindo significantemente em seus estudos. Apresentou-se

como uma importante figura para a compreensão do pensamento da Psicologia

Histórico-Cultural e da Teoria da Atividade, esta desenvolvida por Leontiev, que,

contudo, não explicaram o mecanismo de internalização da atividade externa em

atividade interna (NÚÑEZ, 2009; NÚÑEZ; OLIVEIRA, 2013).

Galperin, continuador desses estudos, contribuiu para a compreensão da formação

de conceitos na mente humana e como esta está relacionada à atividade material

externa, colaborando para a formação do psiquismo humano. No início da década

de 50 formulou hipóteses sobre esse processo e, em 1965, defendeu sua tese com

os “Principais resultados dos estudos sobre a formação da ação mental e dos

conceitos”, assim intitulada (NÚÑEZ; OLIVEIRA 2013, p. 289). As questões

11

Artigo de Boris Gindis, o qual avaliou o livro de Haenen (1996), Psychologist in Vygotsky's Footsteps.

33

relacionadas às mudanças cognitivas do desenvolvimento e à origem da mente são

o centro dos seus estudos (STETSENKO; ARIEVITCH, 2008).

Assim, a relação dos diferentes tipos de aprendizagem, as formas de ensino e sua

relação com o desenvolvimento também se tornam importantes, uma vez que:

Sua preocupação era compreender como os conceitos complexos e muito discutidos de mediação e interiorização, apresentados por Vygotsky, poderiam ser instrumentalizados para se organizar um ensino que desenvolvesse os estudantes como personalidades integrais (NÚÑEZ; OLIVEIRA, 2013, p.293).

A respeito do processo de interiorização e desenvolvimento, Galperin (2013d)

demonstrou que havia um problema do método ao se estudar o intelecto do sujeito.

As discordâncias, segundo Galperin, decorriam do método utilizado para pesquisar o

desenvolvimento intelectual do sujeito e propôs uma nova metodologia, a qual o

conduziu à questão do desenvolvimento mental. A esse método denominou

“formação das ações mentais por etapas” (GALPERIN, 2013d, p. 463).

3.2.1 Teoria da Formação das Ações Mentais por Etapas

O processo de internalização da atividade externa para o plano mental foi estudado

por Galperin culminando em sua teoria. Por ação mental entende-se a capacidade

do sujeito de converter um objeto material em uma representação mental, como, por

exemplo, realizar uma divisão, ler uma palavra, distinguir acordes, determinar um

estilo arquitetônico. Essas qualidades que são aprendidas instigaram o teórico a

perguntar: “Como se adquirem no processo de ensino?” (GALPERIN, 2013b, p.441).

E respondeu:

A formação da ação mental passa por cinco etapas: a primeira pode-se denominar a criação de algum (SIC) assim como um “projeto de ação”, a base orientadora com a que depois o sujeito se guia para realizar a ação. Na segunda etapa, se cria de forma material (ou materializada) essa criação, a primeira forma real no sujeito. Na terceira etapa a ação se separa das coisas (ou de suas imagens materiais) e passa ao plano da linguagem em voz alta. Na quarta etapa a ação se realiza mediante a conversação “para si‟, todavia, imprecisa em seus componentes verbais e conceituais. Esta ação no plano da “linguagem para si” na seguinte etapa se transforma em um processo automático, e a consequência dele, precisamente em sua

34

parte verbal se alia à da consciência, assim o processo verbal se converte em um processo oculto e, em seu sentido mais completo, em um processo interno (GALPERIN, 2013c, p. 456).

Embora os momentos descritos por Galperin recebam o nome de etapas, elas não

devem ser vistas como momentos estanques e sim como um processo que quando

ocorre em situações de aprendizagem real podem ser abreviados, combinados ou

até mesmo ignorados. Por isso não é um processo linear e hierárquico, mas algo

que se aproxima do modelo em espiral (ARIEVITCH e HAENEN, 2005). Neste

modelo o processo de aprendizagem avança com melhorias graduais na qualidade

da ação, esta é determinada por Galperin (2013b) como indicadores da qualidade da

ação.

Os indicadores, ou parâmetros da ação estabelecidos por Galperin (2013b) são a

forma da ação, grau de generalização, grau de abreviação, grau de consciência e

grau de controle. A abreviação e o controle também são denominados,

respectivamente, por detalhamento e independência por Núñez (2009). A qualidade

e o resultado da ação internalizada são determinados pelo tipo de orientação dada.

Dessa forma, entende-se que há três momentos funcionais da ação: orientação,

execução e controle.

No momento da orientação ocorre a formação da base orientadora da ação. A

execução contempla as etapas material/materializada, linguagem externa, mental. O

terceiro momento, e não por último, está o controle que é feito por meio dos

parâmetros da ação (GALPERIN, 2013b). Galperin (2013e) não contemplou o fato

motivacional e reconhecia essa deficiência, a qual foi proposta por Talízina (NÚÑEZ,

2009). Esses momentos funcionais que não ocorrem de maneira linear, e sim como

em um ciclo serão descritos a seguir.

3.2.1.1 Momento funcional: orientação

Durante a pesquisa sobre a formação da ação mental por etapas, Galperin e seus

colaborados observaram que a forma da ação e a qualidade final do produto estão

relacionados à qualidade da orientação dada (GALPERIN, 2013a). Deu o nome de

Base Orientadora da Ação – BOA ao “[...] conjunto de condições nas quais os

35

estudantes se orientam durante a execução da ação” (GALPERIN, 2013d, p.466),

disponíveis em uma ficha ou cartão.

Diversos são os tipos de orientação e as pesquisas realizadas mostraram que

podem se reduzidas a três tipos: o primeiro é caracterizado por ter indicadores

isolados, é frágil e incoerente. O caráter orientador não é dissociado da ação em si,

que ocorre por tentativa e erro, fazendo com que o processo de formação da ação

ocorra lentamente. Por não reconhecer os elementos indicadores da orientação –

aqueles que estão presentes em outras ações – há uma análise breve e rasa da

situação. Consequentemente, a orientação torna-se tão específica que em uma

condição semelhante, mas com variantes, vai necessitar de uma nova base de

orientação (GALPERIN, 2013a).

No segundo tipo de orientação, o professor mostra a orientação completa, explica o

significado das orientações e o modo de executar a ação. Para que esta seja correta

é necessário um controle externo bem determinado a fim de evitar que o sujeito volte

aos ensaios e aos erros. Inicialmente, o aprendiz irá comparar cada elemento da

tarefa com a orientação para, em seguida, desenvolvê-la. Posteriormente, a ação

será feita em blocos isolados, com menos erros e menor necessidade de mediação

da BOA. Esse processo se sucede conforme a necessidade de consulta se abrevie,

até o momento em que não mais seja requisitada e a realização da ação se torne

automática. Uma vez no plano mental a ação é realizada com 100% de precisão e a

aplicação a situações possíveis (generalização) dependerá substancialmente da

presença dos elementos idênticos aos assimilados. A habilidade de reconhecer

novos elementos necessários para executar a tarefa não é desenvolvida por esse

tipo de orientação e, por isso, em cada nova tarefa o sujeito passa novamente pelo

primeiro tipo (GALPERIN, 2013a). Esse segundo tipo de orientação é típica do

ensino tradicional (NÚÑEZ, 2009).

A orientação que permite a formação da “[...] habilidade do sujeito para formar

individualmente a imagem orientadora completa da ação” (GALPERIN, 2013a, p.

437) é a primeira diferença do terceiro tipo. Nessa situação, a orientação pode ser

aplicada a um conjunto de tarefas e não a uma específica, sendo, desse modo, a

única orientação que conduz à generalização. Para tanto, é necessário ensinar o

36

aluno a analisar como reconhecer esses elementos em tarefas diferentes dentro de

uma mesma área. Não se trata de deixar que formulem a base de orientações por si

só, mas oferecer elementos para que possam realizar tal análise. Esse tipo de BOA

se caracteriza por se formar de maneira fácil e rapidamente, enquanto a atividade é

assimilada com menor número de erros (GALPERIN, 2013a).

Núñez (2009) cita pesquisas que demonstram as vantagens em trabalhar com a

BOA do tipo III, destacando o tempo necessário para o aprendizado, que é menor do

que nos outros tipos de orientação; a generalização dos conteúdos; a baixa falha na

transferência dos conteúdos em novas situações; a oferta de possibilidades para

realizar um trabalho independente e criativo; e a contribuição para o

desenvolvimento do pensamento teórico dos alunos.

Apesar de o terceiro tipo de orientação ser o mais indicado, no ensino de tarefas

com alto grau de complexidade e novidade, na qual a única maneira de realizá-la é

ter uma orientação específica, se utiliza a BOA tipo I (NÚÑEZ; PACHECO, 1998).

A orientação é a primeira das etapas do processo e estará presente durante todo o

ciclo cognoscitivo. A construção da base orientadora, que se materializa na forma de

fichas, contém brevemente os signos necessários dispostos em colunas e

numerados, e devem ser seguidas rigorosamente no início da ação, até que não

sejam mais necessários. Os signos dados não podem exigir do sujeito

aprendizagem prévia, visto que nessa etapa não há execução de uma ação e, por

isso, não há assimilação (GALPERIN, 2103b).

A ficha proporciona ao sujeito a possibilidade de visualizar a ação inicial, o resultado

pretendido, as ferramentas necessárias para executar a ação, os conceitos

fundamentais, as condições em que as ações ocorrem, o curso das ações, o

controle e a regulação da aprendizagem, podendo os alunos contribuírem na

produção da BOA com os conhecimentos que já possuem (HAENEN, 2001;

ARIEVITCH; HAENEN 2005; STETSENKO; ARIEVITCH, 2008; NÚÑEZ, 2009).

Portanto, a BOA deve refletir todas as etapas da ação: orientação, execução e

controle, embora o uso da mesma ocorra somente na primeira etapa da execução, a

etapa materializada.

37

A fase da orientação foi descrita por Galperin como um momento em que se mostra

ao sujeito a direção da ação. Ele reconhece que em todo o processo – até a

formação mental da ação – há duas deficiências: o aspecto motivacional e tarefas

que contemplem o desenvolvimento do pensamento crítico (GALPERIN, 2013e).

Segundo Núnez (2009), foi Talízina quem descreveu a etapa motivacional,

conhecida como ‘etapa zero’. Esse momento é marcado pela ausência da ação e

introdução de assuntos, pois irá preparar o aluno para assimilar os novos

conhecimentos.

A motivação pode se apresentar como interna, quando os motivos estão

relacionados à busca de conhecimentos – cognitivo – e externos, quando o estudo

está relacionado a outros fins (NÚÑEZ; PACHECO, 1998). Deve-se também

preparar o aluno psicologicamente, observando sua situação de vida, que podem ser

motivadoras ou inibidoras da aprendizagem (NÚÑEZ, 2009).

Ainda que a motivação e a orientação estejam presentes no início do processo de

assimilação da ação, reconhece-se a importância de estar presente também na

etapa funcional, quando a ação é executada.

3.2.1.2 Momento funcional: execução

O momento funcional compreende as etapas em que há execução da ação e esta

pode se apresentar de três formas: material ou materializada, linguagem externa e

mental.

A assimilação de uma ação inicialmente ocorre quando ela se encontra em sua

forma externa, sendo assim a única maneira de ser demonstrada corretamente. “Por

essa razão a forma inicial da ação é necessariamente material” (GALPERIN, 2013b,

p. 442). Nos casos em quem não existem objetos, estes podem ser representados

de maneira que sua reprodução seja fidedigna e contenha as propriedades

essenciais, nesse caso, diz-se que a ação é materializada. Eles, observa Galperin,

devem conter os elementos essenciais evidentes e os nãos essenciais minimizados

para que o aluno não se distraia com os últimos.

38

É na fase material/materializada que o aluno de fato pratica a ação, contudo, por

ainda não desenvolvê-la no plano mental, ele a realizará somente no plano externo.

Em grupo ou em duplas a tarefa deve contemplar situações semelhantes que

ocorrem na vida dos alunos para que os mesmos possam aplicar a solução em

outras situações e assim generalizar o conhecimento obtido. Há também o controle

do professor e a mediação da BOA, como esquema para realizar a atividade. Esta

acontecerá de forma detalhada, perpassando todas as operações da composição da

ação; o aluno deverá manipular o objeto, falar sobre ele, se relacionar com o mesmo

de maneira que posteriormente possa fazer a transição para o plano mental

(NÚÑEZ, 2009; GALPERIN, 2013b).

Por ainda não ter a abstração da ação, o aluno sozinho não tem a habilidade para

controlar a qualidade da mesma, e por isso necessita do auxílio do professor. Esse

controle

[...] por parte do aluno só pode se dar com o auxílio da percepção da situação. É um momento de reflexão e discussão, enquanto a atividade é realizada. É necessário incluir tarefas que reflitam os casos típicos de aplicação da atividade para garantir sua generalização, evitando-se nesse momento, tarefas idênticas, pois podem conduzir a uma automatização prematura (NÚÑEZ, 2009, p. 107).

Ao se desenvolver, a ação sofre duas variações; a primeira está relacionada à

aplicação dos elementos essenciais a outras situações possíveis, ou seja, à

generalização. A segunda variação está relacionada à redução; quando o aluno

solicita menos ajuda, realiza a ação com menos passos, de forma mais automática,

denominada abreviação (GALPERIN, 2013b). Quando a presença física e a

manipulação dos objetos não são mais necessárias, os sujeitos passam para um

nível mais complexo da ação, fase da linguagem externa.

Nessa fase, os objetos não estão mais presentes e serão representados por

sistemas simbólicos. Os alunos, ainda em pares ou em grupos, se necessário

controlados pelo professor, realizam as ações que ocorrem por meio da linguagem,

escrita ou oral (NÚÑEZ, 2009).

39

Inicialmente, a linguagem se apresenta como um reflexo de toda a ação que

anteriormente foi realizada com o material ou sua representação. Gradualmente, o

estudante dará significado às palavras e aos poucos substituirá a representação

material pela linguagem verbal ou pela escrita. Esta se configura como um

instrumento para assimilar a ação e, por isso, percebem-se três mudanças

essenciais nessa fase: a ação verbal deixa de ser somente um reflexo da ação

executada com o objeto e passa a ser um meio de comunicação com o outro,

consequentemente torna-se um fenômeno da consciência social e, devido a isso, a

ação inicialmente é interpsicológica.

Em segundo lugar, o conceito compõe a base da ação, ou seja, o aluno aprende o

conceito de um assunto e consegue extrapolar para os correlatos, por exemplo, “É

muito mais fácil contar 100 objetos que três, porém, o conceito de “cem” não é mais

difícil que o conceito de “três” (GALPERIN, 2013b, p. 445, destaque do autor)”.

A terceira mudança é a consequência da correta assimilação da ação; esta

gradualmente é realizada em menos passos, reduzida, até que se transforma em

uma “ação por fórmula”. Se ensinada corretamente, a mesma será realizada de

maneira consciente e a ação não é executada com o objeto. É nesse momento que

a fala será direcionada para o falante, para si; por conseguinte, entra-se na etapa

em que a ação passa para o plano intrapsicológico e terá sua forma mental

(GALPERIN, 2013b).

Na terceira etapa do momento funcional da execução da ação há mudança na

essência do processo, uma vez que nela a linguagem como comunicação é

substituída pela tarefa de reflexão, na qual o sujeito fala para ele mesmo. Dessa

maneira, a linguagem transforma-se no objeto de análise, o qual inicialmente era

material ou materializado (GALPERIN, 2013b). Essas duas mudanças essenciais

sinalizam a etapa mental, última do processo de execução da ação.

Nessa fase, “[...] a linguagem interna (nova estrutura psicológica) se transforma em

função mental interna e proporciona aos alunos novos meios para o pensamento”

(NÚÑEZ, 2009, p.114). Assim, a ação torna-se abreviada e posteriormente

consciente, sendo somente o produto final dessa ação revelado e, portanto,

40

percebido; não há presença do material ou sua materialização, consulta à BOA, tão

pouco controle do professor. A consciência da ação torna-se uma das propriedades

desta e, juntamente com a generalização, redução e assimilação, formam um

sistema de indicadores da qualidade da ação (GALPERIN, 2013b) que auxiliará o

professor e o aluno no processo de controle.

3.2.1.3 Momento funcional: controle

Este terceiro momento funcional refere-se ao controle da ação, o qual está

direcionado ao acompanhamento da ação, à correção e comparação dos resultados

obtidos utilizando a BOA como modelo. O controle junto com as etapas de

orientação e execução não pode ser visto como um momento isolado, pois “[...]

integram as etapas da teoria de Galperin, que formam ciclos cognoscitivos numa

espiral dialética de desenvolvimento intelectual dos estudantes (NÚÑEZ; OLIVEIRA,

2013).”.

Durante o processo de assimilação percebe-se o controle quando a ação muda sua

forma e, consequentemente, o aluno recorre menos ao professor ou aos seus pares,

à BOA, à fala externa, à fala para si, até que a ação se torna consciente e, por fim,

automática. Estas propriedades são definidas por Galperin (2013b) como

indicadores de qualidade da ação. Núñez (2009; NÚÑEZ; OLIVIERA, 2013) nos

ajuda a compreender esses parâmetros que ele e Talízina descreveram como

primários: São eles:

a) Forma pela qual a ação se realiza: é o plano na qual a ação ocorre. Se a

mesma acontece por meio da manipulação dos objetos, a ação ocorre no plano

material. Se o objeto da ação deixa de ser o material e passa a ser representado

pela forma verbal externa, oral ou pela escrita, então, será a segunda etapa do

processo, fase verbal. A terceira etapa é a forma superior na qual o aluno realiza

para si a ação, em uma representação mental.

b) Grau de generalização: é a habilidade em compreender o essencial para a

ação, seus aspectos mais simples, e extrapolar para outras situações em que são

possíveis de aplicação. Generalizar só é possível se a orientação inicial é do terceiro

41

tipo (GALPERIN, 2013b). Núñez (2009) traz o entendimento de generalização

baseado em Talízina, que a entende como a relação entre as situações em que o

aluno aplicou a habilidade adquirida e as possíveis situações em que elas são

aplicadas.

c) Grau de abreviação ou detalhamento: inicialmente o estudante tem a

necessidade de passar por todos os passos da ação para alcançar o resultado final,

ou seja, de maneira detalhada. Na medida em que percebe uma ação estereotipada

nas quais os dados iniciais mostram sempre um mesmo resultado específico,

deixam de reproduzir tal ação, pois já conhecem o resultado final. Esse processo é

chamado de redução (GALPERIN, 2013b).

Por esse motivo o aluno deixa de utilizar a ficha de orientação, presença do material

ou sua representação, controle do professor e a fala externa, tornando a ação

abreviada. Logo, o aluno passa a executar a ação com mais rapidez e de maneira

automatizada (GALPERIN, 2013b).

d) Grau de consciência: refere-se à possibilidade do estudante realizar

corretamente a ação e explicar verbalmente o que faz e por que (NÚÑEZ;

OLIVEIRA, 2013). Nesse momento ele não só tem consciência da ação como

também sabe que sabe.

Na necessidade de explicar e argumentar o que se faz para comunicar a outra pessoa, será imprescindível a utilização da linguagem verbal em sua forma oral ou escrita, e é precisamente esta a tradução de uma lógica da ação para uma lógica dos conceitos, o que contribui para garantir que a ação seja consciente (NÚÑEZ, 2009, p. 122).

e) Grau de controle ou independência: é atribuído à possibilidade de o aluno

desempenhar uma ação com ou sem ajuda. Por todo exposto, a ação é iniciada no

plano material e coletivamente para gradualmente ser interna e individual. Todo esse

processo das etapas que se iniciou no plano concreto, passando pela linguagem até

chegar ao plano mental, com ações coletivas e orientadas que gradualmente

tornaram-se independentes, conscientes e individuais tem proximidade aos estudos

de Vigotski quanto à Zona de Desenvolvimento Iminente (ARIEVITCH e HAENEN,

2005).

42

É por meio do controle que “[...] obtém-se a informação necessária para a correção

das ações que os alunos executam e para a correção do próprio sistema”

(TALÍZINA, apud NÚÑEZ, 2009, p. 201). Nesse processo não deve se considerar

somente o resultado da aprendizagem, mas também a aquisição de conhecimentos

e a formação de novas propriedades psíquicas.

Assim, não basta atribuir somente uma nota, é importante retroalimentar o aluno

mostrando seus êxitos e dificuldades com o intuito de que o mesmo possa aprender

com os próprios erros. O controle se caracteriza como uma ajuda ao estudante que

o estimulará a ter consciência dos próprios erros e os motivará para o estudo,

promovendo futuramente um autocontrole (NÚÑEZ, 2009).

Para tanto, é necessário que as tarefas sejam organizadas em uma sequência de

atividades que devem ser corrigidas e comentadas pelo professor e devolvidas aos

alunos para que possam refletir sobre a causa dos erros. Essa reflexão deve ser

escrita para ser entregue posteriormente ao professor e ele analise novamente em

um processo cíclico.

Núñez (2009) atenta para a necessidade de diferenciar controle de avaliação. O

primeiro ocorre a todo momento, enquanto o segundo ocorre em um tempo

diferenciado. A avaliação está inserida no controle final do processo e deve

considerar os objetivos traçados e os critérios qualitativos estabelecidos, que serão

relacionados aos quantitativos. Pode ser realizada utilizando provas escritas, orais,

atividades práticas, desde que o instrumento seja familiar ao aluno e que seu

conteúdo suscite a tomada de decisões e a formulação de juízos, entre outros.

Como é possível perceber, a Teoria das Ações Mentais por Etapas “[...] objetivava

organizar e estruturar o ensino de forma tal que favorecesse a aprendizagem de

conceitos teóricos e científicos com potencial para o desenvolvimento do

pensamento das crianças” (NÚÑEZ; OLIVEIRA, 2013, p. 293). Dessa maneira, serão

apresentadas no item seguinte algumas pesquisas que se fundamentaram na teoria

de Galperin e ulteriormente o percurso metodológico.

43

3.3 O QUE DIZEM OS PESQUISADORES EM SUAS PESQUISAS

É uma pretensão pensar que esse tópico será o “estado da arte” sobre as produções

acadêmicas nas quais a Teoria das Ações Mentais por Etapas foi de alguma

maneira utilizada. Desde já reconhecemos nossa limitação e esclarecemos que os

estudos trazidos representam parte de um todo desconhecido. Foram encontradas

duas teses, uma dissertação da Teoria de Galperin na área de educação; alguns

artigos também foram encontrados, sendo um selecionado devido à semelhança do

tema estudado nesta pesquisa.

A tese de Bassan (2012) parte da hipótese de que a teoria proposta por Galperin é

um dos caminhos para que ocorra o processo de humanização dos estudantes na

sua vida acadêmica. Para averiguar sua hipótese, ela estabeleceu como objetivo

geral “evidenciar as possibilidades metodológicas da Teoria da Formação por

Etapas das Ações Mentais de Galperin para a organização da atividade de ensino

voltada à humanização do estudante” (BASSAN, 2012, p. 14).

A metodologia utilizada nessa pesquisa baseou-se em um estudo de caso realizado

durante seu próprio mestrado, aliado a estudos de qualidade teórica. Embora tenha

acompanhado a prática de oito professoras da 1ª e 2ª séries, há reflexão de apenas

uma dessas professoras. Essa professora foi selecionada por se destacar entre o

grupo de docentes pelo número de produções escritas dos seus alunos.

Embora a referida professora não tivesse conhecimento da Teoria das Ações

Mentais, Bassan encontrou elementos em sua prática que pudessem ser

relacionados a ela nas fases de orientação e execução da tarefa. Pelo resultado da

produção dos alunos, a autora concluiu que a Teoria da Formação por Etapas das

Ações Mentais é um método de ensino possível que viabiliza a humanização do

estudante como sujeitos críticos, capazes de solucionar problemas.

Pereira (2013, p. 31) pesquisou em sua tese

A formação da habilidade de interpretar gráficos cartesianos como parte do conhecimento profissional, desenvolvida por meio de um Sistema Didático que toma como referência as etapas da Teoria da Formação por Etapas das

44

Ações Mentais e dos Conceitos de P. Ya. Galperin, constitui-se como um processo de aprendizagem que garante a assimilação da orientação do sistema de operações ao nível mental, de forma sólida, com alto grau de generalização, independência, e consciência e com alto poder de transferência a novos contextos.

Para tanto, optou por um estudo de intervenção por meio de uma experiência

formativa, cujo objetivo foi, baseado na Teoria de Galperin, “[...] Organizar,

desenvolver e estudar o processo de formação da habilidade de interpretar gráficos

cartesianos [...]” (PEREIRA, 2013, p.31). Teve como sujeitos de pesquisa seis

estudantes de Licenciatura em Química da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte.

O autor fez uma atividade diagnóstica; nela forneceu a equação da decomposição

da água oxigenada e o gráfico referente ao processo. Solicitou aos alunos que

escrevessem o máximo de informações que pudessem obter a partir da

interpretação do mesmo. O pesquisador constatou que todos os participantes tinham

um baixo nível de desenvolvimento da habilidade para interpretar e generalizar

gráficos cartesianos.

Na etapa motivacional, Pereira (2013) promoveu um debate entre os pesquisados e,

para envolvê-los, apresentou dados de quinze pesquisas sobre as dificuldades de

interpretar gráficos. Dessa forma os licenciandos poderiam comparar as próprias

dúvidas e gerar um debate, intenção inicial do pesquisador. Essa estratégia

estimulou os alunos a realizar a tarefa por escrito de situações-problemas

relacionadas à futura atividade profissional, na qual a interpretação dos gráficos os

ajudaria.

Assim, procedeu-se à etapa de construção da Base Orientadora da Ação com a

participação do pesquisador, alunos e professor da disciplina. Para isso, o

pesquisador instigou os discentes a dialogarem sobre como procurar a maior

quantidade de informações em um gráfico para solucionar um problema. Eles

deveriam pensar de maneira geral, e não em caso específico, assim formariam a

BOA do tipo III, ou seja, generalizada.

45

Finalizada a etapa e uma vez compreendida por todos, iniciou-se a etapa

materializada. Com o auxílio da BOA e em duplas foram propostas resoluções de

problemas distintos, mas com as mesmas exigências. A tarefa possibilitou que a

ação fosse compartilhada com o colega, trabalhando dessa forma o plano

interpsicológico. Ao final da fase materializada o pesquisador notou que o número de

erros caiu no decorrer da etapa, mas no decorrer da pesquisa percebeu que

algumas das dúvidas foram recorrentes.

Na etapa seguinte, linguagem externa, a BOA não estava mais disponível, mas as

duplas permaneceram. As tarefas eram do mesmo tipo da fase anterior, porém a

maneira de resolver foi modificada. Nela os alunos resolviam a questão em voz alta

para que o outro pudesse ouvir sua resposta, e interferir se fosse necessário e fazer

correções. Nessa fase, a ação é caracterizada como verbal, na qual a atividade

gradativamente passa do plano interpsicológico para o intrapsicológico.

Uma vez no plano psicológico, a atividade passa ser realizada no plano mental. Para

esta foi proposto um número menor de tarefas e se esperou que elas fossem

resolvidas individualmente e no pensamento. O desenvolvimento da habilidade

também foi verificado no controle final por tarefas, com o objetivo de averiguar se o

educando foi capaz de assimilar e transferir o método para outro contexto. Nessa

atividade havia um item não trabalhado nas tarefas anteriores e que exigiu deles um

raciocínio mais complexo.

Quatro meses depois o pesquisador realizou nova tarefa com a finalidade de

confirmar a assimilação da interpretação de gráficos cartesianos pelo grau de

solidez. Com base em uma situação-problema complexa os alunos deveriam

interpretar os gráficos e redigir por meio de texto um novo item acrescentado e não

trabalhado anteriormente. O resultado demonstrou que todos resolveram o problema

com mais de 80% de compatibilidade com a chave de respostas propostas,

corroborando com sua tese inicial.

A dissertação de mestrado profissional desenvolvida por Jesus (2014) teve como

hipótese a contribuição positiva e potencializadora dos materiais pedagógicos na

(des)construção do pensamento geométrico do aluno surdo. Esta foi verificada com

46

base no objetivo principal de “analisar a (des)construção do Pensamento

Geométrico de uma aluna surda com o uso de Materiais Pedagógicos” (p. 24).

Nesse estudo, a autora teve como foco o processo de ensino-aprendizagem

referente ao Pensamento Geométrico de uma aluna surda, Lia. As tarefas realizadas

com a aluna em questão, bem como análise dos resultados foram pautadas na

Teoria das Ações Mentais.

Assim como Pereira (2013), Jesus realizou o diagnóstico para investigar o

conhecimento prévio de Lia, juntamente com o intérprete, todos sujeitos da

pesquisa. Percebeu que a aluna demonstrou conhecimentos sobre a diferença entre

figuras planas e espaciais e, em parte, sobre a quantidade de lados e ângulos de

uma figura. Entretanto, não soube o significado da palavra polígono, tão pouco a

nomenclatura dos mesmos.

Jesus (2014) depreendeu que as dúvidas de Lia estão relacionadas ainda aos

conceitos básicos, mas elaborou um plano de ensino com conhecimentos mais

profundos para que a aluna pudesse acompanhar seus pares. Esta é uma

reivindicação da comunidade surda, ter acesso a mesma qualidade de informações

dos alunos ouvintes. Para isso, elenca os seguintes “[...] temas: figuras planas e

tridimensionais, nomenclatura de polígonos, propriedade dos polígonos, simetria,

diagonais e ângulos de um polígono, composição e decomposição de figuras,

visualização” (JESUS, 2014, p.98).

Após o diagnóstico, iniciou-se a fase motivacional utilizando o Tangram como

material pedagógico. A pesquisadora, ao comparar as peças do jogo aos elementos

tridimensionais presentes na sala na qual se encontram, foi surpreendida pela fala

da aluna que a fez refletir sobre sua postura ao ensinar:

[...] “figura plana, só no chão?”. Nesse momento refleti e percebi que sempre que me referia a uma figura plana eu fazia um movimento na horizontal e isso pode ter induzido a aluna a pensar que figuras planas só podem estar na horizontal ou no “chão” como ela afirmou. Foi necessário refletir por alguns instantes sobre todas as vezes que utilizei essa estratégia para, assim, (des)construir meu olhar sobre as estratégias anteriores e buscar novas alternativas para construir esse novo conhecimento, não só para a Lia, mas para mim e para Felipe que acompanhava a atividade (JESUS, 2014, p.100).

47

Foi nesse momento que ocorreu a (des)construção do pensamento geométrico para

todos os envolvidos na pesquisa. Esse movimento tem continuidade na tentativa de

demonstrar a diferença do plano e o tridimensional. Assim continua Jesus:

Após reflexão sobre minhas ações, pedi para Lia visualizar os azulejos da sala de aula e os cartazes afixados nas paredes e perguntei se existia alguma diferença entre os azulejos da parede e do chão. A aluna afirmou que não. Fiz a mesma pergunta sobre os cartazes colados nas paredes (vertical) e o papel que estava em cima da mesa na horizontal, conforme ilustrado na figura 24 e 25. Ela também respondeu que eram iguais. Nesse instante, explicamos a ela que apesar de estarem em locais diferentes, um na horizontal ou no plano do chão e outro na vertical, eles são iguais e são planos, pois apresentam apenas duas dimensões (JESUS, 2013, p. 100).

Nessa etapa motivacional percebeu-se que a criticidade de todos os sujeitos

envolvidos foi requisitada e colocou a aluna na posição de autora do processo

ensino-aprendizagem. Com essa motivação diversas tarefas foram realizadas,

algumas perpassando todas as etapas descritas por Galperin e outras com parte

delas. Jesus ressalta que é ao percorrer esse caminho que o professor tem a

oportunidade de conhecer quais são as estratégias utilizadas pelo aluno para

compreender a ação efetuada e assim avaliar se a ação é consciente ou não.

Em suas conclusões, a pesquisadora verificou que a aluna passou a se preocupar

mais com o processo da resolução de um problema do que com o resultado final,

contribuindo para uma formação mais consciente das ações realizadas. Tal fato

mostrou que a aplicação da Teoria das Ações Mentais com alunos surdos se

apresenta como uma possibilidade teórico-metodológica a ser realizada, e que o

material pedagógico foi um instrumento mediador que potencializou positivamente a

(des)construção do pensamento geométrico, confirmando a hipótese levantada no

início da pesquisa.

O artigo de Karpov (2013) refere-se a uma pesquisa realizada nos Estados Unidos

com um grupo de professores, alunos de pós-graduação, os quais deveriam aplicar

as aulas previamente planejadas a alunos da rede pública de ensino.

Para tanto, três disciplinas foram selecionadas: Ciências, Matemática e História. A

seleção desta baseou-se no desempenho dos alunos, índice que não alcançava o

48

avançado, segundo a avaliação nacional. Por interesse deste estudo trataremos

apenas das duas primeiras disciplinas.

Para a disciplina de Ciências, os alunos do 5° ano deveriam classificar os animais

vertebrados conforme sua classe taxonômica – peixes, répteis, anfíbios, aves e

mamíferos. Como etapa motivacional foram mostradas diversas figuras de animais

aos alunos, incitando-os com a indagação: "Como identificar que tipo de animal

vertebrado é este?”. Ao mostrar as respostas corretas, o professor deixou os alunos

surpresos, conduzindo-os à pergunta: O que faz um pássaro ser um pássaro?

Para responder essa pergunta, o professor deveria fornecer em uma ficha os

conceitos necessários e, baseados neles, elaborou junto aos alunos um mapa

conceitual. Novamente as figuras de animais foram mostradas e, utilizando-se do

mapa conceitual, os alunos deveriam classificar os animais. Em um dos casos, o

docente percebeu a aula como um sucesso pois, embora alguns alunos tenham

incialmente errado a resposta, quando solicitados que a revissem, conseguiam

corrigir fundamentando cientificamente as próprias respostas.

Dos 54 professores participantes, 37 apresentaram relatos semelhantes mostrando

o sucesso da lição aprendizagem teórica; onze professores disseram ter sido bem

sucedidos, mas que havia algumas reservas; e seis professores sentiram sérios

problemas ao executar a lição.

Na disciplina de Matemática, os alunos de 7º grau deveriam identificar os tipos de

formas quadriláteras. Para tanto, tiveram como fator motivacional a seguinte

pergunta: Como identificar que tipo de quadrilátero é este? O professor desenhou na

lousa um quadrado e solicitou que os estudantes o nomeassem. Ao ter a resposta

correta retrucava dizendo se a figura poderia ser chamada de losango ou

paralelogramo. A discussão em seguida afetou emocionalmente os alunos, os quais

se sentiram motivados a buscar as respostas. Essa oportunidade foi a abertura

necessária para que o professor introduzisse os novos conceitos que seriam

necessários para responder tal questão.

49

Em seguida, alunos e professor elaboraram um mapa conceitual que foi testado

pelos alunos. Em duplas, enquanto um resolvia um problema utilizando-se do mapa,

o outro colega deveria monitorar a tarefa e observar se o primeiro a desenvolvia

corretamente, depois trocavam o papel.

Os relatórios dos professores mostraram resultados positivos para 19 dos 36

professores que participaram no estudo; onze deles relataram uma lição bem

sucedida com certas reservas e somente seis professores assentiram problemas ao

executar a lição.

Karpov (2013) concluiu que a proposta de Galperin resulta na melhoria da

aprendizagem dos estudantes americanos e a mesma pode ser facilmente

incorporada ao currículo tradicional.

50

4 TRAJETÓRIA DA PESQUISA

Este capítulo tem como foco caracterizar os participantes da pesquisa, o local e as

estratégias utilizadas para alcançar os objetivos propostos. Após a exposição do

local e dos personagens envolvidos (3.1), descreveremos o planejamento da

pesquisa (3.2), seguido do desenvolvimento da experiência de intervenção (3.3),

finalizando com a proposta da análise dos dados (3.4).

4.1 PARTICIPANTES E LOCAL DA PESQUISA

A necessidade em descrever os critérios pela escolha da escola me fez perceber

que eles foram direcionados pela minha trajetória profissional. Por isso, ao descrever

o local e os participantes, é preciso alertar que haverá alguma presença dessa

relação.

A escola pertence à rede pública estadual e se localiza na Grande Vitória/ES. Iniciou

suas atividades em 1973 e atualmente atende as modalidades regular, educação de

jovens e adultos – EJA, e técnico. A primeira modalidade contempla o ensino

fundamental e médio, é ofertada nos turnos matutino e vespertino, enquanto as duas

últimas no turno noturno. Muitos alunos que estudam à noite são pais ou avós dos

alunos que estão cursando o ensino regular, como aponta o Projeto Político

Pedagógico12 (2015) da instituição.

A maioria das pessoas é de classe média baixa, nascidos no município ou

imigrantes dos estados da Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Moram no próprio

bairro da escola ou em bairros vizinhos, sendo alguns destes formados por

invasões. Embora o bairro seja formado por uma população composta por

funcionários públicos ou de pequenos empresários, os alunos trabalhadores ou seus

pais são operários do terceiro setor, além do setor público.

12

O projeto é um documento público que pode ser consultado quando requisito. Porém o mesmo não será listado nas referências para que a escola não seja identificada, nem os participantes da pesquisa.

51

A escola tem capacidade para atender 1400 alunos, embora não tenha alcançado tal

quantidade. As salas podem conter até 40 estudantes, enquanto a média é de 25. A

equipe é formada ao todo por uma diretora, 4 coordenadoras, 3 pedagogas, 11

auxiliares de secretaria, 12 auxiliares de serviços gerais, 3 estagiários e 47

professores (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2015).

Parte do corpo docente é concursada e parte dos professores contratados todo

início de ano. Participei desse processo seletivo nos anos de 2010 a 2014, e

trabalhei nessa escola entre os anos de 2010 e 2012. Durante o período, fui

professora de Ciências dos anos finais do ensino fundamental nos primeiros dois

anos e no último também lecionei na EJA a disciplina de Biologia.

Nos anos de 2011 e 2012 tive uma aluna cujo irmão mais novo, na época dos anos

iniciais do fundamental, ia constantemente à sala em que ela estava para pedir

ajuda. Às vezes, chegava chorando, outras vezes tímido, às vezes enérgico..., mas

toda semana lá estava ele, solicitando a irmã. Em conversa com ela, soube que ele

tinha uma síndrome, segundo ela raríssima, e, por isso, estava sempre o ajudando.

Saí da escola e retornei em 2015, dessa vez como pesquisadora. Enquanto

conversava com professores, coordenadores e pedagoga, ele me viu e gritou:

- Ei, tia! (abriu um sorriso). Cheguei próximo a ele e perguntei se lembrava de

mim, o qual respondeu prontamente:

– Lembro, sim! Explicando em seguida: Lembra que eu estudava no prédio

de lá? (referia-se ao andar que estuda os anos inicias do fundamental) Agora estou

aqui, ó (apontando para as salas no primeiro andar) e depois eu vou pra de manhã!

(horário em que a irmã estuda, cujo nível é o médio) E depois eu vou fazer

faculdade13.

A minha intenção era pesquisar juntamente outra criança, mas Filipe me cativou e

assim propus a ele e a família esta pesquisa.

13

Todos os diálogos, entrevistas e anotações do diário de bordo foram destacados com a fonte itálica.

52

Filipe tem 14 anos e está cursando a 7ª série, ou 8° ano no ensino de 9 anos no. É

um ano mais velho do que os alunos que estão seriados, pois foi reprovado no ano

anterior. Conhece bem todos da escola, desde o vigia à coordenação, uma vez que

lá está desde a 3ª série ou 4° ano dos anos iniciais do ensino fundamental.

Compará-lo com outros meninos parece ser uma cilada, embora não saiba como

fazer de outra maneira. Assim, Filipe tem estrutura corporal compatível aos seus

pares, é curioso, procrastina as tarefas escolares, articula junto aos professores, se

distrai com facilidade durante as aulas, adora educação física, tudo como seus

colegas. Um olhar mais cuidadoso perceberia algumas nuanças como o dedo

mindinho da mão esquerda atrofiado, menor mobilidade do pescoço, imaginação

aguçada, dificuldade na leitura e na escrita por meio de palavras e com grande

afinidade com jogos virtuais. Fenotipicamente Filipe se assemelha aos demais

alunos, porém há um pequeniníssimo detalhe em seu genótipo que apresenta um

cromossomo a mais no par de número 8, conforme laudo médico (ARQUIVO DA

ESCOLA). Esse detalhe acarreta a Síndrome de Warkany descrita no segundo

capítulo, cujas características são basicamente genéticas e genéricas. Assim,

esperamos que no decorrer do texto possamos conhecê-lo melhor.

Atualmente, Filipe é aluno das professoras Antônia e Juliana, que lecionam

Matemática e Ciências, respectivamente. A primeira conhece o aluno desde que o

mesmo estava nos anos inicias do ensino fundamental, bem como sua família,

embora esta seja a primeira vez que o tem como aluno. A respeito dos discentes

com necessidades especiais, em anos anteriores, por um período de dois anos,

trabalhou com alunos deficientes mentais e outros com altas habilidades e com

superdotação. Sua atuação está relacionada à sua formação, a qual inicialmente foi

Matemática, seguida de uma especialização em Educação Especial e um curso

voltado para altas habilidades. Antônia também é formada no antigo curso de

magistério. Iniciou sua carreira profissional em 1998 nos anos inicias do ensino

fundamental e em 2000 ingressou na atual rede de ensino como contratada

temporária, efetivando-se em 2008 (ENTREVISTA14, 2015).

14

Entrevistas realizadas com os participantes da pesquisa durante a realização da mesma.

53

Juliana tem sua formação voltada para a área das Ciências. É técnica em química e

licenciada em Ciências Biológicas com especialização em Educação Ambiental.

Ingressou na rede de ensino em 2003 e, assim como Antônia, efetivou-se em 2008,

porém chegou à escola há dois meses devido a sua remoção. Ambas trabalharam

em uma mesma escola de outra rede de ensino e, assim, já se conheciam; todas as

outras pessoas da escola são novidades para Juliana, inclusive a turma em que

Filipe estuda (ENTREVISTA, 2015).

Essa turma, 7ª série/8° ano, é composta por 23 alunos, porém um deles não

frequentou as aulas durante a realização da pesquisa. Como toda turma, esta

também é bastante heterogênea e apresenta diversidade de faixa etária, cor, credo,

aptidão, afinidade, dificuldade e necessidades. Há uma surda, uma cadeirante, um

Síndrome de Warkany, um tímido, um nervoso, o que bate, o que apanha...., enfim,

jovens que convivem e demonstram as questões naturais da idade e dos

acontecimentos da vida.

A turma está sob a orientação pedagógica de Elisa, que teve seu ingresso na escola

no final de 2010, quando se efetivou em 2008. Apesar de atualmente estar somente

em uma rede de ensino, já atuou tanto na rede pública quanto privada como

professora. Atualmente, além da função de pedagoga, tem uma pequena carga

horária nos anos inicias do ensino fundamental para auxiliar as crianças no processo

de leitura. Iniciou sua carreira no magistério na década de 90, e na década seguinte

fez graduação em Pedagogia, seguida de uma especialização em Psicopedagogia

(ENTREVISTA, 2015).

Esta é uma apresentação dos participantes desta pesquisa, almejando que não seja

uma mera descrição deles, mas compreendendo que tão pouco alcançarei a

totalidade de cada um. Foi breve e, por certo, superficial, dada a complexidade de

cada ser humano, construída ao longo dos anos e cuja história será sempre singular.

Devemos ter em mente que muitos personagens não aparecerão ao longo desta

dissertação, como merendeiras, auxiliares gerais, alunos de outras turmas, outros

professores, bibliotecária, secretárias, cantineiro, vigias, coordenadores, enfim,

pessoas que possuem contato com Filipe, mas que por questão de delimitação da

54

pesquisa não integrarão este estudo. Eles influenciam a formação de Filipe? É

possível, já que estamos realizando um trabalho sob a perspectiva histórico-cultural.

Todavia, devido a nossas limitações, restringiremos nossos participantes ao aluno, à

família, à turma do 8° ano, à pedagoga, às professoras de Matemática e Ciências e

à própria pesquisadora, sendo o aluno nosso sujeito central de estudo.

4.2 PLANEJAMENTO PARA A INTERVENÇÃO

A estrutura do processo de intervenção teve como norteador a organização do

processo de ensino15, disposto por Núñez (2009) a partir das ideias de Vigotski,

Galperin e Leontiev. A proposta é definir os objetivos a serem alcançados, as

atividades a serem desenvolvidas e os critérios envolvidos em cada um desses

itens.

O primeiro elemento dessa organização são os objetivos do ensino que irão

orientar a seleção dos conteúdos, métodos de ensino e a forma de avaliação. Os

critérios para a escolha dos mesmos têm diferentes níveis, como sistema nacional,

estadual, municipal, de uma área de conhecimento, da disciplina em questão. A

escolha desses objetivos obedeceu ao currículo básico comum do Estado e o plano

de aula das professoras, bem como a definição dos conteúdos. Seguir as diretrizes

dos órgãos competentes é um dos princípios elencados por Talízina para definir os

objetivos gerais de uma disciplina (NÚÑEZ, 2009).

Junto ao grupo de pesquisa “Educação Matemática, História e Diversidades” do

IFES, buscamos transformá-los em objetivos de aprendizagem, conforme propõe

Núnez (2009, p. 158) “o professor deve converter os objetivos de ensino em

objetivos de aprendizagem, isto é, componentes da atividade de aprendizagem, de

forma tal que não se transformem em imposição para o aluno”. Para tanto, tivemos

como norte em nossos debates a seguinte questão: Qual o objetivo do ensino e

como o aluno aproveitará tal conhecimento?

No período do planejamento das professoras, dialogamos sobre os assuntos que

seriam abordados no terceiro semestre letivo. Como a pesquisa teve início quando

15

Os destaques quanto a estruturação do sistema didático foram realizados pela autora a fim de salientar os passos listados por Núñez (2009).

55

um assunto já havia sido abordado e as observações que estavam sendo feitas não

contemplavam a introdução do mesmo, decidimos pelo assunto que viria a seguir;

no caso de Matemática geometria plana, e em Ciências pele e seus anexos.

Por não saber o grau de comprometimento cognitivo do aluno, ressaltamos que na

literatura médica pessoas com Síndrome de Warkany são descritas com deficiência

intelectual, optamos pelo essencial do conteúdo e, se com o desenvolvimento das

tarefas percebêssemos que era possível ir além, o faríamos. Desse modo, os

objetivos dentro de geometria plana foram:

a) Nomear as formas geométricas, a fim de contextualizá-las em suas atividades

diárias;

b) Diferenciar as formas geométricas, para compreender a funcionalidade das

mesmas nos objetos utilizados no dia a dia;

c) Classificar algumas formas geométricas quanto ao ângulo e ao lado, para que

possa diferenciar as formas e a partir delas criar outras.

E em Ciências:

a) Identificar a pele e seus anexos, com a finalidade de conhecer melhor o corpo

humano.

b) Descrever a função da pele e seus anexos, com o intuito de reconhecer nos

estudos científicos a aplicação prática dos mesmos.

Tendo definidos os objetivos a serem alcançados e os conteúdos a serem

trabalhados, o próximo passo consistiu em realizar um diagnóstico do nível inicial

de conhecimento do aluno, segundo elemento proposto por Núñez (2009) para a

estruturação do ensino.

O diagnóstico inicial não teve a intenção de mostrar se o aluno tem pré-requisitos

para a compreensão do conteúdo que será trabalhado, e sim ter como ponto de

partida os conhecimentos por ele demonstrados. É durante o diagnóstico que o

professor pode avaliar o grau de desenvolvimento de uma habilidade, no nível Real

e Proximal, como descrito na Psicologia Histórico-Cultural (NÚÑEZ, 2009). Os

critérios elencados para a construção dessa atividade basearam-se em duas ideias:

56

condução do professor e resposta do aluno. A primeira deve permitir que o aluno

expresse suas ideias e concepções antes da assimilação do novo material; a

segunda leva em consideração três níveis de desenvolvimento:

a) domínio do conceito; b) o domínio do procedimento, que em relação ao conceito representa a

habilidade como a atividade a ser formada; c) os parâmetros qualitativos da ação (NÚÑEZ, 2009, p. 166).

Tal atividade foi realizada entre os dias 19 e 27 de outubro utilizando o diálogo com

base em perguntas sobre uma figura que representasse uma situação cotidiana, no

caso de Matemática, e de uma sequência de fotos para o ensino de Ciências

(APÊNDICES A e B). As perguntas de Ciências foram feitas de maneira ilustrada

para verificar como seria a compreensão do aluno, uma vez que ele não interpreta a

escrita (APÊNDICE C), já as perguntas de Matemática foram escritas e lidas pela

pesquisadora. A formulação das questões foi feita pela pesquisadora e as imagens

utilizadas foram retiradas de um site de busca. A análise do diagnóstico foi realizada

com base em parâmetros qualitativos da ação (APÊNDICE D).

Com as respostas do aluno foi estruturado o conteúdo, terceiro elemento para o

planejamento do ensino, que responde à “[...] seguinte pergunta: o que se ensinar?”

(NÚÑEZ, 2009, p.166). Para essa situação, é importante que se ofereça ao aluno

não só os conteúdos previstos, mas toda a bagagem necessária para sua formação,

assegurando que as habilidades exigidas pelas escolas sejam formadas, como

também a capacidade de aplicá-las em situações diversas de maneira crítica o que

foi assimilado. Ademais, se faz necessário gerenciar a disciplina para que não

aumente seu volume (NÚÑEZ, 2009; NÚÑEZ; RAMALHO; ALBINO, 2013).

As tarefas propostas são caminhos para estimular atitudes criativas, independência

cognoscitiva e formar qualidades da personalidade do aluno que estejam

relacionadas aos objetivos estabelecidos (NÚÑEZ, et al., 2013). Esse sistema de

tarefas foi elaborado tendo como base teórico-metodológica a Teoria das Ações

Mentais por Etapas e coletado das observações e entrevistas realizadas com o

sujeito da pesquisa, professoras e pedagoga.

57

4.3 ELABORAÇÃO PARA A INTERVENÇÃO

Após a submissão e aprovação da pesquisa no conselho de ética (ANEXO A),

iniciou-se e etapa de observação, que ocorreu no período de 21 de setembro a 8 de

outubro de 2015, seguindo um roteiro norteador (APÊNDICE E). O objetivo centrava-

se em conhecer sobre o cotidiano do aluno e suas relações com os colegas,

professor e seu comportamento perante o processo de ensino-aprendizagem. As

observações foram anotadas em um diário de campo e gravadas em áudio.

A fim de conhecer os participantes envolvidos na pesquisa, professoras de

Matemática, Ciências, pedagoga, família e sujeito da pesquisa, foram realizadas

entrevistas nos mês de outubro e novembro, todas registradas em gravações de

áudio e diário de campo.

Assim como na observação, havia um roteiro norteador preestabelecido para o

corpo pedagógico e discente, mas não fechado, de maneira que a entrevista fosse

realizada em forma de diálogo e que os entrevistados pudessem expressar sua

opinião sem uma condução das respostas (APÊNDICE F). Para a família não houve

um roteiro, sendo a indagação inicial a história de vida do aluno. Foi solicitado que

contassem como foi desde o nascimento até a idade atual, bem como as relações

familiares. Esperávamos identificar a reação da família ao saber da síndrome do

aluno, como lidou e lida com a situação, além de compreender a relação do mesmo

com os membros familiares. As entrevistas realizaram-se entre outubro e novembro

de 2015.

Paralelamente às entrevistas, iniciou-se a tarefa diagnóstica no mês de

outubro/2015, sucedida pelas etapas de execução e controle.

4.3.1 Etapas de Execução

Continuando a organização do ensino, o quarto elemento é a organização de

aprendizagem, segundo a Teoria das Ações Mentais por Etapas, e ocorreu entre

22 de novembro a 3 de dezembro de 2015. A base teórica foi discutida no capítulo

anterior, por isso ressaltaremos os aspectos metodológicos.

58

Primeiramente realizou-se a etapa da motivação. “As tarefas utilizadas na etapa de

motivação são organizadas de forma que apresentem situações problemas e que

despertem o interesse dos alunos pelo estudo do conteúdo” (NÚÑEZ, 2009, p. 186).

Por essa razão, utilizamos as observações para identificar os interesses de Filipe e

conectá-los às tarefas realizadas.

A escolha das tarefas para a formação da atividade é o quinto elemento na

organização do ensino. Com as observações em sala de aula sobre o interesse do

aluno foram elaboradas as tarefas a serem desenvolvidas, as quais estavam

relacionadas às situações concretas, conforme descreve Núñez (2009).

Assim, para incentivá-lo na disciplina de Matemática, propusemos observar como a

Matemática está presente na construção da escola, enquanto em Ciências

deveríamos partilhar histórias sobre as marcas que os machucados podem deixar na

nossa pele, cada um com exercícios específicos (Quadro 1).

Quadro 1- Tarefas motivacionais para introdução à geometria plana e pele e anexos.

Matemática

Vamos dar uma volta na escola e observar como a matemática está presente na construção dela? Nossas tarefas serão:

Encontrar na escola objetos com formatos geométricos. Representar as figuras encontradas na folha e colocar as medidas de cada uma. Agrupar as figuras semelhantes, a partir de um critério.

Para isso vamos precisar de prancheta, lápis, borracha e fita métrica.

Ciências Quando nos machucamos a pele pode ficar marcada por um tempo pequeno ou durante toda nossa vida. Toda marca tem uma história para ser contada. Vamos compartilhar algumas dessas histórias! Essas marcas que ficam na pele, como elas são formadas? Ou, se sumiram, explique por quê? Após compartilhar a história nossa tarefa será: Observar, com a lupa, a pele e tudo o que está nela. Observar as marcas, diferenças e semelhanças. Desenhar tudo o que nos chamar a atenção. Observar e desenhar por onde a lágrima e o suor saem. Observar e desenhar um pelo e um fio de cabelo.

Fonte: Produzido pela autora.

59

Em seguida, elaboramos juntos, pesquisadora e aluno, a Base Orientadora da Ação

seguindo os princípios de Galperin (2013a, 2013b, 2013e). Embora o terceiro tipo de

orientação seja a indicada para melhor assimilação e posterior generalização, por

motivos que serão discutidos no capítulo seguinte, houve uma oscilação entre o

segundo e o terceiro tipo (Quadro 2).

Quadro 2 - Base Orientadora da Ação – Matemática e Ciências

BOA – Matemática

Lado – parte de uma reta de um polígono. Ângulo – abertura entre duas retas que tem um ponto em comum.

1) É um polígono? a) Há retas?

b) As retas se tocam?

c) O formato da figura é fechado?

2) Classificar o polígono

a) Determinar a quantidade de lados. b) Dar o nome da forma da figura. c) Verificar quantos lados iguais. d) Medir os ângulos. e) Quantidade de ângulos iguais.

BOA - Ciências Para identificar a pele é preciso observar:

1) Se for a camada mais externa do corpo que está em contato com o meio ambiente. 2) A função da pele.

Identificar

16 os anexos:

1) Nascer na pele.

2) O anexo tem que proteger a pele.

Fonte: Produzido pela autora.

A etapa para a formação da ação no plano material em Matemática teve como tarefa

identificar os polígonos, e neles os lados, os ângulos, os vértices, e diferenciar os

16

É comum no ensino básico utilizar o termo identificar no sentido de apontar, sendo este o motivo pelo qual escolhemos adotá-lo.

Sim Não

Sim Não

Sim Não

Todos SIM é um

polígono

60

triângulos. Assim, os mesmos foram confeccionados em papelão pela pesquisadora,

bem como palavras relacionadas e levados para o aluno (Figura 3).

Figura 3 - Material produzido para primeira etapa da fase de execução da ação de geometria plana.

Fonte: Arquivo pessoal

Em Ciências foi proposto identificar a função do anexo ‘unha’ em relação à pele

utilizando um problema representado em uma gravura, além de identificar as

camadas da pele e os anexos nela contidos e suas funções (Figura 4). Com a

finalidade de formular uma tarefa na qual o aluno pudesse ter autonomia para

interpretar, houve a tentativa de representar os comandos por meio de gravuras, por

ele anteriormente criadas, e alternar com a escrita.

Entretanto, a primeira questão, por não corresponder com a BOA, não foi

desenvolvida e substituída por um experimento e uma observação ao microscópio.

Inicialmente apresentou-se um vídeo exibindo a formação da glândula sebácea e

seu desenvolvimento. Em seguida, realizou-se um experimento cujo objetivo foi

demonstrar a função do sebo, substância secretada pelas glândulas sebáceas para

a pele. Para isso, uma folha foi partida ao meio; na primeira metade derramou-se

óleo de cozinha e, em seguida, água; na segunda metade a água foi aplicada

diretamente na folha. Outros dois anexos também foram analisados, o cabelo e o

cílio. No microscópio, Filipe pôde comparar a estrutura de cada um. Com ajuda de

uma lupa, observou o posicionamento de cada um na pele, inclusive a própria pele.

61

Figura 4 - Tarefa proposta para primeira etapa da fase de execução da ação na disciplina de ciências

Etapa Materializada – Ciências

1) Ao abrir uma latinha corremos o risco de cortar o dedo, porém quando fazemos com a unha

esse risco diminui. Com ajuda da carta de orientação explique o que é a unha e a importância

dela.

2)

3) Como você identificou os ?

4) Qual a função dos ?

Fonte: Produzida pela autora

Na etapa da linguagem externa em Matemática foi utilizado o geoplano como

instrumento para representação dos diversos triângulos, ângulos, vértices e lados.

Em seguida, o aluno deveria representar em uma folha um desses triângulos feitos

no geoplano, sem que pudesse consultar a tarefa.

Nessa mesma etapa para Ciências, por meio do diálogo, o aluno discursou sobre os

anexos, as funções dos mesmos e os representou por meio de desenhos.

A etapa mental não foi contemplada em nenhuma das disciplinas.

Representação de Filipe para a palavra anexo.

Veja a figura e circule os anexos.

62

4.3.2 Controle da Execução

O quinto elemento para a organização do ensino é a escolha das tarefas de

controle e o controle do processo de aprendizagem. As tarefas para controle

foram pensadas com base em indicadores qualitativos da ação, como a forma da

ação, grau de generalização, grau de independência e grau de consciência,

conforme descrito por Núñez (2009). O significado de cada um deles foi discutido no

capítulo anterior.

Duas tarefas foram utilizadas para o conteúdo de geometria plana: o primeiro

consistiu em identificar e classificar os triângulos presentes em uma construção

representada na Figura 5, e o segundo foi identificar os polígonos em situações

diferentes, além de correlacionar o número de lados e vértices, lados e diagonais em

um jogo educativo on-line17.

Figura 5 - Tarefa para controle da etapa material e linguagem externa.

Fonte: http://www.casa-fortaleza.com/

Em Ciências não houve uma sequência diferenciada, sendo o controle das tarefas

realizadas com as próprias de cada etapa. A BOA foi também utilizada como auxílio

para controle, tanto nessa disciplina quanto naquela.

A avaliação da aprendizagem do aluno foi realizada em dois tempos. Primeiramente

elaborou-se uma prova escrita para cada uma das disciplinas, atendendo aos

objetivos almejados e a maneira como o conteúdo foi trabalhado, conforme as

Figuras 6 e 7.

17

Disponível em: <http://www.educacaodinamica.com.br/ed/views/game_educativo.php?id=14&jogo=Jogo%20dos%20Pol%C3%ADgonos>. Acesso em: out 2015.

63

Figura 6 - Avaliação escrita sobre geometria plana

1) Identifique nas figuras:

a. Lados: cor azul b. Vértices: cor vermelha c. Ângulos: cor preta d. Marque com T as figuras que são triláteras. e. Marque com Q as figuras que são quadriláteras.

2) Desenhe triângulos: a. Equilátero b. Escaleno c. Isósceles.

3) Desenhe um triângulo com um ângulo de: 90° b) 50° c) 130°

Qual desses triângulos é um triângulo retângulo? Por quê?

4) Veja a figura.

a) Escolha na figura um polígono, pinte. b) Por que essa figura é um polígono? c) Há triângulo isósceles? Qual?

Fonte: Produzido pela autora.

64

Figura 7 - Avaliação escrita sobre pele e anexos.

1) IDENTIFIQUE AS CAMADAS DA PELE E OS ANEXOS.

2) COMO IDENTIFICAR A PELE? ________________________________________________________________ 3) COMO IDENTIFICAR OS ANEXOS?

4) OBSERVE A FOTO: POR QUE A UNHA É IMPORTANTE PARA A PELE?

5) OBSERVE AS FIGURAS E RESPONDA:

A) COMO NOSSO CORPO SE PROTEGE DE FICAR MUITO FRIO OU QUENTE?

6) POR QUE É IMPORTANTE O ÓLEO NA NOSSA PELE?

Fonte: Produzido pela autora.

65

A aplicação da avaliação ocorreu na semana de prova final da escola, 19 e 22 de

novembro, e foi corrigida pelo próprio aluno e pela pesquisadora. Para esse fim, o

aluno utilizou a BOA e a pesquisadora como ajuda.

4.4 ANÁLISE DOS DADOS

A própria Teoria das Ações Mentais por Etapas contribui para analisar a assimilação

dos conteúdos por parte dos alunos, uma vez que o controle da execução da ação é

um norteador para a análise dos dados e, por esse motivo, foram utilizados como

critérios os parâmetros da qualidade da ação descritos por Galperin (2013b, 2013d,

2013e).

Para além dos conteúdos, a mudança de comportamento do Filipe frente às

situações escolares será analisada e discutida sob a perspectiva da abordagem

histórico-cultural.

66

5. APLICAÇÃO DA TEORIA DAS AÇÕES MENTAIS POR ETAPAS

O capítulo que segue foi dividido entre momentos de observação e de intervenção.

Nele foram explicitadas as etapas da Teoria das Ações Mentais nas disciplinas de

Matemática e Ciências em itens distintos, juntamente com as análises.

Ainda que sejam disciplinas distintas, os momentos eram muito próximos e, por isso,

acontecimentos de um influenciavam o desenvolvimento do outro. Esses episódios

serão tratados no Capítulo 6, que envolve o desenvolvimento das funções

superiores da atenção e memória.

5.1 UM POUCO DO QUE VIMOS

Adentramos a sala de aula e, embora quisesse parecer imperceptível, os alunos

cujos olhares eram curiosos sondavam a nova presença. À turma foi explicado que

estávamos estudando o processo de ensino das professoras e que poderiam ficar

tranquilos, pois não seriam avaliados; Filipe estava ciente da pesquisa. Ao

perceberem que a presença da pesquisadora não implicava em tomada de atitude

perante o comportamento dos mesmos, essa presença foi gradualmente ignorada e

invisibilizada por eles.

Durante duas semanas atentamos para os fatos que ocorriam. Essa observação não

era ingênua e despretensiosa, pelo contrário, procurava-se nela elementos que mais

tarde serviram como auxilio para o entendimento do processo de ensino e

aprendizagem de Filipe. Logo, esse período foi importante para conhecer o ambiente

no qual o aluno estava, a inter-relação dos alunos, destes para com as professoras e

vice-versa, como também os métodos de ensino utilizados por Antônia e Juliana

para o ensino de Matemática e Ciências, respectivamente.

Na turma, havia alunos com idade para estar no ensino médio, se tornando um dos

grupos rapidamente identificado, pois se sentam próximos uns aos outros no fundo

da sala. Do lado oposto, meninos cuja idade corresponde ao 8° ano sendo liderado

por um de seus colegas aparentemente um ano mais velho, porém mais novo que o

primeiro grupo. Na frente havia mais dois grupos, um formado por algumas meninas,

67

e outro por duas alunas, sendo uma surda e outra ouvinte, a qual se destaca nas

disciplinas de Ciências e Matemática. Havia alguns alunos que não estavam em

nenhum desses grupos, como Filipe; e todos conversavam entre si, embora alguns

de forma mais discreta. A exceção era a aluna surda, Denise, que conversava

basicamente com Nicole, a única na sala a buscar comunicação em libras.

Raramente outro aluno tentava gesticular algo para Denise.

Denise e Filipe são os dois alunos que apresentam necessidades educacionais

especiais18 - n.e.e – causadas pelas deficiências sensorial e intelectual. A primeira é

acompanhada em sala por uma intérprete, enquanto o segundo é atendido no

contraturno por uma professora especializada em educação inclusiva, Bel. O parcial

isolamento perante seus pares, a ausência de tarefas adaptadas, a ociosidade em

sala de aula são alguns dos elementos que compartilham.

Ambos sentam-se nas primeiras carteiras da sala, bem na frente da mesa do

professor, mas isso não significa que são atendidos. Denise é ensinada basicamente

pela intérprete que se desdobra para pensar em instrumentos de ensino para facilitar

a aprendizagem da aluna; pois não há tarefas adaptadas para a mesma. Filipe não

tem a mesma sorte (se é que assim podemos nos referir) uma vez que a

metodologia adotada pelas professoras não facilita o envolvimento do mesmo nas

aulas.

Juliana relatou que sua postura é tradicional. Extremamente consciente do próprio

ponto de vista diz que não se identifica com a educação especial e deixa a cargo

das professoras do contraturno e da intérprete a função de ensinar Ciências.

Ressalta que até poderia fazer algo, mas a escola, carente de recursos materiais e

humanos, dificulta a promoção de aulas que contemplem a diversidade; isso a

desestimula a buscar novos caminhos e confirma sua atitude tradicional.

Antônia, que já trabalhou com alunos deficientes intelectuais e com altas

habilidades, diz que se preocupa com os alunos com deficiência e, ao planejar suas

18

O termo é utilizado no documento de Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Está disponível no site https://inclusaoja.com.br/legislacao/ Acesso em: 20 abr. 2016.

68

aulas, pensa em como atender as especificidades desses alunos. Entretanto,

durante as duas semanas em que as observações ocorreram não foram visualizadas

tarefas planejadas, e sim pensadas no momento, além do conteúdo não

corresponder ao ministrado para o restante da turma. Inicialmente partem de uma

visão divergente sobre a presença do aluno em sala de aula e o planejamento de

tarefas específicas, todavia, a metodologia é semelhante, conforme registrado no

Diário de Bordo19.

As aulas repetem-se: professora entra, passa exercício do livro ou no quadro, senta

e espera que os alunos façam. Há cobranças verbais para o cumprimento da tarefa,

pouca, mas há. Normalmente o exercício é corrigido na aula seguinte, ainda que

seja no mesmo dia. Terminada a correção há nova bateria de exercícios (DIÁRIO DE

BORDO, p. 13-14).

A didática por elas adotada é resultado da prática e da reprodução do próprio

processo escolar; realidade esta que nos remete às lacunas deixadas pelos cursos

de licenciatura20. A ausência de uma metodologia se reflete no processo de ensino

e aprendizagem. Na sala de aula, quando os alunos terminavam as tarefas

propostas, ficavam desocupados e consequentemente conversavam entre si; tal

comportamento atrapalhava os demais colegas que não haviam terminado o dever.

Há de se destacar que os exercícios propostos não vislumbravam situações nas

quais os conhecimentos aprendidos poderiam ser aplicados em situações reais,

dessa maneira, os alunos faziam por fazer, mecanicamente.

O planejamento ainda se torna um desafio maior se considerarmos as condições

nas quais as professoras se encontravam. São muitos alunos e pouco suporte da

instituição; sozinhas devem diagnosticar, planejar atividades, conseguir os

instrumentos necessários, executar, avaliar os resultados e planejar novas ações

sobre esses resultados. Em outras profissões, tal profissional teria uma equipe e

material para suporte, diferente do que ocorre na educação. Dessa maneira, o

19

Todas as citações diretas feitas do Diário de Bordo serão registradas em itálico e fonte ‘Times New Roman’ para diferenciar do restante do texto. 20

Embora o assunto seja relevante e pertinente nesse momento não caberá discussão da contribuição dos mesmos para a formação de professores.

69

desânimo atinge o profissional e o que se percebe é a predominância do “cuspe e

giz”. Portanto, tarefas direcionadas às especificidades de Filipe não foram

realizadas.

Ainda que o cenário entre as duas disciplinas seja próximo, a postura dele perante

ambas as professoras é distinta. Enquanto em Ciências ele parece pensar em outras

coisas enquanto rói unha, em Matemática tenta participar - ainda que timidamente -

quando a professora faz perguntas à turma. Filipe inclusive muda a postura ao se

sentar, ficando mais ereto e olhando diretamente para a professora Antônia.

Não é possível afirmar os motivos para adotar tal conduta, mas acreditamos que a

exaltação da figura do professor, nesse caso específico da professora Antônia, é um

dos fatores que influenciam Filipe, e todos os outros alunos, a se comportar de

maneira diferenciada na disciplina de Matemática. Antônia é carismática e acessível

aos alunos, conquista, na maioria das vezes, todas as turmas nas quais trabalha.

Porém, não é o método utilizado que é um diferencial e sim seu próprio jeito de ser.

A respeito dessa preferência, Vigotski (2004, p. 453) afirma:

O problema é antes fazer os alunos ficarem inspirados pelo mesmo motivo. [...] até mesmo quando a inspiração atingia a consciência dos alunos nem sempre tinha o endereço certo e se transformava em adoração ao professor, que assumia formas profundamente antipedagógicas.

A motivação a ser suscitada é do próprio aluno e não conferir à mesma ao professor,

pois quando o primeiro caso acontece observa-se mais efetividade na assimilação

da atividade (NÚÑEZ, 2009). E, se esse professor por algum motivo é afastado de

suas atividades? Juliana assumiu a turma em agosto daquele ano, e por isso está no

início da relação com a turma; consequentemente, a afinidade com Filipe ainda é

algo que está sendo trabalhada, um desafio como ela mesma disse (DIÁRIO DE

BORDO).

Motivado interna ou externamente, Filipe se depara com um dilema, pois ainda que

se sinta motivado, raramente há atividades a serem desenvolvidas. Quando têm,

duas situações são observadas: a primeira refere-se às atividades desenvolvidas

que requerem habilidades já adquiridas pelo aluno e por isso estão na ZDR.

70

Comumente é dado ao aluno tarefas que se restringem ao plano material, limitando-

o a esse plano e, desse modo dificultam a formação de uma imagem abstrata. Para

os alunos com deficiência intelectual, como Filipe, é reforçar sua condição, visto que

possui pouca capacidade para o pensamento abstrato (VIGOTSKI, 2004).

A segunda situação conta com atividades que não são resolvidas pelo aluno, ainda

que tenha controle da professora. No caso de Filipe, são trabalhadas atividades que

requerem pensamento abstrato, sendo ignoradas as tarefas que ele desenvolve com

a ajuda de seus pares, com a orientação do professor ou com apoio de algum

instrumento, como a ficha de orientação; ou seja, as tarefas não são propostas

utilizando a zona de desenvolvimento iminente.

Entre essas situações, o resultado foi um aluno sem tarefas a realizar, ocioso na

maior parte do tempo e por isso ansioso, ato demonstrado pelo hábito de roer

unhas. Quando disposto a executar as tarefas, a leitura e a escrita tornam-se as

primeiras barreiras que afastam Filipe do processo de aprendizagem, e raramente

tem atenção dos pares e das professoras. De certa forma, ele parece apreciar tal

situação, pois sabe que ao fechar o livro e o caderno dificilmente será importunado e

poderá jogar no celular.

Há de ser pensar sob a perspectiva histórico-cultural de que a formação da

personalidade é parte do processo da assimilação do próprio aluno acerca do

comportamento humano (VIGOTSKI, 2004; 2007). Abster-se das atividades não é

uma característica por ele inventada e sim aprendida no decorrer dos

acontecimentos da sua vida, principalmente a escolar. Outras características típicas

da conduta de um adolescente também foram observadas: desconcentra-se com

facilidade do que está sendo ensinado, prefere jogos às tarefas escolares, afronta a

autoridade do professor, faz pirraça quando não atendido em suas solicitações para

sair ao banheiro e beber água. Há de se destacar que ele pede para sair com muita

frequência, embora não tenha problemas em relação aos sistemas urinário e

digestório. Bem como seus colegas, também quer impor sua vontade imediatista e

seu comportamento é comum aos seus pares, não representando características

específicas da sua condição genética. Todavia, seu desenvolvimento não é visto da

71

mesma forma, como uma internalização do ambiente em que está e no qual esteve

nos anos anteriores, mas sim atrelado à trissomia.

Findado o período de observação, iniciou-se a intervenção, que teve como primeiro

passo a tarefa diagnóstica. No primeiro dia, ao conversar com Filipe, foi explicado

novamente como seria a pesquisa e perguntado se ainda aceitava participar,

respondendo positivamente.

As tentativas de aproximação com ele foram marcadas por assuntos informais, por

exemplo, “Como foi seu final de semana?” ou “ O que fez no final de semana?” e as

respostas curtas, sem continuidade “Foi bom” ou “Não fiz nada!”. Parecia estar

tímido com a presença de um adulto ao lado, diferenciando-o dos demais colegas. A

distância era mantida pelo seu costume de se portar na sala de aula, isto é, pediu

para que não ocupasse a carteira ao lado dele, pois gostava de colocar a mochila

nela.

Ao perceber que essa presença causava certo incômodo, a atitude foi sentar entre

ele e a aluna que mais se destacava nas disciplinas. Quando as professoras

passavam exercícios, a ajuda era direcionada à aluna, que aceitou e solicitou que tal

postura continuasse. Em poucas horas, Filipe aceitou a aproximação de maneira

discreta, pois ainda sentia-se tímido, pedindo para que fizéssemos as atividades na

biblioteca. Logo, acatando seu pedido fomos para um local em que se sentiria mais

confortável, como a biblioteca e o laboratório de Ciências e Matemática.

5.2. O DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES NA DISCIPLINA MATEMÁTICA

Peço licença ao leitor para escrever na primeira pessoa este tópico, uma vez que

expressarei minhas observações acerca das minhas próprias percepções sobre o

processo de intervenção nas disciplinas de Matemática e Ciências; sendo esta

relatada no próximo item.

A intervenção apresentou-se como uma via de mão dupla, na qual tanto o sujeito

pesquisado quanto eu sofremos a ação. É preciso lembrar que minha formação

inicial foi em Ciências Biológicas, ocorrida há exatos dez anos. Os conhecimentos

72

sobre polígonos restringem-se ao ensino fundamental e médio, os quais me

lembrava superficialmente.

No início, receei pesquisar algo que não dominava, e durante o processo aprendi

que sim, isso faz diferença, mas ainda que haja domínio do conteúdo, o mesmo não

é garantia de facilidade em planejar utilizando a Teoria das Ações Mentais por

Etapas.

Durante as observações, tornou-se ainda mais notório que o conteúdo ministrado

pelo professor permanece em segundo plano em relação a sua didática. Tal fato foi

corroborado com o processo de intervenção, que demonstrou que a maneira de

ensinar o aluno se sobressai ao conteúdo desse processo. Como, então, planejar

uma aula de maneira que o aluno se sinta envolvido a ponto de desejar o domínio do

conteúdo?

Para a disciplina de Matemática foi mais natural pensar em exercícios que

contemplassem as etapas da teoria proposta por Galperin, principalmente na etapa

materializada. Acredito que tal facilidade tenha decorrido da representação diária

dos objetos estudados e da aplicação dos mesmos nos jogos pelos quais Filipe se

interessava. Assim, me senti mais confortável do que supunha.

5.2.1 Sobre os conhecimentos matemáticos prévios

Ao ser entrevistado, Filipe disse gostar de jogos de sobrevivência, labirinto, carros,

casas, estratégia e ajuda ao próximo. Embora não conseguimos unir todos os

interesses dele em uma única figura, a imagem de uma cidade, com casas, escola,

supermercado, trânsito foi o bastante para realizarmos o exercício (APÊNDICE A).

Nessa conversa, identificamos que o reconhecimento das figuras quadrado,

triângulo, retângulo e círculo estão na zona de desenvolvimento real, representando

o resultado de um ciclo já concluído (VIGOTSKI, 2004). Ao apontar o retângulo

presente em diversas gravuras, como faixa de pedestre, placas, baú do caminhão,

escada, janelas, observamos o grau de generalização, parâmetro da qualidade da

ação descrito por Galperin (2013e). Tal parâmetro pode também ser constatado na

73

relação de outras formas do exercício n° 2 (APÊNDICE A) às coisas representadas

na figura do trânsito. Contudo, essa generalização ocorreu baseada em um

pseudoconceito, uma vez que ignorou a identificação das figuras a partir dos

elementos essenciais, como quantidade e tamanho dos lados.

Quanto à diferenciação entre as formas, Filipe utilizou como critérios o tamanho da

figura - maiores, menores, mais finos - e quanto às características da mesma, como,

por exemplo, ao dizer que o quadrado possui lados iguais, enquanto no retângulo

tem altura diferente da largura. Agrupou estes dois com o losango, embora não visse

semelhança destes com o trapézio e o paralelogramo. Quanto aos triângulos, os

diferenciou pelos ângulos que são formados, mas disse que os valores dos mesmos

não podem mudar. Isso porque memorizou que o valor dos ângulos devem ser todos

60° ou três diferentes, cujos valores são de 90°, 30°, 60°. A conversa com Filipe

mostrou que há conceitos ainda não formados e que estão ao alcance do seu

desenvolvimento, enquanto outros devem ser trabalhados, pois novamente foram

assimilados como pseudoconceitos (VIGOTSKI, 2007).

A palavra polígono ainda não fazia parte do seu vocabulário, tão pouco os

elementos essenciais e necessários – figura fechada, com linhas retas e que se

encontram - para que uma figura seja assim classificada, resultado também

encontrado na pesquisa de Jesus (2014).

Tal resultado foi condizente com o ensinado no início do ano letivo, quando Antônia

trabalhou com os alunos a identificação e a classificação das figuras geométricas,

mas sem se referir a elas como polígonos; tão pouco trabalhou com os discentes o

conceito dessa figura. Diante desse diagnóstico, prosseguimos com as atividades de

motivação.

5.2.2 Singularidade da motivação – parte I

Observar a escola e tudo o que há nela foi a tarefa proposta para motivar o aluno

com relação às formas geométricas. Munidos de fita métrica, lápis, borracha, régua e

prancheta saímos para o pátio da escola. Filipe rapidamente apontou algumas

figuras representadas nos objetos, a mesa era um retângulo, os azulejos da cantina

74

eram quadrados, a tampa da lixeira a metade de um círculo, a grade um losango, os

quadrados poderiam ser dois triângulos, tudo observado pelo aluno. Escolhemos

algumas dessas figuras para desenhar e escrever suas medidas.

Essa tarefa não o motivou como o esperado, sendo outro o elemento de motivação:

utilizar os instrumentos de medida e representar objetos e suas características por

escrito, uma vez que a habilidade de escrever por ele ainda não é dominada. Usar a

fita métrica e régua para medir e não somente fazer linhas, compreender a

contagem dos números decimais e a diferença entre unidades de medida, como

metro e centímetro e registrar, eram problemas reais para Filipe.

Sobre a motivação, Núñez (2009) ressalta que a aprendizagem será potencializada

quando a motivação interna for a estimuladora da busca do conhecimento, ou seja,

“As necessidades estimulam a atividade e a orientam, visto que o sujeito tem a

consciência delas” (NÚÑEZ, 2009, p. 80). Embora o que motivou Filipe não fosse o

objetivo de ensino, para ele tornou-se o objetivo de aprendizagem. Essas

necessidades que perpassaram os objetivos iniciais foram trabalhadas junto àqueles

preestabelecidos. Logo, Filipe foi estimulado a escrever, medir e comparar. Diante

do que foi realizado, observamos que ele não tinha noção de medidas, conversão

entre elas, representação do processo de soma, além de confundir largura, diagonal,

tamanho, comprimento e altura. Quanto à escrita, ao soletrar sílabas da palavra

‘retângulo’, identificou algumas letras, mostrando dificuldade em relacionar o som â,

n, g com a escrita das mesmas (Figura 8).

Figura 8 – Fase motivacional - matemática

Fonte Arquivo pessoal

75

Nessa atividade, Filipe forneceu pistas de que confundia lado e ângulo e, embora a

etapa motivacional não contemple nenhum tipo de ação, tão pouco a introdução de

novo assuntos (NÚÑEZ, 2009), foi necessário um novo diagnóstico para que

pudéssemos entender o que o aluno sabia.

Na aula seguinte, na biblioteca, retomamos a atividade diagnóstica. Dessa vez, sem

a representação material, pedimos ao aluno que desenhasse figuras com:

1) três lados;

2) três lados, mas diferente da primeira;

3) três lados diferentes;

4) quatro lados iguais;

5) quatro lados, sendo dois iguais e outros dois iguais, mas diferentes entre si.

6) dois lados iguais e dois lados diferentes;

7) cinco lados;

Filipe diferenciou figuras com três e quatro e cinco lados, embora não tenha

conseguido reproduzi-las. A dificuldade do aluno em representar um triângulo

equilátero é decorrente da não identificação e diferenciação de lados e ângulos

(Figura 9, n° 3), confirmada em sua explicação, ao apontar os ângulos como lados e

os vértices como ângulos.

É interessante ressaltar que na pergunta de n° 5, “quatro lados sendo dois iguais e

outros dois iguais, mas diferentes entre si.”, o aluno respondeu que seria uma figura

retangular, demonstrando raciocínio lógico sobre a mesma. Em contrapartida,

embora tenha indicado corretamente o ‘lado’ de um livro, objeto material, quando o

comparou ao ‘lado’ de um retângulo desenhado ele novamente indicou na figura o

ângulo. Questionado se a relação que fez correspondia, o mesmo afirmou que não,

mas não soube dizer o porquê.

A fim de averiguar se com ajuda ele era capaz de fazer essa relação, duas canetas

iguais foram unidas pelas pontas formando um ângulo reto no canto do livro. As

canetas eram abertas e fechadas para que ele visualizasse a abertura do ângulo.

Em seguida, novamente se mostrava a figura do retângulo e se solicitava que

76

identificasse ângulo e lado, dessa vez, respondeu com sucesso. Assim, “O que a

criança se revela em condições de fazer com a ajuda de um adulto nos indica a zona

de seu desenvolvimento imediato” sobre a qual o ensino deve agir, garantindo assim

uma boa aprendizagem (VIGOTSKI, 2004, p. 480).

Embora a atividade proposta para despertar o entusiasmo de Filipe não apresentou

um resultado pleno, cumpriu naquele momento o papel de preparar o aluno para a

assimilação de novos conhecimentos, como assinala Núñez (2009).

Figura 9 - Representação das figuras geométricas

Fonte: Arquivo pessoal

5

3

6

7 1

4

2

3

Indicação dos

ângulos

77

5.2.3 Sobre a orientação à atividade Matemática

Na etapa de formação da base orientadora da ação explicou-se ao aluno os

objetivos de ensino e sobre a própria ficha orientadora, esquematizados por Filipe

conforme figura. (Figura 10).

Como é possível observar, a escrita é uma habilidade em formação para Filipe, por

isso o aluno criou uma simbologia própria para representar as instruções

necessárias para realizar a ação. Porém, na aula seguinte não se recordou do que

havia estabelecido e foi necessário formular nova ficha.

Figura 10 - Representação por Filipe da BOA de matemática

Fonte: Arquivo pessoal

Novamente Filipe criou simbologia própria para compreender as instruções contidas

na BOA, porém, dessa vez, as mesmas foram escritas pela pesquisadora com o

intuito de aproximar o aluno da escrita, estimulá-lo quanto à leitura para que

pudesse, por meio da repetição, memorizar o que estava escrito. (figura 11).

Polígono é uma figura fechada.

Ver a quantidade de lados.

Ver a quantidade de ângulos

78

Na nova ficha de orientação foram acrescentadas novas informações sobre ângulo e

lado, detalhamento para conceito de polígonos e classificação dos mesmos, mas

nenhum tipo de assimilação, pois nessa etapa não se visa a ação (GALPERIN,

2013b).

Figura 11 - Nova ficha formulada pela pesquisadora e aluno.

Fonte: Produzido pela autora

Seguindo as ideias de Galperin (2013a, 2013b), buscamos elaborar a BOA do tipo

III, a qual tem como elementos a elaboração em conjunto, informações essenciais

para a área estudada e não para um assunto específico, e que não fosse um

controle (interno e externo) da atividade a ser desenvolvida.

A construção da ficha de orientação demandou de Filipe grande energia para se

concentrar. Diferente da sala de aula, não demonstrou tédio ou ansiedade, mas

expressou cansaço nos levando a considerar a “lei psicológica da disposição, a qual

enuncia que o aluno, para estudar efetivamente, tem de estar preparado tanto no

plano psicológico como no fisiológico” (NÚÑEZ, 2009, p. 99). Assim, finalizamos o

momento e aproveitamos o tempo oportuno do recreio para ser o intervalo entre a

fase da orientação e a materializada.

79

5.2.4 Desenvolvimento da Etapa Material/ Materializada em Matemática

Ao retornar do recreio, inicia-se a fase materializada. A atividade consistia em

apontar as figuras que representavam polígonos triláteros e quadriláteros, além de

classificá-los quanto aos lados (Figura 12).

Figura 12 - Resultado da fase material em matemática

Fonte: Arquivo pessoal

A habilidade em identificar e nomear as figuras geométricas é algo que se encontra

na ZDI, uma vez que, para identificar as figuras segundo as características

essenciais, foi necessário utilizar a BOA como mediadora. “[...] a BOA materializada

situa-se entre o objeto e o sujeito, tendo como função ser um mediador nesse

processo” (NÚÑEZ, 2009, p. 108).

Quanto à classificação, Filipe diferenciou figuras triláteras e quadriláteras baseado

na quantidade de lados, porém ainda confundia lado com ângulo. Também não

soube dizer os nomes de algumas formas, e por isso ajustamos a BOA com o item

“DAR O NOME DA FORMA DA FIGURA” (Figura 11).

80

Há de se destacar que durante a realização da atividade Filipe solicitou ajuda para

saber se escreveu corretamente, mostrando que está ciente que precisa ser

controlado nessa ação, e que a motivação para superar tal problema é interna, ou

seja, cognitiva (NÚNEZ, 2009).

Motivação essa que declinou vertiginosamente já que durante o processo do estudo

ele bocejou, apresentou-se preguiçoso e até tedioso, indicando que a etapa

motivacional não foi eficaz e tão pouco mantida. O problema a ser resolvido na

etapa materializada mostrou-se de pouca complexidade, e por Filipe ter identificado

e classificado com facilidade, embora não tenha utilizado das características

essenciais, mostrou que a tarefa poderia ter sido mais bem planejada. Acerca da

motivação e situação-problema, Núñez (2009, p. 99) diz que:

Um dos meios que suscita a motivação interna nos alunos é a aprendizagem por problemas ou por situações problemas, nas quais a formação de conceitos se vincula diretamente à sua experiência, a seu dia-a-dia, a contextos da criação científica, tecnológica e social. Os alunos ficam mais motivados ao constatarem a utilidade prática de seus novos conhecimentos na atividade produtiva ou criativa.

A reflexão acima exemplifica a empolgação remanescente em Filipe, que assim se

mostrava enquanto utilizava a régua para medir os lados e o cronômetro para

marcar o tempo de aula. No final do dia ele levou a BOA para casa e não trouxe

mais nas aulas seguintes.

Na aula seguinte era necessário saber o quanto o aluno se recordava sobre a etapa

materializada; esse resgate vai ao encontro da proposta da psicologia histórico-

cultural para a formação da memória, função psíquica superior. Foi dada uma breve

tarefa , apresentadas na Figura 13 pelos exercícios 1 e 2.

Na primeira atividade, Filipe sinalizou que todas as figuras eram polígonos, alegando

que todas são fechadas. Ao ser questionado sobre os critérios de classificação,

Filipe utiliza a BOA por ele produzida e o auxílio da pesquisadora, e percebe que o

coração não se enquadrava no conceito, retirando o mesmo da categoria polígono.

Logo, a habilidade de identificar figuras geométricas permanece na ZDI, uma vez

81

que necessita de controle para realizar a ação (GALPERIN, 2013b; VIGOTSKI,

2004, 2007).

Os conceitos de lado e ângulo ainda se mostram duvidosos, pois na questão 2 Filipe

confundiu ambos. Por esse motivo, na terceira questão pedimos a ele que

desenhasse um triângulo com três lados iguais, dois lados iguais, e com todos os

lados diferentes. Ele realizou a tarefa com sucesso, sem necessitar de controle, e

daí em diante indicou corretamente os lados de uma figura.

Figura 13 - Nova base orientadora da ação/ tarefa

Fonte: Arquivo pessoal

No mesmo item 3 foi ensinado sobre a classificação quanto aos lados do triângulo e

Filipe relacionou cada um dos triângulos a um reino pertencente a um jogo on-line.

As tentativas de estudar mais sobre triângulos foram paulatinamente engolidas pelas

histórias e as preocupações apresentadas por ele. Embora não houvesse fortes

estímulos concorrentes à vista, a vida virtual de Filipe é trazida à tona e desvia a

atenção dele. Entre castelos, reinos amigos e inimigos, buscamos no exercício de

‘tarefa para controle’ (Figura 14) atentar para a assimilação de lados e os tipos de

triângulos.

82

Figura 14 - Tarefa para controle - matemática

Fonte: Arquivo pessoal

Inicialmente, Filipe afirmou haver uma figura, triângulo, porém sublinhou apenas dois

lados. Ao ser questionado sobre a quantidade de lados indicou o terceiro, mostrando

que assimilou o que é um ‘lado’. Ao se corrigir, observou a figura e encontrou outros

triângulos, logo utilizando os parâmetros forma da ação, grau de generalização, grau

de independência e grau de consciência (GALPERIN, 2013b; NÚNEZ, 2009),

observamos que o aluno encontra-se no plano materializado, generaliza, embora

não de maneira independente e tem consciência ao explicar o motivo pelo qual o

triângulo não é formado por duas retas. O mesmo ainda não aconteceu para a

classificação dos triângulos, que precisou da orientação da pesquisadora e da ficha

orientadora.

Ao final da etapa materializada, concluímos que Filipe está na iminência em

assimilar o conceito de polígono e ângulos. Dentro do grupo das triláteras, nomeia a

figura como triângulo e a classifica quanto aos lados, contudo precisa de controle

para se lembrar dos nomes de cada tipo. Quanto à habilidade em diferenciar figuras

triláteras e quadriláteras pela quantidade de lados é uma habilidade por ele

assimilada. Filipe mostrou que o objeto da ação não precisava estar presente,

83

indicando a possibilidade da próxima etapa. Diante do exposto, enfatizamos que “A

ação se liberta desta dependência direta dos objetos somente na seguinte etapa,

quando passa ao plano de linguagem” (GALPERIN, 2013b).

Na segunda etapa, ao utilizar o geoplano, Filipe deveria representar cada um dos

triângulos e nomeá-los (Figura 15).

Figura 15 - Tarefa no Geoplano

Fonte: Arquivo pessoal

Por ainda se encontrar desenvolvendo as habilidades de leitura e escrita, as

palavras necessárias para executar o exercício ficaram à disposição do aluno. Filipe

apontou os lados de cada triângulo por ele representado e quantificou cada um pela

quantidade de pregos presentes. Entretanto, quando indicou vértice e ângulo, ainda

confundiu ambos. Precisou de ajuda para diferenciar os triângulos, embora tenha

acertado um deles (Figura 15).

Aos poucos, Filipe se apresentava tedioso e foi necessário resgatar sua motivação

para que pudesse voltar a atenção para o conteúdo, recorrendo à história por ele

inventada sobre castelos, reinos e lutas medievais. Ainda assim havia algum

estímulo, não material e nem presente, que despertava mais a atenção do aluno.

Por isso, nesse dia nos recorremos a um jogo on-line, o qual foi atrativo para o aluno

pelo simples fato de ser no computador e que tinha como foco lados e ângulos de

uma figura.

84

Filipe leu vagarosamente os comandos e respondeu a atividade com empolgação,

pois estava manuseando o computador e a internet. Embora o conteúdo para o

aluno tenha sido segundo plano, ele concluiu que a quantidade de ângulos de uma

figura é a mesma quantidade de lados.

No dia seguinte, novamente o geoplano foi utilizado, e sem controle ou ajuda da

ficha indicou lados, ângulos e vértice de maneira correta. Somente na classificação

dos triângulos ele ainda demonstrou necessidade de auxílio, pois não se lembrou

dos nomes, mas sabia que a diferença está em relação ao tamanho dos lados.

Também se mostrou mais disposto à tarefa, sem tédio como na aula anterior.

O ponto alto dessa tarefa foi representado por Filipe quando fez um triângulo com

base em uma imagem mental e não do material concreto dado, pois como dito

anteriormente, às pessoas com deficiência intelectual restringe-se a atividade que

viabiliza a formação de uma imagem abstrata. Essa tarefa, embora simplória, foi um

passo nessa direção. Nesse sentido, pode-se afirmar que:

[...] o sistema de ensino baseado somente no concreto – um sistema que elimina do ensino tudo aquilo que está associado ao pensamento abstrato – falha em ajudar as crianças retardadas a superar as suas deficiências inatas, além de reforçar essas deficiências, acostumando as crianças exclusivamente ao pensamento concreto e suprindo, assim, os rudimentos de qualquer pensamento abstrato que essas crianças ainda possam ter. Precisamente porque as crianças retardadas, quando deixadas a si mesmas, nunca atingem formas bem elaboradas de pensamento abstrato, é que a escola deveria fazer esforço para empurrá-las nessa direção, para desenvolver nelas o que está intrinsecamente faltando no seu próprio desenvolvimento (VIGOTSKI, 2007, p. 101-102).

Por não apresentar requisitos estruturais e humanos, a escola tem limitado o

atendimento aos alunos com deficiência, e responsabiliza o sujeito pela sua própria

condição. A ausência do esforço para promover o desenvolvimento do aluno

também é refletida nas avaliações. Mesmo sabendo que o aluno não havia atingido

os objetivos de ensino, por questões institucionais, deveríamos avaliar o aluno

quanto à sua aprendizagem e assim seguimos para o controle do processo.

Na prova escrita (Figura 16), identificou corretamente lados, ângulos e vértices de

um triângulo. Também indicou corretamente quais figuras eram triláteras e

quadriláteras. Confundiu-se ao classificar os triângulos quanto aos lados e

85

parcialmente na definição de polígonos. O resultado apresentado foi condizente a

todo processo realizado, como também à orientação dada desde o início da ação.

Sobre a qualidade da ação, Galperin (2013a, 2013e) é categórico ao afirmar que a

formação da imagem depende principalmente da orientação dada. Mas é preciso

considerar que a etapa da linguagem não pode ser completada, haja vista o

calendário escolar e a necessidade de cumpri-lo.

Há de se destacar que a avaliação escrita não é o ponto final, mesmo na etapa da

linguagem, pois o processo de aprendizagem é em espiral (MARTINS, 2013d).

Dessa forma, a avaliação corrigida foi entregue a Filipe para que ele pudesse refletir

sobre erros e acertos.

Figura 16: Avalição escrita de matemática

86

Fonte: Arquivo pessoal

87

A respeito desse controle, Núñez (2009, p. 202) diz que devem ser:

[...] corrigidos imediatamente e devolvidos aos alunos, que devem avaliar os comentários feitos pelo professor e realizar uma nova reflexão, por escrito, das causas de seus erros, assinalando as idéias erradas que ainda persistem e as não consideradas. Essa reflexão é avaliada pelo professor com o objetivo de motivar o aluno, para que aprenda sobre a base de seus erros

Assim que corrigida a avaliação, esta foi entregue a Filipe e os comentários feitos

pessoalmente, para facilitar a compreensão. O aluno, com auxílio da BOA, refletiu e

consertou os erros. Quando finalizou a correção,

[...] mostrou para a pedagoga sua façanha. “Eu fiz tudo sozinho!”, dizia feliz e

orgulhoso de si mesmo. Era perguntado a ele os itens da prova de maneira aleatória

e ele respondia, com os olhos brilhantes, e de maneira correta! Sim, ele acertou

polígonos, classificação dos triângulos quanto aos lados, o que eram vértices,

ângulos e lados! Estava radiante, confiante no próprio aprendizado. A prova foi

pontual, mas o processo avaliativo não. Filipe mostrou durante a correção da prova

que sim, ele sabia! (DIÁRIO DE BORDO).

Para além da Matemática é importante relatar a postura de Filipe durante a

avaliação, compenetrada e comprometida. Demostrou seriedade no processo ao

tentar ler e responder cada questão, embora a leitura e a escrita ainda fossem

entraves que estavam sendo superados. Superação essa verificada quando durante

a prova pediu ajuda para compreender alguns comandos, mesmo estando próximo

aos seus colegas, timidez vencida!

Paralelo a toda essa caminhada pela Matemática acontecia o processo na disciplina

de Ciências. Não menos complexo, se não fosse pela didática. Porém, poderia ter

sido analisado juntamente a Matemática, pois eventos discutidos no capítulo da

formação das funções psicológicas superiores ocorreram entre uma e outra

disciplina. Assim, seguimos com o estudo sobre pele e anexos realizado com base

na Teoria das Ações Mentais Por Etapas.

88

5.3 O DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES NA DISCIPLINA DE CIÊNCIAS

Antes de iniciarmos o capítulo, um breve comentário novamente sobre minhas

percepções. Por ser professora de Ciências, havia uma expectativa natural de que

não houvesse dificuldade em planejar as aulas de intervenção, contrapondo os

fatos.

Ao planejar sob a Teoria das Ações Mentais por Etapas foi necessário olhar sob um

novo ponto de vista e, com isso, o meu saber sobre “Pele e anexos” foi por mim

questionado. Não pelo conteúdo em si, mas porque não havia pensado nele da

maneira proposta pela teoria. Desse modo, me senti desestruturada e foi nesse

momento que pude questionar os objetivos propostos, e ouvir o que Filipe tinha a

dizer.

Ao resgatar o sujeito Allana, não só a pesquisadora, mas a professora, o ser

humano, foi que pude praticar a empatia e assim construir junto ao aluno tarefas que

atendessem suas necessidades. Não foi fácil essa perda de sentidos, todavia, foi a

partir dela que pude alcançar as metas propostas.

Esse processo me mostrou que o domínio do conteúdo, embora seja importante,

não é determinante para o sucesso de um planejamento baseado na teoria proposta

por Galperin; o conhecimento desta é tão importante quanto do conteúdo.

5.3.1 Sobre os conhecimentos prévios em Ciências

A curiosidade de Filipe foi despertada inicialmente por ver que utilizaríamos o

computador na intervenção. Seu interesse súbito não foi pelo que faríamos e sim

pelo que sabia fazer, pediu para mostrar os jogos que gostava e descreveu o que

fazia em cada um deles. Foi explicado que não havia internet, era somente o

computador e por isso não tínhamos acesso a jogos on-line. Ele insistiu e abriu uma

página que mostrou não haver conexão. Nessa página offline é possível brincar com

um pequeno dragão que pula obstáculos e isso foi Filipe quem ensinou. Aos poucos

conduzimos o diálogo para a tarefa a ser feita.

89

Assim que o arquivo abriu, ele afirmou já ter visto a figura em pesquisas sobre peixe

e que era o mesmo que as pessoas possuem no aquário. Rapidamente disparou a

falar o que via; a rã era venenosa, pois o olho era vermelho, identificou-se com o

anfíbio dizendo que sempre quis ser um, assim como o jacaré, o cisne, cachorro...,

continuou a dizer enquanto olhava todos os slides. Como se pode perceber,

atropelamos as informações para mostrar que assim aconteceu a primeira tarefa. Foi

importante deixar Filipe expressar-se, pois as ideias prévias vieram sem limitações,

sem respostas, já que não havia perguntas.

O diagnóstico inicial é importante para a introdução de conceitos científicos,

possuindo uma relação dinâmica entre eles, já que,

Os conceitos espontâneos constituem a base dos conceitos científicos, no entanto, estes, quando são assimilados, permitem a formação de outros conceitos espontâneos com possibilidades de uso consciente e deliberado. O desenvolvimento de conceitos científicos depende e se constroem do conjunto de conceitos espontâneos de que o aluno dispõe como um processo de assimilação/apropriação. Daí a importância do diagnóstico do nível de desenvolvimento do conceito espontâneo (idéias prévias) e do nível de desenvolvimento da habilidade na formação de conceitos científicos (NÚÑEZ, 2009, p. 48).

Os conceitos espontâneos podem ser observados na justificativa de Filipe ao dizer

que a rã é venenosa devido à coloração do olho. Outros conceitos foram trazidos,

mas dessa vez ordenados pelos comandos do exercício entregue (APÊNDICE C), o

qual deveria interpretar para depois realizar a tarefa exposta no computador nos dos

slides a serem observados (APÊNDICE B). Embora ele tenha interpretado a folha de

comandos da atividade, não relacionou que deveria fazer o mesmo com as

ilustrações expostas e, por isso, o diálogo foi fundamental nesse momento.

Por exemplo, na segunda gravura (APÊNDICE C), ele interpreta que deve dizer o

nome dos animais que estão sombreados e não relaciona que deve fazer isso com

os animais que aparecem nos slides. Porém, quando conduzido ele faz essa

relação. Assim prosseguiu para a maioria dos comandos (DIÁRIO DE BORDO).

Assim como no diagnóstico realizado em Matemática, leitura, escrita e interpretação

não são habilidades adquiridas por Filipe. A compreensão do que deve ser feito no

90

exercício também é um item que demanda controle do professor para que o aluno

desempenhe a tarefa.

Quanto ao desempenho dele em relação à tarefa, observamos que reconhece os

animais, nomeia-os, diz algumas características, embora não fundamente

corretamente. Acerca da pele, mesmo que compreenda que é a camada externa ao

corpo e auxilia na proteção do animal, não identificou as diferentes formas nas quais

ela pode se apresentar.

[...] a rã tem gosma e não pele, diz ele. Sobre a definição da mesma, diz em tom

seguro “produto elementar do nosso corpo”, e ressalta que aprendeu no tablet

enquanto pesquisava (DIÁRIO DE BORDO).

Filipe realmente pareceu se interessar em pesquisar no tablet e mostrou alguns

conhecimentos sobre o assunto a ser estudado. Quanto aos anexos, identificou

alguns deles e suas funções, soube dizer que o pelo do cachorro ajuda a esquentar

o corpo, assim como as penas do cisne, todavia não relacionou o pelo dos seres

humanos da mesma maneira. Associou o suor à atividade física, a unha à proteção

da pele e o acúmulo de gordura pelo excesso de comida.

Mas não são somente informações sobre a pele que Filipe traz. Toda essa conversa

foi narrada com várias breves histórias de lugares que ele visitou, da viagem ao Rio

de Janeiro, da mini fazenda do tio, de animais que tem, entre outras que ora

parecem ser reais ora são de fato imaginárias. A tarefa diagnóstica permitiu

compreender que, para trabalhar com o conteúdo de estudo, é necessário trazer

Filipe para a realidade, pois a todo o momento volta-se para questões imaginárias.

A tarefa proposta mostrou-se suficiente para alcançar os objetivos, uma vez que

suscitou no educando o desejo em dizer o que sabia sobre o tema sem medo de

estar certo ou errado, e o diálogo foi fundamental para que o conhecimento

espontâneo viesse à tona. Espontaneidade foi elemento-chave para a atividade

diagnóstica e um momento prévio para despertar a motivação para o estudo.

91

5.3.2 Singularidade da motivação – parte II

Se há algo que notamos que Filipe gosta de fazer é contar histórias. Assim, a fase

motivacional foi elaborada utilizando a contação de uma história sobre uma cicatriz

na própria pele (Figura 3). Novamente, entre histórias possíveis e impossíveis,

provocamos nele a disposição para o estudo (NÚÑEZ, 2009).

O uso da lupa despertou nele o interesse por investigar, já que em suas pesquisas

no tablete biólogos usam lupas para realizar as pesquisas. Apoderou-se de tal

instrumento e comparou o cabelo dele com o meu, a pele com a minha, nossas

unhas, o orifício por onde a lágrima sai. Observar a mim deixou Filipe menos tímido

com minha presença e, por isso, perguntava mais sobre suas dúvidas,

principalmente sobre a escrita dos nomes (DIÁRIO DE BORDO). Tudo

esquematizado na figura 17.

Figura 17 - Tarefa Motivacional em ciências

Fonte: Arquivo pessoal

Comparação entre

cabelo e pelo.

Orifício do

canal lacrimal

92

Diferente da tarefa motivacional em Matemática, em Ciências ele não demonstrou

tédio nem desinteresse, pelo contrário, contava uma história atrás da outra sobre

cada um dos elementos desenhados. O próprio Filipe contextualizou o conteúdo e

deu significado ao aprendizado do mesmo.

5.3.3 Sobre a orientação à atividade de Ciências

Terminada a etapa motivacional, iniciou-se a construção da base orientadora da

ação, embora esta deva ser mantida durante todo o processo de assimilação

(NÚÑEZ, 2009). Assim como em Matemática, foi explicado a Filipe os objetivos de

ensino, representados a sua maneira na Figura 18, e sobre a própria ficha

orientadora.

Figura 18 - Anotação de Filipe sobre o que foi aprendido

Fonte: Arquivo pessoal

A primeira questão, “Por que a pinta é mais escura que a pele?”, foi inserida a

pedido de Filipe, para nos lembrar de que deveríamos respondê-la durante as

atividades. As questões seguintes estão nos objetivos de ensino de Ciências, porém

O que é pele?

Por que a pinta é mais escura que a pele?

Qual a função da pele?

93

não contemplaram os anexos, os quais foram esquematizados na base orientadora

da ação.

Por ser a ficha um elemento de familiarização com as condições concretas da ação

(GALPERIN, 2013e), ela foi elaborada pela pesquisadora juntamente com Filipe e

representada por este (Figura 19). Nota-se a riqueza de detalhes em sua

representação que, segundo ele, ajudam a lembrá-lo do que se trata. O sol está

presente para indicar o suor que escorre no rosto, em vermelho. O desenho da

carne envolta representa a função da pele, de envolver o corpo, e o escudo próximo

é a proteção do mesmo. A palavra anexos está próxima ao desenho do cabelo, pelo,

lágrima, suor e unha.

Figura 19 - Base Orientadora da Ação – ciências

Fonte: Arquivo pessoal

As representações foram sugestões do próprio aluno, que justificou a escolha de

cada um deles. A carne, que representa o músculo, é a figura presente nos

desenhos que vê; o escudo está no contexto dos jogos. O suor é decorrente do

calor, pois é no rosto que ele mais transpira. Enfim, todas as relações estavam

presentes no dia a dia.

94

Assim como em Matemática, Filipe criou uma simbologia própria para representar os

elementos da ficha, mas a mesma não contemplava uma sequência que o ajudasse

a resolver as questões (GLAPERIN, 2013a). Assim, em Ciências repetiu-se o

processo de refazer a BOA para incluir tal sequência (Figura 20).

Figura 20 - Reformulação da Base Orientadora da ação

Fonte: Arquivo pessoal

Observou-se que durante a elaboração não foram introduzidos novos conceitos nem

realizada alguma ação (GALPERIN, 2013ª; NÚÑEZ, 2009). Novamente foi almejada

a BOA do tipo III, na qual,

[...] o professor tem um papel essencial na orientação e direção do mesmo. Não se trata de o aluno descobrir por si só a invariante da atividade, e sim de construí-la com a ajuda e colaboração do professor e dos colegas no contexto da dada Zona de Desenvolvimento Proximal (NÚÑEZ, 2009, p. 103).

Ambas as fichas partiram do conhecimento de Filipe, inclusive quanto à escrita.

Enquanto Filipe sentia-se inseguro na leitura das palavras, a ficha rosa foi a mais

usada, porém com o passar das aulas ele foi adquirindo confiança e mais habilidade

na leitura e, por isso, o uso da ficha com escritas sobressaiu.

95

5.3.4 Desenvolvimento da Etapa Material/Materializada em Ciências

De posse das fichas de orientação, Filipe recebeu um exercício escrito (Figura 7).

Nessa tarefa, a questão número 1 foi bem respondida por ele, o qual afirmou que a

unha protegia a pele por ser mais resistente. Embora tenha respondido

corretamente, a tarefa foi mal formulada, pois não correspondia ao conteúdo da

BOA, além de não atender aos critérios da etapa materializada, como suprimir

elementos não necessários à ação (GALPERIN, 2103b). Por esse motivo não demos

continuidade à primeira questão e seguimos para as próximas. Na segunda questão,

ele apontou os anexos sem necessidade de controle, enquanto na seguinte

necessitou de orientação da ficha e controle da pesquisadora (Figura 21).

Figura 21: Questão 2 e 3 da fase materializada em ciências

Fonte: Arquivo pessoal

A glândula sebácea, diferente dos outros anexos, não é visível a olho nu e sua

materialização aconteceu ao visualizar um vídeo curto, que a mostrava em

funcionamento e a causa da formação de uma espinha. Filipe reagiu de maneira

entediada, bocejava e, dessa forma, foi necessário acrescentar uma rápida aula

prática, já que nos encontrávamos no laboratório de Ciências e Matemática.

96

Uma folha foi dobrada ao meio e apenas na metade foi espalhado óleo de cozinha.

Com auxílio de um béquer derramou-se água em ambas as partes alternadamente.

Filipe observou o que acontecia com cada uma das partes e chegou à conclusão de

que a absorção da água escorria na metade oleosa, enquanto na outra era

absorvida rapidamente pelo papel. Ele se interessou pela rápida experiência, o

estudo começou a ter mais sentido para ele, e novamente sentiu-se motivado a

aprender.

Naquele instante, a motivação de Filipe o impulsionou a dizer o lhe interessava. Ele

queria ver uma célula, ver no microscópio como são as coisas. Foi ouvindo a

insistência de Filipe que ficou claro que a fase materializada esteve a todo tempo

disponível enquanto era negligenciada. Fomos ao microscópio, permiti que Filipe

retirasse um fio de cabelo com a raiz, e colocamos na lâmina para que ele a

observasse. Ele entrou em êxtase!

Observou a raiz do cabelo, o couro cabeludo, para entender como estava disposto

na cabeça até compreender que a parte visualizada no microscópio não ficava à

mostra. Retiramos um pelo e um cílio para comparar com o cabelo. Filipe fazia

perguntas, formulava hipóteses..., queria pedir à mãe para ter um microscópio em

casa. O bocejo, os olhares distantes e entediados cederam lugar à curiosidade e

motivação para descobrir tudo o que estava sua frente, dando sentido até à escrita

(Figura 22).

Figura 22 - Esquema de representação do cabelo visto ao microscópio

Fonte: Arquivo pessoal

97

Não houve comparação com reinos, castelos e amigos imaginários. Pela primeira

vez, a atenção esteve totalmente voltada para a atividade em questão, sem

concorrentes e cada objeto estudado promovia a motivação para o próximo. Sobre a

natureza da atenção deve-se entender que:

[...] a reação de atitude como o esforço que se prolonga incessantemente no organismo e não como uma manifestação instantânea da sua natureza ativa. Nesse sentido têm razão aqueles que dizem que a atenção (como um motor) funciona por explosões, mantendo a força do impulso de uma explosão para a outra. Assim, o ato da atenção deve ser entendido como um ato que se autodestrói constantemente e torna a surgir, que se extingui e entra em autocombustão a todo instante (VIGOTSKI, 2004, p. 160).

A atenção de Filipe, que até então era difusa, foi tenaz pela primeira vez de forma

plena. Tal fato nos permite acreditar que conseguimos estimular Filipe de tal maneira

que a motivação interna foi promovida e ela possibilitou acontecer a busca por

conhecimento. Mas alcançar esse grau de atenção demandou um ambiente

silencioso, ferramentas que pudessem mostrar no plano material o que estava sendo

estudado e a participação ativa do aluno, porém ao retornar à esquematização do

conhecimento, a atenção novamente tornou-se difusa.

Ao final da etapa, inferimos que utilizar o microscópio como ferramenta de

aprendizagem despertou em Filipe a motivação interna para aprender. Ele ainda

precisa da BOA para identificar os anexos, principalmente quando algo chama mais

atenção do que a tarefa e, por esse motivo, responde errado as perguntas. Quando

concentrado, os acertos são maiores que os erros. É necessário que ele tenha

atenção total ao que está fazendo para executar corretamente a tarefa. Embora

ainda precise da ficha de orientação como mediadora para realizar as tarefas, o

mesmo não se aplica ao material presente ou representado, sendo este um dos

critérios para a passagem da primeira para a segunda etapa da linguagem

(GALPERIN, 2013b). Para verificar a forma da ação, seguimos no dia seguinte com

o controle da ação.

Para o controle, foi utilizada a quarta questão da primeira atividade material (Figura

23), visto que exigia de Filipe tudo o que foi aprendido na experiência da água e óleo

e também do que foi visto ao microscópio. Não houve necessidade de se recorrer à

ficha nem a objetos materiais, porém houve ajuda da pesquisadora. Logo,

98

entendemos que a forma da ação é da linguagem, embora não se tenha alcançado

totalmente o grau de independência (GALPERIN, 2013b).

Figura 23 - Controle da fase materializada em ciências

Fonte: Arquivo pessoal

Quanto à escrita, novamente Filipe cria símbolos para a função específica de cada

anexo e a representação dos mesmos.

Houve dificuldade para desenvolver uma tarefa de controle devido à leitura do aluno.

Por isso, na aula seguinte a leitura e escrita foram priorizadas com a finalidade de

dar mais suporte ao controle do processo que seria realizado em poucos dias devido

ao calendário escolar. Duas atividades foram propostas.

A primeira forma de controle foi realizar o diagnóstico final utilizando as mesmas

tarefas do diagnóstico inicial. Filipe interpretou com mais facilidade os comandos

que estavam representados por figuras. Dessa vez apontou para a presença da pele

em todos os animais, como a escama é a pele do peixe, a do jacaré é ‘molinha’ no

ventre e as peles do cisne e da cachorra estão sobre a pena e o pelo,

respectivamente. Filipe estava mais desenvolto e, ao ser perguntado sobre o que

estávamos estudando, respondeu sem pestanejar: pele, pelo, cabelo, unha, suor... e

lembrou-se da palavra ‘anexo’ ao olhar a ficha. Sim, podemos dizer que o resultado

mostrou que houve assimilação do conteúdo, mesmo que não tenha sido total.

Símbolo criado por Filipe para representar

‘anexo’.

Símbolos criados por Filipe para representar

as funções do pelo e cabelo.

Símbolos criados por Filipe para representar

as funções do suor e unha.

99

A segunda forma de controle obedeceu aos critérios da instituição; todo final de

semestre deve ser realizada uma prova escrita. Assim como em Matemática, a

avaliação foi elaborada abarcando os elementos trabalhados durante as últimas

semanas, inclusive as palavras, comandos e algumas figuras. Também se atentou

para que o aluno estivesse nas mesmas condições que a turma. Assim, embora a

prova tivesse sido elaborada de acordo com suas especificidades, o aluno teria

cinquenta minutos para executá-la. Também foi acordado que ele poderia pedir

ajuda quanto à leitura se precisasse, o que foi feito.

O resultado da avaliação (Figura 24) mostrou mais assimilação sobre os anexos do

que sobre a identificação da pele. Ao observarmos as questões referentes às

funções de cada anexo, notaremos que o aluno acertou. Tal fato pode ser remetido

às tarefas anteriores que priorizaram as funções dos anexos. Ao analisar o histórico

do caminho percorrido, o resultado foi condizente ao que foi mais trabalhado com

Filipe e à BOA. A orientação, segundo Galperin (2013a, 2013b), determinará a

qualidade da ação, ou seja,

Por meio do controle, obtém-se a informação necessária para a correção das ações que os alunos executam e para a correção do próprio sistema. Nesse sentido, o professor deve ter os elementos necessários por meio do controle, para estar seguro de que o aluno pode passar de uma etapa para outra e que, no final, ele tenha percorrido corretamente todas as etapas da assimilação (NÚÑEZ, 2009, p.201).

A avaliação, nesse caso o controle, é um norteador das ações a serem corrigidas

tanto para nós como para Filipe. Assim, o aluno a recebeu após a correção para que

refletisse sobre os erros e acertos.

Allana: Tem o número dois aqui em baixo, não tem? [indicando o segundo item da

BOA para o critério de ser anexo].

Filipe: Sim.... [olhando para a BOA e lendo mentalmente o que estava escrito] Tem

que proteger a pele! [se dando conta que ele sabia, mas que não havia colocado].

Allana: Você sabia, não sabia?

Filipe: Eu tinha esquecido! [com tom de pesar pelo esquecimento].

100

O tom de voz e a expressão corporal mostram o reconhecimento da informação, ele

sabia, mas não havia lembrado. Ou seja, foi a evocação do conteúdo que no

momento foi falho, a função da memória, como sinaliza Martins, (2013c).

Figura 24 -: Prova escrita de ciências.

Fonte: Arquivo pessoal

101

Ao final das etapas, tanto em Ciências quanto em Matemática, a maior

transformação concreta aconteceu na leitura e na escrita, mesmo não sendo os

objetivos de ensino. Talvez por não ter sido o propósito, mas uma necessidade a ser

saciada para cumprir outra finalidade. Vigotski (2007), citando Montessori, diz que é

no jardim de infância que a criança deve aprender a ler e a escrever, descobrindo

essas habilidades em situações de brinquedo. Ainda que não tenha sido a mesma

situação, Filipe não se via obrigado a desempenhar tal tarefa, e com isso descobriu

a leitura e a escrita.

A aplicação dos conceitos assimilados na solução de tarefas tem papel fundamental

na passagem do plano concreto para o abstrato e deste para aquele. Esse

movimento de via dupla contribuirá para o desenvolvimento das funções

psicológicas superiores e para a personalidade integral dos sujeitos (NÚÑEZ, 2009).

102

6 O PAPEL DA ESCOLA NA FORMAÇÃO DO SUJEITO

Trabalhei em várias escolas públicas no Estado do ES e o cenário é bem parecido

entre elas: instalações precárias, salas de aula quentes, com pouca ventilação,

quadro desgastado e manchado, poucos recursos audiovisuais..

Laboratórios também são precários. Parte das máquinas não funciona, a internet é

lenta, e só podem ser utilizados na presença de estagiários, nem sempre

contratados em número suficiente. A biblioteca só pode ser usada por grupos

pequenos, logo, uma aula nela é impraticável. Os laboratórios de Química, Física e

Biologia comumente estão reunidos no mesmo espaço, com vidraria escassa,

reagentes vencidos, raro ou nenhum material para o ensino de Ciências, como

microscópio, lâminas permanentes e modelos anatômicos. Não é fácil ser professor

do ensino básico nem mesmo para o professor tradicional que utiliza somente livros,

pincéis e quadro, pois esses materiais ou estão em mau estado ou não estão

disponíveis para todos os alunos.

As condições

Representam o conjunto de situações nas quais o sujeito realiza a atividade atrelado ao contexto social. Refere-se às condições ambientais (espaço, iluminação, ventilação) e ao clima psicológico no qual se desenvolve a atividade. O agir com sucesso depende do contexto e também das condições de realização da atividade. Para a psicologia soviética, é conhecida a influência das condições e do contexto na atividade da aprendizagem, como espaço de construção de significados e de desenvolvimento da personalidade do aluno (NÚNEZ, 2009, p.86).

Para Filipe, a influência dessas condições ganha proporções mais expressivas no

seu processo de ensino e aprendizagem devido à Síndrome de Warkany. As

condições da escola, como estrutura física e disponibilidade de recursos, e

pedagógicas, como metodologia de ensino, interferem no desenvolvimento cognitivo

do aluno. Sobre essa relação, do meio externo e processos internos, Vigotski (2004,

p. 71). afirma que “O meio não é algo absoluto, exterior ao homem. Não se

consegue nem se quer definir onde terminam as influências do meio e onde

começam as influências do próprio corpo”. É a respeito do desenvolvimento das

funções cognitivas e a atuação da escola em relação a elas que trataremos neste

capítulo.

103

6.1 AS FUNÇÕES DA ATENÇÃO E MEMÓRIA E O DESENVOLVIMENTO

COGNITIVO

Filipe: Não sei porque, mas eu sou mais ajudar que estudar.

Allana: Ajudar o quê? [surpresa, continuei o diálogo].

Filipe: Ajudar as pessoas.

Allana: Mas como você vai ajudar as pessoas? Lembra quando você estava

cuidando do passarinho? Você disse que deu água e depois foi onde?

Filipe: No veterinário.

Allana: No veterinário. E por que você foi ao veterinário?

Filipe: Porque o passarinho tava muito, muito, muito, muito, muito machucado.

Allana: Mas por que você levou no veterinário? Porque ele estudou muito, muito,

muito, muito e ele sabe como cuidar, não é? [concorda e prossigo] Então, quem

estuda muito, muito, muito vai saber de alguma coisa, não vai? [ele concorda com a

cabeça] Se você estudar você vai pode ajudar mais gente ou menos gente?

Filipe: Menos.

Allana: Se você estudar você vai poder ajudar menos? Por quê?

Filipe: Não sei...

Allana: Sabe sim. Você acabou de me falar do veterinário! O veterinário estudou

muito ou pouco?

Filipe: Muito.

Allana: Ele ajudou mais ou menos que você?

Filipe: Mais.

Allana: Mais. Então, se a gente estuda muito, a gente ajuda mais ou ajuda menos?

Filipe: Mais [com um tom baixo, como se reconhecesse algo].

Allana: Mais... olha pra mim agora. Por que você não quer estudar se você quer

ajudar as pessoas ou os animais?

Filipe: Tô um pouquinho cansado...

A conversa foi longa e profunda, a ponto de Filipe sentir-se sensibilizado e desabafar

sobre a própria opinião acerca dos estudos, da ausência de amigos na escola, sobre

ele mesmo.

Filipe: É muita coisa na minha cabeça. [suspira] Tô preocupado com a guerra.

104

Allana: Que guerra?

Filipe: A guerra do meu jogo.

Allana: O seu jogo é de verdade?

Filipe: Sim.

Allana: Quero dizer, é da vida real?

Filipe: Vida real não, mas no negócio da vida real.

Embora ele saiba que o jogo não é a vida real, insiste em dizer que o próprio castelo

está em perigo, ainda que fisicamente esse castelo não exista. Tudo é virtual, ele

sabe, mas persiste em viver essa realidade paralela, pois nela as pessoas não o

veem como ‘diferente’. Virtualmente tem um reino, família e amigos que tratam com

amor e lutam juntas contra um reino inimigo. Na escola não é assim que percebe.

Filipe, quando mais novo, estudou em outra escola, na educação infantil. Ao sair de

uma escola e ir para outra, não foi somente o ambiente e as pessoas que mudaram,

ele percebeu que algo mais mudou. Disse que é diferente21 no modo de andar, na

maneira de falar, que sente dificuldade para correr... era igual aos seus pares na

escola anterior e por isso querido. Mas agora não; as pessoas não gostam dele e

não entende o motivo. Ele se interessa pela ajuda às pessoas e animais, fala da

bondade e caridade, além de se questionar por que as pessoas não são todas

“boas”. A escola, por não trabalhar nesse sentido, não alcança o aluno.

Escutar as palavras de Filipe foi ensurdecedor, e os objetivos desta dissertação

foram questionados. Desnorteada, 22 fui buscar orientação com o mestre. Essa

conversa me fez entender a importância do ser humano Allana para o processo de

formação de Filipe, pessoa que afeta e deixa ser afetada, e assim a pesquisa ganha

um novo e mais complexo sentido. Questionei a profissão da docência, os métodos,

os conteúdos e a razão para ensinarmos. Até então Filipe se esforçara para me

ajudar, pois ele gosta de ajudar as pessoas, porém não entendia a razão de

aprender tudo aquilo. Entendi que os resultados estavam além do que faria no papel,

há algo a mais! Não são somente os cromossomos, é a relação professor e aluno,

21

Diferente foi a palavra utilizada pelo próprio aluno. 22

Tal conversa foi tão impactante que separar pesquisadora dos ideais da pessoa Allana é insustentável. Por isso esse parágrafo foi escrito na primeira pessoa, evitando a impessoalidade.

105

aluno e aluno, pedagoga e aluno..., a formação do sujeito! Nessa formação, os

relatos médicos atêm-se em descrever o atraso no desenvolvimento mental,

deixando a desejar no detalhamento do mesmo. Como essa deficiência intelectual

afeta na aprendizagem? Qual a melhor maneira de ensinar para uma pessoa com

Síndrome de Warkany?

É uma audácia supor que essas perguntas serão respondidas com exatidão para

todos os nascidos com essa síndrome, e também para Filipe. Entretanto, no

decorrer da intervenção, nas observações e, principalmente, no diálogo com ele

obtivemos pistas para responder tais questões. Estar com Filipe sem dividir minha

atenção com outros alunos me proporcionou oportunidades que demais professores

não poderiam ter devido à quantidade de alunos, e pude entender que durante o

processo de ensino e aprendizagem é necessário considerar as funções

psicológicas da atenção, memorização, linguagem e imaginação.

A atenção mobiliza três mecanismos: seleção do conteúdo, a retenção deste e a

inibição de estímulos concorrentes (MARTINS, 2013b). Na sala de aula, os

estímulos para Filipe não eram direcionados especificamente a ele; em um ambiente

de conversas e tarefas, para as quais não tinha ferramentas para solucionar os

jogos, eram sua seleção e retenção, enquanto o conteúdo passado era o estímulo

concorrente.

Filipe está jogando no celular como de costume. Em 30 minutos, sem fazer as

tarefas, o aluno solicita para sair e beber água. Durante toda a aula jogou no celular

(DIÁRIO DE BORDO).

Ficou claro que Filipe é capaz de realizar os três mecanismos da atenção,

principalmente quando o estímulo são os jogos. Mas estes se tornaram fortes

concorrentes quando foram dadas tarefas para que ele resolvesse. Não

materialmente, jogar no celular, mas pela realidade virtual e a fantasia criada a partir

deles.

Allana: [...] lados diferentes se chamam Escaleno. [...]

Filipe: Esse Escaleno me lembra de um reino.

106

Allana: De onde o reino?

Filipe: De um jogo de guerra, que eu jogava. Que aí chamava escaleno o reino. Que

tipo, é..., chamava bem assim: OSC OSC Escaleno (DIÁRIO DE BORDO).

Prosseguiu contando uma história sobre um reino, as pessoas que lá vivem, a

importância do ferreiro para o rei, e que ele, claro, é o Rei! São inúmeras as histórias

por ele contadas, ora reais ora fantasiadas, engatilhadas pela atividade em questão

ou por algo que dissemos. A realidade de Filipe é recheada de fantasias que

preocupam as professoras.

Ele é muito viajante, fantasia demais. Ele acaba fantasiando coisas de forma

negativa. Muitas vezes o Filipe inventa coisas a respeito da família, [...] como um tio

que disse ter e não existe (ANTÔNIA, DIÁRIO DE BORDO).

Em outras ocasiões, os personagens são criados e materializados, como o Seu Zé.

Ele pega uma bexiga, enquanto limpo a mesa, e faz um rostinho e diz que é o Zé, zé

mané. [...] Quando peço para lermos juntos a BOA, ele faz uma voz diferente e eu

brinco com ele em relação à voz. Ele diz que é de um jogo, relata os personagens e

diz que Gutinho é o que ele gosta e que faz essa voz. [...] Enquanto escrevo, ele

brinca com a voz e o balão no qual desenhou o rosto. (DIÁRIO DE BORDO). (Figura

25)

Figura 25: Seu Zé

Fonte: Arquivo pessoal

107

Pode-se dizer que o mecanismo psicológico da brincadeira consiste integralmente no trabalho da imaginação e que entre a brincadeira e o comportamento imaginativo pode-se colocar um sinal de igualdade. Brincadeira não é outra coisa senão a fantasia em ação, a fantasia não é outra coisa senão uma brincadeira inibida, reprimida e não descoberta. Por isso, sobre a fração da imaginação na idade infantil recai ainda a terceira função, que vamos denominar educativa, cuja finalidade e sentido constituem em organizar o comportamento cotidiano da criança em formas que permitam a esse comportamento exercitar-se e desenvolver-se para o futuro (VIGOTSKI, 2004, p. 207).

Ficaram evidentes aos nossos olhos as tantas histórias e a associação entre

realidade e fantasia. Penetrar nessa imaginação poderia facilitar o diálogo com ele,

talvez compreendê-lo melhor, e assim dispor a aula de maneira que sua atenção se

voltasse exclusivamente para o teor da matéria.

Observamos na presença do novo amigo um duplo efeito: primeiro, distraiu o aluno,

o qual desenvolvia diálogos com o boneco e fugia ao foco da atividade; o segundo

foi tornar o exercício mais interessante, pois Seu Zé não era somente uma bexiga,

ao ganhar vida se tornou colega de estudo. Filipe utilizou-se do boneco para

responder às perguntas, que no momento eram direcionadas também ao Seu Zé.

Allana: A gente quer descobrir o que é um...?

Seu Zé: Polígono

Allana: Pra descobrir o que é um polígono temos que saber o que é um..?

Seu Zé: Lado.

Allana: E que é um lado?

Seu Zé: Quadrado.

Allana: Quadrado?

Filipe: Seu Zé, é um lado! [chamando a atenção]

Allana: É Seu Zé, é um lado. E o que é um lado?

Seu Zé: É um pedacinho de uma linha.

Allana: É um pedacinho de uma linha, muito bom (DIÁRIO DE BORDO).

O tom da voz deu ar de brincadeira embora não fosse, e a atenção sobre o conteúdo

da tarefa foi requisitada como condição para dialogar com o boneco, uma vez que

para isso era necessário entender sobre o que se falava. A ludicidade permitiu a

Filipe controlar o boneco, quando na verdade controlava a si mesmo, tanto no

108

comportamento quanto no conteúdo. Todavia, tudo isso só foi possível porque Filipe

tinha uma tarefa a desempenhar.

Daí a importância do ambiente escolar e dos métodos de ensino para a formação

das funções psicológicas superiores, as quais, segundo Vigotski (MARTINS, 2013c),

têm como natureza uma relação de dependência que necessita de um fenômeno

externo para então ser internalizada. A complexidade das funções psíquicas ocorre

no processo de humanização e isso é cultural, logo, a aprendizagem desde a

sensação até a imaginação passa primeiramente pelo plano social, para então ser

individual (VIGOTSKI, 2004). A atenção de Filipe para as tarefas propostas foi

possível porque havia tarefas de acordo com sua ZDI e porque elas de alguma

forma sensibilizavam o aluno. Quanto a isso, Vigotski diz que:

O mestre deve ter sempre a preocupação de preparar as respectivas potencialidades não só da mente como também do sentimento. Não devemos nos esquecer de atingir o sentimento do aluno quando queremos enraizar alguma coisa na sua mente. Dizemos frequentemente: “Eu me lembro disso porque isso me impressionou na infância” (2004, p. 195).

O prazer, segundo Vigotski (2004), também está relacionado à função da memória,

o qual mobiliza três mecanismos: fixação, armazenamento e evocação de

determinado conteúdo (MARTINS, 2013c).

Referente aos mecanismos da memória, Filipe demonstrava em alguns momentos

que era na evocação do objeto que apresentava certa fragilidade, como o nome

‘ângulo’, que foi para ele custoso memorizar.

5 de novembro

Allana: Duas linhas que se encontram vão formar o quê? O que elas formarão aqui?

[mostro a abertura entre as linhas]

Filipe: Polígono.

Allana: Não...

Filipe: Lado, lado!

Allana: Não, quero isso aqui ó [mostro novamente a abertura entre as linhas].

Filipe: Esqueci.

Allana: Olha o que você desenhou [BOA de matemática]. O que é isso?

109

Filipe: Esqueci o nome.

Allana: Ân...ân...

Filipe: Ai, esqueci o nome! Eu sei o que é, mas esqueci o nome.

Allana: Ângu...

Filipe: está. Angustá

Allana: Não....ângulo!

Filipe- Ahhhh, é! Seu Zé ia saber! [concordo com ele]. Gutinho também porque fica o

dia todo estudando.

12 de novembro

Allana: [Filipe aponta no geoplano os lados, vértices e ângulos de um triângulo].

Então, qual a diferença entre vértice, ângulo e lado?

Filipe: Hummmmm, não sei.

Allana: Você acabou de me dizer!

Filipe: Esqueci.

Allana: Esqueceu não, faz força que eu tenho certeza que você sabe. [silêncio].

Você acabou de explicar pra mim, não explicou?

Filipe: Aham, mas eu esqueço as coisas rápido.

Allana: O que você esqueceu?

Filipe: O que que é pra fazer.

Allana: O que tem na figura? São três coisas que têm nessa figura.

Filipe: Vértiche, lado e as pontinhas [e aponta para o ângulo] (DIÁRIO DE BORDO).

A memória é como uma cicatriz, formada pela quantidade e intensidade de vezes

em que foi utilizada. Foram necessárias mais aulas para que Filipe não somente

fixasse e armazenasse o conteúdo, mas que também o evocasse quando

necessário, como no controle final – avaliação de Matemática. A repetição de tarefas

foi corroborada com o próprio comportamento do aluno, o qual disse que, ao

pesquisar no tablet, repetia várias vezes até aprender. A repetição, afirma Martins

(2011b), é a essencialidade concreta da estabilização mnêmica que está relacionada

às peculiaridades individuais, à estrutura da atividade e à organização semântica.

Suscitar a memória do aluno no início do ano sobre a matéria do ano anterior é de

extrema relevância e integra o processo de memorização, para que se crie a cicatriz.

110

É também por isso que o planejamento deve ser interdisciplinar, para que a

informação passada aos alunos seja repetida em todas as disciplinas, não somente

como uma repetição, sobretudo acrescentar algo, uma vez que o processo educativo

deve ser visto como um espiral e crescente (MARTINS, 2013c).

No processo de memorização trabalham também as modalidades sensoriais. Cada

indivíduo terá mais facilidade de aprender enquanto ouve, escreve, debate et cetera.

Não importa o modo, pois o processo de memorização não é impedido, mas pode

ser dificultado caso o professor desconheça essa particularidade do aluno. Filipe

preferia repetir de diversas formas: ao escrever, dialogar, explicar para outra pessoa.

Pode parecer contraditório afirmar que ele memoriza com o ato de escrever se o

mesmo não tinha tal habilidade dominada. Todavia, no percurso das tarefas, tal ação

em muitos momentos deixou de ser coadjuvante e foi a ação principal, inclusive

como motivadora.

Filipe: Nossa, fiz um textão aqui!

Allana: Viuuuuu! E acertou tudo, né?

Filipe: Ahammmm, nossa, não..., eu não conseguia fazer isso! E eu fiz sozinho.

[...] eu nem sabia fazer esse textão!

A linguagem tem um papel fundamental no desenvolvimento das funções psíquicas

(VIGOTSKI, 2004, 2007). O que e como se fala, a riqueza do vocábulo são suportes

para o desenvolvimento do sujeito. Para Filipe, a vocalização das palavras tem

prejuízo por ele confundir a sonoridade de algumas letras como V e F; Ã, N, M, R,

PR, L, Q, QU, T. A leitura silábica com entonação diferenciada prejudica na

compreensão da palavra e, consequentemente, na interpretação do que se lê. Filipe

sentia por não ler e escrever como os colegas, preferia dizer o que vinha à cabeça

na tentativa de acertar.

22 de outubro

Allana: E isso aqui, você sabe o que é que é?

Filipe: Espermercado.

Allana: Quase isso. ES [nesse momento tampo a primeira sílaba e indico a segunda]

111

Filipe: Co [com som fechado, cô] la. Escola [pronunciando corretamente].

Allana: Ahhh, garoto!

Filipe: Eu tava pensando nisso, mas pensei que era espermercado.

Allana: Hummmm, mas existe espermercado? [Filipe acena negativamente com a

cabeça] escola tá certo, muito bom! E aqui, você consegue ler? Tá meio

pequenininho, né?

Filipe: Banco

Allana: Banco? Não... lê direitinho?

Filipe: Eu não sei lê não!

Allana: Mas você acabou de ler!

Filipe: É que eu leio só esse aqui.

Episódios como esse se repetiram. Acertar deixava Filipe confiante, mas o erro o

afetava de tal maneira que se recorria ao que, provavelmente, diziam para ele: não

sabe, e assim desviava a atenção para algo que poderia fazer com sucesso.

27 de outubro

Allana: Que figura geométrica é essa?

Filipe: É um retângulo.

Allana: Vamos escrever retângulo?

Filipe: Eu não sei escrever.

Allana: Eu vou te ajudar, aí você vai lembrar. R, você lembra do R?

Filipe: Aham, [escreve R e E]

Allana: E depois você acha que é qual letra? [pronuncio as duas primeiras sílabas].

Filipe: T?!

Allana: Isso, muito bom. [escreve o “t” e o “a”]. E depois? RETÂNNNNN [silêncio].

Qual letra tem esse som nnnnnnnn, de nenêm.

Filipe: R? [nego com a cabeça e continuo vocalizando]. Não sei.

A escrita foi assimilada gradativamente, e por não ser o objetivo, mas por fazer parte

do contexto de aprender sobre Matemática e Ciências, aos poucos se sentiu mais

confortável para escrever.

112

10 de novembro

Allana: Essa parte final [do cabelo] é a raiz. Vamos escrever raiz?

Juntos: Raiz [Filipe escreve rais].

Filipe: O “i”e o “s” [confirmando se o que escreveu estava correto].

Allana: É quase isso, é o “i” e o “z”

Filipe: Ah! O “i” o “z” e depois o “s”.

Allana: Só o “i” e o “z”.

Filipe: Raiz. [pronuncia e corrige a escrita]. E “cabe” “be”? “pe”? [pronunciava em

tom de pergunta].

Allana: Be

Filipe: Be é o “b”?

Allana: Isso [escreveu o “b” e continuei a pronúncia]. Be, depois do “b” é o que?

Filipe: É o “e”.

Allana: Isso, muito bom!

Filipe: Cabe lo lo. É o “l” e o “o”.

Allana: Muito bom!

Quando alguém torna explícita sua compreensão do que se faz, pode verbalizar o curso da ação, tomando consciência dos acertos e erros. A linguagem se transforma em uma via de compreensão na aprendizagem. O processo de colocar pensamentos em palavras permite ao aluno conscientizar-se de seus conhecimentos e desconhecimentos, de suas ações, fator este que contribui potencialmente para a assimilação dos conhecimentos científicos (NÚÑEZ, 2009, p. 112).

Consciência. O que até então era mecânico, reprodutivo, agora se torna consciente.

A assimilação dos conceitos abstratos contribuirá para o desenvolvimento das

funções psicológicas superiores e a personalidade dos sujeitos (NÙÑEZ, 2009, p.

92).

17 de novembro

Filipe: Nossa, antes eu não sabia nada disso daqui, hein!

Allana: Tá sabendo tudo!

Filipe: Não sabia ler, não sabia escrever..., não sabia nada!

Ele sabia, e disso não sabia, e tão pouco os professores. Estes não poderiam, pois

as tarefas propostas estavam além das possibilidades reais do aluno,

113

comprometendo a qualidade do ensino. O bom ensino é aquele que se volta para o

desenvolvimento iminente, para o que o sujeito ainda não tem, mas pode alcançar

(VIGOSTKI, 2004, 2007). Observamos que as oportunidades ofertadas a Filipe não

favoreceram seu pleno desenvolvimento e que suas crenças – como dizer não sabe

– podem ser replicações do que fora dito por outras pessoas, pois,

[...] o fator decisivo do comportamento humano é não só o biológico, mas também social, que traz consigo momentos inteiramente novos para o comportamento do homem. A experiência do homem não é mero comportamento do animal que assumiu posição vertical; é uma função complexa decorrente de toda a experiência social da humanidade e de seus grupos particulares (VIGOTSKI 2004 p. 44).

A condição biológica de Filipe não é a única responsável pela deficiência intelectual,

como o laudo médico atesta. No momento em que a escola - e a família e sociedade

- negligencia as necessidades específicas de aprendizagem de Filipe, contribui para

a formação deturpada da ‘imagem subjetiva da realidade objetiva’ (MARTINS,

2011b).

A nossa contribuição para a educação inclui Filipe, e consiste em planejar tarefas

que considerem, acima de tudo, o fator motivacional, porque este será responsável

por afetar o aluno e, uma vez afetado, irá perceber, atentar e memorizar. A memória

deverá ser trabalhada considerando a repetição por diferentes maneiras, como a

visual, a auditiva e a escrita. No processo como um todo, destacamos o propósito de

formar mentalmente uma ação, negado à grande parte dos alunos com deficiência, e

a aproximação dos objetivos de ensino aos de aprendizagem. Todos esses

elementos são contemplados na Teoria das Ações Mentais por Etapas.

Depois de toda essa intervenção, será que ocorreu aprendizagem?

Assim, chamaremos de aprendizagem a toda atividade cujo resultado é a formação de novos conhecimentos e habilidades em que a executa, a incorporação de novas qualidades aos conhecimentos e habilidades que já se possuíam (GALPERIN, 2013e, p. 478).

Filipe, em um recado carinhoso respondeu (Figura 26).

114

Figura 26 - Agradecimento de Filipe à Allana

Fonte: Arquivo pessoal

Na educação não há mérito exclusivo, embora muitos professores escolham

caminhos que muitas vezes vão de encontro à psicologia histórico-cultural, há

contribuições significativas. Outros possuem traços dessa psicologia e uma delas é

Bel. Todas as sextas-feiras, na parte da manhã, Filipe foi atendido na sala de

recursos para trabalhar com ela, cujo empenho para alfabetizá-lo tem sido enorme.

A pedido dele, demonstrou o orgulho por si mesmo em um bilhete escrito no

notebook, revelando sua gratidão à professora (Figura 27).

Figura 27 - Homenagem de Filipe à Bel.

Fonte: Arquivo pessoal

115

Aprender para desenvolver. A escola, enquanto espaço privilegiado, deve se

fundamentar no princípio do ensino que desenvolve, que dará suporte ao

desenvolvimento integral da personalidade do aluno (NÚÑEZ, 2009).

Filipe: Oh, Tia, amanhã a gente podia chegar bem cedo pra eu dar aula.

Allana: Ah é?! Você gostaria?

Filipe: Aham, sobre as células [referindo-se ao que viu no microscópio].

Ah, as células! Torço para Filipe aprender sobre as células e quem sabe um dia

libertar-ssse do que hoje lhe condena.

116

7 PRODUTO EDUCATIVO

O mestrado profissional tem como resultado duas produções: a dissertação e o

material educativo. Assumimos a definição de material educativo feita por Kaplún

(2003):

[...] um objeto que facilita a experiência de aprendizado [...]. [...] algo que facilita e apoia o desenvolvimento de uma experiência de aprendizado, isto é, uma experiência de mudança e enriquecimento em algum sentido: conceitual ou perceptivo, axiológico ou afetivo, de habilidades ou atitudes etc. (ibid. p.46).

Por meio da leitura da experiência vivida nesta pesquisa, esperamos que o material

educativo desperte nos docentes a reflexão sobre ensino, aprendizagem e

desenvolvimento do aluno. Ao criar um produto oriundo de uma investigação

vivenciada na prática, nos aproximamos da realidade vivida por cada professor de

maneira mais empática.

Apesar dessa visão mais realista, devemos ressaltar que não é nossa intenção

produzir um material com atividades que devem ser reproduzidas na íntegra e cujos

resultados serão os mesmos obtidos por nós. Afinal, não há uma fórmula que possa

ser usada e que produza bons resultados para todos! Por isso, ressaltamos que as

atividades são exemplos para facilitar a compreensão da Teoria das Ações Mentais

por Etapas e a relação desta com o ensino e a aprendizagem.

Sendo assim, a criação do material baseou-se em critérios elencados por Kaplún

(2003), o qual diz que devemos considerar durante a construção do material o

processo de criação em si, o próprio material e o seu uso posterior. Estes itens estão

relacionados a três eixos: conceitual, pedagógico e comunicacional.

O primeiro eixo nos remete ao conteúdo que será trabalhado, a seleção e a

organização dele, e que deverá ser realizado após uma leitura minuciosa de autores

que se debruçam sobre o tema. O segundo eixo se atenta para o público-alvo e a

metodologia que será aplicada com base em um objetivo estabelecido; este eixo é o

principal articulador do material, sendo ele a definição do ponto de partida e

chegada. O último eixo, o comunicacional, promove interlocução entre comunicação

117

visual, textual e audiovisual. Considera uma leitura dinâmica com informações

técnicas na mesma proporção em que é didático em um texto atrativo; este deve ir

ao encontro do embasamento teórico em que se fundamenta (KAPLÚN, 2003).

Ao cogitar os eixos citados, propomos um material que contenha a essência da

pesquisa de maneira que não seja um manual de instruções sobre ensino e

aprendizagem. Apresentaremos a Teoria das Ações Mentais por Etapas em fichas,

cada uma contendo um elemento da teoria, bem como as propostas de Núñez

(2009) sobre a organização do ensino. As fichas serão reunidas e formarão um

único documento, que é a concretização do material educativo, e será

disponibilizado avulso, cujo acesso será pelo site do Programa de Pós-Graduação

em Ciências e Matemática (EDUCIMAT)23.

23

Link de acesso ao material educativo: http://educimat.vi.ifes.edu.br/?page_id=1409

118

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Baseado nas ideias de Galperin em relação ao processo de formação de conceitos

na mente humana, e de Vigotski acerca do desenvolvimento das funções psíquicas,

este estudo objetivou analisar a aprendizagem de um aluno com trissomia no

cromossomo 8 nas disciplinas de Ciências e Matemática, com base na Teoria das

Ações Mentais por Etapas. Para além da base teórica, a Teoria das Ações Mentais

por Etapas foi também metodológica, norteando como planejar, executar e analisar o

processo de ensino e aprendizagem.

As observações realizadas, bem como as entrevistas e a aplicação da teoria,

permitiram que os momentos cujas situações de aprendizagem estivessem

envolvidas fossem problematizadas. O primeiro item pontuado referiu-se ao tempo

em que o aluno permaneceu ocioso, inserido na sala de aula, visto que Filipe

demanda mais de três quartos do tempo em jogos no celular, roendo as unhas e em

saídas para beber água e ir ao banheiro. Tal rotina se formou, uma vez que são

escassas ou ausentes as tarefas a serem cumpridas, e quando há, não são

planejadas de acordo com o grau de desenvolvimento do aluno, segundo fato a ser

pontuado.

Filipe ainda não desenvolveu as habilidades de escrita, leitura e interpretação, está

na iminência em aprender (ZDI), por isso os exercícios realizados consideravam tais

necessidades e o grau de desenvolvimento das mesmas. Quando o nível da tarefa é

superior à capacidade de resolução, mesmo com o auxílio do professor, a tendência

do aluno é sentir-se desmotivado (VIGOTSKI, 2004), sendo este o terceiro fator

encontrado.

Durante a etapa motivacional, foi custoso afetar Filipe a ponto de ele sentir-se

motivado, disposto a aprender. Pela primeira vez o aluno foi cobrado

sistematicamente pelo cumprimento das tarefas que eram desenvolvidas de acordo

com as possibilidades dele. Não havia mais tempo ocioso e, assim, a rotina de Filipe

havia sido rompida, gerando um desconforto inicial. Superar a ociosidade e provocar

a motivação para a aprendizagem foram elementos trabalhados no processo de

intervenção. Neste, o objetivo da pesquisa consistiu em analisar a aprendizagem

119

sobre alguns aspectos da pele e anexos, no caso de Ciências, e figuras geométricas

na disciplina de Matemática, ambos fundamentados na Teoria das Ações Mentais

por Etapas.

Em ambas as disciplinas, a etapa material foi concluída e a etapa da linguagem

iniciada. No controle final do processo verificou-se que houve um avanço em relação

ao conhecimento inicial de Filipe acerca do assunto. Em Ciências, o conceito de

anexo sobressaiu ao conceito de pele, pois, ao analisarmos as tarefas planejadas,

observamos que houve de fato uma dominância do primeiro em detrimento do

segundo, sendo o resultado coerente ao processo realizado. Em Matemática, o

aluno demonstrou ter assimilado o que são ‘lados, ângulos e vértices’, necessidade

apresentada ao longo da intervenção; identificou polígonos, mas ainda precisou de

controle para classificar os tipos de triângulos. Todos esses resultados foram ao

encontro das atividades realizadas e principalmente das orientações dadas, da

relação de dependência entre a qualidade da formação da ação e a orientação foi

descrita por Galperin (2013a, 2013e).

Uma das fragilidades da Teoria, descrita pelo próprio Galperin (2013e) e elaborada

por Talízina (NÚÑEZ, 2009) é o aspecto motivacional, que antecede todas as

etapas. Este aspecto apresentou-se como diferencial em todo o estudo. Enquanto

Filipe não se sentisse afetado, os motivos para aprendizagem apresentavam-se

como fugazes e superficiais, reforçando a falta de concentração. Núñez (2009)

indica que a motivação interna é suscitada a partir de problemas ou situações-

problema que sejam familiares para o aluno. Para Filipe, escrever, ler e interpretar

eram habilidades em formação, apresentados em todos os momentos de motivação,

elaboração da base orientadora da ação e execução da ação.

Embora não fosse o intuito desta pesquisa, durante a realização das etapas Filipe

sentiu necessidade de utilizar tais recursos, configurando-se como um problema

real. Dessa forma, em alguns momentos, os conteúdos de Matemática e Ciências

foram secundários, enquanto a escrita o objetivo principal, permitindo que a

aprendizagem decorresse da própria necessidade, a qual foi significada como um

fator de motivação interna. Tal fato não descaracterizou a pesquisa, pelo contrário, a

partir do momento em que a motivação interna foi suscitada em Filipe, este deu

120

significado à própria aprendizagem, e assim os objetivos deste convergiram com os

de ensino. A disposição para o estudo permitiu que algumas funções psicológicas

fossem observadas e, consequentemente, discutidas.

A atenção voluntária que inicialmente apresentava-se frágil tornou-se tenaz com a

mudança de comportamento de Filipe, embora ainda demandasse esforço por parte

do aluno. As conversas sobre os jogos on-line diminuíram na mesma proporção que

o interesse pelo conteúdo aumentava e, portanto, retomava a atenção, facilitando o

processo de execução e repetição da atividade.

Segundo Martins (2013c), a intensidade de vezes que uma tarefa é realizada

influenciará a formação da memória, fato apresentado também por Filipe; para

aprender algo, ele dizia, é preciso repetir muitas vezes. Durante o processo de

aprendizagem, o aluno queixou-se diversas vezes de não se lembrar de elementos

para resolver a questão, como o nome de alguns itens ou mesmo da pergunta que

era feita. Na correção do controle final também se verificou que o momento da

evocação da lembrança é frágil se comparado à fixação e ao armazenamento das

informações.

É importante lembrar que as funções psicológicas tornam-se complexas no processo

de humanização do indivíduo. A atenção voluntária, memória, pensamento e a

imaginação são funções aprendidas com a vivência em sociedade, mediados pelos

signos. Portanto, nos desenvolvemos com base no que é dado no plano externo

para em seguida ser internalizado (MARTINS, 2011a, VIGOTSKI, 2004). A

discussão sobre as funções psicológicas da atenção e da memória de Filipe não

podia ser dissociada do ambiente e das situações em que se encontrava, tempo

ocioso e ausência de atividades. Assim, para afirmar que tais funções sofrem

prejuízo em decorrência da condição genética, é preciso que mais estudos sejam

realizados, garantindo que o meio forneça todos os recursos para a formação de tais

funções.

Assim sendo, concluímos que o desenvolvimento das funções da atenção e da

memória de alguma forma sofre com a condição genética de Filipe, Síndrome de

Warkany, porém os fatores externos, nesse caso o meio escolar, têm sido mais

121

determinísticos do que o primeiro, pois as características encontradas, a ociosidade

e a falta de motivação foram aprendidas do que estava posto. A mudança de postura

foi percebida quando houve uma sistematização de tarefas, que aconteceu baseada

na Teoria das Ações Mentais por Etapas. Esta contemplava aspectos importantes

para Filipe, como o fator motivacional e a repetição de tarefas.

122

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126

APÊNDICE A

Atividade diagnóstica

Vamos conversar sobre a figura!

Fonte: http://www.e-brabo.com/images/2007/pixelart-b.jpg

O que ela representa?

O que está acontecendo?

Observe as construções: O que possuem em comum? Observe o formato.

Escolha alguns desses formatos e desenhe-os. Vamos compará-los!

127

1) Quais as diferenças entre essas figuras?

2) Observe o quadro abaixo.

3) Vamos comparar essas formas, alguma dessas formas aparece na figura?

4) Qual o nome dessas formas do quadro acima?

5) Há figuras iguais? Se sim, quais?

6) Há figuras parecidas? Quais as semelhanças e diferenças?

7) Quais dessas formas são polígonos?

8) Como identificar os polígonos?

128

APÊNDICE B

Sequência de fotos para reconhecimento dos diferentes tipos de pele em animais.

129

APÊNDICE C

Atividade diagnóstica

1)

2)

3)

4)

5)

6)

7)

130

APÊNDICE D

Item Generalização Forma da Ação Detalhamento Independência Consciência

1

2

3

Item Necessidade do aluno

de ser controlado na

solução da tarefa

Sucesso na solução

da tarefa

Controle do

professor para

ajuda.

Sim ou não Sim ou não Sim ou não

1

2

3

Parâmetros da qualidade da

ação. Grau de:

Generalização Aplicar nas situações

possíveis.

Forma da ação Plano em que ocorre a ação.

Detalhamento – abreviação à

maestria.

Momentos da ação são

conscientes.

Independência Com ou sem ajuda.

Consciência Explica verbalmente o que

faz e por quê.

Fonte: Núnez, 2009, p.203

131

APÊNDICE E

Roteiro norteador para observação nas aulas de ciências e matemática.

Quais as estratégias utilizadas pelo professor para lecionar um novo assunto.

Quais as práticas pedagógicas são utilizadas pelo professor para que os

alunos realizem uma tarefa.

Como é o comportamento do aluno perante os colegas e professor.

Quais as angústias demonstradas pelo professor e aluno quanto ao processo

ensino-aprendizagem.

O aluno realiza as tarefas propostas.

O aluno recorre a algum colega para realizar a atividade.

Se não realiza as tarefas, o que faz nesse tempo.

Como é o clima da sala de aula (amistoso, ansiedade, tensão).

132

APÊNDICE F

Roteiro norteador para entrevista com aluno.

O que o professor pediu para fazer.

Como ele resolveu essa tarefa.

Se achou difícil a questão e por quê.

Quais as angústias dele em relação à aprendizagem

Discorrer sobre a tarefa que fez na vida que mais gostou, menos gostou.

Se gosta de fazer trabalhos em grupo.

Como faz amigos na sala, e na escola.

Como estuda em casa, como gosta de aprender algo novo e pelo que se

interessa.

O que você mais gosta na escola.

Quando for adulto, com o que gostaria de trabalhar e o que ele faz hoje na

escola que poderá ajuda-lo a ter tal profissão.

Roteiro norteador para entrevista com professor e pedagoga.

Quando está planejando as aulas, como são selecionadas as estratégias de

ensino.

Contar se havia trabalhado com alunos com necessidades especiais e como

se deu.

Como são passadas as informações sobre as necessidades dos alunos?

Como é a escolha do método de ensino.

Há quanto tempo trabalha com o Filipe

Quais são as observações em relação ao Filipe

Quais as dificuldades sentidas ao planejar tarefas que atendam as

necessidades do Filipe?

A visão de cada um a respeito das maiores dificuldades do Filipe

Como os professores se comportam quanto a realizar tarefas que fogem ao

tradicional (para pedagoga).

Como são informadas ao professor as necessidades especiais de alunos que

possuem laudo? (para pedagoga).

133

ANEXO A