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    Instituies oratrias

    Prefcio

    As utilidades das tradues so bem conhecidas. Elas transportam, por assimdizer, os conhecimentos humanos de um sculo a outro, e de um pas estranho aonosso. E se o comrcio das fazendas to vantajoso, e ainda necessrio sindigncias da vida; o dos conhecimentos no o deve ser menos aos espritos, quesentem a necessidade de instruir -se, e no tem o meio de o fazer, que so as

    lnguas. Estas tradues particularmente se fazem necessrias nos autores antigos,e tem alm disso o avano de serem menos perigosas. No tendo de passar de umalngua a outra as graas da poesia, e eloqncia muitas vezes intraduzveis; corrempor uma parte menos risco de infidelidade e pouca exatido; e por outra pela versoas dificuldades, que a linguagem tcnica, e as regras, e reflexes abstratas dasartes, e cincias costumam oferecer aos principiantes. O estilo especialmente deQuintiliano sucoso, e preciso; as ideias sensveis e agradveis, com que costumarevestir as matrias mais secas e escabrosas, ao mesmo tempo que fazem um dosmerecimentos principais das suas Instituies, e para os que sabem a lngua,ajudam muito a entender, imprimir e fixar as doutrinas: so um embarao para osestudantes de retrica, que pela maior parte entram nas aulas pouco adiantados noconhecimento da lngua latina.

    Estes foram os motivos, que me determinaram a empreender h vinte anosesta traduo; e ela teria sado ento luz, se um amor talvez demasiado daantiguidade, e do bem da mocidade no me a fizesse suprimir. Refleti ento, que eu

    era o primeiro que punha em portugus um livro clssico, porque S. Majestademanda aprender as regras da eloqncia, e que a mocidade pouco instruda, seaproveitaria avidamente do meio, para deixar inteiramente a lio do original, o qualnunca se deve perder de vista. E ainda que me lisonjeava de ter traduzido fielmenteos pensamentos de Quintiliano, nunca me podia segurar de os ter transportado coma mesma preciso, graa, e dignidade, com que se acham na origem; e que, para os

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    principiantes se aproveitarem destas riquezas com as explicaes vivas de seusmestres, era bom p-los na necessidade absoluta de beberem na fonte, cortando-lhetodos os regatos. Suprimi pois a traduo.

    No teve porm esta reflexo tanta fora no esprito de outros, como no meu,para desistirem da mesma empresa. Preponderaram mais as utilidades dastradues, as dificuldades de Quintiliano para os principiantes e a necessidade dediminuir, e aplanar pela verso, alm de outras razes particulares, que puderamhaver. Desde o ano de 1777 se viu sair luz o primeiro tomo de Quintiliano sobre aInstituio do Orador traduzido, e ilustrado com a explicao das palavras gregas, e

    algumas notas, por Vicente Lisbonense, em 12, impresso em Lisboa na RegiaOficina Tipogrfica; e poucos anos depois, no de 1782 sairo tambm a pblico Os

    trs livros das Instituies Retricas de M. Fabio Quintiliano, acomodadas aos quese aplicam ao estudo da eloqncia por Pedro Jos da Fonseca, traduzidos da

    lngua latina para o portugus por Joo Rozado Villa-Lobos e Vasconcelos,

    professore rgio de retrica e potica em Evora, em 12, impressos em Coimbra na

    Real Oficina da Universidade.

    Estas tradues, dadas luz, no s me desembaraaram do escrpulo, queat agora me detinha: mas a interrupo da primeira foi para mim uma causa, e aedio da segunda uma razo para publicar a minha traduo at agora oculta. Atraduo, que ainda debaixo do nome de Vicente Lisbonense, no se estende maisque aos primeiros livros de Quintiliano. Ela devia continuar adi ante. Assim no-lopromete o autor no prefcio. Porm tendo passado j no menos de onze anosdesde 77 at 88, que a obra est parada, h um bem fundado receio de que o autor,ou no quereria, ou (o que o fim do seu prefcio nos faz mais crer) no poderiacontinuar o trabalho. E ao mesmo tempo que esta traduo, se se acabasse, poderiaser muito til assim aos estudantes, como aos adiantados: assim no estado em queficou, de pouco uso lhes pode ser, no contendo seno pouco mais de um livro daparte pertencente propriamente arte retrica.

    Quanto ao merecimento da traduo, ela de ordinrio muito bem feita; e pena que o autor no continuasse. Pouca ventura da nao portuguesa! Assimabortam pela maior parte todos os projetos, que mais utilidade e honra podiam dar

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    nao. Se esta traduo fosse avante, ns nos poderamos gabar de ter na nossalngua um autor clssico, difcil, e escuro mais bem traduzido, do que as outrasnaes o tem na sua. Contudo este meu entusiasmo no me cega sobre algunsdefeitos desta obra. Assim como a louvo por ser literal, clara, e quase sempre fiel:assim quereria que s vezes no passasse a ser servil, torcendo a frase portuguesa,e fazendo-a menos corrente, para seguir passo a passo o seu original. D isse quasesempre fiel , porque em alguns lugares no deu no verdadeiro sentido de Quintiliano,e em outros no o exprimiu exatamente. Tais so por exemplo (para me cingir saos captulos, que tratam da arte) os seguintes: Liv. II, Cap. XVII, pg. 226, linha 22,e 27. No mesmo Cap., pg. 235, lin. 23. Liv. III, Cap. IV, p. 269, l. ult. Cap. V, pg.272, l. 17.

    E porque este ltimo lugar de Quintiliano, que desta maneira: qualis illiusfuit, qui grana ciceris ex spatio distante missa in acum continuo, e fine frustatione

    inserabat : foi particularmente notado pelo autor no prefcio, pg. XXVII, como talentendido por Gedoyn na sua traduo francesa de Quint. tom. I, pag. 296, souobrigado a dizer, que a que o tradutor portugus substitue do francs, me pareceerrada. Ela diz assim: como foi vo trabalho daquele, que esperava na ponta de umaagulha, sem demora, ou erro, ou gros, que lhe estavam atirando de longe . Alm denela se omitir a traduo de ciceris , o advrbio continuo no se exprimir com toda a

    sua fora: para semelhante traduo ter lugar, seria preciso que no latim estivesseassim: Qui in grana ciceris ex spatio distante missa acum continuo, e fine frustationeinserabat. O verbo insero no significa o mesmo que insigo , como o tradutor supe,seria necessrio que estivesse acu, ou acui. O que significa propriamente aintroduo de um corpo dentro, ou por entre outro. Por outra parte que habilidadeera o espetar na ponta de uma agulha os gros, com que lhe atiravam? Que erropodia haver nisto? Que acerto digno de se notar? Para que era preciso lembrar adistncia do lugar, donde se atiravam? O certo que as trs circunstncias, ex spatio distante, continuo, et fine frustatione , fazem ver a dificuldade, ainda que v,da empresa, a qual desaparece na verso do tradutor portug us. Eu traduziria: qualfoi a daquele, que, sem interrupo, e sem errar, enfiava pelo fundo de uma agulhaos gros de chichero, com que atirava de um lugar distante. E esta a intelignciade todos os intrpretes, que eu sabia, at agora. A ideia talvez das agulhas vulgares

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    faria aparecer ao tradutor portugus a coisa impossvel, e o obrigaria a excogitar asua interpretao. Porm os antigos conheciam vrias espcies de agulhas, e entreestas as de toucar, chamadas crinales , a que podia convir o que diz Quintiliano. Noobstante estas faltas, pela maior parte leves, e fceis de corrigir, a traduo bemfeita, e se estivesse acabada, talvez me teria poupado o trabalho da minha naspartes, em que a fao.

    DA ELOQUNCIA EM GERAL

    Que coisa seja a eloqncia?

    Antes de tudo preciso saber que coisa eloqncia. Esta tem sido definidadiversamente; qual variedade tem dado ocasio duas questes, sobre que se temdividido os autores: uma a respeito da qualidade moral desta arte, outra sobre ostermos, com que se deve definir.

    D efinies nascidas das diferentes opinies sobre a sua qualidade.

    A diversidade de sentimentos sobre a primeira questo tem feito tambm aprimeira, e principal diferena das definies. Porque uns julgam que ainda oshomens maus se podem chamar oradores, outros porm (de cujo sentimento eusou) querem que este nome e profisso s pertena ao homem virtuoso.

    Os autores que separam a eloqncia da virtude, este louvor o maior, e maisdesejvel da vida, pela maior parte julgaram que o ofcio de orador consistia em

    persuadir , ou em falar de um modo capaz de persuadir; porque isto tambm o podefazer quem no virtuoso. A definio pois da eloqncia a mais comum entre estesautores chamar-lhe, uma fora de persuadir . O primeiro que deu origem a estadefinio foi Iscrates (se acaso uma arte que corre debaixo do seu nome,

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    verdadeiramente dele) o qual, ainda que esteja bem longe de desacreditar estaprofisso, contudo definiu inconsideradamente a eloqncia chamando -a A rtfice da

    persuaso .

    Grgias em o Dilogo de Plato, que tem o mesmo nome, d com poucadiferena a mesma definio; Plato porm quer se tenha como definio deGrgias, e no sua: Ccero tambm deixou escrito em muitos lugares que o ofcio deorador era falar de um modo acomodado para persuadir , e nos livros da Inveno(dos quais ele depois se mostrou descontente) diz que o fim desta arte persuadir .

    Porm tambm persuade o dinheiro, o valimento, a autoridade de quem fala,a dignidade, e enfim o mesmo aspecto mudo de um ru, que se faz recomendvel,ou pelos seus servios, ou pela sua figura miservel, ou pela sua formosura. Comefeito, quando Antonio defendendo a M. Aquilio lhe rasgou o vestido, e descobrindoas cicatrizes das feridas, que em seu peito tinha receb ido em defesa da ptria,moveu o povo romano a perdoar-lhe: no deveu ele este bom efeito suaeloqncia, mas sim a uma espcie de violncia, que com aquele espetculo fez aosolhos do povo romano. De Sergio Galba fazemos tambm assim pela relao demuitos, como pela mesma acusao de Cato, que a nica causa porque escapou condenao foi a comiserao que excitou no povo apresentando -lhe seus prpriosfilhos, e o de Galo Sulpicio, que levou em seus braos. Phyrnes, tambm seassenta, fora absolvida no em conseqncia do discurso de Hyperides, ainda queadmirvel, mas vista de seu corpo, que sendo alis formosssimo, ela tinha tido ocuidado de descobrir abrindo a tnica. Ora se tudo isto persuade, no boa adefinio de que acabamos de falar.

    Por estas razes alguns autores tendo do mesmo sentimento a respeito daqualidade moral da eloqncia, julgaram dar -lhe uma definio mais exata, dizendoque Era uma faculdade de persuadir por meio do discurso . Esta definio lhe d

    Grgias no dilogo acima citado, obrigado em certo modo pela fora das razes deScrates. A mesma quase d tambm Theodetes na arte que corre com o seusnome, ou seja realmente dele, ou, como se cr, de Aristteles. Nela se diz que o fimda eloqncia mover os homens por meio do discurso quilo a que o orador quiser .

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    Mas nestas mesmas definies no se d uma ideia justa da eloqncia.Porque h muitos que persuadem com as palavras, e movem os homens ao quequerem, sem contudo serem oradores. Tais so por exemplo as meretrizes, o saduladores, e os corruptores dos costumes. Por outra parte o que orador nemsempre chega a persuadir seus ouvintes; de forma que por uma parte esta definionem sempre convm a eloqncia, e por outra comum queles que esto bemlonge de merecer o nome de oradores.

    Outros fugiram de meter na definio o efeito da persuaso , como Aristteles,que diz que a eloqncia uma arte de descobrir tudo o que pode persuadir nodiscurso . Esta definio, porm, no s tem o defeito de que acima falamos, masalm dele tem outro, que o no compreender seno a Inveno , a qual sem

    eloqncia no pode constituir um discurso oratrio.

    D iferenas de definies nascidas dos diferentes termos

    Estas so as definies mais clebres, e sobre as quais se disputa. Notrouxemos aqui todas, o que no s seria uma coisa impertinente, mas impossvel.Pois que, os que escreveram sobre esta arte tem deixado levar de um brio, ao meuparecer, mal entendido de no definir a eloqncia com os mesmos termos, de queoutro antes se tivesse servido.

    Eu no me deixarei levar desta vaidade. Direi no as minhas descobertas,mas entre diferentes opinies a que mais me agrada, assim como esta, que aeloqncia a cincia de falar bem ; pois achado uma vez o melhor, quem procuraoutra coisa, quer certamente o pior. Isto suposto, j que se v qual seja o fim daeloqncia, isto , aquele termo ltimo a que toda arte se encaminha. Porque se a

    eloqncia uma cincia de falar bem, o seu fim ser falar bem .

    Se h uma arte de eloqncia?

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    Passemos j a outra questo: Se a eloqncia tem uma arte? O que umponto to indubitvel entre os que dela escreveram preceitos, que eles mesmos temintitulado suas obras da A rte de falar , e Ccero d o nome de Eloquncia A rtificiosaquilo que vulgarmente chamamos retrica. Nisto tambm tem assentado no s osoradores que tinham o interesse de dar algum merecimento a seus estudos, masainda os filsofos assim esticos, como a maior parte dos peripatticos. isto umacoisa para mim to evidente, que confesso me vi perplexo se trataria ou nosemelhante questo. Porque quem h, no digo j to falto de letras, mas ainda todesprovido do senso comum, que julgue h uma arte de edificar, de tecelo, e oleiro,e que este talento da palavra to excelente, e belo, pudesse chegar ao sublime grode perfeio, a que chegou, sem o subsdio de uma arte?

    Na verdade, eu assento que alguns autores que pretenderam provar ocontrrio, no fizeram isto, tanto por assim o julgar, quanto para exercitar seusengenhos em uma matria difcil, como lemos fizera Polycrates louvando a Busyris,e a Clytemnestra, posto que do mesmo se diz compusera tambm uma oraocontra Scrates, que se pronunciou, o que um paradoxo semelhante aosantecedentes.

    Querem alguns que a eloqncia seja um talento natural , sem contudo,desconvirem que o exerccio o pode ajudar muito. Antonio nos livros do orador Ccero, diz que a eloqncia uma pura, e simples observao, e no arte. O queCcero lhe faz dizer, no para assim o termos entendido, mas s assim de dar a Antonio um carter conveniente a seus costumes, um dos quais era disfarar sempre a arte em seus discursos. Lysias tambm parece seguir a mesma opinio.

    As provas desta opinio so as seguintes. Dizem que os ignorantes, osbrbaros, e os mesmos escravos quando tratam de se defender, fazem sua espciede exrdio, narram, provam, refutam, e empregam por fim suas splicas, que so

    uma espcie de eplogo.Eu concedo que pode haver uma tal, ou qual eloqncia adquirida s com o

    uso, e exerccio, sem o estudo das regras. Mas estas certamente sempre as haverem qualquer discurso eloqente. Quem persuade, persuade por alguma razo certa,e se por alguma razo certa, ento em conformidade das regras. Que diferena vai

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    pois do orador puramente prtico e emprico, ao que, as mais coisas iguais, tem oconhecimento refletido das regras? Muito grande. O primeiro no tem mais que umconhecimento confuso das regras; se persuade, persuade por acaso, e no emconseqncia de noes gerais, e distintas, que tenha, mas s dirigindo-se pelosfatos, e exemplos singulares. Representando-se por meio da imaginao o que elemesmo, ou outros tm praticado em caso semelhante, o mau, ou bom sucesso quetiveram, depois comparando um caso com outro julga pela analogia, que ser tobem sucedido agora, como foi ento em caso semelhante. Deste modo no faz maisque imitar os exemplos passados, sem entrar nas razes do que obra.

    Ora, este conhecimento confuso o h de enganar muitas vezes, na prtica,parecendo-lhe caso anlogo aquele que no . Ho de equivocar -se a cada passo, e

    tomar por verdadeiras belezas, as faltas, e procurando fugir de um vcio ho de cair em outro; porque lhes falta a arte que lhes ensina a distinguir uma coisa de outra. JHorcio o disse falando dos poetas na Epst. Aos Pises v. 25. e 31.

    Assim este empirismo puro tem sido fatal a todas as artes e cincias. Ele temfeito a moral dos casustas, rabugice dos praxistas, a medicina dos trampes e a mafetao dos declamadores. Enfim nenhuma arte at agora chegou sua perfeio,enquanto as regras, e o mtodo, isto , a filosofia, e a razo no guiassem os seuspassos, e dirigissem as suas prticas. Concluamos, pois, contra Alembert que aeloqncia ao mesmo tempo um talento , e uma arte . Talento, enquanto supe asdisposies naturais, e arte enquanto estas precisam ser dirigidas no seu exerccio,para no contrariarem hbitos viciosos.

    Ajuntam mais a este falso raciocnio: nada que tenha origem da arte podiaexistir antes dela. Ora, os homens em todo o tempo, oraram suas causas, e contraos outros; e os mestres de retrica no apareceram, seno muito tarde pelos temposde Tsias, e Corax. A eloqncia, pois, existiu antes da arte, e por conseqncia no

    depende dela.Ns no nos cansaremos agora em indagar a primeira origem desta arte, que

    escura; bem que Homero vemos Phenix dado a Aquiles, por mestre assim bem deobrar , como de bem falar : achamos muitos oradores, e a distino dos trs principaisgneros de estilo nos discursos dos trs chefes. A se vm tambm mancebos

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    disputarem sobre quem havia de levar a palma da eloqncia, e no mesmo escudode Aquiles se representam esculpidos autores litigando sobre certa causa.

    Basta s advertir que tudo aquilo, a que a arte deu a perfeio, tem seus

    princpios ainda que rudes, na natureza: se estes bastam, ento desterre -se amedicina, que deve sua origem observao das coisas saudveis, e nocivas, e ,segundo alguns, toda emprica: porque, antes dela se reduzir a corpo de cincia,alguns souberam ligar uma ferida, e curar uma febre com o descanso, e inediaguiados mais da necessidade, que da razo. Digamos tambm que arquitetura no uma arte; porque sem ela fabricaram os primeiros homens suas cabanas. Digamos omesmo da dana, e da msica; pois no h nao alguma em que no haja um tal,ou qual exerccio destas artes. Concluamos, pois, que se qualquer casta de discurso

    merece o nome de eloqncia, ento esta anterior a arte. Porm, se nem todos osque falam se podem chamar oradores, nem os que antes da arte falavam em pblicoo faziam como verdadeiros oradores; ento devemos confessar que a arte a queforma o orador, e que este por conseqncia de nenhum modo pode existir antesdela.

    Com estas respostas se satisfaz tambm outra objeo: que no h arte deuma coisa que praticam aqueles mesmos, que no aprenderam, e que h pessoas,que sem estudarem so oradores, em confirmao do que trazem o exemplo deDemades e squines oradores atenienses, dos quais o primeiro foi remador, e osegundo comediante, ofcios bem alheios da profisso literria.

    Tudo isso se convence de falso. Porque ningum certamente pode ser orador sem ter efetuado. E pelo que se respeita a estes, devemos dizer que no deixaramde aprender, mas sim que aprenderam tarde, ainda que squines desde de meninoaprendeu a ler, e escrever com o seu pai, que era mestre disto. De Demades no sesabe decerto se se aplicou aos estudos. Porm o contnuo exerccio, que tinha de

    orar, pde muito bem faz-lo, qual ele foi, pois na verdade este um mtodo bemeficaz de aprender. Alm disso, podemos dizer que dado que foste bom orador,muito melhor sem dvida haveria de o ser com a arte, e estudo: nem ele se atreveua escrever os seus discursos, para por eles podermos fazer um melhor conceito dasua eloqncia.

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    Estas so as objees principais que se fazem contra a retrica. Ainda hmais, mas deixemo-las de lado, assim porque so de menosprezo, como porquefacilmente se podem reduzir a estas. Ora, que haja uma arte da eloqncia, mostra -se brevemente com as razes seguintes. Porque ou se chame A rte , como quer Cleantes, aquela que pe um mtodo , e ordem regular nas matrias, em que a nohavia; e ningum duvidar que em bem falar haja uma certa ordem, e um caminhoseguro pelo qual nos devemos conduzir: ou abracemos a definio, que comumentese segue, que a arte uma coleo de conhecimentos certos, e provados pelaexperincia para alcanar algum fim til vida, e j mostramos que tudo isto se achana eloqncia.

    Alm disto, esta como as demais artes, pois consta da teoria e prtica. Mas

    se a dialtica arte, como quase todos atestam, no pode deixar de a ser aeloqncia que no difere dela no gnero, mas somente na espcie. Finalmente nose pode duvidar que haja uma arte daquilo em que uns obra m por acaso, e outroscom regra, e em que os aprenderam os preceitos fazem as coisas melhor do queaqueles que no aprenderam. Ora, certo em matria de eloqncia, que no s oinstrudo nos preceitos dela exceder ao ignorante, mas ainda o mais instrud o aomenos instrudo, e que isto assim no fosse, no teramos tantas regras, e tograndes mestres que as ensinaram. Todos, pois, devem confessar que h uma arte

    de eloqncia...

    D o abuso e uso da arte

    Nenhum, porm, exija de mim esta casta de preceitos, que vejo dar a quasetodos os retricos, prescrevendo a seus discpulos como umas leis indispensveis eimudveis, a necessidade de exrdio, e o modo de o fazer, depois a narrao, e assuas regras, a proposio depois, ou como querem alguns a digresso, da certaordem de questes, e assim outras mais, que alguns dos principiantes seguemcomo por obedincia, e to servilmente, como se a coisa no pudesse ser de outromodo. Seria na verdade eloqncia uma arte bem curta, e fcil, se se contivesse em

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    um aranzel destes to breve e uniforme. Mas as regras variam segundo os casos, ostempos, a ocasio e a necessidade.

    Por isso, a coisa mais essencial em um orador a Prudncia , porque esta

    varia os expedientes segundo a ocorrncia dos casos. Que farias tu em dar a umgeneral, para formar um exrcito em ordem de batalha estas regras: que precisoarranjar a vanguarda; avanar as duas alas e postar na frente delas a cavalaria? Esta ser talvez a melhor forma, quando tiver lugar. Porm ser preciso mud-lasegundo a natureza do lugar, se, por exemplo, se encontrar um monte, se se opuser um rio, e se colinas, bosques e aspereza do stio nos no deixarem seguir aquelaordem. Ser preciso mud-la tambm segundo o gnero de inimigos, que tivermospara combater, e segundo a qualidade da peleja. Umas vezes deveremos baralhar

    em forma regular, outras por pelotes triangulares, aqui com o corpo de reserva, lcom a legio, algumas vezes mesmo ser bom virar as costas, e fingir uma fugida.

    Do mesmo modo, pois, as causas que nos ensinaro, se h de haver exrdio, ou no, se dever ser breve ou extenso, se dirigido pessoa do juiz, ou aoutro por meio da apstrofe: se a narrao dever ser precisa, ou mais larga,seguida ou interrupta, na ordem natural, ou na inversa: o mes mo se deve dizer daordem, com que se devem tratar os pontos da causa, pois na mesma uma parte temmuitas vezes interesse em provar primeiro um ponto, e outra outro. Porque estespreceitos no so umas leis sagradas, ou uns plebiscitos inalterveis. A no ser assim, nem eu tomaria o trabalho de os escrever. Mas se aquela mesma utilidadenos aconselhar outra coisa, deve-la-e-mos seguir, e desemparar a autoridade dosmestres.

    Na verdade uma advertncia importante farei eu , e a repetirei uma, e muitasvezes; e que o orador no perca nunca de vista estes dois pontos: que coisa sejadecente e que coisa seja conveniente . Ora, muitas vezes conveniente mudar em

    parte a ordem, e mtodo estabelecido pelas regras da arte, e algumas vezestambm isto mesmo decente, como veremos que nas esttuas e pinturas sevariam as figuras, os semblantes e as situaes... Na pintura a face inteira maisbela. Contudo, Apeles pintou o retrato de dAntonio de perfil, para lhe encobrir adeformidade da falta de um olho. E no temos ns de encobrir algumas coisas no

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    discurso, ou porque se no devem mostrar, ou porque seno podem exprimir comdignidade? Como fez Timantes, creio que natural de Delos, naquele quadro em quevenceu a Colote de Teus. Pois no sacrifcio de Efigenia, tendo pintado a Calchanteem mar de tristeza, a Ulisses ainda mais triste, e a Menelau na maior dor, que a artepde exprimir: esgotados, no tendo j com que pintar dignamente a consternaode seu pai, tomou o expediente de lhe cobrir a cabea, deixando deste modo considerao de cada um o julgar, qual ela seria...

    Em consequencia de tudo isso, o meu costume foi sempre ligar-me, quantomenos pudesse a estes preceitos, que chamam catlicos, isto , universais, e semexceo. coisa rara achar uma regra destas, que em um, ou outro caso no falhe,ou no se possa alterar. Destes casos trataremos individualmente nos seus lugares.

    Por ora, no quero que os mancebos se julguem assaz instrudos uma vez,que tiverem de cor alguns destes compndios de retrica, que correm, e que tenhampor seguros sombra destes, como decretos dos retricos. A arte de falar bemdemanda um grande trabalho, um estudo contnuo, muito exerccio, uma experincialarga, e uma prudncia consumada. As regras tambm lhe serve de muito, mas , seestas mostram o caminho reto, e no um rodado estreito, do qual quem se noquiser apartar h de experimentar forosamente a mesma tardana, e embarao queexperimentam os que andam na corda. Assim deixamos ns muitas vezes a entradareal para tomarmos um atalho; e se as pontes arruinadas pelas enchentes cortarama estrada, nos vemos obrigados a dar volta; e samos pela janela, quando o incndiotem ocupado as portas. A eloqncia tem muita extenso, e variedade. Todos osdias se esto oferecendo coisas novas, e por mais que se tenha dito, no se temdito tudo. Contudo verei se posso dizer o melhor, que at agora se tem ensinado arespeito dela, mudando, acrescentando, e tirando o que bem me parecer.

    A que classe de artes pertence a retrica

    Havendo trs classes de artes, umas que param na especulao, isto , noconhecimento, e contemplao do seu objeto, como a astrologia, que de si no sedirige a ao alguma, mas contenta-se com conhecer somente o que procura; as

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    quais artes os gregos chamam de tericas; outras que consistem na ao qual seencaminham, param nela, e no deixam depois da ao efeito algum, e se chamamprticas, como a dana; outras enfim chamadas poticas, as quais se terminam emum certo artefato, e obra sensvel, e subsistente depois da ao, qual a pintura:podemos dizer que a eloqncia prtica, porque por meio da ao que cumpre asua obrigao, e esta a opinio comum...

    Qual conduz mais para a eloqncia o estudo, ou a natureza

    Tambm se costuma questionar, qual das duas coisas conduz mais para a

    eloqncia, a natureza ou o estudo. Esta questo bem escusa para o fim a quenos propomos nesta obra, que formar um orador consumado, o qual sem umacoisa, e outra no pode ser. Contudo para decidir esta questo convm muito saber o estado dela.

    Porque se ns consideramos estas duas coisas separadas uma de outra, eem diferentes sujeitos, o talento natural ainda s por si sem estudo valer muito; oestudo sem talento, nada.

    Concorrendo, porm, unidas estas duas coisas no mesmo orador necessrio fazer distino: ou elas concorrem em um gro medocre, e entoprepondera ainda o natural sobre o estudo: ou em um gro perfeito, e neste casomais dever o orador ao seu estudo, e diligncia que ao seu talento. Assim como osterrenos estreis por mais que os cultivem nada produzem; os frteis, ainda que osno amanhem sempre do alguma coisa; um cho fecundo, porm, sendo cultivadocomo deve ser, dar um fruto abundantssimo, no qual ter mai s parte o trabalho docolono do que a bondade do terreno: pelo mesmo modo se Praxiteles pretendesse

    formar uma esttua da pedra spera serve, eu antes quereria o mrmore de Parosainda que tosco: porm, se o mesmo trabalhasse este mrmore, mais valeria o feitioque o mrmore. Assim podemos dizer que a natureza no orador a matria, e oestudo o feitio. Este quem lhe d a forma, aquela quem a recebe. Nada vale ofeitio sem matria. A matria ainda sem feitio tem seu preo. Um feitio semperfeitssimo excede qualquer matria por preciosa que seja.

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    Origem da eloqncia e da retrica

    Nem nos deve demorar muito tempo esta questo: qual seja a origem daeloqncia? Porque quem h que duvide que os homens logo que foram criadosreceberam da mesma natureza o dom da palavra, que certamente o fundamentoda eloqncia; que o interesse foi quem fez os homens se aplicassem a cultivar eargumentar este dom; em que enfim a arte e o exerccio foram os que lhe deram altima perfeio?

    Eu no acho razo queles que atribuem os primeiros ensaios da eloqncia

    aos que ao princpio foram acusados em juzo, pela razo, se haviam de se esforar em falar mais apuradamente. Pois ainda que esta origem seja mais honrosa eloqncia, no pode, contudo, ser a primeira. A acusao naturalmente primeiraque a defesa, e assim atribuir a inveno a esta, seria o mesmo que dizer, que aespada fora primeiro fabricada por quem se quis defender, e no por quem quisofender os outros.

    (Ccero d a primeira origem da eloqncia aos fundadores das sociedadescivis, e aos legisladores, os quais por fora haviam de ser eloqentes. Eu, porm,no lhe acho razo. Porque ainda agora h naes vagabundas, sem cidades, esem leis, nas quais h homens eloqentes, que desempenham as embaixadas,acusam, e defendem, e passam por mais bem falantes, uns que outros.)

    Quem deu, pois, a primeira origem eloqncia foi a natureza, e a retrica aobservao. Porque assim como os homens observam que umas coisas eramsaudveis, e outras nocivas, formaram destas observaes um corpo de arte, a quederam o nome de medicina: assim os mesmos observando tambm os discursos

    certas coisas teis para persuadir, e outras contrrias a este fim, notaram asprimeiras para as praticarem, e as segundas para fugirem delas. Pela analogia eraciocnio, maneira destas regras, descobriram outras, que ajuntaram s primeiras,as quais todas tendo sido verificadas pelo uso e pela prtica, se comearam enfim aensinar em tratados metdicos.

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    H istria da retrica

    Retrica dos gregos dividida em trs pocas

    Depois daqueles mestres, de que fazem meno os poetas, o primeiro, dequem se conta formara alguns projetos a respeito da retrica foi Empdocles. Osescritores mais antigos desta arte foram Crax e Tsias, naturais da Siclia. A estesse seguiu Grgias da mesma ilha natural de Lencio, discpulo, segundo se diz, deEmpdocles. Este, pelo muito que viveu, (pois chegou a cento e nove anos deidade) foi contemporneo de muitos e por isso competiu com estes que acima disse,

    e sobreviveu ainda a Scrates. Com ele, pois, floresceram ao mesmo tempoThrasimacho de Calcednia, Prdico de Sio, Protgoras de Abdera, que dizemensinava a Evathlo por dez mil denrios aquela arte, que este depois publicou,Hpias de Elis, a quem Plato chama Palamedes, e Alcidamante de Elea. No mesmotempo viveu tambm Antifonte, o qual comps uma arte, e foi o primeiro que fez umaorao em sua defesa, na qual alcanou grande reputao eloqente; viveuPolicrates, do qual dissemos escrevera um discurso contra Scrates, e Teodoro debizncio, um daqueles a quem Plato d o nome de artfices do discurso .

    De todos estes os primeiros, que se diz, trataram lugares comuns foramProtgoras, Grgias, Prdico e Trasmaco. Ccero se seu Bruto diz que antes dePricles nada se escreveu que tivesse algum ornato oratrio, e que s deste orador corriam alguns escritos que merecem louvor. Eu na verdade no acho neles coisadigna de fama deste grande homem: que por isso no me admiro hajam muitos, que julgam, que ele nada escrevera, e que o que corre em seu nome no dele. A estessucederam outros muitos. Mas, o mais clebre ouvinte de Grgias foi Iscrates, eainda que os autores no convm sobre quem foi seu mestre, nos seguimos a Aristteles, que assim o diz.

    Desde este tempo se principiaram a dividir os retricos em diferente seitas.Iscrates teve discpulos excelentes em todo o gnero de estudos; e sendo j muitovelho, (pois chegou a completar noventa e oito anos) Aristteles nas lies de tarde

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    principiou a ensinar a arte oratria, repetindo frequentemente, segundo contam, overso clebre de tragdia.

    Falando Iscrates, feio calar-me .

    De ambos, h arte; a de Aristteles, porm, mais extensa e compreendidaem mais livros. No mesmo tempo viveu Teodetes, de cuja obra falamos atrs, eTeofrasto discpulo tambm de Aristteles, o qual escreveu sobre a retrica comexatido.

    Depois deste tempo comearam os filsofos, e principalmente os maisclebres dos esticos, e peripatticos a cultivar, e ilustrar esta arte ainda com maiscuidado que os mesmos retricos. Hermgoras fez depois um como novo e prpriosistema de retrica, que muitos seguiram. Ateneu imitou-o, e chegou a igual-lo.Escreveram depois muito sobre a mesma arte Apolnio Molon, Areu, Ceclio, eDionsio de Alicarnasso.

    Nenhum, porm, se fizeram mais clebres e tiveram mais sqito do que Apolodoro de Prgamo, mestre que foi de Cesar Augusto na cidade de Apolnia, eTeodoro, que sendo natural de Gadara, quis antes chamar-se Rdio, cujas lies sediz ouvira com muita ateno Tibrio Cesar, tendo -se retirado para aquela ilha.Estes dois escritores seguiram sistemas opostos, e daqui veio o chamarem-se seus

    discpulos Apolodoreos, e Teodoreos maneira dos que seguem diversas seitas eescolas na filosofia.

    De Apolodoro temos muito pouco escrito; e mais podemos fazer juzo de seuspreceitos pelos discpulos que deles escreveram, que pelo que o mesmo nos deixou.Dentre estes, os mais exatos foram C. Valgio, e Atico que escreveram, aquele emlatim, este em grego. Porque deste Apolodoro parece ser s a arte dada luz, edirigida a Marcio, no reconhecendo ele na carta, que escreveu a Domicio, as outrascomo suas. Teodoro deixou mais obras, e ainda vivem pessoas, que conheceramHermagoras seu discpulo.

    Retrica dos romanos dividida tambm em trs pocas

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    O primeiro dos romanos de que tenho notcia trabalhasse alguma coisa nestamatria foi Marco Cato o Censor. Depois Marco Antonio principiou a esc rever umaarte. Nem outra obra temos dele seno esta, e ainda imperfeita. Seguiram -se aestes outros escritores menos clebres, de que no deixarei de fazer meno emqualquer ocasio que tiver.

    Ccero, este modelo singular entre ns da prtica e ensino do s preceitosoratrios, foi quem deu o principal lustre, assim s regras da arte, como eloqncia. A modstia pediria nos calssemos depois dele, se ele mesmo nodeclarasse que os seus livros da Inveno Retrica lhe tinham escapado na suamocidade, e se nos do orador no tivesse omitido de propsito muitos preceitosmidos, que requerem quase todos os que desejam instruir -se. Cornsio tem escrito

    muito desta arte. Stertnio e Galio o pai nos tem deixado tambm alguma coisa.Com mais exatido e cuidado ainda trataram desta arte Celso e Lenas, anteriores aGalio, e no nosso tempo Virgnio, Plnio e Rutlio. Ainda hoje h alguns autoresilustres nesta matria; que se compreendessem tudo nos seus tratados poupar-me-iam este meu trabalho. Eu no os nomeio porque ainda vivem. Um tempo virprprio para o seu elogio, a posteridade, digo, onde chegar a sua virtude emerecimento, sem que chegue a inveja.

    Contudo, depois de tantos e to abalizados escritores no deixarei de interpor o meu juzo em algumas matrias. Eu no me ligo a escola alguma, como outrosfazem levados no sei de que superstio, e com o meu exemplo dou a mesmaliberdade aos meus leitores para escolherem o que quiserem. Enfim como ajunto emum corpo as ideias de muitos, onde o engenho no tiver lugar para coisas novas,contentar-me-ei ensinando as mesmas doutrinas dos antigos mestres, com merecer o louvor de escritor laborioso e diligente.

    D as partes da eloqncia e da retrica

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    Conforme a maior e melhor parte dos escritores, cinco so as part es daeloqncia a saber, inveno, disposio, elocuo, memria e pronunciao, ouao, pois tem um e outro nome.

    Com efeito, todo o discurso, que faz algum sentido, h de ter necessariamente duas coisas: pensamentos e palavras, objeto, aqueles, dainveno, e estas da elocuo. Ora, se ele breve, cingindo a uma orao s, nonecessitar talvez de mais nada. No , porm, assim, se for mais comprido: entonecessita de mais coisas. Porque no basta s sabermos o que havemos de dizer, ede que modo, mas tambm em que lugar convm se diga. necessria, pois, adisposio. Mas nem poderemos dizer todas as coisas, que a matria pede, nemcada uma em seu lugar, sem nos ajudar a memria. Esta, portanto, deve ser a

    quarta parte. Todas estas partes, porm, se deitam a perder pela pronunciao m,ou na voz, ou no gesto. Logo, a esta se deve dar necessariamente o quinto lugar.

    Nem se devem ouvir alguns, que com Albucio querem no haja mais que astrs primeiras partes, pela razo de que a memria e a ao so mais partes danatureza do que da arte; pois destas mesmas daremos regras no seu lugar.

    D os meios de persuadir de que se serve a eloqncia

    Todo o discurso consta ou de coisas, que so significadas, ou de coisas, quesignificam, quero dizer de pensamentos e palavras.

    A eloqncia faz-se perfeita com trs coisas natureza, arte e exerccio. Alguns acrescentam a estas uma quarta parte, que da imitao. Ns, porm, acompreendemos na arte.

    Trs so os meios que o orador deve pr em uso para persuadir, a saber:convencer, mover e atrair.

    Estes meios nem sempre todos tero lugar em qualquer causa ou matria quese houver de tratar. Algumas h que no admitem paixes, as quais, assim comonem sempre tem lugar, assim, onde entram, tem uma fora maravilhosa.

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    Qual seja a matria da eloqncia

    Eu julgo que a matria da eloqncia so todas as coisas que se prope o

    orador para ele falar; nem este meu sentimento destitudo de autoridade. PoisScrates no dilogo de Plato intitulado Grgias parece dizer a este s ofista que amatria da eloqncia no consistia nas palavras, mas sim nas coisas. E no dilogoque tem por nome Fedro, mostra o mesmo Scrates evidentemente, que aeloqncia no tem somente uso nos tribunais e nas assemblias populares, masainda nos negcios particulares e domsticos. Do que se deixa ver, que este mesmoera o sentimento de Plato.

    Ccero em um lugar diz, que o objeto da eloqncia so todas as matrias,que se lhe prope; mas cr ao mesmo tempo, que nem todas, mas s certasmatrias se lhe prope. Em outro lugar, porm, que a obrigao do orador falar detodos e quaisquer assuntos: ainda que, diz ele, a fora desta palavra, orador, e asua profisso o parece obrigar a falar com ornato, e copia em qualquer sujeito, que

    se lhe proponha . E em outro lugar: como as aes da vida humana so a matriasujeita, em que o orador se ocupa; tudo o que a respeito desta h para conhecer,

    deve ele ser indagado, ouvido, lido, disputado, tratado e manejado...

    Contra isto costumam alguns fazer esta objeo: se tudo o que se pode propor ao orador matria da sua profisso, seguir -te-ia que deveria saber todas as

    artes . A isto poderia eu responder com Ccero: quanto ao meu parecer, ningum poder ser orador cabalmente perfeito sem primeiro ter conseguido o conhecimento

    de todas as cincias filosficas e artes. Eu, porm, me contentarei com que o orador no ignore a matria da arte, sobre que h de discorrer. Porque o mesmo orador no conhece certamente todas as artes, que so infinitas: e com tudo deve achar -sepreparado para falar de todas. Sobre que causas, pois, ele falar? Sobre aquelas,

    em que se instruiu. Pois o mesmo devemos dizer das artes. O orador se instruirprimeiro nas em que tiver de falar, e falar das em que se tiver instrudo.

    D iviso da matria geral da eloqncia em duas espcies de questes.

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    Todos convm em que h duas espcies de questes, umas indeterminadas ,outras determinadas . As indeterminadas so as que se tratam pr e contra ,abstraindo das circunstncias particulares das pessoas, tempos, lugares e outrassemelhantes. A estas chamam os gregos teses , Ccero proposies , outrosquestes gerais civis , outros questes filosficas, Atenco, enfim, parte da causa ...

    Questes determinadas so as que se compem do ajuntamento dascircunstncias particulares das coisas, pessoas, tempos etc. Os gregos lhe chamamhipteses , e os nossos causas . Estas tm sempre por objeto coisas , ou pessoas . Aquesto indeterminada sempre tem mais extenso, pois dela descende adeterminada . Isto se ver mais claramente em um exemplo. Questo indeterminada esta: se o homem deve casar? e determinada esta outra: se Cato deve casar?

    As questes indeterminadas tm o nome de questes gerais , o que a ser assim, as determinadas se devero chamar particulares . Em toda a questoparticular vai includa a geral, pois que esta sempre precede. Assim podemos dizer,que nas mesmas causas e hipteses tudo o que questo de qualidade , se reduz aquesto geral. Milo matou , por exemplo, a Clodio; matou justamente o agressor. Por ventura no vem a esta questo: se lcito, ou no, matar o agressor? Que?Nas questes mesmas de conjectura no so gerais tambm estas: se o dio, acobia coisa do delito? Quais se devem acreditar mais as testemunhas, ou osargumentos? J pelo que pertence ao estado de definio certo que tudo o quenele se questiona, se reduz a questes gerais.

    Ora, nas questes particulares, ou hipteses determinadas pela circunstnciada pessoa assim como no bastar a um orador ter tratado a tese geral, assimnunca, poder chegar a tratar a hiptese sem primeiro discutir a tese. De que modo,por exemplo, poder liberar Cato se deve ou no casar sem primeiro ter certo, queos homens em geral devem casar? ou como assentar se deve, ou no casar com

    Mrcia, sem primeiro assentar se lhe conveniente o casar?

    Classes gerais das hipteses

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    Duvida-se se so trs os gneros, ou classes das causas ou mais. E, naverdade, quase todos os escritores de maior autoridade para com os antigos secontentaram com esta diviso seguindo a Aristteles, que foi o primeiro que a deu,s com a diferena de dar o nome de eclesistico ao gnero deliberativo. Mas jento alguns dos retricos gregos, e Ccero nos livros do Orador, tentaram por demais, e agora a autoridade do maior es critor dos nossos tempos tem quasechegado a persuadir que os gneros das causas no s so mais de trs, masquase inumerveis...

    Os que defendem a diviso antiga, fazem trs espcies de ouvintes; uns quese ajuntam para deleitarem-se, outros que pedem conselho, e outros que so juzesnas causas. Examinando eu, lembrou-me discorrer deste modo: todo o ofcio do

    orador, ou tem lugar nos tribunais, ou fora deles. Se nos tribunais, bem se vsemelhantes questes a que classe pertencem; se fora, ou elas olham o tempopassado, ou futuro. As coisas passadas so objeto do louvor, ou vituprio, e asfuturas de deliberao. Mais. Tudo aquilo de que se h de falar, ou certo, ouduvidoso. Ns louvamos, ou vituperamos como nos parece, as aes certas. Dasduvidosas, em parte temos a liberdade da escolha, e destas se delibera, parte cometida a decises de outros, e destas se litiga em juzo...

    O mais seguro, pois, seguir o maior nmero de autores, e a razo mesmaconfirma esta diviso. H, pois, uma classe de hipteses, como ia dizendo, em quese contm o louvor, ou vituprio. Este gnero tomou o nome de laudativo da partemelhor. Outros lhe chamam demonstrativo. Um e outro apelido lhe parece vir dosgregos, que chamam a este gnero j encomistico, epidctico.

    A palavra, porm, epidctico me parece significar no tanto demonstrao,quanto ostentao, e ser muito diferente de encomistico. Assim como, pois, estapalavra abrange o gnero laudativo, assim no exclui os outros gneros. Por ventura

    negar algum que os panegricos so epidcticos? Eles, contudo, tem a forma deoraes suasrias e pela maior parte tratam dos interesses comuns aos gregos.Concluamos, pois, que as classes gerais das hipteses so trs, mas que cadaclasse, e gnero de causa podem ser de dois modos, pragmtico, ou epidctico. Asegunda classe, ou gnero de causas o deliberativo. O terceiro, a judicial. As mais

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    espcies de discursos devem recair nestes trs gneros. Pois nenhum se poderassignar, em que no tenhamos de louvar, ou vituperar, aconselhar, oudesaconselhar, intentar uma ao em juzo, ou defendermo -nos dela.

    Tambm no seguirei a opinio daqueles que se r estringem matria dognero laudativo ao que honesto, do deliberativo ao til, e do judicial ao justo,distribuio breve sim, e justa, mas falsa na sua aplicao. Porque estas coisasconcorrem em cada gnero a auxiliarem-se umas s outras. Pois no louvor se tratatambm do justo, e do til, nos conselhos do honesto, e raras vezes se acharcausa judicial em que se no encontre tratada destas matrias acima ditas, aomenos em alguma parte.

    Primeira classe geral das causas

    D iferentes formas de louvor, exrdio e provas deste gnero

    J que reparti todas as causas em trs classes gerais, irei seguindo a mesmaordem, e comearei primeiro pela que consta de louvor, ou vituprio. Aristteles eTeofrasto, que o seguiu, parecem excluir este gnero do nmero da s oraespragmticas, que tem por fim algum negocio, e reduzi-lo inteiramente ao deleite purodos ouvintes, o que o mesmo que epidctico, que significa ostentao, parececomprovar.

    Mas o uso dos romanos introduziu as oraes deste gnero tambm nosnegcios civis da Repblica. Pois esta toma parte nos elogios fnebres, que muitasvezes se encarregam aos magistrados por decreto do Senado. Alm disto, louvar uma testemunha, ou vituper-la influi muito no bom, ou mau sucesso das causascriminosas, e aos mesmos rus, que so trazidos a juzo, se lhes permite o darem

    pessoas, que os louvem e recomendem perante os julgadores.

    As oraes tambm, que Ccero publicou contra seus concorrentes eopositores aos cargos, e contra Piso, Clodio, e Curio foram tidas no Senado comooutros tantos pareceres e discursos suasrios.

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    Isto no obstante, no nego haja tambm oraes neste gnero compostass para o fim de ostentar o engenho, e eloqncia, com so, por exemplo, oslouvores dos deuses, e dos heris da antiguidade ...

    Os exrdios neste gnero, julga o mesmo Aristteles, so os em que o orador tem mais liberdade. Porque ou se podem tirar uma matria muito remota, comoIscrates fez no Elogio de Helena, ou de alguma matria vizinha, como o mesmo fezno Panegrico, queixando-se de se honrarem mais as virtudes e partes do corpo,que as do nimo, e Grgias no seu discurso Olmpico, comeando pelo louvor dosque primeiro instituram semelhantes assemblias nacionais. O exemplo destesoradores seguiu Crispo Salustio na histria, que escreveu das guerras de jugurta, ecatilina, principiando com exrdios, que nada pertenciam matria da sua histria.

    Ora, assim como o louvor, quando pragmtico, requer provar slidas everdadeiras: assim o que epidtico tem s vezes suas provas aparentes eespeciosas, como se algum quisesse mostrar que Rmulo fora filho de marte, ecriado por uma loba, e para prova desta origem divina se servisse das seguintesrazes: porque primeiramente lanado na corrente do Tibre no pde ser morto;segundo porque as aes que obrou foram to maravilhosas, que no inverossmilfoste filho do deus que preside a guerra; terceiro, porque os mesmos homens do seutempo no puseram em dvida ter ele sido recebido no cu. Algumas aes terotambm sua desculpa especiosa, como por exemplo se um orador, louvando aHercules, justificasse aquela ao vergonhosa, com o que trocou o prprio traje como da rainha da Lidia, e se ps a fiar. Mas o que prprio do gnero laudativo no tanto o provar, quanto o amplificar e ornar as aes.

    Objeto de louvor e lugares prprios dele

    O louvor tem especialmente lugar nos deuses e nos homens. Contudo outrascoisas h que tambm se podem louvar, como os animais e coisas insensveis. Nosdeuses louvaremos em geral, primeiramente a majestade e excelncia de suanatureza, depois as virtudes prprias de cada um e por fim os seus inventos, quederam alguma utilidade aos homens...

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    O louvor dos homens tem mais variedade. Porque primeiramente se tira detrs tempos, a saber: do que precedeu ao seu nascimento, do que viveram e do quese seguiu depois da morte nos que j so falecidos.

    Antes do nascimento podem dar matria ao louvor do homem sua ptria, paise antepassados, e isto por dois modos: se estes so ilustres, louvaremos o homempor ter correspondido a tua nobreza; se de baixa condio, louv -lo-emos por ter enobrecido com suas aes. Ao mesmo tempo, pertencem os orculos, ou agouros,que prognosticaram a gloria futura de qualquer: como se diz, que os orculosprofetizaram, que aquele, que nascesse de tetis, viria a ser o maior que seu pai.

    O louvor do homem no tempo da vida se tira de trs coisas, das qualidadesdo esprito, das do corpo e dos bens extrnsecos. O louvor das qualidades do corpoe dos bens da fortuna o menos importante, e por isso se pode tratar pr e contra.Porque umas vezes louvamos ns a gentileza e robustez do corpo, como Homerofaz em Agamenon e Aquiles; outras a mesma fraqueza conduz muito para fazer admirar mais s outras qualidades, como quando o mesmo