instituições escolares; conceito, historia, historiografia e práticas - dermeval saviani

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  • 7/24/2019 Instituies Escolares; Conceito, Historia, Historiografia e Prticas - Dermeval Saviani

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    INSTITUIES ESCOLARES: CONCEITO, HISTRIA,HISTORIOGRAFIA E PRTICAS1

    School institutions: Concept, history, historiography and practices

    Dermeval Saviani2

    RESUMO

    O presente artigo trata do conceito de instituio em seus desdobramentos para a histria, historiografiae prticas das instituies educativas. O texto se encontra estruturado em dois momentos. No primeiro,partindo das quatro acepes do termo instituio, destaca suas principais caractersticas, buscando

    precisar o significado da expresso instituies educativas. No segundo momento lana idias para ahistria, a historiografia e a anlise das prticas das instituies escolares, trazendo elementos para odebate sobre a utilizao da noo de cultura escolar na anlise das prticas pedaggicas e para acompreenso da origem e desenvolvimento histrico da escola, vista como um fenmeno de continuidadena descontinuidade.

    Palavras-chave:Instituies educativas; Histria das instituies escolares; Histria da educao.

    ABSTRACT

    The present paper deals with the concept of institution in its developments for the history, historiographyand practices of the educational institutions. The text is structured in two phases. In the first one,starting from the four meanings of the term institution, it points out their main characteristics, in anattempt to exact the meaning of the expression educational institutions. In the second one, it introducesideas for the history, historiography, and analysis of the school institution practices, bringing elementsfor the debate about the use of the notion of school culture in the analysis of the pedagogicalpractices and for the understanding of the historical origin and development of the school, seen as acontinuity phenomenon in the discontinuity.

    Key words:Educational institutions; History of the school institutions; History of the education.

    1Este artigo corresponde, com alguma adaptao, Conferncia de abertura da V Jornada do Histedbr, proferida no dia

    9 de maio de 2005, em Sorocaba.2Professor emrito da Unicamp, coordenador geral do Histedbr e pesquisador do CNPq.

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    1. O conceito de instituio.

    A palavra instituio deriva do latim institutio, onis. Este vocbulo apresenta uma variao designificados que podem ser agrupados em quatro acepes: 1. Disposio; plano; arranjo. 2. Instruo;ensino; educao. 3. Criao; formao. 4. Mtodo; sistema; escola; seita; doutrina (TORRINHA, 1945,p. 434).

    Na primeira acepo aparece a idia de ordenar, articular o que estava disperso. Na segundaacepo a prpria idia de educar que se faz presente. nesse sentido que, em francs, a palavrainstituteur (institutrice no feminino) significa aquele que ensina, o mestre e, mais especificamente,o professor primrio, o que levou Franois Mauriac, grande poeta e escritor francs, a exclamar: Instituteur,de institutor, celui qui tablit... celui qui institue lhumanit dans lhomme; quel beau mot (ROBERT, 1978, p.1.013). A terceira acepo se refere tanto construo de objetos tal como se d na produo tcnica ouartstica, como criao e formao de seres vivos. Finalmente, a quarta acepo retm a idia decoeso, de aglutinao em torno de determinados procedimentos (mtodo); de determinados elementos

    distintos formando uma unidade (sistema); de certas idias compartilhadas (escola, aqui, no sentido deum grupo de indivduos reunidos em torno de um mestre ou orientao terica, como nas expressesescola filosfica, escola de Frankfurt, escola dos Annales); de uma crena e rituais comuns (seita);ou de um conjunto coerente de idias que orientam a conduta (doutrina).

    V-se, a partir dessa breve incurso ao lxico da palavra, que a expresso instituio educativasoa como uma espcie de pleonasmo. Com efeito, a prpria idia de educao j estaria contida noconceito de instituio, o que ilustrado por escritos como o de Montaigne, De linstitution des enfants(ROBERT, 1978, p. 1.014) e pela obra de Quintiliano, Institutio oratoria (ou De institutione oratoria), emdoze volumes, que pode ser considerada um tratado da formao do orador mas que, mais precisamente,como nos esclarece Ferrater Mora (1971, p. 516), dentre os doze livros, dois deles o primeiro e oltimo tratam respectivamente da educao do jovem e das condies morais do orador . Mas ogrosso da obra est consagrado a estabelecer minuciosamente as regras da retrica. Em certo sentidopodemos, pois, dizer que essa obra contempla, de modo unitrio, as vrias acepes do termo instituio,

    pois implica um plano, a instruo, o ensino e a formao, assim como um mtodo, um sistema e umadoutrina em torno da retrica.

    De qualquer modo, base dessa aparente diversidade de significados, a palavra instituioguarda a idia comum de algo que no estava dado e que criado, posto, organizado, constitudo pelohomem. Mas essa ainda uma idia muito geral, pois as coisas que o homem cria so muitas e dos maisdiferentes tipos e nem todas podem ser consideradas como instituio.

    Assim, alm de ser criada pelo homem, a instituio se apresenta como uma estrutura materialque constituda para atender a determinada necessidade humana, mas no qualquer necessidade. Trata-se de necessidade de carter permanente. Por isso a instituio criada para permanecer. Se observarmosmais atentamente o processo de produo de instituies, notaremos que nenhuma delas posta emfuno de alguma necessidade transitria, como uma coisa passageira que, satisfeita a necessidade que ajustificou, desfeita. Para necessidades transitrias no se faz mister criar instituies. Elas se resolvem

    na conjuntura no deixando marcas dignas de nota na estrutura. Isto, obviamente, no obstante o fatoreconhecido e reiterado exausto de que as instituies, como todos os produtos humanos, por seremhistricos, no deixam, em ltima instncia de ser, tambm elas, transitrias. Mas sua transitoriedade sedefine pelo tempo histrico e no, propriamente, pelo tempo cronolgico e, muito menos, pelo tempopsicolgico.

    Mas, se as instituies so criadas para satisfazer determinadas necessidades humanas, isto significaque elas no se constituem como algo pronto e acabado que, uma vez produzido, se manifesta como umobjeto que subsiste ao da qual resultou, mesmo aps j concluda e extinta a atividade que o gerou.No. Para satisfazer necessidades humanas as instituies so criadas como unidades de ao. Constituem-se, pois, como um sistema de prticas com seus agentes e com os meios e instrumentos por eles operadostendo em vista as finalidades por elas perseguidas. As instituies so, portanto, necessariamente sociais,tanto na origem, j que determinadas pelas necessidades postas pelas relaes entre os homens, como noseu prprio funcionamento, uma vez que se constituem como um conjunto de agentes que travamrelaes entre si e com a sociedade a que servem.

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    Ainda, se as instituies surgem para satisfazer necessidades humanas, isto no significa que todae qualquer necessidade humana exige a existncia de alguma instituio para ser atendida. Sendo o

    homem um ser de carncia, desde sua origem ele se move por necessidades, podendo-se, no limite,considerar que o que se chama desenvolvimento da humanidade se identifica com o processo de satisfaodas suas necessidades. Esse processo, no entanto, se realiza, num primeiro momento, de forma espontnea,ou seja, a atividade se desenvolve de maneira assistemtica e indiferenciada, no se distinguindo os seuselementos constitutivos. A partir de certo estgio de desenvolvimento, coloca-se a exigncia de intervenodeliberada, identificando-se as caractersticas especficas que diferenciam a atividade em questo dasdemais atividades s quais se achava ligada. a partir da que determinada atividade se institucionaliza,isto , cria-se uma instituio que fica encarregada de realiz-la. Em suma, podemos dizer que, de modogeral, o processo de criao de instituies coincide com o processo de institucionalizao de atividadesque antes eram exercidas de forma no institucionalizada, assistemtica, informal, espontnea. A instituiocorresponde, portanto, a uma atividade de tipo secundrio, derivada da atividade primria que se exercede modo difuso e inintencional. Tendo em vista as caractersticas indicadas, as instituies necessitam,

    tambm, se auto-reproduzir, repondo constantemente suas prprias condies de produo, o que lhesconfere uma autonomia, ainda que relativa, em face das condies sociais que determinaram o seusurgimento e que justificam o seu funcionamento. E, se isso vale para as instituies, de modo geral, afortiori se aplica s instituies educativas, uma vez que estas tm a prerrogativa de produzir e reproduziros seus prprios agentes internos. Isto foi evidenciado com lgica frrea na teoria do sistema de ensinoenquanto violncia simblica, como se pode ver na proposio de nmero 4, que trata do sistema deensino, isto , o trabalho pedaggico institucionalizado:

    Todo sistema de ensino institucionalizado (SE) deve as caractersticas especficas de suaestrutura e de seu funcionamento ao fato de que lhe preciso produzir e reproduzir, pelos meiosprprios da instituio, as condies institucionais cuja existncia e persistncia (auto-reproduo dainstituio) so necessrios tanto ao exerccio de sua funo prpria de inculcao quanto realizaode sua funo de reproduo de um arbitrrio cultural do qual ele no o produtor (reproduo

    cultural) e cuja reproduo contribui reproduo das relaes entre os grupos ou as classes (reproduosocial) (BOURDIEU e PASSERON, 1975, p. 64 negritos e itlicos dos autores).

    Levando em conta o caso particular da educao, notamos que se trata de uma realidade irredutvelnas sociedades humanas que se desenvolve, originariamente, de forma espontnea, assistemtica, informal,portanto, de maneira indiferenciada em relao s demais prticas sociais. A institucionalizao dessaforma originria de educao dar origem s instituies educativas. Estas correspondem, ento, a umaeducao de tipo secundrio, derivada da educao de tipo primrio exercida de modo difuso einintencional. Nos termos de Bourdieu e Passeron (1975, p. 53-75), trata-se da diferena entre trabalhopedaggico primrio, que se guia por uma pedagogia implcita e trabalho pedaggico secundrio, que seguia por uma pedagogia explcita, configurando-se como trabalho pedaggico institucionalizado outrabalho pedaggico escolar.

    Quando consideramos a instituio educativa, isto , quando tomamos a educao na suaespecificidade, como ao propriamente pedaggica, cuja forma mais conspcua se expressa na escola,observamos que esse destacar-se da atividade educativa em relao aos demais tipos de atividade noimplica necessariamente que as instituies propriamente educativas passem a deter o monoplio exclusivodo exerccio do trabalho pedaggico secundrio. Na verdade, o que constatamos uma imbricao deinstituies de diferentes tipos, no especificamente educativas que, nem por isso, deixam de cuidar, dealgum modo, da educao. Assim, para alm da instituio familiar votada, pelas suas prpriascaractersticas, ao exerccio da educao espontnea, vale dizer, do trabalho pedaggico primrio,encontramos instituies como sindicatos, igrejas, partidos, associaes de diferentes tipos, leigas econfessionais, que, alm de desenvolver atividade educativa informal, podem, tambm, desenvolvertrabalho pedaggico secundrio, seja organizando e promovendo modalidades especficas de educaoformal, seja mantendo escolas prprias em carter permanente. Nesse mbito, as instituies que sedestacam nitidamente entre as demais, so, sem dvida, a Igreja e o Estado. No entanto, no podemosperder de vista que mesmo a famlia que, como se observou, se dedica ao trabalho pedaggico primrio,

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    pde albergar, durante um perodo relativamente longo, uma instituio educativa, qual seja, a instituiodo preceptorado.

    2. Idias para a histria, a historiografia e a anlise das prticas das instituies escolares.

    O tema central da V Jornada do HISTEDBR girou em torno das instituies escolares brasileiras,consideradas sob trs aspectos: sua histria, sua historiografiae suasprticas. claro que a distino entreesses aspectos apenas formal, pois incidem sobre um mesmo objeto, as instituies escolares brasileirassendo, pois, objetivamente inseparveis. Trata-se, contudo, de uma distino no arbitrria, mas logicamentenecessria, pois corresponde ao caminho que o ser humano percorre para apreender a realidade e areproduzir no plano do conhecimento. No entanto, convm observar que a introduo das prticasentreos aspectos a serem considerados envolve uma mudana no critrio que orientou a enunciao do temada Jornada, suscitando questes como: asprticas, ento, no seriam abordadas em termos histricos? Se

    a instituio , por definio, uma unidade de ao, um sistema de prticas, como fazer histria dasinstituies escolares sem considerar as suas prticas?Concedo que essas perguntas podem ser interpretadas como impertinentes, como produtos de

    uma mente que procura introduzir dificuldades onde elas no existem, ou pelo menos, no so relevantes.Com efeito, pode-se considerar que a introduo, a, da noo deprticas teve o sentido de destacar esseaspecto, de chamar a ateno para a sua importncia. E esse destaque se justificaria diante do fato de quea histria das instituies teria incidido mais sobre as formas de sua organizao, a partir dos documentosque as instituram ou as reformaram, ficando de lado, ou em segundo plano, a anlise das prticas porelas desenvolvidas.

    De qualquer modo, considerei til levantar esse problema, mesmo porque a introduo dasprticasnas investigaes de carter histrico-educacional traz uma srie de questes que precisam ser enfrentadas,a comear pela noo de cultura escolar ou cultura da escola, que recorrentemente aparece comocorrelato do conceito de prticas escolares. Por que se introduz, a, o conceito de cultura? Que

    conceito geral de cultura esta particularizao estaria supondo? Quais os seus pressupostos terico-filosficos? possvel afirmar que a escola tenha uma cultura prpria, distinta das culturas das demaisinstituies que convivem com ela em uma mesma formao social? Qual o grau de autonomia dessacultura escolar em relao cultura vigente na sociedade em que est inserida? Essas particularizaesda noo de cultura no estariam implicando a existncia de uma multiplicidade de culturas no interiorde uma mesma cultura? E o foco nas culturas particulares no estaria mascarando as caractersticasdistintivas da cultura de uma sociedade considerada em seu conjunto, de determinada poca histrica e,no limite, da prpria humanidade?

    vista das indagaes formuladas, ocorre-me lembrar a seguinte advertncia de lvaro VieiraPinto:

    A dupla realidade da cultura, de ser por uma de suas faces materializada em instrumentos, objetos

    manufaturados e produtos de uso corrente, e por outra de estar constituda por idias abstratas, concepesda realidade, conhecimentos dos fenmenos e criaes da imaginao artstica, correlacionadas uma eoutra face pelas respectivas tcnicas, leva o pensador ingnuo a desorientar-se ao conceitu-la, pois temdificuldade em utilizar o mtodo necessrio para chegar formulao racional do plano cultural emtotalidade(PINTO, 1969, p.125).

    E, logo adiante, chama a ateno para a dificuldade do pesquisador de lidar com a multiplicidadedas manifestaes culturais:

    A cultura aparece-lhe, no estado atual, como um infinito complexo de conhecimentos cientficos, decriaes artsticas, de operaes tcnicas, de fabricao de objetos, mquinas, artefatos e mil outrosprodutos da inteligncia humana, e no sabe como unificar todo esse mundo de entidades, subjetivasumas e objetivas outras, de modo a dar a explicao coerente que uma num ponto de vista esclarecedortoda esta extrema e diversificada multiplicidade(Idem, Ibidem).

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    Evidentemente, no cabe aqui a discusso desse problema. As perguntas foram lanadas apenas guisa de provocao para nos alertar sobre os rumos que devemos imprimir s nossas investigaes,

    assim como sobre a escolha das categorias de anlise com as quais nos aproximamos do objeto eexpressamos o conhecimento que dele construmos.

    Para efeitos desta exposio, a problematizao efetuada tinha apenas o intuito de justificar que,neste item, optei por abordar a questo relativa s instituies escolares tendo presente os trs aspectosdo enunciado do tema central, a saber, a histria, a historiografia e as prticas, considerados, porm, emconjunto e no nas suas particularidades.

    De modo geral, podemos conceber o processo de institucionalizao da educao como correlatodo processo de surgimento da sociedade de classes que, por sua vez, tem a ver com o processo deaprofundamento da diviso do trabalho. Assim, se nas sociedades primitivas, caracterizadas pelo modocoletivo de produo da existncia humana, a educao consistia numa ao espontnea, no diferenciadadas outras formas de ao desenvolvidas pelo homem, coincidindo inteiramente com o processo detrabalho que era comum a todos os membros da comunidade, com a diviso dos homens em classes a

    educao tambm resulta dividida; diferencia-se, em conseqncia, a educao destinada classedominante daquela a que tem acesso a classe dominada. E a que se localiza a origem da escola. Apalavra escola, como se sabe, deriva do grego e significa, etimologicamente, o lugar do cio. A educaodos membros da classe que dispe de cio, de lazer, de tempo livre passa a se organizar na forma escolar,contrapondo-se educao da maioria que continua a coincidir com o processo de trabalho.

    V-se, pois, que j na origem da instituio educativa ela recebeu o nome de escola. Desde aAntigidade a escola foi se depurando, se complexificando, se alargando at atingir, na Contemporaneidade,a condio de forma principal e dominante de educao, convertendo-se em parmetro e referncia parase aferir todas as demais formas de educao. Mas esta constatao no implica, simplesmente, umdesenvolvimento por continuidade em que a escola teria permanecido idntica a si mesma, conservandoa mesma qualidade e se desenvolvendo to somente sob o aspecto quantitativo. As continuidades podemser observadas, claro, sem prejuzo, porm, de um desenvolvimento por rupturas mais ou menosprofundas.

    Manacorda (1989, p. 14) assinala essa questo quando aproxima os ensinamentos de Ptahhotepno antigo Egito, que datam de 2.450 a.C., de Quintiliano, que viveu na antiga Roma entre os anos 30 e100 de nossa era. Constatando que o falar bem o contedo e o objetivo do ensinamento de Ptahhotep,Manacorda observa que no se trata, porm, do falar bem em sentido esttico-literrio, mas da oratriacomo arte poltica do comando, ou seja, nos termos de Quintiliano, uma verdadeira institutio oratria,educao do orador ou do homem poltico. E acrescenta:

    Entre Ptahhotep e Quintiliano passaram-se mais de dois milnios e meio, mais do que entre Quintilianoe ns; alm disso, as civilizaes egpcia e romana so muito diferentes entre si. No obstante, acho quese pode legitimamente confirmar esta continuidade de princpio na formao das castas dirigentes nassociedades antigas, e no somente naquelas. Encontraremos as confirmaes disto no decorrer do estudo,mas devemos precisar agora que a continuidade e a afinidade no vo alm deste objetivo proclamado,

    a saber, a formao do orador ou poltico, e que a inspirao e os contedos, a tcnica e a situao seroprofundamente diferentes de uma sociedade para outra (MANACORDA, 1989, p 14).

    Constatao semelhante aparece no trabalho de Giovanni Genovesi:

    Substancialmente, desde a civilizao sumria e egpcia (3238-525 a.C.) e da chinesa 2500 a.C. 476 d.C), a prtica do ensino se baseia sobre repeties, sobre transcries de textos e sobre umarigorosa memorizao; todas intervenes acompanhadas sistematicamente de um largo uso de puniescorporais. De princpio, porm, j na civilizao hebraica antiga (1.100 a.C.-70 d.C.), prescreve-seque estas ltimas sejam limitadas ao mnimo indispensvel, procurando basear o ensinamentoprincipalmente sobre o interesse dos alunos e sobre a gradualidade da aprendizagem. parte o deslocamento do eixo r eligioso ao laico no que se refere funo e gesto do ensino, a suaprtica no muda muito na Grcia arcaica (XXI sc. - VII sc. a.C.) e clssica (VII-IV sc. a.C.),ao menos at as propostas socrticas e, ainda mais, quelas platnicas, ao menos no que diz respeito aodiscurso pedaggico (GENOVESI, 1999, p. 38-39).

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    Manacorda retoma o mesmo tema na concluso de sua Histria da educao, referindo-se descoberta,j no antigo Egito, de uma constante da histria da educao, uma daquelas constantes que sempre so

    repropostas, embora sob formas diferentes e peculiares, descrevendo-a com as seguintes oposies:

    A separao entre instruo e trabalho, a discriminao entre a instruo para os poucos e o aprendizadodo trabalho para os muitos, e a definio da instruo institucionalizada como institutio oratoria,isto , como formao do governante para a arte da palavra entendida como arte de governar (o dizer,ao qual se associa a arte das armas, que o fazer dos dominantes); trata-se, tambm, da exclusodessa arte de todo indivduo das classes dominadas, considerado um charlato demagogo, um meduti.A conscincia da separao entre as duas formaes do homem tem a sua expresso literria naschamadas stiras dos ofcios. Logo esse processo de inculturao se transforma numa instruo quecada vez mais define o seu lugar como uma escola, destinada transmisso de uma cultura livrescacodificada, numa spera e sdica relao pedaggica (MANACORDA, 1989, p. 356).

    Recordando-nos que apenas recentemente a palmatria foi abolida nas escolas da Inglaterra, nstemos uma idia da impressionante continuidade dos castigos fsicos mencionados por Genovesi e dosadismo pedaggico na expresso de Manacorda.

    Se possvel detectar certa continuidade, mesmo no longussimo tempo, na histria das instituieseducativas, isso no deve afastar nosso olhar das rupturas que, compreensivelmente, se manifestam maisnitidamente, ao menos em suas formas mais profundas, com a mudana dos modos de produo daexistncia humana.

    Assim, aps a radical ruptura do modo de produo comunal, ns vamos ter o surgimento daescola, que na Grcia se desenvolver como paidia, enquanto educao dos homens livres, em oposio dulia, que implicava a educao dos escravos, fora da escola, no prprio processo de trabalho. Com aruptura do modo de produo antigo (escravista), a ordem feudal vai gerar um tipo de escola que emnada lembra a paidia grega. Diferentemente da educao ateniense e espartana, assim como da romana,em que o Estado desempenhava papel importante na organizao da educao, na Idade Mdia as

    escolas traro fortemente a marca da Igreja Catlica. O modo de produo capitalista provocar decisivasmudanas na prpria educao confessional e colocar em posio central o protagonismo do Estado,forjando a idia da escola pblica, universal, gratuita, leiga e obrigatria, cujas tentativas de realizaopassaro pelas mais diversas vicissitudes.

    Essa perspectiva da anlise da histria das instituies escolares pelo aspecto das rupturas permitirabordagens mais radicais como aquela que se apresenta ao final do livro de Baudelot e Establet, A escolacapitalista na Frana, onde os autores levantam trs hipteses de trabalho:

    1. A forma escolar (que se transpe e se transfigura no mito da eternidade da escola), quer dizer, aforma social caracterstica das prticas escolares, uma realidade transitria cujas causas e desenvolvimento preciso estudar (BAUDELOT e ESTABLET, 1971, p. 297-298).

    Por esta primeira hiptese, reforada pelo parntesis referido eternidade da escola, os autoresesto sugerindo que no se pode falar de uma escola que permanece a mesma ao longo do tempo.Contesta-se, pois, a continuidade histrica da escola.

    2. O aparelho escolar, enquanto produto histrico, inseparvel do modo de produo capitalista. No preciso, pois, procurar outros aparelhos escolares, transpostos em sociedades dominadas por outrosmodos de produo, mesmo que seja para a fazer funcionar por analogia com o mecanismo queestudamos de outras contradies de classes. A contradio entre feudalidade e campesinato servil,por exemplo, se manifesta no seio de um processo de reproduo das foras sociais, e notadamente deaparelhos ideolgicos de Estado de um tipo totalmente diferente. A Igreja medieval, no essencial, no uma instituio de ensino. De seu lado, a contradio histrica entre a burguesia e a feudalidade, quedesempenha inegavelmente um grande papel poltico na histria do aparelho escolar ao longo do perodode transio ao capitalismo, no , entretanto, jamais a contradio principal de algum modo deproduo, e permanece uma contradio secundria entre classes dominantes.

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    Esta nova hiptese situa a escola como um produto tpico do modo de produo capitalista. Suaconfirmao, portanto, desautorizaria o estabelecimento de qualquer linha de continuidade entre a escola

    moderna e contempornea e as instituies educativas anteriores.

    3. Enfim, ns colocaremos a hiptese, e ser preciso buscar verific-la, que a realizao da forma escolarno aparelho escolar capitalista diretamente responsvel pelas modalidades segundo as quais esteconcorre para a reproduo das relaes de produo capitalistas. Isto supe evidentemente que nselaboraramos pouco a pouco uma definio sistemtica da forma escolar, da qual ns simplesmenteindicamos que ela repousa fundamentalmente sobre a separao escolar, a separao entre as prticasescolares e o trabalho produtivo.

    Esta terceira hiptese sugere o peso decisivo, seno exclusivo da escola na responsabilidade pelareproduo do modo de produo capitalista. E a via para o cumprimento desse papel reprodutor odesenvolvimento da escola como uma instituio apartada do trabalho produtivo. Repe-se, portanto, a

    constante da histria da educao de que falava Manacorda: a separao entre instruo e trabalho.No deixa de ser interessante essa constatao: uma hiptese formulada no mbito do vigente modo deproduo capitalista a partir de uma anlise minuciosa do funcionamento da escola francesa em plenosculo XX, anlise esta centrada no entendimento da escola como um aparelho ideolgico de Estadoexclusivamente capitalista, termina por afirmar exatamente uma constante da histria da educao cujasorigens remontam ao antigo Egito. Tratar-se-ia, ento, de uma continuidade na descontinuidade?

    Como os prprios autores lanaram esses trs pontos guisa de hipteses a serem verificadas,elas podem servir de sugesto tanto para a realizao de novas pesquisas como para a discusso tericados resultados das pesquisas j desenvolvidas e em desenvolvimento. Com efeito, nessas hipteses sefazem presentes questes relativas seja histria das instituies escolares, seja sua historiografia, seja,ainda, s prticas escolares.

    Referncias:

    BAUDELOT, Christian e ESTABLET, Roger, Lcole capitaliste en France. Paris, Franois Maspero, 1971.

    BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean Claude,A reproduo: elementos para uma teoria do sistema de ensino.Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975.

    FERRATER MORA, Jos, Dicionrio de filosofa, tomo II. Buenos Aires, Sudamerica, 1971.

    GENOVESI, Giovanni, Pedagogia: dallempiria verso la scienza. Bologna, Pitagora, 1999.

    MANACORDA, Mario Alighiero, Histria da educao: da Antigidade aos nossos dias. So Paulo, Cortez/

    Autores Associados, 1989.PINTO, lvaro Vieira, Cincia e existncia: problemas filosficos da pesquisa cientfica. Rio de Janeiro, Paz eTerra, 1969.

    ROBERT, Paul, Petit Robert 1: dictionnaire alphabtique & analogique de la langue franaise. Paris, Socit duNouveau Littr, 1978.

    TORRINHA, Francisco, Dicionrio latino-portugus, 3 ed. Porto, Marnus, 1945.