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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 INSERÇÕES ESTRUTURAIS CONTEMPORÂNEAS BOMFIM, CARLOS A. A. (1); SANTIAGO, CYBÈLE C. (2) 1. UFBA, Universidade Federal da Bahia. Núcleo de Expressão Gráfica, Simulação, Projeto e Planejamento R. Caetano Moura, 121 - Federação, Salvador - BA, 40210-905 [email protected] 2. UFBA, Universidade Federal da Bahia. Escola Politécnica Rua Aristides Novis, 2 Federação, Salvador BA [email protected] RESUMO As ações de intervenção estrutural em edifícios de caráter histórico requerem estudos que atendam às condições dos programas de uso dos edifícios sem atentar contra a integridade do patrimônio. Tais ações, alicerçadas em técnicas construtivas contemporâneas para aplicação de sistemas estruturais adequados às características de pré-existência resultam nas inserções estruturais. As técnicas de simulação no cálculo estrutural e de inspeção das condições em que se encontram os materiais permitem diversas soluções para novos usos implícitos à estrutura do edifício antigo. No entanto, é necessário conhecer precisamente o sistema estrutural do edifício, para que tais intervenções físicas não o descaracterizem e resultem em inserções estruturais que dialoguem com os materiais próprios dos locais onde seriam construídos, tais como terra, pedra e madeira, ou sistemas mistos, constituídos desses materiais. Nesse contexto, este artigo, traz experiências de inserções estruturais no conjunto arquitetônico do Centro Histórico de Salvador, sua evolução e utilização nos séculos XVI ao XIX. . Palavras-chave: Estruturas Antigas; Conservação e Restauro; Inserção Estrutural; Sistemas Estruturais.

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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

INSERÇÕES ESTRUTURAIS CONTEMPORÂNEAS

BOMFIM, CARLOS A. A. (1); SANTIAGO, CYBÈLE C. (2)

1. UFBA, Universidade Federal da Bahia. Núcleo de Expressão Gráfica, Simulação, Projeto e

Planejamento R. Caetano Moura, 121 - Federação, Salvador - BA, 40210-905

[email protected] 2. UFBA, Universidade Federal da Bahia. Escola Politécnica

Rua Aristides Novis, 2 – Federação, Salvador – BA [email protected]

RESUMO

As ações de intervenção estrutural em edifícios de caráter histórico requerem estudos que atendam às

condições dos programas de uso dos edifícios sem atentar contra a integridade do patrimônio. Tais

ações, alicerçadas em técnicas construtivas contemporâneas para aplicação de sistemas estruturais

adequados às características de pré-existência resultam nas inserções estruturais. As técnicas de

simulação no cálculo estrutural e de inspeção das condições em que se encontram os materiais

permitem diversas soluções para novos usos implícitos à estrutura do edifício antigo. No entanto, é

necessário conhecer precisamente o sistema estrutural do edifício, para que tais intervenções físicas

não o descaracterizem e resultem em inserções estruturais que dialoguem com os materiais próprios

dos locais onde seriam construídos, tais como terra, pedra e madeira, ou sistemas mistos, constituídos

desses materiais. Nesse contexto, este artigo, traz experiências de inserções estruturais no conjunto

arquitetônico do Centro Histórico de Salvador, sua evolução e utilização nos séculos XVI ao XIX.

.

Palavras-chave: Estruturas Antigas; Conservação e Restauro; Inserção Estrutural; Sistemas Estruturais.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

INTRODUÇÃO

Dentre os desafios que a engenharia estrutural enfrenta, um dos maiores relaciona-se à

concepção de sistemas estruturais seguros e economicamente viáveis para estabilizar

grandes vãos provenientes dos projetos arquitetônicos. Com o auxílio de ferramentas da

informática, a engenharia aprimorou os métodos de cálculo, possibilitando soluções diversas,

adequadas às formas e funções da arquitetura. O advento da informática e os softwares de

cálculo estrutural tornaram obsoleto o estudo das técnicas simplificadas em face de métodos

com resultados bastante precisos como o dos elementos finitos, baseado na Teoria da

Elasticidade.

Na concepção de novos edifícios, a aplicação de conhecimento das tecnologias construtivas

atuais é parte inerente ao projeto de arquitetura e de engenharia. As dificuldades encontradas

na engenharia estrutural estão na elaboração de sistemas estruturais que possam se

comunicar com edifícios pré-existentes, de caráter estrutural empírico e de valor histórico. A

preservação de tais edifícios requer estudo para inserções estruturais onde os sistemas

antigos possam se comunicar com os sistemas novos. Para tais situações podem surgir

soluções simples, baseadas nas técnicas construtivas primitivas ou estruturas caras e

monumentais, aplicando tecnologia dos materiais, modelos de análise e técnicas de execução

atuais.

É fato que o uso ao qual será destinado o edifício surge como elemento preponderante para a

definição do sistema estrutural. No caso dos edifícios que constituem o Centro Histórico de

Salvador (CHS), há uma variedade de usos. Apesar de historicamente representar um bairro

residencial, desde a década de 90, com as obras de recuperação das áreas degradadas, os

edifícios passaram a incorporar funções ligadas a serviços de turismo e lazer, além da função

residencial. Tais adaptações arquitetônicas, diretamente ligadas ao uso do edifício,

promovem mudanças internas que requerem estudo estrutural. Alguns edifícios preservam

apenas a “caixaria” (paredes mestras) ou, até mesmo, apenas uma das fachadas, sendo o

restante constituído de outra construção, de caráter contemporâneo, com sistemas estruturais

diferentes do pré-existente.

As ações de intervenção estrutural em edifícios de caráter histórico requerem estudos que

atendam às condições básicas de conduzir as forças até seu ponto terminal sem atentar

contra a integridade do patrimônio em questão. A cultura contemporânea ainda não encontrou

uma total uniformidade na prática de procedimentos e métodos de recuperação, sendo tais

soluções adotadas de acordo com a cultura local, pois “cada caso é um caso”. Do ponto de

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vista teórico, a questão é mais séria, porque o conceito que envolve a palavra “restauro”, na

maioria dos casos, ainda persiste em retornar ao “estado inicial”.

A preservação do patrimônio arquitetônico edificado ganhou espaço na sociedade

contemporânea atrelada ao turismo cultural e incentivado por ações governamentais. O CHS,

que permaneceu durante anos em acelerado processo de degradação, encontrou, em

manifestações culturais locais, maneiras de sustentar a sua existência, além dos problemas

na utilização e reformas dos casarões históricos, que foram aos poucos sendo “adaptados” à

vida contemporânea. A ausência de critérios que avaliassem as modificações nos edifícios

históricos gerou perdas significativas de modelos construtivos. Isso porque o patrimônio

edificado constitui uma referência histórica do ponto de vista social e técnico que fornece

elementos importantes para entendimento da evolução da capacidade humana de adaptação

ao meio envolvente. O processo de tombamento do conjunto pelo IPHAN (Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 1984 e a inscrição pela UNESCO na Lista do

Patrimônio Mundial, em 1985, são marcos no resgate da identidade construtiva dos

monumentos na Cidade de Salvador.

O Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador, em execução pelo Governo do

Estado da Bahia através do IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico Cultural da Bahia) e da

CONDER (Companhia de Desenvolvimento Urbano da Bahia), e com recursos do Programa

MONUMENTA do Ministério da Cultura, tem por objetivo a restauração dos imóveis com

objetivo de destiná-los à habitação. Essa ação não só recuperou casarões como reconstruiu

edifícios em ruínas. Tais intervenções promoveram mudanças físicas nos edifícios para

incorporar instalações hidráulicas, elétricas e reforços estruturais por conta de sobrecargas e

acréscimos de pavimentos. Alguns casos tiveram reconstituição estrutural em todo o edifício,

onde só era possível conservar as fachadas ainda existentes. Pode-se considerar nesses

casos uma “inserção estrutural”, ou seja, o incremento de uma estrutura contemporânea na

estrutura antiga.

Este artigo é resultado de uma dissertação de mestrado que traz como objetivo principal o

levantamento histórico dos sistemas estruturais no conjunto arquitetônico do Centro Histórico

de Salvador, sua evolução e utilização nos séculos XVI ao XIX. O CHS está inserido na Lista

do Patrimônio Cultural da Humanidade, e vive um intenso processo de intervenções nas

estruturas antigas. Sua configuração espacial atual é uma grande massa edificada, que tem

um “miolo” representado por um conjunto arquitetônico colonial composto de igrejas, casarões

e fortes, cercados por um “entorno” formado por monumentos isolados e pelos edifícios

construídos ao longo de décadas. O método adotado para abordagem do tema baseia-se na

pesquisa (direta e indireta) e na coleta de informações referentes aos processos de

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intervenção. Além da pesquisa histórica sobre a fundação e a formação da Cidade de

Salvador, foram realizadas pesquisas de campo na área de interesse, com vasto

levantamento iconográfico e registros visuais dos sistemas estruturais encontrados.

Sistemas estruturais: patrimônio, restauro e conservação

As medidas de "proteção", "preservação", "restauração", "revalorização", "recuperação" ou

"reabilitação" de espaços urbanos, são muito recentes na história da humanidade. Por muito

tempo, os homens simplesmente abandonaram ou destruíram o que havia sido edificado no

passado (ZANIRATO, 2009)

Durante muito tempo, o pensamento dos restauradores era impregnado com a ideia de que a

restauração tinha como objetivo o “retorno” à fase original do edifício. Esse pensamento

implicava a eliminação de acréscimos, cujo julgamento de valor era feito a partir da avaliação

da unidade de estilo. Entretanto, essa concepção, fruto da influência direta de Violet-le–Duc

(1814 – 1879) 1 e dos seus seguidores na Europa e, consequentemente, nos países

latino–americanos, revela-se a cada instante mais insuficiente para garantir a preservação

dos bens culturais, chegando mesmo a provocar distorções na interpretação do objeto de

valor cultural: o edifício.

O pensamento moderno sobre restauro foi iniciado por John Ruskin (1819-1900)2 , que

criticava a visão “estilística” da arquitetura. Essa “corrente de pensamento” veio a se

constituir, tendo em Camilo Boito (1836-1914)3 o seu principal representante, no suporte

teórico das doutrinas sintetizadas na Carta de Veneza (1964), documento internacional que,

até hoje, serve de guia a alguns restauradores de monumentos arquitetônicos e que foi

conduzida em base por teóricos com Giulio Carlo Argan, Roberto Pane, Renato Bonelli e

Cesare Brandi (GONÇALVES, 2007. p.18).

Vale ressaltar que a pesquisa histórica conduzida pelos restauradores do século passado e

concentrada na evolução formal, tinha como finalidade indicar as partes que deveriam ser

1 Violet Le Duc (1814-1879) - Engenheiro e arquiteto francês que iniciou todo o processo de restauração de Paris para que ela conservasse para sempre sua feição eloqüente de berço dos novos ideais que passariam a reger o Ocidente. 2 John Ruskin (1819-1900) - Escritor, crítico de arte e reformista inglês, exerceu uma importante influência sobre intelectuais vitorianos. Ruskin é conhecido, principalmente, pelos seus monumentais estudos de arte e arquitetura e suas implicações históricas e sociais, como se reflete em Pintores modernos (1843), As sete lâmpadas da arquitetura (1849) e As pedras de Veneza (1851-1853). 3 Camilo Boito (1836-1914) – O arquiteto, escritor e crítico de arte italiano atuou com projetos e, principalmente, na área a restauração de monumentos. Boito legitimou a restauração ao estabelecer a necessidade de evitar a destruição e evitar o falso histórico. Sua construção teórica ficou conhecida como “restauro filológico”, onde

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mantidas, diferenciando-as das que seriam eliminadas. Tal propósito tinha como objetivo

adequar o edifício ao estilo consagrado pela História da Arquitetura. A evolução conceitual,

aliada à pesquisa histórica, provocou nos estudiosos uma preocupação com a investigação

mais aprofundada das diversas fases de uma construção, situando as diversas épocas, para

melhor conhecer o edifício, sem daí tirar nenhuma conclusão imediata para aplicação de

intervenções. Não se pode desconsiderar que as modificações são responsáveis por

transformações completas e irreversíveis no imóvel, muitas delas já incorporadas à sua

história, comprometendo a autenticidade e a originalidade do edifício.

Nesse sentido, a intervenção estrutural restaurativa quando concluída deve apresentar os

momentos de concepção das peças distintas do edifício, como explica Cesare Brandi em sua

obra intitulada Teoria da Restauração: “a integração deverá ser sempre e facilmente

reconhecível; mas sem que por isto se venha a infringir a própria unidade que se visa a

reconstruir”. O sistema proposto é passível também de modificações ao longo do tempo,

desde que orientadas por um profissional habilitado em estruturas, e atendendo a outra

condição característica da restauração, segundo Brandi: “que qualquer intervenção de

restauro não torne impossível, mas, antes, facilite as eventuais intervenções futuras”.

Técnicas e materiais modernos de construção: inserções

contemporâneas

O progresso da engenharia está intimamente ligado ao progresso da ciência dos materiais, e

o que se vê é o incremento da resistência do aço e do concreto ao longo dos anos. As

inúmeras intervenções estruturais realizadas nos casarões do CHS têm feito uso desses

materiais pelas inúmeras possibilidades de concepções de sistemas e adequações aos

sistemas preexistentes.

As modernas técnicas de simulação no cálculo estrutural e de inspeção das condições em que

se encontram os materiais permitem solucionar problemas implícitos à estrutura do edifício

antigo. No entanto, é necessário conhecer precisamente o sistema estrutural do edifício, para

que as intervenções físicas não descaracterizem o que já existe.

A estrutura física do edifício antigo pode ser dividida em três partes: as fundações, a caixa da

edificação propriamente dita e a cobertura. As fundações se constituem do elemento base,

estabelecerá sete princípios fundamentais sempre no sentido de garantir a preservação do valor documental do monumento.

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que servem de alicerce para a construção e encontram-se geralmente dentro do solo,

podendo ser classificadas como contínuas ou pontuais. Entre as contínuas, ou fundações

corridas, podemos encontrar embasamentos de alvenaria, que distribuem uniformemente as

cargas sobre o terreno. As fundações pontuais trabalham com cargas concentradas,

provenientes de pilares, esteios ou outros elementos que transmitem ao terreno pressões sob

o próprio apoio.

A caixa da construção, também denominada de arcabouço, é basicamente o corpo do edifício,

a armação da construção, promovendo a inserção de elementos que definem o espaço

construído. Esses elementos são responsáveis pela sustentação da construção e pela

vedação, e podem ter duas naturezas estruturais: portantes ou autônomos.

As estruturas portantes se caracterizam pelas vedações ou paredes sustentáveis, e que,

portanto, não necessitam em sua constituição material de nenhum outro elemento

estruturante. Podem ser classificadas nesse grupo, as paredes de pedra, as paredes maciças

de taipa de pilão, as paredes de tijolo e as de adobe.

As estruturas autônomas apresentam uma ordenação de “esqueleto” da edificação,

independente das vedações, que cumprem apenas o papel de fechamento da caixa da

construção. São também independentes segundo os materiais utilizados, podendo ser de

pedra, de tijolos, de madeira, de concreto, de aço ou mistas.

O fechamento superior do edifício antigo é legado à cobertura que, na função de vedação

superior, protege o edifício contra as intempéries. Seu sistema estrutural baseia-se no apoio

sobre as paredes perimetrais da construção segundo alguns esforços. Em casos específicos,

podem criar empuxos a que estas devem resistir.

As edificações do século XVII tombadas pelo IPHAN registram o uso da pedra nas fundações,

e da madeira na supra-estrutura, onde os espaços foram sendo incrementados nos períodos

subsequentes, com inserção de outros pavimentos e aberturas de vãos. A Revolução

Industrial desencadeia a utilização das estruturas metálicas, com vantagens em relação ao

uso de estruturas em madeira, devido à relação entre peso próprio e dimensões das peças

estruturais, escassez da madeira, e pela suposição de que o ferro fundido fosse mais

resistente a incêndios. Com o advento do uso do ferro e, posteriormente, do aço, até a

invenção do concreto armado, estes materiais foram tendo suas propriedades melhoradas

(resistência e elasticidade), e uso cada vez mais difundido.

É natural que o progresso promova mudanças nos edifícios e traga técnicas construtivas que

se adaptem às novas exigências e condições de uso do tempo em que a edificação esteja

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inserida. Esse “progresso” desencadeia no Centro Histórico de Salvador mudanças nos

edifícios antigos, e promove novas construções que atendem aos critérios normativos e

técnicos de seu tempo (Figura 01). As necessidades de ocupação do espaço promovem as

mudanças na arquitetura e consequentemente na estrutura. E o aproveitamento dos edifícios

antigos fica condicionado às inserções contemporâneas.

Seria inevitável que as intervenções estruturais em casarões históricos não incorporassem a

utilização de tal sistema construtivo. É comum encontrar no Pelourinho edifícios que sofreram

recuperações com estruturas de concreto armado, desde as lajes pré-moldadas às vigas e

pilares. A maior parte dos elementos aparentes, deixando clara a inserção da estrutura nova

na antiga, e que na maior parte dos casos ainda preservam elementos da concepção original

dos casarões (Figura 02).

Figura 01 – O tempo edificado da Cidade Baixa, em 2008: o eclético, o moderno e o

contemporâneo. Fonte: Autor, 2008.

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Entre as intervenções urbanas com modelos estruturais contemporâneos, a mais marcante e

polêmica no CHS é a do Palácio Tomé se Souza, situado na Praça Municipal de Salvador,

projetado pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé. A polêmica não gira em torno do edifício,

mas no “entorno” onde ele está inserido. O projeto se destaca pelo estilo arquitetônico e forma

tão diferentes do seu entorno urbano, e pelas diversas opiniões controversas, decorrentes de

sua construção e sobre sua permanência no local. A proposta de construção de uma sede

para prefeitura na Praça tinha caráter temporário, segundo solicitação do prefeito ao IPHAN, o

qual argumentava que o destino final da prefeitura seria um dos casarões abandonados do

CHS.

Lelé propõe um edifício de volumetria simples, pós-moderno, de gabarito baixo, mas que

permite aos transeuntes a vista de todas as obras do entorno e da paisagem da Baía de Todos

os Santos. A estrutura concebida em sistema de seção ativa, foi definida em um bloco

suspenso, em pré-fabricado metálico. Os pilares metálicos são apoiados nos pilares de

concretos da garagem já existente. Há um vigamento principal no sentido longitudinal, e um

vigamento secundário no sentido transversal. Toda estrutura “pregada” ou “encaixada”,

facilitando a sua remoção, que aconteceria em seis meses da sua inauguração em 1986

(Latorraca, 2000, p.176).

Figura 02 – Sala de recepção do Laranjeiras

hotel café e creperia no Centro Histórico de

Salvador. A Viga em concreto armado se apoia

nas “paredes mestras” externa em alvenaria

de pedras.

Fonte: Autor, 2008.

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É nesse mesmo ano que, juntos, os arquitetos Lelé e Lina Bo Bardi deixaram marcas

irreversíveis de intervenção crítica no contexto urbano, quer na preservação do patrimônio

histórico, quer na modernização da cidade de Salvador. O Plano de Recuperação do Centro

Histórico de 1986, na gestão do prefeito Mário Kértez, não foi concluído, mas deixou marcas

da passagem desses dois arquitetos, com soluções de arquitetura e estrutura

contemporâneas. Entre os nove pontos destinados no Plano para a intervenção, destacamos

a Ladeira da Misericórdia.

O primeiro projeto piloto da recuperação do CHS aconteceu na Ladeira da Misericórdia, que

estava totalmente abandonada. Além de ser um ponto simbólico na encosta, para quem vê do

mar ou da cidade baixa, a escolha tinha o desafio de enfrentar um conjunto de situações e

problemas: ruínas dos séculos XVIII, XIX e XX, terrenos baldios, muralhas de contenção da

encosta e vegetação abundante.

O programa variado não distinguia das demais propostas de intervenções no CHS: um

restaurante, um bar, três casarões transformados em 8 ou 9 apartamentos com 3 pontos

comerciais em seus térreos. O destaque estrutural é a ideia dos contrafortes de concreto

(sistema de superfície-ativa), solução adotada como elemento de estabilização das ruínas e

linguagem contemporânea para as novas construções (Figura 03). A intenção da proposta de

Lina era concluir uma intervenção onde fosse possível identificar as ruínas do século XVII, um

pedaço da casa do século XIX e as inserções contemporâneas em concreto. O resultado foi à

constituição de sistemas estruturais de tempos diferentes, que apresentavam lacunas visuais,

descaracterizando a leitura do conjunto do CHS. Com as mudanças na política e na

administração pública, o plano foi abandono, e o projeto piloto permanece na paisagem como uma

ruína (AU. Arquitetura & Urbanismo., junho de 2008, p. 77-81).

Figura 03 – Lina Bo Bardi

enviou a Lelé uma folha de

palmeira para explicar sua

ideia para os contrafortes

da Ladeira (na foto ao

lado, em construção) com

argamassa armada.

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Um exemplo da aplicação de técnicas contemporâneas para preservação do sistema

estrutural antigo pode ser encontrado desde o final de 1993, na recuperação da cobertura da

Catedral Basílica do São Salvador, a antiga Igreja do Colégio dos Jesuítas, com suas

características típicas da arquitetura portuguesa:

(...) a nave única, com um espaço tipo "salão", os tetos com falsas abóbadas de madeira (Figura 04), a ausência de cúpulas, o presbitério – ou capela-mor –, muito profundo, mas de dimensões reduzidas com relação à largura da nave, a pouca importância espacial do cruzeiro, a volumetria cúbica, as fachadas sóbrias com esquemas derivados da arquitetura civil, e a falta de colunas salomônicas (...) (Gasparini, 1972).

Os trabalhos no telhado da nave consistiram na revisão de sua estrutura vetor-ativo, de

sustentação, que lembra o cavername - conjunto das peças que dão forma ao casco da

embarcação- invertido de uma nau, com a substituição das peças de madeira estragadas por

outras íntegras, devidamente imunizadas, e o combate à oxidação das peças metálicas –

tirantes, pregos, cravos etc. – que ligam os elementos sustentantes do forro ao madeiramento

pesado do telhado (Leal, 2002, p.149) (Figura 05).

Figura 04 – Forro do teto da Catedral Basílica de Salvador, Bahia. Fonte: Brasil - norte, sul, leste, oeste.

Editora Talento, 2000.

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O edifício do Tesouro do Estado que atualmente está em processo de restauro, possui cinco

pavimentos, e sua supra-estrutura, que mantém as características originais, pode-se

caracterizar como sistema estrutural de altura-ativa. Os dados obtidos sobre as

características estruturais do edifico foram extraídos do relatório técnico elaborado pela

COOPWORK - Cooperativa de Serviços, baseado em documentação técnica de arquitetura e

estrutura do imóvel.

O sistema estrutural existente consta como elementos de sustentação dos pisos dos diversos

pavimentos, de alvenarias em tijolos maciços para as paredes externas com espessuras

variáveis, chegando a 1,20 m (um metro e vinte centímetros) no segundo sub-solo e 80 cm

(oitenta centímetros) no segundo pavimento; e colunas de concreto armado no interior do

imóvel, sobre as quais se apóiam as vigas principais dos diversos pavimentos.

A estrutura do piso dos pavimentos, térreo e primeiro sub-solo, é constituída por laje mista de

concreto, nervurada com perfis metálicos tipo TR, e tendo por armadura entre as nervuras,

tela tipo estuque (deploier), apoiadas sobre vigas de concreto armado que por sua vez

descarregam nas colunas de concreto ou nas alvenarias estruturais (Figura 06).

A estrutura dos Pisos do primeiro e segundo pavimentos é constituída por barrotes de madeira

que se apoiam sobre vigas principais metálicas tipo I ou em vigas de concreto armado no

alinhamento dos pilares, que em algumas situações formam arcos de descarrego.

As paredes estruturais externas contornam todo o perímetro do imóvel, e constituem uma

linha longitudinal interna, no alinhamento da cúpula. Os pilares de concreto armado formam

três alinhamentos longitudinais, intercalados por maciços de tijoleiras estruturais. O projeto de

Figura 05 – Memória da intervenção no telhado pelo arquiteto Renato Machado Leal. Tesoura n°. 43.

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restauro promoveu a retirada de um dos alinhamentos longitudinais dos pilares, e o piso de

madeira foi substituído por uma laje maciça de concreto armado, com vigas metálicas (Figura

07).

O edifício com inserção estrutural que lista os monumentos grandiosos do CHS é o Mercado

Modelo, que tem sua história marcada pela ocorrência de grandes incêndios, que

prejudicaram a preservação de sua supra-estrutura. O primeiro ocorreu em 1922, e quase

destruiu completamente o prédio, obrigando os comerciantes a se transferirem

provisoriamente para outros locais. 21 anos depois, em 1943, aconteceria o segundo incêndio

causando apenas danos parciais. Em agosto de 1969, mais um incêndio, e desta vez

Figura 06 – Tela Tipo estuque

(deploier).Autor: Mário Mendonça de

Oliveira

Figura 07 – Estrutura do pavimento térreo após intervenção, com a laje maciça e as vigas em aço apoiadas nas paredes de alvenaria argamassada. Fonte: Autor, 2008

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destruiria completamente o prédio, obrigando os comerciantes a se mudarem definitivamente

(Fonseca; Moreira, 2006). Hoje, o edifício de três pavimentos apresenta parte de sua estrutura

em concreto armado, tendo as ligações verticais do edifício em escadas de aço, mas ainda é

possível identificar na supra- estrutura os grandes arcos em alvenaria de pedra.

Não longe do CHS, na Rua da Graça, próximo ao Corredor da Vitória, um casarão construído

no final do século XIX e início do século XX – Palacete Comendador Bernardo Martins

Catharino - escolhido para abrigar o Museu Rodin (atualmente Palacete das Artes), apresenta

um diálogo entre o antigo e o novo (Figura 08). Para atender ao programa do Museu, foi

necessária a construção de um anexo, um edifício contemporâneo, de concreto e vidro, que

se une ao edifício antigo por uma passarela em concreto protendido de 20 metros de

extensão. Com apenas 30 cm de espessura, a passarela que se apoia em uma pequena laje,

que sai do novo volume de concreto aparente, é incrustada no edifício antigo. Esse bloco, no

entanto, não se apoia no chão, está preso às laterais na estrutura interna da casa. O arquiteto

Marcelo Ferraz, autor do projeto, reflete sobre as construções separadas por quase um século

e com personalidades distintas: “É uma estrutura com uma transição e uma transição da

transição” (AU. Arquitetura & Urbanismo., setembro de 2006, p. 36, 37 e 44).

Para atender ao programa arquitetônico do Museu, o arquiteto paulista, Marcelo Ferraz, autor do projeto, promoveu mudanças no interior do edifício, descaracterizando a tipologia dos seus espaços. O que externamente apresenta ao “olhar” a aparência de excelente inserção torna-se prejudicada com a proposta do seu interior. No entanto, o novo agenciamento atende ao

atual uso de garantir espaços flexíveis para realização de exposições.

Figura 08 – O novo volume de concreto acrescido ao casarão; a passarela entre os edifícios ligando o

presente e o passado; o casarão eclético e seu anexo moderno.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A “inserção” estrutural em um edifício antigo deve levar em consideração que, ao longo do

tempo, tais edificações foram pensadas e dimensionadas tendo como base os materiais

próprios dos locais onde seriam construídos, tais como terra, pedra e madeira, ou sistemas

mistos, constituídos desses materiais. As técnicas construtivas atuais não deixaram tais

materiais em desuso. Pelo contrário, continuam sendo os principais elementos dos sistemas e

técnicas construtivas, que exploram a terra, a pedra e até mesmo a madeira como

matérias-primas. O advento do aço e do concreto armado são as inserções de materiais mais

significativas, possibilitando a constituição de sistemas estruturais que podem vencer grandes

vãos.

Em estruturas antigas, as intervenções estruturais devem não só repor (ou melhorar) a

segurança estrutural como também respeitar a identidade cultural e o valor histórico das

construções. O planejamento das intervenções deve adotar uma metodologia de aproximação

às estruturas que inclua apreciação geral, com informação de caráter qualitativo, seguida de

análise mais rigorosa, geralmente de caráter quantitativo, que conduza à identificação das

características dos materiais e da estrutura, bem como à origem das patologias apresentadas

A carência de bibliografia específica e de registros de estudos desenvolvidos sobre os

sistemas estruturais antigos em Salvador dificultam uma montagem criteriosa desses

elementos. Isto acontece principalmente pelas constantes mudanças nas características

físicas dos edifícios que carregam em sua “matéria” a história das técnicas construtivas e

soluções estruturais. As políticas de recuperação e as necessidades de ocupação na área do

CHS continuam promovendo mudanças, que mesmo controladas por órgãos que protegem o

Patrimônio Histórico, não estão isentas dos processos de transformação da cidade e do seu

entorno. “Não podemos compreender o centro de uma cidade senão como um organismo

proteiforme, sujeito a um processo permanente de mudança” (Santos, 1959, p.25). O fato é

que o CHS concentra um conjunto arquitetônico ou construtivo, ou de paisagem, que ilustra

uma ou várias etapas significativas da evolução da cidade. Uma cidade em constantes

mutações.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

REFERENCIAS

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ZANIRATO , Sílvia Helena. A Restauração Do Pelourinho No Centro Histórico De Salvador, Bahia, Brasil. Potencialidades, Limites E Dilemas Da Conservação De Áreas Degradadas. História, Cultura E Cidade . Universidade Estadual de Maringá, Historia Actual Online 2007, 15 Octubre 2007.