inquietos e desatentos

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INQUIETOS E DESATENTOS Ênio Roberto de Andrade 8 CIÊNCIA HOJE • vol. 33 • nº 198 ENTREVISTA Ainda pouco conhecido no Brasil, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) afeta crianças e adultos, sendo uma das principais causas do fracasso escolar, profissional e social. Oscilando entre os extremos da inquietude e da desatenção, a criança portadora do distúrbio é tratada como “sem educação”, “sem limites”, “preguiçosa” ou “negligente”. O distúrbio ganha, assim, conotações sociais e leva à estigmatização e ao preconceito contra os que são justamente as suas vítimas preferenciais – as crianças. “Não tratada, a criança com TDAH vira fonte de conflitos na família e na escola, um verdadeiro ‘terror’ para pais e professores, afirma o psiquiatra Ênio Roberto de Andrade, diretor do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo. Presidente da recém-criada Associação de Apoio ao Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (ATODAH), regional São Paulo da Associação Brasileira de Déficit de Atenção/Hiperatividade (ABDA), Ênio Andrade tem participado ativamente do esforço de pais e especialistas para divulgar o distúrbio no país. A 3 a Jornada de TDAH, organizada por essas entidades em São Paulo, em maio último, reuniu mais de 500 pessoas, entre especialistas, pais e portadores do distúrbio. É graças a esse esforço coletivo que a situação do TDAH começa a mudar no Brasil, adianta Andrade nesta entrevista. “O tema está em debate, a imprensa começa a divulgá-lo e os portadores e suas famílias já estão gerando demandas nas instituições de saúde e educação.” Vera Rita da Costa Ciência Hoje/SP

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8 • C I Ê N C I A H O J E • vo l . 33 • nº 198

ENTREVISTA

INQUIETOS E DESATENTOS

Ênio

Rob

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ade

8 • C I Ê N C I A H O J E • vo l . 3 3 • nº 19 8

ENTREVISTA

Ainda pouco conhecido no Brasil, o Transtorno

de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) afeta

crianças e adultos, sendo uma das principais causas

do fracasso escolar, profissional e social. Oscilando

entre os extremos da inquietude e da desatenção,

a criança portadora do distúrbio é tratada como

“sem educação”, “sem limites”, “preguiçosa”

ou “negligente”. O distúrbio ganha, assim, conotações

sociais e leva à estigmatização e ao preconceito

contra os que são justamente as suas vítimas

preferenciais – as crianças.

“Não tratada, a criança com TDAH vira fonte

de conflitos na família e na escola, um verdadeiro

‘terror’ para pais e professores, afirma o psiquiatra

Ênio Roberto de Andrade, diretor do Serviço

de Psiquiatria da Infância e da Adolescência

do Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo.

Presidente da recém-criada Associação de Apoio

ao Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade

(ATODAH), regional São Paulo da Associação Brasileira

de Déficit de Atenção/Hiperatividade (ABDA),

Ênio Andrade tem participado ativamente do esforço

de pais e especialistas para divulgar o distúrbio no país.

A 3a Jornada de TDAH, organizada por essas entidades

em São Paulo, em maio último, reuniu mais de 500

pessoas, entre especialistas, pais e portadores

do distúrbio. É graças a esse esforço coletivo que

a situação do TDAH começa a mudar no Brasil,

adianta Andrade nesta entrevista. “O tema está

em debate, a imprensa começa a divulgá-lo e os

portadores e suas famílias já estão gerando demandas

nas instituições de saúde e educação.”

Vera Rita da CostaCiência Hoje/SP

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Qual o objetivo das jornadas que vocêsvêm organizando?O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade(TDAH) é muito mais comum do que se imagina,mas pouquíssimo conhecido. Estudos têm reveladoque cerca de 3% a 5% das crianças o possuem. Issoquer dizer que em uma escola pequena, com, porexemplo, 100 alunos, três a cinco crianças apresen-tam o transtorno. Elas demandam da instituição umaatenção especial, o que freqüentemente não rece-bem, e, caso não sejam diagnosticadas e tratadas,incorrerão em fracasso escolar. Além disso, os por-tadores de TDAH, freqüentemente, encaram tam-bém o fracasso social, pois não conseguem se rela-cionar adequadamente com os demais, e muitas ve-zes são vítimas da estigmatização. Com os eventos,queremos divulgar essas questões exaustivamente,de forma a que profissionais da área de saúde e deeducação, e principalmente os pais, obtenham in-formações de como lidar com portadores de TDAH.

pais, pois, ao lidar diariamente com dezenas decrianças em uma mesma faixa etária, eles perce-bem, até facilmente, quando o comportamento dacriança foge à regra. A dificuldade maior está emvencer a resistência da família em procurar ajuda.

O senhor caracterizou a hiperatividade.E o déficit de atenção, como se manifesta?Nesses casos, a criança não presta atenção aos de-talhes; comete erros por falta de cuidado; tem difi-culdade de ficar atento durante tarefas ou deveres;parece não escutar quando alguém lhe fala direta-mente; não segue instruções e não consegue termi-nar tarefas; perde-se ao longo das atividades; dis-persa-se com facilidade e tem dificuldades de orga-nizar as tarefas. É, portanto, típico da criança comdéficit de atenção evitar atividades que exijam es-forço mental por muito tempo, como leitura de li-vros sem gravura, por exemplo. Ela se distrai facil-mente por qualquer estímulo externo e tem dificul-

A família, em geral, é pouco informada sobre

esse tipo de distúrbio e, muitas vezes, reluta

em aceitar que o filho é diferente e que possa precisar

de tratamento. É freqüente, por exemplo, a família

atribuir à criança ‘personalidade difícil’ ou ‘geniosa’

para justificar as dificuldades enfrentadas

O que caracteriza um portadorde Transtorno de Déficitde Atenção e Hiperatividade?O TDAH se manifesta basicamen-te por desatenção ou hiperativi-dade (inquietude), sendo que emcertos casos pode prevalecer umou outro. Quando prevalece a hi-peratividade, chamamos o trans-torno de predominantementehiperativo, impulsivo. Quandoprevalece a desatenção, denomi-namos de transtorno predominan-te desatento. Há casos em que osdois sintomas-chave se combinam em intensidadealta. Nessas situações, trata-se do que chamamos detranstorno combinado, justamente o tipo mais fre-qüente em crianças.

Mas, no dia-a-dia, como podemosidentificar uma criança hiperativa?A criança hiperativa manifesta uma série de sinto-mas de inquietação: não consegue ficar sentada pormuito tempo; tem dificuldade de brincar ou de par-ticipar de atividades de lazer; está sempre ‘elétrica’,‘a todo vapor’; fala em demasia; abandona o local emque deveria estar sentada; sobe em locais e, comisso, expõe-se, inclusive, a riscos. Além disso, elaapresenta, também, sintomas de impulsividade: res-ponde a perguntas antes que elas tenham sido ter-minadas; não espera a sua vez de falar; interrompe afala dos outros e se intromete em assuntos alheios.São sintomas gritantes que chamam a atenção daspessoas, principalmente a de seus professores. Emgeral, é deles que surge o primeiro alerta para os

dade de responder a pedidos, de executar ordens,de se manter alerta no mesmo foco. É interessantechamar a atenção, principalmente dos pais, parao fato de que ter déficit de atenção não quer dizerque a criança não presta atenção em algo ou que é‘teimosa’. Ao contrário, a criança, na realidade, pres-ta atenção em tanta coisa que acaba não conseguin-do manter a atenção. Qualquer outro estímulo ex-terno, como um barulho, a distrai.

O senhor falou que o mais difícil é vencera resistência da família. Pode nos explicarmelhor esse ponto?A família, em geral, é pouco informada sobre essetipo de distúrbio e, muitas vezes, reluta em aceitarque o filho é diferente e que possa precisar de trata-mento. É freqüente, por exemplo, a família atribuirà criança uma ‘personalidade difícil’ ou ‘geniosa’para justificar as dificuldades enfrentadas. Muitasvezes, também, a família se volta contra a escola ouo professor, justamente aqueles que a alertaram para

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a questão. Ela transfere o problema, julgando que é o“professor que não entende o filho”, “que persegue oseu filho” ou, mesmo, que é “a escola que não é boa”.A família, em geral, muda a criança de escola váriasvezes, sem, no entanto, resolver a situação. Em ou-tros casos, a família se sente culpada, como se o pro-blema se tratasse de incapacidade sua, dos pais, deeducar os filhos. Esses julgamentos morais, da parteda família ou de terceiros, acabam atrapalhandomuito, pois atrasam a busca por ajuda especializa-da. Os pais ficam tentando remediar a situação, ten-tando impor limites, punições ou, mesmo, buscan-do alternativas em propostas pedagógicas inovado-ras etc. Essas medidas até podem auxiliar a criança,mas não solucionam o problema. Mais cedo ou maistarde, o contato com a realidade se estabelece e acriança vai ser exigida socialmente. Portanto, é mui-to mais fácil conscientizar-se da situação, e buscarapoio, do que simplesmente levantar o muro e cons-truir uma redoma em torno da criança.

porque acho que essas discussõesnão se aplicam à hiperatividadee ao déficit de atenção. Na minhaopinião, com a mudança do pa-drão de vida humano, a criançaou o adulto com TDAH, que eratolerado em nossa sociedade epassava desapercebido, está ten-do mais dificuldade no dia-a-diae, portanto, está se tornando maisvisível. Atualmente, mesmo noBrasil, que é pouco exigente emtermos de educação, a expectati-va é de que as pessoas terminem,

pelo menos, o segundo grau. Há uma demanda enor-me por desempenho – e bom desempenho! – porparte das escolas e das empresas, de maneira que aspessoas que têm dificuldades, hoje, se expõem mais.

Conforme aumenta o grau de exigência de estudoem uma sociedade, mais difícil se torna para o por-tador de TDAH corresponder e mais o distúrbio pre-judicará a pessoa em seu desempenho escolar, pro-fissional e social. É como um círculo vicioso: a pes-soa precisa demonstrar bom desempenho, mas nãoconsegue por causa do distúrbio. No passado, a si-tuação era completamente diferente: em 1940, porexemplo, uma criança terminar o primário e apren-der a ler e escrever era suficiente e motivo de elogio.Era uma meta exeqüível para, inclusive, um porta-dor de TDAH. Hoje, no entanto, terminar o primárionão significa muita coisa: as exigências são muitomaiores, tão maiores que uma criança com TDAHtem enormes dificuldades em vencê-las.

Qual a possível origem desses transtornos?As pesquisas apontam para disfunções em neuro-

Mas, de certa forma, a família pode ter razão: podehaver confusão entre o que é uma patologia e o queé cultural e social. Por exemplo: como um professorpoderá diferenciar uma criança hiperativa de umacriança apenas mal-educada? Ou uma criança comdéficit de atenção de uma criança preguiçosa?De fato, essas confusões podem existir entre os lei-gos, mas para um especialista elas não existem.Mesmo os casos mais complicados, depois de umtempo de acompanhamento, podem ser diferencia-dos. Considero muito positivo se pais e professoreschegarem a esse nível de dúvida e questionamento:eles estarão bem próximos de buscar a ajuda de umespecialista e, nesse caso, será possível diferenciare, caso necessário, tratar a criança. Tenho enormepreocupação é com a grande parcela da populaçãoque possui a hiperatividade e o déficit de atenção,não sabe, não tem acesso à informação e vive, por-tanto, com menor qualidade de vida do que poderia.Sem dúvida, é preciso ter cuidado ao avaliar umacriança. No entanto, o que é pior: encaminhar umacriança mal-educada ou preguiçosa para uma ava-

liação, onde ela receberá um diagnóstico negativo,ou considerar uma criança com TDAH simplesmentemal-educada ou preguiçosa, e não dar a ela a oportu-nidade de um tratamento?

O senhor falou que 3% a 5% das criançastêm TDAH. Se somarmos esses índicesaos da ansiedade, depressão e outros distúrbiospsiquiátricos chegaremos a um percentual enormeda população. Praticamente todos, hoje,teriam algum distúrbio...Essa discussão é enorme na medicina e na psiquia-tria, especialmente. Afinal, quando classificamos oscomportamentos, todo aquele que destoa do normal,do esperado, entraria em uma faixa de diagnóstico.Vários consideram que muito do que a medicinaconsidera distúrbio orgânico é, na verdade, de ori-gem social, cultural. Outros discutem, inclusive, senão haveria um certo ‘modismo’ em torno de certosdistúrbios. Eu não participo dessas polêmicas, até

A saúde pública no Brasil é cruel. Se para famílias

com certa renda, buscar auxílio é complicado, para

famílias sem recursos é pior ainda, principalmente

na área de saúde mental, na qual a negligência

e o desrespeito parecem ser maiores

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transmissores que atuam na região cortical do lobofrontal do cérebro. Essa é uma das regiões mais de-senvolvidas no cérebro humano, quando comparadoao de outros animais, e é justamente uma região re-lacionada à inibição de comportamentos inadequa-dos, à capacidade de prestar atenção, ao autocontrolee ao planejamento. A ansiedade e a depressão tam-bém são distúrbios relacionados a essa área. A dife-

nal, desde que as pessoas, principalmente profes-sores e pais, se disponham a dar um atendimentominimamente diferenciado. Nesse caso, seu de-sempenho estará muito próximo do das outrascrianças. Mas uma parcela dos portadores do Trans-torno de Déficit de Atenção e Hiperatividade nãoconsegue se adaptar às escolas normais e necessitade escolas mais especializadas.

Até que ponto as psicoterapias auxiliamessas crianças?No caso de portadores do distúrbio leve, o apoio deum psicólogo ou de um psicopedagogo, ou o acom-panhamento diferenciado de um professor, ou daprópria família, já ajuda bastante. A partir do está-gio moderado, considero ser necessário o tratamen-to medicamentoso. No estágio grave, além do acom-panhamento e do tratamento medicamentoso, sãonecessários ainda outros acompanhamentos, comofonoaudiologia, psicoterapia, orientação familiar eescolar, a depender do caso. Não é fácil tratar umacriança com o quadro grave de TDAH.

Qual a base dos medicamentos utilizados?São estimulantes e antidepressivos. Tanto um comooutro podem ser indicados para a hiperatividade ouo déficit de atenção, porque os pacientes respondema um ou a outro de maneira diferente. Sobre essaquestão do medicamento, há também certos tabus efalta de informação que precisam ser desfeitos. Parao leigo, pode parecer uma contradição dar um esti-mulante para uma criança hiperativa, mas é preci-so lembrar que se trata de uma disfunção de neuro-transmissores e que os medicamentos visam esti-mular a produção de neurotransmissores, que mui-tas vezes estão em quantidade insuficiente. Da mes-ma maneira, antidepressivos não visam dopar acriança. Muitos pais tardam a buscar ajuda médicaporque estão presos ainda na imagem do psiquiatracomo ‘médico de louco’ e na falsa idéia de que de-vem poupar seus filhos do medicamento psiquiátri-co. Ao medicar uma criança, buscamos que ela te-

Não passa na cabeça da pessoa que ela está

esquecendo ou perdendo coisas ou não terminando

uma tarefa por um distúrbio biológico. Daí

a importância de a sociedade estar bem informada

sobre o problema, para ajudar a identificar

e tratar esses casos desde a infância

rença está no tipo de neurotrans-missores envolvidos. Enquanto nadepressão e na ansiedade pare-cem estar mais envolvidos osneurotransmissores serotoni-nérgicos e noradrenérgicos, nocaso da hiperatividade e do défi-cit de atenção estão mais envolvi-dos os neurotransmissores dopa-minérgicos e noradrenérgicos.Estudos com metilfenidato (umasubstância muito empregada paratratamento do TDAH) mostramque a medicação aumenta a quan-tidade dos neurotransmissoresdopamina e noradrenalina, diminuindo os sintomasdo TDAH. Também estudos com pessoas que tive-ram traumatismos, tumores ou doenças na regiãofrontal e passaram a apresentar os sintomas pareci-dos com TDAH levam os pesquisadores a desconfiardo envolvimento dessa área nesses distúrbios. Ago-ra, é sempre bom lembrar que tudo isso são suposi-ções e, ainda, motivo de pesquisa, sem confirmaçãoabsoluta.

E qual a hipótese para explicar a disfunçãona produção dos neurotransmissores específicos?Muitas pesquisas têm apontado para a hereditarie-dade como fator principal. Estudos com gêmeos idên-ticos, com genealogias familiares, com criançasadotadas, enfim, uma série de trabalhos, alguns rea-lizados no Brasil, têm apontado para os genes comocausa desses distúrbios. Não se quer dizer com issoque os genes determinariam o transtorno em si, ape-nas que certos genes implicariam uma susceptibili-dade ao aparecimento do transtorno. A presençadesses genes e a sua interação com diversos outrosfatores ambientais é que determinariam a presençado TDAH ou não.

Uma criança diagnosticada com TDAHrequer uma atenção diferenciada.Como lidar socialmente com isso?Vai depender, é claro, do grau do distúrbio – quepode ser leve, moderado ou grave. Em geral, acriança, nos graus leve e moderado, poderá levaruma vida muito próxima do normal. Ela poderá,por exemplo, estudar em uma escola convencio- �

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nha mais qualidade de vida, não fazê-la sofrer. Osremédios visam, inclusive, tornar a criança maisatenta, mais concentrada. Enquanto relutarem emtratar as crianças, os pais permanecerão nessa viacrucis atrás de professores particulares, escolas al-ternativas, psicólogos, psicopedagogos, orientaçãofamiliar, sem conseguir solucionar o problema.

Qual deve ser a atitude da família, então?A família deve estar atenta aos sinais emitidos pelaescola e pelos professores, em particular. Respeitomuito os professores nesses casos: muitas vezes elesnão sabem do que exatamente se trata – e nem cabe-ria, pois eles não são psiquiatras –, mas eles sabemreconhecer um comportamento que destoa do gru-

com certa renda, buscar auxílio é complicado, parafamílias sem recursos é pior ainda, principalmentena área de saúde mental, na qual a negligência e odesrespeito parecem ser maiores. Sobretudo em psi-quiatra infantil, faltam ambulatórios e alguns pou-cos centros que existiam foram desativados. Aquino Hospital das Clínicas, mesmo, onde temos o ser-viço específico de atendimento a crianças comTDAH, estamos com limitações de atendimento porcausa de reformas, uma situação que espero ver bre-vemente solucionada. Então, não há como escamo-tear a situação: uma família sem recursos vai sofrermuito para tratar uma criança portadora. Ela teráque peregrinar do posto de saúde perto da sua casaaté conseguir se encaixar em um serviço de atendi-

Estudos têm mostrado que a grande maioria dos

portadores de TDAH correm risco de uso e abuso de

drogas na adolescência e que muitos casos estão ligados

a delitos, à delinqüência e à criminalidade. A regra,

portanto, não é o sucesso

mento infantil, em um hospitalpúblico ou universitário, que, emgeral, oferece esse serviço. No en-tanto, apesar das dificuldades,acho que devemos – pais, profes-sores, médicos, psicólogos e ou-tros – insistir e gerar demandaspara o poder público. Assim comoem outros países, é preciso garan-tir que essas crianças tenhamacesso à escolarização, ao acom-panhamento especializado, aotratamento médico, ao ensino su-perior e à realização profissional.

Não podemos continuar nos conformando (e as con-formando) com o fracasso escolar e social.

O que exatamente quer dizer com fracasso social?É preciso alertar que nem só as crianças sofremTranstorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.As crianças ficam adultas e, em muitas, os sinto-mas não desaparecem. Se quando crianças os seussintomas de impulsividade, de não respeitar pes-soas, de não prestar atenção, de esquecer-se dascoisas, já as tornavam isoladas ou malquistas peloscolegas, quando adultas esse quadro se agrava. Oadulto com TDAH é muitas vezes ‘pessoa não gra-ta’, porque os sintomas do distúrbio são confundi-dos ou tachados como impertinência, negligência,vagabundagem, preguiça, enfim, uma série de ró-tulos extremamente pesados socialmente. Se quan-do criança ninguém queria receber um hiperativoem casa, porque ele destruía tudo, quando adultoninguém irá querer, também, trabalhar ou convi-ver com ele. Conviver socialmente se torna, assim,muito complicado para aquele que tem déficit deatenção e freqüentemente se esquece das reuniõesde trabalho ou, mesmo, dos encontros e momentosde convívio social. Socialmente, esses comporta-mentos acabam gerando muito prejuízo aos in-divíduos.

po. Em geral, eles tentam alertar a família, masmuitas vezes a reação é ruim – tão ruim que algunsprofessores, erroneamente, se omitem por ter receioda reação dos pais. Acho que os professores não de-vem fazer jamais isso: eles devem saber que se tratade defender a criança, de dar-lhe novas oportunida-des e, portanto, devem insistir com as famílias paraprocurar um especialista que saiba diagnosticar etratar o TDAH. Em geral, orienta-se para procurarum professor particular, um psicólogo, um psicope-dagogo ou, em raros casos, um neurologista. Comoesses profissionais nem sempre estão a par do TDAH,aquilo que deveria ser uma solução do problemavira uma peregrinação. Daí nossa insistência emdivulgar o TDAH no Brasil, para que mais profissio-nais e familiares sejam capazes de desconfiar dele epossam encaminhar portadores para avaliações comespecialistas. Recomendo a todos que visitem o siteda Associação Brasileira de Déficit de Atenção/Hiperatividade (www.tdah.org.br), que pode escla-recer muitas dúvidas.

O senhor falou em peregrinação de famíliasque buscam ajuda recorrendo a profissionaisvariados. E no caso de uma família pobre que temcriança com TDAH, a quem ela deve recorrer?A saúde pública no Brasil é cruel. Se, para famílias

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Como é feito o diagnóstico na fase adulta?Não é difícil. O que predomina, em geral, é adesatenção: a pessoa esquece ou perde objetos, nãopresta atenção em detalhes e esquece compromis-sos. Ela, em geral, é socialmente malvista por nãoprestar atenção no outro. Imagine a típica situaçãode esquecer o aniversário da esposa.... No caso deum portador de déficit de atenção, não quer dizerque ele não ligue para o casamento ou para sua espo-sa. Ele simplesmente esquece a data. Mas as inter-pretações sociais desse fato poderão ser bem maisnegativas: a esposa, por exemplo, poderá considerá-lo displicente e querer se separar dele. Da mesmaforma, no trabalho, ao esquecer as tarefas, nãoterminá-las, faltar a reuniões, um portador de défi-cit de atenção poderá ser visto como ‘vagabundo’,péssimo funcionário, quando na realidade issoindepende da vontade dele. Até por falta de infor-mação a respeito, pouca gente levaria em conta apossibilidade de um ‘péssimo funcionário’ se tratarde um quadro de déficit de atenção ou de hipera-tividade. A própria pessoa acaba, assim, convencidade que se trata de preguiça mesmo. Não passa nacabeça dela que está esquecendo ou perdendo coi-sas ou não terminando uma tarefa por um distúrbiobiológico. Daí a importância de a sociedade estarbem informada sobre o problema, para, inclusive,ajudar a identificar e tratar esses casos desde a in-fância.

Quando o senhor relaciona a presença de TDAHcom o fracasso escolar e social não está sendomuito determinista? Até que ponto o portadordo distúrbio está fadado ao fracasso? Alguns discutem a possibilidade de Albert Einsteinter sido um portador de TDAH. De fato, quando se lêsua biografia, muitos episódios são típicos de umportador do distúrbio de déficit de atenção. Bastalembrar o baixo desempenho na escola, os esque-cimentos, a desorganização e mesmo a grande con-centração em temas de seu estrito interesse – todascaracterísticas do déficit de atenção. À primeira vis-ta, portanto, esse caso parece contradizer a idéia defracasso, pois Einstein foi um gênio da física. Mas épreciso sempre lembrar que, quando me refiro a fra-casso social, penso no aspecto geral. A pessoa podeser supercapacitada em uma atividade, mas não es-tar capacitada para viver no dia-a-dia, plenamente. Avida exige que sejamos capazes de mudar o foco deatenção e, inclusive, que tenhamos controle sobre isso,fazendo escolhas. Outro aspecto a considerar é queEinstein pode ter sido um caso de TDAH que obtevenotoriedade e mesmo sucesso, mas o que dizer dosmilhares de casos de fracassos desconhecidos? Es-tudos têm mostrado que a grande maioria dos por-tadores de TDAH correm risco de uso e abuso de dro-gas na adolescência e que muitos casos estão liga-dos a delitos, à delinqüência e à criminalidade. Aregra, portanto, não é o sucesso. n