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índiceApresentação - 5 - Programapara um novo urbanismo - 17- Arquitetura para avida - 31 -Introdução a uma crítica da

geografia urbana - 34 -Fragmentosdo do rn u rn ent ofundacional - 48 -Teoria da

deriva - 66 - Outra cidadepara outra vida - 80 -Posições situacionistas sobre a circulação

- 89 -Programa elementarda oficina de

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urbanismo unitário -95 Apêndice 105

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ApresentaçãoApós quase cinqüenta anos da forma-

ção da Internacional Situacionista (1S) Iuma editora contraculturallança uma co-letânea de artigos situacionistas. Mais doque simples difusão de idéias, este livrotrata da formação de conhecimentos im-portantes na construção de novas situa-ções. E como toda comemoração (50 anosda fundação da 1S), trazemos elogios,lembranças e esperanças.

Para os que ainda não a conhecem, a1S foi uma vanguarda artística e políticaeuropéia da segunda metade do século XXque fez uma crítica unitária- da socieda-

* Apresentação desenvolvida por Erahsto Felício deSonsa. estudante de História da Universidade Esta-dual de Santa Cruz (UESC) em Ilhéus-BA, pesqui-sa na área de História Social Urbana, é participantedo coletivo Gunh Anopetil onde traduziu textos eorganizou um acervo situacionista.

1. O documento de sua fundação é de 1957.

2. Sobre Crítica Unitária ver o artigo coletivo da 1S-5-

de capitalista, e teve como elementointrodutório desta crítica uma nova con-cepção para a cidade. Fora fruto de umaEuropa arrasada pela guerra, onde os pro-cessos de reconstrução urbana (e políti-ca) se constituíram como projetos de pu-blicidade ideológica. Enquanto o capitalrefez a Europa ainda mais igual a sua ima-gem e semelhança, a 15 surgia da críticada cidade como prisão mental e física doespetáculo.

Dadaístas e surrealistas tinham, naprimeira metade do século XX, dado ascartas da crítica urbana. E ossituacionistas tinham a exata dimensãodo que essa crítica significara. A 15 her-dou os procedimentos experimentais des-ses grupos, mesmo que posteriormentetenha voltado suas críticas a eles.

De fato era um outro tempo. E foi en-tre a guerra política na cidade e a amplia-ção da hegemonia cultural do capital que

Definições Mínimas das Organizações Revolucionárias nosítio da Biblioteca Virtual Revolucionária.

3. Ver livro virtual Paris: Maio de 68. da coleção·6·

nasceu, lutou e se desfez a InternacionalSituacionista. Possivelmente o ápice dadifusão dos conteúdos situacionistas, foitambém o momento da véspera da suadissolução: oMaio de 683 . Foi nessa revo-lução, que se iniciou na França em 1968,que veremos os revolucionários discutin-do escritos situacionistas, e negando asociedade do capital espetacular. O impac-to dessa "revolução dos estudantes" é for-te o suficiente para que escritossituacionistas tenham circulado no Bra-sil, sem que os estudantes que lutaramcontra o Ato Institucional Número 5 nes-tas terra, tivessem se quer a noção dequem eram os Enragers no Soviet daSourbone, ou mesmo que existia o libeloDa Miséria do Meio Estudantil" em circula-

Baderna da Editora Comad.

4. Escrito pelo situacionista Mustapha Kayati, in-fluenciou o movimento estudantil francês de 1966até o Maio de 68. Ver livro Situacionista: teoria e práti-ca da revolução (Coleção Baderna. São Paulo: EditoraConrad do Brasil, 2001), ou o acervo da IS no sitedo Coletivo Gunh Anopetil.

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ção na França, e já em outros países eu-ropeus.

Mas não foi o movimento estudantilo precursor da IS. Sua fundação se deuem 1957 na localidade de Cosio d'Arrosca,na união dos grupos InternacionalLetrista, Associação Psicogeográfica deLondres, MIEI (Movimento Internacionalpor uma Bauhaus Imaginista) - movi-mento posterior ao Cobra (Copenhague,Bruxelas, Amsterdã). Todos esses movi-mentos já pesquisavam e difundiam no-vas idéias sobre cidade, arquitetura e ur-banismo. Seus membros, já conhecidosdos círculos marginais de pesquisa, ti-nham um curto e intenso histórico denegação da arquitetura moderna, princi-palmente do funcionalismo e sua "perso-nificação", Le Corbusier. Entre os primei-ros membros de maior produção duranteas discussões urbanísticas destacam-se opintor dinamarquês Asger Jorn, o urba-nista utópico holandês Constant, e o"doutor em nada" francês Guy-ErnestDebord (apresentamos artigos de ambos

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nessa coletânea).Durante sua união a IS publicou doze

números de sua revista homônima, alémde artigos em outras revistas. Dentre seusartigos podemos perceber que se dedica-ram até 1961 em discutir propriamente acidade. O desenvolvimento dapsicogeografía" como campo de pesqui-sa, a crítica ao funcionalismo e a cons-trução de um urbanismo unitário foramsuas principais abordagens até então. Aligação ao grupo do então estudante bel-ga Raoul Vaneigem, em 1961, parece terguinado a discussão para o campo dapráxis revolucionária. O grupo se desin-tegrou em 1972 depois do bum causadopelo Maio de 68.

Os situacionistas contribuíram muitono pensar a cidade. Vejamos: amarginalidade processual das pesquisasdeu atenção à rede de territórios e ao po-

5. "Estudo dos efeitos exatos do meio geográfico,conscientemente planejado ou não, que agem díre-tarnente sobre o comportamento afetivo dos indiví-duos" em Definições lS n° O1, junho de 1958.

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der das zonas psíquicas na cidade; arnilitância contra o funcionalismo sinali-zou a desorganização dos territórios soci-ais pelo urbanismo; a vida nos ;;guetos"europeus percebeu a cidade como obser-vatório dos grupos subalternos e insubor-dinados, num terreno de luta de classes;e a posição crítica situou o social comocondição para as proposições no urbanis-mo. A intenção de difundir sentimentoscomo amizade e o amor através da apli-cação de procedimentos corretos, serviucomo matriz energética de urna signifi-cativa contribuição no campo das idéiaspolíticas, da arquitetura e urbanismo, dasciências sociais, da história e filosofia.

Se os situacionistas não são os cria-dores da psicogeografia, pelo menos fo-ram importantes dífusores. Esse conhe-cimento aponta urna certeza: as represen-tações simbólicas do espaço influenciamos sujeitos que o habita. O objetivo eracriar novas ambiências, cujos códigos in-fluíssem para domínios de liberdadeshumanas. Não foram criadas cidades

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situacionistas, porém a evolução do pen-samento psicogeográfico continua contri-buindo para a crítica dos domínios urba-nos, e da construção desses pelo capital.

'A sociedade que modela tudo oque a cerca construiu uma técnicaespecial para agir sobre o que dásustentação a essas tarefas: o pró-prio território. O urbanismo é a to-mada de posse do ambiente natu-ral e humano pelo capitalismo que,ao desenvolver sua lógica de domi-nação absoluta, pode e deve agorarefazer a totalidade do espaçocomo seu próprio cenário."

Não limitavam a cidade ao concreto,pensavam principalmente no poder.Kotanyi e Vaneigem em Programa elemen-tar da oficina de.urbanismo unitário dão ên-

6. Ver página 112 do livro A Sociedade do Espetáculode Guy Debord (Rio de Janeiro: Contraponto. 1997).O livro está disponível em português na internet nosítio da Biblioteca Virtual Revolucionária.

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fase a esta discussão quando entendemque "de fato não se mora em um bairrode uma cidade, mas no poder. Se moraem algum lugar da hierarquia':". Essedeslocamento da noção de espaço físicopara espaço social- ou mesmo psíquico -foi uma marca da posição política frenteà concepção de cidade estudada econstruída pelos modernos.

Devo dedicar aqui um espaço especiala duas questões que muito me chamamatenção: a motivação humanística e acrença revolucionária. Esses dois aspec-tos podem, para os mais cicntificistas. aténão trazer profundidade teórica, porémtrazem uma sensibilidade, com a qual,muitos libertários continuam a compar-tilhar.

A construção de uma revolução coti-diana afastava-se dos dogmasbolcheviques e do capitalismo burocráti-co de estado. A 1S viu na sociedade umgrande tédio em meio ao consumismo e

7. Ver pago 98, Programa elementar da oficina de urba-nismo unitário

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a felicidade burguesa. Acreditavam quepara acabar com a exploração humana erapreciso apenas criar os procedimentos depesquisas corretas, e aplicar os resultadosdessas na sociedade, como afirma Debordem Introdução a uma crítica da geografia ur-bana, um artigo pré-situacionista:

"De fato, não há nada mais a es-perar que a tomada de consciênciapelas massas ativas das condiçõesde vida que lhes são impostas emtodos os domínios e dos meios prá-ticos para combatê-Ias."

A 1Sviu na arquitetura essa possibili-dade, e desejava construir cidades livrese construídas por todos os que avivenciam. Em Programa para um novo ur-banismo, Gilles Ivain fala de um sonho eda necessidade de sua urgente constru-ção. A poesia e a sensibilidade artísticaforam componentes para argumentar

8. Ver pago 45, Introdução a uma crítica da geografiaurbana.

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contra a derrota dos sonhos humanospela sociedade do ter e do parecer. Se paraalguns as cidades eram - ou ainda sãoum amontoado de concreto e pessoas,para Ivain se tratava, sobretudo, do lugarda realização de sonhos humanos:

'là medida que desaparecem osmotivos para apaixonar-se, se fazurgente uma ampliação racionaldas antigas crenças religiosas, dosvelhos contos e, sobretudo da psi-canálise da arquitetura."

Os sonhos não morreram. E hoje inú-meros sítios virtuais difundem as idéiassituacionistas pela internet. e, cada vezmais, surgem coletivos dispostos a por emprática essas idéias'" , principalmente cri-ando novas. No Brasil (mesmo que naInternet) ainda não encontramos tradu-zido todos os textos das doze revistas da

9. Ver pago 26. Proqrama para um novo urbanismo.

10. Ver apêndice do livro com sítios e livros compublicações situacionistas.

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Internacional Situacionista, porém algunscoletivos têm se imbuído da tarefa de tra-duzir estes, e alguns livros já foram pu-blicados com esse material. A difusão des-se conhecimento tem contribuído em ní-vel de estudo urbano e de prática políti-ca. O sonho de educar uma geraçãosituacionista continua vivo.

O caráter autêntico e os princípios re-volucionários continuam a chamar aten-ção nos textos dos situacionistas (mes-mo que anteriores ao grupo). Nesta cole-tânea apresentaremos artigos escritosanterior a IS, porém que serviram de basepara o pensamento psicogeográfico dogrupo. Utilizamos textos disponíveis naInternet e traduzidos por coletivos quevêm contribuindo para difusão dessasidéias.

Mesmo que tenham quase meio séculode existência, ainda não podemos - paraa infelicidade de muitos - condenar asidéias situacionistas ao anacronismo. Per-maneceram atuais porque não atacaramas formas superficiais da sociedade capi-

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talista. mas o princípio gerador dessasformas. Enquanto o inimigo não morrer,não pode desaparecer a necessidade desonhar com uma sociedade de liberdades.

'Ainda que o projeto que acabamosde trazer em grandes linhas correo risco de ser considerado como umsonho fantasioso, insistimos nofeito de que é realizável desde oponto de vista técnico, desejáveldesde o ponto de vista humano, eque será indispensável desde oponto de vista social." II

Erahsto Felício de Sousa,Coletivo Gunh Anopetil,

em fevereiro de 2007

1 1.Ver pago 89, Outra cidade para outra vida.-16-

,__ o

programa para 11111novo urbamsmo

Senhor, sou de outro país.

Nos entediamos na cidade, já não hánenhum templo do sol. Entre as pernasdas mulheres passavam os dadaístas, quequeriam encontrar uma chave inglesa, eos surrealistas, que queriam uma taça decristal. Isto acabou. Sabemos ler nos ros-tos de todas as promessas o último esta-do das coisas. As poesias dos cartazes du-raram vinte anos. Nos entediamos na ci-

* Artigo adotado em outubro de 1953 pela Interna-cional Letrista (I.L), construiu elementos decisivosda nova orientação tomada a partir de então pelavanguarda experimental. O presente texto foi esta-belecido a partir de duas versões sucessivas do ma-nuscrito, que comportam leves diferenças de for-mulação. Publicado na revista 15 de n" O 1, em ju-nho de 1958. Tradução do espanhol por membrosdo coletivo Gunh Anopetil.

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dade. temos que nos exaurir para desco-brir os mistérios nos cartazes da rua, esteé o último estado do humor e da poesia.

Banhos dos patriarcasMáquinas de açougueZôo de Nossa SenhoraFarmácia desportiva

Alimentação dos MártiresConcreto translúcidoSerraria Mão de OuroAmbulância Santa AnaCafé da Quinta AvenidaRua dos Voluntários

ProlongadaPensão familiar no jardimHotel de Estrangeiros

Rua selvagem

E a piscina da Rua das Nenas. E a de-legacia da Rua das Citas. A Clínica cirúr-gica e o escritório de emprego gratuito docais dos Orfebres. As flores artificiais daRua do Sol. O Hotel dos Porões do Caste-

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10, o bar do Oceano e o café de Ir e Vir. OHotel de Época.

E a estranha estátua do MédicoPhillippe Pinel, benfeitor dos loucos, nasúltimas tardes de verão. Explore Paris.

E você se esqueceu, tuas recordaçõesassoladas por todas as angustias do mapa-múndi. encravado nas Grutas Vermelhasde Pali-Kao, sem música e sem geogra-fia, sem ir à fazenda onde as raizes pensamno menino e o vinho se acaba em fábulas dealmanaque. Agora acabou. Nunca verás afazenda. Ela não existe.

Devemos construir a fazendaTodas as cidades são geológicas, e não

podemos dar três passos sem encontrarfantasmas armados com todo o prestígiode suas lendas. Evolucionamos em um es-paço fechado cujos pontos de referêncianos atraem constantemente para o pas-sado. Alguns ângulos movediços, algumasperspectivas defuqa nos permitem vislum-

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brar concepções originais do espaço, masesta visão continua sendo fragmentária.Devemos buscar nos lugares mágicos doscontos de folclore e nos escritossurrealistas: castelos, muralhas, pequenosbares esquecidos, grutas de mamutes, ge-lados cassinos.

Estas velhas imagens conservam umpequeno poder de catálise. mas é quaseimpossível utilizá-Ias num urbanismosimbólico, sem que desviemostdetournementv os seus sentidos, rejuve-nescendo-as dando-lhes um novo senti-do. Nosso imaginário, construído por ve-lhos arquétipos, ficou quebrado muitoatrás das máquinas aperfeiçoadas. As di-versas tentativas de integrar a ciênciamoderna nos novos mitos continuam sen-do insuficientes. Enquanto isso o abstra-to tem invadido todas as artes, em parti-cular a arquitetura atual. O feito plástico

1. "Abreviação da expressão: desvio de elementosestéticos pré-fabrícados. Integração de produçõesartísticas ("0) em uma construção superior do am-biente", em Definições IS n" 01. junho de 1958 (NoO) o

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em estado puro, sem anedota, é inanima-do, descansa e refresca os olhos. Em ou-tros lugares se encontram mais belezasfragmentárias, mas a terra das síntesesprometidas está cada vez mais longe.Cada um fica em dúvida entre o passadoemocionalmente vivo e o futuro já mor-to.

Não prolongaremos as civilizações me-cânicas e a fria arquitetura cuja meta é oócio tedioso.

Nós propomos inventar novos palcosdinâmicos. (... )

A escuridão retrocede ante a luz arti-ficial e o ciclo das estações ante as salasclimatizadas: a noite e o verão perdem seuencanto e a D'Alva está desaparecendo.O homem das cidades pensa afastar-se darealidade cósmica e por isso já não sonha.A razão é evidente: o sonho se lança so-bre a realidade e se realiza nela.

A última fase do aprendizado permiteo contato ininterrupto entre o homem ea realidade cósmica ao mesmo tempo emque elimina seus aspectos desagradáveis.

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o teto de vidro deixa ver as estrelas e achuva. A casa móvel gira com o sol. Seusmuros corrediços permitem a vegetaçãoinvadir a vida. Deslizando-se sobre cami-nhos pode ir a té o mar pela manhã e vol-tar à noite pelo bosque.

A arquitetura é o meio mais simplesde articular o tempo e o espaço, de modu-lar a realidade, de formar sonhos. Não setrata somente da articulação e modula-ção plástica, expressão de uma belezapassageira, mas sim de uma modulaçãoinfluenciadora que se escreve nas curvaseternas dos desejos humanos e do pro-gresso em sua realização.

A arquitetura de amanhã será ummeio para modificar condições atuais dotempo e do espaço. Um meio de conheci-mento e um meio de ação.

O complexo arquitetônico serámodificável. Seu aspecto combinará par-cial ou totalmente segundo a vontade deseus habitantes. (... )

As comunidades do passado oferece-ram às massas uma verdade absoluta e

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exemplos míticos inquestionáveis. A apa-rição da noção de relatividade na menta-lidade moderna permite suspeitar do as-pecto experimental da nova civilização,ainda que esta não seja a melhor palavra.Um aspecto mais flexível, mais "diverti-do", digamos. Sobre a base desta civiliza-ção móvel, a arquitetura será - ao menosinicialmente - um meio para experimen-tar mil formas de modificar a vida, comvista a uma síntese que só pode ser len-dária.

Uma doença mental invadiu o plane-ta: a banalização. Todo o mundo está hip-notizado pela produção e pelo conforto-esgoto, elevador, banho, lava-roupa.

Este estado de coisas que nasce deuma rebelião contra a miséria supera seuremoto fim - a libertação do homem dasinquietudes materiais para converter-se em uma imagem obsessiva do imedia-to. Entre o amor e o lixeiro automático, ajuventude de todo o mundo já fez sua es-colha, e prefere o lixeiro. É imprescindí-vel uma transformação espiritual comple-

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ta, que traga à luz desejos esquecidos ecriem outros completamente novos. Alémde realizar uma propaganda intensiva a fa-vor destes desejos.

Temos apontado a necessidade deconstruir situações como um dos desejosbásicos em que se fundaria a próxima ci-vilização. Esta necessidade de criação ab-soluta sempre esteve estreitamente asso-ciada à necessidade de jogar com a arqui-tetura, o tempo e o espaço. (... )

Um dos mais destacados percussoresarquitetõnicos permanecerá sendoChirico. Ele abordou os problemas dasausências e das presenças no tempo e es-paço.

Sabemos que um objeto que não éconscientemente percebido em uma pri-meira visita provoca, em sua ausência,uma sensação indefinível em visitas pos-teriores: mediante a uma percepção dife-rente a ausência do objeto se faz presença sen-sível. Sendo mais exato: ainda que a qua-lidade da impressão geralmente segueindefinida, varia com a natureza do obje-

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I--~

to despercebido e a importância concedi-da ao mesmo pelo visitante, podendo irdo gozo sereno ao terror (pouco importaque neste caso específico seja a memóriao veículo desses sentimentos; só escolhieste exemplo por comodidade).

Na pintura de Chirico (na época de AsArcadas) um espaço vazio cria um templopleno. É fácil imaginar o futuro que reser-vamos aos tais arquitetos e suas influên-cias sobre as massas. Hoje não podemosfazer nada que não desapreciar um sécu-lo que relegou estas maquetes a supostosmuseus.

Esta nova visão de tempo e espaço, queserá a base teórica de futuras construções,não está pronta e nem estará completa-mente sem que se experimente o com-portamento nas cidades, onde se reúnemsistematicamente, além disto, estas ins-talações necessárias para um mínimo deconforto e segurança, são construções car-regadas de um grande poder de evocaçãoe de influência, edifícios simbólicos querepresentam os desejos, as forças, os

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acontecimentos do passado, do presentee do futuro. À medida que desaparecemos motivos para apaixonar-se, se faz ur-gente uma ampliação racional das anti-gas crenças religiosas, dos velhos contose, sobretudo da psicanálise da arquitetu-ra.

De algum modo cada um habitará emsua" catedral" pessoal. Haverá habitaçõesque farão sonhar melhor que qualquerdroga e casa onde só se poderá amar.Outras atrairão irresistivelmente os via-jantes ...

Este projeto poderia comparar-se comos murais de ilusão de ótica chineses ejaponeses - com a diferença que aquelesjardins não estavam desenhados para se-rem vividos - ou com o ridículo labirintodo Jardim de Plantas, no qual na entradase pode ler o absurdo, Ariadna sem fun-ção: Os jogos estão proibidos no labirinto.

Esta cidade poderia ser imaginadacomo uma reunião arbitrária de castelos,grutas, lagos e etc. .. Seria o estado barro-co do urbanismo considerado como um

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meio de conhecimento. Mas esta fase te-órica já está superada. Sabemos que sepode construir um imóvel moderno quenão se pareça com um castelo medieval,mas que conserve ou multiplique o poderpoético do Castelo (mediante a conserva-ção do mínimo específico de linhas, atransposição de outras, a localização dasentradas, a situação topográfica, etc).

Os distritos da cidade poderiamcorresponder ao espectro completo dos di-versos sentimentos que se encontram aoacaso na vida cotidiana.

Bairro Feio - Bairro Feliz (reservadoparticularmente à moradia) - Bairro No-bre e Trágico (para bons garotos) - BairroHistórico (museus, escolas) - Bairro Útil(hospital, armazéns de ferramentas) -Bairro Sombrio, etc. E um Astrolábio queagruparia as espécies vegetais de acordocom as relações que manifestam com oritmo estelar, um jardim planetário com-parável ao que o astrônomo Thomas que-ria estabelecer em Laaer Berg, em Viena,indispensável para dar aos habitantes

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uma consciência cósmica. Talvez tambémum Bairro da Morte, não para morrer, maspara ter onde viver em paz, e penso aquino México em um princípio de crueldadena inocência que cada dia me seduz mais.

O Bairro Sombrio, por exemplo, subs-tituiria vantajosamente essas bocas do in-ferno que muitos povos tinham antiga-mente em sua capital e que simbolizavamas potências maléficas da vida. O BairroSombrio não tem por que apresentar pe-rigos reais, como armadilhas, masmorrasou minas. Seria de difícil acesso, horro-rosamente decorado (apitos estridentes,sons de alarme, sirenes in termináveiscom marcação irregular, esculturas mons-truosas, móveis mecânicos motorizadoschamados de automóveis) e pouco ilumi-nado pela noite, e escandalosamente du-rante o dia, mediante o uso abusivo daresplandecência. No centro, a 'A.Praça doEspantoso Móvel". O excesso no merca-do de um produto provoca a queda de seuvalor: o garoto e o adulto aprenderam me-diante a exploração do Bairro Sombrio a

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não temer as manifestações angustian-tes da vida, sem que se divirta com elas.

A atividade principal dos habitantesserá a deriva contínua. A troca de paisa-gens entre uma hora e a seguinte será res-ponsável pela desorientação completa.(... ) Mais tarde, com o inevitável desgas-te dos gestos, esta deriva abandonará emparte o campo do vivido, trocando peloda representação. (... )

A objeção econômica não resiste aoprimeiro olhar. Sabemos que quanto maisreservado à liberdade do jogo está um lugar,mais influi sobre o comportamento emaior é sua força de atração. O que de-monstra o imenso prestígio de Mônaco eLas Vegas. Também de Reno, caricaturado amor livre. Mas não se tratam maisque de simples jogos de dinheiro. Estaprimeira cidade experimental viverá ge-nerosamente do turismo tolerado e con-trolado. As próximas atividades e produ-ções da vanguarda se concentrarão nela.Em uns poucos anos chegará a ser a capi-tal intelectual do mundo e será univer-

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salmente conhecida como tal.

Gilles Ivain, 1958.

arquitetura

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para a vidaA utilidade e função serão sempre, o

ponto de partida para qualquer crítica for-mal; trata-se simplesmente de transfor-mar o programa funcionalista.

Os funcíonalistas' ignoram a funçãopsicológica dos ambientes ... A aparênciados edifícios e dos objetos que usamos, eque formam nosso ambiente familiar, temuma função que está separada de seu usoprático.

* Artigo pré-sítuacionísta. pu blícado na revistaPotlatch de n° 15, em dezembro de 1954. Compo-nente elo livro de J orn "Imagem e Forma" sobre aarquitetura e seu futuro. Tradução do espanhol pormembros elo coletivo Gunh Anopetil.3. Ver nota 9 no artigo Outra cidade para outra vidapag.84.

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À causa de seu conceito de padroni-zação, os funcionalistas racionalistasacreditaram ser possível conseguir formasdefinitivas e ideais dos diferentes objetosutilizados por nós. Desenvolvimentos re-centes têm mostrado que esta concepçãoestática está errada. Devemos alcançaruma concepção dinâmica das formas, en-frentar o feito de que todas as formas hu-manas estão em um estado constante detransformação; onde os racionalistas seequivocam é em entender que o únicomodo de evitar a anarquia das trocas échegar a ser consciente das leis que go-vernam a transformação e utilizá-Ias.

É importante entender que esteconservadorismo das formas é comple-mento ideológico, porque não é o resul-tado do não saber o que é a forma defini-tiva de um objeto, mas sim o fato de quenos sentimos perturbados quando não en-contramos algum elemento de deja vunum fenômeno pouco familiar ... O radi-calismo das formas é o resultado de quea gente se entedia quando não encontra

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algum elemento inesperado no conheci-do. Uns podem achar este radicalismo iló-gico, como fazem os defensores da padro-nização, mas não devemos perder de vis-ta que esta necessidade humana é a úni-ca que faz possível os descobrimentos.

A arquitetura é sempre a realização úl-tima da evolução intelectual e artística, amaterialização de uma fase da economia.A arquitetura é o ponto final na realiza-ção de qualquer esforço artístico, porquea criação arquitetõnica implica na cons-trução de um ambiente e o estabeleci-mento de um modo de vida.

Asger Jorn, 1954

Introdução a" .uma cntíca

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da geografiaurbana

De todos os acontecimentos que par-ticipamos, com ou sem interesse, a buscafragmentária de uma nova forma de vidaé o único aspecto ainda apaixonante. Énecessário desfazer aquelas disciplinasque, como a estética e outras, se revela-ram rapidamente insuficientes para essabusca. Deveriam se definir então algunscampos de observação provisórios. E en-tre eles a observação de certos processosdo acaso e do previsível que se dão nasruas.

O termo psicogeografia4, sugerido por* Artigo pré-situacionista originalmente publicadono jornal belga surrealista Les lévres nues em setem-bro de 1955. Tradução disponível na Biblioteca Vir-tual Revolucionária.

4. Uma ciência experimental e ainda marginal à

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um iletrado Kabyle para designar o con-junto de fenômenos que alguns de nósinvestigávamos no verão de 1953, não pa-rece demasiado impróprio. Não contradiza perspectiva materialista dos aconteci-mentos da vida e do pensamento provo-cados pela natureza objetiva. A geogra-fia, por exemplo, trata da açãode terminante das forças naturais gerais,como a composição dos solos ou as con-dições climáticas, sobre as estruturas eco-nômicas de uma sociedade e, por conse-qüência, da concepção que esta possa criardo mundo. A psicogeografia se propunhao estudo das leis precisas e dos efeitos exa-

academia. Tem sua origem junto à evolução dasvanguardas dadaístas e surrealistas. porém tomaracorpo como campo de pesquisa da cidade na segun-do metade do século xx com os grupos que forma-ram a Internacional Situacionista. A evolução des-sa ciência experimental alcançou na década de 1990uma minuciosa crítica do Projeto Luther Blissett(lutherblissett.net) à psicogeografia sítuacionista.e ao mesmo tempo ampliou as noções experimen-tais neste campo (ver BLISSETT,Luther. GuerrilhaPsíquica. São Paulo: Editora Ccnrad do Brasil, 2001)(N.O).

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tos do meio geográfico, conscientementeorganizado ou não, em função de sua in-fluência direta sobre o comportamentoafetivo dos indivíduos. O adjetivopsicogeográfico, que conserva uma incer-teza bastante agradável, pode então seraplicado as descobertas feitas por esse tipode investigação, aos resultados de suainfluência sobre os sentimentos huma-nos, e inclusive de maneira geral a todasituação ou conduta que pareça revelar omesmo espírito de descobrimento.

Se disse durante muito tempo que odeserto é monoteísta. Se encontrará iló-gica, ou desprovida de interesse, aconstatação de que o distrito de Paris, en-tre a Praça de Contrescarpe e a rua l'Arbalêteconduz ao ateísmo, ao esquecimento e adesorientação das influências habituais?

É conveniente ter uma concepção his-toricamente relativa do utilitário. A ne-cessidade de dispor de espaços livres quepermitem a rápida circulação de tropas eo emprego da artilharia contra as insur-reições esteve na origem do plano de

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embelezamento urbano adotado pelo se-gundo império. Mas desde qualquer pon-to de vista, exceto o policial, a Paris deHaussmann é uma cidade construída porum idiota, plena de ruído e fúria, que nadasignifica. Hoje o principal problema do ur-banismo é resolver o problema da circu-lação de uma quantidade rapidamentecrescente de automóveis. Podemos pen-sar que o urbanismo vindouro se aplicaráa construções, igualmente utilitárias, queconcedam a maior consideração às pos-sibilidades psicogeográficas.

Além do mais, a abundância atual deveículos privados não é mais que o resul-tado da propaganda constante pela quala produção capitalista induz as massas -e este é um de seus êxitos maisdesconcertantes - de que a possessão deum carro é precisamente um dos privilé-gios que nossa sociedade reserva a seusprivilegiados. (Por outro lado, o progres-so confuso nega-se a si mesmo: alguémpode gozar do espetáculo de um oficialde polícia convidando em um anúncio pu-

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blicitário aos parisienses proprietários deautomóveis a utilizar transportes públi-cos).

Posto que encontramos a idéia de pri-vilégio inclusive em assuntos tão banais,e que sabemos com que certa cólera tan-ta gente - por pouco privilegiada que seja- está disposta a defender suas medío-cres conquistas, é necessário constatarque todas estes detalhes participam deuma idéia burguesa de felicidade, idéiarnantida por um sistema de publicidadeque engloba tanto a estética de Malrauxcomo os imperativos da Coca-Cola, e cujacrise deve ser provocada em qualquer oca-sião, por todos os meios.

O primeiro destes meios é sem dúvidaa difusão, com um objetivo de provoca-ção sistemática, de um conjunto de pro-postas tendentes a converter a vida emum jogo apaíxonante, e o contínuo me-nosprezo de todas as diversões para como uso, na medida em que estas não po-dem ser desviadas para servir à constru-ção de ambientes. É certo que a maior

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dificuldade em tal projeto é fazer passarestas propostas aparentemente deliran-tes para um grau suficiente de séria se-dução. Para a obtenção deste resultado sepode imaginar um uso hábil dos meiosde comunicação imperantes. Mas tam-bém um tipo de abstencionismoprovo cativo ou de manifestações tenden-tes à decepção radical dos aficionadosdestes meios de comunicação, podem fo-mentar inegavelmente, sem muito esfor-ço, uma atmosfera de pertubação extre-mamente favorável à introdução de no-vas noções de prazer.

A idéia de que a realização de uma si-tuação eleita depende unicamente do co-nhecimento rigoroso e da aplicação deli-berada de um certo número de técnicasconcretas, inspirou o jogo psicogeográficoda semana publicado, não sem certo hu-mor, no número 1 de POTLATCH5:

5. A revista Potlatch era a via de publicação da In-ternacional Letrista (N.O).

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"Em função do que você busca, es-colha um país, uma cidade mais oumenos populosa, uma rua mais oumenos animada. Cons trua umacasa. Tire o maior partido de suadecoração e seus arredores. Eleja aestação e a hora. Reúna as pessoasmais adequadas, os discos e as be-bidas mais convenientes. A ilumi-nação e a conversação deverão seras oportunidades para a ocasião,como o tempo atmosférico ou vos-sas recordações. Se não houve ne-nhum erro em vossos cálculos, oresultado deve satisfazer- te."

Devemos trabalhar para inundar omercado, mesmo que pelo momento nãoseja mais que o mercado intelectual, comuma massa de desejos cuja realização nãorebaixará a capacidade dos meios de açãoatuais do homem no mundo material,mas sim a velha organização social. Nãocarece de interesse político contrapôr pu-blicamente tais desejos aos desejos ele-

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mentares que não nos assombra vermosrepetidos incessantemente na indústriacinematográfica ou nas novelas psicoló-gicas, como desse velho carniceiro deMuriac. (Marx explicava ao pobreProudhon que, em uma sociedade fun-dada sobre a "miséria", os produtos mais"miseráveis" têm a fatal prerrogativa deservir ao uso do maior número de pesso-as ).

A transformação revolucionária domundo, de todos os aspectos do mundo,confirmará todos os sonhos de abundân-cia.

A mudança repentina de ambientesem uma mesma rua no espaço de algunsmetros; a clara divisão de uma cidade emzonas de distintas atmosferas psíquicas;a linha de mais forte inclinação - sem re-lação com o desnível do terreno - que de-vem seguir os passeios sem propósito; ocaráter de atração ou repulsão de certosespaços: tudo isso parece ser ignorado.Em todo caso, não se concebe como de-pendente de causas que possam ser des-

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cobertas através de uma cuidadosa aná-lise, e das quais não se possa tirar parti-do. As pessoas são conscientes de que al-guns bairros são tristes e outros agradá-veis. Mas geralmente assumem simples-mente que as ruas elegantes causam umsentimento de satisfação e as ruas pobressão deprimentes, e não vão mais além.De fato, a variedade de possíveis combi-nações de ambientes, análoga à dissolu-ção dos corpos químicos puros num infi-nito número de mesclas, gera sentimen-tos tão diferenciados e tão complexoscomo os que pode suscitar qualquer ou-tra forma de espetáculo. E a menor in-vestigação revela que as diferentes influ-ências, qualitativas ou quantitativas, dosdiversos cenário de uma cidade não sepode determinar somente a partir de umaépoca ou de um estilo de arquitetura, eainda menos a partir das condições devida.

As investigações assim destinadas a selevar a cabo sobre a disposição dos ele-mentos do meio urbano, em relação ínti-

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ma com as sensações que provocam, nãoquerem ser apresentadas senão como hi-póteses audazes que convém corrigirconstantemente à luz da experiência,através da crítica e da autocrítica.

Certas pinturas de Chirico, que são ela-ramente provocadas por sensações cujaorigem se encontra na arquitetura, podemexercer uma ação de retorno sobre suabase objetiva até transformá-Ia: tendema converter-se elas mesmas em maquetes.Inquietantes bairros de arcadas poderiamum dia continuar e complementar o atra-tivo desta obra.

Não conheço senão esses dois portosao entardecer pintado por Claude Lorrain.que estão no Louvre e que apresentamdois ambientes urbanos totalmente diver-sos, para rivalizar em beleza com os car-tazes dos planos de metrô de Paris. Se en-tenderá que ao falar aqui de beleza nãome refiro a beleza plástica - a nova bele-za não pode ser outra que a beleza da si-tuação - senão somente a apresentaçãoparticularmente comovedora, em ambos

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os casos, de uma suma de possibilidades.Entre diversos meios de intervenção

muito difíceis, parece apropriada uma car-tografia renovada para sua utilização ime-diata.

A elaboração de mapas psícogeográfí-cos". inclusive de diversos truques comoa equação pouco fundada ou completa-mente arbitrária, estabelecida entre duasrepresentações topográficas, pode contri-buir para esclarecer certos deslocamen-tos de caráter não precisamente gratui-tos, mas sim absolutamente insubmíssoàs influências habituais. As influênciasdeste tipo estão catalogadas em termosde turismo, droga popular tão repugnan-te como o lazer ou a compra a crédito.

Recentemente, um amigo me disseque percorreu a região de Harz, na Ale-manha, com a ajuda de um mapa da ci-dade de Londres cujas indicações haviaseguido cegamente. Este tipo de jogo é

6. Ver imagem The Naked City exemplo de mapapsicogeográfico produzido após estudos de Deriva,no sítio da Editora Deriva (N.O).

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obviamente só um começo medíocre emcomparação com uma construção com-pleta da arquitetura e do urbanismo,construção que estará algum dia em po-der de todos. Enquanto isso podemos dis-tinguir distintas fases de realizações par-ciais, meios menos complicados, come-çando pelo simples deslocamento dos ele-mentos do cenário dos lugares nos quaisestamos acostumados a encontrar.

Assim, no número precedente destarevista, Mariên propôs reunir em desor-dem, quando os recursos mundiais te-nham cessado de ser desperdiçados nosprojetos irracionais que nos são impostoshoje, as estátuas eqüestres de todas ascidade do mundo em uma planície deser-ta. Isto ofereceria aos transeuntes - o fu-turo lhes pertence - o espetáculo de umacarga de cavalaria oficial, que inclusivepoderia dedicar-se a memória dos maio-res massacradores da história, desdeTamerlan até Ridgway. Aqui vemos rea-parecer uma das principais demandasdesta geração: o valor educativo.

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De fato, não há nada mais a esperarque a tomada de consciência pelas mas-sas ativas das condições de vida que lhessão impostas em todos os domínios e dosmeios práticos para combatê-Ias.

O imaginário é aquilo que tende a con-verter-se em real, escreveu um autor cujonome, devido a sua notória degradaçãointelectual, faz tempo é esquecido. Talafirmação, pelo que tem deinvoluntariamente restritiva. pode servirde pedra de toque e fazer justiça a certasparódias de revolução literária: o que ten-de a permanecer irreal é palavrório.

A vida, da qual somos responsáveis,oferece ao mesmo tempo grandes moti-vos de desânimo, uma infinidade de di-versões e de compensações mais ou me-nos vulgares. Não passa um ano em queas pessoas que amamos não ceda, por fal-ta de ter compreendido claramente aspossibilidades presentes, a alguma capi-tulação manifesta. Mas isto não reforça ocampo inimigo, que conta com milhõesde imbecis e no qual se está objetivamente

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condenado a ser imbecil.A primeira deficiência moral que per-

manece é a indulgência, em todas as suasformas.

Guy Debord, 1955

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Pragrnentos do domumento fundacional

Por umainternacionalSituacionista

Nossa idéia central é a construção desituações, ou seja, a construção concretade flashes de vida, elevando-a a um nívelsuperior de qualidade passional. Para con-seguir isso, temos que direcionar uma in-tervenção ordenada sobre os fatores com-plexos de dois grandes componentes emperpétua interação: o marco material davida; e os comportamentos que o entra-nham e que o desordenam. Nossa pers-

* Texto extraído do documento fundacional da In-ternacional Situacionista: Informe sobre a construçãode situações e sobre as condições da orqanização e a ação datendência situacionista internacional ( 1957). Traduzidodo espanhol por Railton Guedes / Coletivo Perife-ria.

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pectiva de ação sobre esse marco tende,em última análise, à concepção de umurbanismo unitário. O urbanismo unitá-rio se define principalmente pelo uso con-junto das artes e das técnicas como meioque concorre para uma composição inte-gral do meio. Esse confronto resulta infi-nitamente mais amplo do que o do anti-go império da arquitetura sobre as artestradicionais, do que a atual aplicação oca-sional de técnicas especializadas no ur-banismo anárquico, de investigações ci-entíficas como a ecologia. O urbanismounitário tenderia a dominar, por exern-plo, tanto a mídia sonora como a distri-buição de diferentes variedades de bebi-das e alimentos. Tenderia a criar novasformas e a inverter as formas conhecidasde arquitetura e de urbanismo - tambémsubverteria a poesia ou o antigo cinema.A arte integral, da qual tanto se fala, nãopode realizar-se a não ser em nivel de ur-banismo. Porém não correspondería a ne-nhuma das definições tradicionais da es-tética. Em cada uma de suas cidades ex-

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perimentais, o urbanismo unitário atua-ria mediante um certo número de cam-pos de força que momentaneamente de-signaríamos com o termo clássico de bair-ro. Cada bairro poderá tender para umaharmonia exata e romper com as harmo-nias vizinhas; ou agir no sentido de umamáxima ruptura da harmonia interna

Em segundo lugar, o urbanismo uni-tário é dinâmico, ou seja, tem estreita re-lação com o estilo de comportamento. Oelemento mais reduzido do urbanismounitário não é a casa, mas o complexoarquitetônico, que é a reunião de todosos fatores que condicionam um ambien-te ou uma série de ambientes diversos naescala da situação construída. O desen-volvimento espacial tem de levar em con-sideração as realidades sensíveis determi-nadas pela cidade experimental. Um denossos camaradas avançou em uma teo-ria dos bairros estado-de-espírito, segun-do a qual cada bairro de uma cidade ten-taria despertar um sentimento simples,ao qual a pessoa se submeterá voluntari-

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amente. Aparentemente, tal projeto de-precia sentimentos primários acidentais,e sua realização contribui para aceleraressa tendência. Os camaradas que ansei-am por uma nova arquitetura, uma ar-quitetura livre, compreenderão que estanova arquitetura não funcionará com li-nhas e formas livres, poéticas - no senti-do da pin tura de "abstração linear" - fun-cionará sobre todos os efeitos da atmos-fera das peças, cores, ruas, atmosfera li-gada aos gestos que a contém. A arquite-tura avançará tomando como matériaprima mais situações excitantes do quefórmulas comovedoras. As experiênciasfeitas a partir desta matéria prima con-duzirão a formas desconhecidas. A inves-tigação psicogeográfica, "o estudo das leisexatas e dos efeitos precisos do meio ge-ográfico, conscientemente planejado ounão, que atuam diretamente sobre o com-portamento afetivo dos indivíduos", ad-quire seu duplo sentido da observaçãoativa dos conglomerados urbanos de hoje,e do estabelecimento de hipóteses sobre

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a estrutura de uma cidade situacionista.O progresso da psicogeografia dependeem grande medida da extensão estatísti-ca de seus métodos de observação, porémprincipalmente da experimentação medi-ante intervenções concretas no urbanis-mo. Até este ponto não se pode estar se-guro da verdade objetiva dos primeirodados psicogeográficos. Quando estesdados forem falsos, serão seguramentefalsas as soluções para um verdadeiro pro-blema.

Nossa ação sobre o comportamento,bem como com os demais aspectos dese-jáveis de uma revolução nos hábitos, podedefinir-se resumidamente pela invençãode jogos essencialmente novos. O objeti-vo geral seria ampliar a parte não medío-cre da vida, e abreviar, tanto quanto pos-sível, os momentos nulos. Algo como umaempreitada para a ampliação quantitati-va da vida humana, mais séria do que osprocedimentos biológicos estudadosatu-almente. O que implica num aumentoqualitativo de resultados imprevisíveis. O

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jogo situacionista se distingue da concep-ção clássica de jogo pela negação radicaldo caráter lúdico da competição e de se-paração da vida corrente. O jogosituacíonísta não é alheio a uma escolhamoral, à tomada de partido visando asse-gurar o reino futuro da liberdade e dojogo. Ele se relaciona à certeza do contí-nuo e rápido aumento do tempo livre, aonível de força produtiva, típico de nossotempo. Ele se relaciona ao reconhecimen-to do fato que se descortina diante denossos olhos: uma batalha de tempo li-vre, cuja importância na luta de classesnão tem sido suficientemente analisada.Neste momento, a classe dominante ain-da consegue servir-se do tempo livre con-quistado pelo proletariado revolucionário,desenvolvendo um vasto setor industrialde ócio que é um incomparável instru-mento que embrutece o proletariado porintermédio dos subprodutos da ideologiamistificadora e dos gostos da burguesia.Provavelmente encontramos neste abun-dante lixo televisivo uma das razões da

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incapacidade da classe operária america-na se politizar, Ao obter mediante pres-são coletiva uma ligeira elevação do pre-ço de seu trabalho, acima do mínimo ne-cessário na produção deste, o proletárioamplia não apenas seu poder de luta, mastambém o terreno de luta. Surgem novasformas de luta paralelas aos conflitos di-retamente econômicos e políticos. Pode-se dizer que até agora a propaganda re-volucionária permanece dominada pelasmesmas formas de luta em todos os.paí-ses em que o desenvolvimento industrialavançado foi introduzido. A necessáriamudança da ínfraestrutura pode ser re-tardada pelos erros e pelas debilidades aonível das superestruturas, é o que lamen-tavelmente tem demonstrado algumasexperiências do século vinte. Ternos quelançar novos ataques na batalha do óciopara conquistarmos nosso lugar.

Um ensaio primitivo de um novo tipode comportamento foi obtido com o que

7. "Modo de comportamento experimental ligadoàs condições da sociedade urbana: técnicas da pas-

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r+:

chamamos deriva". que é a prática de umaconfusão passional pela rápida mudançade ambiente, e ao mesmo tempo um meiode estudo da psicogeografia e da psicolo-gia situacionista. A aplicação deste dese-jo de criação lúdica ampliará as formasconhecidas de relações humanas, e influ-enciará a evolução histórica de sentimen-tos como a amizade e o amor, por exem-plo. Tudo leva a crer que é no entorno dahipótese da construção de situações quedeve se localizar a essência de nossa in-vestigação.

A vida de um homem é um amontoa-do de situações fortuitas, se nenhuma de-las é similar a outra, estas situações sãopelo menos, em sua imensa maioria, tãoindiferenciadas e sem brilho que dão per-feitamente a impressão de semelhança.O resultado deste estado de coisas é queas escassas situações conhecidamente re-levantes em uma vida, retêm e limitamrigorosamente esta vida. Temos que ten-sagem rápida por ambiências variadas", em Defini-çõesISnoOl,junhode 1958 (N.O).

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tar construir situações, ou seja, ambien-tes coletivos, um conjunto de impressõesque determinam a qualidade de um mo-mento. Se tomarmos o exemplo simplesde uma reunião de um grupo de indiví-duos durante um determinado tempo,teremos que estudar a organização do lu-gar, a escolha dos participantes e provo-car uma dinâmica de acontecimentosconvenientes ao ambiente desejado. Écerto que a potência de uma situação seampliará consideravelmente no tempo eno espaço com as realizações do urbanis-mo unitário ou com a educação de umageração situacionista. A construção desituações começa pela destruição da mo-derna noção de espetáculo. É fácil ver atéque ponto o próprio princípio do espetá-culo (a não intervenção) liga-se à aliena-ção do velho mundo. Por outro lado ve-mos como as investigações revolucioná-rias mais válidas na cultura vêrn rompen-do com a identificação psicológica do es-pectador com o herói, visando arrastá-loà ação, e despertar suas capacidades de

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subverter sua própria vida. A situação éfeita para ser vivida por seus construto-res. O papel do "Público", se não passivopelo menos de mero figurante, deve ir di-minuindo, na medida em que aumenta-rá a quantidade daqueles que em vez deserem chamados de atores, serão chama-dos de vivenciadores, um sentido novodeste termo.

Se multiplicarão, digamos, os objetose os sujeitos poéticos, desgraçadamentetão raros atualmente que os poucos queexistem assumem uma importânciaafetiva exagerada; e se organizarão jogosdestes sujeitos poéticos com aqueles ob-jetos poéticos. Este é nosso programa, es-sencialmente transitório. Nossas situa-ções não buscarão acomodação, serão lu-gares de passagem. O caráter imutável daarte ou seja lá do que for não entra emnossas considerações, que são firmes. Aidéia de eternidade é a idéia mais toscaque um homem pode conceber no que dizrespeito a seus atos.

As técnicas situacionistas ainda estão-51·

por ser inventadas. Porém sabemos queuma tarefa não se realiza sem as condi-ções materiais necessárias, elas devem es-tar pelo menos em vias de formação. Te-mos que começar por uma pequena faseexperimental. Sem dúvida temos de pla-nejar situações, como se planejam palcos,mesmo que no princípio isso se revele in-suficiente. Temos que desenvolver um sis-tema de observação, cuja precisão aumen-tará com nosso aprendizado nas experi-ências de construção. Temos que encon-trar ou verificar leis, a emoçãosituacionista pode depender de uma ex-trema concentração ou de uma extremadispersão nos gestos (a tragédia clássicadaria uma imagem aproximada do pri-meiro caso, e a deriva do segundo). Alémdos meios diretos que serão usados parafins definidos, a construção de situaçõesrequer, em sua fase de afirmação, umanova aplicação das técnicas de reprodu-ção. Pode-se conceber, por exemplo, a te-levisão projetando ao vivo alguns aspec-tos de uma situação dentro de outra inci-

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tando modificações e interferências. Ocinema documental mereceria tal nomese formasse uma nova escola dedocumentário responsável pelo registro,para os arquivos situacionistas, dos ins-tantes mais significativos de uma situa-ção, antes que a evolução de seus elemen-tos haja motivado uma situação diferen-te. A construção sistemática de situaçõesdeve produzir sentimentos até entãoinexistentes; o cinema encontrará suagrande função pedagógica na difusão des-tas novas paixões.

A teoria situacionista sustenta firme-mente uma concepção descontínua davida. A noção de unidade deve ser des-prezada pela perspectiva da totalidade davida, - que é uma mistificação reacioná-ria baseada na crença de uma alma imor-tal e, em última instância, na divisão dotrabalho - ponteada por instantes isola-dos, e pela construção de cada instantemediante um uso unitário dos meiossituacionistas. Em uma sociedade semclasses não haverá mais pintores, mas

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situacionistas que, entre outras ativida-des' pintarão.

O principal drama afetivo da vida, forao eterno conflito entre desejo e realidadehostil ao desejo, parece ser a sensação dopassar do tempo. A atitude situacionistaconsiste em sobrepujar o fluxo do tempo,em oposição aos procedimentos estéticosque tendem a fixar a emoção. O desafiosituacionista diante das emoções e dotempo seria apostar todas suas fichas namudança, indo sempre mais longe no jogoe na multiplicação dos períodos excitan-tes. Neste momento não é fácil fazer umaaposta assim. No entanto, sem correr orisco de perdê-Ia mil vezes, não levare-mos a efeito nenhuma atitude progres-sista.

A minoria situacionista se constituiucomo tendência dentro da esquerdaletrista e depois na Internacional Letrista,que acabou controlando. A própria obje-tividade do movimento fez com que mui-tos grupos vanguardistas do recente pe-ríodo chegassem a essa conclusão. Temos

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que eliminar todos os sobreviventes dopassado. Hoje estimamos que um acordopara uma ação única da vanguarda revo-lucionária na cultura operará em um pro-grama assim. Não temos receitas nem re-sultados definitivos. Propomos unica-mente uma investigação experimentalconduzida coletivamente em algumas di-reções que agora definimos e em outrasque serão determinadas. A mesma difi-culdade de chegar às primeiras realiza-ções situacionistas é uma prova da novi-dade do domínio em que estamos pene-trando. Mudar nossa maneira de ver asruas é mais importante que mudar nossamaneira de ver uma pintura. Nossas pos-sibilidades de ação serão reexaminadasem cada desordem futura, venha de ondevier.

Principalmente os intelectuais e os ar-tistas revolucionários dirão que preferemcontinuar ancorados no sentimento deimpotência, que este "situacíonísmo" émuito desagradável, que não fizemosnada belo, que é melhor falar de Gide, que

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não vêem razões para interessar-se pornós. Fugirão de nós reprovando-nos porfazer coisas que só resultaram em escân-dalo, e que fizemos isso pelo simples de-sejo de aparecer. Se indignarão com osprocedimentos que defendemos em algu-mas ocasiões para manter ou aumentarnossas distâncias. Nós respondemos: nãose trata de saber se se interessam por isso,mas se continuarão interessados nas no-vas condições da criação cultural. A fun-ção de vocês, intelectuais e artistas revo-lucionários, não é qualificar de insulto àliberdade a nossa recusa em marchar comos inimigos da liberdade. Parem de imi-tar os estetas burgueses, que fazem e pe-dem para vocês fazerem o que já foi feito,e que não se incomodam com isso. Vocêssabem que uma criação nunca é pura. Afunção de vocês é examinar o que faz avanguarda internacional, participar nacrítica construtiva de seu programa e pro-clamar sua sustentação.

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nossas tarefas ím dOe latasDevemos sustentar, junto aos partidos

operários ou tendências extremistas pre-sentes nos partidos, a necessidade de con-trapor uma ação ideológica conseqüentepara combater, no plano passional, a in-fluência dos métodos de propaganda docapitalismo desenvolvido. Confrontarconcreta e constantemente os reflexos domodo de vida capitalista com outros mo-dos de vida desejáveis; destruir por todosos meios hiper-políticos a idéia burguesada felicidade. Ao mesmo tempo, devemosconsiderar a existência no interior da clas-se dominante de grupos de elementos quesempre se fundem, por tédio ou necessi-dade de novidade, a àquilo que entranhafinalmente a desaparíção desta socieda-de. Devemos incitar pessoas que possu-em algum dos vastos recursos que neces-sitamos para que nos proporcionem osmeios para realizar nossas experiências,um crédito análogo ao da investigação

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científica, ou de qualquer coisa rentável.Devemos apresentar em todas partes

uma alternativa revolucionária à culturadominante; coordenar todas as investiga-ções que, mesmo sem perspectiva de con-junto, se fazem neste momento; conduzir,mediante a crítica e a propaganda, os ar-tistas e intelectuais mais avançados de to-dos os países a entrar em contato conoscotendo em vista uma ação conjunta.

Devemos declarar-nos dispostos a re-tomar as discussões sobre a base desteprograma, com todos aqueles que haven-do tomado parte em uma fase anterior denossa ação se encontrem, todavia, capa-zes de reincorporar-se.

Devemos levar adiante os pilares do ur-banismo unitário, do comportamento ex-perimental da propaganda hiper-política,da construção do ambiente. As paixões jáforam suficientemente interpretadas: che-gou a hora de encontrar outras novas.

GuyDebord, 1957.

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•onaEntre os diversos procedimentos

situacionistas, a deriva se apresenta comouma técnica ininterrupta através de di-versos ambientes. O conceito de derivaestá ligado indissoluvelmente ao reconhe-cimento de efeitos da naturezapsicogeográfica, e à afirmação de umcomportamento lúdico-construtivo, o quese opôe em todos os aspectos às noçõesclássicas de viagem e passeio.

Uma ou várias pessoas que se lançamà deriva renunciam, durante um tempomais ou menos longo, os motivos para

* Publicado na revista IS de n° 02, em dezembro de1958. Tradução do espanhol por membros do cole-tivo Gunh Anopetil.

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da derivadeslocar-se ou atuar normalmente emsuas relações, trabalhos e entretenimen-tos próprios de si, para deixar-se levarpelas solicitações do terreno e os encon-tros que a ele corresponde. A parte alea-tória é menos determinante do que se crê:do ponto de vista da deriva, existe umrelevo psicogeográfico nas cidades, comcorrentes constantes, pontos fixos e mul-tidões que fazem de difícil acesso à saídade certas zonas.

Mas a deriva, em seu caráter unitário,compreende o deixar levar-se e sua con-tradição necessária: o domínio das variá-veis psicogeográficas pelo conhecimentoe o cálculo de suas possibilidades. Con-

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cluído este último aspecto, os dados pos-tos em evidência pela ecologia, ainda sen-do a priori muito limitado o espaço socialque esta ciência propõe estudar, não dei-xam de ser úteis para apoiar o pensamen-to psicogeográfico.

A análise ecológica do caráter absolu-to e relativo de cortes do conjunto urba-no, o papel dos micro-climas (zonas psí-quicas), das unidades elementares com-pletamente distintas dos bairros adminis-trativos, e, sobretudo da ação dominantedos centros de atração, deve utilizar-se ecompletar-se com o métodopsicogeográfico. O terreno ap a ixo-nantemente objetivo em que se move aderiva deve definir-se ao mesmo tempode acordo com seus própriosdeterminismos e com suas relações coma morfologia social.

Chombart de Lauwe, em seu estudosobre Paris et l'agglomération parisienne (Bi-blioteca de Sociologia Contemporânea,PUF 1952) assinala que "um bairro urba-no não está determinado somente pelos

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fatores geográficos e econômicos, mas simpela representação que seus habitantes eos de outros bairros têm dele"; e apresentana mesma obra - pra mostrar "a estreite-za da Paris real em que se vive cada indi-víduo ... é um quadro geográfico é suma-mente pequeno" =, o traçado de todos ospercursos efetuados em um ano por umaestudante do distrito XVI, desenha um tri-ângulo reduzido, sem fugir dele, cujos ân-gulos estão a Escola de Ciências Políticas,a casa da jovem e a de seu professor depiano.

Não há dúvida de que tais esquemas,exemplos de uma poesia moderna, con-seguem produzir reações vivas e afetivas.- neste caso a indignação de poder viverdesta forma - inclui a teoria, avançadapor Burgess no caso de Chicago, da re-partição das atividades sociais em zonasconcêntricas definidas, e isto tem de ser-vir ao progresso da deriva.

O acaso joga na deriva um papel tan-to mais importante quanto menos esta-belecido esteja à observação

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psicogeográfica. Mas a ação do acaso énaturalmente conservadora e tende, emum novo marco, reduzir tudo à alternati-va de um número limitado de variáveis, eao cotidiano. A não ser o progresso, a su-peração de algum dos marcos em que oacaso atua mediante a criação de novascondições mais favoráveis a nosso desti-no, se pode dizer que os acasos da derivasão essencialmente diferentes dos do pas-seio, correndo o risco de que os primeirosatrativos psicogeográficos que descu-bram, determinem ao sujeito ou ao gru-po que deriva ao redor de novos eixoshabituais, os quais lhe fazem voltar cons-tantemente.

Uma desconfiança insuficiente comrespeito ao acaso e o seu emprego ideoló-gico, sempre reacionário, condenou a umtriste fracasso o famoso perambular semdestino tentado em 1923 por quatrosurre alistas partindo de uma cidade es-colhida ao acaso: vagar em campo ao re-lento é deprimente, evidentemente, e asinterrupções do acaso são mais pobres que

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nunca. Mas certo Pierre Vendryes leva aimprudência muito mais longe emMedium (maio 1954) crendo poder adi-cionar a esta anedota - já que tudo issoparticiparia de urna mesma libertaçãoantideterminista - algumas experiênciasprobabilísticas sobre a distribuição alea-tória de girinos em um cristalizador cir-cular, por exemplo, cuja conclusão preci-sa: "semelhante multidão não deve so-frer nenhuma influência direta do exte-rior", Nestas condições lavam os girinosna palma da mão, pois que estes têm avantagem de estar "tão desprovidos cornoé possível de inteligência, de sociabilida-de e de sexualidade", e conseqüentemen-te "são verdadeiramente independentesum dos outros".

Em oposição a estas aberrações, o ca-ráter principalmente urbano da deriva,em contato com os centros de possibili-dade e de significação que são as grandescidades transformadas pela indústria, res-pondem melhor a frase de Marx: "Os ho-mens não podem ver ao seu redor mais

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que seu rosto; tudo lhes fala de si mes-mo. Até suas paisagens estão animadas".

Pode-se derivar só, mas tudo indicaque a divisão numérica mais produtivaconsiste em vários grupos pequenos deduas ou três pessoas que chegaram a ummesmo estado de consciência; a análiseconjunta das impressões destes gruposdistintos permitirá chegar a conclusõesobjetivas. É preferível que a composiçãodos grupos troque de deriva uma com aoutra. Com mais quatro ou cinco partici-pantes o caráter próprio da deriva decres-ce rapidamente, e em todo caso é impos-sível superar a dezena sem que a derivase fragmente em várias derivas simultâ-nea. Diga-se de passagem, que a práticadesta última modalidade é de grande in-teresse, mas as dificuldades que implicamnão têm permitido organizá-Ia com aamplitude desejável até o momento.

A duração média de uma deriva é ajornada considerada como o intervalo detempo compreendido entre dois períodosde sono. São indiferentes os pontos de

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partida e chegada no tempo com respeitoà jornada do sol, mas deve assinalar-se,contudo que as últimas horas da noite sãogeralmente inadequadas para a deriva.

Esta duração média da deriva só temum valor estatístico, sobretudo porque ra-ramente se apresenta real, já que não sepodem evitar os interessados, ao princí-pio ou ao final da jornada, distrair umaou duas horas para dedicá-Ias a ocupa-ções banais; ao final do dia o cansaço con-tribui muito com este abandono. Além domais a deriva se desenvolve a miúdo emcertas horas fixadas casualmente, ou in-clusas deliberadamente durante brevesinstantes ou pelo contrário durante vári-os dias sem interrupção. Apesar das pa-radas impostas pelas necessidades de dor-mir, algumas derivas bastante intensastem se prolongado três ou quatro dias, eaté mais. É certo que, no caso de umasucessão de derivas durante um períodosuficientemente longo, é quase impossí-vel determinar com precisão o momentoem que o estado mental próprio de uma

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deriva determinada deixa lugar à outra.Tem-se prosseguido uma sucessão de de-rivas sem grandes interrupções durantecerca de dois meses, o que supõe trazernovas condições objetivas de comporta-mento que implicam a desaparição demuitas das antigas.

A influência de variações climáticassobre a deriva, ainda que real, não édeterminante mais que em casos de chu-vas prolongadas que a impedem absolu-tamente. Mas as tempestades e outrasprecipitações são até propícias.

O campo espacial da deriva será maisou menos vago ou preciso segundo a bus-ca do estudo do terreno ou resultadosemocionalmente desconcertantes. Não háo que se descuidar, já que estes dois as-pectos da deriva apresentam múltiplas in-terferências' e que é impossível isolar umdeles em estado puro. Finalmente o usode táxis, por exemplo, pode apontar umapedra de toque bastante precisa; se nocurso de uma deriva pegar um táxi, sejacom um destino preciso ou para deslocar

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vinte minutos para o oeste, é que opta-mos, sobretudo pela desorientação pes-soal. Se nos dedicarmos à exploração di-reta do terreno é que preferimos a buscade um urbanismo psicogeográfico.

Em todo caso o campo espacial estáimplícito, em primeiro lugar, nas bases dapartida construídas para os indivíduosisolados por suas casas e por lugares dereunião escolhidos para os grupos. A ex-tensão máxima do campo espacial não su-pera o conjunto de uma grande cidade esuas adjacências. Sua extensão mínimapode reduzir-se a uma pequena unidadede ambiente: só um bairro, ou inclusiveum quarteirão se valer a pena (no limiteextremo está a deriva estática em urna jor-nada sem sair da estação Saint Lazare ).

A exploração dum campo espacial fi-xado supõe por tanto o estabelecimentodas bases e o cálculo das direções de pe-netração. Aqui intervem o estudo de ma-pas, tanto de correntes como ecológicasou psicogeográficas, e a retificação ou me-lhora dos mesmos. É necessário dizer que

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a escolha de um bairro desconhecido emsi, jamais percorrido, não intervém emnada no resultado? Diferente de suasignificância, este aspecto do problema écompletamente subjetivo, e não subsistipor muito tempo.

Na "ocasião possível", a parte da ex-ploração é pelo contrário mínima compa-rada com a do comportamentodesorientador. O sujeito é convidado adirigir-se só, em uma hora marcada a umlugar que lhe fixe. Acha-se livre das pesa-das obrigações do cotidiano, já que nãotem nada a esperar. Sem, no entanto, terlevado esta "ocasião possível" inespera-damente a um lugar que pode não conhe-cer, observa os arredores. Podem dar-seao mesmo tempo outra "ocasião possível"no mesmo lugar com alguém cuja identi-dade não é previsível. Pode inclusive nãotê-lo visto nunca, o que o incita a conver-sar com alguns transeuntes. Pode nãoencontrar nada, ou encontrar por acasoalgo que o tenha fixado à "ocasião possí-vel". De todas as formas, sobretudo se o

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lugar e a hora foram bem escolhidos, oemprego do tempo e do sujeito terá umamudança imprevisível. Pode inclusive pe-dir por telefone outra "ocasião possível"a alguém que ignora onde lhe foi condu-zido a primeira vez. Há recursos quase in-finitos para este passatempo.

Assim, o modo de vida pouco coeren-te, e inclusive com certas brincadeirasconsideradas de mau gosto, que tem sidosempre censurada em nosso ambiente,como, por exemplo, introduzir-se de noi-te no chão das casas em demolição, per-correr Paris sem parar em pontos de ôni-bus durante uma greve de transportes,para agravar a confusão fazendo-se con-duzir aonde for, ou perder-se nos subter-râneos das catacumbas proibidas ao pú-blico, revelaria um sentimento que seriaa deriva ou não seria nada. O que se podeescrever só serve como produto destegrande jogo.

O ensino da deriva permite estabele-cer os primeiros quadros das articulaçõespsicogeográficas de uma cidade moder-

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na. Além do reconhecimento de unida-des de ambiente, de seus componentesprincipais e de sua localização espacial,se percebe seus eixos principais de cami-nhos, suas saídas e suas defesas. Chega-se assim à hipótese central da existênciade placas giratórias psicogeográficas.Medem-se as distâncias que separam efe-tivamente os lugares de uma cidade quenão têm relação com o que uma visãoaproximativa de um plano urbano pode-ria perceber. Pode-se compor, com ajudade mapas velhos, de fotografias aéreas ede derivas experimentais, uma cartogra-fia influencial que faltava até o momen-to, e cuja incerteza atual, inevitável antesque se tenha cumprido um imenso tra-balho, não é maior que a das primeirasdescrições, com a diferença de que não setrata de delimitar precisamente áreasdum continente, mas sim de transformara arquitetura e o urbanismo.

As diferentes unidades da atmosferae de moradia não estão, hoje em dia, exa-tamente demarcadas, sem aproximar-se

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dos limites mais ou menos extensos. Omaior ganho que propõe a deriva é a di-minuição constante desses limites, atésua supressão completa.

Na arquitetura, a inclinação à derivaleva a anunciar todo tipo de novos labi-rintos que as possibilidades modernas deconstrução favorecem. A imprensa disseem março de 1955 sobre a construção emNova York de um edifício onde se podeperceber os primeiros sinais de possibili-dade de deriva no interior de um aparta-mento:

"As pequenas habitações da casahelicoidal terão a forma de umafatia de bolo. Poderão aumentar-se ou reduzir-se à vontade desli-zando paredes móveis. A disposi-ção dos pisos em níveis evitará alimitação do número de cômodos,podendo o inquilino pedir que lhedeixem utilizar o nível superior ouo inferior. Este sistema permitirátransformar em seis horas três

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apartamentos de quatro cômodosem um de doze ou mais".

(Continuará)

Guy Debord, 1958.

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outra cidadeA crise do urbanismo se agrava. A

construção dos bairros, antigos e novos,está em evidente desenvolvimento comos modelos de comportamento estabele-cidos, e ainda mais com os novos modosde vida que buscamos. Um ambienteamortecido e estéril é o resultado em nos-sa volta.

Nos bairros velhos, as ruas têm sido

*. Publicado na revista 15 de n° 03, em dezembro de1959. Esse autor foi posteriormente expulso da 15,sob a alegação da insistência em criar uma cidade,A Nova Babilônia. Tradução do espanhol por mem-bros do coletivo Gunh Anopetil.

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convertidas em pistas. O ócio estádesnaturalizado e comercializado pelo tu-rismo. As relações sociais se fazem im-possíveis nestes. Unicamente duas ques-tões dominam os bairros construídos re-centemente: a circulação de carros e oconforto das habitações. São as miserá-veis expressões de felicidade burguesa, e

para outra vidatoda preocupação lúdica está ausente.

Diante da necessidade de construir ra-pidamente cidades inteiras, nos dispomosa construir cemitérios de concreto arma-do, em que grande parte da populaçãoestá condenada a morrer de tédio. Bem,para que servem os inventos técnicos maisassombrosos que o mundo tem a sua dis-posição, se faltam condições para tirarproveito deles, se nada acrescentam aoócio, se falta imaginação?

Nós reivindicamos a aventura. Ao nãoencontrá-Ia na terra, alguns foram buscá-Ia na lua. Apostamos sempre e, sobretu-

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do, em uma mudança na terra. Propomo-nos a criar situações, e situações novas.Contamos com o romper das leis que im-pedem o desenvolvimento de atividadeseficazes na vida e na cultura. Nos encon-tramos na aurora de uma nova era, e játentamos esboçar a imagem de uma vidamais feliz e de um urbanismo unitário"; ourbanismo feito para o prazer.

Nosso campo é por tanto a rede urba-na, expressão natural de uma criatívidadecoletiva, capaz de compreender as forçascriadoras que se liberam no acaso de umacultura baseada no individualismo. A nos-so entender, a arte tradicional não pode-rá ter lugar na criação do novo ambienteem que queremos viver.

Estamos inventando novas técnicas;analisamos as possibilidades que ofere-cem as cidades existentes; fazemos

8. "Teoria do emprego conjunto de artes e técnicasque concorrem para a construção integral de umambiente em ligação dinâmica com experiências decomportamento" em IS n" 01, junho de1958 (N.O).

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maquetes e planos para cidades futuras.Somos conscientes da necessidade de uti-lizarmos todos os inventos técnicos, e sa-bemos que as construções futuras queempreenderemos terão que ser suficien-temente flexíveis para responder a umaconcepção dinâmica da vida, criando nos-so redor em relação direta com tipos decomportamento em constante mudança.

Nossa concepção de urbanismo é so-cial. Nos opomos à concepção de uma ci-dade verde, na qual arranha-céus espa-çosos e isolados reduzirão necessariamen-te as relações diretas e a ação comum doshomens. Para que tenha lugar uma rela-ção estreita entre o ambiente e o compor-tamento, é indispensável à aglomeração.Quem pensa que a rapidez de nosso des-locamento, e a possibilidade de telecomu-nicação vão dissolver a vida comum dasaglomerações conhecem mal as verdadei-ras necessidades do homem. A idéia deuma cidade verde, que tem adotado amaior parte dos arquitetos modernos,opõem a imagem de uma cidade coberta

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na que ao separar os planos dos edifíciose das estradas, dão lugar a uma constru-ção espacial contínua separada do solo,que compreenderá tanto conjuntos dealojamentos como espaços públicos (per-mitindo modificações de caminho segun-do as necessidades do momento). Comotoda a circulação, no sentido funcional,passará por debaixo ou pelos terraços su-periores, serão suprimidas as ruas. Agran-de quantidade de espaços atravessáveisdiferentes dos que se compõe à cidadeformam um espaço social complicado evasto. Longe de um retorno a natureza -que vem da noção de viver em um par-que como outrora os aristocratas solitári-os - em tais construções, há imensa pos-sibilidade de vencer a natureza e, subme-ter a nossa vontade o clima, a ilumina-ção' os barulhos nos diferentes espaços.

Entendemos por isso um novo funci-onalismo? que ponha ainda mais em evi-

9. Concepção urbanística que no pós-guerra mar-cou a defesa do capital na reconstrução européia,teve como teórico Le Corbusier que em seu livro Por

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dência a vida utilitária realizada? Não sedeve esquecer que, uma vez estabelecidasas funções, sucede-se o jogo. Desde mui-to tempo a arquitetura tem se convertidoem um jogo com o espaço e o ambiente.A cidade verde carece de ambientes. Nósqueremos, pelo contrário, utilizar maisconscientemente deles, e quecorrespondam a todas nossas necessida-des.

As cidades futuras que estamos con-siderando oferecerão uma variabilidadeinédita de sensações neste campo e ha-verá possíveis jogos imprevistos median-te o uso inventivo das condições materi-ais, como o ar-condicionado, asonorização e a iluminação. Já existemurbanistas que estudam a possibilidadede harmonizar a cacofonia que reina nascidades atuais. Não se tardará em encon-trar nelas um novo campo de criação, as-sim como muitos outros problemas que

uma Arquitetura afirma que a arquitetura pode evi-tar a revolução (ver CORBUSIER, Le. Por uma arqui-tetura. São Paulc.Perspecttva, 2004) (N.O).

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se apresentarão. As anunciadas viagensao espaço poderiam influir sobre este de-senvolvimento, já que as bases que se es-tabelecem em outros planetas iniciarãode forma imediata o problema das cida-des cobertas, que serão talvez o modelode nosso estudo do urbanismo futuro.

Antes de qualquer coisa, a diminuiçãodo trabalho obrigatório, para a produçãoatravés da extensão da automatizaçâo.criará uma necessidade de entretenimen-to, uma diversidade de comportamentose uma mudança de natureza dos mesmosque chegaram forçosamente duma novaconcepção de habitat coletivo que dispõedo máximo espaço social, ao contrário daconcepção de cidade verde onde o espaçosocial se reduz ao mínimo. A cidade fu-tura tem de conceber-se como uma cons-trução contínua sobre pilares ou como umsistema ampliado de construções diferen-tes nas quais estariam suspensos locaisde alojamento, de diversão, etc, e outrosdestinados à produção e distribuição, li-berando o solo para a circulação e as reu-

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niões públicas. A aplicação de materiaisultraleves e isolantes como os que são ex-perimentados atualmente permitirá umaconstrução leve e que suporte muitos es-paços. De forma que poderá construiruma cidade de várias camadas: porão,planta baixa, pisos, terraços, de uma ex-tensão que pode variar a até um bairroatual de uma metrópole. Deve-se desta-car que em tal cidade a superfícieconstruída será de 100% e a livre de 200%(canteiros e terraços), enquanto que nascidades tradicionais as porcentagens sãode 80% e de 20%, e na cidade verde estarelação de poder, no máximo, inverter-se.Os terraços formam um território ao arlivre que se estende por toda a superfícieda cidade, e que pode dedicar-se ao es-porte, à aterrissagem de aviões e de heli-cópteros, e ao mantimento de vegetação.Serão acessíveis por todas as partes me-diante escadas e elevadores. Os diferen-tes pisos entrarão divididos em espaçosvizinhos e comunicantes, condicionadosartificialmente, que oferecerão a possibi-

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lidade de criar uma diversidade infinitade ambientes, facilitando a deriva dos am-bientes e seus freqüentes encontros ca-suais. Os ambientes serão mudados re-gular e conscientemente com ajuda detodos os meios técnicos, mediante equi-pamentos de especializados criadores queserão, por tanto, situacionistas de profis-são.

Uma das tarefas que estamos empre-endendo é um estudo profundo dos mei-os de criação de ambientes e da influên-cia psicológica dos mesmos. A tarefa es-pecífica dos artistas plásticos e dos enge-nheiros é levar a cabo estudosconcernentes à realização técnica das es-truturas equipadas e sua estética. O apon-tamento dos últimos sobretudo é de umanecessidade urgente de fazer progresso notrabalho preparatório que nos propomos.

Ainda que o projeto que acabamos detrazer em grandes linhas corre o risco deser considerado como um sonhofantasioso, insistimos no feito de que érealizável desde o ponto de vista técnico,

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desejável desde o ponto de vista huma-no, e que será indispensável desde o pon-to de vista social. A crescente insatisfa-ção que domina a humanidade alcançaráum ponto em que nos veremos empurra-dos a executar projetos para que possua-mos os meios que poderão contribuir àrealização de uma vida mais rica e com-pleta.

Constant, 1959.

UlllO defeito de todos os urbanis-tas consiste em consideraremo automóvel individual (e osseus subprodutos, do tiposcooter) essencialmente comoum meio de transporte. Nistoreside a principal

*Artigo publicado da revista IS de n°03, em dezembro ele 1959. Traduçãopara o português na Biblioteca Virtu-al Revolucionária

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materialização duma concepção da feli-cidade que o capitalismo desenvolvidotende a disseminar em toda a sociedade.O automóvel como bem soberano dumavida alienada, e inseparavelmente comoproduto essencial do mercado capitalis-ta, está no centro da mesma propagandaglobal: diz-se este ano, correntemente,que a prosperidade econômica norte-ame-ricana dependerá em breve do êxito dolema: "dois carros por família".

Oggj.§ transporte, como muito bemviu Le Corbusier!", é um sobretrabalhoque reduz na mesma proporção a jorna-da de vida pretensamente livre.

10. Teórico do urbanismo funcionalista, escritor daCarta de Atenas (documento a favor da ArquiteturaModerna), militante do CIAM (Congresso Interna-cional de Arquitetura Moderna), do qual só foi seafastar próximo ao CIAM X (onde os críticos da Ar-quitetura Moderna Funcional defenderam as basesda um urbanismo social, esses críticos foram co-nhecidos como TEAM X), ver também nota 9 noartigo "Outra cidade para outra vida" (N.O).

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/\tresTemos de passar da circulação como su-plemento do trabalho à circulação comoprazer.

quatroQuerer refazer a arquitetura em funçãoda existência atual, maciça e parasitária,dos carros individuais, é deslocar os pro-blemas com um grave irrealismo. É pre-ciso refazer a arquitetura em função detodo o movimento da sociedade, critican-do todos os valores passageiros, ligados aformas de relações sociais condenadas (afamília, em primeiro lugar) .

•CInCOMesmo que possa admitir-se provisoria-mente, num período de transição a divi-são absoluta entre zonas de trabalho ezonas de habitação, é pelo menos precisoprever uma terceira esfera: a da própriavida (a esfera da liberdade, dos ócios - a

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verdade da vida). Sabemos que o urba-nismo unitário não tem fronteiras; quepretende constituir uma unidade total domeio ambiente humano onde as separa-ções, do tipo trabalho/ócio, coletivos/Vidaprivada, serão finalmente dissolvidas.Mas antes disso, a ação mínima do urba-nismo unitário há de ser o terreno de jo-gos alargado a todas as construções de-sejáveis. Este terreno terá o grau de com-plexidade duma cidade antiga .

•SeISNão se trata de combater o automóvelcomo um mal. É a sua extrema concen-tração nas cidades que acaba por negar oseu papel. O urbanismo não deverá cer-tamente ignorar o automóvel, mas deve-rá ainda menos aceitá -10 como tema cen-tral. impondo-se-lhe que aposte no seudeperecimento. Seja como for, pode pre-ver-se a sua proibição no interior de cer-tos conjuntos novos, tal como em certascidades antigas.

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seteOs que julgam que o automóvel é eterno,não pensam, nem sequer dum ponto devista estritamente técnico, nas outras for-mas de transporte futuras. Por exemplo,certos modelos de helicópteros individu-ais, atualmente experimentados peloexército dos Estados Unidos, estarão pro-vavelmente difundidos entre o públicodaqui a menos de vinte anos.

oitoA ruptura da dialética do meio ambientehumano em favor dos automóveis (pro-jeta-se a abertura de auto-estradas em Pa-ris, levando isso à destruição de milharesde moradias, ao mesmo tempo que a cri-se da habitação se agrava sem parar) es-conde a sua irracionalidade por trás dasexplicações pseudopráticas. Mas a suaverdadeira necessidade práticacorresponde a um estado social preciso.Os que julgam que os dados do problema

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são permanentes, na realidade queremacreditar na permanência da sociedadeatual.

noveOs urbanistas revolucionários não hão-depreocupar-se apenas com a circulação dascoisas e dos homens coagulados nummundo de coisas. Tentarão desfazer estascadeias topológicas, experimentando ter-renos para a circulação dos homens combase na vida autêntica.

Debord, 1959I I

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Programa elementarda oficina de urbanismo. '" .umtano

Inexistência do urbanismo e ainexistência do espetáculo

o urbanismo não existe: nada mais éque uma "ideologia", no sentido marxis-ta da palavra. A arquitetura realmente

* Publicado na revista 15 de nO 06, em agosto de1961. Este artigo marca a fase de transição entre adiscussão propriamente urbanística (ou contra-ur-banística) para as discussões de caráter político re-volucionário (linguagens, movimento estudantil,espetáculo, etc.). Tradução disponível na BibliotecaVirtual Revolucionária.

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existe, do mesmo modo que a coca-cola:é uma produção envolta em ideologia,mas real, satisfazendo falsamente umafalsa necessidade; enquanto o urbanismoé comparável a exibição publicitária querodeia a coca-cola. pura ideologia espeta-cular. O capitalismo moderno, que orga-niza a redução de toda vida social ao es-petáculo, é incapaz de dar outro espetá-culo que o de nossa alienação. Seu sonhourbanístico é sua obra-prima.

A pla.n~ficação urbana como_ cgpdlÇ]onameplO

e falsa participaçãoO desenvolvimento do meio urbano é

a modelação capitalista do espaço. Repre-senta a escolha de uma certamaterialização do possível, com exclusãode outras. Assim como a estética, cujomovimento de decomposição permanece-rá, pode ser considerada como um ramobastante negligenciado da criminologia.Entretanto, o que o caracteriza no nívelde "urbanismo", com relação a seu nível

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simplesmente arquitetõnico, é exigir umconsentimento da população, umaintegração individual na colocação emandamento desta condição burocrática docondicionamento.

Tudo isso é imposto por meio da chan-tagem da utilidade. Se esconde que a im--portância completa desta utilidade é postaa serviço da reedificação. O capitalismomoderno faz renunciar a toda crítica pelosimples argumento de "faz falta um teto",o mesmo que acontece com a televisãocom o pretexto de que" a informação énecessária" e a diversão. O que leva a es-quecer a evidência de que esta informa-ção, esta diversão, este modo de habita-ção, não são feitos pelas pessoas, mas semelas e contra elas.

Toda planificação urbana só pode sercompreendida unicamente como o cam-po da publicidade-propaganda de uma so-ciedade, ou seja: a organização da parti-cipação em algo no qual é impossível par-ticipar.

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3 Circulação: estágio SUprelTIOda planificação urbana

A circulação é a organização do isola-mento de todos. É nisso que ela consituio problema dominante das sociedadesmodernas. É o contrário do reencontro, aabsorção das energias disponíveis para re-encontros ou para qualquer tipo de parti-cipação. A participação, que se fez impos-sível, é compensada sob a forma de espe-táculo!'. O espetáculo se manifesta nohabitat e no deslocamento (status da mo-radia e dos veículos pessoais). Porque defato não se mora em um bairro de umacidade, mas se mora em algum lugar dahierarquia. No cume dessa hierarquia, osgraus podem ser medidos pelo grau da cir-culação. O poder se materializa median-

11. Debord publicou em 1967 suas teses sobre a te-oria do espetáculo (ver DERBORD, Guy. A Sociedadede Espetáculo. Rio ele Janeiro: Contraponto, 1997)(N.O).

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te a obrigação de se estar presente cotidi-anamente em lugares cada vez mais nu-merosos (almoços de negócios) e cada vezmais afastados uns dos outros. Se pode-ria caracterizar o alto executivo modernocomo um homem que se encontra em trêscapitais diferentes em um só dia.

A distância diante do

A totalidade do espetáculo que tendea integrar a população se manifesta tam-bém como a organização das cidades ecomo rede permanente de organizações.É uma estrutura sólida para proteger ascondições existentes da vida. Nossa pri-meira tarefa é permitir às pessoas quecesse de se submeter ao meio e aos pa-drões de comportamento. O que éinseparável de uma possibilidade de sereconhecer livremente em algumas zonaselementares delimitadas para a ativida-de humana. As pessoas estarão obriga-das ainda durante muito tempo a aceitar

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o período reificado das cidades. Mas aatitude com que o aceitarão pode sermudada imediatamente. Deve-se susten-tar a difusão da desconfiança para os jar-dins de infância ventilados e coloridos queconstituem, tanto o Leste como o Oeste,as novas cidades dormitório. Só a desilu-são estabelecerá a questão de uma cons-trução consciente do meio urbano.

Uma liberdade infra mentável

O principal êxito da planificaçãoatual das cidades faz esquecer a pos-

sibilidade do que nós chamamos urbanis-mo unitário, ou seja, a crítica viva, alimen-tada pelas tensões de toda vida quotidia-na, dessa manipulação das cidades e deseus habitantes. Crítica viva quer dizer es-tabelecimento das bases de uma vida ex-perimental: reunião de criadores de suaprópria vida em terrenos dispostos paraseus fins. Essas bases não poderão serreservadas a "diversões" separadas dasociedade. Nenhuma zona espaço-tempo-

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I I

ral é totalmente separável. De fato, sem-pre existe pressão da sociedade globalsobre as atuais "reservas" de férias. Apressão será exercida no sentido inversonas bases situacionistas, que cumprirãoa função de ponte para uma invasão detoda vida quotidiana. O urbanismo uni-tário é o contrário de uma atividade es-pecializada; e reconhecer um campo ur-banístico separado é reconhecerjá toda amentira urbanística e a mentira de todaa vida.

É a felicidade aquilo que se prometeno urbanismo. Portanto, o urbanismo serájulgado segundo esta promessa. A coor-denação dos meios de denúncia artísticae dos meios de denúncia científica, develevar a uma denúncia completa do con-dicionamento existente.

O desembar~ue 6Todo espaço já está ocupado pelo ini-

migo, que domesticou para sua utilizaçãoaté as regras elementares desse espaço

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11

12. Ver nota 1, Programa para um novo Urbanismo,pago 20. Ver também texto pré-situacionista Um GuiaPrático para o Desvio no sítio do Coletivo GunhAnopetil.

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8 Condições do diálogo

o funcional é o que é prático. Unica-mente é prático a resolução de nosso pro-blema fundamental: a realização de nósmesmos (nosso desvencilhamento do sis-tema do isolamento). Isso é o útil e o uti-litário. Nada mais. Todo o resto não re-presenta mais que derivações mínimas doprático; sua mistificação.

Ma téria rima'I

e transformaçãoA destruição situacionista do condici-

onamento atual é já, ao mesmo tempo, aconstrução das situações. É a libertaçãopara as energias inesgotáveis contidas navida quotidiana petrificada. A atual pla-nificação das cidades, que se apresentacomo uma geologia da mentira, cederálugar, com o urbanismo unitário, a umatécnica de defesa das condições da liber-dade, sempre amenizadas, no momento

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em que os indivíduos, que enquanto taisnão existem ainda, construam sua pró-pria história.

Fim da pré- história 1 OdO qmdiçjopamrptg

Não sustentamos que se retorne aqualquer estágio anterior ao condiciona-mento; mas apenas ir além. Inventamosa arquitetura e o urbanismo que não po-dem ser realizados sem a revolução davida quotidiana; ou seja, a apropriação docondicionamento por todos os homens,seu crescimento indefinido, seu fim.

Attila Kotanyi &Raoul Vaneigem, 1961

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ApêndiceColetivos e sítios

Arquivo Situacionista BrasileiroProjeto Periferia

Arquivo dos textos situacionistas noBrasil. Possui o índice de todos os artigospublicados na revista IS. Porém ainda nãotem traduzido todos esses artigos. Textosem português e espanhol.www.gcocitics.com/projctopcrifcria5/asb.htm(pt)

Archivo Situacionista HispanoEste arquivo é referência em textos

situacionistas no idioma espanhol. Mai-or do que o arquivo brasileiro, faz parteda rede de arquivos situacionistas.www.sindominio.nct/ashllash.htm (esp.)

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Biblioteca Virtual RevolucionáriaAlém dum rico acervo de artigos da

1S, pode-se encontrar nessa biblioteca olivro A Sociedade do Espetáculo de GuyDebord. além de conteúdos sobre o gru-po. Traz material de conteúdo revolucio-nário sobre Revolução e Contra-revoluçãoRussa, Revolução Espanhola, Conselho deTrabalhadores e etc.www.geocities.com/autonomiabvr (pt)

Coletivo BadernaSe por um lado saiu da net. este coleti-

vo é o responsável pelas publicações de li-vros com conteúdo contracultural, atravésda editora Conrad incluindo Situacionistas:teoria e prática da revolução.

Coletivo Gunh AnopetilContém um acervo da 1S com textos

traduzidos por membros do coletivo, quevariam desde o momento anterior a fun-dação do grupo, até o seu fim. Além do

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acervo IS encontram-se textos do própriogrupo.br.gcocítíes.corn/anopetíl (pt)

Coletivo SabotagemColetivo contra o direito autoral e mi-

litante na difusão de conhecimentos.Contém artigos situacionistas enviadospor colaboradores. Possui um rico conteú-do Iibertário, Além de livros, podem serbaixados vídeos (há um rico acervo dedocumentários), tutoriais, etc.www.sabotagem.revolt.org (pt)

Rizoma.netNeste sítio é possível encontrar mate-

rial sobre o grupo e membros, artigos degrupos que militam na psicogeografia (in-clusive que criticam a IS), artigos publi-cados nas revistas da IS, etc. Contém umacervo considerável sobre a temáticapsicogeográfica e outras artes da subver-são.

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www.rizoma.net (pt)

Editora DerivaSite da editora onde consta textos

situacíonistas, mapas psicogeográficos equadrinhos inspirados no conceito dodétournement.wwwderiva.com.br (pt)

Livros

AQUINO, João Emiliano. Reificaçãoe Linguagem em Guy Debord. Forta-leza: EDUECE, 2006.

DEBORD, Guy. A Sociedade do es-petáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,1997.

, Guy. Panegírico. São Pau----

10: Conrad Editora do Brasil, 2002.HOME, Stewart. Assalto à cultura:

Utopia, subversão, guerrilha na(anti) arte do século XX. São Paulo:

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1---

Editora Conrad do Brasil, 1999.INTERNACIONAL SITUACIONISTA.

Situacionista: teoria e prática da re-volução. Coleção Baderna. São Paulo:Conrad Editora do Brasil, 2002.

JACQUES, Paola (org). Apologia daDeriva: escritos situacionistas sobre acidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,2003.

JAPPE, Anselm. Debord. Petrópolis-RJ: Vozes, 1999

VANEIGEM, Raoul. A Arte de Viverpara as Novas Gerações. ColeçãoBaderna São Paulo: Conrad Editora doBrasil,2002.

, Raoul. Nada é sagra------'

do, tudo pode ser dito. São Paulo, Pa-rábola, 2004

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