Índice · 2017-09-29 · soberba. nem que fosse um dos reis magos, ou nosso senhor jesus cristo em...

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11 ÍNDICE CAPÍTULO UM - ASSASSÍNIO À PORTA DELL’OLIVELLA ....... 13 CAPÍTULO DOIS - OS HOMENS DE SAGRES ........................... 37 CAPÍTULO TRÊS - AS TELHAS DE OURO DE CIPANGO ....... 59 CAPÍTULO QUATRO - O PAU DO PORTO SANTO ................. 89 CAPÍTULO CINCO - O TORNEIO DA FONTE ......................... 113 CAPÍTULO SEIS - EM BUSCA DO REINO FANTASMA ............ 141 CAPÍTULO SETE - CASTELOS EM ESPANHA ........................... 179 CAPÍTULO OITO - UM SONHO EM SUSPENSO ...................... 225 CAPÍTULO NOVE - ALMIRANTE DO MAR OCEANO ............ 263 CAPÍTULO DEZ - MIRAGENS SOBRE AS ONDAS ................... 293

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ÍNDICE

CAPÍTULO UM - ASSASSÍNIO À PORTA DELL’OLIVELLA ....... 13

CAPÍTULO DOIS - OS HOMENS DE SAGRES ........................... 37

CAPÍTULO TRÊS - AS TELHAS DE OURO DE CIPANGO ....... 59

CAPÍTULO QUATRO - O PAU DO PORTO SANTO ................. 89

CAPÍTULO CINCO - O TORNEIO DA FONTE ......................... 113

CAPÍTULO SEIS - EM BUSCA DO REINO FANTASMA ............ 141

CAPÍTULO SETE - CASTELOS EM ESPANHA ........................... 179

CAPÍTULO OITO - UM SONHO EM SUSPENSO ...................... 225

CAPÍTULO NOVE - ALMIRANTE DO MAR OCEANO ............ 263

CAPÍTULO DEZ - MIRAGENS SOBRE AS ONDAS ................... 293

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CAPÍTULO UM

ASSASSÍNIO À PORTA DELL’OLIVELLA

Ainda era dia claro, porém, todos se apressavam para chegar a tempo. Quando o mestre Domenico Colomb estava de serviço — como naquela semana —, não mostrava compaixão alguma para com os retardatários. Mal o gradeado de ferro era descido, não abria a porta a mais ninguém, sob que pretexto fosse, mantendo-se insensível às súplicas de uns e às lisonjas de outros. Os hortelãos do Bisagno ainda se recordavam da contrariedade que acontecera a Pierino Fregoso, uns anos antes de suceder ao seu pai como doge. Atrasara-se junto a uma lavadeira de peito generoso e, ao chegar com os amigos às portas da cidade, vira-lhe ser recusada a entrada. Bem que se enfurecera, blasfemara, ameaçara, mas nada abalara a determinação do «cérbero da muralha», como ele o apelidara com soberba. Nem que fosse um dos Reis Magos, ou Nosso Senhor Jesus Cristo em carne e osso, teria direito a um tratamento de deferência.

Deste modo, vira-se na obrigação de passar a noite com os com-panheiros na Hospedaria da Loba Zarolha, propriedade de Dome-nico, que se situava fora da cintura da muralha, a esvaziarem copos de vinho uns atrás dos outros.

No verão, como no inverno, mal o Sol começava a descer no hori-zonte, a cidade encerrava-se atrás das suas muralhas. Tinham sido edificadas para a proteger dos ataques de surpresa dos salteadores a soldo dos fidalgos de Lavagna. Estas autênticas feras não hesitavam em surpreender os viajantes e os peregrinos que se aproximavam

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da cidade e desatendiam a vigilância. Por diversas ocasiões, tinham seguido a sua «presa» até junto do portão do Convento de San Stefano, enquanto os nobres se fechavam nas torres altas e ameadas que tinham mandado erigir mesmo no centro de Génova.

Cansada de tais desvelos, a arraia-miúda exigira que se repa-rasse a antiga cintura da muralha, erigida uns séculos antes, e cuja vigilância dos portões fora confiada a homens provenientes do seu seio. A medida dera os seus frutos. Os Fieschi, que outrora haviam semeado o terror, tinham descido do seu covil montanhoso para virem instalar-se na cidade. Tinham posto fim às pilhagens por considerarem isso mais rentável e para aproveitarem a prosperidade do porto. A paz voltara, mas os velhos hábitos mantinham-se. Mal a noite caía, o medo brocava o coração dos homens. Os campos vizinhos tornavam-se para eles o palco de estranhos acontecimen-tos. Feiticeiros e bruxas aproveitavam a escuridão para realizarem as suas reuniões noturnas, ao mesmo tempo que os lobos esfomea-dos vagueavam em busca de alimento. Há poucas semanas ainda, nas margens escarpadas do Bisagno, tinham sido encontrados os cadáveres de dois pastores retalhados pelas terríveis mandíbulas dos carnívoros, tendo então sido enterrados à pressa. Domenico ainda se lembrava do grito rouco da mãe deles quando os cor-pos foram descidos para a sepultura cavada à pressa: um pranto dilacerante, inumano, que parecia ecoar os bramidos dos animais selvagens.

Era para se proteger que, todas as noites, a cidade se enclausu-rava e confiava a sua guarda aos archeiros de atalaia que velavam para que ninguém entrasse nem saísse da cintura da muralha. Bem seguros, os habitantes entregavam-se às suas ocupações habituais. As mulheres afadigavam-se em frente aos fogões. Os homens iam para a taberna mais próxima comentar as últimas novidades, como a chegada de uma carraca proveniente de Quios ou de Caifa ou a próxima venda de um lote de escravos comprados em Constantino-pla. Longe do olhar dos pais, cortejos de crianças travessas desciam as ruelas em declive a surripiarem aqui e ali um fruto ou a deitarem ao chão bancas de mercadorias.

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Eram tantas as cenas que ali tinham lugar que ninguém veria, pelo menos naquela noite, os dois soldados de cavalaria abrirem caminho na penumbra, a pouca distância da cidade. Um deles não era seguramente um desconhecido. Como se soubesse que lhe iam recusar a abertura da porta, instintivamente, dirigira-se para a Hos-pedaria da Loba Zarolha, confiando a sua montada a um gaiato para que a levasse para a estrebaria. Com o seu companheiro de rosto dissimulado por um capuz, entrou na grande sala pouco iluminada por velas de sebo de má qualidade, onde as criadas repeliam aos risinhos os avanços dos clientes habituais, pobres joões-ninguéns que ali tinham ido em busca de um pouco de calor e consolo depois de um dia de trabalho penoso.

Os dois homens tinham-se sentado em silêncio num canto pró-ximo da lareira. O mais velho atirara algumas moedas para cima da mesa e pedira vinho, pão e queijo. Beberam e comeram sem prestar atenção aos que estavam mais próximo. Ao serão, bem mais tarde, o mais velho intrometera-se nas conversas. Todos comentavam a novidade trazida nessa mesma manhã pelos marujos sobre a queda de Constantinopla às mãos dos turcos.

Bartolomeo Costapelli, um cardador, não parava de vituperar os gregos:

— Foi um justo castigo para esses cães heréticos, que se recusam a reconhecer a autoridade do papa. O irmão Antonio, o guarda--portão de San Stefano, disse-me com a voz trémula de indignação que um dos chefes deles ousara afirmar: «Mais vale o turbante dos turcos do que a mitra dos latinos.» Não entendi nada, mas aquilo devia ser muito grave, a julgar pela cólera dele. Que Nosso Senhor Jesus Cristo e a Sua Santíssima Mãe nos livrem para sempre dessa corja!

Segundo Anna, uma criada, o viajante interrompera Costapelli com grosseria:

— Que cristão és tu, pobre idiota, a maldizer esses gregos para quem trabalhas. Pelas tuas mãos, calculo que sejas tecelão. O que vais fazer quando tu e os teus deixarem de receber as nozes-de-galha de que vos servis para tingirdes de negro as vossas malditas lãs? São tão ásperas que só os pobres de Salerno ou de

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Nápoles aceitam comprá-las. Quando o estômago te gritar de fome, suplicarás a Deus para que o turco se mostre tão condescendente como os gregos. Estarás até pronto a abraçar a fé deles, desde que continuem a dispensar-te essas famosas nozes.

Ninguém se lembrava de quem desembainhara então uma faca para fazer o homem engolir semelhante blasfémia. Na penumbra, cintilara uma lâmina. O viajante esvaíra-se em sangue nos braços do companheiro, enquanto os clientes da taberna fugiam, abando-nando os seus copos acabados de servir.

Anos mais tarde, Domenico lembrava-se amargamente dos abor-recimentos que lhe tinha valido aquela rixa. Quando os archeiros vieram recolher o cadáver, ele ouvira um deles reprimir uma blas-fémia ao analisar os documentos encontrados no homem. Algumas horas mais tarde, já ele tinha sido levado para casa do doge.

— O defunto falou contigo?— Não, senhor. Eu estava a guardar a Porta dell’Olivella como

dita o cargo que me confiou o vosso nobre pai.— E que eu te retiro. Não protestes. Há muito que aguardo a

oportunidade de me vingar da humilhação pela qual um dia me fizeste passar ao me recusares a entrada na cidade.

— Agi de acordo com as ordens do vosso pai, o ilustre Gianni Fregoso. Ordens essas que tiveste, aliás, o grande cuidado de man-ter quando lhe sucedeste.

— Pouco importa. A tua taberna é um lugar de vício e per-dição. As tuas criadas vendem os seus corpos. O prior de San Stefano queixou-se disso por diversas vezes. Até agora, aceitara fechar os olhos perante esse escândalo, mas não voltarei a tolerar que a proteção de uma das portas da cidade seja confiada a um vulgar rufião.

— Mas isso é condenar-me à ruína!Pierino Fregoso avaliou-o com um ar ao mesmo tempo altivo e

vagamente inquieto:— Tens a certeza absoluta de que a vítima não disse a ninguém

quem era?— Foi o que a Anna me jurou. A pobre rapariga estava toda

perturbada por ter assistido a um assassínio. O homem contentou-se

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em dizer as infelizes palavras que conheces, sem dúvida, sob influência do vinho que tanto bebeu.

— Bem quero acreditar em ti. Fica sabendo que nunca ninguém deve saber o que se passou ontem na tua taberna.

— O assassino e os seus cúmplices não estão prestes a vanglo-riar-se do seu ato. Não querem ficar a espernear na ponta de uma corda.

— Tenho dúvidas quanto a isso, e aí está a tua sorte. Para evitar o falatório, tenho de encontrar uma razão plausível para a cessação das tuas funções como guarda da Porta dell’Olivella. A partir desta noite, a cidade ficará a saber que, pelos teus distin-tos méritos, te confiei a gestão das terras que possuo em Savona, onde irás instalar-te sem delongas. Sossega que serão apenas alguns pomares e arpentes de vinha que te deixarão tempo livre para te dedicares às outras tuas ocupações. Graças à minha bondade, eis-te proprietário de uma loja e de uma casa contígua à Igreja de San Giulano, onde irás fazer as tuas orações. Filippo Masetta, o meu tabelião, já redigiu uma escritura de venda fictícia, porque de ti não exijo nenhum outro pagamento além do teu silêncio. Não me agradeças, porque este presente fica-me mais barato do que o dinheiro que perderia se este assunto viesse a lume. Levaria tempo demasiado a explicar-te. Dou-te mesmo como bónus Antonio, o escravo do morto, um mouro bastante robusto a julgar pelo que dizem os meus archeiros, que tiveram alguma dificuldade em lhe deitar a mão. Faz as coisas de modo a que ninguém saiba quem ele é, nem onde se encontra. Como vês, o teu desvalimento é, porém, brando. Tu, filho de um rústico de Mocònesi, eis-te agora dono das quatro paredes onde irás viver a partir deste momento. É mais do que qualquer um dos teus filhos conseguirá ter no final de uma vida de trabalho árduo. Desaparece da minha vista antes que comece a arrepender-me da minha generosidade.

Domenico retirou-se, interrogando-se sobre o que esconderia aquela proposta. Seria aquilo uma armadilha que lhe lançava Pie-rino Fregoso? Com as horas a passar, depressa deixou de pensar no assunto. Nessa mesma noite, tinha de oferecer copos de vinho aos

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outros mestres mercadores de tecidos que viriam felicitá-lo pela sua boa sorte e testemunhar a confiança que o doge depositava nele. Faltava-lhe apenas embalar os parcos haveres e, com os seus, partir para Savona.

* * *

Em Savona, o recém-chegado não tardou a encontrar o seu sítio. O seu pai, o velho Giovanni, geria os domínios de Pierino Fregoso como um camponês astuto. Dedicava-se à sua oficina de fiação e à sua loja de tecidos. De Mocònesi e dos arredores, fizera vir alguns aprendizes, gaiatos robustos, prontos a trabalhar sem descanso doze a catorze horas por dia em troca de um pedaço de pão e de um pouco de toucinho. Isso fazia-os passar da sopa à castanha. Domenico vigiava-os, sem hesitar sová-los quando lhes faltava o entusiasmo. Fora assim que o seu primeiro patrão fizera com ele.

Incapaz de resistir ao engodo do lucro, abrira uma taberna fre-quentada pelos trabalhadores da concorrência, como ele, membros da confraria de San Giulano. Fazia-os beber para lhes sacar infor-mações sobre as encomendas que lhe tinham escapado. Também de modo generoso lhes concedia crédito, sabendo que poderia fazer recair as quantias que aqueles borrachões incorrigíveis lhe ficavam a dever sobre os seus salários, enviando-as aos seus patrões, para grande prejuízo das suas megeras, criaturas medonhas de peito deformado pelas gravidezes, que, às vezes, vinham buscar os mari-dos, acompanhadas de uma caterva de gaiatos imundos.

Quando elas se mostravam demasiado vingativas, o tecelão pedia a Antonio que saísse da cave, onde passava os dias a arru-mar as barricas de vinho e pesados queijos e a protegê-los dos dentes dos roedores. A visão do velho escravo era o bastante para fazer soltar gritos de assombro: Il moro! Il moro! «O mouro! O mouro!» Como se, pelo menos na aparência, ele não fosse tão bom cristão como elas! Ia à igreja uma vez por ano e ficava junto ao átrio a resmonear frases incompreensíveis num jargão estranho.

Aquela fora a condição imposta por Domenico para ficar com o escravo ao seu serviço em Savona depois de o ter escondido

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durante anos em Mocònesi, conforme as exigências do doge. Naquela vila, os Centurione — Domenico não tardara a perce-ber que era deles que, antes de mais, Pierino Fregoso desconfia- va — teriam grandes dificuldades em descobrir-lhe o rasto. Estes prósperos negociantes, que não hesitavam em ir a Lisboa ou a Barcelona, faziam os possíveis por não se aventurar a ir à monta-nha ligurina. Aos seus olhos, esse mundo era bizarro, povoado por seres rudes e selvagens, demasiado pobres para quererem recorrer aos seus serviços.

Em Mocònesi, Domenico encarregara-o de olhar pelos seus filhos, três rapazes e uma rapariga, deixados ao cuidado de uma ama em casa de uma prima afastada. A mãe deles, Suzanna, estava demasiado ocupada na taberna e na loja de Savona para cuidar deles. Contentava-se em os visitar uma ou duas vezes por ano para se assegurar de que ainda estavam vivos. As crianças tinham crescido à pressa. Passavam a maior parte do tempo a correr pelos soutos para aí montarem armadilhas ou a pescar nas torrentes que corriam velozes para o vale. Nada parava aqueles gaiatos. Num final de tarde, os dois mais velhos, Cristoforo e Giacomo, perderam-se na floresta. Julgaram ser mais prudente passar a noite empoleirados numa árvore com medo dos lobos.

Ao raiar do dia, quando chegaram enregelados a Mocònesi, tiveram a surpresa de ver o lenhador Ludovico Maduco a contar aos aldeãos o terror que tinha sentido ao chegar à sua cabana:

— Eram de certezinha feiticeiros que ali tinham parado para fazer a sua reunião noturna. Vi distintamente dois pares de olhos reluzentes por entre os ramos. Benzi-me e desatei a fugir que nem uma lebre.

O homem, um solitário, era temido e respeitado pelos habitan-tes. Dizia-se em surdina ser possuidor de estranhos poderes. Sabia curar as queimaduras, pondo simplesmente as mãos por cima das peles tragadas pelo fogo. Era também a ele que se dirigiam as matronas quando se aproximava o aniversário da morte dos seus parentes. Ninguém o igualava na preparação dos leitos noutro tempo ocupados pelos defuntos, nem na disposição sobre a mesa das bebidas e comidas a eles destinadas, segundo uma ordem precisa.

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Todos sabiam que por vezes os mortos gostavam de aparecer nos sítios onde tinham vivido e de aquecer os ossos diante de um bom braseiro.

Era Ludovico que decidia o momento em que os enlutados deviam fazer esses preparativos e, em poucas horas, deixarem as suas choupanas para que os seus parentes defuntos pudessem ir lá repousar um pouco. Como recompensa, contentava-se com os restos que lhe tivessem sido deixados. Figura respeitada em Mocònesi, era digno da confiança até do cura, que tolerava os seus manejos e, de vez em quando, recorria a ele. A história que contara gelara de medo os habitantes e, sobretudo, os dois valdevinos. Sem o saberem, tinham corrido um perigo imenso, porque tinha sido próximo do esconderijo deles que os feiticeiros tinham parado. Foi, portanto, de boa vontade que se juntaram aos outros habitantes da vila para acompanharem a procissão improvisada pelo padre. Fizeram a promessa de não mais voltar ao cabeço dos feiticeiros.

No regresso, o respeitoso cortejo cruzara-se com um pequeno grupo conduzido pelo filho do conde de Lavagna, Giovanni Fieschi. Apenas com quinze anos, seguia montado num cavalo na compa-nhia dos amigos, peraltas que semeavam o terror entre os habi-tantes da região. Ninguém os igualava na destruição das magras culturas quando se dedicavam às suas razias, e à noite causavam grande escândalo na hospedaria de Mocònesi. Aí, contentavam-se em andar aos encontrões aos camponeses, obrigando-os a dar--lhes passagem, e riam à gargalhada quando uma pobre velha de- samparada caía na vala. Furioso, Cristoforo apressava-se a atirar um punhado de terra gelada na direção deles, mas o irmão detinha-o:

— Para, aqueles jovens fidalgos far-te-iam pagar isso bem caro. Para eles, não passas de um campónio, de um rústico, sobre quem têm todos os direitos.

— Eles não têm nenhum além daquele que retiram do nosso medo. Quem são eles para nos humilhar assim? Valho bem mais do que todos eles.

— Peço-te, não te armes em finório.— Lembra-te do que o nosso pai nos disse. Os nossos antepas-

sados são de origem ilustre e pertenciam a uma linhagem famosa.

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Nobre, eu sou, e tu és tanto como eles. Também um dia, juro-te, farei valer os meus direitos e farei armar-me cavaleiro como eles.

— Sabes muito bem que o nosso pai conta essas histórias quando já bebeu demais. Entretanto, volta para casa comigo. Tenho medo que o nosso padrinho nos amasse as costas quando souber dos acontecimentos desta manhã.

— Mais vale evitá-lo e fazer de conta que nada se passou em casa do senhor cura.

Desde os sete anos deles que Antonio os obrigara, pelo menos no inverno, a frequentar a modesta escola aberta pelo cura de Mocònesi. Este compensava a parcimónia dos recursos — os seus fiéis pensavam duas vezes antes de mandarem dizer aí uma missa em memória dos seus mortos —, ensinando aos seus gaiatos os rudimentos da leitura e da escrita, mediante a entrega de alguns ovos, queijo e fiambre. À força de grandes cacholadas, fazia-os desenhar no chão as letras do alfabeto. Quando já estava can-sado, reunia a garotada à volta da lareira e contava-lhes a vida dos santos do calendário. Ai daquele que tivesse a ousadia de pôr em questão os milagres por ele enumerados. Por vezes, com as lágrimas nos olhos, evocava a queda de Jerusalém, perdida pelos cruzados devido aos seus incontáveis pecados. As suas palavras eram tão convincentes que suscitaram o vivo entusiasmo nalguns dos seus alunos, com Cristoforo à cabeça, proclamando-se mem-bros de uma confraria secreta, os cavaleiros de Jerusalém. Entre si, juraram amizade eterna e prometeram dedicar a vida à libertação do Santo Sepulcro. Longe de ouvidos indiscretos, tratavam-se por aqueles que diziam ser os seus verdadeiros nomes: conde de Joppe, marquês de Caifa, duque do Monte Thabor, barão de Belém e visconde de Hébron.

Encontravam-se ao fim da tarde, à saída da vila, para imitarem épicos combates entre cristãos e mouros. Estavam presentes, entre outros, Michele da Cuneo, Leonardo de Esberraya, Gianni Ferrante e Giuseppe Mariani. Os seus adversários eram os miúdos de Fon-tana Rossa, por eles tratados por mouros reles e abomináveis sarra-cenos, para enorme espanto daqueles. Os ferimentos que diziam ter

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resultado dessas escaramuças eram a prova mais do que evidente da sua valentia e determinação. Não duvidavam, um instante sequer, que o seu sonho se tornaria realidade.

É que não tinham esquecido a principal lição do velho cura de Mocònesi. Por pouco, dizia ele, os exércitos de Preste João, um magnífico rei cristão que vivia para lá dos desertos da Arábia, não libertaram o Túmulo de Cristo. Talvez até já tivessem começado a fazê-lo. Não precisaram de mais do que alguns meses para chegar ao Jordão e, seguindo os passos de Aarão e dos hebreus, entrarem na Terra Santa. Todos sabiam que o mundo era pequeno e que ninguém conseguia viver na zona tórrida. O reino de Preste João não podia ficar muito longe.

Para comprovar o que dizia, o cura de Mocònesi citara-lhes um texto escrito por Paulo Orósio, um prelado espanhol. Como tivera ele conhecimento daquilo, ele que, durante toda a sua vida, fora não mais do que uma dezena de vezes a Génova? Talvez um viajante de passagem pelo lugarejo lhe tivesse lido um manus-crito que tivesse na sua posse e o tivesse deixado copiar algumas linhas. Em todo o caso, foi com uma voz firme que enunciou estas palavras: «Uma bem maior quantidade de terra permanece mais inculta e inexplorada em África, devido ao calor do Sol, do que na Europa, por causa da intensidade do frio, porque não há dúvida alguma de que quase todos os animais e quase todas as plantas se adaptam de modo mais natural e com maior facilidade ao frio intenso do que ao calor excessivo. É uma razão evidente que faz com que, tanto pelos seus perfis como pela sua população, África surja pequena em todos os aspetos (comparada com a Europa e a Ásia, entenda-se): pela sua situação natural, este continente dispõe de menos espaço e, pelo seu mau clima, conta com mais terras desérticas.»

Europa, Ásia e África eram nomes que tinham agradado a Cristoforo, embora não conseguisse perceber o que significavam. Designavam terras longínquas, ainda mais distantes de Mocònesi do que Salerno ou Roma.

Ao contar a Antonio as conversas do cura, este rira a bandeiras despregadas:

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— O teu mestre é um completo imbecil. O que pode ele saber de África e da zona tórrida, se mal consegue encontrar o caminho até à Fontana Rossa?

Combinando com eles guardarem daquilo segredo, mas que Antonio sabia depressa vir a ser divulgado, explicara aos gaiatos que ele próprio nascera em África numa cidade chamada Sijil-massa, situada na orla do deserto. Ele era mouro de religião e de local de nascimento. Tendo ficado órfão muito cedo, ganhara a vida como ajudante de cameleiro a acompanhar as caravanas que se dirigiam para Tombuctu, uma cidade situada nas margens de um rio imenso, extenso como um cento de torrentes, em cujas águas viviam touros marinhos e serpentes de grandes mandíbu-las capazes de devorar o homem que por grande infortúnio se aventurasse a afastar-se da margem. Numa das suas viagens, fora feito prisioneiro por guerreiros nómadas, que o tinham voltado a vender a bom preço a um negociante genovês, Antonio Malfante, que, depois de afrontar mil perigos, chegara aos oásis de Touat. Ele levara-o consigo até Ceuta, de onde embarcara depois para Sevi-lha e daí para Génova. A acreditar nas palavras de Antonio, o seu dono tencionava regressar depois a Sijilmassa para levantar algumas mercadorias, ouro, penas de avestruz e escravos que comprara, e, em parte, pagara. Infelizmente, encontrara a morte durante uma rixa na hospedaria de Domenico.

Quando o mestre mercador de tecidos soube pelos filhos o que Antonio lhes confidenciara, entendera de imediato a razão pela qual Pierino Fregoso se empenhara tanto em que ninguém sou-besse do regresso de Antonio Malfante à sua cidade. A chegada do viajante fora-lhe anunciada pelos espiões que mantinha em todos os portos da Ligúria e da Provença. Assassinara-o e depois roubara-lhe os documentos, cartas e mapas, e servira-se deles para enviar para Sijilmassa os seus próprios amanuenses. Fora assim que, para grande surpresa e irritação dos Centurione, chamara a si o lucrativo monopólio do comércio junto dos negociantes africanos, afirmando sem nenhuma vergonha que fora bem-sucedido onde a sua concorrência tinha fracassado. Com pompa, jurara que não se pouparia a esforços para libertar o pobre Antonio Malfante do

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cativeiro em que o mantinham, sem dúvida, as tribos nómadas do deserto. Depois, numa voz afetada, explicara aos Centurione que, segundo o que ficara a saber, o amanuense deles sucumbira aos maus-tratos que os seus donos lhe tinham infligido perante a sua recusa de abraçar as suas superstições.

Domenico cismara na sua raiva. O seu exílio para Savona era uma consequência da lúgubre maquinação urdida por Pierino Fregoso. Este enrolara-o, fingindo estar a ajudá-lo. Comprara o seu silêncio ao torná-lo dono de uma casa à qual estaria doravante preso como um servo à sua terra. Não tinha forma alguma de conseguir que se fizesse justiça. Quem iria acreditar nele se contasse aquela história, passados anos, invocando o testemunho de um escravo mouro? Tal-vez acabasse mesmo por ser acusado de cumplicidade no homicídio? Encarando a má sorte com boa cara, concluiu que de nada servia remoer naquele passado. Quando muito, agora que conhecia o fim da história, achava-se autorizado a mandar vir para Savona Antonio e os seus filhos. Estes, aliás, já estavam em idade de trabalhar na sua oficina, poupando-lhe assim a despesa de contratar dois aprendizes. Desse modo, reembolsaria as quantias que pagara para os ter em casa da prima. Quanto a Antonio, na taberna teria muito que fazer, já que Suzanna não queria continuar a ocupar-se dela.

Ao ver reaparecer o escravo que fora testemunha da sua malva-dez, Pierino Fregoso tentou fazer Domenico pagar bem caro aquilo que chamava a «sua traição». Apresentando um falso testemunho, denunciou-o às autoridades de Savona que tinham posto na prisão o mestre mercador de tecidos. Este tivera de vender uma das terras que ainda possuía nas imediações de Génova para untar as mãos do juiz e reaver a liberdade. Na condição de o magistrado confirmar em definitivo o contrato de venda da sua casa, indeferiu as recla-mações de Pierino Fregoso.

* * *

Cristoforo fiscalizava o carregamento da carraca. O Santa Luciana devia voltar ao mar dois dias depois para chegar a Génova antes do início da estação das chuvas. Carregadores vergavam-se ao

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peso dos pequenos fardos de resina de lentisco que armazenavam no porão. Outros rolavam pesadas pipas de vinho que estivavam com firmeza por meio de cordas grosseiramente entrançadas. Munido dos seus utensílios de escrita, o amanuense contava e recontava as mercadorias. Apesar da sua juventude, dava grande atenção a tudo e nada escapava ao seu olhar de fuinha. Por duas ocasiões, mandara para trás barricas de carne salgada depois de ter verificado que começara a apodrecer. Quando Paolo Ferrante, o talhante, protestou, garantindo que todos apreciavam os seus produtos, ele redarguiu com secura:

— Ainda bem! Assim, tens a certeza de que darás saída a essa carne carcomida pelas larvas. Da minha parte, podes ter a certeza de que não ta compraria. A tripulação não a quereria. Tenho ordens expressas. Não cederemos antes de chegarmos a Génova. Desde que os turcos controlam o conjunto dos portos, é bom que não tenhamos de parar neles. Os seus governadores são uns canalhas abomináveis que cobram tarifas extraordinárias para encherem os cofres de ouro, querendo assim expoliar-nos. Pela maneira como te comportas comigo, pergunto-me se não enfiaste o turbante!

— Estás zangado com o pecadilho. Alguma vez protestei quando o teu pai me vendia uma zurrapa azeda a que ousava chamar vinho? Eu escondia as caretas, por simpatia, mas a minha goela queixava-se disso. Mordo quem quero, desde que isso me dê algum dinheiro. Não tenho a intenção de acabar os meus dias aqui, em Quios. Em todo o caso, há dúvidas que os turcos nos tolerem ainda por muito tempo.

— Creio terem nisso algum interesse. O sítio está mal defendido por alguns homens armados incapazes de se opor a uma invasão.

— Têm os seus próprios espiões na ilha. Por enquanto, mos-tram-se conciliadores, porque querem que deixemos de ir a Ale-xandria ou a Beirute, que estão nas mãos do sudão da Babilónia1. É pelo Egito que nos chegam as especiarias e a seda do Oriente, ainda que algumas caravanas sigam pela antiga rota terrestre até

1 Era deste modo que se designava o sultão mameluco instalado no Cairo. (N. do A.)

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Brousse, onde podemos ir para fazer as nossas compras. É por essa razão que nos toleram aqui e não ousam pressionar-nos tanto. No dia em que se apoderarem do Egito, as coisas correrão de outro modo. Ficaremos totalmente à sua mercê.

O amanuense pousou o caderno e a caneta. O seu interlo-cutor parecia estar muito bem informado. Mesmo sendo um velhaco da pior espécie, podia fornecer-lhe informações pre-ciosas. Depois, conheciam-se há muito tempo, o homem era o pai de Gianni, um «cavaleiro de Jerusalém», um dos seus companheiros de brincadeira em Mocònesi. Portanto, o melhor era manter-se em paz com ele, pelo menos por enquanto, para lhe tirar nabos da púcara:

— Falas dos turcos como se os conhecesses bem.— Falo mal o seu jargão. Certo dia, um deles prestou-me um

serviço completo quando aqui cheguei depois de sair de Mocònesi. Acompanhou-me a Jerusalém, onde eu prometera ir em peregri-nação.

— Ficaste com a consciência pesada depois de teres envenenado uma tripulação com a tua carne!

— Desengana-te, foi uma falta mais grave que justificou a minha partida das nossas montanhas. Matei um homem. Desentendemo--nos por causa de uma galdéria e ele puxou da faca. Virei a arma para ele e morreu com ela cravada. Fui confessar-me depois disso e o destemido cura, que foi vosso mestre, teu e do meu filho, infligiu--me esta penitência. Enfim, penitência é uma palavra forte. Qual o cristão que não ficaria satisfeito por seguir os passos de Nosso Senhor e dos Seus apóstolos? Vi o Seu túmulo, que é guardado por franciscanos. Põem grande zelo no conforto dos peregrinos aos quais os mamelucos não perdoam nenhuma afronta. Que se cuide aquele que transgredir a lei deles! Por o meu companheiro ser maometano, tinha o direito de montar um cavalo, ao passo que eu devia conten-tar-me com uma mula de má qualidade. Às portas de Jerusalém, um desses malditos pagãos atirou-me ao chão por eu ter cometido o erro de prender um turbante à volta da cabeça para me pro-teger do sol. Parece que é um crime enorme aos olhos deles. Comi terra, agradecendo a Deus ele ter-se contentado com esse

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gesto. Vê o que os cristãos sofrem naquelas terras. Acredita no que te digo, será uma grande alegria quando um dos nossos príncipes libertar a cidade santa de David.

— Esse podia ser o famoso Preste João de quem ouvi falar. Tem um exército formidável...

— Tudo isso não passam de tolices. Em Jerusalém, vi alguns dos seus súbditos, uns monges de rosto tão negro como o carvão. Esses cismáticos dizem ser descendentes de Salomão e da rainha de Sabá. O rei deles vive num país infestado de leões e animais ferozes. Os seus palácios são cabanas miseráveis feitas de barro amassado com palha e os seus soldados nem possuem espadas de bom aço de Damasco. Não será deles que nos chegará auxílio.

— Ele chegará, garantidamente, tenho a certeza disso. O fale-cido monsenhor duque da Borgonha fez voto de cruzar os mares.

— Ah, sim? Onde estão os barcos dele? Teriam naufragado? Ele nunca o fez e duvido muito que o filho cumpra a sua promessa. Precisava de ouro, de muito ouro, para reunir homens bastantes para libertar Jerusalém. Ora, o ouro está nas mãos dos infiéis.

Giovanni Ferrante suspirou e benzeu-se com automatismo. Estava com pressa de acabar a conversa com o amanuense. Não lamentava ter descurado o seu cuidado. Era certo que eram duas barricas de carne que não vendia, mas, enquanto tinham estado a cavaquear, aquele idiota deixara embarcar duas barricas de bis-coitos duros como pedra e já carcomidos pelo gorgulho. Quando Cristoforo descobriu a trapaça, já a carraca ia na latitude da ilha de Negroponto2. Estava fora de questão dar meia-volta por um pecadilho daqueles e a tripulação entraria na Quaresma antes de tempo!

Ao largo da Sicília, o Santa Luciana atravessou uma grande tem-pestade. De repente, o vento levantou-se e o mar alterado parecia querer tragar o navio, cujos costados eram batidos por poderosas vagas. A água entrava de rompante no porão onde os marujos se afadigavam a escoá-la. Ao lado deles, Cristoforo esforçava-se o mais

2 Eubeia. (N. do A.)

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que podia para proteger alguns valiosos pequenos fardos de seda. Uma tromba-d’água deitou-o ao chão e fê-lo bater com a cabeça numa pipa, perdendo os sentidos.

Algumas horas mais tarde, voltou a si. Para seu grande espanto, viu que tinha sido transportado para o tombadilho de popa da carraca, onde ficavam as cabinas do capitão e do piloto, bem como a que estava reservada a um passageiro importante, Federigo Cen-turione. Tinha a cabeça ligada e estava deitado em cima de uma tarimba de madeira dura que fazia as vezes de cama. À sua frente, estava Federigo Centurione, que mal vira desde que tinham saído de Quios. O negociante tomava as refeições sozinho e o resto do tempo estava no castelo de popa a contemplar o horizonte ou a trocar algumas palavras com o capitão. Agora, estendia ao seu amanuense um copo de vinho:

— Bebe, isto vai arrebitar-te. Já estás livre de perigo. Quando te tirámos do porão, julguei que estavas morto. Felizmente, ainda respiravas e dei ordens para que tratassem de ti.

— Não sei como agradecer-vos. Não sou merecedor de seme-lhante tratamento.

— Estive a observar-te bem em terra e durante a viagem. Para ser sincero, fiquei furioso com o capitão por te ter embarcado quando não tens experiência nenhuma de mar. Não mintas. Durante três anos, contentaste-te em navegar entre Savona e a Córsega depois de teres deixado a oficina do teu pai, onde cardavas lã. Ele pôs-te na rua porque não queria sustentar um madraço.

O ferido esboçou um gesto de recusa. Ainda se lembrava da irritação do pai quando, ao chegar de uma viagem que fizera a Salerno, vira que o filho mais velho só voltaria a aparecer uns oito dias depois. O trabalho que fazia na oficina aborrecia-o e passara os dias nas tabernas do porto a ouvir a bazófia dos marinheiros e a propor-lhes, em vão, os seus serviços. Já era velho demais para ser angariado como grumete. Domenico encontrara-o e arrastara-o até à sua oficina, onde lhe dera uma enorme tareia antes de o proibir de voltar a aparecer-lhe à frente.

A sua mãe, Suzanna, dispusera-se a arranjar-lhe um sítio para ficar, um esconso lúgubre em casa de uma parente sua. Ao menos ele

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tinha a certeza de que tinha um abrigo e, de vez em quando, uma boa sopa ou um naco de pão. De tanto vaguear pelo porto, onde ajudava a descarregar as carracas e as barcas, o jovem acabara por se fazer embarcar no Santo Pietro, que andava numa roda-viva entre Savona e Bastia, ou, quando o mar estava muito alterado, dedicava--se à cabotagem ao longo da costa lígure. Por diversas vezes, o pai embarcara para ir a Génova, mas fingira não reparar nele.

Num final de tarde, quando num cubículo imundo o jovem rumi-nava no seu aborrecimento, pôs-se a conversar com um velho, um antigo capitão, que estava ao serviço dos Centurione como ama-nuense. Procurava um ajudante capaz de o desobrigar das tarefas mais enfadonhas. Cristoforo abençoou o velho cura de Mocònesi por lhe ter enfiado na cabeça as letras do alfabeto.

Passava dez horas por dia no meio de um amontoado de peque-nos fardos, baús e pipas a escrevinhar registos e a fazer e refazer contas. Aquela tarefa ingrata tinha as suas vantagens. O seu prote-tor recebia a visita de capitães e pilotos que vinham conversar com ele sobre os seus périplos. Ouvia-os evocar as suas recordações e as viagens de barco que tinham feito, os ancoradouros mais indicados para a aguada ou as zonas infestadas de rochas que mal se viam. No princípio, não quisera entrar nas suas conversas, contentando--se em tomar algumas notas à pressa. Uma manhã, entregou um registo minúsculo ao capitão de uma carraca de partida para Quios:

— Tomei nota de tudo o que dissestes sobre as vossas anteriores viagens, em particular sobre os ventos que encontrastes, tanto na ida como na vinda, consoante a época do ano. Quem sabe se isto não pode ser-vos útil.

O homem agradeceu-lhe:— Tenho a impressão de que te aborreces muito nesta espe-

lunca. Estou a precisar de um amanuense. Apetece-me ter-te à experiência. Apressa-te a juntar alguns pertences, porque partimos amanhã de manhã. Não esperes que te pague alguma coisa por isso, porque já é muito bom aceitar-te a trabalhar comigo. Cabe-te provar-me que tens estofo para vir a ser marinheiro.

* * *