independência e harmonia dos poderes

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 INDEPENDÊNCIA E HARMONIA DOS PODERES Revista dos Tribunais Nordes te | vol. 5/2014 | p. 463 | Mai / 2014 Revista dos Tribunais Nordeste | vol. 6/2014 | p. 463 | Jul / 2014 DTR\2014\18637 Pontes de Miranda Área do Direito: Constitucional Sumário: 1.Análise da técnica constitucional no Brasil e alhures - 2.Distinção de funções e separação de poderes - 3.Tríade - 4.1891-1967 - 5.Princípio da unicidade de função-poder - 6.Problema da repartição das competências orgânicas - 7.Delegações de poder 1. Análise da técnica constitucional no Brasil e alhures A Constituição 1 de 1937 não proibiu, em princípio geral, que a pessoa investid a na função de um dos Poderes exercesse a de outro. Todavia, o membro do Parlamento nacional estava sujeito a certas vedações, os juízes, ainda que em disponibilidade, não podiam exercer qualquer outra função pública e, em geral, era vedada a acumulação de cargos públicos remunerados da União, dos Estados-membros e do Município (art. 159). Os militares eram sujeitos ao art. 160, “a”. Nas Constituições da Europa, apó s a primeira guerra mun di al, pro curou-se ref or çar o Poder Executivo como solução nova às relações entre tal Poder e o Legislativo. Democrático, também, hoje, o Executivo, não se trata de  regressão , mas de  reajustamento . Rigorosamente, se o povo elegesse um homem para redigir uma lei, seria o mesmo que eleger 20, 200, 2.000: a legislação seria igualmente democrática. Ora, a experiência mostrou que as assembléias se tornaram corpos autônomos, desligados do povo, de modo que a personalidade de um homem não seria separação maior entre a  vontade geral  e a  lei  do que entidade transindividual e transp opular das assembléias. Portanto , nos nossos dias, o reforçamento do Poder Executivo, nos países parlamentaristas, onde se sentiu o monopól io ou usurpa ção governamenta l do Parlamento; a reabil itação do Poder Legislat ivo, nos países que a devem querer, como o Brasil, onde o presidencialismo degradou o Congresso Nacional até que a ditadura de 1930 a 1937 o destituiu, apenas constitui solução de  técnica constitucional  dentro da democracia. Se a linha separativa avanç a para um lado, ou para outro, nada importa para a doutrina democrática os dois pólos são democráticos. Se, no Estado fascista, a sol uçã o era ant idemocrática, resultava de elementos estranhos, poi s o fas cismo não concebia democraticamente nenhum dos Poderes. O fenômeno de deslocação do traço que distribui as funções de nenhum modo está ligado ao da técnica democrática. Constitui problema à parte. Tanto assim que, onde se reforça o Poder Executivo, pode a Constituição cogitar de Estado ou do Governo, mediante novos expedientes de democracia direta. A confusão entre os dois problemas leva a criticar-se a democracia pelos defeitos do parlamentarismo em si ou das raias em que ele, excessivo, se exerce, e a pensar-se em que a necessidade de confiarem-se ao Poder Executivo certas medidas e leis implica a condenação dos princípios democráticos. A perturbação das idéias no terreno político do século XX assenta, em grande parte, na confusão de conceitos. Felizmente, nos Estados de cultur a políti co-jur ídica evitam-se as conseqü ências maiores. Se vimos, na Aleman ha de Weimar e noutros Estados, a técnica da distribuição dos Poderes descer a minúcias e requintes, tamb ém lhes assistíramos ao prop ósito de avi var a democracia pel a ini cia tiv a pop ular e pel o referendo. Nada mais útil do que determinar a causa dos males. Na Tcheco-Esloquia, as duas Câmaras elegiam, segun do a representação pr oporc ional, permiti das as coalizões, comissã o especial de 24 membros (16 da Câmara, 8 do Senado), para que, na ausência das Câmaras, pudesse promulgar leis “provisórias” e exercesse as funções de vigilância parlamentar ao poder governamental e ao Poder Executivo. Cada membro tinha o seu suplente. Procedia-se à eleição após a constituição das duas Câmaras: quando uma delas se renovasse, elegia os seus membros na comissão. A legislação podia versar sobre qualquer matéria, exceto a) eleição do Presidente da República ou seus suplentes; b) modificação das leis constitucionais ou competê ncia das autorid ades administrativas, sal vo se estendes- se, por atri bui çõe s novas, os Independência e harmonia dos poderes Página 1

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INDEPENDÊNCIA E HARMONIA DOS PODERES

Revista dos Tribunais Nordeste | vol. 5/2014 | p. 463 | Mai / 2014Revista dos Tribunais Nordeste | vol. 6/2014 | p. 463 | Jul / 2014

DTR\2014\18637

Pontes de Miranda

Área do Direito: ConstitucionalSumário:

1.Análise da técnica constitucional no Brasil e alhures - 2.Distinção de funções e separação depoderes - 3.Tríade - 4.1891-1967 - 5.Princípio da unicidade de função-poder - 6.Problema darepartição das competências orgânicas - 7.Delegações de poder

1. Análise da técnica constitucional no Brasil e alhures

A Constituição1 de 1937 não proibiu, em princípio geral, que a pessoa investida na função de um dos

Poderes exercesse a de outro. Todavia, o membro do Parlamento nacional estava sujeito a certasvedações, os juízes, ainda que em disponibilidade, não podiam exercer qualquer outra funçãopública e, em geral, era vedada a acumulação de cargos públicos remunerados da União, dosEstados-membros e do Município (art. 159). Os militares eram sujeitos ao art. 160, “a”.

Nas Constituições da Europa, após a primeira guerra mundial, procurou-se reforçar o PoderExecutivo como solução nova às relações entre tal Poder e o Legislativo. Democrático, também,hoje, o Executivo, não se trata de   regressão , mas de   reajustamento . Rigorosamente, se o povoelegesse um homem para redigir uma lei, seria o mesmo que eleger 20, 200, 2.000: a legislaçãoseria igualmente democrática. Ora, a experiência mostrou que as assembléias se tornaram corposautônomos, desligados do povo, de modo que a personalidade de um homem não seria separaçãomaior entre a  vontade geral  e a   lei  do que entidade transindividual e transpopular das assembléias.Portanto , nos nossos dias, o reforçamento do Poder Executivo, nos países parlamentaristas, onde sesentiu o monopólio ou usurpação governamental do Parlamento; a reabilitação do Poder Legislativo,nos países que a devem querer, como o Brasil, onde o presidencialismo degradou o CongressoNacional até que a ditadura de 1930 a 1937 o destituiu, apenas constitui solução de   técnica constitucional  dentro da democracia. Se a linha separativa avança para um lado, ou para outro, nadaimporta para a doutrina democrática os dois pólos são democráticos. Se, no Estado fascista, asolução era antidemocrática, resultava de elementos estranhos, pois o fascismo não concebiademocraticamente nenhum dos Poderes. O fenômeno de deslocação do traço que distribui asfunções de nenhum modo está ligado ao da técnica democrática. Constitui problema à parte. Tantoassim que, onde se reforça o Poder Executivo, pode a Constituição cogitar de Estado ou doGoverno, mediante novos expedientes de democracia direta. A confusão entre os dois problemasleva a criticar-se a democracia pelos defeitos do parlamentarismo em si ou das raias em que ele,excessivo, se exerce, e a pensar-se em que a necessidade de confiarem-se ao Poder Executivocertas medidas e leis implica a condenação dos princípios democráticos. A perturbação das idéias noterreno político do século XX assenta, em grande parte, na confusão de conceitos. Felizmente, nos

Estados de cultura político-jurídica evitam-se as conseqüências maiores. Se vimos, na Alemanha deWeimar e noutros Estados, a técnica da distribuição dos Poderes descer a minúcias e requintes,também lhes assistíramos ao propósito de avivar a democracia pela iniciativa popular e peloreferendo.

Nada mais útil do que determinar a causa dos males.

Na Tcheco-Eslováquia, as duas Câmaras elegiam, segundo a representação proporcional,permitidas as coalizões, comissão especial de 24 membros (16 da Câmara, 8 do Senado), para que,na ausência das Câmaras, pudesse promulgar leis “provisórias” e exercesse as funções de vigilânciaparlamentar ao poder governamental e ao Poder Executivo. Cada membro tinha o seu suplente.Procedia-se à eleição após a constituição das duas Câmaras: quando uma delas se renovasse,elegia os seus membros na comissão. A legislação podia versar sobre qualquer matéria, exceto a)eleição do Presidente da República ou seus suplentes; b) modificação das leis constitucionais oucompetência das autoridades administrativas, salvo se estendes-se, por atribuições novas, os

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poderes de autoridade já existentes; c) imposição de encargos novos e duráveis, agravação dasab-rogações militares, oneração, por forma durável, das finanças do Estado ou alienação dos benspúblicos; d) autorização para declarar guerra. O § 54 desenvolveu, com pormenores, a concepçãotcheco-eslovena. Tratava-se de legislação provisória; mas, de qualquer modo, redistribuição dasfunções públicas. Também na Letônia, o art. 81 da Constituição autorizava o Conselho dos ministros

a promulgar decretos-leis, na ausência da Dieta, a que deveriam ser apresentados três dias após aretomada dos trabalhos, sob pena de perderem o vigor.

Na Polônia, a solução era de origem monárquica, consistente em investir o Poder Executivo dospoderes legislativos orçamentários na ausência da Dieta, o que reprovamos em 1936 (“Comentáriosà Constituição de 1934”, I, pág. 454).

Como quer que seja, havia e há a tendência para se deixar preenchido o  vácuo de tempo  causado àlegislatura pelo interregno ou expiração do mandato das Câmaras ou pela dissolução. Desde que ocorpo investido, ou o indivíduo, seja de escolha popular, direta ou indireta, a democracia não éatingida. No Brasil, a criação da Seção Permanente do Senado Federal (Constituição de 1934, art.92. § 1.º) correspondia a essa corrente, de evidente valor técnico. A Constituição de 1946 e a de1967 não retomaram a estrada.

Os Poderes são, teoricamente,   independentes  e   harmônicos . Não há, em princípio, predominânciade qualquer deles. O exercício de cada um dos três é que pode fazer um deles preponderar, ouporque tal exercício seja demasiado, de modo que um dos Poderes passe a superar os outros, ouporque os outros não dão ao exercício a intensidade que seria normal. Antes de 1930, apreponderância do Poder Executivo (sobre isso, em 1922, nosso “Sistema”, I, pág. 467) provinha dainterferência do Poder Executivo na formação do Poder Legislativo e da composição política doPoder Judiciário federal. Depois de 1946, a preponderância do Poder Executivo foi devida àdeficiência de exercício, por parte do Poder Legislativo, que, tendo recebido legislação provinda de1937-1946, manteve delegações legislativas e frutos de delegações de poderes, sem promover adepuração, que lhe cumpria, para atender ao art. 36, § 2.º, da Constituição de 1946: “É vedado aqualquer dos Poderes delegar atribuições.” Faltou esse rudimentar exercício de função do PoderLegislativo – retirar poderes, que ele não dera, mas encontrara . A crise, que sobreveio – no plano dademocracia e no plano das finanças e da economia – resultou disso. Não é ao Poder Executivo que

incumbe dar importância ao Poder Legislativo, ou reconhecer-lhe supremacia: só o próprio PoderLegislativo pode fazer-se tão importante quanto a Constituição de 1946 estatuíra que devera ser; esó ele mesmo poderia criar-se a supremacia no torneio de bem servir, que a Constituição de 1946permitia aos três Poderes.

O que acima está escrito já constava dos “Comentários à Constituição de 1946”, tomo II, 4.a. ed.,pág. 338, e o que temíamos ocorreu. O Congresso Nacional não somente permitiu que se fraudasseo plebiscito de 1962, para que se derrubasse o parlamentarismo, como se humilhou diante dos atosinstitucionais de 1964-1967.

Temos de distinguir o mundo jurídico e o mundo fático. No mundo jurídico, todos os poderes públicossão independentes e harmônicos: não se pode pensar em supremacia. No mundo do fático, sim: ouporque um se eleve, por baixarem os outros, ou porque todos se elevem e um se eleve mais do queos outros pode haver supremacia. A supremacia teórica do Poder Legislativo, no mundo jurídico,

daria o parlamentarismo. A supremacia do Poder Executivo, no mundo jurídico, mesmo que se tratedo chamado regime presidencialista, seria ditadura disfarçada, porém, na concepção dopresidencialismo, adotaram-se medidas que evitassem, quanto possível, essa hipertrofia. No Brasil,a supremacia do Poder Legislativo, no mundo fático, seria benéfica à recuperação democrática doBrasil (que, aliás, foi admirável, e prova a vocação democrático-liberal do povo); mas   essa supremacia só se adquire por atos seguidos, indubitáveis, de sabedoria e de coragem . S e oconseguíssemos, não precisaríamos do parlamentarismo; ou tê-lo-emos construído, à margem daConstituição de 1946, sem a ferir – como se deu no Império.

No mundo jurídico, os três poderes têm a mesma altura; no mundo fático, é mais alto o que maismerece, ou o que se conservou onde devia estar, enquanto os outros baixaram de nível. Há, ainda, aterceira hipótese: a da deturpação da democracia em oligocracia, sem preponderância,propriamente, de qualquer Poder, comprometendo-se á evolução histórica do país.

2. Distinção de funções e separação de poderes

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Antes de entrarmos no assunto, convém atendermos ao seguinte: um conceito é o de distinção dasfunções  do Estado em função  legislativa , função  executiva  e função  judiciária ; outro, o de  separação absoluta dos Poderes  segundo tal critério distintivo. Quer se adote o  princípio da separação absoluta ,quer não se adote, a distinção existe, porque é de ordem fática, isto é, pertence à natureza dos fatosda vida social. Por outro lado, pode haver separação sem correspondência subjetiva perfeita e, até,

sem paridade, assunto que adiante teremos de estudar.Até o nosso tempo, o Parlamento opunha-se ao Príncipe. Toda conveniência havia em precisasseparações de poderes, que tirassem ou impedissem ao Príncipe a função de legislar. Com ademocracia, o fundo popular dos dois Poderes é o mesmo. Se há conveniência em redividir o campode atividade, a democracia não está em causa. Ela volta ao cenário quando se criticam aos doisPoderes a sua freqüente discordância com a vontade geral   ordinária   e com a vontade geralconstituinte ; donde dois problemas diferentes: vigilância dos Poderes pelo povo (referendo); defesada Constituição. Nenhum dos dois se prende ao de se redistribuírem as funções dos PoderesExecutivo e Legislativo. Se, porém, a redistribuição se faz no sentido de tudo, ou quase tudo, se darao Poder Executivo, ou a um corpo, que não é responsável, tem-se a ditadura . Ditadura não significagoverno de um só; se um Estado fizesse eleito pelo povo um indivíduo, que lhe elaborasse as leis,com possibilidade de referendo, não seria, por isso somente, ditatorial. E seria tão democráticoquanto o que elegesse 200 ou 2.000 deputados.

Quem, nos nossos dias, na hora em que vivemos, se propõe a formular a regra de distribuição dascompetências orgânicas deve  partir : a) das críticas existentes ao  dogma da separação subjetiva ; b)dos resultados científicos da epistemologia e da metodologia jurídicas; c) da técnica positiva ounegativa das delegações legislativas como processo material; e  querer  que os textos constitucionaisatendam, em dia, às aquisições. No fundo, o problema de qualquer trabalho científico de políticaefetiva: ligar a premissa do indicativo à premissa no imperativo, para que seja imperativa aconclusão.

A burguesia procurou, nos séculos XVIII e XIX, precatar-se contra a legislação invasora da liberdadepessoal, mas, principalmente, contra a legislação invasora da propriedade, e desenvolveu, com todaa riqueza dos seus lideres – quase sempre doutores em leis – o tema de que só a lei podia invadir talesfera, acrescentando, por vezes, a respeito de certos assuntos, que só a lei-Constituição. Donde

duas espécies de limitações:  a de legislar , como a do art. 11, inciso 3.º, da Constituição de 1891, oudo art. 113, 3, da Constituição de 1934, ou do art. 141, § 3.º, da Constituição de 1946, ou do art. 153,§ 3.º, da Constituição de 1967, que veda leis retroativas ou leis que ofendam direitos adquiridos, atos

 jurídicos perfeitos ou coisa julgada;  a de edição de regras jur ídicas, sem ser por lei , isto é – dado oprincípio da distinção dos Poderes,  subjetivamente  – sem ser por ato dos   representantes . O que sepretendeu, com isso, a princípio, foi porem-se óbices às investidas legislativas dos Reis.   Aordenança , a “Verordnung”, a Ordenação, que sempre tivera como lei, passou a não ser lei, a serproibida onde a Constituição exigisse a lei. Por esse caminho, a burguesia, em luta com a realeza,chamava a si o poder de legislar, pondo o seu interesse   acima  do interesse do Príncipe, mas,também, em não poucos casos,  acima  do interesse da Nação; e protegia-se contra as inovações dalegislação. É interessante observar-se, no plano sociológico e no plano técnico, que a burguesianunca obteve a realização de tal discrime absoluto, algo de correspondente à linha reta exata e aoângulo perfeito.   Sempre houve limita ções à liberdade e à propriedade insertas em regras que não 

eram emanadas dos representantes , como as que se continham nos regulamentos sanitários.Verdade é, porém, que o século XIX e o começo do século XX foram caracterizados por meticulosaprocura de lindas, pela cata incessante de decretos e regulamentos “inconstitucionais” ou decretos eregulamentos “ilegais”.

No século XX, iniciou-se a verificação da necessidade de não se confundir o  problema resultante da luta da burguesia contra o Rei  com o problema da técnica constitucional das fontes da lei . As naçõesestavam a minguar, enquanto a burguesia se enriquecia, se fazia capitalismo, absorção, o domíniobrutal do dinheiro. Ora, se era justo que o Rei não invadisse a esfera da liberdade pessoal e dapropriedade dos cidadãos, não se compreendia que, para se evitar isso, se pusesse o   interesse individual , em nome do qual a burguesia falava, acima do   interesse público  ou  nacional . O primeiropasso para a corrigenda foi o de permitirem certas incursões no interesse particular quando ointeresse coletivo estivesse em causa,   mas em ato dos representantes . Falhou, nos resultados. Osrepresentantes não se moviam, de regra, por interesses gerais, e sim por interesses particulares

deles, ou dos seus grupos. Daí o problema técnico que se apresentou ao Estado, tanto mais quanto

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a primeira guerra mundial mostrara que os Estados precisavam ser fortes, que os Estados onde osindivíduos são, economicamente, fortes e os Estados fracos, valem menos que os Estados onde osindivíduos não são – economicamente – tão fortes e os Estados   são fortes . Sem a proteção doEstado, na ordem interna, já os interesses individuais não podiam prosperar, donde a necessidade,sugerida por eles mesmos , de se limitar a ação dos interesses individuais (economia dirigida). Poroutro lado, sem o fortalecimento do interesse geral, não seria possível proteger o Estado.

(Foi assim que parte da burguesia, associada às massas, como ocorreu na Itália, na Alemanha enoutros países, tentou   corrigir , abertamente, o velho tema da lei obra dos representantes e tão-sódeles. Na Constituição brasileira de 1937, a exclusão do princípio da não retroatividade das leis, aconsagração da determinação legal  do conteúdo e dos limites ao exercício do direito de propriedade,a permissão das delegações legislativas e a competência do Presidente da República para osdecretos-leis obedeceram ao mesmo programa que poria o Estado   acima   do indivíduo; masconforme os fatos mostraram, lá e aqui apenas se repôs  o Rei acima  do indivíduo… e do Estado. Em1964-1967 tentou-se o mesmo.)

Os expedientes atenuadores da atribuição da função legislativa só às Assembléias têm sido emgrande número. Um deles, imposto por diferentes motivos, e nem sempre com intuitos de corrigendatécnica, é o de se permitir que o Poder Legislativo  delegue poderes . São as chamadas   delegações 

legislativas , ou  autorizações legislativas , dois nomes com que se exprime o mesmo fato visto do ladoativo ou do lado passivo. Só nos interessa, agora, a   delegação legislativa material , porque a outra, aformal, depende da distribuição constitucional e é uma das partes do problema técnico dasAssembléias Constituintes. Adiante, ns. 5 e 6.3. Tríade

A tríade de órgãos veio, no Brasil, dos decretos ns. 510, de 22 de junho, e 914-A, de 23.10.1890,bem como do Projeto da Comissão nomeada pelo  Governo provisório . Aqueles falavam de órgãos dasoberania nacional, harmônicos e independentes entre si; esse, de órgãos da soberania nacional,independentes e harmônicos – posição mais feliz dos adjetivos, porém que não prevaleceu.

Na Constituição de 1934, atendeu-se a que eles primeiro existem, com o caráter de independência, edepois é que são harmônicos: dizer que há harmonia antes de dizer que são independentes

constituiria, fora de dúvida, inversão reprovável. O que é lógico e objetivo é que se lhes apontem oser, inclusive a independência com que eles são, e depois a harmonia, que é como a restrição, alimitação a tal independência.

Tais prioridades lógicas são assaz importantes.

A despeito de serem quatro os Poderes, ao tempo do Império do Brasil, foi durante o períodoimperial que se deu a aprendizagem brasileira dos três Poderes. O que o Parlamento imperialconseguira, o Congresso Nacional republicano ainda não conseguiu. Algo se passou como se oPoder Moderador (monárquico) se houvesse somado ao Poder Executivo, fletindo o PoderLegislativo.4. 1891-1967

Independentes, sem conflito, sem rivalidades, sem lutas – tal como é o ideal (ou o sonho) daconcepção apriorística da separação perfeita dos Poderes. Os escritores do século XIX e começo doséculo XX, em sua maior parte, criam na   naturalidade  e  necessariedade  da tripartição: “Expressõesnaturais e necessárias da mesma soberania”, escrevia o nosso João Barbalho (“Comentários”, pág.48). “são separados para o exercício desta, mas não a ponto de prejudicá-la. De todos desligados,da indiferença passariam à hostilidade, com sacrifício das liberdades públicas. Em vez, pois, dePoderes rivais e vivendo em conflito, a Constituição os estatui   harmônicos , devendo cada umrespeitar a esfera de atribuições dos outros e exercer as próprias, de modo que nunca deembaraços, mas de facilidade e coadjuvação sirvam às dos demais, colaborando todos, assim, abem da comunhão. Para obter isso, usou a Constituição de alguns expedientes e combinações,interessando e fazendo penetrar de certo modo a ação de uns no movimento funcional dos outrosPoderes”.

Nos “Comentários” à Constituição de 1891, ainda discorria João Barbalho: “Segundo o sistema quefoi adotado pela Constituição, nenhum dos três Poderes divididos fica absolutamente separado, nem

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acima dos outros, de modo que deles se possa desembaraçar e, como dizia Guizot, a virtude e abondade do sistema consiste precisamente na dependência mútua dos Poderes e nos esforços queela lhes impõe para chegarem à unidade, não havendo dependência mútua senão entre Poderesinvestidos de uma certa independência e bastante fortes para mantê-la. A Constituição do Impérioestabeleceu a divisão em quatro dos Poderes Públicos, criando mais um “Poder Moderador”,

incumbido de harmonizar os outros e contê-los em suas órbitas. Mas tal criação, meramentearbitrária, sem apoio nos princípios, se não tinha por fim a supremacia do elemento monárquico e osacrifício da democracia, entregando ao imperante hereditário e perpétuo a chave da organizaçãopolítica de que ficava sendo o único árbitro, era uma concepção que acusava a dificuldade doproblema da constituição orgânica dos Poderes divisos e contrapostos; mas não o resolvia e emnada aproveitava, desde que essa fiscal dos outros Poderes ficava sem fiscalização. “Qui custodietcustodem?” Para sufragá-la procurava-se apoio na velha máxima inglesa, segundo a qual o rei nãopode fazer mal (“The king can do no wrong”), máxima contrária à natureza humana e solenementedesmentida pela história. Porquanto dos reis vinham para os povos muitos males foi que começarama fazer-se Constituições políticas. A organização republicana, em que jamais poderia figurar uma talexcrescência, tem, para resguardo e limite dos Poderes, um sistema de freios e contrapesos, que sereduz ao seguinte: I – os excessos do governo federal são refreados pelos Estados; II – os dasCâmaras dos Deputados pelo Senado e reciprocamente; III – os do Poder Legislativo pelo   veto  do

Executivo; IV – os deste pelo Legislativo, por meio do processo de responsabilidade(“impeachment”); V – os do Judiciário pelo Legislativo, que tem o poder de estabelecer regras para oprocedimento dos tribunais e restringir-lhes a autoridade (respeitados os limites constitucionais); VI –os do Poder Legislativo ainda pelo Judiciário, que tem a faculdade de declarar inconstitucionais, epor isso inaplicáveis, as leis que forem contrárias à Suprema Lei da Nação; VII – os do Presidente daRepública pelo Senado, quanto à nomeação dos funcionários sujeita à sua aprovação; VIII – os dosdeputados pelo povo, mediante eleições periódicas; IX – os dos senadores pela renovação trienal doterço deles; e X – finalmente, os eleitores refreiam o povo por meio da escolha do presidente evice-presidente.” A longa citação de João Barbalho justifica-se por três motivos: a) trata-se deexposição do sistema de 1891 pelo mais autorizado dos seus comentadores, sistema ligado a certaconvicção jusnaturalística e à concepção de serem   naturais , isto é,   tirados da natureza das coisas ,os três Poderes, e daí a crítica ao Poder Moderador (é fácil de imaginar-se a crítica que JoãoBarbalho faria ao Senado Federal, tal como se pretendeu na Constituição de 1934); b) os freios econtrapesos são os de que nos séculos anteriores tanto se falou, e ainda se procura atender àssugestões dos filósofos-políticos; c) a explicação do pensamento de 1891 serve para se verificaronde a Constituição de 1967 se afastou dos moldes rígidos de 1891.5. Princípio da unicidade de função-poder

O Projeto da Comissão nomeada ao advento da República, e os decretos ns. 510, de 22 de junho e914-A, de …. 23.10.1890, já proibiam que alguém, investido de funções de um Poder, pudesse fazerparte de outro. As emendas apresentadas foram todas de redação e prevaleceu a de Campos Sales,aprovada a 13 e 18.2.1891. Tendo-se, na Constituição de 1946, falado de Poderes constitucionais,aludiu-se, pronominalmente, a eles, e foi essa a única diferença que resultou desde 1934. Seria erro,todavia, crer que só importou emenda de forma. Os três Poderes são princípio constitucional, osEstados-membros têm de acatá-lo, e a substituição de Poderes federais por “um deles”, referindo-sea Poderes constitucionais, torna explícito  que se trata de proibição aos que exercem função de um

dos Poderes federais ou de um dos Poderes dos Estados-membros, ou de qualquer unidade rígidade direito constitucional.

Se remontamos, no passado, às origens, iremos encontrá-la no Projeto de Américo Brasiliense, art.78: “Os cidadãos que exercerem funções de qualquer dos três Poderes constitucionais não poderãoexercer as de outro.” É interessante notar-se que, por duas vezes, em artigos sucessivos, opensamento do constituinte de 1934 coincide com o dos autores de projetos surgidos logo após oadvento da República: o de Américo Brasiliense e o de Magalhães Castro, a que nos referiremos.Comentando o art. 79 da Constituição de 1891, dizia João Barbalho (pág. 347): “É isso consectáriodo princípio da separação dos Poderes, e, se este ainda melhor firmado ficaria sendo estabelecida aincompatibilidade absoluta, não do exercício só, mas dos cargos mesmos, é, entretanto, certo que talrigor traria na prática muitos inconvenientes e prejudicaria a composição pessoal dos PoderesPúblicos, que assim perderiam o concurso e a cooperação de muitos indivíduos habilitados e quiçádos mais capazes.”6. Problema da repartição das competências orgânicas

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É um dos mais largos e intensos da doutrina do Estado. No terreno político-jurídico, o critério comque a técnica constitucional descobre a fórmula aconselhável, ou com que o poder constituinte adotaas linhas distintivas formais ou de alusão material, é um dos mais delicados, assim para os técnicoscomo para os sancionadores das Constituições. Muitas vezes, o encadeamento histórico, em vez deaclarar, perturba e turva a pesquisa da fórmula melhor. Tem-se “por ter funcionado bem” o que

“muito tempo” funcionou. Condena-se por tumultuador o que apenas talvez fosse a válvulaprovidencial das forças sociais comprimidas pela casca formalística da estrutura do Estado.

A tradição das Constituições é no sentido da tripartição absoluta, pelo menos   em tese , tendo-sechegado a uma espécie de   personificação  dos Poderes, pela imanência das funções, e a quaseperfeita coincidência entre a diferenciação  material  e a formal (lei =  o que sai do Poder Legislativo ).Diferenciação subjetiva dos órgãos. Nenhuma lei fora do órgão legiferante. A rigidez das finasexcisões anatômicas, que só o apriorismo sabe fazer. A vida orgânica, como é, reagiu. A restauraçãofrancesa pretendeu restituir ao Príncipe a “plenitudo potestatis”, sem tentar vencer, ou sequer, seopor à corrente revolucionária, evidentemente indomável. Aí temos nós o “x” da equação.

Contra a repartição apriorística falavam duas experiências: a Constituição de 1791 e a dos EstadosUnidos da América. O ano de 1841 marcou novo passo na doutrina do Estado: o do primeiro ato,ato-crítica à exclusão integral do Poder Executivo na função da lei . Em vez de pura separação,coordenação . Sob outras formas, o fato se reproduziu por todo o mundo, alterando o conceitomesmo da divisão dos Poderes.

As Constituições que se fizeram entre 1919 e 1939 procuraram   constitucionalizar   a delegaçãolegislativa e a legislação pelo Chefe de Governo, no intervalo das sessões legislativas. Ora permitir adelegação, ora admitir a normatividade excepcional, ora reconhecer a ambas.

Na Constituição brasileira de 1934 (art. 3.º., § 1.º), proibiu-se, de modo insofismável, a delegaçãolegislativa. Tivemos, portanto, no texto, confissão do desespero diante do gravíssimo tema. Em todoo caso, reconheçamos que o legislador constituinte adotara a fórmula radical e simplista porsugestão do seu propósito de evitar o que ocorrera durante a vigência da Constituição de 1891: aabsorção da função legislativa e do próprio poder de legislar pelo Presidente da República e pelosGovernadores dos Estados-membros.

Na Constituição de 1891 não havia regra escrita que negasse tal possibilidade. Desde os primeirosanos, após a promulgação dela, que se considerou   implícita  ou, pelo menos,   revelável  a regra dainconstitucionalidade das delegações legislativas. Os exemplos, que se poderiam citar, são muitos,no sentido de que não valeriam tais atos do Poder Executivo lançados antes de aprovação do PoderLegislativo, que assim se despiria da função de legislar, entregue, por ele mesmo, a outrem. NoCongresso Constituinte, a 24.8.1891, Aristides Lobo dizia: “Uma das causas que maisdesmoralizaram os Parlamentos da monarquia foi o princípio funesto das delegações legislativas.Essas Câmaras se julgaram quites com os seus deveres, decretando leis demasiado sucintas,reunidas em magros textos, deixando aos regulamentos do Executivo a ampliação do seupensamento e de suas disposições. É desse passado que vimos, mas que precisa ser abandonado.Outro deve ser o molde da legislação republicana. É melhor que ela seja desenvolvida e prolixa doque ser imprevidente. Em uma palavra, os legisladores têm de guardar inteiro o depósito dasatribuições que lhes são conferidas. Nós estamos aqui para fazer as leis, e não para mandar

fazê-las.” João Barbalho (“Comentários”, pág. 49) era explícito: “É pertinente também observar que aConstituição não permite a nenhum dos Poderes o arbítrio de delegar a outro o exercício de qualquerdas suas atribuições. Quando, por exceção, alguma destas precisa ser exercida por Poder diverso (aConstituição não o esqueceu), disposição especial há a esse respeito, como, “exempli gratia”, nocaso de declaração de sítio. Sendo os Poderes criados pela Constituição divisos e cada um comesfera sua, se se lhes deixasse o arbítrio de delegar funções uns aos outros, a separação dosPoderes seria uma garantiu anulável no sabor dos que os exercessem. A propósito de umaautorização do Poder Legislativo ao Executivo para reforma de repartições, dissemos num parecerde comissão do Senado (n. 246. de 11.12.1894): a experiência tem mostrado que as Câmaraslegislativas devem evitar estas autorizações dadas ao governo para reforma de repartições; pois, emregra, nesses atos se transgridem os termos da delegação, por mais terminantes e restritivos queeles sejam, e as reformas se fazem não só com esse excesso, mas também com o de despesas,como se verificou ultimamente com a dos Telégrafos. Além de que tais autorizações se prestam a

enormes abusos, acresce que elas não se compadecem com a Constituição, a qual, em seu art. 15,separa e constitui independentes entre si os Poderes Legislativo e Executivo: e nem nos arts. 34 e

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35 (que tratam das atribuições do Congresso), nem no art. 48 (que se ocupa das que incumbem aoPoder Executivo), nem ainda em alguma outra disposição, consagra a permissão dessatransferência, para o Executivo, da faculdade, que só o outro Poder tem, de fazer leis. E tanto nãoquer a Constituição que o Poder Executivo, ainda que por delegação, faça leis, que no art. 48, n. 1,somente lhe confere a atribuição de   sancionar ,   promulgar   e   publicar   os atos legislativos doCongresso e, quando no mesmo art., n. 1, se refere a   regulamentos , só os autoriza   para a fiel 

execução   das leis, supondo que em caso algum serão feitas pelo Executivo e sendo a tarefaconstitucional deste   a execução , e não a feitura delas. E para que o Poder Executivo não ficasseabsolutamente estranho à elaboração das leis que ele tem de executar, e não lhe restasse pretextopara, em regulamentos e instruções, criar disposições de caráter legislativo, a Constituição, no art.48, n. 9, o autoriza a indicar (“sic”) ao Poder Legislativo, na mensagem de abertura do Congresso, asprovidências e reformas urgentes, e no art. 29 lhe faculta a apresentação de projetos de lei.Finalmente, as autorizações para reformas, conforme a prática o tem demonstrado, dão margens anovas infrações da Constituição; os regulamentos expedidos por delegação legislativa não rarocontêm disposições inconstitucionais. E porque em regra tais regulamentos entram logo emexecução por não dependerem, como se tem entendido, de aprovação do Congresso, ou enquantoesta não se dá, as cláusulas contrárias a preceitos constitucionais entram desembaraçadamente emexecução.”

Além do princípio do art. 3.º, § 1.º, a Constituição de 1934 continha o do art. 91. n. II, que atribuía aoSenado Federal o exame, em confronto com as respectivas leis, dos regulamentos expedidos peloPoder Executivo, suspendendo a execução dos dispositivos  ilegais  (não os chamou inconstitucionais ,noção que aparecia no art. 179) e o do art. 91, n. IV, que lhes facultava a suspensão, no todo ou emparte, da execução dos regulamentos declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário. Naatribuição do art. 91, n. III, havia, apenas, direito de propor.

A Constituição de 1946 vedou quaisquer delegações de poderes (art. 36, § 2.º) e continha o art. 64.

a) Na Alemanha anterior a 1919, as delegações de poderes tinham de ser delegações decompetência, pela natureza legislativa “ratione materiae” do ato. Impunha-se o conceito dedelegação : só a regra de lei formal determinaria a competência excepcional; o poder conferido tinhade ser o mesmo que, pela Constituição, competia ao legislador. A autoridade judiciária cabia verificaro respeito aos limites dados, em sua materialidade, pela lei formal. Na Constituição de Weimar e nasdos países alemães, persistiu a distinção entre   regulamentos administrativos e regulamentos normativos   (Baviera, §§ 61, 67, 75; Wurtemberg, §§ 35, 41, 72; “Reich”, art. 77). De modo que ostratadistas retomaram a doutrina da delegação, pela qual se legitimava  a atribuição  excepcional dacompetência do Executivo (E. Hubrich, “Das Demokratische Verfassungsrecht des DeutschenReichs”, págs. 165 e segs.).

A opinião de Fritz Poetzch-Heffter (“Verfassungsmässigkeit der vereinfracten Gesetzgebung”, “Archivdes Öffentlichen Rechts”, 1921, págs. 174 e segs.), que sustentava ser necessário textoconstitucional para se conferir competência excepcional, ficou sem seguidores. Entendeu-se quehouve distribuição de competência material e que, mesmo se consagrada a noção formal de lei, nãose vedou que parte da matéria legislativa se deixasse, por decisão específica do órgão legislativo, àexplicitação, sob a forma de ato do poder regulamentar.

b) Na Itália, a lei n. 100, de 91.1.1925, veio transformar a doutrina italiana. Antes, as delegaçõeseram largamente admitidas, como delegações   formais  e como delegações   materiais . A lei de 1925adotou repartição   institucional   (não já   material só  ) das competências legislativas. Ao Governocompetia regulamentar a execução, quer dizer “intra” e também “praeter legem”; mais: desenvolver,logicamente, os princípios contidos nas leis (essas são   limites ) e organizar, muito embora dentro decertos princípios, como o das garantias dos juízes, o da inamovibilidade de certos funcionários.Reconheceu-se a delegação   formal ; porém, como faltava, no direito constitucional italiano, adiferença entre lei constitucional e lei comum, entendeu-se que  a atribuição  da competência valia omesmo que  distribuição . Não havia confundirem-se os decretos-leis, não suscetíveis de apreciação

 judiciária, com os decretos legislativos, ou se tratasse de lei ou de regulamento delegado (U. Borsi,“Appunti di Diritto Amministrativo”, pág. 191). Quanto aos dois últimos, também havia diferença:decretos legislativos, no sentido estrito, só outra lei mudava; regulamentos delegados podiam sermudados (Saltelli, “Potere Esecutivo e Norme Giuridiche”, pág. 209). Alguns autores entendiam que,no Direito italiano, as leis delegadas (decretos legislativos) não eram leis formais – tinham eficácia delei formal quando contidas nos limites da delegação (Santi Romano, “Corso di Diritto Costituzionale”,

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págs. 240 e segs.). Daí a apreciação pelo Poder Judiciário.7. Delegações de poder

a) Por ocasião de projeto apresentado à Câmara dos Deputados sobre imposto de renda, no qual sedeixava ao Poder Executivo regulamentar a parte da lei concernente às épocas, formas e prazos

para declaração de rendimentos e pagamento do respectivo imposto, teve a Comissão deConstituição e Justiça de examinar a constitucionalidade de tal regra perante o art. 3.º, § 1.º, daConstituição de 1934. A argüição de ser contrário ao texto de 1934 respondeu-se que, tratando-se desimples alterações para a execução da lei que regularia a arrecadação do imposto de renda, nãohaveria   delegação de poder . Assim, modificando os textos encontrados sobre épocas, formas eprazos para a declaração de rendimentos e pagamento do imposto, o Presidente da República usariada faculdade de regulamentar as leis. No Parecer da Comissão foi dito (18.12.1936): “No trato diretocom os contribuintes, apreciando as circunstâncias variáveis de cada ano e de cada lugar, oExecutivo tem elementos seguros e precisos para saber quando deve estabelecer concessões ourestrições que facilitem a cobrança dos impostos. E assunto propriamente regulamentar, quesomente se encontra rigidamente regulado em lei, porque, ao tempo da promulgação do decreto n.31.554, a competência para legislar estava entregue ao mesmo Poder que tinha competência paraexecutar as leis.”

Certamente, desde que uma lei estabelece a importância de um imposto, segundo o critério decômputo, que suficientemente a determine, e o tempo a que tal imposto, se periódico, corresponde,prevendo as sanções no caso de infração, tudo mais pode ser deixado às regras regulamentares.Não é essencial à lei fiscal dizer quando, como e dentro de que prazo se há de fazer umadeclaração, ou se há de pagar um imposto. O que é essencial é fixar-se quando, quanto e por quantotempo é devido  o imposto. Se o Poder Legislativo houvesse deixado ao Presidente da República, emregulamento, determinar a periodicidade do imposto (mensal, trimestral, semestral, anual, bienal), odia da incidência e o seu importe (Cr$ 200,00, 2%, etc.), violado estaria o art. 3.º, § 1.º, daConstituição de 1934, ou o art. 36, § 2.º, da Constituição de 1946. Outrossim, se permitisse que oregulamento adotasse penalidades diferentes, relevações não previstas em lei, agravações de multae outras regras semelhantes, porque, então, não se trataria de simples  normas regulamentares para a execução da lei .

Nenhum legislador poderia, nem seria desejável que pudesse  regrar , precisa e exaustivamente, todaa atividade do Estado. Se possível fosse, transformar-se-ia em simples mecanismo toda a vida doEstado. Nenhuma escolha, nenhuma ingerência dos dirigentes, que teriam, de antemão, pautados àrisca, todos os seus atos. O maior inconveniente seria o de não se atender a circunstâncias, quedificilmente caberiam no suporte fático das regras jurídicas, se essas só se formulassem para outrascircunstâncias. Daí o que se deixa à discricionariedade, sem se cair no arbítrio. O legislador tem,então, três caminhos, para cujas técnicas concorreu a experiência de alguns séculos: ou a) editarregras jurídicas alternativas; ou b) subordinar as circunstâncias menos prováveis ao que maisacontece (“id plerumque fit”): ou c) deixar ao arbítrio de outrem todo o regramento (delegaçãolegislativa), o que equivale a enunciar proposição alternativa a número infinito de termos (= faça oque entenda), o que se vedaria na Constituição de 1946, art. 36, § 2.º. O Congresso Nacional nãopoderia delegar poderes, mas poderia legislar, deixando ao Poder Executivo certa apreciação dascircunstâncias, desde que a resolução obedecesse a critério que a lei fixasse. Isso de modo nenhum

torna invocáveis, sob a Constituição de 1967, opiniões que se expenderam sob a Constituição de1891 e sob a de 1937, porque aquela não as proibia explicitamente, e essa as permitia. Mas surgiuproblema, sem cuja solução a resposta à pergunta – Há, ou não há delegação legislativa? – nãopoderia ser dada. Quais são as proposições que se reputam, “a priori”, regras de leis e, pois, teriamde ser reservadas ao Poder Legislativo? A respeito de tais regras A é que se haveria de invocar oart. 36, § 2.º, da Constituição de 1946, e não das  outras , das regras B, que não são “a priori”, regrasde lei, e podem ser postas em lei, e das regras C, que são, “a priori”, regras de lei e não podem serpostas em lei. Se as regras jurídicas são, “a priori”, regras de lei, isto é, regras que somente sepoderiam, “a priori”, editar em lei, claro é que permitir ao Poder Executivo ou ao Poder Judiciário, oua qualquer outra entidade a edição de tais regras seria delegar poder legislativo. Se as regras nãosão, “a priori”, regras de lei, o problema estava em se saber se podiam ser postas em lei, ou se nãopodiam. Deixar o Poder Legislativo a alguma entidade estatal, ou paraestatal, ou de direito público,ou de direito privado, a feitura de tais regras, quando elas não poderiam ser editadas pelo Poder

Legislativo, seria conferir-se a outrem competência que não se tem. Não seria só a infração do art.36, § 2.º: seria a infração do princípio geral de direito, segundo o qual só se  delega  o poder   legado ,

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recebido. Não há “delegatio”, sem “legatio”: o termo delegação serve bem aos Poderes constituídos,a que o poder constituinte entregou cada ramo do poder. Se o Poder Legislativo desse a algumaentidade o poder de editar regras jurídicas proibitivas ou limitativas da associação, daria poder quenão lhe assiste: daria, sem ter. A infração constitucional seria dupla. Tais as regras da classe C. Se oPoder Legislativo poderia editar a regra jurídica, e só ele o poderia (“exempli gratia”, definir crimes,ditar penas, determinar as categorias jurídicas das associações e sociedades, exigir-lhes registropara a personificação), atribuí-lo a outra entidade seria delegar poder legislativo. São essas asregras jurídicas da classe A. Se a regra não é, “a priori”, da classe A, nem da classe C, o deixar-se aalguma entidade – de grau superior organizatório (“exempli gratia”, às federações industriais,comerciais, intelectuais, esportivas), ou de função estatal, ou paraestatal, concernente à organizaçãoe fiscalização, como se dá com os Ministérios, os Conselhos Nacionais e os juízes incumbidos deaprovação de estatutos – editá-la, alterá-la, ou eliminá-la, não é delegação legislativa. O Estadopoderia fazê-la cogente (proibitiva, impositiva), ou dispositiva, ou interpretativa, com o que limitaria ocampo da autonomia da vontade, ou apenas proveria aos casos de não terem os interessadosmanifestado a sua vontade, ou terem, manifestando-a, deixado dúvidas. Porém, tais regras, porque,“ex hypothesi”, não são, “a priori”, regras de lei, e de ordinário ficam às pessoas interessadas,também podem ficar a outra entidade, que satisfaça os pressupostos de superioridade em grau, oude função organizatória e fiscalizadora. Por exemplo, quando o decreto-lei n. 5.341, de 25.3.1934,estatuiu que “a organização desportiva do País obedecerá às disposições da lei federal e às

resoluções que o Conselho Nacional de Desportos adotar, no uso de suas atribuições”, com issomencionou a função federal de editar regras jurídicas da classe A e da classe B e legitimou a funçãoorganizatória do Conselho Nacional de Desportos. Explicitou, no art. 2.º, que “a organização dasentidades desportivas obedecerá ao plano adotado pelo Conselho Nacional de Desportos, emparecer homologado pelo Ministro da Educação e Saúde”. A fim de confinar o direito organizatórionos limites do que se deixa às regras da classe B, que não tenham sido tornada lei pela União,frisou-se que ele faria os modelos de estatutos. Regras estatutárias são regras da classe B. Se osestatutos inserem regras jurídicas da classe A, não as fazem estatutárias – é como se as citassem,ou as lembrassem: na dimensão jurídica, ainda que não na dimensão lógica ou estética, tal repetiçãodo que é mais (lei ) pelo que é menos (regra estatutária ) é supérflua. Se os estatutos inserem regrasda classe C, é nula a regra que inserem, porque a fulmina o princípio de lei que o veda à vontadeprivada e à própria lei. A competência de qualquer entidade para dar o modelo dos estatutos abrangea de reforma dos estatutos, simples alteração de regras estatutárias, ou eliminação de regras

estatutárias. O modo de se votar, o peso dos votos (votos unitários, votos plurais), a solução dosdesempates e a fixação do quanto necessário ao quorum e as deliberações pertencem às regras daclasse B. Se é inconveniente, politicamente, que a entidade a que se refere a função a exerça, ocaminho que se tem é o de ab-rogar-lhe ou derrogar-lhe a competência o Poder Legislativo federal,que fez a lei . Não há dúvida que há muito de inspiração anterior à Constituição de 1946 na legislaçãosobre esportes, sobre bancos, sobre trabalho, sobre indústrias, e por vezes os textos legais sechocam com a Constituição de 1946. Todavia, onde esse choque não se dá, os partidos políticospoderiam, ainda hoje, preferir o colorido corporativista ao colorido individualista, o colorido totalitáriode esquerda ao colorido totalitário de direita ou vice-versa, e tal matéria – limitada às regras daclasse A ou da classe B – seria   política , e não jurídica: feita lei a regra, “lex lata” é, e tem de serobservada. A técnica legislativa do voto plural, “exempli gratia”, ou é fundada a) na discriminação dosassociados, ou sócios, ou das entidades componentes, em compensação de vantagens que não sederam a todos; ou b) em virtude de prêmio à constituição da entidade, ou a algum fato relevante na

vida social; ou c) em virtude de competição entre entidades, ou grupos interiores; ou d) em função dotempo, desde a entrada do associado ou sócio, ou da entidade; ou e) em função do número deassociados, ou sócios, de cada entidade. De ordinário, tais conferimentos de pluralidade de votossomente têm vigor enquanto a lei e os estatutos os determinam. Se os estatutos podem sermudados, em assembléia geral, nesses pontos, a reforma é sem qualquer ofensa ao direito queexistia: era direito co-extensivo, no tempo, à vigência da lei, ou dos estatutos. Se alguma entidadeestatal, ou paraestatal, ou de direito público, ou privado, pode alterar os estatutos (“exempli gratia”,se pode estabelecer modelos), há-se de entender que a existência do direito ao voto plural édependente da vigência dos estatutos, ou até que seja editada regra jurídica ou resoluçãoadministrativa que os atinja. Há, ainda, a observar-se, quanto à pluralidade crescente em virtude dereiteração de atos premiados, ou de decurso de tempo, que ofereceria inconvenientes graves setivesse de ser perpétua: a entidade. A poderia vir a ter maioria para as deliberações, ou atingir a talnúmero de votos que dominaria as outras. Por isso mesmo, a perpetuidade é de se afastar, salvo sehá regra legal explícita e essa não ofende a Constituição.

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b) Era dado ao Poder Legislativo deixar ao Poder Executivo a fixação de cota mínima ou máxima deplantio, industrialização ou consumo de determinada produção nacional? A Comissão deConstituição e Justiça da Câmara dos Deputados teve de enfrentar, de uma feita, esse problema.Ocorreu isso quando, em projeto de lei, se pretendeu tornar obrigatório o consumo de certapercentagem de trigo produzido no Brasil, em cada moinho, cota a ser determinada anualmente, de

acordo com o aumento da produção, pelo Poder Executivo. Argüiu-se-lhes constituir delegação depoderes (art. 3.º, § 1.º), além de infringir o art. 113, 2, da Constituição de 1934 (depois, art. 141, § 2.º,da Constituição de 1946). A Comissão repeliu que se tratasse de delegação de poderes dizendo que:“Nada há a opor a que a lei atribua ao órgão executivo a faculdade de fixar, anualmente, a cotamínima de moagem do trigo nacional. A cota não pode ser fixada em definitivo, porque isso viriacontrariar a   idéia   da lei em estudo. Essa cota tem de ser variável, é passível de aumentar asubstituição progressiva do produto estrangeiro pelo produto nacional … Será mesmo convenienteque assim aconteça, como ato de funcionamento normal do aparelho regulador da produção econsumo do trigo nacional, e da execução de um plano econômico bem determinado, como esse quetem por objetivo a supressão futura da importação do trigo” (parecer de 13.4.1937). A doutrina daComissão de Constituição e Justiça seria verdadeira naqueles casos em que a fixação dapercentagem ou cota constitui ato de execução, isto é, em que ao Poder Executivo se concedeuapreciar elementos de fato, dentro de certos critérios estabelecidos, explícita ou implicitamente, pela

lei. Ainda quando haja liberdade, não absoluta, de determinação da percentagem ou cota, o PoderExecutivo não recebe delegação, apenas exerce a sua função específica, que é executar a lei. Nãoassim se, para a fixação de percentagem ou cota, não há critério nos textos legais e se deixou aoarbítrio do Poder Executivo. Aí, haveria delegação de poderes , ter-se-ia deixado ao Poder Executivoelaborar a regra jurídica, o que o art. 3.º, § 1.º, da Constituição de 1934, semelhante ao art. 36, § 2.º,de hoje, vedava ao Poder Legislativo. É preciso, portanto, certo cuidado no exame das espécies e narecepção da doutrina aceita pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.Não há delegação legislativa, onde a lei preestabeleceu a atividade do Poder Executivo; há-a,seguramente, onde se deixou arbítrio ao Poder Executivo.

c) Nem tudo que o Poder Legislativo elabora é lei. O fato de se haverem imposto a certos atos doEstado o processo e as cautelas da elaboração da lei não faz lei tudo que obedeceu a esse processoe a essas cautelas. A arte política foi obrigada a tais extensões da técnica legislativa, mas o PoderLegislativo toma deliberações que não são, em sentido próprio,   leis . Daí os dois conceitos de lei – oformal , que faz “lei” tudo que resulta dos órgãos legislativos mediante o processo legiferante,conceito tão disparatado quanto o que fizesse judiciais todos os atos dos juízes e dos tribunais; e omaterial , que somente considera lei a regra jurídica. O que a Constituição faz, quando incluiatribuição que não é legiferante (jurisferante), nas atribuições do Poder Legislativo e a submete aomesmo rito, é impor a feitura à semelhança da legislação, em  forma de lei .

A opinião corrente, um pouco sacrificada por seu apego à história dos tributos, considera não-leis oorçamento (em que se não criam tributos) não é lei, é ato político de previsão e fixação de despesas;a lei tributária é lei porque é regra  geral  e por deliberação do próprio corpo legislativo. Orçamento élei, em sentido formal .

A extensão do processo da competência do Poder Legislativo prende-se à democracia, à tendência adestruir os restos do absolutismo, que a burguesia liberal, no século XIX, combatera. O que havia de

ser lei e o que pertencia à representação popular passaram a  ser em forma de lei , inclusive simplesresoluções administrativas.

Mas qual é o verdadeiro conceito   material  de lei? Uma das definições mais correntes é a que setraduz na de Gerhard Anschütz: norma de direito, em que o Estado se dirige aos seus governadospara fixar entre esses e ele os limites do permitido e “o que se pode fazer”, pois é qualidade de todaa lei, em sentido material, por limites à liberdade pessoal (aqui, em sentido amplo e à propriedade.Por que só liberdade e propriedade?  Toda incursão da regra jurídica é limite posto à personalidade .Mas lei que vote o direito público subjetivo à escola primária deixa de ser lei porque não é tal limiteem que pensa Gerhard Anschütz? Mesmo aí há reminiscência, que cumpre apagar-se, das origenspolíticas do conceito de lei – lei-óbice, lei-defesa   contra  o monarca, que torna impermeáveis asmentalidades, ou, pelo menos, que o torna a mentalidade dos séculos passados, ainda vigente, aconceito de lei que permita a lei-óbice ao arbítrio do Estado e a lei-ato do Estado a favor doindivíduo, a lei que dá. Aliás, os nossos tempos reclamam a lei que dê direitos, e não só a lei que se

limite com eles, – a lei que seja avanço do Estado, e não só a lei que o Estado faz dentro do que se

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lhe permite a lei que dá e não só a que pede ou que retira .

Por onde se vê que a definição de Gerhard Anschütz, representativa de tantas outras, é falha,ressente-se de clima que passou: o clima da primeira metade do século XIX, que apenas depois seatenuou. A lei não é só o que permite as invasões no terreno da liberdade, concepção da lei “inimigatolerada”; ela é também o que estende para além dos marcos, a própria liberdade e os direitos dos

indivíduos. Não é só garantia criada pela democracia; é também meio de se exercer imediata ediretamente, a favor do homem – quiçá dos próprios animais – a atividade do Estado, a técnica socialde criação. A obra dos chineses, nos últimos decênios é exemplo enorme.

A lei de que fala a Constituição é, de regra, a lei em sentido material. A intervenção é decretada porlei no sentido formal. Constitui modalidade de impedimento do exercício dos Poderes Públicosestaduais o obstáculo à execução de leis e decretos do Poder Legislativo, portanto, quer das leis emsentido material, quer das leis em sentido formal. A intervenção às vezes suspende a lei estadualque a motivou, quer se trate de lei em sentido material, quer de lei em sentido formal. A decretaçãoda intervenção para assegurar a execução das leis federais tanto pode referir-se a leis federais emsentido material quanto a leis federais em sentido formal. Quando o Poder Legislativo aprova aintervenção, a lei, que a respeito faz, é lei em sentido formal. Se o Poder Legislativo central entendeuque o Território deve ser erigido em Estado, a lei em que o decrete será lei em sentido formal. Mas o

ato legislativo em que se assegure a autonomia dos Municípios dos Territórios é lei em sentidomaterial. Além da segurança contra o absolutismo, além, digamos, do obstáculo liberal-democráticoao simples mando, ao decreto de tipo ditatorial, a exigência da  forma legal  exerceu, na Constituiçãode 1946, como exerceu na de 1891 e na de 1934, a de segurança contra atos dos poderes centraisque interessem aos Estados-membros.

Quando o Poder Legislativo só tem a atribuição de legislar no sentido material, não pode, a pretextode exercê-la, invadir o campo da competência dos outros Poderes, editando lei no sentido formal quecontenha atos administrativos ou judiciários. Assim, o Poder Legislativo pode legislar sobre pesca ecaça e sua exploração, porém, não pode conceder autorização ou concessão de pesca e caça. É atodo Poder Executivo, e não do Poder Legislativo.

d) Não há, nem nunca houve, perfeita simetria entre os órgãos e as   funções . Bem que princípios “apriori” pretendessem e pretendam que a regra jurídica há de ser feita pelo órgão legislativo, que a

execução caiba ao órgão executivo, e a função de julgar ao órgão judiciário, o que se vê, na vida reale no direito positivo, ainda onde se parta da separação dos poderes, é competirem: ao PoderLegislativo atos e, pois, funções, que são executivas, e, às vezes, judiciárias; ao Poder Executivo, aedição de regras jurídicas e a prática de atos que valem julgamento; e ao Poder Judiciário, atospuramente administrativos, tais como nomeações, concessões de licenças, demissões, bem como acolaboração, quotidiana e eficiente, na elaboração de regras jurídicas, ao lado daquelas que partemdo Poder Executivo, ou, ainda, ao lado da criação costumeira.

e) O princípio prático que corresponde à vedação das delegações legislativas pode ser enunciado doseguinte modo: há delegação legislativa sempre que a função outorgada ao Poder Executivo permiteque, sem ônus de afirmar ou provar se terem dado as circunstâncias que permitam variações, variede resolução, dentro da mesma classe de atos administrativos. Quando a delegação é proibida,também o é a extradelegação (= delegação pelo Poder Executivo a comissões, entidades

paraestatais, carteiras, diretorias, etc.).A emissão de licenças não pode ser deixada, pela lei, ao arbítrio do Poder Executivo; “a fortiori”, aentidades paraestatais, ou de economia mista, que, nesse ponto se paraestatalizem, ou passem a terórgão de composição dúplice. Se alguma função pública é atribuida a órgão de entidade paraestatal,ou de economia mista, cuja presidência caiba a pessoa de nomeação do Estado, entende-se que talórgão é ligado ao Estado, inserto no Estado e na entidade paraestatal, ou de economia mista,dando-se, assim, a  composição dúplice  e a  dupla organicidade . Se é certo que o simples fato de sernomeado pelo Poder Executivo o presidente, alguns diretores ou o diretor de algum serviço deentidade paraestatal, ou de economia mista, não cria órgão ao Estado, não se pode interpretar, demodo nenhum, que não se crie ao Estado quando à comissão, corpo, carteira, diretoria, ou o quequer que seja, se atribui função estatal. Porque seria interpretar-se a lei no sentido de se lhe atribuirpensamento que a faria contrária à Constituição. Se se foge à concepção da dupla organicidade sóse pode dar à lei, para se lhe evitar a invalidade, a interpretação de ter feito da comissão, corpo,carteira, diretoria, ou o que quer que seja, mero instrumento consultivo , sem cargo de “imperium”, de

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“Herschaft”, de arquia. Essa última espécie não se pode ver nas comissões, corpos, carteiras,diretorias, ou o que quer que seja, a que o Estado atribuiu a prática de atos que possam ter eficáciade atos administrativos produtores de coisa julgada administrativa. Assim, se tal comissão, corpo,diretoria, carteira, ou o que quer que seja, pode dar licenças, ou negar licenças, classificar, ou deixarde classificar, deter, reter, suster, ou deixar de deter, ou deixar de reter, ou se pode liberar, tem-se odilema: a) ou se entende que o Estado fez órgão seu, ainda parcial, tal entidade (organicidadedupla); ou b) é contrária à Constituição de 1946 tal atribuição de Poder Público à entidade estranhaao Estado.

f) Sempre que há limitação ou alteração a direito individual, tem-se de perguntar se há lei que atenha estabelecido; depois, se a lei, que há, é acorde com a Constituição, isto é, se não é contrária àConstituição; finalmente, se existindo a lei e sendo válida, foi  completamente  e   justamente  aplicada.No direito constitucional brasileiro, o que pertence à legislatura não pode ser deixado ao PoderExecutivo. Nem cabiam em princípio sofismas a favor de delegações legislativas, antes daConstituição de 1967, porque o art. 36, § 2.º, da Constituição de 1946 era expressíssimo: “É vedadoa qualquer dos Poderes delegar atribuições.” No art. 141, § 4.º, foi dito, como excelente criação doslegisladores constituintes de 1946: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciárioqualquer lesão de direito individual.” Esse princípio passou à Constituição de 1967, art. 153, § 4.º.

g) Quando as leis dizem “se necessário”, “quando necessário”, “sendo conveniente”. “se couber”, ou“examinando a espécie”, ainda que se refiram a autoridades judiciárias, de que dependa deferimento,há-se de entender que não se lhes   deu arb í trio . Tratando-se de autoridades administrativas, talatribuição implicaria delegação de poder legislativo, podendo elas adotar regra jurídica diferente paracada caso.

h) As regras jurídicas incidem sobre o seu suporte fático (“Tatbestand”) desde que esse se compõe.Tão diferentes são  aplicação  e   incidência  que se aplicam regras jurídicas que incidiram e não maisincidem (aplicações de regras jurídicas que, no momento da aplicação, já foram ab-rogadas ouderrogadas) e podem ser aplicadas regras jurídicas que não incidiram (“exempli gratia”, se a lei dizque o juiz verificará quais os que têm dezesseis anos, a fim de que, ao completarem dezoito anos,incida a lei de alistamento militar aos que, vivos, se não apresentarem), mas podem incidir. Quandose dá a alguma autoridade administrativa aplicar a regra jurídica R, ou, se o entender, não aplicar,não foi a aplicação que se fez dependente da vontade, do “arbitrium”, da autoridade administrativa,foi a incidência mesma. Portanto, atribuiu-se a essa autoridade poder legislativo: em verdade, emvez de se lhe reconhecer a função de aplicar a regra jurídica R, deixou-se-lhe ditar, no momento e “incasu”, a regra jurídica. Dizer-se que a autoridade administrativa pode aplicar R, ou não-R, é dar-lhepoder legislativo de editar, no momento, e “in casu”, a regra jurídica R, ou a regra jurídica não-R.

A distinção entre lei feita pelo legislador e lei feita por delegação supõe, ali, que o Poder Legislativonão deixe a outro Poder o fazer a lei, e, aqui, que lho deixe. Portanto: a lei é lei feita pelo PoderLegislativo se L = A é (ou deve),  d  ou L = se  a , A é (ou deve) d  ou L = A é (ou deve),  d , ou  d’ , ou  d’ ;ou L = se  a , A é (ou deve) d , ou  d’ , ou  d” ; mas, se há disjuntiva, é preciso que ser (ou dever)  d , ou ser(ou dever)  d’ , ou  d” , dependa de circunstâncias objetivas, ou do próprio beneficiado ou atingido pelaregra jurídica. Desde que o legislador deixa a outro Poder dizer se A é (ou deve) d , ou se é (ou deve)d’ ; ou se é (ou deve)   d” , sem qualquer ligação a critério que a lei estabeleceu, delega funçãolegislativa.

No tocante as emissões, tem-se como permitida a emissão, a até M. Se o que falta determinar-se é oquanto da emissão, a fixação do máximo evita infração do art. 36, § 2 º, da Constituição de 1946. Emverdade, a lei autorizou a emitir M, ou menos, de uma só vez (ato administrativo exaustivo), ou até seperfazer M (exercício em atos múltiplos até a soma M, que é o máximo). Depende isso, aliás deinterpretação.

A determinação quantitativa pode ficar dependente de algum fato se esse fato não deixa margem aarbítrio. Por exemplo: emitir E ou F, conforme a exportação livre do produto nacional P atingir e ou f.São delegações legislativas, portanto proibitivas, em se tratando de autorização de emissão: a) aautorização para emitir quando julgar conveniente, ou do que julgar conveniente; b) a autorizaçãopara emitir quando (ou se) as necessidades o exigirem, ainda que se deixe a apreciação a cargo decomissão administrativa ou técnica; c) a autorização para emitir o que for necessário a despesas nãoprevistas no orçamento; d) a autorização para emitir o de que precisarem os bancos por falta denumerário, quando se manifestar alguma retração dos depositantes; e) a autorização para emitir em

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virtude de requisição do Banco do Brasil, a juízo do Ministério da Fazenda; f) a autorização paraemitir o que for necessário a alguma obra pública, se não houver orçamento para ela; g) aautorização para emitir livremente durante guerra ou comoção intestina grave.

A autorização de emitir para cobertura de   deficit   somente pode ser em lei ou em orçamento. A

inserção em orçamento resulta de permissão especial da Constituição de 1967, art. 60, ns. I e II demodo que se tem regra jurídica, em sentido material, inserível em lei em sentido só formal. Se nãohouve lei autorizativa da emissão para cobertura do   deficit , nem sobreveio ao orçamento, nem foiincluída na lei orçamentária a autorização, ao Poder Executivo não é dado emitir, a pretexto de ter decobrir o deficit . O que se emitiu é moeda clandestina e fraudulenta.

1 . Nota do Editorial: o presente artigo foi publicado originalmente na  Revista de Direito Público – RDP  20/9, abr.-jun. 1972.

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