independência do banco central ferrari

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Será que a questão central é a independência do BC? Por Fernando Ferrari Filho e Luiz Carlos BresserPereira Valor Econômico, 30.10.2014 O controle e a redução da inflação passam por outros instrumentos que vão muito além da política monetária. O debate econômico no primeiro turno das eleições presidenciais entre os principais candidatos, que acabou repercutindo entre economistas com diferentes concepções teóricas, centrouse na necessidade (ou não) de se ter independência do Banco Central (BC) para controlar o processo inflacionário brasileiro. Por mais que entendamos que essa discussão não é a mais relevante da agenda econômica, ela deveria envolver pelo menos três questões: será consistente a afirmação de que a atual inflação brasileira está "fora" de controle? O que são autonomia operacional e independência do banco central? Será que a proposição de independência do BC será capaz de trazer a inflação para o centro da meta, 4,5% ao ano? Em relação à primeira questão, a trajetória da inflação dos últimos 15 anos (período de vigência do regime de metas de inflação) mostra que: 1) a média anual da variação dos preços foi da ordem de 6,7% ao ano (relativamente elevada para o que se espera de um regime de metas de inflação, porém substancialmente baixa comparativamente à média histórica da inflação brasileira), e 2) em somente três anos (2001 a 2003) as metas de inflação não foram cumpridas. Em suma, por mais que se possa ser crítico à gestão da política monetária do BC ao longo deste período, ela pode ser considerada exitosa. Quanto ao conceito de autonomia operacional e de independência de bancos centrais, sinteticamente, um banco central é considerado autônomo em termos operacionais quando, independentemente do presidente possuir mandato fixo, ele tem liberdade para operacionalizar sua política monetária para atingir dois objetivos, quais sejam, manter a inflação sob controle e estabilizar os níveis de produto e emprego. Por sua vez, em relação à independência do banco central, via de regra, a ideia é que o banco central, autônomo operacionalmente e com um mandato fixo para seu presidente, operacionaliza a política monetária visando exclusivamente assegurar a estabilidade e o poder de compra da moeda. É importante assinalar que na concepção de banco central independente está implícita a hipótese de que moeda é neutra no longo prazo, e que, portanto, não teria efeito sobre o crescimento e o emprego. No mundo real, o pressuposto de banco central independente é desmentido. Por exemplo, desde a crise financeira internacional de 20078, a maioria dos bancos centrais tem se preocupado em operacionalizar a política monetária não somente para conter o processo inflacionário (ou deflacionário, no Japão), mas, principalmente, para estimular a atividade econômica (o "quantitative easing" do Federal Reserve é ilustrativo). Ademais, os principais bancos centrais do mundo têm atuado como prestamistas de última instância para evitar o colapso do

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Independencia do banco central Ferrari

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  • Ser que a questo central a independncia do BC? Por Fernando Ferrari Filho e Luiz Carlos Bresser-Pereira Valor Econmico, 30.10.2014 O controle e a reduo da inflao passam por outros instrumentos que vo muito alm da poltica monetria. O debate econmico no primeiro turno das eleies presidenciais entre os principais candidatos, que acabou repercutindo entre economistas com diferentes concepes tericas, centrou-se na necessidade (ou no) de se ter independncia do Banco Central (BC) para controlar o processo inflacionrio brasileiro. Por mais que entendamos que essa discusso no a mais relevante da agenda econmica, ela deveria envolver pelo menos trs questes: ser consistente a afirmao de que a atual inflao brasileira est "fora" de controle? O que so autonomia operacional e independncia do banco central? Ser que a proposio de independncia do BC ser capaz de trazer a inflao para o centro da meta, 4,5% ao ano? Em relao primeira questo, a trajetria da inflao dos ltimos 15 anos (perodo de vigncia do regime de metas de inflao) mostra que: 1) a mdia anual da variao dos preos foi da ordem de 6,7% ao ano (relativamente elevada para o que se espera de um regime de metas de inflao, porm substancialmente baixa comparativamente mdia histrica da inflao brasileira), e 2) em somente trs anos (2001 a 2003) as metas de inflao no foram cumpridas. Em suma, por mais que se possa ser crtico gesto da poltica monetria do BC ao longo deste perodo, ela pode ser considerada exitosa. Quanto ao conceito de autonomia operacional e de independncia de bancos centrais, sinteticamente, um banco central considerado autnomo em termos operacionais quando, independentemente do presidente possuir mandato fixo, ele tem liberdade para operacionalizar sua poltica monetria para atingir dois objetivos, quais sejam, manter a inflao sob controle e estabilizar os nveis de produto e emprego. Por sua vez, em relao independncia do banco central, via de regra, a ideia que o banco central, autnomo operacionalmente e com um mandato fixo para seu presidente, operacionaliza a poltica monetria visando exclusivamente assegurar a estabilidade e o poder de compra da moeda. importante assinalar que na concepo de banco central independente est implcita a hiptese de que moeda neutra no longo prazo, e que, portanto, no teria efeito sobre o crescimento e o emprego. No mundo real, o pressuposto de banco central independente desmentido. Por exemplo, desde a crise financeira internacional de 2007-8, a maioria dos bancos centrais tem se preocupado em operacionalizar a poltica monetria no somente para conter o processo inflacionrio (ou deflacionrio, no Japo), mas, principalmente, para estimular a atividade econmica (o "quantitative easing" do Federal Reserve ilustrativo). Ademais, os principais bancos centrais do mundo tm atuado como prestamistas de ltima instncia para evitar o colapso do

  • sistema financeiro mundial. No Brasil, a ao do BC no foi diferente: as medidas macroeprudenciais para mitigar riscos financeiros e as monetrias para expandir a liquidez da economia foram importantes para a recuperao da economia em 2010. Finalmente, quanto possibilidade de se trazer no curto prazo a inflao para o centro da meta, preciso considerar que: 1) a atual inflao brasileira no predominantemente de demanda; 2) ao longo dos 15 anos de vigncia do regime de metas de inflao a taxa de crescimento dos preos livres foi inferior s taxas de crescimento dos preos administrados, a despeito do recente "congelamento" de alguns preos pblicos para manter a inflao dentro das metas - mais especificamente, entre junho de 1999 e setembro de 2014 o IPCA acumulou uma alta de 163,8% e os preos livres e administrados acumularam crescimentos de 203,7% e 150,3%, respectivamente; 3) o componente de inrcia inflacionria muito forte, seja porque os preos administrados continuam indexados formalmente, seja porque existe uma indexao informal dos salrios, e 4) choques de oferta (por exemplo, energia e alimentos) e de custos (cmbio, entre eles) tm contribudo para inflar o IPCA. Logo, se vrios so os fatores para que a inflao persista no atual patamar, poltica monetria contracionista, operacionalizada por um BC independente, que tenha como objetivo somente zelar pelo controle da inflao, no conseguir gerar um mecanismo transmissor juros-preos eficiente (por exemplo, Modenesi e Araujo, 2013, mostram que o canal transmissor da poltica monetria sobre a inflao brasileira relativamente fraco). Nesse particular, o controle e a reduo da inflao passam por outros instrumentos que vo muito alm da poltica monetria, a comear por uma poltica de desindexao completa da economia. Assim, a independncia do BC faz, portanto, pouco sentido econmico. A atual inflao no se mostra resistente baixa no porque o BC goza de autonomia operacional ao invs de independncia, mas porque os setores produtivos, em geral, so "price makers", tem havido choques de commodities e, principalmente, a indexao formal e informal continua a ser um problema central da economia brasileira que no temos sabido enfrentar. Por outro lado, importante ressaltar que a autonomia operacional e intervenes do BC so fundamentais no somente para assegurar a estabilidade dos preos, mas tambm para 1) dinamizar, via poltica monetria, os investimentos e, por conseguinte, os nveis de produto e emprego; 2) mitigar, por meio de medidas macroprudenciais, quaisquer riscos financeiros e 3) administrar o cmbio de maneira a lograr a estabilidade da taxa de cmbio efetiva competitiva, imprescindvel para evitar o "pass-through", isto , o repasse de variaes cambiais para preos, e para equilibrar o balano de pagamentos. Pelo exposto, alm de entendermos que a discusso sobre a independncia do BC , parafraseando Roberto Schwarz, uma das tantas "ideias fora do lugar", o debate econmico deve estar relacionado ao enfrentamento dos seguintes problemas: 1) crnicos e recorrentes dficits de balano de pagamentos em transaes correntes (entre 2008 e 2014 as transaes correntes tero acumulado um dficit da ordem de US$ 370 bilhes); 2) desequilbrios das contas pblicas; 3) precoce processo de desindustrializao; 4) baixa relao

  • formao bruta de capital fixo/PIB (nos ltimos anos ao redor, em mdia, de 18,5%) e 5) gargalos estruturais. Enfim, esperamos que esses problemas sejam discutidos pois a soluo deles fundamental para a estabilizao macroeconmica, entendida como inflao baixa e sob controle, equilbrios externo e fiscal e crescimento econmico sustentvel.