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AVANÇOS E DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE INCLUSIVA

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AVANÇOS E DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA

SOCIEDADE INCLUSIVA

Presidente da Sociedade Mineira de Cultura Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Grão-chanceler Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Reitor Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães

Vice-reitora Profª Patrícia Bernardes

Pró-reitor de Extensão Prof. Wanderley Chieppe Felippe

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

AVANÇOS E DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA

SOCIEDADE INCLUSIVA

ORGANIZADORA

Rosa Maria Corrêa

Sociedade Inclusiva / PROEX / PUC Minas Belo Horizonte

2009

Ficha Catalográfica

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

A946 Avanços e desafios na construção de uma sociedade inclusiva / Rosa Maria Corrêa, organizadora. - Belo Horizonte : Sociedade

Inclusiva/PUC-MG, 2008. 198 p. : il. Bibliografia. 1. Integração social. 2. Acessibilidade. 3. Inclusão digital. 4. Direitos Fundamentais. 5. Educação inclusiva. I. Corrêa, Rosa Maria.

II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pró-reitoria de Extensão. Sociedade Inclusiva. III. Título.

CDU: 376

FICHA TÉCNICA Organizadora Rosa Maria Corrêa Revisão final Antônio Libério Neves Projeto gráfico da capa Secretaria de Comunicação da PUC Minas Produção gráfica Segrac Editora e Gráfica Limitada 1ª edição: 2009 Reprodução parcial ou total permitida, desde que citada a fonte

SUMÁRIO APRESENTAÇÂO Alessandra Sampaio Chacham Rosa Maria Corrêa......................................................................................................................7 PARTE I Inclusão Social: Reflexões Teóricas e Conceituais 1. DIREITOS FUNDAMENTAIS, ESTADO SOCIAL, SOCIEDADE INCLUSIVA Jorge Miranda...........................................................................................................................14 2. INCLUSÃO, DIREITO E DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONCEITO E FORMA JURÍDICA DE INCLUSÃO Alexandre Travessoni Gomes...................................................................................................22 3. SOCIEDADE INCLUSIVA E PSICANÁLISE: DO PARA TODOS AO CADA UM Ilka Franco Ferrari Maria José Gontijo Salum.........................................................................................................35 4. A INCLUSÃO DA CULTURA E A CULTURA DA INCLUSÃO José Márcio Barros....................................................................................................................49 5. MEIO AMBIENTE E INCLUSÃO SOCIAL: UM PARADOXO? Yasmine Antonini Eneida M. Eskinazi Sant’Anna Geraldo Mendes dos Santos......................................................................................................56 6. POR QUE AGIR CONTRA SEUS PRÓPRIOS INTERESSES? Jose Luiz Quadros de Magalhães..............................................................................................69 PARTE II Inclusão Social: Avanços e Desafios no Cotidiano 7. ULTRAPASSAR BARREIRAS E AVANÇAR NAINCLUSÃO ESCOLAR Maria Tereza Eglér Mantoan....................................................................................................82 8. UMA ABORDAGEM HOLÍSTICA NA PRÁTICA DO DESIGN UNIVERSAL Marcelo Pinto Guimarães..........................................................................................................88 9. TECNOLOGIA PARA REABILITAÇÃO Marcos Pinotti Danilo Alves Pinto Nagem Claysson Bruno Santos Vimieiro Breno Gontijo do Nascimento Daniel Neves Rocha Kátia Vanessa Pinto Menezes.................................................................................................105

10. OS DESAFIOS DA INCLUSÃO DIGITAL: ACESSO, CAPACITAÇÃO E ATITUDE Augusto Dutra Galery.............................................................................................................116 11. AS POTENCIALIDADES DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: PRÁTICAS DAS UNIVERSIDADES Sonia Maria Rocha Heckert....................................................................................................127 12. PROGRAMAS DE INSERÇÃO DE JOVENS NO MERCADO DE TRABALHO: O OLHAR EMPRESARIAL Dener Chaves Antonio Carvalho Neto...........................................................................................................140 PARTE III Inclusão Social, Gênero e Raça: Questões Específicas 13. GÊNERO E RAÇA NO BRASIL: IMPASSES E AVANÇOS Rosana Heringer......................................................................................................................161 14. INCLUSÃO, EXCLUSÃO E RAÇA: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E SOCIEDADE José Tiago dos Reis Filho......................................................................................................170 15. MULHER NEGRA E A INCLUSÃO NOS DIREITOS SOCIAIS Alzira Rufino...........................................................................................................................180 16. PERFIS DE AUTONOMIA E VULNERABILIDADE NA JUVENTUDE: DIFERENTES ASPECTOS DA EXCLUSÃO SOCIAL Alessandra Sampaio Chacham Ana Laura Lobato Lucas Wan Der Maas..............................................................................................................185

7

APRESENTAÇÃO

Alessandra Sampaio Chacham1

Rosa Maria Corrêa2

Na década de noventa, alguns professores da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais (PUC Minas), preocupados com a formação de educadores que atuavam em escolas

especiais, pensaram, inicialmente, em promover um encontro em que se discutisse a prática

educacional dessas escolas. Mas logo viram que essa era uma questão complexa, que exigiria

discutir também a acessibilidade, a saúde, o trabalho, a tecnologia, a arte e o direito. Assim,

acabaram por organizar, em outubro de 1999, o I Seminário Internacional Sociedade

Inclusiva. O primeiro seminário, intitulado apenas como Sociedade Inclusiva, trouxe vários

pesquisadores de outros países como Suécia, Chile, Inglaterra, Estados Unidos e de vários

estados brasileiros, para discutir como uma sociedade poderia organizar-se a fim de ser

inclusiva. Naquele seminário, propôs-se a criação do Fórum Permanente Sociedade Inclusiva,

vinculado à Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) da PUC Minas. Mais tarde, a Sociedade

Inclusiva: rede de inclusão social foi reconhecida pelo Conselho Universitário (CONSUNI),

pela resolução nº 02/2005.

A princípio, o Núcleo Sociedade Inclusiva, composto por professores e alunos de vários

cursos da Universidade, inspirado na Declaração dos Direitos Humanos de 1948, da

Organização das Nações Unidas (ONU), deteve-se em discutir o acesso aos direitos das

pessoas com deficiência. Em um segundo momento, o Núcleo passou a discutir o acesso dos

grupos de negros e índios e, mais recentemente, o de grupos que, por questões de gênero e

orientação sexual, são discriminados e excluídos dos direitos fundamentais. A discussão de

exclusões direcionadas a outros grupos também integra os seminários realizados a cada dois

anos.

O Núcleo tem como princípios conceber uma sociedade inclusiva como aquela em que

todas as pessoas, independentemente do sexo, idade, crença, etnia, raça, orientação sexual ou

deficiência sejam, necessariamente, reconhecidas como cidadãs e a todas sejam facultados os

direitos econômicos, sociais, civis e culturais, eliminando quaisquer formas de discriminação

1 Doutora em Demografia e professora na PUC Minas. 2 Doutora em Educação e professora na PUC Minas.

8

e segregação; primar por uma sociedade aberta e acessível a todos os grupos, que encoraje a

participação e aprecie a diversidade e as experiências humanas; compreender a atividade

extensionista voltada para a inclusão social como uma das formas de expressão do

compromisso social da Universidade e de tornar público o conhecimento produzido por ela;

entender a prática de extensão como interdisciplinar e transdisciplinar, associada ao ensino e à

pesquisa e realizar parcerias de cooperação interinstitucional.

Desde o seu surgimento, o Núcleo desenvolveu várias ações de debate e promoção dos

direitos de grupos historicamente excluídos dos direitos fundamentais. A ampliação dessas

ações em seminários internacionais merece destaque por reunir pessoas com diferentes

olhares para a discussão e promoção de produção científica e sobre a temática sociedade

inclusiva. No primeiro seminário, buscou-se conceituar a expressão Sociedade Inclusiva,

porém houve muitas dificuldades em encontrar pessoas no Brasil para debater o tema. No

segundo seminário, em 2001, a discussão foi ampliada, incluindo-se a temática da

globalização, do meio ambiente e da responsabilidade empresarial, dando-se destaque à

questão da inclusão racial. No terceiro seminário, intitulado Ações Inclusivas de Sucesso,

realizado em maio de 2004, muitos trabalhos foram inscritos, mostrando que a discussão

havia provocado mudanças na sociedade. No quarto seminário, realizado em outubro de 2006,

propôs-se avaliar os impasses e avanços das propostas e das ações inclusivas devido ao

acúmulo de experiências debatidas nos seminários anteriores e que exigiam uma reflexão

mais apurada. No quinto seminário, realizado em outubro de 2008, foi discutida a questão das

diferenças – de pessoas e de grupos –, e a da sustentabilidade, um paradoxo na sociedade

contemporânea.

Outra ação do Sociedade Inclusiva envolve a mobilização de instituições civis e públicas

para a discussão e a divulgação da legislação brasileira sobre direitos de pessoas com

deficiência, étnico-raciais, sexuais e idosas, que estimularam a elaboração de livros e cartilhas

referentes a esses direitos.

Em 2002, foi realizado o Diagnóstico da Educação Inclusiva no Ensino Fundamental de

Belo Horizonte (MG) e Contagem (MG), que apontou a necessidade de investimento do

Núcleo na formação continuada dos professores. Desde então, são promovidos cursos de

extensão, especialização e palestras para educadores, com o objetivo de auxiliá-los a refletir

sobre as práticas educativas e como encontrar estratégias de ensino-aprendizagem menos

excludentes.

Já em 2007, foi elaborado o Diagnóstico da Inclusão das Pessoas com Deficiência no

Mercado de Trabalho nos municípios de Contagem e de Belo Horizonte, para subsidiar os

9

cursos do Programa de Capacitação para Pessoas com Deficiência3 e propor diretrizes para a

elaboração de políticas públicas.

Foi criado em 2008 o “Projeto Direito à Diferença”, com o objetivo de unificar as ações

promovidas pelo Núcleo e levar para as escolas, públicas e privadas, e outras instituições

sociais, a discussão sobre os desafios do convívio com o “outro”, entendido como “alguém

que é diferente de mim e que tem os mesmos direitos que eu”.

Inicialmente, os membros do Núcleo organizavam-se em eixos temáticos, para

promover pesquisas, eventos, programas e projetos, inclusive, assessorar os projetos criados

pelos cursos de graduação da PUC Minas. Esses eixos – Acessibilidade, Direitos Humanos e

Cidadania, Educação Inclusiva, Inclusão pela Arte e Cultura, Trabalho e Inclusão; Inclusão

Racial, Saúde e Inclusão e Tecnologia para Inclusão – foram organizados com base nos

direitos e nos princípios explicitados na Declaração dos Direitos Humanos da ONU, de 1948,

e na Constituição Federal Brasileira, de 1988.

Atualmente, o Núcleo organiza-se em três eixos: Étnico e Racial; Gênero e Orientação

Sexual, e Necessidades Especiais. Essa nova organização temática tem como objetivo

ressaltar as pessoas ou grupos que, historicamente, vêm sofrendo discriminação e exclusão

dos direitos fundamentais4.

Na história do Núcleo, “Avanços e Desafios na Construção de uma Sociedade

Inclusiva” é o primeiro livro, entre outros tipos de publicações. Compõe este livro a produção

resultante do balanço das políticas e das ações da sociedade, para assegurar os direitos sociais,

que foram discutidas no IV Seminário Sociedade Inclusiva: impasses e avanços.

Na Parte 1, “Inclusão Social: reflexões teóricas e conceituais”, são apresentados seis

artigos que, utilizando-se de variados enfoques, levantam e refletem acerca de questões

relacionadas, tanto à noção, quanto às possibilidades de inclusão social. No primeiro capítulo,

Jorge Miranda apresenta uma reflexão sobre o processo histórico de desenvolvimento dos

direitos humanos e o papel do Estado na garantia desses direitos, com ênfase no impacto do

3 O Programa de Capacitação para Pessoas com Deficiência, desde 2003, vem capacitando pessoas com deficiência, com mais de 16 anos, em cursos de informática básica, auxiliar administrativo, massagem terapêutica, telemarketing, vivência de formação profissional, e promovendo a inserção no mercado de trabalho. 4 “Direitos fundamentais são direitos essenciais à pessoa humana, definidos na constituição de um Estado, contextualizados histórica, política, cultural, econômica e socialmente. Assim, os direitos fundamentais são direitos humanos constitucionalizados, gozando de proteção jurídica no âmbito estatal, reservando-se o emprego da expressão direitos humanos para as convenções e declarações internacionais, que desfrutam de proteção supra-estatal” (JAYME, 2005, p.11).

10

neoliberalismo no Estado Social, que o articulista advoga como o único capaz de garantir os

direitos sociais necessários a uma sociedade verdadeiramente inclusiva.

No segundo capítulo, Travessoni argumenta que a persistência da desigualdade social

dificultaria a fruição de Direitos Fundamentais e a inclusão social. De forma breve, o autor

apresenta o conceito de Direitos Fundamentais e sua relação com o conceito de Direitos

Humanos, define inclusão e exclusão, e discute as formas e instrumentos, com os quais o

Estado pode conseguir tal inclusão.

Ao questionar o marco individualista, sobre o qual se assenta a noção de Direitos

Humanos nas democracias modernas, no terceiro capítulo, Ferrari e Salum apresentam uma

longa reflexão sobre as relações entre direito individual e coletivo, e as relações entre

indivíduos e sociedade na contemporaneidade. Para tanto, as autoras partem de contribuições

de clássicos da Psicanálise, nesse processo, e argumentam a favor da importância da

abordagem psicanalítica no processo de inclusão social, com base em exemplos de atuação de

psicólogos com menores infratores, nas possibilidades de inclusão de cada indivíduo, a partir

de suas diferenças.

No quarto capítulo dessa seção, Barros inicia seu artigo com uma discussão dos

significados e da relação, que ele classifica como paradoxal, entre cultura e inclusão.

Buscando explicitar a complexidade dessa relação, tanto no campo das ideias, quanto na arena

de nossas práticas, Barros avança rumo a uma proposta de práxis inclusiva, menos

compensatória e altruísta e mais comprometida com as diferenças, com a dignidade humana e

a democracia, em contraponto a uma noção de inclusão mais encaminhada para o exercício da

filantropia, da compaixão e da beneficência.

No quinto capítulo, Antonini, Sant’Anna e Santos argumentam que, na América Latina,

o crescimento da população, a pobreza, a desigualdade e a exclusão social resultam no

aumento da pressão sobre os espaços naturais e sobre os recursos naturais. Os autores

discutem essa relação nos processos de favelização; de gerenciamento dos recursos hídricos

da Amazônia; educação ambiental e na sociodiversidade.

No sexto e último capítulo dessa seção, Magalhães se pergunta como explicar que o poder, em suas

variadas formas, tem levado milhões de pessoas a defender interesses que não os seus, porém, muitas vezes, são

contra os seus interesses. Magalhães argumenta, fundamentado em teóricos diversos, que o capitalismo de

mercado é uma grande religião, que se afirma com a sacralização do mercado e da propriedade privada, na qual o

fetiche do consumo escravizaria o consumidor, tanto pela incapacidade em profanar o bem consumido quanto

pela incapacidade de enxergar o processo em que se vê mergulhado até a cabeça.

Na Parte 2, “Inclusão Social: avanços e desafios no cotidiano”, são apresentados outros

seis capítulos que discutem diferentes tipos de experiências com práticas inclusivas. Mantoan,

11

no primeiro texto, discute como ultrapassar barreiras e avançar na inclusão escolar,

enfatizando as questões envolvidas na formação do professor que, entre a teoria e a prática, é

quem tem de dar conta do aluno na sala de aula e lhe garantir o direito à aprendizagem e o

respeito às diferenças.

No segundo capítulo, Guimarães propõe uma abordagem holística da prática do design

universal, com a justificativa que essa prática teria um efeito mais complexo para a

compreensão da acessibilidade para todos, do que o previsto nos instrumentos legais e

normativos. Para ele, sem essa abordagem, é provável que os resultados sejam inadequados e

estejam distantes dos objetivos de desenvolvimento de uma sociedade inclusiva.

Pinotti e outros, no terceiro capítulo, apresentam o trabalho do Laboratório de

Bioengenharia da Universidade Federal de Minas Gerais, que atua, desde 1999, no

desenvolvimento de tecnologias para a área de saúde. Nesse artigo, os autores descrevem as

diferentes ações realizadas no laboratório, voltadas para a Engenharia de Reabilitação, entre

elas, a tecnologia dos músculos artificiais pneumáticos; a órtese de quadril, com músculos

artificiais pneumáticos; a órtese funcional de mão e o telefone acessível.

No capítulo quatro, Galery discute os desafios da inclusão digital, com foco nos

problemas relacionados ao acesso, capacitação e à atitude do homem diante da tecnologia.

Galery inicia seu artigo, apresentando os conceitos de inclusão e de exclusão digital e outros

pontos relacionados à utilização desses conceitos para, depois, tecer considerações sobre as

principais questões relacionadas ao acesso à tecnologia, à capacitação para o uso da

tecnologia e à atitude diante da tecnologia.

No capítulo cinco, Heckert discute as potencialidades da economia solidária, a partir de

práticas oriundas das universidades e apresenta políticas públicas de economia solidária que

buscam a inclusão social, pela geração do trabalho emancipado. O foco da discussão é a

experiência das “incubadoras universitárias” como prática inclusiva que, com o apoio do

Ministério do Trabalho, expandiram-se por diferentes universidades. Heckert conclui suas

considerações, afirmando que, por meio da “incubagem”, diversos grupos foram apoiados, em

um processo de formação que vai do surgimento à consolidação de um empreendimento e

conquista de autonomia pelo grupo.

No capítulo seis, Chaves e Neto apresentam uma discussão, de olhar empresarial, sobre

os programas de inserção de jovens no mercado de trabalho. Para tanto, partem da

reconstrução da trajetória histórica do desemprego juvenil, para discutir as políticas públicas,

que focam a questão e analisar o programa Bolsa-Emprego da Prefeitura Municipal de Betim,

12

subsidiados pelos resultados de uma pesquisa realizada com os empresários, que participaram

desse programa, naquele município.

Finalmente, na Parte 3, “Inclusão Social, Gênero e Raça”, questões específicas são

apresentadas em quatro artigos. No primeiro, “Gênero e Raça no Brasil: Impasses e

Avanços”, Heringer reflete sobre a questão da diversidade racial e de gênero no Brasil, na

perspectiva de que a discriminação é uma violação dos Direitos Humanos e que enfrentar o

racismo é fundamental para a garantia da inclusão social no país. A autora apresenta

diferentes pontos de vista para pensar questões relativas à promoção da igualdade e

valorização da diversidade, no campo das políticas públicas. Heringer trabalha com diferentes

temas, passando pela educação infantil, a construção de uma proposta curricular antirracista

de educação, o ensino da história e da cultura afrobrasileiras nas escolas, a promoção de

atividades culturais para jovens negros e políticas voltadas para a questão racial e de gênero.

No segundo artigo, “Inclusão, exclusão e raça: uma articulação entre psicanálise e

sociedade”, o psicanalista Reis Filho discute sua experiência de homem negro, que trabalha há

muitos anos com a escuta de pacientes, muitos deles negros, sobre suas vivências com o

racismo e a exclusão social. Nesse artigo, o autor reflete sobre as possíveis consequências de

políticas de ação afirmativa e sobre as possibilidades de atuação da psicanálise, na superação

de preconceitos, para promoção de uma sociedade menos racista e mais inclusiva.

No terceiro artigo dessa seção, Alzira Rufino discute a situação da mulher negra e sua

inclusão nos Direitos Sociais, a partir de sua experiência como fundadora de uma ONG

voltada para a defesa dos direitos da mulher, com foco no combate à violência doméstica e ao

racismo.

Chacham, Lobato e Van der Mass analisam, no último artigo dessa seção, gênero, raça e

classe como diferentes dimensões da exclusão social da juventude, a partir dos resultados de

uma pesquisa realizada, em 2005, com mulheres jovens residentes em uma favela de Belo

Horizonte. Para a análise, os autores utilizaram o método estatístico Grade of Membership

(GoM), que permitiu construir perfis das jovens em relação aos atributos demográficos,

comportamento sexual e reprodutivo, arranjos familiares e grau de autonomia em cada uma de

suas diferentes dimensões.

A todos que participaram, direta ou indiretamente, da realização deste livro, nossos

agradecimentos e, dos leitores, esperamos que apreciem os textos.

13

PARTE I

Inclusão Social: Reflexões Teóricas e Conceituais

14

Direitos Fundamentais, Estado Social, Sociedade Inclusiva

Jorge Miranda5

Em um resumo da evolução dos Direitos Fundamentais, indicam-se, corretamente, três

ou quatro gerações: a dos direitos de liberdade; a dos direitos sociais; a dos direitos ao

ambiente e à autodeterminação, aos recursos naturais e ao desenvolvimento; e, ainda, a dos

direitos relativos à bioética, à engenharia genética, à informática e a outras utilizações das

modernas tecnologias.

Conquanto essa maneira de ver possa ajudar a apreender os diferentes momentos

históricos de aparecimento dos direitos, o termo geração, geração de direitos, afigura-se

enganador por sugerir uma sucessão de categorias de direitos, umas substituindo-se às outras

– quando, pelo contrário, o que se verifica em Estado Social de Direito é um enriquecimento

crescente em resposta às novas exigências das pessoas e das sociedades.

Nem se trata de um mero somatório, mas sim de uma interpenetração mútua, com a

conseqüente necessidade de harmonia e concordância prática. Os direitos vindos de certa

época recebem o influxo dos novos direitos, tal como estes não podem deixar de ser

entendidos em conjugação com os anteriormente consagrados: algumas liberdades e o direito

de propriedade não têm hoje o mesmo alcance do que no século XIX, e os direitos sociais

adquirem um sentido diverso, consoante aos outros direitos garantidos pelas Constituições.

Tampouco as pretensas gerações correspondem a direitos com estruturas contrapostas:

um caso paradigmático é o do direito à intimidade ou à privacidade, só plenamente

consagrado no século XX. E há direitos inseridos numa geração que ostentam uma estrutura

extremamente complexa: é o caso do direito ao ambiente.

Finalmente, direitos como os direitos à autodeterminação, aos recursos naturais e ao

desenvolvimento sequer entram no âmbito dos Direitos Fundamentais, porque pertencem a

outra área – a dos direitos dos povos.

Nos séculos XVIII e XIX, dir-se-ia existir uma concepção de Direitos Fundamentais, a

liberal. Não obstante às críticas – legitimistas, socialistas, católicas – era o liberalismo (então,

cumulativamente, filosófico, político e econômico) que prevalecia em todas as constituições e

declarações; e, não obstante à pluralidade de escolas jurídicas – jus naturalista, positivista,

5 Professor catedrático da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa.

15

histórica – era a ele que se reportavam, de uma maneira ou de outra, as interpretações da

liberdade individual.

A situação muda no século XX: não tanto por desagregação ou dissociação das três

vertentes liberais (em especial por o liberalismo político deixar de se fundar, necessariamente,

no liberalismo filosófico) quanto por todas as grandes correntes – religiosas, culturais,

filosóficas, ideológicas, políticas – interessarem-se pelos direitos do homem e quase todas

afirmarem-se empenhadas na sua promoção e na sua realização. O tema dos direitos do

homem cessou de ser, no nosso tempo, uma exclusiva aspiração liberal.

Assiste-se, por conseguinte, a um fenômeno de universalização dos direitos do

homem, não sem paralelo com o fenômeno da universalização da Constituição, e que, como

este, se acompanha da multiplicidade ou da plurivocidade de entendimentos – porque a

uniformidade das técnicas não determina a unidade das culturas e das concepções políticas.

Pode-se antever uma “civilização do universal” também no domínio dos direitos do

homem – equivalente ao “ideal comum a atingir”, de que fala a Declaração Universal – pelo

menos, por agora, afiguram-se irredutíveis as sensibilidades e as valorações (com base

religiosa ou não) que se atinjam patamares e convergências de garantia e de efetivação.

Independentemente das divergências em nível de formulações, teoricamente e

fundamentações, ressaltam-se algumas tendências comuns:

• A diversificação do catálogo, muito para lá das declarações clássicas;

• A irradiação para todos os ramos de Direito;

• A acentuação da dimensão objetiva, perscrutando-se, por detrás dos

direitos, princípios básicos do ordenamento;

• A consideração do homem situado, traduzida na relevância dos grupos e

das pessoas coletivas e na conexão com garantias institucionais;

• O reconhecimento da complexidade de estrutura de muitos dos direitos,

designadamente dos de liberdade;

• A dimensão plural e poligonal das relações jurídicas;

• A produção de efeitos não só verticais (frente ao Estado) mas também

horizontais (em relação aos particulares);

• A dimensão participativa e procedimental, levando a falar em status activus

processualis (HÄBERLE);

• A idéia de aplicabilidade imediata quanto aos direitos de liberdade;

16

• A interferência não apenas do legislador, mas também da Administração na

concretização e na efetivação dos direitos;

• O desenvolvimento dos meios de garantir e a sua ligação aos sistemas de

fiscalização da legalidade e da constitucionalidade.

Tal como o conceito de Constituição, o conceito de Direitos Fundamentais surge

indissociável da idéia de Direito Liberal. Daí que se carregue nas duas características

identificadoras da ordem liberal: a postura individualista abstrata de (no dizer de Radbruch)

um “indivíduo sem individualidade”; e o primado da liberdade, da segurança e da

propriedade, complementadas pela resistência à opressão.

Apesar de todos os direitos serem ou deverem ser (por coerência) direitos de todos,

alguns (máxime o sufrágio) são, no século XIX, denegados aos cidadãos que não apresentam

determinados requisitos econômicos; outros (v.g., a propriedade) aproveitam, sobretudo, os

que pertençam a certa classe; e outros ainda (o direito de associação, em particular, de

associação sindical), não sem dificuldade, são alcançados.

Contrapostos aos direitos de liberdade são, nesse século e no século XX, reivindicados

(sobretudo, por movimentos de trabalhadores) e sucessivamente obtidos, direitos econômicos,

sociais e culturais – direitos econômicos para garantia da dignidade do trabalho, direitos

sociais, como segurança na necessidade, e direitos culturais, como exigência de acesso à

educação e à cultura e, em último termo, de transformação da condição operária. Nenhuma

constituição posterior à Primeira Guerra Mundial deixa de outorgá-los, com maior ou menor

ênfase e extensão.

Sabe-se, porém, que são diversas – muito mais diversas de que os do Estado Liberal –

as configurações do Estado Social. Os antagonismos ideológicos, os desníveis de estágios de

desenvolvimento e as diferenças de culturas e de práticas sociais não só subjazem aos

contrastes de tipos constitucionais como explicam realizações e resultados variáveis de país

para país.

A bifurcação assim aberta dos direitos fundamentais encontra-se, de uma maneira ou

de outra, em quase todas as constituições feitas após a Primeira Guerra Mundial ou, pelo

menos, na legislação ordinária de quase todos os países; e em nível internacional, mostra-se

patente nos dois: Pacto de Direitos Civis e Políticos – ou na Convenção Européia dos Direitos

do Homem e das Liberdades Fundamentais – e na Carta Social Européia.

Mas a doutrina vê a distinção em termos muito diferentes, consoante às premissas

teóricas e ao enquadramento político-constitucional de que parte.

17

Não faltam autores que somente tomem como direitos fundamentais os direitos de

liberdade e que relegem os direitos sociais para a zona das imposições dirigidas ao legislador

ou para a das garantias institucionais. Assim como há aqueles que não admitem verdadeiras

liberdades à margem da consecução dos fatores de exercícios só propiciados pela realização

dos direitos sociais. Na óptica do Estado social de Direito (inconfundível com a dos Estados

marxista-leninistas ou com a dos Estados corporativos, fascistizantes ou fascistas) o dualismo

é imposto pela experiência: sejam quais forem as interpretações ou subsunções conceituais,

não pode negar-se a uns e outros direitos a natureza de direitos fundamentais.

Para o Estado Social de Direito, a liberdade possível – e, portanto, necessária – do

presente não pode sacrificar-se em troca de quaisquer metas, por justas que sejam, a alcançar

no futuro. Há que se criar condições de liberdade – de liberdade de fato, e não só jurídica; mas

a sua criação e a sua difusão somente têm sentido em regime de liberdade, porque a liberdade

(tal como a igualdade) é indivisível. A diminuição da liberdade – civil ou política de alguns

(ainda quando socialmente minoritários), para outros (ainda quando socialmente maioritários)

acederem a novos direitos, redundaria em redução da liberdade de todos.

O resultado almejado há de ser uma liberdade igual para todos, construída a partir da

correção das desigualdades e não por meio de uma igualdade sem liberdade; sujeita às balizas

matérias e procedimentais da Constituição e susceptível, em sistema político pluralista, às

modulações que derivem da vontade popular expressa pelo voto.

Nos direitos de liberdade, parte-se da ideia de que as pessoas, só por o serem ou por

terem certas qualidades ou por estarem em certas situações ou inseridas em certos grupos ou

formações sociais, exijam respeito e proteção por parte do Estado e dos demais poderes. Nos

direitos sociais, parte-se da verificação da existência de desigualdades e de situações de

necessidade – umas derivadas das condições físicas e mentais das próprias pessoas, outras

derivadas de condicionalismos exógenos (econômicos, sociais, geográficos etc.) – e da

vontade de vencê-las para estabelecer uma relação solidária entre todos os membros da

mesma comunidade política.

A existência das pessoas é afetada tanto por uns como por outros direitos. Mas em

planos diversos: com os direitos, liberdades e garantias, é a sua esfera de autodeterminação e

expansão que fica assegurada; com os direitos sociais, é o desenvolvimento de todas as suas

potencialidades que se pretende alcançar. Com os primeiros, é a vida imediata que se defende

do arbítrio do poder; com os segundos, é a esperança em uma vida melhor que se afirma. Com

uns, é a liberdade atual que se garante; com outros, é uma liberdade mais ampla e efetiva que

se começa a realizar.

18

Liberdade e libertação não se separam, pois se entrecruzam e completam-se. A

unidade da pessoa não pode ver-se truncada em razão de direitos destinados a servi-la. A

unidade do sistema jurídico impõe a harmonização constante dos direitos da mesma pessoa e

de todas as pessoas.

Isso mesmo pode se comprovar, considerando a estrutura dos direitos e das normas

constitucionais, nas quais constam.

Com efeito:

a) Direitos, liberdades e garantias não são o mesmo que direitos naturais. Direitos

sociais não são o mesmo que direitos civis (em certa acepção) ou direitos outorgados pelo

Estado. Não está aqui em causa senão uma análise de situações jurídicas ativas de Direito

positivo, mas, se assim não fosse, por certo seria incorreto não qualificar como tais o direito

ao trabalho ou o direito à segurança social.

b) Direitos, liberdades e garantias tampouco são o mesmo que direitos individuais,

nem direitos sociais são o mesmo que direitos institucionais ou coletivos. Entre os direitos

fundamentais institucionais contam-se algumas liberdades (v.g., a das confissões religiosas e a

das associações) e, de resto, os direitos sociais apresentam-se, de ordinário, como de

titularidade individual (poucos direitos serão mais individuais que o direito ao trabalho ou o

direito ao ensino).

c) É corrente identificar direitos de liberdade com direitos negativos e direitos sociais

com direitos positivos. A contraposição, todavia, só pode ser feita em termos radicais.

d) Por um lado, perante a atitude do Estado, vem a ser de simples abstenção.

Postulam-se condições de segurança em que possa ser exercida uma ordem objetiva a criar ou

a preservar – a ordem pública em sentido escrito ou, mais amplamente, a “ordem

constitucional democrática”. E o Estado é civilmente responsável pelas violações dos direitos

e deve tutela, civil e penal, contra violações provindas de quaisquer cidadãos.

Mais ainda: quanto a algumas liberdades, exigem-se prestações positivas ou ajudas

materiais, sem as quais se frustra o seu exercício por todos os cidadãos e todos os grupos.

Assim, a liberdade de imprensa implica assegurar pela lei os meios necessários à salvaguarda

da sua independência perante os poderes político e econômico e a possibilidade de expressão

e confronto das diversas correntes de opinião nos meios de comunicação social do setor

público. Com a liberdade de propaganda eleitoral, associada à igualdade das diversas

candidaturas e à imparcialidade das entidades públicas.

e) Pode e deve-se falar, sim, numa atitude geral de respeito, resultante do

reconhecimento da liberdade da pessoa conforme sua personalidade e de reger a sua vida e os

19

seus interesses. Esse respeito pode converter-se em abstenções ou em ações do Estado e das

demais entidades públicas ao serviço da realização da pessoa, individual ou

institucionalmente considerada – mas nunca em substituição da ação ou da livre decisão da

pessoa, nunca a ponto de o Estado penetrar na sua personalidade e afetar o seu ser. E é

fundamentalmente nesse sentido de respeito e preservação da personalidade e da capacidade

de ação das pessoas que se justifica ainda dizer que os direitos, liberdades e garantias no seu

conjunto ou, pelo menos, as diferentes liberdades se salvaguardarão ou se efetivarão tanto

mais quanto menos for a intervenção do Estado, ao passo que os direitos sociais poderão ser

tanto mais efetivados quanto maior ela vier a ser.

f) Uma atitude geral de respeito obriga tanto as entidades públicas como, ainda, em

certos casos e em certas condições – defini-las vem a ser um dos mais difíceis problemas do

Direito Constitucional contemporâneo –, as entidades privadas. Porque o respeito da liberdade

de todos os membros da comunidade política tem que ver não somente com as entidades

públicas como também com todos esses membros, uns perante os outros, pelo menos quando

haja relações de desigualdade ou de dependência. Importa que uns respeitem a personalidade

dos outros para que possam todos conviver.

g) Por outro lado, algo de semelhante se verifica, de resto, no domínio dos direitos

sociais. Embora esses tenham como sujeitos passivos principalmente o Estado e outras

entidades públicas, também não são indiferentes a entidades privadas; também requerem (ou

chegam a exigir) uma colaboração por parte dos particulares. Chamados à tarefa da sua

efetivação são o Estado e a sociedade.

h) Existe uma instância participativa nos Direitos Sociais fundada, ainda e sempre, no

respeito da personalidade: porque se cura de prestar bens e serviços à pessoa, não apenas é

preciso contar com o seu livre acolhimento como ainda é mais vantajoso pedir-lhe que, por si

ou integrada em grupos, contribua para a sua própria promoção. Daí, estruturas e, por vezes,

inclusive, direitos de participação.

i) Tal como nas liberdades se recorda uma vertente positiva, também nos Direitos

Sociais se encontra, pois, uma dimensão negativa. As prestações que lhes correspondem não

podem se impor às pessoas, salvo quando envolvam deveres e, mesmo aqui, com certos

limites (v.g., tratamentos médicos ou frequência de escolas). Quando a Constituição institui

formas de participação, não pode ser impedido o seu desenvolvimento. É vedado ao poder

público restringir o acesso aos Direitos Sociais constitucional ou legalmente garantidos, por

meio de medidas arbitrárias e, evidentemente, lesar os bens ou os interesses que lhes

correspondem (v.g., o ambiente ou o patrimônio cultural).

20

j) A interconexão de liberdades e direitos sociais afigura-se óbvia, seja no processo

histórico da sua formulação ou no momento atual de exercício e efetivação. A liberdade

sindical e o direito à greve constituem instrumentos de defesa dos direitos dos trabalhadores.

Há garantias ao serviço de Direitos Sociais: assim, o direito à segurança no emprego em

relação ao direito ao trabalho, e, em geral, também funcionam como tais certos direitos

específicos de participação. Em contrapartida, a efetivação dos Direitos Sociais propicia a

realização das liberdades ou de certas liberdades: assegurar, por exemplo, o ensino básico

universal, obrigatório e gratuito, ou a educação permanente, é para que todos possam usufruir

da liberdade de aprender e da liberdade de criação cultural. Finalmente, não faltam casos de

harmonização: por exemplo, o direito ao trabalho não pode ser efetivado com privação da

liberdade de profissão.

Os últimos 25 anos foram, contudo, atravessados por situações de crise e pela

afirmação de um modelo alternativo; situações de crise derivadas do peso dos aparelhos

burocráticos nascidos à sua sombra, de custos financeiros dificilmente suportáveis, de

conjunturas de recessão econômica e de quebra de competitividade em face de países com

menor proteção social; afirmação de correntes neoliberais e monetaristas triunfantes (ou

aparentemente triunfantes) frente às correntes keynesianas.

E, efetivamente, as circunstâncias e também os princípios de equidade social exigem a

superação do assistencialismo. Exigem a distinção entre necessidade e bens essenciais e

universais e as restantes necessidades, fazendo com que as respectivas prestações sejam pagas

por todos quantos as puderem pagar e até onde puderem pagar. Exigem a abertura à

colaboração da sociedade civil. Exigem ainda mudança de mentalidades, diminuindo os

egoísmos corporativos, e impulsionando, pelo contrário, formas de democracia participativa.

No entanto, o modelo neoliberal tampouco oferece solução satisfatória. Assim como a

experiência dos anos 50, 60 e 70 mostrou, o papel integrador produzido pelos esforços de

efetivação de Direitos Sociais, também agora só o Estado Social permite dar resposta a

fenômenos novos de exclusão e propiciar o acolhimento dos milhões de imigrantes que

buscam um pouco mais de bem-estar nos países ocidentais. E apenas o Estado Social é

compatível com a preservação do meio ambiente, com uma política de desenvolvimento

sustentável e com a “solidariedade entre gerações”.

Uma coisa é, pois, a atualização, a adaptação ou a reforma do modelo; outra coisa, a

sua abolição. Uma coisa é a correspondência mais com regulação econômica e social do que

com intervenção direta do Estado; outra coisa, o retorno a um laissez-faire, que, à escala da

globalização, traria imensos custos humanos. Uma coisa é a eventual passagem a uma nova

21

fase (que algumas apelidam de Estado pós-social), outra coisa a sujeição a uma pura lógica

economicista sem horizontes de esperança e de solidariedade.

Tudo isso, naturalmente, no âmbito da democracia representativa, aberta e pluralista,

em que, sem prejuízo do seu conteúdo essencial e da garantia jurisdicional, as normas

constitucionais sobre direitos econômicos, sociais e culturais podem receber concretizações

diversas (mas não retrocesso), consoante as legítimas opções das sucessivas maiorias

parlamentares. Assim, espera-se conduzir para uma sociedade inclusiva, uma sociedade de

todos e para todos.

22

Inclusão, Direito e Direitos Fundamentais: conceito e formas jurídicas de inclusão1

Alexandre Travessoni Gomes2

Apesar de a igualdade se mostrar formalmente garantida nas declarações de direitos

das constituições ocidentais, inclusive a brasileira, de modo geral, ela não se efetiva com a

eficácia que as sociedades ocidentais gostariam de contar. Embora o problema pareça restrito

aos países antes chamados subdesenvolvidos, hoje denominados emergentes, ele vem se

mostrando presente também nas nações chamadas industrializadas ou ricas, como os Estados

Unidos e os países da União Europeia.3 A desigualdade apresenta vários aspectos e efeitos.

Pretende-se aqui abordar um deles: a fruição de Direitos Fundamentais. Vamos tratar da

desigualdade na fruição dos Direitos Fundamentais e sua relação com os conceitos de inclusão

e exclusão. Será visto, (1) primeiramente, de forma breve, o conceito de Direitos

Fundamentais e de sua relação com o conceito de Direitos Humanos. (2) Procuraremos definir

inclusão e exclusão, usando como base a ideia de fruição de Direitos Fundamentais.

Apresentaremos, então, (3) os motivos que podem levar as pessoas a quererem a inclusão,

sejam elas incluídas ou excluídas. Vamos descrever (4) a forma de Estado que pode conseguir

tal inclusão e, por fim, (5) tratar dos instrumentos que o Estado pode utilizar.

1. DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Há várias conceituações de Direitos Humanos. Pérez Luño, por exemplo, os define

como um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam

as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, que devem ser reconhecidas

positivamente pelos ordenamentos jurídicos nos planos nacional e internacional (PÉREZ

LUÑO, 1999, 48).

1 Conferência proferida em 20/10/2006, no IV Seminário Internacional da Sociedade Inclusiva da PUC Minas. 2 Professor Adjunto na Faculdade de Direito da UFMG e na Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas. 3 Embora nesses países a desigualdade afete sobretudo os imigrantes, seus efeitos são sentidos em parcela cada vez mais significativa dos próprios cidadãos nativos.

23

Embora essa definição envolva problemas que, por questões metodológicas, não serão

abordados aqui, ela pode ser útil para trilhar o caminho que se pretende, a saber, tratar da

inclusão do ponto de vista da efetividade dos Direitos Fundamentais.4

No momento de seu surgimento, no Estado Liberal, os Direitos Humanos eram

considerados Direitos Naturais. Foram, então, positivados nas primeiras declarações de

Direito. Embora a identificação das causas dessas declarações seja polêmica, pode-se dizer

que as principais foram o pensamento jusnaturalista, que ganha força com a idéia

revolucionária e, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos, a tradição inglesa de cartas,

restringindo os poderes reais.

A positivação dos Direitos Humanos começa na ex-colônia inglesa da Virgínia (1776),

continua na Declaração Francesa (1789) e, posteriormente, aparece na Declaração norte-

americana, em forma de emenda à Constituição (1791). Em seguida, os Direitos Humanos

passam, de modo gradativo, a integrar praticamente todas as constituições europeias e de

outros países ocidentais, como o Brasil que, em sua primeira constituição, fez constar uma

declaração.5

Já se tornou clássica a distinção doutrinária entre Direitos Humanos e Direitos

Fundamentais. Aqueles seriam direitos inatos do ser humano; estes seriam os Direitos

Humanos que foram positivados. Portanto, os Direitos Humanos independeriam da

positivação, enquanto os Direitos Fundamentais não. Antes de entrar nas considerações sobre

a eficácia, que tornarão possível um conceito jurídico de exclusão, é oportuno discordar dessa

distinção, sobretudo no plano teórico, embora se possa aceitar sua validade no plano histórico.

Para isso, far-se-á uma breve abordagem da teoria dos Direitos Humanos.

Salgado afirma que há três momentos pelos quais passam os Direitos Humanos, a

saber: (a) a consciência desses direitos em determinadas condições históricas; (b) a

positivação e (c) a eficácia (SALGADO, 1996, 16).

(a) Em primeiro lugar, os Direitos Humanos surgem em nossa consciência. Surgem

como valores, como desejos. Surgem como algo que queremos realizar. Nesse momento, para

os jusnaturalistas, os Direitos Humanos estão ainda no plano do Direito Natural.

4 Tratar dessa polêmica seria desviariar do tema. Será tratada brevemente a distinção entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. Para uma crítica mais detalhada dos conceitos de Direitos Humanos e Direitos Fundamentais cf. O Direito Penal e os Direitos Fundamentais, de nossa autoria, no prelo. 5 Na Constituição Imperial os Direitos, então nomeados Civis e Políticos, aparecem não no início, mas no último título da Constituição.

24

(b) O segundo momento consiste na declaração formal desses direitos: eles são postos

em declarações (figurem estas ou não em uma constituição), saindo do plano valorativo e

entrando no plano normativo.

Como se viu acima, a doutrina majoritária afirma que, quando os Direitos Humanos

são positivados, quer dizer, postos em uma declaração, eles também se transformam em

Direitos Fundamentais. Não é de se concordar com essa distinção, sobretudo no plano teórico,

pois ela pode induzir ao erro de pensar que o caráter “fundamental” dos referidos direitos se

adquire com a positivação, o que pode ser verdade, de um ponto de vista histórico, sobretudo

se considera serem eles Fundamentais por estarem na lei fundamental (Grundgesetz), i.e., na

Constituição, mas não faz sentido do ponto de vista teórico. Vejamos.

Se os Direitos Humanos tornaram-se Fundamentais por terem sido positivados, quer

dizer, por terem se inserido nas constituições, seu conceito depende meramente da vontade de

determinado legislador histórico. A nosso ver, a característica de essência dos Direitos

Humanos (antes mesmo de sua positivação) é justamente a de serem Direitos Fundamentais.

Do contrário, todos os direitos subjetivos poderiam se considerar Direitos Humanos, por

tratar-se de direitos subjetivos de uma pessoa. Aquilo que define os Direitos Fundamentais é

justamente o fato de fundamentarem os demais direitos, isto é, de constituírem a base ou

fundamento dos demais direitos inerentes a um ser humano6, antes mesmo de terem sido

positivados. De outro modo, como já dissemos, todo direito subjetivo poderia se considerar

um Direito Humano. Entende-se, portanto, que a expressão Direitos Fundamentais compõe

melhor aquilo que a doutrina vem denominando Direitos Humanos. No entanto, como o uso já

consagrou outras expressões e como o objetivo aqui não é tratar diretamente dessa questão,

usaremos Direitos Humanos para os Direitos ainda não positivados e Direitos Fundamentais

para os direitos positivados.

Como já ressaltamos acima, a positivação dos Direitos Humanos deu-se, pela primeira

vez, mediante a consagração nas declarações e constituições contemporâneas ao Iluminismo.7

Os direitos dessa primeira geração são negativos, em outras palavras, direitos que implicam a

não-interferência ou interferência mínima do direito nas relações sociais de diversas

naturezas, ampliando o espectro das condutas não regulamentadas pelo direito ou, como

preferem alguns, regulamentadas negativamente pelo direito. Na segunda geração aparecem

os Direitos Sociais, que pretendiam dar um mínimo de conteúdo à igualdade e liberdade

6 Embora alguns possam ser atribuídos a todas as pessoas de direito. 7 Não desconsideramos o fato de os Direitos Humanos apresentarem uma história anterior, que passa por fatos históricos (como as declarações inglesas) bem anteriores ao Iluminismo, bem como por teorias que já previam a dignidade do ser humano como algo que deveria ser respeitado.

25

formais consagradas pelos direitos da primeira geração. Constituem direitos da segunda

geração, por exemplo, os Direitos do Trabalhador. Hoje se fala em uma terceira geração,8 que

seria aquela típica não mais do Estado Social, mas de um Estado Democrático de Direito. A

nosso ver, os modelos de Estado e suas respectivas gerações de Direitos precisam ser vistos

de forma sistemática. O Estado Social é Liberal, quer dizer, incorpora os Direitos do Estado

Liberal, mas os reformula, de modo que os direitos da primeira geração acham-se nele

presentes, mas interpretados de um novo modo. Do mesmo modo, o Estado Democrático de

Direito incorpora os Direitos da segunda geração – direitos esses que já haviam incorporado

os da primeira geração – interpretando-os, porém, de um novo modo, coerente com a ideia

atual de democracia.9

(c) O terceiro momento é o da eficácia.10 Os Direitos Humanos já positivados, então

Direitos Fundamentais, passam a ser fruídos por seus destinatários. Embora a Ciência do

Direito sempre enfatize a necessidade da passagem do segundo momento – o da garantia

formal desses direitos –, para o terceiro momento, ela pouco trabalhou as formas pelas quais

se poderia chegar a essa eficácia. Apesar de compreensível essa lacuna, quando se considera o

caráter dogmático-normativo da Ciência do Direito, deve-se lembrar de que a finalidade do

Direito se processa no âmbito da facticidade.

No Brasil, embora tenhamos uma Constituição que positiva os Direitos Humanos,

transformando-os, na terminologia clássica já mencionada acima, em Direitos Fundamentais,

sua positivação não se viu seguida da eficácia. Isso mostra-se especialmente importante

quando se considera que a positivação não constitui, no Brasil, fato recente. As constituições

brasileiras, desde a primeira, garantiram formalmente os direitos da geração correspondente

ao modelo de Estado então consagrado. A Constituição Imperial e a Constituição Republicana

consagraram os Direitos Individuais; a Constituição de 1934 consagrou, pela primeira vez, os

Direitos Sociais; e a Constituição de 1988 implantou um novo modelo de Estado, o Estado

Democrático de Direito, que trouxe consigo uma nova geração de direitos, como já

mencionado acima.

Mas, apesar da positivação, grande parcela da população brasileira, talvez a maioria,

não frui esses direitos em medida sequer mínima, quanto mais razoável. Portanto, embora não

existam diferenças significativas entre a atual Declaração de Direitos Brasileira, contida na

8 Alguns autores falam em mais gerações. 9 Esse conceito de democracia será abordado abaixo, na perspectiva de Pettit. 10 Usamos o termo eficácia no sentido de realização concreta dos Direitos Fundamentais.

26

Constituição e as declarações contidas nas constituições europeias, o nível de eficácia dos

direitos por elas prescritos é muito diferente.

2. A FRUIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO CHAVE PARA UM

CONCEITO JURÍDICO DE EXCLUSÃO

Do ponto de vista jurídico, inclusão e exclusão podem ser definidas com base no grau

de eficácia dos Direitos Fundamentais, isto é, com base no exercício ou não de Direitos

Fundamentais em certo grau. Consideramos incluídas as pessoas que fruem, em um grau

razoável, os Direitos Fundamentais. São as pessoas que exercem de fato o direito à moradia, à

saúde, à educação, ao trabalho e à renda. Consideramos excluídas as pessoas que não fruem

em grau razoável os Direitos Fundamentais; aquelas que não exercem de fato os direitos

mencionados acima ou, pelo menos, não exercem alguns deles em grau razoável.11

Se essas definições são razoáveis, podemos, então, concluir que a maioria dos

brasileiros é excluída. Naturalmente, estou considerando verdadeira uma premissa comumente

aceita: a de que a grande maioria da população brasileira não exerce de fato, em grau

aceitável, seus Direitos Fundamentais.

Constatada essa realidade, pergunta-se: como pode o Direito atuar na efetivação desses

Direitos Fundamentais? A resposta a essa pergunta não é fácil, sobretudo porque se, por um

lado, é consenso que deve haver maior eficácia dos Direitos Fundamentais, por outro, os

instrumentos necessários para se chegar a ela não são bem estudados e, quando isso ocorre,

não há acordo sobre quais são os mais eficazes. Só para citar um exemplo, consideremos a

polêmica que vêm causando as ações afirmativas no Brasil, como o projeto de lei que prevê a

criação de quotas nas instituições públicas de ensino superior e nos cursos técnicos públicos.

Não pretendemos responder definitivamente à pergunta acima, e sim apenas sugerir,

em termos gerais, os instrumentos jurídicos que podem levar à maior eficácia dos Direitos

Fundamentais. Usar-se-á a teoria republicanista de Pettit (PETTIT, 2007 e PETTIT, 1999),

que fala em uma democracia contestatória. Essa teoria pode se configurar de grande valia para

estudar os referidos instrumentos, desde que, em virtude das peculiares condições sociais

brasileiras, ela seja adequada à nossa realidade. Antes de mostrar os meios para se alcançar a

11 É impossível no âmbito deste ensaio determinar teoricamente em que grau exato uma pessoa precisa estar fruindo seus Direitos Fundamentais para que seja considerada incluída. Pode-se aqui apenas notar que, se considerados todos os Direitos Fundamentais, há fruição em medida razoável da maioria deles, a pessoa pode ser considerada incluída.

27

inclusão, é preciso verificar se esta, de fato, constitui um fim a se perseguir É o que passamos

a fazer.

3. OS MOTIVOS QUE PODEM LEVAR AS PESSOAS A QUEREREM A INCLUSÃO

Antes de indagar os motivos de alguém querer a inclusão, é preciso indagar quem é

esse sujeito que promoverá a inclusão. Três opções aparecem: (i) as pessoas excluídas

incluirão a si próprias; (ii) os incluídos incluirão os excluídos ou (iii) ambos (incluídos e

excluídos) deverão procurar incluir. A nosso ver, a terceira opção é a mais razoável, como

passamos a demonstrar.

(i) Começaremos pela análise do excluído como sujeito que inclui. Por que quer o

excluído se incluir? Ou, antes disso, quer ele realmente se incluir? A resposta é simples.

Partimos do pressuposto de que exercer Direitos Fundamentais é algo desejado por todos.

Tomamos como base aqui a longa história de lutas sociais, algumas sangrentas, pela

declaração e efetivação dos Direitos Humanos. Se exercer esses direitos constitui algo que a

humanidade de modo geral vem buscando, então o excluído, integrante da humanidade, quer

se incluir. Não é necessário provar que exercer Direitos Fundamentais consista em algo bom,

embora acreditemos nisso. A menos que o ser humano em geral seja masoquista, a menos que

existisse e ainda exista um masoquismo coletivo, os Direitos Fundamentais representam algo

bom. Se existisse tal masoquismo, ter-se-ia concluir que exercer os Direitos Fundamentais é

algo ruim, mas, ainda assim, exercê-los continuaria sendo algo extremamente desejado, pois,

nesse caso, a humanidade seria masoquista. Portanto nossa suposição não se baseia em uma

especial concepção do que seja o homem, mas em uma constatação fática.

(ii) Quanto ao incluído como sujeito que inclui, poder-se-ia indagar: por que a pessoa

já incluída desejaria a inclusão do excluído? Poderíamos partir do ponto de vista de uma teoria

individualista e dizer que quem está incluído, em um mundo caracterizado por um egoísmo

extremo, não desejará incluir ninguém, pois sua situação de incluído em nada muda com a

inclusão do outro. No entanto, vemos dois tipos de razão para que o incluído deseje incluir o

excluído. A primeira razão é moral. Pelo fato de o excluído ser uma pessoa, quer dizer, um

fim em si mesmo, temos que reconhecer sua personalidade, que ele é um sujeito, e não tratá-

lo, portanto, somente como instrumento para minha satisfação (KANT, 1995, 69). A

racionalidade moral impede que eu pergunte o que ganho incluindo, pois, nesse caso, o outro

e, consequentemente, sua inclusão, representam mero meio para satisfazer um fim. Ora, para

28

que possa me reconhecer como pessoa, tenho que reconhecer o outro. Essa é uma razão moral

que sustenta a premissa de que, para eu ser um sujeito de direito, tenho que reconhecer o

outro também como sujeito de direito. Poder-se-ia dizer que essa concepção é excessivamente

idealista e não mostra, portanto, qualquer relevância prática. Contra essa objeção, duas

respostas podem ser apresentadas. Por um lado, podemos refutá-la, dizendo que a uma teoria

moral (e lembremos que a razão aqui é moral) não só se dá o direito como também se exige

ser idealista, pois sem o idealismo não poderia jamais haver uma idéia reguladora.12 Por outro

lado, poderíamos concordar com a objeção e então apresentar outro tipo de razão. Embora

acreditemos que a razão moral represente um motivo válido, vamos considerar também a

segunda opção.

Caso a razão moral não se mostre suficiente, pode se apresentar um segundo tipo de

razão, que é estratégica. Incluir o excluído significa uma estratégia para que quem já se acha

incluído continue nessa condição. Por quê? Porque, caso não se combata a exclusão,

sobretudo se considerarmos seu grau e o número de pessoas que afeta, ela chegará a um nível

que impedirá que os incluídos exerçam de fato seus direitos (inclusive Direitos

Fundamentais). Ora, se aquele que não exerce Direitos Fundamentais é excluído, então o

incluído passaria a ser excluído! Se, portanto, não houver inclusão, em breve a maior renda do

incluído não será relevante para fins do exercício de Direitos Fundamentais. Sua renda

propiciará a ele e aos seus, por exemplo, uma boa escola, uma boa moradia, saúde, mas ele e

os seus não terão segurança (podemos dizer que já não têm!), e, portanto, não poderão exercer

esses direitos ou os exercerão de forma limitada, ou seja, em um grau muito menor.

Poderíamos objetar que os incluídos não seriam de fato excluídos, pois continuariam

usufruindo maior renda, o que é relevante para o conceito de exclusão. Essa objeção não faria

sentido algum, pois o conceito de exclusão que apresentamos é jurídico, não econômico.

Embora não neguemos a relação entre a renda e o exercício de Direitos Fundamentais, ela não

representa seu componente único. Portanto, nada impediria falar em duas espécies de

excluídos: excluídos ricos e excluídos pobres. Ambos, porém, seriam juridicamente excluídos.

Partindo do mesmo pressuposto adotado acima, a saber, que todo ser humano quer exercer

Direitos Fundamentais, seja isso algo bom ou não, podemos, então, concluir que o incluído,

para manter sua posição, tem que desejar a inclusão do excluído!

12 O termo “ideia reguladora” é aqui usado no sentido normativo. Com isso, não queremos dizer que ideias existam, ou seja, que elas estão no plano ontológico ou que elas existam per se. O conceito de ideia aqui adotado é, como o conceito kantiano de ideia, um conceito metodológico. Isso significa que, para nós, assim como para Kant, as ideias não existem per se, sendo, portanto, oriundas da razão.

29

(iii) Em síntese, podemos concluir que a inclusão deve ser procurada tanto pelo

excluído quanto pelo incluído.

4. A FORMA DE ESTADO QUE INCLUI

O tópico acima mostra que querer a inclusão representa um interesse comum de

incluídos e excluídos, mesmo que alguns deles não o admitam. Segundo Pettit, um interesse

comum é um interesse que pode ser sustentado cooperativamente. Interesse sustentado

cooperativamente é aquele segundo o qual todas as pessoas que entrarem em um debate

público podem prover sem constrangimento como questão relevante a ser levada em

consideração (PETTIT, 2007, 217).

Partindo do pressuposto, então, de que a inclusão representa um interesse comum, e

partindo do pressuposto de que a democracia, em sentido republicano, pode se definir como o

regime que efetiva as políticas públicas e as ações de governo apenas e à medida que elas

derivem daquele interesse comum (cf. PETTIT, 2007, 220-222), surge a questão: como fazer

isso? Podemos pensar, ainda com base em Pettit, nas formas de alcançar essa efetivação.

Pettit afirma que, em um Estado republicano, é necessária uma forma de “contestação”

para que sejam efetivados apenas os interesses comuns das pessoas (PETTIT, 2007, 227).

Pettit defende essas formas de contestação porque, em seu entendimento, a dimensão

“autoral” da democracia é insuficiente. Entende-se por dimensão autoral aquela em que

podemos nos ver, mesmo indiretamente, como autores das leis, das decisões e das políticas

públicas que nos vinculam (PETTIT, 2007, 222-225).

Sabemos que o sistema democrático, em sua dimensão meramente autoral, tem seus

problemas. Os representantes eleitos, muitas vezes, não representam de fato os representados.

Aliás, um dos grandes problemas da democracia representativa talvez resida nesse abismo,

que precisa ser estreitado entre a vontade dos representantes e a vontade dos representados.

Muitas vezes, os representantes representam apenas formalmente os representados porque, na

prática, eles podem representar interesses não comuns, isto é, o representante que se elege em

nome de interesses comuns pode, quando do exercício do mandato, se deixar mover por

outros interesses que não aqueles pelos quais foi originalmente eleito.13 Essa dimensão

13 Poder-se-ia objetar contra isso que nenhum representante se elege em nome de interesses comuns, mas na verdade em nome de interesses de um grupo, por exemplo, operários, empresários ou servidores públicos. Mas isso não invalida nossa constatação, pois, se assim for, basta dizer que o representante que se elege para defender os interesses comuns dos operários, dos empresários ou dos servidores públicos, depois de eleito pode se deixar mover por outros interesses que não os interesses comuns da classe que representa.

30

eleitoral da democracia, embora necessária, é insuficiente. Eleições periódicas fazem-se,

portanto, necessárias, mas não bastam, pois localizam-se no plano da democracia autoral. Não

basta eleger um representante, se os interesses que ele efetiva quando toma suas decisões

podem não ser interesses comuns. Por causa dessa insuficiência do modelo meramente

eleitoral, que é autoral, Pettit defende uma democracia contestatória. Não basta que sejamos,

mesmo formalmente, autores das leis, das políticas públicas e das decisões que nos vinculam.

É necessário possuir algumas formas de controle da atividade de nossos representantes,

sobretudo dos detentores de mandatos no Executivo e no Legislativo – mas também, e hoje

cada vez mais, dos membros do Poder Judiciário.

5. FORMAS DE INCLUSÃO

Se tomarmos as formas de controle a que se refere Pettit e as associarmos aos Direitos

Fundamentais, podemos concluir que elas são formas de inclusão, à medida que, como vimos,

a efetivação dos Direitos Fundamentais represente um interesse comum.

Segundo Pettit, essas formas de controle, por ele denominadas formas de contestação,

podem se dividir em três: (i) recursos procedimentais, (ii) recursos consultivos e (iii) recursos

apelativos (PETTIT, 2007, 229-230).

(i) A primeira forma, recursos procedimentais envolve processos já garantidos

formalmente nas democracias ocidentais. São processos como a separação de poderes e a

observância ao Estado de Direito (PETTIT, 2007, 233). Tais processos, embora necessários,

são insuficientes, pois podem ser objetos dos mesmos problemas da dimensão autoral:

efetivar os interesses apenas de um grupo, em detrimento do interesse comum. Portanto,

mesmo que haja uma separação efetiva entre os poderes, assim como uma observância às

regras do devido processo legal no Estado de Direito, isso ainda resulta insuficiente.

(ii) Vem, então, a segunda forma de contestação: recursos consultivos. Essa forma

determina que as autoridades devam consultar a sociedade civil quando da tomada de

decisões, sejam elas administrativas ou legislativas (PETTIT, 2007, 234-235). Essa consulta

pode se fazer por meio de comitês, debates, consultas públicas. Não nos referimos aqui apenas

a consultas plebiscitárias ou por referendo, de difícil efetivação prática. Referimo-nos também

e sobretudo àquelas consultas que existem, por exemplo, (a) quando se realiza uma audiência

para se debater o orçamento participativo de um município, (b) quando se realiza uma

audiência com a comunidade para saber se uma hidrelétrica se instalará em determinado local

ou (c) quando se criam comitês que contam não só com a participação da comunidade

31

científica, que fornece subsídio técnico para a decisão, mas também com a participação dos

interessados. Essas formas de consulta garantem que o interesse comum seja efetivado, em

maior medida pelas políticas públicas e implementado pelos governos.

(iii) A terceira forma de contestação, os recursos apelativos, é usada quando as

políticas públicas ou as tomadas de decisão que já foram, ou estão sendo realizadas, não vêm

efetivando os interesses comuns, tornando-se necessária, assim, uma forma de apelo. Segundo

Pettit, as democracias permitem que cidadãos comuns desafiem aqueles que se acham no

governo, por exemplo, apelando ao Parlamento, para que este investigue determinada ação

governamental (PETTIT, 2007, 236). Essa dimensão mostra-se essencialmente ligada ao

Direito, à medida que se realiza também por meio do controle jurisdicional das políticas

públicas e tomadas de decisão. Daremos ênfase, aqui, ao Direito como forma de viabilizar

essa forma de contestação.

Em uma democracia contestatória a sociedade civil pode provocar o Poder Judiciário,

a fim de garantir a legitimidade das políticas públicas e tomadas de decisão em geral. Como já

ressaltamos no início, os Direitos Fundamentais, que são a chave para o conceito jurídico de

inclusão, encontram-se formalmente garantidos nas declarações positivas (no caso do Brasil,

na Constituição), mas infelizmente não surtem, em muitos casos, eficácia social. Como tornar

eficazes esses Direitos Fundamentais por intermédio da forma apelativa? Políticas públicas

que violam a Constituição podem ser entendidas como aquelas que não efetivam o interesse

comum e podem ser vetadas a partir das diversas formas de controle de Constitucionalidade.

Embora o controle jurisdicional de constitucionalidade da administração precise ainda muito

avançar, o controle de constitucionalidade das leis já constitui um primeiro passo, pois a

administração aplica a lei. Uma política pública ou tomada de decisão deve estar respaldada

pela lei.

É, porém, necessário reconhecer que apurar se determinada política pública viola ou

não a Constituição não é coisa muito simples. Tomemos como exemplo as políticas

econômicas. Alguns economistas dizem que nossa atual política econômica não é adequada,

mas outros dizem que sim. Para saber se determinada política econômica viola ou não a

Constituição seria necessário exigir dos órgãos jurisdicionais um conhecimento que eles não

têm, um conhecimento auxiliar como, no caso de políticas econômicas, o conhecimento

econômico. Em outros casos, seriam necessários conhecimentos das Ciências Sociais, de

Ciência Política ou mesmo de determinadas Ciências da Natureza (quando se acham

32

envolvidas, por exemplo, questões técnicas em decisões de impacto ambiental).14 Para

evidenciar a dificuldade do controle dessas políticas, tomaremos como exemplo a polêmica

questão da taxa de juros.

Poder-se-ia afirmar que a política econômica atual é inconstitucional porque não

efetiva os Direitos Fundamentais na maior medida possível e no menor tempo possível. Ela

não o faz devido à taxa de juros, que é alta demais15 e vem caindo em velocidade mais lenta

do que poderia e deveria. Quem defendesse essa afirmativa poderia adicionar que uma

política econômica constitucional seria aquela que estabelecesse uma taxa de juros menor,

uma vez que, dessa forma, se efetivariam mais rapidamente os Direitos Fundamentais para um

número maior de pessoas. Mas esse argumento é problemático à medida que a

constitucionalidade ou não da política econômica depende de um conhecimento

extremamente técnico e, muitas vezes, subjetivo.

Poder-se-ia dizer, contra o argumento acima, que, no momento atual, uma economia

com taxa de juros menor poderia causar um efeito oposto ao desejado, gerando, no final, mais

pobreza e, consequentemente, menor possibilidade de fruição de Direitos Fundamentais. Se

nem mesmo no âmbito específico da comunidade científica econômica há acordo a respeito de

questões como esta, como pode ela constituir objeto de um controle de constitucionalidade?

O controle de constitucionalidade de políticas públicas pode depender, portanto, de um

conhecimento auxiliar. Por certo, seria possível dizer que ao Poder Judiciário permite-se valer

do assessoramento de cientistas, como acontece com a perícia técnica nos procedimentos

jurisdicionais ordinários. Mas, assim como nos procedimentos ordinários, os peritos podem

discordar, também em um controle como o que analisamos, os cientistas podem discordar, e

caberia ao juiz decidir.

Outra dificuldade de um controle jurisdicional da constitucionalidade das políticas

públicas é que o Poder Judiciário só age quando provocado e um controle concentrado com

legitimidade ativa universal seja inviável na prática. Por isso um sistema de controle difuso

pode resultar mais interessante, mas então juízes de todas as instâncias teriam que enfrentar o

problema acima descrito. Portanto, embora o controle não só da constitucionalidade, mas

também da legalidade das ações da administração constitua importante forma de exercício de

democracia apelativa, ele apresenta dificuldades que precisam ser enfrentadas.

14 Por exemplo, para instalar uma usina hidrelétrica em determinado local ou para criar uma política que determine se o Brasil deve investir mais em usinas hidrelétricas, termelétricas ou nucleares, faz-se necessário um conhecimento técnico muito grande. 15 No período entre a primeira versão deste trabalho e sua publicação, houve uma sensível queda na taxa de juros no Brasil. O exemplo toma como base a situação da época da primeira versão.

33

Para que os instrumentos apelativos cumpram a finalidade democrática, torna-se

preciso que a sociedade civil atue: a responsabilidade não recai só no poder público, mas

também nos cidadãos, individual ou coletivamente organizados. Torna-se necessário, pois,

que além dos elementos de democracia autoral, que, como vimos, constituem os elementos

formais, como eleições periódicas e garantia do Estado de Direito, existam elementos

contestatórios, como as formas procedimentais, consultivas e apelativas de democracia.

Ampliar as formas apelativas e torná-las eficazes configura um desafio posto à nossa

sociedade. Poderíamos começar revendo a dificuldade que existe em obter o provimento

jurisdicional. O Direito e a Democracia são instituições construídas por homens, em outras

palavras, obras humanas que só fazem sentido à medida que têm por fim o homem. Um

Estado em que o Poder Judiciário – poder garantidor último de direitos –, devido à

morosidade e à burocracia excessivas, não efetiva em mínima medida o direito quando

violado, não é digno de receber o nome de Democrático de Direito. Se a inclusão é, como

pensamos, interesse de todos, um Estado que ponha verdadeiramente em prática formas

apelativas de Democracia constitui, mais que um interesse comum, uma necessidade para a

afirmação democrática. Enquanto não contarmos com isso, em medida mínima, não

poderemos encher o peito e dizer que vivemos realmente em um Estado Democrático de

Direito.

34

REFERÊNCIAS

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintanela. Lisboa: edições 70, 1995. PÉREZ LUÑO, Antonio E. Derechos Humanos, Estado de derecho y Constitucion. 5. ed. Madrid:Tecnos, 1999. PETTIT, Phillip. Republicanism: a Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press, 1999. _____.Teoria da Liberdade. Tradução: Renato Sérgio Pubo Maciel. Coordenação e supervisão: Luiz Moreira. Belo Horizonte; Del Rey, 2007. SALGADO, Joaquim Carlos. Os Direitos Fundamentais. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 82-1996, pp.15-71.

35

Sociedade Inclusiva e psicanálise: do para todos ao cada um

Ilka Franco Ferrari1

Maria José Gontijo Salum2

Uma das Cartilhas da Inclusão, que se encontra on-line3, esclarece que a sociedade que

é inclusiva tem como objetivo principal oferecer oportunidades iguais para que cada pessoa

seja autônoma e autodeterminada. Trata-se de uma sociedade que é democrática,

reconhecendo todos os seres humanos como livres, iguais e com direito a exercer sua

cidadania. Sociedade fraterna, na qual o respeito à dignidade de todos se evidencia e há o

estímulo à participação de cada um, reconhecendo o potencial de todo cidadão, no apreço às

diferentes experiências humanas. Para tanto, considera-se necessário haver esforço coletivo

dos sujeitos que dialogam em busca do respeito, da liberdade e da igualdade.

Esses princípios, como decidimos chamá-los, podem ser objeto de estudo e discussões,

a partir de diferentes campos de conhecimento, principalmente por incluírem categorias como

sociedade, igualdade, liberdade, direito, cidadania, fraternidade, democracia, sujeito, sobre as

quais estudiosos podem divergir. Eles trazem a evidência de que na sociedade algo se põe à

margem e necessita ser lembrado pelos “cidadãos”, “sujeitos”, “homens”, termos utilizados na

cartilha. Construídos pelos caminhos da universalização dos Direitos Humanos, iniciada no

pós-guerra do século XX, mais especificamente em 1948, de certa forma, declaram que a

humanidade, em sociedade, segrega algo que precisa ser incluído para que se evite o pior.

Esses princípios mostram, ainda, certas implicações da universalização dos Direitos

Humanos: eles deixam de ser competência exclusiva da jurisdição doméstica dos Estados, que

se comprometem, diante da comunidade internacional, “a observar, garantir e implementar os

direitos consagrados nos textos por eles subscritos”. Ressalta-se também que “os povos e

cidadãos obtêm a legitimação para lutar por seus próprios direitos para além dos limites

geopolíticos de cada Estado”, ou seja, prevalece uma “exigência humanitária de se proteger a

pessoa humana como tal, para além das fronteiras do país de que é nacional” (GONÇALVES,

1998).

1 Doutora em Programa de Clínica y Aplicaciones Del Psicoanális. Professora adjunta da PUC Minas. 2 Doutora em Teoria Psicanalítica. Professora Assistente III da PUC Minas. 3 Acessada no site www.deficienteeficiente.com.br/cartilhainclusao.html, dia 20 de junho de 2007. Nela há a seguinte observação: “Reproduzida, com adaptações e atualizações, mediante autorização, da ‘Cartilha da Inclusão’ editada pela PUC Minas, site: http://www.sociedadeinclusiva.pucminas.br/socinc, elaborada por Andréa Godoy et al, novembro de 2000”.

36

Os princípios situam-se, desse modo, também dentro do debate do “direito a ter

direitos”, questão insistente para a filósofa Hannah Arendt, que discutia a modernidade como

mundo no qual os próprios homens são descartáveis. Lugar de homens que não podiam estar à

vontade nem sentir-se em casa, facilmente marginalizados, tornando o “direito a ter direitos”

um tema da vida internacional (ARENDET, 1951/1997).

Nesse cenário dedicado a lançar luz sobre uma sociedade que é inclusiva, vale a pena,

então, repousar o foco no processo de segregação que lhe é inerente e fertiliza seu solo.

1. ESTAREM SEPARADOS, JUNTOS: DIFICULDADE HUMANA

Miller, no seminário O outro que não existe e seus comitês de ética (2005), diz que “a

liberdade dos modernos é o individualismo, é considerar que a sociedade não deve ter fins

coletivos” (p.51), diferentemente da liberdade dos antigos que acentuava a comunidade e os

fins coletivos. O processo segregatório faz parte do universo humano e não passa

despercebida aos estudiosos da cultura. Ele faz parte da dificuldade de viver em uma

fraternidade discreta, que supõe a capacidade de estarem separados, juntos (FERRARI, 2004).

Freud (1930/1969) ensinou, como muito se repete, que sempre haverá mal-estar na

humanidade, não importa a época, porque sempre haverá a impossibilidade dos homens no

controle do corpo, da natureza e, principalmente, dos laços sociais. Não se pode esquecer que

sua concepção de homem comporta a pulsão de morte e a agressividade. Como lembra

Cevasco (1994), em Freud, o homem é um porco-espinho simpático ou um lobo feroz, muito

longe de ter a capacidade de amar o próximo como a si mesmo. Em Lacan, isso não é

diferente. Ambos, portanto, sempre se preocuparam com as formas que os sujeitos encontram

para viver juntos, portando diferenças intransponíveis. Jamais desconsideraram, como às

vezes se ouve, o que Miller (2005) vem chamando de “realidade social”, a ponto de Lacan,

enfático, dizer que o praticante que não considera a subjetividade da época, no horizonte de

sua ação, deve desistir de praticar a psicanálise (LACAN, 1953/1998:322).

No seminário O outro que não existe e seus comitês de ética (2005), Miller comenta

que utiliza a expressão “construção da realidade social”, no contexto psicanalítico, numa

referência direta ao que se discute, na atualidade da filosofia norte-americana, por meio do

livro The Construction of Social Reality, do filósofo anglo-americano John Searle,

representante da filosofia analítica, uma das principais correntes de reflexão no mundo atual.

Com certa ironia, marca que aquilo que tem sido considerado uma novidade para os filósofos

analíticos, ou seja, “a construção da realidade social”, já era assunto de Freud e está bem claro

37

em Lacan. Em ambos, há a presença de uma realidade social que é construída, transindividual

e que se impõe ao sujeito. Exemplo disso pode ser visto nos textos freudianos sobre a cultura,

para aqueles que apresentam dificuldade de situá-los em seus textos clínicos. Em Lacan,

desde o início, o social é colocado em questão, até mesmo porque Freud havia deixado as

trilhas de Durkheim, nas quais as instâncias culturais dominam as naturais e as relações

sociais constituem uma ordem original de realidades. Um bom exemplo são as formalizações

sobre o Outro, situado no lugar da palavra, da linguagem, da cultura, do institucional, do

discurso universal, até falando do inconsciente como transindividual, ou seja, como discurso

do Outro.

Ao não desconsiderarem a subjetividade da época, deixaram contribuições valiosas

sobre a ciência como uma inovação importante, mas favorecedora de problemas à

humanidade, já que o mundo estruturado por ela é regido pela razão, que segrega, aliena o

sujeito.

No texto originado da correspondência entre Freud e Einstein, favorecida pela Liga

das Nações, antecessora da Organização das Nações Unidas (FREUD,1933-32/1974), essa

questão é ressaltada por Einstein. Na Proposição de 9 de outubro de 1967 (LACAN, 2003,

p.263), texto importante no marco lacaniano, Lacan recorda aos psicanalistas que uma das

faticidades que encontrariam na prática dizia respeito aos efeitos de segregação, pois os

“processos de segregação” se desenvolveriam como consequência dos remanejamentos dos

grupos sociais pela ciência e da universalização que ela ali produz. Era um estudioso atento ao

enfraquecimento ou desaparecimento das figuras tradicionais do Outro, ao surgimento da falta

de referenciais simbólicos, que culminaria nos significantes forjados para a atualidade,

segundo Vieira: “Pós-modernidade de Lyotard, Hipermodernidade de Lipovetsky e

Modernidade líquida de Bauman” (VIEIRA, 2004, p.73).

Não é incorreto dizer, portanto, que esses psicanalistas que fizeram escola se

preocuparam com a política também em outra dimensão que a política do inconsciente, do

sintoma. Lacan, por exemplo, chegou a pensar que o discurso analítico seria uma saída para o

discurso capitalista. Duas observações fazem-se importantes neste instante: ressalta-se que ele

não pensou que o discurso analítico acabasse com o capitalismo e também tinha claro que há

social na clínica do particular, porque não há sujeito que não esteja implicado em formações

discursivas.

2. POLÍTICA, CAPITALISMO E SEGREGAÇÃO

38

O surgimento das políticas sociais a partir das quais, atualmente, temos trabalhado, só

pode ser formulado no contexto da tentativa de construção de uma sociedade de direitos. A

Declaração Universal dos Direitos do Homem, como já se disse, é um marco nessa busca. A

declaração está relacionada ao surgimento das sociedades democráticas modernas, sociedades

cujo princípio organizador da ordem política é o fundamento da liberdade. Dessa forma, a

solução democrática acaba por se constituir em um problema, ao estabelecer suas bases na

liberdade. Isso se deve à indeterminação presente nesse fundamento, segundo Rosanvallon

(1998). Em consequência da liberdade, a democracia acaba por se mostrar sujeita à abertura e

tensão constantes.

Esse novo cenário, o da liberdade, é bastante distinto das sociedades tradicionais, nas

quais havia um princípio soberano que dava sentido à vida e à existência. Nas democracias, ao

contrário, as condições de vida não se acham previamente definidas – o sentido não está dado

por uma tradição ou pela imposição de uma autoridade.

A dificuldade da democracia é constituir um campo, que Rosanvallon (1998)

denomina de político, no qual vigore a ideia de que existe uma sociedade para os membros

nela inseridos. Para ele, é necessário um trabalho político para que um agrupamento humano

adquira a característica de um campo político, quer dizer, de uma sociedade. Esse trabalho é

sempre litigioso, já que nele se elaboram as regras que dão corpo à vida em uma comunidade.

Isso quer dizer que o político é o poder e a lei; por isso, nas sociedades democráticas, a

discussão política deveria assumir maior prevalência. Essa concepção mostra-se de acordo

com a psicanálise, tal como adverte Jacques Alain-Miller (2004), tendo em vista que o laço

social entre os homens é sempre um laço de domínio de um sobre outro. E daí a preferência

de Lacan, como esclarece Miller, pela expressão “laços sociais”, ao invés de “a sociedade”.

Rosanvallon (2002) é um dos pensadores que consideram que a globalização

econômica modificou o espaço da democracia. Com o advento da economia de mercado,

torna-se cada dia mais difícil instituir um campo político. Para ele, haveria uma dissolução do

político na contemporaneidade. Essa dissolução pode ser apreendida a partir da análise de

várias formas de tentativa de recomposição de uma soberania, conforme se vê acontecer

atualmente nos movimentos fundamentalistas.

Foi exatamente nesse contexto de perda das determinações que nasceu a discussão

sobre os direitos do homem. Eles podem ser vistos como uma proteção necessária contra a

falta de garantias do mundo moderno.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi fundamentada em três premissas:

direitos humanos, democracia e paz. Tais premissas estão, necessariamente, intricadas umas

39

nas outras. O sociólogo Marcel Gauchet (2002) concorda que a declaração dos direitos é

consequência do sistema democrático: ela é um triunfo das democracias. Mas acrescenta que

proteger os direitos é insuficiente. Segundo ele, os direitos humanos, tal como os conhecemos

hoje, não definem um campo político. Há, para ele, uma diferença entre instituir uma política

dos direitos e protegê-los. Fazer a passagem da proteção – um acordo – para uma política de

direitos representa um grande desafio, segundo ele.

Cevasco (1994), psicanalista de orientação lacaniana, ao discutir efeitos de segregação

na sociedade atual, em um momento se pergunta o que é a política. Antes de tudo, conclui, a

política é um fenômeno de linguagem que precipita a identificação dos sujeitos no social,

construindo sujeitos estandardizados. Nesse sentido, ela tem uma função pacificadora,

socializadora, pois aglomera os semelhantes, funda uma coexistência e constitui, para os

sujeitos, uma realidade que é transindividual, assegurando a permanência do mundo. A

coletivização, conforme lembra Tizio (1994), supõe mesmo conjuntos reunidos sob

identificação, ou seja, a partir de um traço, espécie de relação parte/todo a definir o ser. Mas,

se o discurso político pacifica, continua Cevasco (1994), ele se singulariza por uma guerra

contra o semelhante. Ao fabricar um Outro que pode garantir a identidade, ao homogeneizar,

segrega.

Com Lacan, vimos claro como o discurso capitalista permite a articulação entre a

lógica do para todos, estabelecida pela ciência, forçando a exceção de alguns, presente em

expressões como outra raça, outra classe social, outra religião, outro sexo etc. Tais exceções

constituem os efeitos de segregação variáveis, indo de fenômenos relativos à repartição dos

bens oferecidos no mercado à intolerância frente a modos de vida diferentes. A diversidade da

cultura, por exemplo, quando não desaparece ou se esfuma, com a globalização do mundo,

transforma-se em “nacionalismo identitário intolerante que desemboca nos estragos da

purificação étnica e condena as minorias – numerosas – à deportação, à violação e ao exílio”

(CEVASCO, 1994, p.67). Lacan não hesitou em escrever como o capitalismo debilita os laços

de solidariedade e favorecem uma solidão dos sujeitos. Talvez por isso se torne tão importante

lembrar-lhes que é preciso haver esforço coletivo no diálogo em busca do respeito, da

liberdade e da igualdade, tal como propõe os princípios da cartilha de inclusão mencionada no

início deste texto.

Não parece estranho, assim, que sejam fomentados campos propícios ao

desenvolvimento das políticas de ação social para gerir os excessos, os desvios do gozo, ou

seja, da satisfação pulsional, como diria Lacan, objetivando cuidar e, principalmente, prevenir

riscos de perda ou estragos nos vínculos entre os cidadãos, em nome da felicidade e até da

40

liberdade humana. Nesse momento, vale retornar a Arendt, que acreditava na liberdade do

homem. Para ela, os homens não precisam apenas da companhia dos outros para exercer sua

liberdade. Eles precisam de um espaço comum, politicamente organizado, para manifestar

suas capacidades, “pois a liberdade política se expressa num mundo no qual a pluralidade é

parte essencial e produto da ação contínua dos homens”, (BIGNOTTO, 2001, p.118), o que é

impossível, por exemplo, no totalitarismo. O mundo da política não pode ser confundido com

o terreno da intersubjetividade. O milagre da liberdade, para ela, reside no poder de começar

e, se cada homem vem a um mundo que já existia e vai continuar depois de sua morte, diz

Bignotto citando Arendt, ele mesmo é um novo começo. Há, nessa autora, a capacidade

humana de agir e criar nova realidade social.

A psicanálise também crê em uma realidade que é transindividual, conforme já se

escreveu, bem como na possibilidade da ação humana e em seu poder criador. Seus

praticantes estão por ai, em diferentes cantos, não recuando diante das novas demandas

institucionais, culturais. Faz tempo que isso já não é mais um simples sonho freudiano. Sua

incidência na política, no entanto, depende do desejo que promove a pura diferença,

diferentemente do desejo da ciência e do político. De acordo com o que fala Cevasco (1994,

p.69), a psicanálise busca sair da coletivização do gozo para romper o círculo vicioso do

capitalismo, “que faz de toda mais valia um imperativo de gozo e todo mais de gozo um

imperativo de mais valia”. Como faz isso? Os itens desenvolvidos a seguir tratam de

esclarecer essa ação.

3. A AÇÃO DOS PSICANALISTAS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS

A inserção dos psicanalistas nos diversos contextos das políticas públicas não

constitui, propriamente, uma novidade, ela já acontece há alguns anos no Brasil. A

possibilidade de fazer operar o discurso psicanalítico no campo social traz alguns problemas e

várias questões. Principalmente porque, a partir dessa experiência, vemos que alguns

pressupostos considerados clássicos, como o tempo e o chamado setting analítico, têm se

modificado.

A princípio, pode causar estranheza os psicanalistas se preocuparem com as políticas

públicas orientadas para os direitos sociais. No entanto, faz algum tempo que os psicanalistas

de orientação lacaniana têm saído dos consultórios e estendido a ação da psicanálise na

cidade. O trabalho da psicanálise no campo social vem sendo desenvolvido em distintos locais

e contextos, e as transformações no espaço público e sua reflexão no campo social tem sido

41

pauta de encontros e debates entre psicanalistas.

Temas como violência e criminalidade vêm despertando seus interesses, e a

psicanálise tem sido chamada a intervir nestes campos, não somente a partir de sua clínica do

caso a caso, mas formulando uma ação que visa a considerar, não as classificações que

segregam, mas a possibilidade de aparecimento de um sujeito responsável e com direitos.

Essa abertura para operar o discurso psicanalítico em outros contextos tem trazido grandes

contribuições à psicanálise, suscitando novas questões e pontos de impasse.

Um bom exemplo disso é a aplicação da psicanálise nas políticas criminais, sua ação,

não somente na perspectiva da clínica com aqueles que se encontram às voltas com a justiça

por terem praticado atos infracionais, mas também na contribuição que tem oferecido para se

criar uma política criminal que leve em consideração a possibilidade de acolher um sujeito

responsável e, por conseguinte, com possibilidade de estabelecer laços sociais. Trata-se de um

acolhimento que leva em conta os direitos de cada um, sem repetir as políticas planejadas e

executadas nessas áreas, que acabam segregando e excluindo.

Pensar em programas e projetos que trabalhem na perspectiva da inclusão de autores

de ato infracional é algo novo. Tradicionalmente, o infrator sempre foi visto como um fora-

da-lei, devendo ser excluído do campo social. Desde a Antiguidade se tem notícia de que foi a

lei – uma obrigação – a encarregada de barrar os excessos dos homens e impor limites à

convivência. Pensar uma política para os autores de atos infracionais que leve em conta os

direitos representa um desafio.

Tanto Freud quanto Lacan se interessaram pela interlocução entre o direito e a

psicanálise. No entanto, há diferenças entre os dois na maneira de abordá-la. Freud, apesar de

vislumbrar a prática psicanalítica no campo jurídico, não chegou a formalizar as coordenadas

para que isso se efetivasse. Ele recorreu, em diversos momentos de sua obra, ao campo do

direito, principalmente, no que diz respeito aos delitos, já que ele outorgava, como causa da

lei, os crimes de parricídio e incesto. Lacan, por sua vez, nos indicou alguns caminhos para

que o discurso psicanalítico pudesse operar no campo jurídico.

4. PSICANÁLISE, DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS CRIMINAIS: NOVOS

MODOS DE PRATICAR SEM SEGREGAR

Nas sociedades democráticas, o poder judiciário tem a função de dirimir os conflitos

entre os homens. Há poucos séculos, no mundo ocidental, a justiça passou a ser a encarregada

de estabelecer os limites para manter a ordem pública e ela o faz por intermédio da lei. O

42

Direito Penal classifica o que é proibido, tipificando-o como crime, e quem o comete se

sujeita à punição prevista pelo Estado.

Entre as formas de punição que existem, o aprisionamento, a exclusão da liberdade,

tem sido a mais utilizada. A prisão foi um dispositivo criado para o cumprimento da pena de

reclusão. Ao ser idealizada no século XVIII por Jeremy Bentham, objetivava não somente

punir os infratores da lei penal, mas também prevenir novos crimes por meio do exemplo. Era

esse o ideal de Bentham (1787/2000).

O Direito Penal foi instituído considerando a existência de um indivíduo dotado de

razão, que poderia responder por seus atos e, por isso, poderia imputar-lhe uma pena. Todos

os que cometem crimes podem ser penalizados, salvo algumas exceções. Entre elas,

encontram-se os portadores de doença mental, considerados inimputáveis pela justiça, além

dos menores de 18 anos, que recebem as medidas socioeducativas previstas pelo Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA). Eles não vão para as prisões, mas têm recebido o mesmo

tratamento segregatório. Os adolescentes, na maior parte do Brasil, ainda são enviados para

internação, seja em unidades específicas para eles ou até mesmo em estabelecimentos

carcerários, e os loucos para os manicômios judiciais.

As exceções à legislação colocam na cena jurídica outros saberes que não os

tradicionais, o que vem contribuindo para a formulação de políticas que levam em conta

outros modos de responsabilização, que não a punição mediante a perda da liberdade. Em

meio a essa situação, além de outras disciplinas, a psicanálise, cada vez mais, tem sido

chamada a operar neste campo, antes destinado somente aos operadores do direito e à polícia,

e que se fazia cumprir nas instituições prisionais preconizadas por Bentham.

Em Belo Horizonte, alguns psicanalistas vêm se dedicando, não somente à aplicação

da psicanálise no contexto jurídico, mas ainda participando da construção de políticas

públicas e execução de programas que visem o tratamento da violência e do crime nos mais

diversos espaços: penitenciárias, cumprimento de medidas socioeducativas previstas pelo

Estatuto da Criança e do Adolescente, projetos comunitários, acompanhamento de medidas

judiciais para pacientes psicóticos infratores, programas para usuários de drogas,

cumprimento de penas alternativas, entre outras. Por isso, vale precisar qual o

encaminhamento que a psicanálise de orientação lacaniana tem adotado nesses espaços, ou

seja, um pouco do que já é possível formalizar a partir do trabalho de praticantes nessas

situações.

Em todos esses espaços, tem-se em vista a possibilidade de o sujeito ser

responsabilizado, de responder, do seu modo, pelo ato. Se for verdade que a psicanálise

43

mantém o preceito da exigência universal de que o sujeito seja responsável, é também verdade

que essa responsabilidade pode tornar-se possível de vários modos, considerando as

particularidades de cada um. A cada um, uma medida será possível. Cabe a nós construirmos

ficções jurídicas que tornem possível ao sujeito aparecer, desviando-nos do caminho

tradicional da classificação, segregação e exclusão.

A um sujeito adolescente que comete um ato infracional, por exemplo, várias medidas

são possíveis: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade,

liberdade assistida, semiliberdade e, somente como último recurso, a internação. A um

portador de sofrimento mental que passa ao ato, não o isolamento imposto pelo manicômio e

a mordaça, mas a possibilidade de que venha a responder por seu ato utilizando-se dos

recursos que a cidade dispõe para que ele possa, em liberdade, conviver e estabelecer laços no

campo social.

A inserção da psicanálise nos projetos e programas que trabalham com adolescentes

que cometeram infrações constata uma ação do psicanalista no contexto social e jurídico. É

importante salientar que a possibilidade de a psicanálise se inserir neste campo, que há algum

tempo cabia somente às instâncias de controle, deve ser creditada, no Brasil, às possibilidades

abertas pelo ECA, a partir de 1990. O Brasil assinara o acordo internacional para a promoção

dos direitos das crianças e dos adolescentes, mas não havia implantado uma política para a

infância e a adolescência que levasse em consideração esses mesmos direitos. A legislação

existente era discriminatória e segregativa, um “Código de Menores” de 1927, reformulado

em 1979. Em suas duas versões, encontram-se no código expressões que demonstram o

objetivo de controle social a partir da repressão de crianças e adolescentes que, para seus

autores, representavam um perigo para a sociedade e que, portanto, deveriam ser afastadas do

convívio social.

Em 1990, no contexto do processo de democratização do Estado brasileiro e seguindo

a Constituição do país, aprovada em 1988, surgiu uma nova legislação para as crianças e

adolescentes, o já mencionado ECA. Seu objetivo, entre outros, era modificar a concepção

que as leis anteriores tinham sobre a criança e o adolescente. Seu desafio, no que diz respeito

aos atos infracionais cometidos por adolescentes, consiste na implantação de uma política de

direitos para estes.

Acompanhando a evolução da criminologia, observa-se que cada época delimita o que

é o perigo, além de serem adotadas medidas preventivas e punitivas, em relação a quem porta

suas marcas. Toda civilização se ordena em torno de certos ideais e as leis jurídicas

produzidas pela cultura significam tentativas de unir e regular os laços sociais. Sobrevivem

44

ainda em nossos dias os mitos que derivam das concepções ontológicas da chamada

“delinquência” juvenil. Essas concepções entendem o delito como um ente natural, como

parte constitutiva de uma suposta natureza humana. Lacan (1950/1998), ao contrário, trouxe

uma concepção social do delito, na qual cada sistema de justiça constrói um tipo de infrator.

Como já foi dito, ao adolescente que cometeu uma infração, o ECA prevê as medidas

socioeducativas. No lugar da privação da liberdade como a única medida frente ao que escapa

à lei, outras medidas são possíveis.

A responsabilidade pela implantação de cada uma das medidas é compartilhada por

distintas esferas de poder, a Advertência e Obrigação de Reparar o Dano são executadas pelo

Juizado da Infância e da Juventude; as medidas de Prestação de Serviços à Comunidade e

Liberdade Assistida, pelo município; e a Semiliberdade e Internação, pelo Estado.

Em torno de nove anos, Belo Horizonte iniciou a implantação do Programa de

Liberdade Assistida e, mais recentemente, o Programa de Prestação de Serviços à

Comunidade4. Nesses programas, busca-se operar caso a caso, acompanhando o adolescente

na construção possível de outro laço com o social, que não a infração à lei.

Portanto, a ação da psicanálise, com os adolescentes às voltas com atos infracionais,

orienta-se em direção a projetos e programas em que seja possível uma abordagem da lei, na

qual o sujeito possa aparecer e não uma imposição cega do cumprimento de uma lei. Ou seja,

busca promover uma política orientada pelo sintoma do adolescente, como no caso de

Alexandre,5 em medida socioeducativa de Liberdade Assistida, devido ao ato infracional de

furto. Revoltado em ter que cumprir a medida, Alexandre dizia: “Nasci na maloca e vou

morrer na maloca. Tudo que aprendi foi morando na rua”. Ele vivia nas ruas com sua mãe, o

companheiro desta e sua irmã. Sua mãe era viciada em crack e, numa briga, foi morta pelo

companheiro. Antes de ser morta, ela estava para ganhar uma casa da Prefeitura de Belo

Horizonte. Com a morte da mãe, ele e a irmã perderam o direito à casa, por serem menores de

idade. Encaminhados para morarem com uma tia, eles voltaram para as ruas. Alexandre que,

inicialmente, se dizia invisível, aos poucos vai contando sua história, como ele mesmo diz, e

reconstruindo sua vida sem o auxílio da caridade, seja da tia, seja da prefeitura. Passa a morar

4 Inicialmente, o Programa de Liberdade Assistida foi coordenado por Cristiane Barreto e, desde o início de 2007, Márcia Mezêncio é a coordenadora. Ambas são psicanalistas, membros da Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais. No Programa de Prestação de Serviços à Comunidade, implantado mais recentemente, sua coordenadora, Lívia Boareto, parte da orientação da psicanálise no acompanhamento dos adolescentes. 5 Atendido por Carla Capanema, técnica do Programa de Liberdade Assistida da Prefeitura de Belo Horizonte e membro correspondente da seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise. Este caso foi apresentado no 3º Encontro Americano de Psicanálise no relatório Da norma jurídica à exceção à regra, uma torção, do

singular ao universal, elaborado por Maria José Gontijo Salum e Fernanda Otoni de Barros, em Belo Horizonte, agosto de 2007.

45

em uma “baia”6, em um depósito de papéis, e recusa a oferta de ir para um abrigo, dizendo

não ser um menino de rua. Ele conclui que tem uma profissão, é “catador de papéis”. Para

Alexandre, o ato ilegal o levou a ter oportunidades que nunca teria, segundo suas próprias

palavras. Trouxe oportunidades de ter carteira de identidade, de voltar para a escola, de poder

conversar... Alexandre se responsabilizou pelo ato infracional a partir de sua posição de

sujeito, com deveres, mas também com direitos.

Podemos também, a partir do fragmento de um caso de um sujeito psicótico que se

encontra às voltas com a justiça, exemplificar como é possível, a partir da psicanálise, a

responsabilização em sujeitos psicóticos que cometeram crimes. O Programa de Atenção

Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ), do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais,

segue a psicanálise de orientação lacaniana na condução de seus casos e em sua concepção.

Foi concebido e é coordenado pela psicanalista Fernanda Otoni de Barros e busca, na

condução dos casos, a responsabilização em liberdade, já que foi construído como uma nova

ficção jurídica em substituição aos manicômios judiciários.

O caso7 a que nos referimos diz respeito a Carlos, como o chamaremos, um portador

de sofrimento mental, considerado um delinquente de alta periculosidade. Aparecia nos

jornais de sua cidade como estuprador e tinha vários processos por atentado violento ao

pudor, roubo e furto. Não subjetivava nenhum desses atos como seus. Segundo ele, isso tudo

foi inventado para prejudicá-lo.

Logo no início dos atendimentos, Carlos pede a sua psicóloga que lhe arrume um

emprego. Ao lhe ser perguntado o motivo de querer um emprego, ele explica que era para ter

acesso a uma mulher solteira. Se ela o ajudasse, seria recompensada, poderia ficar com o

primeiro salário dele. Explica que faz essa oferta porque sabe que nada é de graça, que para se

obter algo é preciso pagar. Por isso, Nívea intervém dizendo que ele tem razão, que ela está

ali por ser funcionária do Tribunal de Justiça, que paga a ela por seu trabalho. Ele sorri e diz

que a doutora havia entendido e essa intervenção marca a entrada do PAI-PJ no caso.

Posteriormente, relata à psicóloga que “herdou a inteligência poética de Carlos Drummond de

Andrade e sua “tratadora”, como ele a chama, acolhe essa sua invenção delirante. Carlos lhe

dita cartas para que escreva e, a partir de suas cartas, estabelece com ela laços que lhe

possibilita contar-lhe um sonho no qual ela lhe diz: “Vou colocar seu nome aí, mas você não

pode cometer nenhum erro”. Ao escutar este relato a psicóloga lhe pergunta: “erros?” Isso

6 Cubículo onde ficava seu carrinho no depósito de papéis e onde ele separava os papéis que “catava” na rua. 7 Caso acompanhado por Nívia Pimentel Teixeira, do setor de psicologia do PAI-PJ, cujo extrato foi publicado na revista digital Assephallus, no artigo Invenção e responsabilidade na psicanálise aplicada ao judidiário, de autoria de Maria José Gontijo Salum.

46

faz com que ele comece a relatar seus atos infracionais e a assegurar que, se o juiz permitisse

sua saída, ele não cometeria mais erros.

A responsabilidade pelos atos tornou-se possível, a partir desse acompanhamento ou,

como ele anuncia, desse tratamento. De início, Carlos ditava cartas para sua “tratadora”, pedia

que ela escrevesse “assinatura” e assinava. Essas cartas eram, em geral, pedidos de emprego e

de objetos diversos. Dizia que não poderia escrever, pois cometeria muitos erros. Depois do

relato do sonho, ele próprio passa a escrever as cartas e começa a “pagar” sua tratadora com

poesia. Ele solicita uma audiência com o juiz, diz que quer ser ouvido, quer conversar, quer

saber, como ele próprio diz, “a significação de seu juízo”. A equipe do PAI – PJ acolheu a

solicitação, prontificando-se a marcar a audiência.

Esses dois fragmentos e outros que poderiam ser mencionados podem demonstrar que,

na relação do campo jurídico com a psicanálise, é possível buscar uma política de direitos,

que é inclusiva, desde que se leve em conta a inclusão de cada solução particular e não, como

sempre se fez, promover uma segregação em massa nos presídios, na Fundação Estadual do

Bem-estar do Menor (FEBEM) e manicômios. Uma política que, buscando promover a

responsabilização para todos, esteja advertida de que nem todos são iguais perante a lei e cada

um se apresenta e responde a ela de forma particular.

47

REFERÊNCIAS ARENDET, H. (1951).As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo:Cia. Das Letras, 1997. CEVASCO, R. Una inquietud contemporánea: efectos de segregación. Freudiana, Barcelona, n.11, p.64-70,1994. BENTHAM, J. (1787) O panoptico ou a casa de inspenção. Em O panoptico, Belo Horizonte: Autêntica editora, 2000, p. 11-74. BIGNOTTO, N. (2001). Totalitarismo e liberdade no pensamento de Hannah Arendet . Em Hanna Arendt, diálogos, reflexões, memórias, Belo Horizonte: Editora UFMG, p.111-123. FERRARI, I.F. Trauma e segregação. Latusa, Rio de Janeiro, n.9, p.149-162, 2004. FREUD, S. Totem e tabu (1912). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (ESB). Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969. ______O Mal-estar na civilização (1930). ESB. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969. ______Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915). ESB. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969. _______Por que a guerra? (1933) ESB. Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969. GONÇALVES, L.M.D. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e os sujeitos de direitos. Uma tentativa de manutenção do pacto civilizatório. Opção Lacaniana, São Paulo, n.22, p.91-95, ago. 1998. GAUCHET, M. La démocratie contre elle-même. Paris: Éditions Gallimard, 2002 LACAN, J. Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. (1950). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor. 1998

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48

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49

A Inclusão da Cultura e a Cultura da Inclusão1

José Márcio Barros2

1. ALGUNS PRESSUPOSTOS

Os termos aqui relacionados, cultura e inclusão, têm uma dupla e paradoxal relação.

Explicitar a complexidade dessa relação, tanto no campo das ideias quanto na arena de nossas

práticas, parece constituir-se em condição necessária e urgente para que se possa avançar

rumo a uma práxis inclusiva menos compensatória e altruísta e mais comprometida com as

diferenças, com a dignidade humana e a democracia. A inclusão, mais que um problema de

moral positivista que nos encaminharia para o exercício da filantropia, compaixão e

beneficência, constitui-se como uma questão ética, política e de educação.

O substantivo práxis é aqui utilizado de forma proposital e não apenas retórica.

Refere-se à maneira como, para além da crítica meramente conceitual, o desafio parece ser o

de construir um novo sujeito e um novo mundo. Ação e reflexão que se refundam de forma

processual e dinâmica.

Aqui está o centro de minha reflexão.

No campo das ideias, relacionar cultura e inclusão não é tarefa tão fácil quanto se

pode imaginar. Exige um delicado cuidado epistemológico, capaz de evitar que a força da

retórica culturalista e assistencialista simplifique a questão, tomando uma como decorrência

natural da outra. No campo das práticas sociais, da mesma forma, parece não ser suficiente a

declaração bem intencionada de ideais inclusivos. A inclusão não se realiza plenamente na

espontaneidade de fazeres piedosos e muito menos pela ação mágica da consciência subjetiva

de seus modernos agentes. Mais que subjetiva, a experiência da inclusão é política. Mais que

direitos provisórios, a inclusão deve constituir um padrão cultural.

Entretanto, a relação entre cultura e inclusão é marcada pela complexidade e

paradoxalidade, nos termos em que Edgard Morin as define, motivo pelo qual, para além de

uma adesão e engajamento, há necessidade de cuidado e crítica. Nomeio dessa forma o

problema: a relação entre cultura e inclusão não está isenta e ausente dos riscos redutores das 1 Conferência de abertura do Seminário Perspectivas de Inclusão pela Arte e Cultura, realizado pela Pró-reitoria de Extensão - Sociedade Inclusiva – Núcleo de Inclusão pela Arte e Cultura em 15/05/2007. 2 Antropólogo, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC Minas.

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perspectivas antropocêntricas e etnocêntricas. Tanto o antropocentrismo, perspectiva que

atribui ao ser humano centralidade, uma espécie de eixo em torno do qual tudo se situa e é

explicitado, quanto o etnocentrismo, perspectiva que coloca determinado modelo cultural de

humanidade em centralidade e que, assim fazendo, transforma as diferenças em

desigualdades, inscrevem o paradoxo da inclusão exclusiva e da exclusão inclusiva. Aliás,

etimologicamente, inclusão é tanto participação quanto prisão.

Por cultura, pode-se entender todo o processo de aprendizagem decorrente da vida em

sociedade. Cultura é aquilo que nos permite ir além de nossa natureza biológica, fundando

uma natureza efetivamente humana. A experiência cultural é a experiência de constituição do

sujeito social que transcende e transforma o dado natural e inaugura a experiência cultural.

Cultura é, portanto, algo construído no tear de nossas relações sociais, por meio das práticas

de cultivo como as artes e a educação, mas também a partir da busca pela sobrevivência e

produção. Aqui, a condição humana só é possível na e por meio da cultura. Ou, em outras

palavras, é possível afirmar que ninguém está fora da cultura, ao custo de, se assim estiver,

perder sua condição humana.

Mas falar de cultura é também apontar para um processo e um estado de

pertencimento a um conjunto de valores e práticas que oferecem sentido e identidade. A

cultura tanto nos inclui na genérica condição humana quanto nos faz pertencer a um grupo, a

um lugar, nos faz pertencer a determinada matriz de referenciais simbólicos.

Aqui, encontramos a primeira dimensão da paradoxalidade apontada anteriormente.

Há tanto um caráter inclusivo inerente à cultura quanto uma dimensão exclusiva que a

caracteriza.

Por meio da cultura, vivencia-se a experiência inclusiva de fazer parte de algo que nos

é maior e anterior, a condição humana. Mas também, na cultura, surge a perigosa experiência

de nos antagonizarmos à natureza a partir de um antropocentrismo autodestruidor. Nessa

dimensão, se a cultura nos oferece uma natureza humana específica, nos coloca em risco de

disrupção com a natureza de nosso corpo e do ambiente. Há aqui um complexo desafio a ser

enfrentado. A perspectiva antropocêntrica apresenta um grave risco – faz com que quanto

mais humanos nos tenhamos, mais nos ausentemos de nossa natureza biológica e mais nos

distanciemos de uma visão ecossistêmica. A cultura é uma experiência de fratura e destruição

da natureza. A cultura faz com que o ser humano se ausente de sua natureza e agrida a

natureza de seu ambiente. Há, portanto, uma sutil, urgente e permanente necessidade de

vigilância quanto ao que chamamos, invocamos e realizamos sob a denominação de cultura.

51

Se tudo que é humano é cultural, nem tudo que a cultura realiza é portador de humanidade,

porque rompe com a natureza e, por vezes, a nega.

Mas por meio da cultura vive-se, também, o pertencimento a um conjunto de

símbolos, de normas, de ritos e mitos que nos oferecem a experiência da alteridade, ou seja, a

experiência do contraste, da diferença e da distinção. A cultura constrói identidades que são

sempre contrastivas e potencialmente excludentes. A mesma experiência que permite ao

sujeito localizar-se espaço-temporalmente e construir referências inclusivas de pertencimento

a um modo de ver, pensar e estar no mundo, transforma o outro, o diferente, em desigualdade.

Aqui, o etnocentrismo tanto inclui, no próprio, quanto exclui o alheio. Aqui, o risco é o de

negar as diferenças ou o de transformá-la em desigualdades. Mais uma vez, a inclusão e a

exclusão se mostram perigosamente próximas. Aquilo que me inclui me faz pertencer, mas

também me aprisiona. A cultura que me inclui também produz a exclusão do outro.

Cultura e inclusão são realidades paradoxais. Reforçam-se tanto quanto se fragilizam,

afirmam tanto quanto se negam. E nesse redemoinho complexo e contraditório, desenvolve-

se, de forma hábil e cínica, retóricas e práticas que, incluindo de forma exclusiva ou excluindo

de forma inclusiva, impedem que se aponte com firmeza e crítica para o nó do problema.

Não sabemos incluir porque não sabemos operar com a natureza e as diferenças. Delas

nos apropriamos de forma antropocêntrica e etnocêntrica, e assim negamos a natureza e

naturalizamos a cultura.

Por isso, se, por um lado, depredamos os ecossistemas dos quais dependemos tanto,

por outro, tanto negamos nossa natureza submetendo-a a padrões culturais quanto tornamos

naturais determinados padrões culturais. Incluímo-nos ao custo de uma perigosa exclusão.

Excluímo-nos numa sutil aparência de inclusão.

Superar a perspectiva antropocêntrica e etnocêntrica que fundam a aparente

experiência inclusiva representa um desafio sutil e delicado. Por isso o título, “A Inclusão da

Cultura e a Cultura da Inclusão”.

A Inclusão da experiência cultural no enfrentamento prático-teórico da exclusão é

condição para a construção de uma (contra) cultura da inclusão. Muito além da utilização de

padrões e modelos artísticos e estéticos para a sensibilização e a subjetivação da sociedade

para um altruísmo condescendente, que inclui pela superfície, mas mantém a desigualdade,

trata-se de construir deliberadamente (de forma política e pedagógica) uma cultura da

inclusão que não negue a natureza e as diferenças.

52

Não há inclusão sem uma cultura da inclusão, entendida não apenas como

engajamento de artistas em campanhas de sensibilização, mas como a construção sensível de

um modelo de se ver, pensar e viver a natureza das diferenças, tanto quanto as diferenças da

natureza. A cultura define, classifica, constrói fronteiras e abismos. Evidenciar as

contradições e desvelar seus sentidos é pré-requisito para a emergência de outra práxis

inclusiva. Uma inclusão que não se alimente da exclusão. Uma inclusão que seja

pertencimento, mas não aprisionamento. Uma inclusão que politize as diferenças e inaugure

uma plataforma e uma agenda de transformação.

2. UMA POLÍTICA DE INCLUSÃO CULTURAL? – A EXPERIÊNCIA DO MINC

Em 2003, durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi

criada a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, com o

objetivo de iniciar o diálogo para a construção de uma política pública de cultura voltada à

diversidade e às minorias.

Em seu projeto original, a SID trabalhou ancorada no reconhecimento da cultura como

um direito, a promoção e proteção da diversidade cultural como uma necessidade universal

que possibilita a busca da solidariedade entre os povos, a consciência da unidade do gênero

humano e o desenvolvimento da cooperação e intercâmbio entre as culturas.

Os primeiros quatro anos de existência serviram para buscar a concretização de três

ordens de atividades políticas e estratégicas:

• a participação do Estado brasileiro no debate internacional sobre a diversidade

cultural, de maneira mais explícita e direta;

• o debate com instituições e ONGs sobre a diversidade cultural no contexto da

cultura brasileira; e

• a construção de políticas específicas voltadas às diversas formas de expressão

dessa diversidade.

Em todos esses níveis de atuação, a questão da inclusão sempre esteve presente.

Segundo o titular da Secretaria, Sergio Mamberti 3, o final do século XX coloca em revisão os

conceitos de cultura e identidade, forçando a emergência de políticas públicas específicas,

destinadas a realizar correções históricas fundamentais ligadas ao reconhecimento de

situações específicas como as derivadas:

3 Ver no site.

53

• de distinções de classe ou do mundo do trabalho;

• de situações de gênero ou orientação sexual;

• de direitos a partir da situação etária, como os idosos, jovens e crianças;

• de desigualdades derivadas da situação étnica.

Entretanto, mais que o reconhecimento da diversidade como constituinte do

patrimônio cultural da humanidade e da sociedade brasileira, o desafio revela-se maior e mais

difícil: como traduzi-la em ações concretas de política pública? Como, para além do

reconhecimento da diversidade, pode-se instituir a pluralidade como princípio e prática de

inclusão?

Em seu parágrafo segundo, intitulado “Da diversidade cultural ao pluralismo cultural”,

a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural estabelece de forma clara e objetiva a

relação entre o reconhecimento antropológico das diferenças e sua tradução em ações

políticas:

“Em nossas sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir

uma interação harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo

plurais, variadas e dinâmicas, assim como sua vontade de conviver. As políticas que

favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a

vitalidade da sociedade civil e a paz. Definido desta maneira, o pluralismo cultural constitui a

resposta política à realidade da diversidade cultural. Inseparável de um contexto democrático,

o pluralismo cultural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvimento das

capacidades criadoras que alimentam a vida pública.” 4

É dessa forma que acredito fazer sentido o conjunto de ações da Secretaria da

Identidade e da Diversidade Cultural. Ao eleger ações específicas voltadas para as culturas

populares, a atuação com as culturas indígenas, tratadas no plural, a aproximação com a

cultura cigana, com a área da Saúde Mental, o movimento Hip Hop e o seguimento GLTB, o

poder público traz para o interior das decisões sobre a cultura o problema da diversidade

cultural, traduzida como pluralidade e inclusão. As parcerias com a UNE e com o Movimento

dos Sem Terra complementam um conjunto de interlocuções que visam trazer à cena aqueles

segmentos e realidades que, reconhecidos do ponto de vista acadêmico e cultural, não tinham

existência concreta no plano das políticas públicas. Seminários nacionais de políticas públicas

para as culturas populares, oficinas regionais e editais de fomento às manifestações culturais

4 UNESCO, 2001

54

ligadas aos seguimentos minoritários da sociedade brasileira foram as estratégias

implementadas pela instituição visando produzir a inclusão cultural.

Tomar esse quadro como suficiente para a efetiva inclusão cultural dos excluídos

historicamente seria ingênuo. Mas é preciso reconhecer que ninguém inclui o outro por

benevolência ou tolerância passiva. A melhor forma de inclusão é o exercício político da

convivência, especialmente aquela que se tece tanto no cotidiano do trabalho quanto nas

instâncias mais estruturantes.

Não se reconhecerá a cultura das minorias como parte integrante da diversidade

cultural brasileira se os sujeitos e seus interlocutores não ocuparem seus lugares no cenário

político. Da mesma forma, não haverá possibilidade de uma cultura da inclusão, sem que

recursos financeiros sejam destinados às ações específicas.

Mas tudo isso restará como excepcionalidade e alternativa se não enfrentarmos a

ambiguidade da experiência cultural – inclusão e exclusão como duas faces da mesma moeda.

Tal ambiguidade – tratada na primeira parte deste texto – somada à particularidade da cultura

brasileira, na qual a dissimulação dos preconceitos é marca e tradição, oferece o quadro de

complexidade do desafio de pensar a inclusão da cultura e a cultura da inclusão.

Assim, para além da obrigatoriedade do ensino de história da África, como reza a Lei

Federal 10.639/03, para além das medidas implantadas até aqui pelo Ministério da Cultura, a

ampliação do campo político para a discussão e implementação de ações que traduzam a

multiculturalidade em pluralismo cultural se faz necessária e urgente. Nesse sentido, especial

atenção aos meios de comunicação, prioritariamente o rádio e a TV digital, bem como o

espaço da educação formal e informal, constitui, com espaços prioritários para a ampliação

das ações, visando efetivamente à concretização de uma experiência cultural inclusiva.

55

REFERÊNCIAS

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56

Meio ambiente e inclusão social: um paradoxo?

Yasmine Antonini1

Eneida M. Eskinazi Sant’Anna

Geraldo Mendes dos Santos2

1. INTRODUÇÃO (LEGISLAÇÃO, MARCO CONCEITUAL, ETC.)

A questão ambiental se viu restrita ao movimento ambientalista durante muito tempo.

A partir de 1992, quando da conferência Rio 1992, tornou-se tema obrigatório e do interesse

de diferentes grupos, povos e classes sociais.

Nos dias de hoje, mesmo com todo o avanço tecnológico e com os constantes alertas

de experiências anteriores, mostram-se inúmeros os casos de degradação ambiental geradores

de exclusão social. Em Minas Gerais, por exemplo, a rápida degradação da porção de Mata

Atlântica gerou, ao longo da bacia do Rio Doce, um quadro socioambiental com óbvia

exclusão social, expressa por fortes processos migratórios.

O despertar da preocupação com preservação da natureza deve-se, principalmente, à

crise socioambiental sem precedentes que atinge o planeta. O movimento ambientalista

responde, nas últimas décadas, pela construção de novos valores que questionam as formas

tradicionais de pensar a economia, a sociedade e a natureza. Destaca, entre eles, a noção de

cuidado e proteção ao meio ambiente, em face do modelo capitalista implantado desde o

século XIX. Coloca em xeque a noção de progresso, o papel da ciência, o impacto tecnológico

e a ousadia humana perante outras espécies vivas. O ambientalismo questiona as formas de

dominação e exclusão social, buscando novas formas de organização do trabalho contrárias a

interesses predatórios. Chama atenção, ainda, para o fato de que as velhas contradições sociais

refletem-se nos padrões de apropriação e consumo dos recursos naturais.

A Lei 9.795, de 25 de abril de 1999, que dispõe sobre a educação ambiental e constitui

a política nacional de educação ambiental, entre outras providências, expressa no art.1º:

“entendem-se por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a

coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências

1 Doutora em Ecologia. Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto. 2 Doutorando em Biologia de Água Doce e Pesca Interior. Pesquisador Titular III do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, INPA.

57

voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia

qualidade de vida e sua sustentabilidade”.

A legislação ambiental nacional torna explícitas duas vertentes filosóficas ambientais:

o naturocentrismo e o socioambientalismo. O naturocentrismo, vertente mais antiga e radical,

defende a preservação da natureza com o distanciamento do homem, definido como elemento

destruidor do meio ambiente natural. Por sua vez, o socioambientalismo, recém-integrado à

sociedade, defende a preservação do meio ambiente de forma sustentável e com a interação da

sociedade nos processos de busca da qualidade de vida.

Isso se deve ao fato de que o meio ambiente constitui um bem coletivo e sinaliza-se

necessária uma visão abrangente da cidadania, configurada em responsabilidades

compartilhadas e difundidas nos meios de informação, na política, na sociedade e na

economia.

2. O QUE SERIA EXCLUSÃO SOCIAL NO CONTEXTO AMBIENTAL?

Na América Latina, a pobreza, em especial a pobreza crítica, vem se agravando em

números absolutos, pois as reformas econômicas, em especial as microeconômicas, não vêm

surtindo os frutos esperados; muito menos nas zonas rurais afastadas, onde frequentemente se

inserem as áreas protegidas ou Unidades de Conservação (UCs) do continente. Isso se deve,

em grande medida, à situação de abusiva falta de equidade social, particularmente agudas no

Brasil, onde a distância entre ricos e pobres cresce de maneira desmedida.

De acordo com Dourojeanni & Pádua (2001), entre o crescimento da população, a

pobreza, a desigualdade, a exclusão social e a degradação ambiental existe uma relação

grandemente complexa, tornando difícil reconhecer a causa do efeito. No entanto, o resultado

é sempre igual: aumento da pressão sobre os espaços naturais, sobre os recursos naturais e, de

um modo ou de outro, também sobre as UCs.

Ainda de acordo com esses autores, a demografia e a pobreza se somam à redução da

capacidade dos governos para implantar a ordem que as leis demandem. Leis que, de outra

parte, se tornam cada vez mais permissivas.

3. O PAPEL DAS CIDADES NA RESOLUÇÃO DO CAOS

Verificam-se, no dia-a-dia, muitos exemplos de empobrecimento e exclusão social, e

mesmo da sucumbência de comunidades pela deterioração do meio ambiente, devido ao

58

manejo inadequado dos recursos naturais. Essa, no entanto, não é uma característica das

civilizações modernas, pois muitas civilizações antigas, tidas como exuberantes e

“modernas”, se viram forçadas a deixar suas terras ou mesmo sucumbiram ante o manejo

inadequado de seus recursos naturais (DIAMOND, 2005).

No Brasil, as cidades se acham no centro da problemática ambiental, a qual se articula

também com o quadro de exclusão social que vem se aprofundando nas últimas décadas. A

ausência de uma política habitacional traz como resposta a ocupação de áreas ambientalmente

frágeis, como é o caso da beira dos córregos, encostas íngremes, várzeas inundáveis e áreas de

proteção dos mananciais, que constituem a única alternativa para os excluídos do mercado

residencial formal.

Embora cada cidade mostre sua singularidade, do ponto de vista histórico, paisagístico

e mesmo sociocultural, há duas vertentes de problemas nas áreas urbanas que merecem ser

comentadas: uma é a proliferação de automóveis, que vem comprometendo todo o espaço

público antes reservado ao povo; a outra, em parte decorrente daquela, é a falta de

investimentos em habitação popular e, por consequência, a favelização. Esta consiste na

invasão de áreas públicas e privadas e na sua ocupação desordenada, sem nenhum

planejamento técnico, à revelia das licenças governamentais e até do bom senso em termos de

disposição de ruas, praças e áreas de serviços básicos.

A urbanização sem planejamento faz com que grande parcela da população,

geralmente a parcela mais pobre, busque áreas inabitadas nos arredores das grandes cidades.

Áreas vulneráveis, de morros e margens de córregos, normalmente são ocupadas pela

população mais carente. Tais áreas, antes parte da paisagem natural, se tornam áreas de risco.

As pessoas que as ocupam, tentam se livrar de um fator de exclusão social representado pela

falta de moradia ou de renda para pagar aluguel, mas mergulham em outra condição de

exclusão, pois se transformam em agentes de degradação ambiental.

Com a retirada da vegetação, os morros deixam de reter a água das chuvas. Esse

fenômeno é potencializado pela introdução do asfalto em praças, ruas e avenidas, o que acaba

impermeabilizando os solos. Em função disso, as águas das chuvas se deslocam com maior

velocidade e forte poder de erosão, cavando novos terrenos e não raro derrubando casas e

carreando toda sorte de material para os corpos d’água ou para as partes mais baixas, onde

também os problemas sanitários acabam se agravando.

Esse é um dos exemplos clássicos de como pobreza e meio ambiente podem se

integrar, de forma que a mazela ambiental se confunde com a social. Não há como dissociar

59

pobreza das questões ambientais, podendo-se dizer, de maneira triste e constrangedora, que a

pobreza é, ao mesmo tempo, vítima e agente da degradação ambiental.

Em alguns casos, invadidos como se fora campo de batalha, mas geralmente de modo

quase despretensioso, os espaços invadidos logo se transformam em áreas centrais das

cidades. Daí advém novos problemas, decorrentes de um processo de urbanização

incompatível com uma infraestrutura desejável para as cidades, como, por exemplo, a falta ou

deficiência no tráfego de automóveis, na circulação de mercadorias e no bom atendimento às

demandas dos próprios moradores por serviços públicos de saúde, transporte, limpeza,

segurança pública e outros. Naturalmente, tais ocorrências acabam por potencializar ainda

mais os problemas urbanos e onerar ainda mais os custos sociais. Ou seja, se em determinado

momento, a favelização pode se apresentar como uma válvula de escape para a falta de

moradia e outras mazelas, ela acaba gerando outros focos de problemas e novas tensões

sociais, num círculo vicioso e de solução cada vez mais complicada.

Um exemplo típico são as cidades do Norte do país, que se expandem de modo

vertiginoso nas proximidades das florestas, margens de igarapés, baixadas e encostas de

morros. Nelas, a favelização se torna um fenômeno comum. O poder público, então, passou a

gastar somas fabulosas de recursos para tentar solucionar os problemas decorrentes,

especialmente a poluição e a assoreamento dos igarapés e a falta de infraestrutura que acaba

por prejudicar todos os habitantes da cidade e também seus visitantes.

Talvez mais que no campo, a vida nas cidades espelha de maneira clara e contundente

o lastimável quadro do subdesenvolvimento brasileiro. Por se tratar de uma área muito

confinada e com grande aglomeração humana, os problemas ambientais e sociais das zonas

urbanas acabam se imbricando de tal maneira que se torna praticamente impossível

diferenciá-los. Assim, pode-se dizer que eles têm o mesmo conteúdo ou essência, diferindo

apenas na forma em que se apresentam.

Apesar de todos os problemas enfrentados nas grandes cidades, as pessoas do meio

rural ainda preferem deixar o campo. O Brasil viveu um grande êxodo, sem que as cidades se

mostrassem preparadas para tal evento. O “progresso” advindo do aumento populacional nas

cidades resultou em padrões de crescimento precários que afetaram sobremaneira os

processos naturais. Em partes do Brasil, o excessivo, rápido e desordenado uso dos recursos

naturais trouxe lucro e progresso no curto prazo, juntamente com danos ambientais.

Com seu consumo exacerbado e sempre exigindo cada vez mais, recursos naturais

para ampliar suas fontes de bem-estar, além de negócios e renda, os ricos acabam por

contribuir fortemente para o drama da favelização, do desequilíbrio e da poluição ambiental

60

das cidades e do campo. Desse modo, tanto a pobreza como a riqueza, quando mal

administradas e perante a falta de conscientização coletiva, acabam por se imbricarem para

agravar o processo da perda de qualidade do ambiente e da exclusão social. Nesse caso, uma

acaba sendo vítima da outra.

4. ÁGUA PARA TODOS – SAÚDE, CIDADANIA E INCLUSÃO SOCIAL

A água constitui um elemento central na vida dos cidadãos e das cidades. Sua

disponibilidade e qualidade sempre foram determinantes para o sucesso e desenvolvimento

socioeconômico dos povos. A complexidade envolvida na gestão e uso sustentável desse

recurso confronta sociedade e estudiosos em um gigantesco desafio de conciliar sua

preservação com uso em escala crescente. Além de sua importância ambiental, à água

incorpora ainda uma inquietante questão do ponto de vista social: o acesso à água de boa

qualidade configura-se, atualmente, um reflexo da condição econômica. Trata-se de um

paradoxo, visto que a água é vital para a saúde e o desenvolvimento socioeconômico dos

povos.

Menos de 2% da água disponível no mundo é o volume de água doce e menos de

0,001% dela, em forma de rios e lagos, acha-se diretamente disponível para consumo. Essa

acessibilidade limitada continua sendo uma questão central na gestão de tal recurso, mas não

se vê considerada quando se verifica o histórico de impactos a que estão submetidos os

ecossistemas aquáticos. A degradação ambiental promovida pelo homem é de tamanha

magnitude que afeta não apenas os depósitos superficiais, mas também as reservas

subterrâneas de água, com graves consequências previstas para o futuro.

Neste cenário complexo, a apropriação diferenciada da água por segmentos sociais

economicamente favorecidos agrava os riscos de escassez, reforça o desperdício do recurso e

ressalta ainda mais os mecanismos de exclusão social. Segundo dados do IBGE, cerca de 100

milhões de brasileiros não têm acesso à rede de esgotamento sanitário e quase 1/3 da

população brasileira é privada do acesso à água tratada.

Esses dados explicam os impressionantes indicadores de doenças de veiculação hídrica

no país, registrando-se, em pleno século XXI, a ocorrência maciça de doenças crônicas, como

malária, diarréia, cólera, leptospirose, hepatite, dengue, dermatites e muitas outras. Em alguns

países da África, a privação ao saneamento básico assume contornos dramáticos, ao impedir

que mulheres frequentem as escolas, onde não existem instalações sanitárias adequadas. Essa

realidade contribui para a perpetuação de um ciclo histórico de submissão, falta de

61

oportunidades e analfabetismo entre aquelas que são as principais responsáveis pela educação

familiar e gerenciamento doméstico. Não muito distante dessa realidade, o Nordeste brasileiro

também perpetua um ciclo de subdesenvolvimento claramente associado à restrição no acesso

à água potável.

As estimativas globais de exclusão social em função do acesso à água também são

impressionantes. Mais de um bilhão de pessoas no mundo não têm acesso à água de boa

qualidade e grande parte desse percentual concentra-se em países subdesenvolvidos e/ou em

desenvolvimento. Anualmente, mais de 10 milhões de pessoas morrem em todo o mundo, em

decorrência de doenças relacionadas à ingestão de água contaminada e à falta de saneamento,

sendo que 50% dessas vítimas são crianças abaixo de cinco anos de idade (CANDESSUS et

al., 2005).

Some-se a esse quadro o crescente problema da eutroficação das águas, que limita seu

uso para abastecimento e dessedentação animal, pela presença de microalgas tóxicas. A morte

escandalosa de 71 pessoas por toxinas de microalgas em Caruaru, Pernambuco, configura um

registro perturbador do aspecto social associado à questão da água no Brasil: pessoas

procuraram a saúde em uma clínica de hemodiálise, mas encontraram a morte na água

inadequada ao uso hospitalar.

Os múltiplos usos associados à água também dificultam o estabelecimento de

prioridades e democratização em seu uso, já que reproduzem os interesses heterogêneos de

diferentes segmentos sociais que precisam ser harmonizados. Uma das estratégias gerenciais

adotadas para reduzir o desperdício e programar o uso parcimonioso da água é a política da

cobrança pelo seu uso. Polêmico e discutível, esse mecanismo de gestão tem sido

implementado em várias cidades latino-americanas, embora os efeitos exclusivos, associados

a esse mecanismo de gerenciamento, mostram-se preocupantes.

Inevitavelmente, o acesso à água potável se traduz em cidadania e inclusão social. O

conjunto de atividades que regulam sua gestão não pode ser regulado pela ótica exclusiva das

leis de mercado, pois comprometeria substancialmente o forte componente social implícito

em sua estruturação. Populações sem acesso à água de boa qualidade e saneamento são

expostas a doenças, ambientes sem estética e má qualidade de vida. Definir o valor de um

recurso vital à manutenção da vida, ao bem-estar humano e ao desenvolvimento econômico

das sociedades é um desafio ímpar aos envolvidos na gestão de recursos hídricos, ao corpo

legislativo – na elaboração de políticas públicas – e à sociedade em geral. Desafio maior ainda

consiste em equalizar o valor econômico da água ao seu valor social.

62

Talvez nenhum outro recurso natural possa associar tão explicitamente o direito à

cidadania e à dignidade como a água: esse bem determinante em todo o processo de nossa

história, da cultura, de formas de viver e do cotidiano. Envolver a inclusão social em seu

gerenciamento é uma questão capital para assegurar uma sociedade mais justa e

economicamente mais homogênea e harmônica, no uso e conservação desse recurso precioso.

5. MEIO AMBIENTE E INCLUSÃO SOCIAL NA AMAZÔNIA

Embora as questões relativas ao meio ambiente e à exclusão social perpassem as

sociedades de todo o mundo, elas são mais focadas nos países subdesenvolvidos e, de modo

especial, na Amazônia. Em maior parte, isso se deve à grandeza dessa região, às suas imensas

riquezas biológicas, minerais e étnicas, e o que o fato representa como estratégia para o Brasil

e o mundo. Por outro lado, isso se deve também aos graves problemas ambientais que a região

vem enfrentando, como o desmatamento, a extinção de espécies e a produção de gases do

efeito estufa. Por essas razões, abordar-se-á o caso amazônico, por considerá-lo emblemático

da situação brasileira e de vários outros países em idêntica situação.

Para uma abordagem mais adequada desse tema, algumas características estruturantes

da natureza amazônica precisam ser lembradas, pois é a partir delas que todo projeto ou plano

de inclusão social e de preservação ambiental deve se basear, caso se tenha em mente um

desenvolvimento essencialmente sustentável. Tais características dizem respeito à

biodiversidade, representada pelos elementos da floresta e das águas.

A floresta amazônica é a maior do mundo, ocupando uma área de aproximadamente

5,5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 3,2 milhões situam-se em território

brasileiro, equivalente a 27% de todas as florestas tropicais remanescentes no planeta.

O rio Amazonas, junto com milhares de rios, igarapés e lagos, forma uma enorme rede

de cursos d’água que irrigam uma área de, aproximadamente, sete milhões de quilômetros

quadrados, constituindo-se na maior bacia hidrográfica do mundo. Esta se estende por oito

países da América do Sul, sendo que sua maior porção se localiza no Brasil, representando

mais da metade de seu território. Esse sistema aquático lança no Atlântico cerca de 20% de

toda a água doce que entra nos oceanos do mundo. Tamanha é a importância do ambiente

aquático, que a região é denominada de pátria das águas.

A floresta e os rios são extremamente ricos em número de espécies, porém muito

heterogêneos, do ponto de vista biogeográfico. Isso significa que, apesar da aparente

63

semelhança, muitos grupos da fauna e da flora encontram-se limitados a certas áreas. Nesse

caso, generalizações simplistas, focadas apenas no número de espécies animal ou vegetal, no

tamanho de áreas ou na quantidade de corpos d'água têm pouco significado. Além disso, tal

heterogeneidade dificulta planos de exploração da biodiversidade, já que as peculiaridades

variam bastante entre as distintas séries espaciais e temporais.

A heterogeneidade de uma biota é normalmente tratada como biodiversidade. Tanto

uma como outra expressam a diversidade da vida em todas as suas formas e estilos, incluindo

os seres menores como os genes, vírus, bactérias e fungos até os mais conspícuos e, às vezes,

gigantescos, como certas espécies de plantas e animais.

Em temos absolutos de espécies, não há dúvida de que a Amazônia é a mais

diversificada região do planeta, daí dizer-se que ela apresenta uma megadiversidade. Disso

resulta que essa região será a mais afetada, quantitativa e qualitativamente, caso o ritmo de

conversão e destruição de seus ecossistemas venha a aumentar ou mesmo mantenha-se nos

níveis atuais. Afinal, a cada ano, 10 a 20 mil quilômetros quadrados de florestas exuberantes

são queimados para dar lugar àquilo que normalmente se chama de progresso (Ref.).

Outro aspecto importante, relacionado com a diversidade e a complexidade da

Amazônia, consiste no fato de a floresta ser capaz de influenciar e, ao mesmo tempo, ser

influenciada pelas condições climáticas. Cerca da metade das chuvas que caem sobre a região

retornam para a atmosfera por meio do processo de evapotranspiração, o que acaba

favorecendo a formação de novas chuvas que recaem sobre a região e fora dela, especialmente

no Centro-oeste brasileiro.

A variação das chuvas também apresenta decisiva influência sobre os ciclos de subida

e descida das águas dos rios e igarapés, permitindo uma simbiose constante entre os

ambientes terrestre e aquático. Isso significa que a floresta, o clima e as águas se acham

intrinsecamente relacionados e mutuamente dependentes. Significa também que a redução da

cobertura vegetal, pelo desmatamento, deverá repercutir de maneira significativa e até

irreversível sobre o ciclo hidrológico e a vida dos organismos que nela vivem e dela

dependem.

Aqui está, portanto, uma das questões-chave para o perfeito entendimento da proposta

colocada nesta análise, ou seja, como promover a inclusão social, preservando o fantástico

patrimônio biológico amazônico. Seria isso efetivamente viável, no contexto do processo

desenvolvimentista caracterizado na sociedade brasileira, tradicionalmente espoliadora dos

recursos da terra e mantenedora da exclusão? Para tentar responder ou refletir sobre tais

64

questões, seria conveniente uma rápida abordagem sobre alguns aspectos socioeconômicos,

ao lado dos aspectos ambientais, acima mencionados.

Já é de domínio público o fato de que o Brasil vem sendo vítima de um violento

processo de conversão e destruição dos ambientes naturais. Ele se caracteriza pelo avanço da

fronteira agrícola e da pecuária, a partir da região Sul-sudeste e em direção ao Norte,

patrocinado pelos planos governamentais, em nome do desenvolvimento e da integração

nacional. Durante muitas décadas esse processo esteve estacionado na região Sul-sudeste,

depois deslocou para as áreas abertas ou encapoeiradas do Centro-oeste e daí tem avançado

vertiginosamente em direção à floresta amazônica, sobretudo a partir da abertura das estradas

BR 163 (Santarém/Cuiabá), BR/364 (Cuiabá/ Porto Velho/Rio Branco) e BR 319 (Porto

Velho/Manaus).

A partir dessas frentes de penetração, muitas outras estradas secundárias foram

abertas, formando uma malha viária em forma de costela de peixe. Por conta disso, acelerou-

se o processo de expansão, caracterizado inicialmente pela retirada seletiva da madeira,

depois pelo desmatamento generalizado, formação de pastagens e criação de gado, e mais

tarde pela monocultura de soja, milho e outros cereais.

Nos últimos anos, vêm ocorrendo inúmeras iniciativas voltadas para o plantio em larga

escala de cana, para produção de agrocombustíveis, contando com o apoio decisivo do

governo e de maciços investimentos de empresas transnacionais. A expansão dessa fronteira

agrícola vem se processando em escala assustadora. Sua marca mais evidente é a

transformação de madeira em cinza e fumaça, a partir de milhares de queimadas que se

estendem pela periferia da porção-sul da Amazônia, na forma do famoso arco-de-fogo.

A escala também é assustadora pelo fato de que a grande maioria das áreas queimadas

tem apenas duas alternativas inconsequentes: serem abandonadas depois de pequena produção

de subsistência ou destinarem-se à grande produção de grãos para alimentar porcos, galinhas e

cavalos dos países ricos. No caso da atual onda da cana, talvez surja uma terceira alternativa,

mas essa certamente não muito distinta das demais: será, provavelmente, destinada à

produção de combustível para alimentar a frota de automóveis que já entopem as cidades e

podem ser adquiridos com incentivos generosos das empresas e do governo.

Além da destruição inconsequente e irresponsável da floresta, sua queima representa

70% das emanações de gás carbônico produzidas pelo Brasil, sendo esse gás o principal

responsável pelo efeito estufa – mal que vem se acumulando ao longo dos anos e já começa a

dar sinais de destruição desenfreada, colocando em risco até mesmo a sobrevivência humana.

É evidente que isso já esteja provocando profundas incertezas e até medo entre a população,

65

os agentes econômicos e os sistemas de governo. Mantida essa tendência, o futuro da

humanidade poderá ficar bastante comprometido, apesar da atual e generalizada confiança nas

tecnociências.

Ao lado das ameaças protagonizadas pela destruição das florestas e das mudanças do

clima, há que considerar também as mudanças que vêm acontecendo em decorrência das

pressões políticas e socioeconômicas, tendo como sintomas mais aguçados a ocupação ilegal

das terras indígenas e a famigerada cobiça internacional.

Outros elementos complicadores do processo de inclusão social e preservação do meio

ambiente na Amazônia são os desacertos das políticas públicas traçadas para a região.

Destacam-se, entre essas, o incentivo fiscal para empresas danosas ao meio ambiente e aos

interesses das culturas tradicionais, a oficialização do desmatamento como instrumento de

posse da terra, a deficiência ou mesmo a absoluta falta de planejamento para um

desenvolvimento centrado nas potencialidades regionais e a evasão de divisas pela

biopirataria e subsídios insensatos.

Tem-se enfatizado o ambiente selvagem e rural, mas é preciso lembrar que na

Amazônia existem cerca de vinte milhões de brasileiros, mais da metade deles vivendo na

zona urbana. Evidentemente, a inclusão social e a preservação ambiental também devem ser

vistas sob esse prisma, ou seja, a partir da perspectiva do que vem ocorrendo nas cidades de

grande, médio e pequeno porte.

Quanto ao ambiente urbano, o quadro não difere muito do que ocorre na zona rural:

seu meio ambiente vem sendo degradado de maneira impiedosa e as desigualdades sociais

continuam cada vez mais fortes. Exemplos óbvios são o desmatamento das matas ciliares, a

poluição dos igarapés e do lençol freático e a ocupação desordenada do espaço físico.

Com base em tais evidências, pode-se concluir que o cenário futuro da Amazônia se

mostra confuso e inseguro. Dessa maneira, para que essa perspectiva seja revertida, é preciso

medidas radicais e urgentes. Quais são essas medidas é outra grande questão, porém elas só

ocorrerão mediante a efetiva participação dos governantes e a conscientização do povo.

Evidentemente, não há soluções fáceis nem de origem personalística para os graves

problemas ambientais e sociais da Amazônia e do restante do Brasil. Assim, ao invés de

indicá-las nominalmente, é preferível invocar os princípios em que se fundamentam. Em

síntese, estes dizem respeito à ciência e à educação ambiental, incluindo nesta a

conscientização coletiva.

Quanto à abordagem científica, torna-se vital que a região passe por um amplo

processo de zoneamento ecológico e socioeconômico, como forma de se orientar o processo

66

de ocupação, determinando-se as áreas prioritárias ou potencialmente adequadas para as

distintas atividades humanas ou mesmo simples preservação. Uma boa medida para isso seria

a realização, em toda a Amazônia brasileira, de um amplo programa de levantamento das

aptidões dos solos, das potencialidades bioecológicas e das frentes de ocupação humana, de

modo semelhante ao que foi feito com o RADAM, na década de 70. Os sofisticados recursos

tecnológicos hoje disponíveis, sobretudo nas áreas de sensoriamento remoto, poderiam servir

bem a essa tarefa.

É evidente que a abordagem científica não deve constituir-se apenas numa instância

para quantificação de séries de dados sobre produção, potencialidades e atividades

desenvolvidas nas diferentes escalas de espaço e tempo. Tampouco, num álibi ou justificação

técnica para implantação dos projetos oficiais e oficiosos. Ao contrário, ela deve constituir-se

numa instância competente e eficaz para criar e direcionar as ações governamentais e

privadas, fundamentais para a implementação do processo de desenvolvimento

autossustentável da região.

A abordagem científica não pode adotar a degenerada visão do homem como ser

superior e solitário, a interpretar a natureza como um baú de bens a serem utilizados, mas um

lar a ser cuidado e compartilhado entre todas as raças e todos os seres, mesmo se considerados

inferiores nas escalas taxonômicas. Isso significa que, embora disponha de todos os seres do

planeta para sua sobrevivência e desenvolvimento, o homem deve tratá-los com a dignidade e

respeito que merecem.

Quanto à educação ambiental, talvez por constituir-se em tema relativamente novo no

contexto amazônico e mesmo brasileiro, é oportuno tecer alguns comentários sobre seu

conceito e abrangência. Trata-se do processo de incorporação do componente ambiental no

processo de ensino e aprendizagem. Ela diz respeito à estruturação de uma pedagogia

moderna, centrada no senso de cidadania plena e na incorporação dos valores ambientais nos

sistemas econômicos. Ela também estabelece um vínculo novo entre a humanidade e a

natureza, uma nova razão preocupada em manter as condições necessárias para a

sobrevivência de muitas espécies ameaçadas, inclusive a própria espécie humana.

É fácil perceber que a educação ambiental faz parte dos movimentos populares em

defesa dos recursos naturais de que dependem. Faz parte também da própria economia de

mercado, já que a exaustão dos recursos naturais e a perda da qualidade ambiental também

acabam por afetá-la, mais cedo ou mais tarde. Portanto, num contexto mais geral e sistêmico,

a educação ambiental pode ser vista como um sistema de filosofia globalizadora de valores

científicos, políticos e éticos, em prol da sociodiversidade. Nesse sentido, a educação

67

ambiental deve se primar por uma postura dialógica, democrática e solidária, e que vise

resgatar a dignidade e os legítimos direitos do homem em usufruir um ambiente saudável.

Por abrigar em seu ideário a efetivação de uma sociedade planetária solidária, talvez

seja a educação ambiental uma das poucas, senão a única instância capaz de contrapor-se aos

princípios equivocados que vêm norteando a educação formal há séculos.

Embora útil em muitos aspectos e ainda bastante valorizada, a educação formal tem

pecado pelo servilismo aos interesses capitalistas, inspirados nas ideias de egoísmo,

competição, competitividade, acumulação e abuso dos bens. Nessa lógica, o homem deve ser

o dono do mundo. Num sistema como esse, o ser humano não passa de um sujeito consumista

e para o qual o processo educativo só tem fundamento se estiver aparelhado e voltado para a

fama, a eficiência econômica e a rentabilidade financeira.

Por outro lado, a educação ambiental parece alicerçar-se nas ideias de cooperação,

colaboração e uso compartilhado dos bens, já que esses se enquadram num complexo

sistêmico, do qual o homem não é tido como dono, mas partícipe do mundo.

Mesmo constituindo-se num processo educacional revolucionário e inovador em seus

princípios, este não deve ser visto como fim em si mesmo, mas um instrumento de apoio e

promoção social, inspirador do altruismo e orientador da sociedade na busca incessante de um

caminho seguro e de um destino feliz para todos. Se não todos, ao menos a maioria.

Antes de concluir esse raciocínio, seriam convenientes algumas considerações sobre o

sentido de meio ambiente e inclusão social, já que são termos básicos do título desta resenha.

Talvez mais que à ciência, esses termos se vêem associados a uma representação

social, pois não apresentam a coerência e a universalidade típicas dos enunciados científicos

e, não raro, são utilizados de modo impróprio, fora do devido contexto.

O meio ambiente não é apenas o conjunto de elementos físicos, biológicos,

geográficos que nos cercam, mas igualmente os elementos socioculturais, cognitivos e

racionais do homem. Ou seja, trata-se de uma unidade, um todo indissociável e em interação

permanente; um sistema funcional e harmônico que os gregos clássicos denominavam de

Physis.

Inclusão social é uma contraposição moderna a uma situação crônica de exclusão em

que a grande maioria das pessoas vive sem possibilidades de acesso a certos bens da natureza

e das riquezas e comodidades produzidas pelas próprias sociedades de que fazem parte. Daqui

se conclui que meio ambiente e sociedade constituem instâncias que se sobrepõem, se

imbricam e se complementam. É na interface de ambas que o homem realiza suas ações e

sonha.

68

Nesse sentido, a inclusão social só se efetivará em um meio ambiente saudável e uma

educação ambiental que a integre. Essa integração se faz em todos os níveis e campos, mas

convém aqui destacar o conhecimento científico, a educação integral, o senso de cidadania e

os valores éticos. Esses são os instrumentos que a sociedade em geral e cada pessoa em

particular devem colocar em ação com vistas à melhoria das condições do meio ambiente e da

inclusão social. Sem esse objetivo utópico, mas sinalizador para toda a humanidade, os

instrumentos disponíveis para o homem se tornam estéreis, perdem seu sentido e deixam de

atender à sua principal finalidade, qual seja, a construção de uma sociedade verdadeiramente

digna, solidária, sustentável.

69

Por que agir contra seus próprios interesses? Ou, como explicar que o poder, em suas variadas formas, tem levado

milhões de pessoas a defenderem interesses que não os seus e muitas vezes são contra os seus?

Jose Luiz Quadros de Magalhães1 Quais são os reais jogos de poder que se escondem atrás das representações do mundo

contemporâneo? A representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações

sociais, desde as comunidades primitivas até os nossos dias complexos. Representar é

significar. Não utilizo aqui o termo como representação política, mas representação como

reprodução do que se pensa; como reprodução do mundo que se vê e se interpreta e, logo,

como atribuição de significado às coisas. Representação é exibir ou encenar.

A representação pode, portanto, ajudar a compreender as relações de poder ou pode

ajudar a encobri-las. O poder do Estado necessita da representação para ser exercido e, neste

caso, a representação sempre mostra algo que não é, algumas vezes do que deveria ser, mas,

em geral, propositalmente, o que não é. Representação pode, de um lado, ao distorcer a

aparência, revelar o que se esconde atrás desta2 e, de outra forma, encobrir os reais jogos de

poder, os reais interesses e as reais relações de poder.

1 Doutor em Direito. Professor do Mestrado da Universidade Presidente Antônio Carlos, UNIPAC. 2 Carlo Ginsburg menciona o estranhamento e o distanciamento como mecanismos que permitem enxergar o real escondido pelas representações. No estranhamento, a arte ao distorcer a imagem do real revela as relações reais escondidas pela imagem. A pompa do poder, os discursos políticos, a cobertura da mídia e sua pretensa isenção, encobrem a falibilidade e a insegurança do humano no poder. A oratória e sua forma escondem a ausência de conteúdo ou um conteúdo que significa o oposto do que diz significar. A isenção da mídia encobre a distorção dos fatos, a manipulação da opinião. Isso nos leva a pensar por que exércitos de pessoas ontem e hoje defendem bravamente interesses que não só não são os seus, como são contra os seus. O melhor exemplo é dos cães de guarda do sistema, sempre tão explorados pelo próprio sistema: mais ou menos como o policial que dá a vida para proteger a propriedade do latifundiário. A ordem que ele pensa defender não é a sua ordem. A ordem que ele pensa defender é contra ele, seus filhos, seus pais, sua mulher e seus sonhos. Ler GISNSBURG, Carlo. Olhos

de madeira, editora Companhia das Letras, São Paulo, 2001.

70

Várias são as formas de dominação. Tem poder quem domina os processos de

construção dos significados dos significantes3. Tem poder quem é capaz de tornar as coisas

naturais, “a automatização das coisas engole tudo, coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo

da guerra4”. Diariamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas

vezes sonhos que não nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida

social e privada nos leva a automação a que se refere Ginsburg. A automação nos impede de

pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há por que

pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonhá-lo. Basta repetir o roteiro

previamente escrito e repetido pela maioria. Tem poder quem é capaz de construir o senso

comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se eu tenho

certeza, não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza.

A dominação passa pela simplificação das coisas: o bem e o mal; darth vader e lucky

skywalker; a democracia e o fundamentalismo; o capitalismo e o comunismo. Duas técnicas

comuns neste processo de dominação são: a nomeação de grupos, criando identidades ou

identificações, e a explicação de uma situação complexa por meio de um fato particular real.

O problema não é que o fato particular seja real – o problema consiste na explicação de algo 3 Os significantes são os símbolos. Exemplo: a palavra liberdade é um significante composto de signos diversos. A combinação das letras LIBERDADE resulta na palavra que ganha sentido ou significados diferentes em diferentes épocas e lugares. O texto não existe se não for lido e, a partir do momento que é lido, são atribuidos sentidos aos seus significantes. É impossível não interpretar – e interpretar significa atribuir sentido – o que, por sua vez, significa jogar toda uma carga de valores, de pré-compreensões que pertencem a uma cultura específica, e mesmo a pessoas específicas. 4 GINSBURG, Carlo. Olhos de Madeira, ob.cit. p.16. Nessa página, Gisnsburg cita Chklovski, que diz o seguinte a respeito do estranhamento: “Para ressuscitar nossa percepção da vida, para tornar sensíveis as coisas, para fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da coisa, uma sensação que deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte se serve de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da forma, com a que tende a tornar mais difícil a percepção e prolongar sua duração. Na arte, o processo de percepção é de fato um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir de uma coisa; para ela, o que foi não tem a menor importância”.

71

complexo com um exemplo particular que mostra uma pequena parte do todo que ele quer

explicar. Comum assistir a esse tipo de geração de preconceito na mídia, diariamente. Um

exemplo comum diz respeito à recorrente crítica ao estado de bem-estar social: o estado de

bem-estar social tem uma história longa e complexa, que apresentou e apresenta fundamentos,

objetivos e resultados diferentes em momentos da história diferentes e em culturas e países

diferentes. Entretanto, é comum ouvirmos, inclusive de intelectuais, que o Estado social é

assistencialista (ou pior, clientelista) e logo gera pessoas preguiçosas que não querem

trabalhar.

O processo ideológico distorce a realidade e cria certezas construidas sobre fatos

pontuais que procuram explicar uma situação complexa. O elemento de dominação presente

procura construir certezas na opinião pública, uma vez que a afirmação vem acompanhada de

um fato real que a pessoa pode constatar e a televisão o faz ao trazer a imagem. Portanto, a

partir de uma situação que efetivamente ocorre, mas de longe não pode ser utilizada para

explicar a complexidade do tema “estado de bem-estar social”, quem detém a mídia constrói

certezas e as certezas são o caminho curto para o preconceito. Quanto mais certezas as

pessoas tiverem, quanto mais preconceituosas forem as pessoas, mas facilmente elas serão

manipuladas por quem detém o poder de criar essas “verdades”. A certeza é inimiga da

liberdade de pensamento e da democracia enquanto exercício permanente do dialogo. Quem

detém o poder de construir os significados de palavras como liberdade, igualdade,

democracia, quem detém o poder de criar os preconceitos e de representar a realidade a seu

modo, tem a possibilidade de dominar e de manter a dominação. Entretanto, esse poder não é

intocável. A dominação tem limites e esses limites não são ficções cinematográficas.

Esse poder encoberto pela representação distorcida (propositalmente distorcida)5

funda-se em ideologias, em mentiras.6 A grande mentira em que estamos mergulhados é a

5 Importante lembrar que não negamos a condição autopoiética da vida. Somos seres interpretativos. Tudo é interpretação e a interpretação é condicionada por toda condição humana. A representação distorcida com o objetivo de manipulação é feita com esse objetivo. Estamos aqui falando de honestidade nas comunicações. Honestidade dos argumentos utilizados no diálogo democrático. A representação distorcida que encobre os jogos de poder é desonesta. O objetivo é dominar, enganar e não dialogar. 6“...a ideologia oculta o caráter contraditório do padrão essencial oculto, concentrando o foco na maneira pela qual as relações econômicas aparecem superficialmente. Esse mundo de aparências constituído pela esfera de circulação não só gera formas econômicas de ideologia, como também é um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem, onde reinam a liberdade e igualdade. (O Capital I, cap. VI) “Sob este aspecto, o mercado é também a fonte da ideologia política burguesa: a igualdade e a liberdade são, assim, não apenas aperfeiçoadas na troca baseada em valores de troca, como também a troca dos valores de troca é a base produtiva real de toda igualdade e liberdade. (Crundise, Capítulo sobre o capital) “Mas é claro que a ideologia burguesa da liberdade e da igualdade oculta o que ocorre sob o processo superficial de troca, onde essa aparente igualdade e liberdade individuais desaparecem e revelam-se como desigualdade e falta de liberdade.” (Dicionário de pensamento

marxista, editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).

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mentira do mercado, da liberdade econômica, fundada numa naturalização da economia,

como se esta não fosse uma ciência social, mas uma ciência exata. A matematização da

economia sustenta a insanidade vigente.

A força da ideologia se mostra quando ela é capaz de fazer com que as pessoas,

pacificamente, concordem com o assalto privado aos seus bolsos. É impressionante a

incapacidade de reação contra o sistema financeiro que furta do trabalhador, diariamente, sem

que este esboce alguma reação. A falta de reação pode se justificar pela incapacidade de

perceber a ação ou da aceitação da ação como algo natural. Tudo isso encontra fundamento

em uma grande capacidade de geração de representações nas quais as pessoas passam a viver.

Viver artificialmente em um mundo que não existe: matrix.

Se as pessoas acreditam que a história acabou, que chegamos a um sistema social,

constitucional e econômico para o qual não existe alternativa, pois ele é natural, não há saída.

Para essas pessoas, a alternativa que está gritando em seus ouvidos não é ouvida, a alternativa

que está em seu campo de visão não é percebida pela retina.

Se a economia não é mais percebida como ciência social, se o status de suas

conclusões passa para o campo da ciência exata, logo a economia não pode mais ser regulada

pelo Estado, pelo Direito, pela democracia. Não posso mudar uma equação física ou

matemática com uma lei. De nada vai adiantar. A matematização da economia é a grande

mentira contemporânea. Se a economia é uma questão de natureza, se a economia não é

história, quem pode decidir sobre a economia são os sábios e jamais o povo. Isso ajuda a

entender, por exemplo, como um governo que se pretendia de esquerda adota uma política

econômica conservadora de direita. Essa é a ideologia que sustenta um mundo governado pelo

desejo cego de poder, dinheiro e sexo. A razão não manda no mundo, jamais mandou. O

desejo conduz o ser humano. O problema não é o desejo comandar. O problema é que não são

os nossos desejos que comandam, mas os desejos de poucos que nos fazem acreditar que seus

desejos são os nossos desejos.7

7 Algumas palavras problemáticas apareceram no texto: ideologia e desejo. Palavras cheias de sentidos diversos, localizadas no tempo e no espaço. A palavra ideologia aparece no sentido marxista: “Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciaram diretamente o conceito de ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica à religião desenvolvida pelo materialismo francês e por Feuerbach e, de outro, a crítica da epistemologia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito realizada pela filosofia alemã da consciência (ver idealismo) e, particularmente, por Hegel. Não obstante, enquanto essas críticas não conseguiram relacionar as distorções religiosas ou metafísicas com condições sociais específicas, a crítica de Marx e Engels procura mostrar a existência de um elo necessário entre formas “invertida” de consciência e a existência material dos homens. É essa relação que o conceito de ideologia expressa, referindo-se a uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais (ver contradição) e as oculta. Em consequência disso, desde o início, a noção de ideologia apresenta uma clara conotação negativa e critica.” (Dicionário de pensamento marxista, editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001, p.184).

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A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada para o poder

econômico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek, “a luta pela hegemonia

ideológico-política é por consequência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente

experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas8”. Uma

expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão

“Direitos Humanos”. Os Direitos Humanos são históricos e, logo, políticos. A naturalização

dos Direitos Humanos sempre foi um perigo, pois coloca na boca do poder quem pode dizer o

que é natural, o que é natureza humana. Se os Direitos Humanos não são históricos, mas são

direitos naturais, quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Se

afirmamos os Direitos Humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos

autores da história e, logo, o conteúdo desses direitos é construído pelas lutas sociais, pelo

diálogo aberto em que todos possam fazer parte. Ao contrário, se afirmamos esses direitos

como naturais, fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os Direitos Humanos

do livre uso democrático e o transferimos para outro. Esse outro dirá o que é natural. Quem

diz o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza?

Neste pequeno ensaio, vamos buscar enxergar, por detrás das representações

ideológicas do mundo que encobrem o real jogo de poder, os reais interesses escondidos pelos

discursos e quais os mecanismos são utilizados para a dominação. Principalmente, entender

como legiões de pessoas são levadas a agir contra si mesmas e como os cães de guarda do

sistema agem contra eles próprios e tudo o que eles dizem proteger.

1. PROFANAÇÃO

O pensador Giorgio Agamben9 faz uma importante reflexão a respeito da construção das representações

e da apropriação dos significados: o que o autor chama de sacralização, como mecanismo de subtração do livre

uso das pessoas, as palavras e seus significados; coisas e seus usos; pessoas e sua significação histórica.

O autor começa por explicar o mecanismo de sacralização na Antiguidade. As coisas consagradas aos

deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas. Há uma subtração do livre uso e do comércio das

pessoas. A subtração do livre uso representa uma forma de poder e de dominação. Assim, consagrar significa

retirar do domínio do direito humano, constituindo sacrilégio violar a indisponibilidade da coisa consagrada.

Ao contrário, profanar significa restituir ao livre uso das pessoas. A coisa restituída é pura, profana,

liberada dos nomes sagrados e, logo, livre para ser usada por todos. O seu uso e significado não estão

8 ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l´intolérance. Climats, 2004, Paris, p.18. Interessante não apenas ler esse livro, como a obra desse fascinante pensador esloveno. Vários de seus livros já foram traduzidos e publicados no Brasil: Bem-vindo ao deserto do real e As portas da revolução são duas obras importantes. 9 AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris, 2005, Editora Payot et Rivages. As reflexões e interpretações livres desenvolvidas neste tópico são todas a partir do texto do filósofio Giorgio Agambem.

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condicionados a um uso especifico, separado, das pessoas. A coisa restituída ao livre uso é pura, no sentido de

que não carrega significados aprisionados, sacralizados.

Concebendo a sacralização como subtração do uso livre e comum, a função da religião é de separação.

A religião, para o autor, não vem de “religare”, religar, mas de “relegere”, que significa uma atitude de escrúpulo

e atenção que deve presidir nossas relações com os deuses; a hesitação inquietante (ato de relire), que deve ser

observada para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une os homens aos deuses,

mas sim aquilo que quer mantê-los separados. A religião não é religião sem separação. O que marca a passagem

do profano ao sagrado é o sacrifício.

O processo de sacralização ocorre com a junção do rito com o mito. É pelo rito, que simboliza um mito,

que o profano se transforma em sagrado. Os sacrifícios são rituais minuciosos, nos quais ocorre a passagem para

outra esfera, a esfera separada. Um ritual sacraliza e pode devolver ou restituir a coisa (ideia, palavra, objeto,

pessoa) à esfera anterior. Uma forma simples de restituir a coisa separada ao livre uso é o toque humano no

sagrado. Esse contágio pode restituir o sagrado ao profano.

A função de separação, de consagração, ocorre nas sociedades contemporâneas em diversas esferas, nas

quais o recurso ao mito, juntamente com rito, cumpre uma função de separação, de retirada de coisas, ideias,

palavras e pessoas do livre uso, da livre reflexão, da livre interlocução, criando reconhecimentos sem

possibilidade de diálogo. A religião como separação, como sacralização, há muito invadiu a política, a economia

e as relações de poder na sociedade moderna. O capitalismo de mercado é uma grande religião que se afirma

com a sacralização do mercado e da propriedade privada. As discussões que ocorrem na esfera econômica são

encerradas com o recurso ao mito para impor uma ideia sacralizada a toda a população. No espaço religioso do

capitalismo, não há espaço para a racionalidade discursiva, pois qualquer tentativa de questionar o sagrado

constitui sacrilégio. Não há razão e sim emoção no espaço sacralizado das discussões de política econômica. Por

isso os proprietários reagem com raiva à tentativa de diálogo, pois, para eles, esse diálogo significa um

sacrilégio, questiona coisas e conceitos sacralizados há muito tempo.

Esse recurso está presente no poder do Estado e em rituais diários do poder: a posse de um juiz, de um

presidente, a formatura, a ordenação de padres e outros rituais mágicos transformam as pessoas em poucos

minutos, separando a pessoa de antes do ritual para uma nova pessoa após o ritual. Isso ganha tanta força, no

mundo contemporâneo, que várias pessoas que frequentam um curso superior hoje não pretendem adquirir

conhecimentos: o processo de passagem por um curso não é para adquirir conhecimentos, mas para cumprir

créditos (até a linguagem é econômica) para, no final, passar pelo rito que o transformará de maneira mágica em

uma nova pessoa. O objetivo é o rito, a certificação da passagem por meio do diploma e não a aquisição do

conhecimento. O espaço universitário vem sendo transformado pela religião capitalista em algo mágico, onde o

conhecimento a ser adquirido no decorrer de um processo que deveria ser transformador perde importância em

relação ao rito (a formatura) e ao mito (o diploma).

Como resistir à perda da liberdade? Como resistir à sacralização das relações sociais, econômicas e logo

à perda da possibilidade de fazer diferente, de fazer livremente o uso das coisas, das palavras, das ideias? Como

se opor à subtração das coisas ao livre uso? Como se opor à sacralização de parte importante de nosso mundo, de

nossa vida? A palavra que Agambem usa para significar essa possibilidade de libertação é “negligência” que

pode permitir a profanação da coisa sacralizada.

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Não é uma atitude de incredulidade e indiferença que ameaça o sagrado, isso pode até fortalecê-lo.

Tampouco o confronto direto. O que ameaça o sagrado é uma atitude de negligência. Negligência entendida

como uma atitude, uma conduta simultaneamente livre e distraída perante as coisas e seus usos. Não é ignorar a

coisa10 sacralizada, mas prestar atenção na coisa sem considerar o mito que sustenta sua sacralização.

Negligência, nesse caso, significa desligar-se das normas para o uso. Adotar um novo uso descompromissado de

sua finalidade sagrada, ou seja, de sua função de separar. Logo, profanar significa liberar a possibilidade de uma

forma particular de negligência que ignora a separação, ou antes, que faz uso particular da coisa.

A passagem do sagrado para o profano pode corresponder a uma reutilização. Muitos jogos infantis

(jogo de roda; balão; brincadeiras de roda) derivam de ritos, de cerimônias para a sacralização, como uma

cerimônia de casamento. Os jogos de sorte, de dados, derivam das práticas dos oráculos. Esses ritos separados de

seus mitos ganharam um livre uso para as crianças. O poder do ato sagrado é a consagração do mito (a história) e

o rito que o reproduz. O jogo (negligência) desfaz essa ligação. O rito sem o mito vira jogo, é devolvido ao livre

uso das pessoas. O mito sem o rito perde o caráter sagrado, vira uma história. Importante lembrar que

negligência não significa falta de atenção. Uma criança, quando joga, tem toda a atenção no jogo. Ela apenas

negligencia o uso sagrado ou o mito que fundamenta o rito. A criança negligencia a proibição.

Devemos dessacralizar a economia, o direito, a política, devolvendo essas esferas ao livre uso do povo;

construir novos usos livres.

Numa época em que a dessacralização é fundamental diante da dimensão que a sacralização tomou, as

pessoas, em meio ao desespero, buscam um retorno ao sagrado em tudo. O jogo como profanação, como uso

livre, mostra-se hoje decadente. As pessoas parecem incapazes de jogar e isso se demonstra com a proliferação

de jogos prontos, sacralizados, com regras herméticas, nos quais os novos usos se apresentam quase impossíveis

ou invisíveis. Os jogos televisados como grandes espetáculos de massa acompanham a profissionalização e a

mitificação dos jogadores (os ídolos).

A secularização dos processos de sacralização que dominam as sociedades contemporâneas permite que

as forças de separação permaneçam intactas, sendo apenas mudadas de lugar. A profanação de maneira diferente

neutraliza a força que subtrai o livre uso, neutraliza a força do que é profanado. Trata-se de duas operações

políticas: a primeira mantém e garante o poder por meio da junção do mito e o rito agora em outro espaço; a

segunda desativa os dispositivos do poder: separa o rito do mito, permitindo o livre uso.

O capitalismo é mostrado por vários autores como um espaço de secularização dos processos de

sacralização. Max Weber mostra o capitalismo como secularização da fé protestante. Benjamin demonstra que o

capitalismo se constitui em um fenômeno religioso que se desenvolve de forma parasitária a partir do

cristianismo.

Para Giorgio Agambem, o capitalismo reúne três fortes características religiosas específicas:

a) É uma religião do culto, mais do que qualquer outra. No capitalismo, tudo tem sentido relacionado

ao culto e não em relação a um dogma ou ideia. O culto ao consumo; o culto à beleza; à velocidade; ao corpo; ao

sexo etc.

b) É um culto permanente, sem trégua e sem perdão. Os dias de festas e de férias não interrompem o

culto, mas, ao contrário, o reforça.

10 Coisa aqui significa ideias, objetos, pessoas, palavras, animais, ritos, danças etc.

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c) O culto do capitalismo não é consagrado à redenção ou à expiação da falta, uma vez que é o culto

da falta. O capitalismo precisa da falta para sobreviver. O capitalismo cria a falta para então supri-la com um

novo objeto de consumo. Assim que esse objeto é consumido, outra falta aparece para ser suprida. O capitalismo

talvez seja o único caso de um culto que, ao expiar a falta, mais a torna universal.

O capitalismo, por ser o culto, não da redenção e sim da falta, não da esperança, mas do desespero, faz

com que esse capitalismo religioso não tenha como finalidade a transformação do mundo, mas sim sua

destruição.

Existe, no capitalismo, um processo incessante de separação única e multiforme. Cada coisa é separada

de si mesma, não importando a dimensão sagrado/profano ou divino/humano. Ocorre uma profanação absoluta,

sem nenhum resíduo que coincida com uma consagração vazia e integral. Ou seja, o capitalismo profana as

ideias, objetos, nomes não para permitir o livre uso, mas para ressacralizar imediatamente. Um automóvel não é

mais um objeto usado para o transporte, mas é um objeto de desejo que oferece – para quem compra status –

poder, velocidade, emoção, reconhecimento. O consumidor em geral não compra o bem que pode transportá-lo

da casa para o trabalho e do trabalho para casa ou para qualquer outro lugar. O que o consumidor compra não

pode ser apropriado, pois o que é consumível é inapropriável. O consumidor compra o status, o reconhecimento,

a ilusão de poder, a velocidade, e isso não pode ser apropriado, desaparecendo à medida que é consumido. Trata-

se de um fetiche incessante. Ao conferir um novo uso a ser consumido, qualquer uso durável se torna impossível:

essa é a esfera do consumismo.

Na lógica da sociedade de consumo, a profanação torna-se quase impossível, pois o que se usa não é o

uso inicial do objeto, mas o novo uso dado pelo capitalista. Logo, o que se consome se extingue e desaparece e,

portanto, não lhe pode ser dado novo uso. Não há possibilidade de liberdade dentro desse sistema. O novo uso, o

da liberdade, exige enxergarmos esse processo de aprisionamento da lógica capitalista consumista.

O consumo pode ser visto como uso puro que leva à destruição da coisa consumida. O consumo é,

portanto, a negação do uso, uma vez que há a negação do uso que pressupõe que a substância da coisa fique

intacta. No consumo, a coisa desaparece no momento do uso.

A propriedade é uma esfera de separação; um dispositivo que desloca o livre uso das coisas para uma

esfera separada, que se converte, no Estado moderno, em direito. Entretanto, o que é consumido não pode ser

apropriado. Os consumidores são infelizes nas sociedades de massa, não apenas porque consomem objetos que

incorporam uma não-aptidão para o uso, mas também, sobretudo, porque eles acreditam exercer sobre essas

coisas consumidas o seu direito de propriedade. Isso é insuportável e torna o consumo interminável. Como não

me aproprio do que consumi tenho que consumir de novo e para alimentar a ilusão de apropriação. Essa

escravidão ocorre pela incapacidade de profanar o bem consumido e pela incapacidade de enxergar o processo

em que o consumidor se vê mergulhado até a cabeça.

2. MATRIX: O REAL EXISTE

O real existe. O mundo ocidental vem se reencontrando com seu passado, quando oriente e ocidente,

materialismo e espiritualismo, não eram cuidadosamente separados. Em um desses reencontros, a ideia de

autopoiesis como essencial à vida é retomada. Um desses reencontros está na obra de dois biólogos chilenos,

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Humberto Maturana e Francisco Varela, que, após experiências com a visão de animais, reconstroem o conceito

de autopoiesis como condição de qualquer ser vivo.

Um pressuposto fático, e não apenas teórico, é a condição de, enquanto vivos, estarmos condenados a

autopoiesis. Somos, necessariamente, enquanto seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos, e essa

condição se manifesta também nos sistemas sociais.

Dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela11, trouxeram uma importante reflexão,

que, a partir da compreensão da vida na biologia, resgatam a ideia de autorreferência, que se aplica à toda a

ciência.12

Estudando a aparelho ótico de seres vivos13, os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça

para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua

língua, quando era lançada para pegar uma presa, ia também na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que

o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.

A partir dessa simples experiência, temos uma conclusão que pode ser absolutamente óbvia, entretanto,

foi ignorada pelas ciências durante séculos. Ciências que buscavam uma verdade única, ignorando o papel do

observador na construção do resultado.

O fato é que, entre nós e o mundo existe sempre nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem

lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma

dessas lentes.

Assim, para percebermos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo,

temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber cores e uma série de coisas, mas não é capaz de

perceber outras, ou, por vezes, nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou

cores.

Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho

ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas, e, cada vez, mais condicionados pela

química das drogas. Assim, quando estamos deprimidos, percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as

pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e interpretar o mundo. De outra forma, quando

nos sentimos felizes ou quando tomamos drogas, como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira

otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e os fatos que queremos

11 MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, El Arbol Del Conoscimiento, Editorial Universitária, undécima edición, Santiago do Chile, 1994. 12 No livro acima mencionado os pesquisadores chilenos escrevem: “Nosotros tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que las vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener outra alternativa. Es nuestra situación cotidiana, nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de humanos.” Prosseguindo, os autores afirmam escrever o livro justamente para um convite a afastar, suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: “Pues bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer em la tentación de la certitumbre.” MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.5 13 Nas páginas 8 e 9 do livro, os autores propõem aos leitores experiências visuais e nos demonstram facilmente como nossa visão pode nos enganar, revelando o que não existe e não revelando o que está lá. Nas várias experiências com a visão das cores nos é mostrado como nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Mostrando no livro dois círculos cinza impressos com a mesma cor, mas em fundo diferente; o circulo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosado. Ao final nos fazem uma afirmativa contundente, mas importante, para tudo que dizemos aqui: “el color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para verlo”. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.8

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perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história – ou os fatos que presenciamos, assim como a

lembrança dos fatos – passa a ser influenciada por essa condição química. A cada vez que recordamos um fato,

essa condição influencia nossa lembrança. A percepção diferente do mesmo fato ocorre uma vez que cada

observador é um mundo, um sistema autorreferencial, formado por experiências, vivências, conhecimentos

diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças e na não

percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.

Assim, podemos dizer que outra lente, que nos permite traduzir e interpretar o mundo, é constituída por

nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos,

traduzimos e interpretamos do mundo, acha-se condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar

valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.

Novas lentes colocam-se entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo

tempo que nos revelam um mundo, escondem outros. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de

conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais.

Assim, o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre, cinquenta ou cem anos atrás. O sentimento de

liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que, em determinado momento do tempo,

possamos compartilhar conceitos, que dificilmente são universalizáveis.

Somos seres autopoiéticos (autorreferenciais e autorreprodutivos) e não há como fugir desse fato. Entre

nós e o que está fora de nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de

interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Nós somos a medida do conhecimento do

mundo que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo.

A linguagem e a série de conceitos que ela traduz é nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos

dizer que, quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se

transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal,

mais do mundo nos será revelado.

Assim, não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades científicas absolutas, pois é

impossível separar o observador do observado14. Esse universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos

fundamentalismos, às intolerâncias. A compreensão da autopoiesis significa a revelação da impossibilidade de

verdades absolutas, sendo um apelo à tolerância, à relatividade, à compreensão e à busca do diálogo. A certeza é

sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia.

Importante lembrar que o reconhecimento da relatividade do conhecimento não exclui a existência do

real. O real existe além da matrix. O real é relativo e histórico, mas, ao mesmo tempo, é diferente da mentira que

busca propositalmente encobrir o real, é diferente de um mundo construído pelo outro com o propósito de

encobrir algo. Nesse sentido, a matrix é real como algo que encobre propositalmente a possibilidade de intervir

na história ou provoca intervenções que não intencionalmente levem ao caminho oposto do desejado. O que

chamamos de real são as relações que se constroem no mundo da vida como possibilidade de diálogo e

intervenção na história não manipulada pelo outro. O real não busca estrategicamente encobrir os jogos de poder,

o real é a revelação dos jogos de poder. A mentira se opôs ao real ou a uma verdade historicamente construída.

Se assistirmos a um assassinato em uma praça, podemos encontrar nesse fato o real, as verdades e as mentiras,

14 Verificar ainda o seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana, organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.

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assim como o encobrimento proposital do real. Assim, o real cru está no corpo inerte, na ausência de vida, na

morte de uma pessoa. As verdades que se constroem nas cabeças das testemunhas não são únicas, uma vez que

são interpretações da morte que ocorreu e da pessoa que morreu. As mentiras intencionais distorceram

propositalmente os fatos para manipulá-los segundo interesses diversos. O encobrimento do real foi feito,

posteriormente, com a notícia não divulgada, a arma do crime adulterada e provas forjadas. O encobrimento não

é uma simples mentira que altera o fato ou exagera o fato. O encobrimento tem uma finalidade estratégica. Com

esse exemplo podemos dizer de um real, de um encobrimento, de verdades históricas e de mentiras históricas.

Matrix parte dessa compreensão e propõe algo assustador. E se nossa autorreferência não pertencer mais

a nós mesmos, mas alguém, externo, construir nossos limites de compreensão, nossas verdades? A partir desse

universo, o filme nos incita a outra reflexão: à medida que outro constrói, propositalmente, mentiras que se

transformam em verdades, estamos impossibilitados de perceber o real. Esse manipulador externo de nosso

mundo usurpa nossa liberdade.

A partir do momento em que a matrix cria um mundo artificial de mentiras, propositalmente, para que

não enxerguemos o real, podemos dizer que o real existe e pode ser alcançado. A tentação relativista da

compreensão da autopoiesis pode encontrar um limite real. O real se constitui nas relações de interpretação e de

comunicação fundadas em uma base de honestidade, de compromisso de busca de uma comunicação que parta

de pressupostos de honestidade. A matrix se constrói sobre a construção proposital da mentira com fins de

manipulação, de dominação e de pacificação pela completa alienação das condições reais de vida, das reais

relações de poder. Alguém, propositalmente, me faz acreditar em suas mentiras como sendo verdades; nas

relações falsamente construídas como sendo reais.

A matrix é real. A manipulação da opinião pública, a distorção proposital do real, a fabricação de

notícias e de fatos que encobrem os fatos, a criação de fatos falsos está presente. Assistimos a golpes midiáticos

como a tentativa de golpe contra o governo constitucional de Hugo Chaves, na qual a mídia fabricou fatos,

notícias, medos. Assistimos ao golpe midiático nos EUA com a eleição de Bush e a sustentação de um estado de

exceção mantido pela geração diária do medo pela grande mídia. A matrix está ai, mas seus limites são claros na

reação popular ao golpe na Venezuela. A matrix está aí, mas seus limites existem e a resistência à manipulação

do real conseguiu vencer as eleições – é certo que de forma apertada, na Itália, em abril de 2006.

O interessante do filme é que as agressões no mundo da matrix são reais. Talvez o único real no mundo

da matrix. Uma agressão física virtual causa feridas reais. Daí que a fuga do real, na matrix, não garante

segurança e retira liberdade.

A verdade posta no filme está na conexão do eu com o real. Esse eu que interpreta o mundo. Na matrix,

não há verdade, pois não há conexão entre o eu e o real. O real foi subtraído da experiência de vida. A pessoa

vive uma representação criada por outro.

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PARTE II

Inclusão Social: Avanços e Desafios no Cotidiano

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Ultrapassar Barreiras e Avançar na Inclusão Escolar

Maria Teresa Eglér Mantoan1

Gostaria de falar um pouco sobre meu percurso com relação à formação de professores

e à inclusão, porque estão muito imbricados. Temos avanços e impasses e acho que este é um

bom momento para falar sobre isso, num fórum de educação inclusiva.

A questão da inclusão está relacionada a questões muito mais anteriores, ligadas ao

que a escola pode oferecer como formação para todos os alunos. Nós formamos professores

em função de uma ideia que temos do que a escola pode oferecer. Ambiente restritivo ou

ambiente desafiador? Se nós temos bem claro o que queremos na escola, podemos pensar

nessa formação. Acho que essa questão é pouco discutida. Tenho participado de algumas

reuniões, na minha faculdade, sobre as diretrizes do curso de Pedagogia, e fala-se muito

pouco sobre isso. Se imaginarmos esse ambiente como restritivo, teremos uma posição na

formação dos professores; se como desafiador, teremos outra, portanto, tudo muda.

Vejo que essa discussão tem a ver com um projeto pedagógico, muito mais da

faculdade do que, propriamente, até com as próprias diretrizes. Tenho tentado isso com muita

dificuldade. Sinto-me muito marginal no meio acadêmico, porque, quando levo uma

discussão como essa, por exemplo, para a Semana da Pedagogia, na Unicamp, as pessoas me

olham: “Mas isso tem a ver com a inclusão? Isso tem a ver com formação de professor?”. E

eu acho que isso é central. Então, prefiro fazer, às vezes, as minhas reflexões em outros locais,

mas, sem termos alguma definição quanto a esse ambiente, é meio difícil pensar na formação

do professor.

A inclusão, apesar do esforço que temos feito durante todo esse tempo, ainda tem

muita dificuldade de romper a ideia de que a escola, como ambiente desafiador, necessita

urgentemente de entender das diferenças, porque são as diferenças que estabelecem os

desafios, rompem o restritivo, o ambiente predefinido, determinado, seriado de maneira a

envolver, a “agrupar” de forma homogênea as crianças.

Discute-se sobre a formação dos professores: se a questão é formar o bacharel ou o

licenciado... A questão é formar o educador, dentro de uma perspectiva que poderia ser

discutida, tendo em vista a restritividade dos ambientes, que envolve avaliação restritiva,

1 Pedagoga, doutora pela Universidade Estadual de Campinas, professora da Universidade Estadual de Campinas e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade (LEPED)

83

planejamento restritivo, currículo restritivo, tudo bem fechadinho, bem preparadinho para

aquele grupo, bem direcionado para tudo. Como formar professores para ambientes

desafiadores de ensino e de aprendizagem? Onde? O ingrediente fundamental é o

reconhecimento e a valorização das diferenças. Acho que essa é uma questão central na

discussão de formação de professor – seja continuada ou inicial; seja de nível básico ou nível

superior.

Trabalho na Unicamp, em um projeto de acessibilidade ao ensino superior. Vejo que

são muito mais fáceis de entender, por exemplo, as diferenças no ensino superior do que no

ensino básico, porque os professores do ensino superior não são especialistas nas deficiências.

Um dos grandes problemas que eu vejo hoje, trazidos pela inclusão, é a discussão sobre a

formação dos professores: eles teriam que aprender tudo sobre deficiência? Eu vejo

especializações em educação inclusiva para o nível básico, nas quais os professores comuns

vão para aprender como é que se ensina ao deficiente mental, ao deficiente físico, ao

deficiente auditivo – uma coisa maluca!

Tivemos um avanço no sentido de entender que a educação é um direito de todos, que

é um direito do aluno e que não podemos diferenciar pela deficiência ou qualquer outra

diferença, porque ninguém sabe – e isso é um dilema – quando mostrar o que temos de igual e

quando mostrar o que temos de diferente. Tanto que o professor Boaventura Sousa Santos

lançou aquela máxima de que podemos e devemos exigir o direito à igualdade, quando a

diferença nos inferioriza, e exigir o direito da diferença, quando a igualdade nos

descaracteriza. Diante de uma máxima como essa, mostrar a diferença – ou mostrar a

igualdade – é andar no fio da navalha. E andar no fio da navalha é formar professores para

uma educação para todos, porque, se nós tivermos clareza de que esses meninos têm uma

deficiência ou uma diferença qualquer, nós teremos que garantir que suas especificidades

sejam reconhecidas e que eles tenham na escola condição de serem atendidos nas suas

necessidades, em função dessas diferenças. É aí que começa o nó. Levar a universidade da

formação inicial a pensar nas diferenças em sala de aula é uma coisa muito difícil, porque o

aluno continua a ser, para a universidade, aquele ser ideal, que é fruto do que a teoria nos

mostrou a respeito dos seres humanos. Aí começa a influência dessas teorias na definição do

aluno, na definição do ensino, na definição da aprendizagem. Mas quem é esse aluno? Esse

aluno não existe. Quem é esse sujeito que não existe? Os professores têm nas mãos seres que

não se repetem. Não existe uma fórmula, não existe um jeito de formar – nem mesmo na

educação para pessoas ditas sem deficiência ou sem qualquer diferença mais expressiva. Não

existe um jeito de formar a partir de uma metodologia, como se pensava antes, de um método.

84

A inclusão trouxe essa questão de uma maneira muito forte para dentro da escola, e a

universidade sabe muito pouco a esse respeito.

A ideia de incluir uma disciplina na formação inicial, a Educação Inclusiva, é uma das

coisas mais absurdas que eu já vi na minha vida. Não é por aí. É toda uma concepção que terá

de ser mudada e levará tempo, e a universidade já deveria ter pensado nisso. As discussões em

torno do curso de Pedagogia giram em torno de se vai ter bacharelado ou se vai ter

licenciatura; que é perigoso abrir brecha para tantas especializações, se vão acabar as

habilitações. Na verdade, a questão não é assim tão estrutural – é muito mais conceitual e

passa pela definição de que ambiente queremos para a educação das nossas crianças e dos

nossos jovens.

Decorrentes disso tudo, vêm duas questões. A primeira é a do professor comum que

diz: “Ah, não estou preparado para receber aluno que não caiba no meu modelo”. A outra é a

do professor especializado, que agora diz uma outra coisa: “Mas eu não estou preparado para

o atendimento educacional especializado”. Por quê? Porque, na realidade, ele nunca foi

preparado para nada. Ele é um professor comum que fica ensinando Língua Portuguesa,

Matemática, História, Geografia para menino com dificuldade – quando não é considerado

professor que dá reforço, que dá apoio. Sala de recurso é entendida hoje, ainda, como aquele

lugar em que vão os meninos que têm dificuldades de aprendizagem, misturados com os

meninos que têm deficiência.

E quando perguntamos a um professor especializado o que é “atendimento

educacional especializado”, ele diz assim: “Ah, aquele negócio da cartilha?” (uma cartilha

que mostra que na Constituição isso está claro), “Ah isso daí a gente não fez, não. A gente não

está preparado, não. Os cursos que a gente fez não são para isso”; “E os cursos que vocês

estão fazendo durante todos esses anos?” “Também”. Eles não estão dando conta de

diferenciar o que é educação especial, depois desse entendimento novo do que é o

atendimento educacional especializado. Então, misturam atendimento clínico com

atendimento educacional; atendimento educacional escolar com reforço. É verdadeiramente

uma confusão muito grande e a formação continuada não está dando conta. A formação em

nível de pós-graduação lato sensu não dá conta e a formação inicial também não.

Estamos elaborando a política nacional de educação especial e a formação do

professor de educação especial é um dos quesitos. É dificílimo discutir esse tema, porque nem

mesmo os constituintes do grupo que está estudando essa política chegam a um consenso –

nem diria um consenso – a entender bem qual é o espírito do atendimento educacional

85

especializado. Ora, se eu não entendi, como posso ensinar? Como posso pensar num jeito de

ensinar?

Estamos num impasse diante da inclusão. Acho essa discussão salutar, em muitos

sentidos, porque nunca se pensou em nada disso. Todo mundo estava deitado em berço

esplêndido. Entendiam que a educação especial sozinha daria conta dos problemas das

escolas, seja das deficiências ou das dificuldades. A escola comum estava tranquila,

mandando todos que tivessem dificuldades para a escola especial, sem nenhum critério, e a

formação correndo solta. Há vários cursos de formação dos professores, que não resolvem o

problema, porque, de um lado, os professores querem soluções; de outro, os formadores não

têm nem as perguntas, uma vez que elas não estão muito claras.

Muito pouco ainda podemos fazer com relação à formação inicial. A universidade

anda com o peso do passo do elefante, mas no passinho da formiga. É muito difícil sair do

lugar. As questões que preocupam passam muitíssimo ao longe, nem paralelamente às

questões da inclusão, tanto na licenciatura como bacharelado. Predominam as questões

teóricas, e a integração entre teoria e prática é muito difícil nas universidades, haja vista os

estágios supervisionados, que são deixados para o fim do curso.

A educação especial, embora haja o avanço de ela hoje ter uma interpretação diferente,

ainda está presente na universidade como corpo de conhecimento, com a qual ninguém sabe o

que fazer, porque mais está servindo para gerar cursos de educação inclusiva do que cursos de

formação de professores para atender às deficiências.

Os avanços estão ocorrendo muito mais no interior da escola do que fora delas, porque

os meninos estão lá. Sem eles, nada aconteceria. É a própria experiência com as diferenças

que está nos dando condições de pensar nesse ambiente desafiador, de fazer com que eles

prossigam sua escolaridade no ambiente comum.

Por mais que a formação continuada tenha ideias de fazer currículo adaptado,

avaliação adaptada, grupo adaptado para fazer as atividades na sala de aula, tudo isso não está

resolvendo o problema. Não podemos determinar qual é o currículo ideal para uma criança;

qual é a atividade que ela terá condição de fazer; e como, diante da inclusão, podemos dizer

que uma avaliação pode ser diferente para meninos com deficiência ou sem deficiência.

Penso que o atendimento educacional especializado, acima de tudo, deve ser

desenvolvido por professores que já tiveram em sua formação uma ideia do que é trabalhar

com as diferenças, não em uma disciplina, mas em todo um entendimento da educação, a

partir da ideia de um ambiente desafiador de ensino e de aprendizagem.

86

Para chegar a isso, algumas coisas temos feito, como, por exemplo, os núcleos

temáticos na Universidade de Campinas, que têm mostrado um pouco dessas diferenças no

ensinar e no aprender. É muito pouco ainda, porque a formação inicial, verdadeiramente, vai

acontecer quando iniciarmos o nosso trabalho dentro da escola.

A formação para trabalhar com a inclusão não se esgota no profissional (no

atendimento educacional especializado). Não pode ser um clínico, mas não basta ser um

professor – é imprescindível que o seja. Mas o professor precisa ter conhecimentos muito

específicos. Por exemplo, para atender pessoas com deficiência física, precisa conhecer

tecnologias assistivas, precisa conhecer os problemas que realmente atingem pessoas que têm

determinadas patologias, trabalhando do ponto de vista educacional, ou seja, com o que pode

ser desenvolvido. Coisa que a educação especial não faz, porque ela trabalha sempre com essa

visão de deficiência e de adaptação e não de dar espaço para o sujeito recriar o conhecimento

a partir das suas próprias possibilidades.

E é essa a grande dificuldade de formar esse professor, porque, se ele vem da

educação comum, não tem capacidade de fazer isso, pois na educação comum aprende a ser

um professor para ambientes restritivos. Se ele vem da educação especial, tem só o que sabe

de específico sobre uma deficiência, por exemplo, não dá conta também de desenvolver nesse

ambiente especializado um trabalho desafiador. Ele já vem carregado, tanto numa formação

como na outra, com essa visão de impossibilidade, de deficiência, de catalogação de sujeitos,

de universalização, de essencialização, de características. Cada pessoa com deficiência é uma,

não existe “o” deficiente mental, a não ser no livro, “o” deficiente físico, a não ser no livro.

Então, eu penso que a saída seria essa formação inicial e cursos de formação continuada e

alguns cursos nos quais pudéssemos exercitar as melhores possibilidades de formar em nível

de pós-graduação, em nível superior, profissionais para a educação especial superior. Eu ainda

tenho minhas dúvidas com relação a isso, porque acho que a ênfase teria que ser dada sobre a

educação, não nesse sentido tão especializado, esses conhecimentos que são típicos do

especial – por exemplo, saber Braille, saber o que é locomoção e trabalhar com locomoção e

mobilidade, saber trabalhar com o ábaco, com os textos digitalizados e os programas, no caso

do cego. No caso dos deficientes mentais, trabalhar com esses meninos, não no sentido de

ensinar orientação espacial, memória auditiva, treino de atenção, teia, aquele negócio lá do

Reuven Feuerstein – não é isso. É exercitar a capacidade cognitiva e, principalmente, fazer

com que esses sujeitos saibam lidar com o conhecimento, porque eles desaprenderam tudo

isso na escola, uma vez que lá aprenderam não foi lidar com o conhecimento: foi serem

treinados para mostrar que têm um conhecimento que dá conta de eles conviverem com os

87

que não são deficientes. Colocarem-se no lugar de pessoas que, dentro das suas

possibilidades, são capazes de aprender, ter metas, no sentido de conhecer alguma coisa.

Tenho visto muito isso acontecer em certos trabalhos dos quais tenho participado e

colaborado. Neles, a tensão não está em treinar o menino em certas habilidades para ir à

escola e prestar mais atenção, ter mais memória, saber ler e escrever melhor. Como tenho

visto, instituições se dedicam a ensinar a ler e escrever aos meninos que têm uma deficiência

mental, para depois conseguirem ir para a escola. Não é isso que a escola pede, porque, em

um ambiente restritivo, é isso que ela quer de todas as crianças, mas, em um ambiente

desafiador, a proposta é outra. A educação especial também tem que ter esse lado do ambiente

desafiador, que não é esse restringir sem ensinar o menino a ir bem na escola comum. É

trabalhar com o que é próprio dessas barreiras que eles têm, dentro dessa perspectiva

desafiadora, principalmente no caso da deficiência mental, na qual é imprescindível que esses

meninos retomem a sensação de que têm condição de aprender como todos. Precisamos ter

consciência de que “aprender” não é aprender o que o outro quer, mas ir atrás do que o aluno

tem interesse em conhecer, dentro da capacidade que ele tem de ir atrás disso e consegui-lo.

Resumindo, com relação à formação dos professores, é preciso definir bem que

ambiente nós queremos. Se é desafiador ou restritivo. Isso é fundamental para nós pensarmos

efetivamente num projeto pedagógico de universidade que queira se dedicar a uma formação

de professores, independentemente de diretriz, de não sei o quê, o porquê. Como eu sou

marginal – não no mau sentido, mas no sentido de caminho –, para mim, essas coisas têm

muito pouco valor.

Em relação à formação continuada, minha dúvida está nisto: que experiência nós

temos no atendimento educacional especializado, igual à velha educação especial, para

propormos uma formação, seja em nível de graduação ou de pós-graduação? Ou mesmo,

como a formação continuada pode nos ajudar no reconhecimento das características dessa

formação? Opto ainda por uma formação continuada dos professores que querem se dedicar

ao atendimento educacional especializado, entendido não como substitutivo, mas como

complementar da formação. Não como um atendimento escolar, mas um atendimento

específico, porque eles têm o direito à diferença, quando a igualdade os descaracteriza. Opto

para que adquiramos conhecimento, experiência, para podermos pensar numa formação

específica para esses educadores e, enquanto isso, que na formação inicial, pelo menos em

cada disciplina, se pense sobre as diferenças e sobre os ambientes desafiadores, porque se isso

for pensado, nós teremos já caminhado bastante.

88

Uma Abordagem Holística na Prática do Design Universal

Marcelo Pinto Guimarães1

1. INTRODUÇÃO

O desenho universal se traduz de uma filosofia sobre a construção de ambientes,

espaços e tecnologias de modo que o perfil do usuário seja compreendido em sua diversidade

em termos de características físicas, habilidades e experiência pessoal na relação com o

ambiente edificado. Tal conceito consta de importantes instrumentos reguladores da prática da

acessibilidade no Brasil.

De fato, tanto o Decreto Federal 5296, de 2 de dezembro de 2004, quanto as normas

técnicas NBR 9050-2004, da Associação Brasileira de Normas Técnicas, apresentam

definições específicas sobre o desenho universal como fundamento primordial para a prática

da acessibilidade que seja inclusiva, isto é, para todas as pessoas. Como esses instrumentos

não dispõem de maior detalhamento sobre os fundamentos e os elementos práticos do

desenho universal, é pressuposto por um lado que o conteúdo da legislação e das normas

técnicas reflita a compatibilidade de aplicação desse conceito e, por outro lado, que

publicações técnicas complementares e a experiência profissional consigam preencher essa

lacuna de informação. Contudo, isso não tem ocorrido. Defendemos que somente a

abordagem holística pode justificar positivamente a prática do design universal como forma

de contextualização do benefício para todos, independentemente da rotulação sobre tipos de

deficiência.

2. A DISTINÇÃO ENTRE DESENHO UNIVERSAL E DESIGN UNIVERSAL

“Desenho universal” e não “design universal” é utilizado nos textos oficiais.

Desconsiderando uma simples tradução dos termos da língua inglesa de modo a tratá-los pela

língua oficial brasileira, podemos identificar algumas distinções básicas no entendimento

entre o desenho universal e o design universal.

1 PhD em Design, North Carolina Sate University. Professor de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais

89

Aparentemente, a definição de “desenho universal” adotada na legislação brasileira se

prende ao campo da ergonomia (Steinfeld, 1994), que busca explorar as relações operacionais

entre uma pessoa e o meio edificado em que se encontra. Por outro lado, o termo “design

universal” indica uma definição original mais ampla (Mace, 1985), pois se aplica na maneira

como soluções de acessibilidade podem alcançar uma ênfase global e distinta de ideias

especializadas para grupos isolados de público incomum.

Em sua formulação, design universal engloba o processo em que soluções de

acessibilidade teriam um apelo para aceitação mercadológica e uma absorção na vida

cotidiana de um grande público. Devemos lembrar ainda que design tem vínculo com o termo

português “desígnio”, isto é, decisão a ser adotada numa sequência de tantas escolhas

possíveis e compatíveis com o contexto em que o produto do design se destina.

O fato dos mecanismos legais e normativos brasileiros documentarem o termo

desenho universal ao invés de design universal pode se justificar pela própria natureza

operacional dos processos de conformidade legal e normativa, a qual pressupõe elementos

palpáveis, concretos e consistentes de referência que são mensuráveis no campo da

ergonomia. Assim, torna-se mais aceitável estabelecer objetivos concretos na relação entre

pessoa e seu ambiente operacional do que na relação entre pessoa, seu ambiente operacional e

o contexto cultural, que vincula a isso os valores, atitudes e emoções.

Em suma, o desenho universal se insere no conceito de design universal, o qual

devemos utilizar preferencialmente quando nos referirmos à vivência dos usuários no meio

construído para acessibilidade. O design universal que se estrutura em princípios

generalizantes como processo e produto da acessibilidade ambiental, mas também serve de

inspiração como referência máxima de qualidade para inclusão de todos, discreta e

onipresente. Mais do que um simples traço fortuito e genial de síntese formalizada pelo

profissional, um desenho, o design universal implica em uma manifestação cultural entre

profissionais e seu público, que tem como ponto inicial de todo o trabalho, e sempre em

primeiro plano, o respeito à diversidade das características e experiências dos usuários pelos

ambientes onde atuam. Transpomos, então, o conceito da ergonomia para o da ciência

cognitiva como um todo, incluindo-se a base filosófica do construtivismo, no qual a verdade é

resultante do compartilhamento de valores e experiências.

90

3. A FALTA DE ESPECIFICAÇÃO DETALHADA SOBRE ELEMENTOS DO

DESENHO UNIVERSAL: ÔNUS OU BÔNUS?

Os instrumentos legais e normativos exigem que todas as soluções devam ser

compatíveis com os princípios do desenho universal, mas não exprimem com clareza uma

definição desses princípios ou sobre como eles atuam.

Essa falta de detalhamento sobre mecanismos de aplicação do desenho universal nos

instrumentos legais e normativos é evidente e incômoda para profissionais que os

desconheçam por outros meios. Contudo, essa lacuna de informação pode ser considerada

mais um benefício do que uma falha em função da natureza do processo de controle da

atividade construtiva.

Em geral, a rigidez, o controle legal e a padronização normativa cerceiam mais do que

incentivam a criatividade do profissional para desenvolver inovações sobre a acessibilidade

inclusiva para todos que impliquem numa redefinição das características das edificações (em

suas estruturas e sistemas) e do modo operacional de gerenciamento das organizações e

entidades. A oportunidade gerada pela especificação difusa está na valorização da postura

exploratória dos profissionais em crescer sua experiência e conhecimento que suplantem em

profundidade e amplitude as exigências legais e normativas.

A falta de mecanismos operacionais para o design universal das leis e normas técnicas

não é intencional. Isso se deve talvez à impossibilidade de que sejam definidos mecanismos

objetivos e mensuráveis no âmbito legal para a inclusão irrestrita dos diferentes tipos de

usuários, a partir da identificação e classificação de cada tipo. A liberalização de iniciativas

para consolidação de produtos de acessibilidade no mercado que facilitem a vida de todos, na

verdade, só é possível caso seja abolido o raciocínio pela compartimentação do conhecimento

em função de especificidades das deficiências dos usuários, como também, o preconceito e os

danos que uma ou outra categorização das características dos usuários pode acarretar.

Por outro lado, é importante aqui registrarmos certas impropriedades nos termos da

legislação e das normas técnicas, as quais definem aspectos contraditórios ao longo dos

respectivos conteúdos em exigências que podem prejudicar os processos de inclusão e o

design universal. Além disso, a legislação e as normas técnicas apresentam algumas

divergências conceituais entre si.

O Decreto Federal 5296/2004 é uma síntese de duas leis: a Lei 10048/2000 e

10098/2000, que tratam, respectivamente, do atendimento prestado às pessoas com

deficiência e com mobilidade reduzida, e das alterações a serem implantadas no meio

91

edificado e nos sistemas de inteligência virtual, de modo que esse público possa ter iguais

oportunidades de participação social. Por isso, seu texto se apresenta como uma vasta

coletânea de contribuições de origens distintas e até discrepantes.

Em processo semelhante, se originou a versão atual das normas NBR 9050-2004.

Comparativamente às outras versões, essas normas compreendem um grande número de

especificações detalhadas sobre formas de sinalização, por exemplo, e um número menor e

superficial de especificações sobre elementos de uma rota acessível para edificações a partir

da via pública.

Como o Decreto Federal indica o consenso de certos valores culturais, podemos

reconhecer que alguns tópicos de seu conteúdo têm uma referência política mais do que

técnica. Tal é o caso da categorização do público-alvo em pessoas com deficiência em

diferentes grupos distintos e reconhecíveis por critérios médicos. Tal categorização das

pessoas em grupos minoritários segundo uma deficiência motora, visual, auditiva, mental ou

múltipla é incompatível com o conceito de design universal. Assim, por exemplo, uma pessoa

não será considerada como um indivíduo com deficiência auditiva caso apresente níveis de

audição com perda de 41 decibéis ou mais em determinada frequência. Mais precisamente,

uma pessoa com perda de audição de 40 decibéis pode deixar de obter benefícios sociais

legalmente concedidos a outros cuja sensibilidade auditiva esteja distante em apenas um ou

dois decibéis da marca legal de referência.

As normas NBR 9050-2004 não chegam a estabelecer tal categorização de usuários,

muito embora apresentem alguns tópicos contrários ao objetivo de inclusão previsto no

conceito de design universal. As citadas normas técnicas determinam, por exemplo, a

destinação de áreas de uso prioritário, exclusivo e específico para certo percentual de usuários

que utilizem cadeiras de rodas em estacionamentos, auditórios ou sanitários. Em outro caso,

determinam que a utilização de certos aparelhos mecânicos para a acessibilidade como

escadas e esteiras rolantes seja possível mediante o controle do equipamento feito por outras

pessoas ou funcionários “especificamente treinados”. Tal exigência contraria os princípios de

autonomia e independência visando a efetiva inclusão tanto no Decreto Federal quanto nas

normas técnicas.

Podemos notar que, em certos trechos desses dois documentos, não houve o devido

cuidado editorial de modo que fossem evitados conflitos lógicos e ideológicos entre o escopo

das exigências e os objetivos a que devem atender. Algumas dessas discrepâncias conceituais

existem porque esses instrumentos legais e normativos não aplicam uma visão global e

coerente do conceito de design universal. De fato, mesmo argumentando contra a

92

discriminação, fazem uso da “discriminação compensatória” como estratégia para a promoção

de uma acessibilidade assistida.

De fato, se há uma lógica de afirmação positiva e compensatória em relação às

desvantagens sociais para uma ou outra categoria arbitrária, uma deficiência, essa lógica é

incoerente com a prática de se estabelecerem benefícios abrangentes para todos, sem

exclusão. Como a acessibilidade para todos pressupõe o uso do meio edificado sem

discriminação pela deficiência, podemos concluir que as medidas legais e normativas não

devem e não podem ser o único meio para se atingir o desenho universal e muito menos o

design universal.

Por isso, é benéfico o fato de que tanto a legislação quanto as normas técnicas definam

e vinculem a prática do desenho universal como essência de todas as demais exigências que

mencionam, sem contudo, explicitarem claramente como isso pode ocorrer. Desse modo, o

vazio de informação específica de como o design universal pode ser obtido torna o

entendimento, o discernimento e a adoção efetiva de soluções frente à natural complexidade

do conceito para a competente prática profissional além e acima do controle regulador legal e

normativo. De outra forma, tanto a legislação quanto as normas técnicas podem se

transformar em instrumentos de omissão, de opressão e de perpetuação do estigma sobre o

valor social de uma pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida.

4. A ACESSIBILIDADE PARA TODOS DEPENDE DE ATITUDE E

POSICIONAMENTO SOCIAL INCLUSIVOS

Pode-se afirmar que o trabalho acerca da implantação da acessibilidade no Brasil tem

evoluído muito. Afinal, dispomos de uma coletânea de leis e normas sobre o assunto

incomparavelmente superior à de muitos países. Contudo, quando nos deparamos com um

espaço que está compatível com a legislação e com as normas de acessibilidade devemos

ainda nos perguntar para “quem” este espaço está acessível... Ao fazermos isso, estamos

negando os objetivos que são próprios da essência do conceito sobre acessibilidade para

todos.

É necessário para nós termos um novo tipo de atitude, contudo, que reverta a realidade

vivenciada por todos, não só de uns poucos. Uma pessoa que, por suas características ou

habilidades incomuns, viva excluída pode ser, por exemplo, a única moradora de sua casa que

foi construída de modo específico para sua acessibilidade.

93

Por morar sozinha num lar acessível às suas condições, mas situado em um local de

difícil acesso como um todo, aquela pessoa está completamente isolada de seus vizinhos.

Leva um ritmo de vida que, de certa forma, não está vinculado ao dos outros moradores.

Enquanto isso, esses outros moradores continuam subindo e descendo pelas escadas, passando

por vãos estreitos ou saltando sobre pisos irregulares, estão alheios à própria dificuldade em

que o meio edificado possa incutir nelas mesmas por certos estágios da vida. Dificuldades

com o ambiente edificado representam o dia-a-dia de muitos excluídos, que vivem tão

próximos e tão sós. Nesse exemplo, podemos perceber que aquela pessoa vive excluída, como

também estão excluídos dela todos os outros que não podem conviver com ela e assim

aprender e compartilhar diferentes experiências de vida.

De fato, essa visão discriminatória da acessibilidade, a partir da referência de um

mundo inacessível que parece natural e comum a todos, precisa mudar. Na ideia atual de um

estereótipo existente sobre acessibilidade, fica muito claro pensar em “onde” está o local

acessível para um certo “quem” que é distinto de todos os outros ambientes. Devemos, porém,

considerar até que ponto esse espaço criado é realmente acessível, não só àquele indivíduo

identificável pelo símbolo da cadeira de rodas (o símbolo internacional de acesso), mas por

todos os que eventualmente precisem fazer uso de tal espaço, em qualquer fase de sua vida.

Quantos de nós estaremos presos dentro de casa quando atingir uma idade mais avançada?

Inclusão não é só teoria, mas prática: resultante de práticas inclusivas. Nesse processo,

mais do que uma palavra “politicamente correta” (como antes foram os termos: integração,

normalização...), temos que nos referir ao processo de construção de uma sociedade inclusiva,

na qual as diferenças das pessoas sejam reconhecidas como algo natural e valorizado. Práticas

inclusivas significam abrir oportunidades iguais, trabalhar em um espaço que seja comum e

compartilhado. A questão que fica é saber se conseguiremos colocar as práticas inclusivas em

evidência para nossas vidas.

De fato, temos de trabalhar para reduzir os conflitos ao invés de escondê-los. Devemos

ser capazes de nos reconhecermos, um na pele do outro e, mesmo assim, de nos sentirmos

felizes porque ambos estão bem – o eu e o outro. Por práticas inclusivas, temos de reverter tal

imagem da vantagem incondicional de uns sobre outros. Devemos ter em mente que, melhor

do que sair ganhando sempre é ganhar sem riscos, pois tudo foi dividido justamente. Não é

nem mesmo o fato de ganhar que importa e, sim, de se estar envolvido na construção de algo

em conjunto que é bom para todos. A prática inclusiva é o processo de valorizar um indivíduo

para que a riqueza por sua diversidade seja também a riqueza do grupo.

94

Quando começamos a pensar na diferença que nos separa como pessoas, talvez o

processo de preparação para que sempre possamos incluir habilidades distintas em nosso meio

fique mais forte como um elo que nos prende, ao invés de simplesmente rotularmos tais

diferenças. Rotular significa termos de identificar quem é e quem não é, de modo que alguma

pessoa possa ser contemplada com alguma vantagem. As práticas inclusivas não existem onde

são feitos rótulos como referência de justiça. Não podemos falar de “inclusão de...” pessoas

com deficiência ou do idoso, porque a partir do momento em que fizermos isso, já estaremos

segregando. Segregar significa caracterizar, definir, separar. Temos de falar de inclusão como

sendo um processo de todos para todos.

Tudo isso serve de base para reflexões sobre uma nova definição do público-alvo

beneficiário do design universal. Com o Decreto Federal 5296/2004 e com a NBR 9050/2004,

pela primeira contemplamos ideias que sirvam não apenas para as pessoas agrupadas em

rótulos de categorias de deficiência, mas para as pessoas que tenham sua mobilidade reduzida,

tais como mulheres grávidas, idosos e acidentados. Com isso, finalmente, parte da população

com graves problemas transitórios começou a fazer parte do público beneficiário. A noção de

deficiência desvinculada do problema geral de mobilidade reflete a noção de estereótipo.

Quando começarmos a olhar esses problemas de maneira global, sem querer caracterizá-los

isoladamente e vendo um em relação direta com os outros, estaremos contemplando como o

design universal pode ser praticado.

5. LÓGICA LINEAR E LÓGICA HOLÍSTICA

Muitas vezes, as pessoas procuram soluções que sejam práticas, deixando de dar

atenção a certos pensamentos por considerá-los abstrações e, portanto, opostos a alguma coisa

mais perceptível, palpável e familiar.

Podemos aqui nos remeter àquela forma de raciocínio pela categorização das coisas e

pela referência aos seus rótulos ao invés de seus conteúdos, pois, assim, as pessoas podem

conversar dentro de parâmetros de uma linguagem comum: os rótulos. É como se tivéssemos

de fragmentar os problemas como peças de um quebra-cabeça para que, lidando com seus

pedacinhos, conseguíssemos ver uma solução para ser aplicada num dado momento, a todo e

qualquer momento.

Esse tipo de pensamento, em nosso mundo ocidental, ocorre por uma lógica linear,

cartesiana, plana. Todos os dias, definimo-nos pelo pensamento linear a partir da exclusão,

95

que nos delimita num universo fragmentado. Afirmando-nos como sendo parte de algo,

buscamos justificativas na negação de seu oposto. Ao pensarmos de maneira linear,

concordamos de modo inequívoco e de extrema clareza que o branco é, antes de tudo, o “não-

preto”. Pelos rigores da lei, uma coisa pode ser aceita como certa, quando ela é

primordialmente uma coisa “não-errada”.

É uma lógica que tem apenas uma sequência, como se o tempo houvesse se iniciado

em um passado remoto e, com ele, como se estivéssemos caminhando inexoravelmente para

um futuro em que temos depositado nossas esperanças. Uma vez atingido esse futuro, a

realidade de então não poderá ser de outra maneira do que aquela vislumbrada inicialmente.

Podemos até imaginar que esse futuro da sequência linear será melhor do que o presente, pois

estamos resolvendo os problemas aos pouquinhos e, dessa forma, em um grande somatório de

soluções. O que nos espera sempre é que o melhor ainda esteja por vir.

Essa tal lógica linear de progresso em que estamos descrevendo, deve perder ênfase

em nosso raciocínio para o design universal por ser muito estreita e limitada. O alto custo de

agirmos assim se acumula pela necessidade de esperarmos por muito tempo para

conseguirmos gozar dos benefícios de modo compartilhado.

É como se estivéssemos comprando a vida à prestação e só pudéssemos vivenciá-la

após quitar cada parte dessa dívida. Viveríamos, então, pelo reflexo de um espelho retrovisor,

que nos mostra o que perdemos por termos encarado o todo de frente. Em uma abordagem

holística, os custos são grandes: custo de atenção, de envolvimento, de comprometimento...

Há também custos materiais em função da energia que deverá ser despendida para realizarmos

algo dessa magnitude. Uma coisa, porém, é certa: uma vez que todos estejam engajados nisso,

o benefício virá de modo mais amplo. Soluções de efeito mais consolidado e eficaz dependem

de que consideremos como importantes medidas discretas, sutis, mas coerentes, de modo

contínuo e cíclico com o contexto, alinhando às múltiplas influências de diferentes fatores. Ao

adotarmos uma lógica holística, teremos a justaposição de pontos de vistas que contemplam

lógicas lineares, transformando-as em uma única perspectiva multidimensional. Então, a

lógica holística se prende, basicamente, em contexto, em consenso e em conhecimento.

É no contexto que está a riqueza de toda a complexidade, de modo a torná-la simples.

A visão global das coisas é necessária para conseguirmos definir o contexto em que ocorrem.

Uma solução pode ser muito boa em determinado contexto, mas pode não ser em outro.

Assim, não adianta tentar ver as coisas pouco a pouco se não tivermos uma visão do todo. O

problema de não se ter uma visão do todo é que não conseguimos perceber as coisas de uma

maneira contínua. Se não conseguirmos encarar um determinado problema em toda sua

96

complexidade, poderemos, então, dizer que as soluções propostas deixam de ser adequadas ao

longo de certo prazo.

Temos de buscar o consenso ao ceder de nosso posicionamento linear. Consenso

significa respeitar as diferentes perspectivas a partir dos mais vulneráveis, pois, embora

possamos ter muitas coisas em comum, cada cabeça, cada indivíduo reinterpreta o mundo de

forma peculiar e inovadora. Antes de pensarmos em sair ganhando em alguma coisa,

devemos, pois, ganhar algo de modo coletivo. Se conseguirmos obter consenso, todos estarão

trabalhando de maneira engajada, usufruindo dos benefícios, por comprometimento de si

mesmos e, por mais que as coisas demorem, podem ser realizadas e preservadas por gerações.

Finalmente, o conhecimento, mais do que a simples absorção e enlace de informações,

garante o respeito aos envolvidos no processo de busca de consenso. O conhecimento

enriquece cada uma das pessoas com os esclarecimentos sobre os diferentes pontos de vista

que melhor retratam o contexto globalizante. Pelo conhecimento, o estigma cede lugar ao

entendimento sobre melhorias possíveis na relação entre pessoa e ambiente construído.

Outra consideração possível sobre confrontação entre lógica linear e lógica holística é

considerarmos que nossa vida é regrada por leis enquanto valorização cultural do bem

comum. Segundo uma lógica linear, enquanto não houver uma lei, nada poderá ser feito,

aceito e respeitado por todos como um referencial de valor, de moral, de integridade. Porém,

no momento em que essa lei é implantada, fica a questão sobre a dimensão holística de sua

prática no cotidiano: no ponto limítrofe em que as pessoas perdem a convicção na base de

justiça impressa e imposta por lei. Ou ainda, até o ponto em que as pessoas procuram evitar

que seu rigor seja implacável e por isso injusto para certos casos que podem representar até

mesmo onde a lei deva evoluir mais

A reformulação de comportamentos numa abordagem inclusiva não deve estar presa

apenas à legislação, e sim aos valores que justificam essa legislação. As leis são reflexos dos

nossos valores. As leis não são exclusivamente criadas como instrumentos de opressão para a

conformidade.

Alguns estudos defendem (Nisbett, 2003) que a civilização ocidental rejeita o lado

multidimensional da vida, enquanto que a civilização oriental trabalha com essa ideia de uma

maneira muito mais fácil. Esses estudos sugerem, contudo, que a tendência mundial é a fusão

entre as práticas culturais do ocidente e oriente. Sem buscar a distinção dos extremos de valor

de uma coisa em detrimento da outra (que é um pensamento segundo a lógica linear),

devemos nos conscientizar de que a discussão sobre práticas inclusivas do design universal

depende de refletirmos sobre meios de priorizar o pensamento holístico como valor cultural.

97

Em outras palavras, devemos nos esforçar em retirar a preponderância do pensamento linear e

colocá-lo num plano secundário à visão multidimensional.

Isso nos chama a atenção para o fenômeno cíclico de transformação da natureza, da

história e da vida como a conhecemos. As pessoas, de uma maneira geral, consideram suas

vidas como sendo progressões de eventos ao longo de uma linha. Consideram-na uma linha

em ascendência, desde a infância (sendo que muita gente entra em desespero quando

contempla que essa linha começa a descer). Isso é uma visão angustiante para nossa

permanência neste mundo – e também é uma visão equivocada dentro de um ponto de vista

holístico.

Essa percepção acerca dos ciclos é muito valorizada no pensamento oriental. O

aspecto cíclico da vida se manifesta com o renascer em cada dia – fato que, muitas vezes,

desconsideramos por vivemos absortos em nossa mente.

A cada dia, tudo se renova. A cada dia, o sol volta para nos dar sua força, as marés

vêm e vão, sobem e descem. Devemos ainda nos lembrar dos ciclos das estações do ano, que,

por milhares de anos, serviram como marco cultural de diferentes povos com a relação entre

passado, presente e futuro, o terreno, o sagrado e o divino. A vida também é cíclica; e assim é

em cada um de nossos estágios de desenvolvimento pessoal. A plenitude da vida é de fato

alcançada quando conseguimos passar de um estágio para outro por meio de nossas múltiplas

maturidades, sem rótulos ou tipologias de vida. A imagem que melhor se adapta a esse

conceito holístico de encarar a vida humana é, então, mais complexa e completa do que o

transcorrer do caminho por uma simples linha.

De certa forma, o nosso tipo de comprometimento com a sociedade inclusiva também

deve ser considerado cíclico. Cíclico no sentido de restaurarmos aquilo que foi deixado para

trás como algo novo e transformado e não simplesmente dizermos que algo se preserva

porque não se altera (a não alteração como sentido até de estagnação), ou que algo se perdeu

porque já não pode ser identificado e interpretado em sua forma primária, original, imutável.

Em cada momento de nossas vidas, estamos convivendo com a morte. O conceito de

morte dentro de uma visão holística significa o abandonar de um estágio quando estamos

preparados para enfrentar outro. A morte, então, não é o fim, mas a preparação para outro

estágio que a gente pouco conhece.

Ao começarmos a pensar dessa maneira, podemos ver muito mais nosso papel social e

político, um papel de não estar presos à nossa existência em si mesma, mas inclusive à

existência das gerações que virão. Sob esse ponto de vista cíclico, pensar em design universal,

no contexto inclusivo, é um desafio muito mais denso e significativo.

98

6. A ABORDAGEM HOLÍSTICA PARA O DESIGN UNIVERSAL EM PRÁTICAS

INCLUSIVAS

O holismo é a relação do universo em que um todo envolve outros todos e ainda assim

é envolvido por outros todos. Num pensamento linear, a ênfase de qualquer compreensão se

prende na análise, na quebra de um todo em suas partes constituintes.

Ao entendermos cada parte e como se relacionam umas com as outras, podemos

efetuar um processo de síntese; isto é, de reconstrução do todo ou até mesmo de todos

diferentes do original, construído por partes cujas relações sejam fortes o suficiente para

assumir novas formas.

Com o holismo, a quebra analítica não existe, como não existe uma parte vazia,

desconfigurada de sua identidade, uma vez separada de seu contexto. Assim, ao invés de

partes, o universo holístico é composto de hólons organizados em estruturas holárquicas que

são esferas abrangentes, nas quais um todo transcende, mas inclui outro todo do qual se

mantém, tal como ocorrem as cores do arco-íris (WILBER, 2004). Em uma holarquia, a

importância entre as relações horizontal e vertical dos hólons ocorre conforme o contexto, o

intuito e a atenção de quem os contempla.

Num exemplo de estrutura holárquica, apresentado por Wilber, podemos nos referir à

composição da matéria orgânica que é essencialmente holística. Num hólons mais primordial,

que se manifesta em todos os outros todos está a luz, a qual é, ao mesmo tempo,

indiscriminadamente, onda ou partícula, etérea ou concreta. Outros hólons podem ser

identificados numa sequência arbitrária, cuja importância depende do contexto: o átomo, a

molécula, o genes, a célula, o organismo... Podemos visualizar elipses que se expandem

(figura 1), umas dentro das outras; em que cada uma é um todo, e cada todo se mantém

envolvendo outros todos.

Figura 1 - Exemplo da estrutura holárquica da matéria orgânica

onda energia

partícula molécula genes organismo átomo célula

99

Podemos considerar, segundo Wilber, que estruturas são padrões estáveis de eventos, e

que numa estrutura de holarquia os padrões holísticos podem ser variáveis, dependendo da

perspectiva do sujeito que a estuda.

Assim, ousemos fazer uma representação metafórica de uma dimensão holística em

uma configuração de ondas em elipses, considerando que uma elipse é um círculo

contemplado numa perspectiva lateral.

Transpondo essa ideia para aplicações do design universal, podemos examinar, a

seguir, interrelações entre cinco diferentes dimensões cujas naturezas holísticas podem se

interagir. Sempre com todos envolvendo outros todos, nos permitindo uma visão mais ampla,

para a composição da sociedade inclusiva:

� holarquias no contexto da ordem lógica;

� holarquias no contexto de identidade pessoal pelos vínculos sociais;

� holarquias no contexto da ação sobre o espaço ambiental;

� holarquias no contexto do poder do indivíduo no meio em que atua;

� holarquias no contexto da prática do design inclusivo.

Representando as estruturas e dimensões holárquicas citadas por meio de uma tabela

simples, e considerando-as em níveis de profundidade aproximada, podemos vislumbrar a

seguinte configuração em paralelo. Tal paralelismo é contextual e existe aqui para

vislumbrarmos com maior clareza a relação holística entre design universal, acessibilidade e

as exigências de normas técnicas.

Tabela 1 – Relações entre holarquias para a consolidação da sociedade inclusiva

conceito, ideia, impulso

fato ou expressão

mecanismo modelo rede sistema

corpo, mente, espírito

indivíduo tribo família comunidade população

autonomia, independência, espontaneidade

privacidade acessibilidade liberdade solidariedade iguais

oportunidades

espaço cognitivo psíquico

espaço pessoal

espaço funcional espaço cultural

espaço social espaço edificado

tecnologia assistiva, exclusiva

design adaptado

design adaptável design em

normas técnicas

design adequado

design universal

100

Devemos visualizar essa tabela como um todo holístico (no qual as relações entre os

todos representados são multidimensionais). Eis, abaixo, um modo de interpretação:

No contexto da ordem lógica, a base primordial de uma holarquia pode ser

representada por nossas “idéias”, por nossos “impulsos” para fazer algo. O conceito, ideia ou

impulso, é como uma energia sem forma que precisa ser moldada pela relação com o contexto

exterior (fato ou expressão) e que, por meio do mecanismo, modelo e rede de interconexões

com outros conceitos, ideias e impulsos que o antecederam, pode dar sentido ao sistema como

um todo. Não poderíamos lidar com a compreensão de um “novo sistema” se, de fato, não

estivéssemos nos familiarizando com um “novo conceito”. O “conceito” (que é um todo) se

consolida nas mentes como outro todo, enquanto “fato ou expressão”, que torna a ideia,

plausível, e a experiência, compartilhada. Em outra elipse, há o todo definido como

“mecanismo” pelo qual podemos reconhecer tanto a ideia quanto o fato, tomando a dimensão

necessária à aplicação operacional em procedimentos. Mecanismos, por sua vez embasam

“modelos”. Os modelos se expandem por meio de “redes”. Cada rede é por sua própria

natureza, outro todo. Quando redes se entrelaçam ao ponto de se justificarem, umas às outras,

temos aí o “sistema”.

A holarquia no contexto de identidade pelos vínculos sociais nos revela que uma

população não é um amontoado de pessoas, mas um sistema no qual um indivíduo encontra

referências de si mesmo. O indivíduo é constituído pelo hólon primordial e indissociável entre

“corpo, mente e espírito”. Cada indivíduo se reflete nas imagens de outros indivíduos afinados

com sua identidade própria que forma sua “tribo”. Cada indivíduo dá força e suporte

“família”, que é um hólons transcendente que define o conceito de “lugar”. “Indivíduos” em

harmonia reforçam tribos e famílias em paz, que atuam em conjunto com outros hólons, com

os quais convivem em “comunidade”. A “população” é, por sua vez, um hólons de expansão

das “comunidades”, que se apoiam mutuamente nos contextos locais, regionais e de nação.

Vejamos agora como são as coisas na dimensão do indivíduo. Esse é um indivíduo

que, ao mesmo tempo, é corpo, mente e espírito, além de ser a base da população. Não

podemos pensar em soluções para a população se essas irão desrespeitar o indivíduo. Não

podemos pensar em soluções que desrespeitem a relação do indivíduo com sua família.

Devemos manter em mente que aqui estamos lidando com um todo dentro do todo –

indivíduo dentro da sociedade.

Na holarquia do contexto da ação sobre o espaço ambiental, a acessibilidade é uma

dimensão que surge uma vez satisfeitas “autonomia, independência e espontaneidade”, que

são hólons primordiais indissociáveis, os quais, por sua vez, dão a um indivíduo o controle da

101

privacidade. Sem “acessibilidade” não há “liberdade”. A “liberdade de um indivíduo” se

restringe ao reconhecimento da “liberdade de seu vizinho”, senão se transforma em opressão.

À liberdade compartilhada chamamos de “solidariedade”, que resulta, por sua vez, em “iguais

oportunidades para todos”.

Todas essas imagens nos fazem refletir sobre o poder que temos dentro de nós

mesmos. Trata-se do poder que está no respeito de cada um. Não podemos conceber a ideia de

“liberdade” sem que essa esteja dentro da esfera da “solidariedade”. Não podemos ser falsos a

ponto de pensar em “solidariedade” se nem ao menos respeitamos a “privacidade”. Da mesma

forma, não podemos conversar sobre “oportunidades iguais” se noções de “autonomia”,

“independência” e “consistência” não estão presentes.

Partindo dessas noções, podemos discutir mais aprofundadamente a respeito de uma

linha de raciocínio que enfoca sobre o que deve ser a “acessibilidade”. É a “acessibilidade”

que está acima da “autonomia” e da “independência”, mas que tem como objetivo a noção de

“oportunidades iguais”. Talvez, aqui, já estejamos discutindo sociedade inclusiva.

Falemos um pouco sobre a questão do espaço. Como é que podemos nos utilizar dele?

Não é simplesmente fazendo alterações parciais num espaço edificado ou mesmo propondo

novas maneiras de lidar com o social. Essas coisas de nada adiantam se, no fundo, as pessoas

não têm contemplado seu “espaço pessoal”, seu “espaço funcional”. Não estou me referindo à

acessibilidade para pessoas específicas, mas para “a população”. O espaço construído de

países, cidades, edifícios e objetos é um amplo “sistema” que deve ser concebido com base no

“design universal”, no qual a “acessibilidade” é um “espaço funcional”, simplesmente. A

“liberdade” equivale ao maior valor de uma cultura.

O “espaço social” se distingue por “solidariedade” e preserva o “design adequado”

para uso da “comunidade”. O “design adaptado” se restringe às especificidades do

“indivíduo” para funcionar bem, como expressão de seu “espaço pessoal”.

Ao juntarmos todos esses aspectos, chegamos à última dimensão, que é a questão do

“design universal”. Esse tipo de design somente se justifica quando a gente olha em

perspectiva múltipla e, assim fazendo, conseguimos ver que precisávamos ter passado pelos

erros (ou pelas falhas do que entendemos ser design adaptado) para conseguirmos chegar a

um design que sirva a todos. A “tecnologia assistiva” é uma maneira pessoal e privativa de

ver as coisas, assim como podemos pensar em um “design exclusivo” – aquele tipo de design

que nos leva às lojas para comprar determinado produto ou artefato. Muitas são as pessoas

que buscam pelo design exclusivo, mas são poucas aquelas que estão abertas para um design

inclusivo.

102

Sete princípios do design universal (Story, 2000) foram publicados pelo Center for

Universal Design, nos EUA. São os seguintes: (1) uso equiparável; (2) flexibilidade no uso;

(3) uso simples e intuitivo; (4) informação perceptível; (5) tolerância ao erro; (6) pouco

esforço físico; (7) tamanho e espaço por aproximação e uso. O sucesso desses princípios em

todo o mundo se deve à busca de consenso entre experts para respeitarem pontos comuns em

campos do conhecimento sobre as habilidades dos usuários em relação ao meio edificado e ao

contexto da atividade. Tais princípios se tornaram consenso porque envolvem o processo

histórico de aprimoramento da acessibilidade a ser construída para todos. Se nos detivermos

aos princípios (6) e (7), veremos que se relacionam diretamente com procedimentos

operacionais dentro de um certo espaço – a questão da mobilidade propriamente dita, sendo

que essa foi a base conceitual das primeiras normas técnicas americanas. Os princípios (3) e

(4) já entram em um outro plano, que é o cognitivo: em que assimilamos e processamos as

informações. O princípio (5) lida com variações em função da diversidade do perfil dos

usuários ao lidar tanto com os princípios (6) e (7), por um lado, quanto com os princípios (3) e

(4), por outro. Os princípios (1) e (2) são fundamentais e globalizantes, pois tratam da questão

da equiparação. Essa é aquela questão que pensa a inclusão como sendo uma oportunidade a

ser dada para que cada um possa agir da melhor maneira possível.

Se juntarmos tudo isso, iremos ver, dentro da noção holística, que esses planos se

interagem. Considerando que isso acontece de fato, podemos olhar para todos esses hólons de

uma maneira mais organizada. Por exemplo, podemos estabelecer formas de relação entre o

design universal como um sistema. Feito isso, podemos pensar que um trabalho, baseado nas

normas técnicas de acessibilidade somente forma uma situação que desconsidera o contexto.

E, se o contexto é desconsiderado, o máximo que essas normas podem oferecer é um modelo,

por certo uma representação distante da realidade. É preciso ver na prática como as coisas

funcionam. Podemos pensar, então, que as oportunidades de fato serão iguais somente quando

tivermos um espaço universal edificado. Do contrário, não estaremos lidando com a busca

dessa igualdade de oportunidades.

7. CONCLUSÃO

Design Universal como design permanente de boa qualidade

Uma interpretação linear sobre design universal pode ater-se à definição de soluções

inovadoras, que possam ser incorporadas por lei ao nosso dia-a-dia, isoladamente. Por elas,

aumentamos nosso conhecimento sobre normas técnicas e ampliamos as oportunidades para

103

as pessoas. Isso pressupõe que algo possa ser criado – ou adicionado – lentamente à ordem do

dia, substituindo as soluções convencionais já existentes por algo progressivamente melhor.

A saída de lógica holística para esse impasse do pensamento linear é assegurar a

aplicações do design universal as experiências cíclicas e contextuais das práticas inclusivas,

pois o design universal resultará do processo de aprimoramento nas definições dos problemas

em cada contexto para prover meios de crescimento das habilidades intrínsecas dos usuários.

Antes de colocarmos os princípios do design em prática, devemos primeiramente entendê-los

em sua essência. O fato de que esses princípios possam ser contemplados de uma maneira

linear não implica que as relações entre eles também devam ser interpretadas dessa maneira.

Devemos percebê-los interagindo de forma circular, holística e global. Isso significa que,

embora cada um deles tenha sua própria essência, esses princípios somente se manifestam

quando têm um vínculo de envolvimento e transcendência, uns com todos os outros.

Não devemos, portanto, aplicar rótulos ou “discriminação positiva” e compensatória

para resolver problemas da acessibilidade. Devemos buscar um desenvolvimento cada vez

maior e aprofundado do conhecimento holístico para que as soluções possam ser aprimoradas

verdadeiramente para todos.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS (2004). NBR 9050 –

Acessibilidade a Edificações, Mobiliário, Espaços e Equipamentos Urbanos. In >>http://www.mj.gov.br/sedh/ct/corde/dpdh/corde/ABNT/NBR9050-31052004.pdf<<, visitado em 27/06/2007.

MACE, R. (1985), Universal Design, Barrier-free Environments for Everyone. Los Angeles, CA: Designers West.

NISBETT, R. (2004). The Geography of Thought: How Asians and Westerners Think Differently and Why. New York: Freepress.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA DO BRASIL. Decreto Federal 5296, 02 de dezembro de 2004. Publicado no D.O.U, nº 232, sexta-feira, de 03 de dezembro de 2004. In >>http://www.mj.gov.br/sedh/ct/corde/dpdh/sicorde/dec5296.asp<<, visitado em 27/06/2007.

STEINFELD, E. (1994). “Arquitetura Através do Desenho Universal”. Simpósio

Internacional de Acessibilidade ao Meio Físico – SIAMF/Rio - Anais. Brasília: CORDE.

104

STORY, M. (2000), “Principles of Universal Design”. In Universal Design Handbook, edited by E. Ostroff and W. Preiser. New York: McGraw-Hill. 10.3-10.19.

WILBER, K. (2004) Psicologia Integral: Consciência, Espírito, Psicologia, Terapia. N.R. Eichemberg (trad.). Série Psicologia, Nova Consciência. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix.

105

Tecnologias para Reabilitação

Marcos Pinotti1

Danilo Alves Pinto Nagem2

Claysson Bruno Santos Vimieiro3

Breno Gontijo do Nascimento4

Daniel Neves Rocha5

Kátia Vanessa Pinto Menezes6

A primeira dificuldade em definir a atuação de um engenheiro nesta área é especificar

o nome para tal ação. Muitos a definem como Engenharia de Reabilitação. A área de atuação

também pode ser definida como Tecnologia Assistiva ou Ajuda Técnica. A definição ou os

nomes empregados podem não significar muito para os usuários, que necessitam de

equipamentos, dispositivos ou sistemas para realizar suas tarefas cotidianas de alimentação,

higiene pessoal, deslocamento ou lazer. Por outro lado, para quem trabalha no

desenvolvimento dessas tecnologias e/ou as vem aplicando, pode ser importante defini-las por

área de atuação quando esta atividade for financiada pela sociedade.

Como em qualquer país, não há recursos suficientes para prover todos os pacientes

com as últimas inovações tecnológicas, em geral muito caras, realiza-se uma priorização das

necessidades tratadas como essenciais. Nesse contexto, países com estrutura arquitetônica e

historicamente mais sensíveis aos indivíduos com limitações sensoriais ou de movimento têm

uma definição mais abrangente de necessidades consideradas essenciais do que a de outros

países, especialmente aqueles que não dispõem de recursos para contemplar tais necessidades.

No caso de nosso país, há um componente muito positivo. Ações de conscientização e

de estudo sobre o tema, como é o caso da Sociedade Inclusiva, expõem à sociedade esses

problemas, as limitações e as desigualdades que surgem das deficiências sensoriais e motoras.

Como consequência, surge uma justa pressão para que se ampliem as definições das

1 Doutor, Professor do Departamento de Engenharia Mecânica da UFMG 2 Mestre em Engenharia Mecânica, aluno de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica da UFMG 3 Doutor em Engenharia Mecânica pela UFMG 4 Mestre em Engenharia Mecânica, aluno de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica da UFMG 5 Mestre em Engenharia Mecânica, aluno de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica da UFMG 6 Doutora em Engenharia Mecânica pela UFMG

106

necessidades consideradas essenciais. Muitas vezes, o atendimento desses anseios esbarra na

falta de recursos (a tecnologia existe, mas a um alto custo) ou na inexistência da tecnologia

adequada à demanda.

Existem tecnologias de alto custo (causado por características intrínsecas ou pelos

royalties envolvidos), tecnologias difíceis de ser implementadas e as tecnologias não

desenvolvidas ou adaptadas ainda. Para se entender o custo envolvido em seu

desenvolvimento e aplicação, pode-se dividi-lo em diversos componentes – custo de

desenvolvimento, custo de propriedade intelectual, custo de obtenção e custo de aplicação da

tecnologia.

O custo de desenvolvimento relaciona-se a todo, o recurso investido na concepção e

testes de conceito da tecnologia, sendo geralmente coberto por órgãos de fomento público ou

por pesquisas financiadas pela indústria. Esse custo tenderá a ser alto se envolver o

desenvolvimento de todo o arcabouço tecnológico; poderá ser baixo se envolver apenas o

incremento de uma tecnologia existente ou adaptação de uma tecnologia utilizada em outra

área.

O custo de propriedade refere-se à proteção da propriedade industrial/intelectual e ao

licenciamento da tecnologia. Uma vez que o valor de uma tecnologia se acha intimamente

ligado a sua capacidade de inovação e às barreiras impostas aos concorrentes, o custo de

propriedade será alto para os países que não são capazes de produzir inovação, pois terão de

adquiri-la a preço de mercado. Quando há inovação tecnológica no próprio país, os custos de

propriedade de produtos estrangeiros tendem a ser mais baixos, pois a concorrência faz com

que se atinja o equilíbrio entre a remuneração do conhecimento e a inibição da concorrência.

O custo de obtenção mostra-se relacionado com as dificuldades de se obter o produto

ou dispositivo (processo de fabricação especializado) ou a matéria-prima (material de alto

custo agregado). Esse custo será alto se os produtos ou componentes forem importados de

países com mão-de-obra mais cara, se utilizarem matéria-prima de alto valor agregado ou se

for muito específica, tendendo a ser mais baixo nas situações opostas ou se a produção se der

no próprio país.

O custo de aplicação refere-se à dificuldade de difusão da tecnologia, por exigências

de serviço especializado com distribuição, treinamento, divulgação e manutenção. Também

influencia no custo a eventual necessidade de procedimentos adicionais de treinamento

especializado e seguro, quando a aplicação inábil da tecnologia possa representar risco à

saúde. Portanto, o esforço para a inovação, ou seja, a geração de tecnologia nacional, permite,

a um só tempo, a ampliação da possibilidade de atendimento e a redução dos custos.

107

Deve-se ter em mente que alta tecnologia não significa alto custo. No Brasil, as ações

de inovação, apesar de terem a necessária componente de recuperação do investimento,

podem e devem ser implementadas para atender à imensa demanda reprimida. Uma vez que

tais tecnologias são necessárias por todo o país, essa característica favorece o

empreendedorismo regional, com duplo benefício: geração de emprego e renda, e atendimento

à demanda social. Nesse contexto, devem ser incentivadas e apoiadas as ações de fomento à

geração de tecnologias que contribuam para melhorar a qualidade de vida das pessoas e sua

difusão por todo o país, atraindo interesse de pequenos e médios empreendedores.

É nesse panorama que o Laboratório de Bioengenharia da UFMG atua, desde 1999, no

desenvolvimento de tecnologias para a área de saúde. Entre as ações realizadas, uma

importante parcela se volta para a Engenharia de Reabilitação. Neste capítulo, pretende-se

mostrar algumas dessas tecnologias.

1. TECNOLOGIA DOS MÚSCULOS ARTIFICIAIS PNEUMÁTICOS

Músculos são estruturas contráteis que, ao serem acionadas, aproximam sua origem à

inserção muscular. Em engenharia, a função do músculo é classificada como a de um atuador

linear. Diversos mecanismos podem ser utilizados como atuadores lineares e,

consequentemente, como músculos artificiais. Destes, um dos mais engenhosos é o músculo

artificial pneumático, descrito pela primeira vez por Gaylord (1958).

Seu princípio de funcionamento baseia-se no fato de que uma estrutura elástica em

forma tubular aumenta seu volume ao ser pressurizada e, como consequência, encurta seu

comprimento. A ação de encurtar-se faz com que surja, nesse tubo flexível e elástico, uma

força que aproxima suas extremidades. Essa força de contração depende da pressão imposta

ao interior do tubo. Para evitar que a estrutura se expanda até o rompimento de suas paredes, o

tubo elástico é envolvido por uma malha semielástica que limita o aumento de volume.

É possível obter combinações de tubo elástico, malha externa e pressões de

alimentação de forma que, ao ser acionado, o dispositivo resultante exiba percentual de

redução de comprimento e força de contração compatíveis com um músculo esquelético. Tais

combinações são conhecidas como “músculos artificiais pneumáticos”.

A Figura 1 mostra o esquema de funcionamento de um músculo artificial pneumático.

A literatura apresenta diferentes versões de músculos pneumáticos, alguns deles disponíveis

comercialmente. A grande limitação desses músculos é o seu custo e a pressão necessária para

108

iniciar sua operação. Para iniciar o movimento, a maioria dos músculos pneumáticos

artificiais necessita de pressões de 2 a 3 kgf/cm². Tais características não são compatíveis com

o projeto de uma órtese de quadril atuada por esses músculos, pois o movimento pode ocorrer

a pressões mais baixas. Decidiu-se, então, desenvolver uma versão de músculo pneumático

que fosse leve e operasse em níveis mais baixos de pressão, porém, que fosse capaz de

mimetizar a função dos músculos em órteses de membros inferiores.

Figura 1 – Esquema de funcionamento de um músculo artificial pneumático. A ação da pressurização do músculo pneumático faz com que haja aumento do seu diâmetro, com consequente encurtamento e geração de

força de contração.

Fonte: Nagem, 2005.

As Figuras 2, 3 e 4 mostram a concepção da montagem (Nagem et al., 2002), a

aparência final e as curvas de operação de uma das versões do músculo pneumático

desenvolvido no Laboratório de Bioengenharia da UFMG.

109

Figura 2 – Detalhe da montagem de uma extremidade do músculo pneumático. A combinação de materiais e a concepção de montagem permitiram diminuir a pressão de operação, tornando o músculo adequado

para uso em órteses de membros inferiores. Fonte: Nagem, 2005.

Figura 3 – Vista do músculo artificial pneumático da UFMG. Fonte: Nagem, 2005.

Figura 4 – Curvas de operação do músculo pneumático de 280mm de comprimento e 17mm de diâmetro em diferentes cargas.

Fonte: Nagem, 2005.

2. ÓRTESE DE QUADRIL COM MÚSCULOS ARTIFICIAIS PNEUMÁTICOS

110

Uma vez desenvolvido o músculo pneumático, foi possível vislumbrar o próximo

passo: realizar um movimento articular como consequência do acionamento do músculo

artificial. Decidiu-se por aplicar o músculo pneumático a uma órtese para realizar o

movimento de flexão do quadril. O desafio era projetar um músculo apto a realizar o

movimento, sobrevivendo a milhares de ciclos de operação, dotado de um sistema de ar

comprimido, portátil, acionado por controle voluntário do usuário.

Os requisitos do projeto foram estabelecidos ao se escolher um caso clínico bem

definido: prover uma órtese de quadril para uma paciente com histórico de poliomielite. A

execução desse projeto fez emergir uma série de novos desafios que permitiram produzir

muitos avanços na área de dispositivos para controle voluntário de órteses (Nascimento,

2005), na área de modelagem biomecânica da marcha em situações diferentes daquelas

consideradas fisiológicas (Vimieiro, 2004) e no desenvolvimento de músculos pneumáticos

mais eficientes.

O trabalho de uma equipe multidisciplinar, composta por engenheiros de diferentes

especialidades (mecânicos, eletrônicos e mecatrônicos) e fisioterapeutas, foi fundamental para

o sucesso do projeto. A Figura 5 mostra a voluntária desse estudo, portando o que foi

chamado de exoesqueleto (Nascimento, 2005). Devido à severidade das sequelas da

poliomielite, não foi possível utilizar o acionamento por sinais mioelétricos. Nessa órtese, foi

empregado um sensor de intenção de movimento que era sensível à variação angular da

articulação do quadril. Ao captar o movimento, acionava o músculo artificial para realizar a

flexão do quadril.

Figura 5 – Paciente com a órtese de quadril durante teste de marcha no Laboratório de Análise de Movimento da UFMG.

Fonte: Nascimento, 2005

111

A Figura 6 mostra a variação do ângulo da articulação do quadril (no qual o sensor de

intenção de movimento estava instalado), em função da posição dos membros inferiores e da

configuração assumida pela órtese durante o teste de marcha. É importante notar que a

posição ortostática apresenta 35º de flexão, devido às sequelas da poliomielite. Essa figura foi

muito inspiradora e precipitou a decisão de não avançar com os testes clínicos até que fosse

organizado um modelo biomecânico de menor gasto energético em função do ângulo de

flexão do quadril em posições ortostáticas. Tais configurações refletem a realidade clínica e

de posse desses resultados, se podem gerar elementos confiáveis para a produção de órteses

mais eficientes e que respeitam as limitações de movimento decorrentes das lesões. Esses

estudos estão em andamento.

FIGURA 6 - Comportamento da articulação do quadril da paciente considerando posição ortostática já apresentando 35o de flexão. Fonte: Nascimento, 2005.

3. ÓRTESE FUNCIONAL DE MÃO

Órtese de mão é um dispositivo externo aplicado ou unido à mão e ao pulso para

melhorar a sua função, controlando o movimento, fornecendo a sustentação para objetos,

corrigindo e impedindo deformidades. Em contraste com órteses funcionais descritas na

literatura – que se apresentam pesadas, não têm boa estética e, muitas vezes, necessitam do

movimento do punho para ser ativadas –, desenvolveu-se na UFMG uma órtese funcional

capaz de permitir à mão a realização de preensão, independentemente do movimento do

punho. Utilizou-se um atuador eletromecânico e tendões artificiais aplicados em uma luva

especialmente modificada, com controle voluntário, realizado por meio de sinais mioelétricos.

112

Testes preliminares mostraram que a órtese é eficaz para realizar a preensão de objetos

de diferentes formas, pesos e tamanhos, apresentando características importantes, como

simplicidade do controle, facilidade do uso, funcionalidade e excelente estética. Com o uso da

órtese, indivíduos com perda da função preensora da mão poderão se engajar mais

independentemente em atividades diárias, de lazer e vocacionais, melhorando sua autoestima

e qualidade de vida. A Figura 7 mostra as faces ventral e dorsal da órtese. Por se tratar de uma

luva, a órtese pode ser facilmente calçada e, devido à simplicidade de seu acionamento por

tendões artificiais, é leve e possibilita boa aparência.

( a ) ( b )

Figura 7 – (a) Face ventral e (b) face dorsal da órtese funcional da mão desenvolvida na UFMG.

Fonte: Rocha, 2007.

Testes pré-clínicos foram necessários para ajustar a funcionalidade da órtese às

necessidades do seu uso em atividades cotidianas. A relação entre a força de preensão nos

dedos da órtese e a força no tendão artificial foi determinada a partir dos resultados

experimentais para cargas pré-determinadas. Foi concebido um circuito eletrônico que usa a

análise da corrente do motor de corrente contínua para controlar o torque do motor e,

consequentemente, a força de tração no tendão artificial. O sistema desenvolvido foi capaz de

controlar a força de preensão de objetos, tornando a órtese segura ao usuário. A Figura 8

mostra um exemplo de ativação da órtese, utilizando o par de músculos antagônicos bíceps e

tríceps.

113

( a ) ( b )

Figura 8 – Acionamento da órtese utilizando sinais mioelétricos do bíceps: (a) Ausência de contração muscular; (b) Acionamento da órtese pela contração do bíceps.

Fonte: Menezes, 2005.

Os testes clínicos já foram autorizados e se encontram em andamento.

4. TELEFONE ACESSÍVEL

Telefones públicos geralmente são instalados a uma altura padronizada (1,70m),

apropriada para uma pessoa adulta de estatura mediana poder manuseá-lo em pé,

confortavelmente. É possível encontrar telefones públicos instalados em uma posição mais

baixa (1,20m). A Lei nº 2.062, de 17 de junho de 2001, Artigo 2º, dispõe que: “Ao menos

uma das caixas de Correio e Telefones Públicos, quando houver, deverá ser instalada no

máximo a 1,20 metros de altura do piso”. A exigência de um telefone em altura diferenciada

ao lado dos demais, de altura padronizada, torna dispendiosa a instalação, pois eleva o número

de aparelhos num mesmo local.

Tendo em vista esse problema e com o propósito de reduzir custos, foi desenvolvido

um sistema de regulagem de altura para telefones públicos (Simões et al., 2003). Testes

preliminares do telefone acessível demonstraram sua utilidade e durabilidade. O princípio de

funcionamento baseia-se na instalação do aparelho telefônico em um sistema de contrapeso,

com movimento impedido por meio de uma trava. Essa trava, de fácil acionamento, permite

que se libere o movimento do contrapeso, fazendo com que o telefone seja erguido ou

abaixado com grande facilidade. Dessa forma, não há necessidade de se instalarem telefones

públicos a alturas diferentes. O dispositivo, denominado “telefone acessível”, cumpre a tarefa

de permitir o acesso a qualquer usuário. A Figura 9 mostra um estudo ergonômico do telefone

acessível.

114

Figura 9 – Estudo ergonômico do telefone acessível. A instalação deste dispositivo torna o telefone público acessível a qualquer usuário.

5. COMENTÁRIOS FINAIS

O conhecimento científico e o seu método são as bases da tecnologia. Países que são

capazes de transformar conhecimento científico em tecnologia têm mais condições de

sustentar seu desenvolvimento. Qualquer tecnologia é efêmera sem aplicação. O papel

primordial de um engenheiro consiste em ser o elemento de ligação entre o conhecimento

científico e a tecnologia e entre tecnologia e sua aplicação.

Alta tecnologia não significa, necessariamente, alto custo. Por outro lado, a aplicação

de determinada tecnologia acha-se intrinsecamente ligada à sua viabilidade econômica. Dessa

forma, o sucesso da aplicação de determinada tecnologia na reabilitação ou no auxílio de

pessoas com deficiência será atingido quando precedido de trabalho na transformação de

conhecimento científico em tecnologia, no trabalho de tornar essa tecnologia viável

economicamente e no trabalho de empreendedores para tornar a tecnologia disponível a um

custo razoável. Muitos desafios devem ser vencidos e muitos deles se apresentam como

intransponíveis. No entanto, a mensagem deste capítulo é que se atingirá o sucesso ao se

acreditar que nada resiste ao trabalho.

AGRADECIMENTOS

A dedicação e o talento da equipe do Laboratório de Bioengenharia tiveram suporte no

fundamental apoio financeiro (recursos e bolsas) da Financiadora de Estudos e Projetos

(FINEP), do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq), da

Coordenadoria de Apoio ao Pessoal de Ensino Superior (CAPES) e do Serviço Brasileiro de

Apoio às Pequenas e Médias Empresas (SEBRAE).

115

116

REFERÊNCIAS

GAYLORD, R.H. Fluid actuated motor system and stroking device. United States Patent 2844126, 1958. MENESES, K. V. P. Desenvolvimento de um protótipo de órtese funcional para mão. 2005. 66f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Mecânica) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. NAGEM, D. A. P. Determinação da Força, da Pressão e do Volume de um músculo pneumático em um Exoesqueleto de Membro Inferior, para Restaurar o Padrão de Marcha Utilizando um Sinal Mioelétrico para a Ativação. 2005. 79f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Mecânica) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. NASCIMENTO, B. G. Desenvolvimento de um dispositivo para controle de ativação do músculo artificial pneumático por meio da variação angular da articulação quadril. 2005. 71f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Mecânica) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. ROCHA, D. N. Desenvolvimento de um sistema de controle para a órtese funcional de mão da UFMG. 2007. 77f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Mecânica) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, NAGEM, D. A. P.; FABRIS, G.; PINOTTI, M. Atuador fluido mecânico de fácil montagem constituído de dois tubos maleáveis e sistema de fixação de anilhas. F15B 15/00, F16L 11/12, BR, MU8203338-2, 27 dez. 2002, 15 fev. 2005, Nº da Revista: 1899. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, SIMOES, D. P.; PINOTTI, M.; MESQUITA, G. A. ; VIMIEIRO, Claysson B. S. ; PINTO, A. D. V. . Telefone público com regulagem de altura. H04M 17/00, BR, MU8301505-1, 27 maio 2003, 01 mar. 2005, Nº da Revista: 1899. VIMIEIRO, C. B. S. Desenvolvimento de um exoesqueleto com aplicação de músculos artificiais pneumáticos em sua articulação. 2004. 69f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Mecânica) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.

117

Os desafios da inclusão digital: acesso, capacitação e atitude

Augusto Dutra Galery1

Existem duas posições claras a respeito da inclusão digital, atualmente. Apesar de

ambas serem favoráveis à inclusão, seus objetivos têm se mostrado bastante diferentes.

Por um lado, existe uma pressão econômica justificando a inclusão digital a partir da

necessidade do mercado, ao defender os impactos benéficos do comércio digital, como a

diminuição dos custos e o aumento do público alcançado pelo comércio (cada computador

conectado se torna um ponto de vendas em potencial)2. Mesmo do ponto de vista dos projetos

de governo eletrônico, essa posição econômica aparece claramente, à medida que se defende

que o governo eletrônico é uma forma de universalizar os serviços, diminuindo os custos do

Estado. Além disso, a inclusão digital vem sendo discutida como um dos gaps entre os países

desenvolvidos e os em desenvolvimento, e diversos autores defendem que o avanço

tecnológico mostra-se intrinsecamente ligado ao desenvolvimento econômico de uma nação3.

Contrapõe-se a essa posição econômica uma visão social da inclusão digital, que

defende que o acesso à informação, atualmente, só é possível mediante o acesso ao mundo

digital. A Internet vem tomando um lugar central como repositório do conhecimento humano.

Silveira (2001) afirma que

Para uma pessoa incluída na rede, a navegação estimula a criatividade, permite realizar pesquisas sobre inúmeros temas e encontrar, com maior velocidade, o resultado de sua busca. Quem está desconectado desconhece o oceano informacional, ficando impossibilitado de encontrar uma informação básica, de descobrir novos temas, de despertar novos interesses (p.17).

Além disso, a Internet significa um espaço democrático,no qual as pessoas podem

expressar sua opinião a quaisquer outras que tenham acesso a um computador conectado, em

toda parte do mundo e, por isso, alguns teóricos, como Lévy (1996), vêem a tecnologia como

um potencial transformador.

Porquanto o embate entre essas duas posições ainda se prolongará por algum tempo –

e admitindo a importância de ambas – propõe-se, no presente texto, discutir um pouco sobre

os principais desafios a serem enfrentados na busca de uma sociedade digitalmente incluída. 1 Mestrando em Administração de Empresas e Professor convidado, Enquadramento Funcional da Universidade Presbiteriana Mackenzie. 2 Conferir, por exemplo, Haltiwanger e Jarmim (2000), quando afirmam que a emergência do comércio eletrônico afeta a estrutura da economia, modificando a forma com que os produtos e serviços são produzidos e distribuídos. 3 Conferir, por exemplo, Rogers (2003) e Mokyr (1990).

118

Para isso, far-se-á uma breve revisão teórica sobre o conceito de inclusão digital para, em

seguida, tratar da questão da difusão e adoção da tecnologia, entendendo-se que três fatores

devem ser esclarecidos: o acesso à tecnologia, a capacitação para usá-la e a atitude que as

pessoas têm sobre ela.

1 INCLUSÃO DIGITAL

O conceito de inclusão digital é novo e ainda não se acha sedimentado. Para Silveira

(2001, p.5), a inclusão digital relaciona-se com “prover o acesso dos segmentos mais pobres

da população às tecnologias da informação”. Para esse autor, além de, simplesmente, ter

acesso à tecnologia, faz-se necessário que essa população apresente condições de gerar

conhecimento a partir da acessibilidade à mesma.

A exclusão digital seria, então, a nova face da exclusão social, considerando que a

camada mais pobre da população não tem acesso aos recursos necessários para manter um

computador caseiro ou para conectar-se à Internet, dados os custos a isso relacionados. Ainda

de acordo com Silveira, o apartheid digital diminui as possibilidades de emprego, a

capacidade de comunicação e o acesso e questionamento aos produtores de conhecimento.

Torna-se claro, para esse autor, que a exclusão digital relaciona-se ao uso da Internet:

“A exclusão digital ocorre ao se privar as pessoas de três instrumentos básicos: o computador,

a linha telefônica e o provedor de acesso. O resultado disso é o analfabetismo digital, a

pobreza e a lentidão comunicativa, o isolamento e o impedimento do exercício da inteligência

coletiva” (p.18).

Iikuza (2003) faz uma boa revisão bibliográfica do tema inclusão/exclusão digital,

começando por citar seus “sinônimos”, como digital divide4, apartheid digital, infoexclusão,

os “sem-tela” e digital gap. De acordo com esse autor, o conceito ainda não está bem

consolidado e permite múltiplas interpretações, o que, provavelmente, se deve ao fato de ser

ele um conceito novo, pois a busca de sua compreensão começou com a introdução e difusão

da informática e, em especial, da Internet, na sociedade, a partir de 1980 (idem, 2003, p.36).

Na opinião de Iikuza, o termo exclusão digital “parece remeter a uma compreensão da

marginalidade” (idem, p.38), ou seja, de uma diferenciação entre os que fazem parte do

sistema econômico – os “incluídos” – e aqueles que se encontram à margem desse processo.

Cruz (2004, p.9), escrevendo para o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade

Social, afirma que “a inclusão digital deve favorecer a apropriação da tecnologia, (...) que

4 A tradução “divisão digital” será utilizada durante o presente texto.

119

torna o indivíduo capaz de decidir quando, como e para que utilizá-la”. Além do Instituto

Ethos, outras organizações brasileiras têm se voltado para a questão da inclusão digital. O

Comitê para Democratização da Informática (CDI) define sua missão como sendo a de

“promover a inclusão social de populações menos favorecidas, utilizando as tecnologias da

informação e comunicação como um instrumento para a construção e o exercício da

cidadania” (CDI, 2004). De acordo com essa organização, a inclusão digital vincula-se à

empregabilidade, à geração de renda, ao acesso à informação e à cidadania.

A Camara e-net afirma que a universalização do acesso às pessoas físicas, por meio da

inclusão digital via escolas, centros comunitários, bibliotecas e diversos outros, traria como

benefícios: 1) a evolução de outros processos de relacionamentos digitais; 2) a redução de

custos e a otimização de processos, em especial para as empresas e o governo; 3) o aumento

da possibilidade de contato e troca de informações entre os indivíduos, possibilitando, a um

tempo, desenvolvimento pessoal e profissional; 4) comodidade, praticidade, agilidade e

segurança no acesso a serviços públicos e privados e à cultura e 5) apoio ao processo

educacional (CAMARA E-NET, 2003).

Fora do Brasil, o presente tema vem sendo tratado como o gap de oportunidades,

experimentado por aqueles que têm um acesso limitado à tecnologia, seja por causas

econômicas, educacionais, físicas ou culturais. Tal fenômeno tem sido chamado de divisão

digital (DIMAIO, BAUM e KELLER, 2002, p.2). Uma tendência entre autores estrangeiros é

ver o fenômeno como multidimensional. Cuneo (2002) propõe, de forma bastante completa,

doze dimensões para se entender a exclusão digital: demográfica; geográfica/engenharia;

gerontológica; de gênero; educacional; econômica; sociológica; do trabalho; cultural, de

deficiências físicas; política e psicológica.

Em resumo, entendendo-se a inclusão digital como a utilização da tecnologia para

maior inclusão social. Seja por fatores econômicos ou sociais, faz-se necessário entender o

que leva os indivíduos a adotarem uma tecnologia.

2. ADOÇÃO DE TECNOLOGIA

“Fazer uma nova ideia ser adotada, mesmo quando ela tenha vantagens óbvias, é

difícil”. Dessa forma, Rogers (2003, p.1, tradução nossa) começa seu livro sobre a difusão de

inovações. Ele escreve ainda

Difusão é um tipo de mudança social, definida como o processo através do qual ocorrem alterações na estrutura e na função de um sistema social. Quando novas ideias são inventadas, difundidas, adotadas ou rejeitadas,

120

levando a determinadas consequências, ocorre uma mudança social (idem, p.6, tradução nossa).

Assim, a inclusão digital pode ser entendida como a difusão das tecnologias digitais,

em especial da Internet, dentro de sistemas sociais. “Um sistema social é definido como o

conjunto de unidades interrelacionadas que se unem na resolução de problemas para alcançar

uma meta comum” (idem, p.23, tradução nossa).

O processo de adoção que leva à difusão de uma tecnologia, a partir das atividades do

adotante, reúne cinco etapas: (1) conhecimento: tomada de conhecimento sobre uma

inovação; (2) persuasão: formação da atitude, positiva ou negativa, a respeito da inovação; (3)

decisão: decisão de adotá-la ou rejeitá-la; (4) implementação: uso da nova tecnologia e (5)

confirmação: reforço ou abandono da decisão de uso.

Moore (1999) ressalta que o papel do indivíduo e da comunidade é essencial para a

adoção. O autor afirma que “a tecnologia é absorvida em uma dada comunidade em estágios

correspondentes aos perfis psicológicos e sociais dos vários segmentos dentro desta

comunidade” (idem).

Pereira (2002) argumenta que a adoção de tecnologia deve ser estudada do ponto de

vista do adotante e não das atividades de implantação ou de fatores ligados à tecnologia em si.

Para esse autor, a adoção é um processo de sensemaking5 que não começa com a adoção da

tecnologia em si, mas “com a formação das percepções iniciais e representações simbólicas da

tecnologia” (idem, p.41, tradução nossa). Ou seja, a adoção ou não de uma tecnologia depende

dos sistemas de crenças e cognições do futuro usuário. Segundo o autor, as atitudes a respeito

da adoção formam-se em experiências passadas ou provêm de experiências com tecnologias

similares, não só ditando o comportamento em relação a uma adoção atual, como também

moldando, em parte, a forma pela qual um indivíduo vê a si mesmo – sua identidade. Essas

atitudes podem se formar a partir de feedbacks recebidos no passado, de suas ações ou de sua

observação das ações de outros e de sua reflexão sobre suas percepções (idem, p.42).

Bloch, Pigneur e Segev (1996) definem alguns dos fatores ligados à adoção de uma

nova tecnologia pelos consumidores (Figura 1).

5 Sensemaking seria o “processo cíclico de tomar uma ação, extrair informações dos estímulos resultantes dessa

ação e incorporar tais informações e estímulos dessa ação nos modelos mentais que guiarão novas ações” (PEREIRA, 2002, p.40).

121

Figura 1. Fatores que afetam a adoção de novas tecnologias

Fonte: Bloch; Pigneur; Seveg, 1996

Esses autores chamam a atenção para o fato de que a relutância das pessoas em mudar

(resistência às mudanças) representa uma questão-chave na adoção. Morris e Venkatesh

(2000) apontam que existem evidências significativas de que a atitude diante da tecnologia

influencia sua adoção, de forma veemente, seja em curto ou em longo prazo, principalmente

entre usuários jovens.

A partir dos conceitos de inclusão digital e adoção de tecnologia, acredita-se que, ao se

pensar em estratégias de inclusão digital, as estratégias a se traçarem precisam ser planejadas

e avaliadas a partir de, pelo menos, três variáveis centrais: o acesso à tecnologia, a

capacitação para seu uso e a atitude das pessoas em relação a esta.

3. ACESSO À TECNOLOGIA

O acesso à tecnologia é a dimensão mais considerada nas estratégias de inclusão

digital e, sem dúvida, seu pilar central. Por isso, o acesso constitui parte determinante de

políticas de inclusão digital governamentais, em todos os níveis.

Por acesso, é preciso entender desde o barateamento das tecnologias até os

investimentos em infraestrutura tecnológica, passando pela implantação de telecentros,

montagem de laboratórios de informática nas escolas públicas e privadas, além de outras

iniciativas. Albertin (In CAMARA-E.NET, 2003, p.18) define essa infraestrutura como a

implantação da infovia pública, ou seja, de uma

Barreiras de Uso

• Necessidade de infra-estrutura para dar suporte à tecnologia

• Aspectos percebidos a respeito da nova tecnologia

• Curva de aprendizagem

Tecnologia

• Benefícios percebidos

• Custos diretos

• Custos indiretos (p.e. treinamento)

Soluções Alternativas

• Tecnologias concorrentes

Fornecedores

• Propensão a investir

• Propaganda

• Fragmentação do market share do fornecedor

Clientes

• Taxa de renovação para produtos substituídos

• Resistência à mudança

• Experiências passadas com produtos similares

122

rede formada tanto pela Internet como pelos serviços on-line que tenham ligações com esta, sendo que a ênfase é no acesso livre e de baixo custo e na integração entre os vários ambientes [governo, sociedade, educação, iniciativa privada] sem nenhuma restrição, incluindo desde os terminais mais simples de acesso até meios de comunicações mais sofisticados para grandes volumes de informações.

4. CAPACITAÇÃO PARA O USO DA TECNOLOGIA

Tanto a bibliografia sobre adoção de tecnologia, quanto aquela sobre inclusão digital,

reconhece o importante papel da capacitação para sua viabilização. Moore (1999), por

exemplo, ao discutir a difusão de uma nova tecnologia, afirma que a ausência de habilidade de

um indivíduo para utilizá-la o levará a postergar seu uso.

Autores que debatem a inclusão digital também veem na capacitação um de seus mais

essenciais pilares. Silveira (2001) afirma que, se não houver uma política de capacitação, os

resultados das estratégias de acesso serão pífios (p.22). Tanto para esse autor quanto para

Warschauer (2003), tal capacitação começa na educação e na alfabetização, além do

treinamento para o uso da tecnologia em si.

Ao mesmo tempo, as entidades voltadas para a inclusão digital colocam a capacitação

como uma das políticas para uma inclusão efetiva. A Organisation for Economic Co-operation

and Development (OECD) enfatiza que a educação e o treinamento devem constituir políticas

nacionais para o combate à exclusão digital.

De acordo com Weil-Barais (1999), existem múltiplas formas de aprendizagem, indo

desde o reconhecimento à aprendizagem por instrução. Entre as formas de aprendizagem

classicamente distinguidas, Weil-Barais (1999, p.461) concentrar-se-á aqui em três formas,

por estarem associadas ao tipo de aprendizagem que se encontra na prática, quando se fala em

capacitação para o uso de tecnologia: a aprendizagem por meio da ação, a aprendizagem por

observação e imitação e a aprendizagem por instrução.

A aprendizagem por meio da ação ocorre quando “a aquisição de novos

conhecimentos pode ser atribuída à ação do sujeito, fonte de novas informações” (idem,

p.477). Assim, essa forma de capacitação se dá na interação do indivíduo que aprende e o

objeto da aprendizagem, diretamente.

A aprendizagem por observação e imitação permite o acesso à cultura dos diferentes

grupos sociais em que estamos inseridos. Aprendemos ao observar uma sequência de eventos

– um “modelo” – e somos capazes de reproduzir essa sequência na ausência do modelo. A

123

imitação é definida, por Weil-Barais, como “a utilização intencional de uma ação observada

por alguém (...) para atender seus próprios objetivos” (p.483).

Por fim, a aprendizagem por instrução “agrupa diversas formas de aprendizagem (os

tutoramentos, os cursos, os trabalhos práticos...), caracterizadas pelo fato de que um expert ou

grupo de experts (...) tem a função de transmitir aos novatos (os alunos) o conhecimento que

esses não possuíam a princípio” (idem, p. 491).

5. ATITUDE DIANTE A TECNOLOGIA

Rodrigues (1979) define atitude como “uma organização duradoura de crenças e

cognições em geral, dotada de carga afetiva pró ou contra um objeto social definido, que

predispõe a uma ação coerente com as cognições e afetos relativos a este objeto” (p.397).

A definição de atitude criada por Rodrigues implica que ela reúne três componentes

formadores:

a) Componente Cognitivo

A atitude é um conjunto de crenças e cognições. Isso significa que nossas ideias sobre

determinado objeto – verdadeiras ou não – predispõem nossos comportamentos. Quanto mais

forte é o sistema de crenças e cognições que um indivíduo tem a respeito de um objeto – ou

seja, quanto maior o conhecimento (correto ou errôneo) que tem desse objeto –, mais intensa

será sua atitude em relação ao objeto. O grau de conhecimento de um objeto é essencial para

se entender a atitude em relação ao mesmo e extremamente importante para se traçarem

estratégias de adoção.

b) Componente Afetivo

Rodrigues (1979) afirma que, sobre determinado sistema de cognições, pode haver

uma carga afetiva pró ou contra um objeto social. Essa carga pode ter sido formada a partir de

experiências concretas no mundo (por exemplo, uma punição recebida por determinado

comportamento) ou por experiências simbólicas (por exemplo, participar de um grupo que

tem preconceitos raciais pode levar a atitudes preconceituosas).

Young; Flügel et al (1967) atribuem às atitudes o caráter direcionador de

comportamento por causa do valor afetivo, positivo ou negativo, em relação ao objeto social.

c) Componente Comportamental

Não é consenso se as atitudes são predisposições para determinados comportamentos

ou se elas são as forças motivadoras propriamente ditas. No entanto, é certo que atitudes e

124

Experiências da pessoa

Situação atual

Atitudes atuais da pessoa

Comportamento da pessoa

comportamentos são fortemente ligados. Newcomb et al citado por Rodrigues (1979)

representam a relação entre atitudes e comportamentos, de acordo com a figura abaixo:

Figura 2: O Papel das atitudes na determinação do comportamento Adaptado de Newcomb por Rodrigues, 1979.

O componente comportamental é o componente visível e facilmente observável de

uma atitude. Ele é congruente com os componentes afetivo e cognitivo.

Bem (1970) sugere que, além dos três componentes propostos por Rodrigues, a

interação com outras pessoas forma o componente social das atitudes. Isso porque os grupos

de pertença (família, escola, organizações de que um indivíduo participa etc.) desempenham

um papel decisivo na formação das atitudes, pois o compartilhamento dessas atitudes é

essencial para a aceitação do indivíduo pelo grupo e, assim, para a sensação de pertencimento

nesse grupo.

6 OS DESAFIOS DA INCLUSÃO DIGITAL

Ao se apresentar essas variáveis a serem contempladas nos projetos de inclusão

digital, pode-se perceber melhor os desafios que tais projetos devem enfrentar, para serem

bem-sucedidos.

A questão do acesso à tecnologia pela população de baixa renda parece constituir a

tônica das políticas públicas para promover a inclusão digital. Iniciativas importantes, tanto

federais – como o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), que

garantiu o acesso ao serviço telefônico para as populações de áreas remotas (FOLHA DE

SÃO PAULO, 2007) – quanto estaduais e municipais, como a crescente implantação de

Centros Comunitários de Acesso à Internet (OPPI, 2007)6, vêm garantindo a infraestrutura

necessária para a população obter acesso à tecnologia. No entanto, se, por um lado, esses

investimentos ainda não se mostram satisfatórios na construção de uma infovia de custo baixo 6 A esse respeito, ver AQUINO, 2007.

125

e acessível em qualquer ponto do país, por outro, faz-se necessário mais do que infraestrutura

para que haja a adoção da tecnologia pela população.

Baggio (2007) afirma: “Não se trata de disseminar o computador, mas de dar um

sentido ao seu uso como meio e suporte para a inclusão social e o desenvolvimento

sustentável”. E conclui:

Faltam-nos não somente políticas públicas de inclusão digital e investimentos em infraestrutura tecnológica, mas a adoção de um modelo de inclusão que propicie às comunidades de baixa renda habilidades de manejo crítico da tecnologia (BAGGIO, 2007).

A questão da capacitação para o uso de tecnologia, em especial do microcomputador,

constitui um grande desafio ainda a ser solucionado. Os modelos de aprendizagem por

instrução formal parecem menos eficazes para essa capacitação, principalmente entre os

adultos e os idosos. É necessário construir um modelo mental exclusivo para a Internet, sem

usar metáforas como a máquina de escrever, a calculadora ou uma enciclopédia. Qualquer

uma dessas metáforas é reducionista e não leva ao pleno entendimento das possibilidades de

uso reais das novas tecnologias. É preciso inovar a forma de ensino para que as pessoas

tornem-se capazes de utilizar tanto as informações disponíveis quanto os recursos de

socialização e de desenvolvimento, contidos em um computador conectado à Internet.

Por fim, é necessário investir em campanhas e políticas que visem modificar as

crenças e cognições que o público em geral mostra a respeito dos microcomputadores e da

Internet, ou seja, tornar suas atitudes mais positivas em relação à tecnologia. DiMaio, Baum e

Keller (2002, p.4), por exemplo, citam as comunidades que “não querem, mais do que não

têm, acesso à tecnologia”. Em seguida, eles apontam diversos “medos” que fazem parte das

crenças e cognições dessas comunidades: falhas na proteção dos dados, cenários “grande

irmão”7, ruptura social e desemprego (idem).

Em nossa pesquisa (Galery, 2005) sobre a atitude como fator de adoção de tecnologia,

descobriu-se que uma das grandes barreiras para o uso do computador, nas populações de

baixa renda, é a visão de que se trata de uma atividade complexa em uma máquina frágil, que

se quebra facilmente. Apesar de essas populações demonstrarem interesse e curiosidade a

respeito do uso, há um sentimento de medo em relação ao computador que precisa ser

modificado, para facilitar a capacitação e o acesso.

7 “Grande Irmão” foi tirado do livro 1984, de George Orwell, no qual todos os indivíduos eram constantemente vigiados por um computador central – o Grande Irmão – em prejuízo da privacidade comum.

126

Por outro lado, viu-se também que, nessas populações, as pessoas mostram dificuldade

de vincular o uso do computador ao seu dia-a-dia. O computador é associado a atividades

vistas como “superiores”, enquanto que essas populações percebem seu trabalho como

“simplório”. Essa falta de vínculo com o dia-a-dia vem sendo apontada como uma das causas

da baixa utilização dos telecentros e infocentros, relacionadas inclusive ao desmonte de

laboratórios, venda dos computadores recebidos e outros comportamentos semelhantes.

É necessário levar as pessoas de baixa renda a perceberem que o computador não se

acha vinculado a uma atividade econômica sofisticada, mas pelo contrário, que se trata de um

instrumento de conhecimento muito mais importante que, por exemplo, a televisão, por suas

características de interatividade, que dão maior escolha quanto às fontes de informação e à

efetiva participação. Por meio da Internet, uma pessoa pode realmente expor sua opinião, em

vez de figurar apenas como “estatística” de votações telefônicas, como as realizadas nos

reality shows. Ser um incluído digital significa ter maior acesso às fontes de informação e

fazer ouvir a própria voz.

É preciso, enfim, que a política de inclusão digital, mais que uma importância apenas

estatística (quantos computadores foram disponibilizados, quanto foi investido nas infovias)

se volte para um projeto maior – o da inclusão social.

REFERÊNCIAS

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127

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129

As Potencialidades da Economia Solidária: Práticas das Universidades

Sonia Maria Rocha Heckert8

1 INTRODUÇÃO

A agenda de construção de uma sociedade inclusiva requer a opção por estratégias de

desenvolvimento e de emancipação social. Com o objetivo de refletir, mais do que apresentar

respostas, o eixo temático dessa nossa exposição se restringe a uma, dentre as políticas

desenvolvidas pelo Ministério do Trabalho, no âmbito da Secretaria Nacional de Economia

Solidária, que tem se colocado nessa perspectiva.

Ao focar o tema, buscamos uma abordagem com vistas à compreensão crítica do

trabalho, em suas transformações, em seu sentido e implicações para o desenvolvimento

humano, e, em suas possibilidades, como vetor de construção de uma sociedade solidária,

justa e sustentável. Segundo Boaventura, a tarefa para o século XXI é lutar e pensar, de forma

urgente, por duas razões, alternativas econômicas e sociais. A primeira passa pelo pensamento

de que a não existência de alternativas ao capitalismo nunca assumiu um nível de aceitação

tão grande. Em segundo lugar, a reinvenção por formas alternativas é urgente já que as

concepções representadas pelas economias socialistas centralizadas se tornaram inviáveis.

Dessa forma,

o que se pretende, então, é centrar a atenção simultaneamente na viabilidade e no potencial emancipatório das múltiplas alternativas que têm sido formuladas e praticadas um pouco por todo mundo e que representam formas de organização econômica baseadas na igualdade, na solidariedade e na proteção ao meio ambiente (SANTOS, 2002, p.25).

Segundo o mesmo autor, a insistência na viabilidade das alternativas não implica uma

aceitação do que há. “A afirmação fundamental do pensamento crítico consiste na asserção de

que a realidade não se reduz ao que existe. A realidade é um campo de possibilidades em que

têm cabimento alternativas que foram marginalizadas ou que nem sequer foram tentadas”

(SANTOS, 2000, apud SANTOS, 2002).

Entre essas, destacamos as práticas cooperativas que, nos últimos anos, têm suscitado

um renovado interesse. Acadêmicos, organizações não governamentais, governos

8 Chefe de Gabinete da Secretaria Nacional de Economia Solidária – Ministério do Trabalho e Emprego – Brasília; Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora.

130

progressistas têm recorrido de forma crescente a essas práticas, desenvolvendo-se mais

intensamente a economia solidária, no Brasil, a partir da última década do século passado.

Esta se caracteriza por práticas coletivas, de geração de trabalho e renda, fundada em relações

de cooperação, solidariedade e autogestão dos trabalhadores que se organizam em

cooperativas, associações, redes, cadeias etc. A Economia Solidária “compreende um

conjunto de atividades econômicas – de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito

– organizadas e realizadas solidariamente por trabalhadores e trabalhadoras sob a forma

coletiva e autogestionária” (ATLAS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL, 2006).

Confirma esse crescimento e avanço, a criação de uma Secretaria Nacional de

Economia Solidária (SENAES), em junho de 2003, regulamentada pela Lei 10.683, de 28 de

maio de 2003, além do conjunto de iniciativas governamentais que vêm desenvolvendo

políticas de apoio e fomento à economia solidária.

Nosso objetivo, ao delimitar o tema, organiza-se em torno de duas partes. A primeira,

na qual tentamos articular as políticas públicas de economia solidária em seu potencial

emancipatório e como estratégia de inclusão e desenvolvimento. Na segunda, apresentamos

uma entre as ações apoiadas pela SENAES com essa identidade, seguida das Considerações

Finais.

2 POLÍTICAS PÚBLICAS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA

2.1 INCLUSÃO SOCIAL PELA GERAÇÃO DO TRABALHO EMANCIPADO

A questão da inclusão/exclusão tem sido tratada, via políticas públicas, por diversos

setores. O binômio exclusão/inclusão aplica-se também nas análises sobre as transformações

no mundo do trabalho, gerando desemprego de significativas parcelas da população. Aí a

exclusão é entendida na ação de pôr fora o que estava dentro, vitimando os trabalhadores de

processos sociais, políticos e econômicos excludentes.

Quando nos deparamos com um processo de extrema desigualdade na distribuição de

oportunidades produzidas na e pela sociedade, não cabe pensar a inclusão somente com

políticas compensatórias. Também, não podemos reduzi-la a obtenção de respostas de

inserção, precárias, no sistema econômico – estas ocorrem, por exemplo, quando o

trabalhador depara-se com situações em que recebe algo que garanta sua sobrevivência, mas

em atividades que comprometem sua dignidade. Devemos sim buscar novos caminhos, que

131

possam permitir outras relações de produção e consumo, pois a inclusão é o movimento pelos

direitos de os seres humanos participarem da vida pública sem qualquer restrição. A inclusão

não se restringe à esfera econômica, mas deve responder à necessidade do trabalhador, que é

também ética e política.

Nossa prioridade são políticas públicas que possam colocar o trabalho como fator

dinamizador da inclusão social. Nessa busca, citamos Singer, ao propor “oferecer à massa dos

excluídos uma oportunidade real de se reinserir na economia por sua própria iniciativa,

estimulando a criação de cooperativas para os ex-desempregados, uma solução não capitalista

p ara um problema capitalista” (SINGER, 1999, p.122). São formas de trabalho diferenciadas,

à medida que buscam a cidadania e o desenvolvimento humano. A propósito, a I Conferência

Nacional de Economia Solidária aponta que:

as políticas de economia solidária integram a construção de um Estado Republicano e Democrático, ao reconhecerem a existência de sujeitos historicamente organizados, porém excluídos, de novos direitos e novas formas de produção, reprodução e distribuição social, propiciando-lhes bens e recursos públicos para o seu desenvolvimento, tal qual faz a outros segmentos sociais (ANAIS..., 2006, p.14).

Essa é a proposta da economia solidária. Constituem experiências muito recentes no

país, cujas metodologias se encontram em processo de experimentação. Apesar do

crescimento de gestores sensibilizados com o tema, é um setor ainda invisível para a maioria

dos governos estaduais e municipais.

Em se tratando de política ainda em construção e em razão da diversidade de contextos

nas quais é implementada, não encontra unanimidade na concepção, no seu nível de

estruturação e no lugar destinado na arquitetura governamental. “Tal diversidade reflete ainda

a forma de apropriação do tema da economia solidária em cada lugar, que está relacionado às

diferentes concepções de política pública neste campo...” (FRANÇA, 2006, p.260). Cabe

ainda ressaltar sua herança como política pública voltada para o trabalho, ao inaugurar uma

nova preocupação para além da noção exclusiva do emprego. Com efeito, as políticas

anteriores não inserem geração de trabalho e renda fora do paradigma da relação assalariada

clássica.

Embora recentes, essas políticas são portadoras de potenciais maiores que estão a

despontar: os princípios da cooperação e da solidariedade, por exemplo, não se restringem à

esfera das relações no empreendimento econômico solidário. Elas se ampliam com

ressonâncias nas relações de gênero, políticas, étnicas, religiosas, culturais, ecológicas, de

132

minoria. O princípio da autogestão torna-se uma dinâmica geradora da inclusão, à medida que

supera ações individualistas e outras que norteiam o trabalho subordinado; a intercooperação,

manifestada por meio das redes e parcerias, forja um mercado solidário, reinstalando as trocas

cooperativas com o território e sua população, entre os limites ecológicos e éticos.

A realização da 1ª Conferência Nacional de Economia Solidária em 2006 e a

instalação do Conselho Nacional representam um espaço importante para a definição e o

fortalecimento das políticas públicas nesta área.

2.2. A ECONOMIA SOLIDÁRIA: ESTRATÉGIA E POLÍTICA DE INCLUSÃO E

DESENVOLVIMENTO

Reafirmando, a economia solidária é uma resposta organizada às situações de

vulnerabilidade impostas aos trabalhadores, que não desejam uma sociedade movida pela

competição, mas almejam a construção de novas formas de relações. Em outras palavras, é

uma proposta de inclusão social que além do viés econômico, é ética e política e demanda a

transformação social. Mas é também uma política de indução de processos de organização e

desenvolvimento.

Atuando, portanto em tecidos organizativos locais profundamente fragilizados, tais políticas buscam em primeiro lugar estimular processos de auto-organização coletiva. Elas induzem à organização dos grupos sociais nos territórios como primeiro passo para uma tentativa de construção de processos mais sustentáveis de desenvolvimento. É assim, por exemplo, através das ações de organização de grupos informais e redes sociais, além das iniciativas de apoio ao associativismo e cooperativismo (FRANÇA, 2006, p.266).

A economia solidária avança, inserindo iniciativas isoladas em cadeias, redes e

articulações com processos de desenvolvimento locais e territoriais. Dessa forma, as políticas

de economia solidária não podem ser avaliadas apenas em sua dimensão econômica. As suas

potencialidades vão além, afirmando-se como estratégia estruturante de um outro

desenvolvimento, socialmente humano e ecologicamente sustentável.

A SENAES tem apoiado o fortalecimento de várias dessas iniciativas, potencializando

ações, ampliando ações convergentes já existentes, que possam legitimar e dar

sustentabilidade, em longo prazo, a essa política. Destacamos nesta apresentação, as

desenvolvidas por universidades de diversas regiões do país, que criam um contexto favorável

133

ao desenvolvimento da economia solidária no meio acadêmico. São as Incubadoras

Tecnológicas de Cooperativas Populares e/ou de Empreendimentos Econômicos Solidários.

A economia solidária vem crescendo de maneira muito rápida, não apenas no Brasil,

mas também em diversos países. O Atlas da Economia Solidária no Brasil, lançado pela

SENAES, em 2006, nos apresenta o seguinte panorama: 14.954 empreendimentos, em que

trabalham 1.251.882 pessoas, das quais 65% são homens e 35% são mulheres. Desses

empreendimentos, 44% estão no Nordeste, 17% no Sul, 14% no Sudeste, 13 % no Norte e

12% no Centro-oeste. Quanto à forma de organização, prevalecem as associações. A maioria

dos empreendimentos dedica-se à agricultura e pecuária (64%), prestação de serviços (14%),

produção de alimentos (13%), indústria têxtil, de confecções e calçados (12%), artesanato

(9%), indústria de transformação (6%) e reciclagem de resíduos sólidos (4%) e finanças (2%).

O crescimento dos empreendimentos é acompanhado pela ampliação de entidades que

oferecem assessoria e fomento, a exemplo das ONGs, fundações, igrejas, universidades,

gestões públicas municipais e estaduais, entidades de representação.

São práticas ainda frágeis ou incipientes, mas que nascem efetivamente com uma

proposta de inclusão social. Buscam a emancipação, o desenvolvimento humano, a

democracia e a equidade, a organização dos grupos e o fortalecimento das redes sociais e

políticas, com o fomento ao associativismo local. Em outras palavras, a prática da autogestão

solidária e cooperativa viabiliza a inclusão de pessoas no processo produtivo e rompe com as

atitudes de subordinadas e alienadas do trabalhador, pela longa vivência no trabalho

subordinado.

3. PRÁTICAS INCLUSIVAS: A HISTÓRIA DAS INCUBADORAS

UNIVERSITÁRIAS

Os estudos e debates no âmbito do movimento de economia solidária têm apontado,

entre as demandas dos empreendimentos econômicos solidários, o acesso a novas tecnologias,

o domínio de conhecimentos em gestão de negócios, o apoio técnico e administrativo para

garantia de melhor posicionamento de seus produtos no mercado. Essa necessidade vem

reforçar a tese de que o desenvolvimento de um modo de produção solidário demanda uma

formação continuada. Em nossos dias, várias entidades de apoio, assessoria e fomento têm se

dedicado a responder essa demanda. O Atlas da Economia Solidária, acima referenciado,

identifica 1.120 organizações com esse propósito, entre as quais, destacamos as incubadoras.

134

As Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares, das universidades, têm suas

raízes em movimentos como a Ação da Cidadania, quando em meio à extrema pobreza de

camadas significativas, principalmente dos grandes centros urbanos brasileiros, o saudoso

sociólogo Hebert de Souza, o Betinho, conclamou todos a agirem “contra a miséria e pela

vida”. A inserção das entidades públicas, nessa proposta, deu origem, em 1993, no Rio de

Janeiro, ao comitê no Combate à Fome e pela Vida (COEP), com o objetivo de incentivar

ações de combate à fome e geração de trabalho e renda para esses segmentos da população.

A experiência piloto foi a de formação da Cooperativa de Manguinhos, junto à

Fundação Oswaldo Cruz, desenvolvida pela COPPE/UFRJ, com apoio do COEP. Nasceu daí

a primeira incubadora, em 1995. A partir desse momento, ao lado das incubadoras de base

tecnológica, familiares ao meio acadêmico, começa a se esboçar a primeira incubadora

tecnológica de cooperativas populares.

O desenvolvimento do trabalho de forma mais dinâmica e abrangente, na baixada

fluminense e favelas do Rio de Janeiro, e os resultados obtidos tornaram-se parâmetros para

subsidiar as experiências de outras universidades. Também embasaram a criação do Programa

Nacional de Incubadoras de Cooperativas (PRONINC), envolvendo a Financiadora de

Estudos e Projetos, a Fundação Banco do Brasil, o Banco do Brasil, o COEP e a

ITCP/COPPE/UFRJ.

Os incentivos do PRONINC resultaram nas ações de outras cinco universidades do

país, a partir de 1998. Nesse momento, foram beneficiadas as incubadoras das Universidades

Federal do Ceará (UFC), Federal Rural de Pernambuco (UFRP), Federal de Juiz de Fora

(UFJF), Estadual da Bahia (UNEB) e Estadual de São Paulo(USP). A articulação e a troca de

experiências entre elas e, em especial, o apoio técnico da incubadora pioneira, permitiram

caminhar, apesar de inúmeras dificuldades, que iam desde as indagações metodológicas do

próprio processo da incubagem, até aquelas inerentes à academia, que, a partir das equipes das

incubadoras, passa a se defrontar com um público até então não priorizado em seu meio.

Apesar dos grupos incubados esboçarem os primeiros passos, o programa teve sua

continuidade comprometida pela falta de recursos, tendo sido contratado um segundo apoio

em 2000, apenas para duas (UFC e UFJF), entre as universidades contempladas inicialmente.

Não obstante, a partir das seis incubadoras apoiadas pelo PRONINC surgiram outras

nove ITCPs e diversos núcleos universitários inspirados nessa atividade. A ideia das

incubadoras teve grande receptividade em diversos locais e algumas universidades assumiram

essa proposta, como uma atividade de extensão de grande importância. As iniciativas de

incubadoras e núcleos universitários que surgiram após esse primeiro momento do PRONINC

135

nasceram a partir da troca de experiências e, geralmente, vinculadas a duas redes

universitárias: a Rede de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares e a Rede da

UNITRABALHO.

3.1. A PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO DO TRABALHO/SENAES E A

EXPANSÃO DO PROGRAMA

No segundo semestre de 2003, diante do êxito da primeira edição do PRONINC e com

a institucionalização da política de economia solidária no Ministério do Trabalho e Emprego,

a recém-criada Secretaria Nacional de Economia Solidária, a Financiadora de Estudos e

Projetos, a Fundação Banco do Brasil, o Banco do Brasil e o Comitê de Entidades no

Combate à Fome e pela Vida decidiram reativar o programa como resposta às demandas das

incubadoras por meio das redes.

Essas entidades se organizaram em um Comitê Gestor do Programa, com a

participação de representantes das duas redes, na condição de convidados. O secretário de

Economia Solidária do MTE foi designado coordenador. No decorrer do período, entre 2005 e

2006, o comitê foi significativamente ampliado, com a integração de representantes do

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, da Coordenação de Saúde

Mental/Ministério da Saúde e da SESU/Ministério da Educação. Nos últimos meses, o

diálogo formalizado com o Fórum de Pró-reitores de Extensão das universidades poderá dar

oportunidade à ampliação e ao avanço das ações.

O Comitê Gestor do PRONINC reúne-se regularmente e tem como atribuições

acordadas: a definição de metas, prioridades e mecanismos de acompanhamento do programa,

seleção e acompanhamento dos projetos e participação no financiamento. Não existe um

instrumento legal de parceria e sim um compromisso mútuo para a disseminação do

programa.

3.2. INCUBADORAS APOIADAS

Neste segundo momento, o programa apoiou incubadoras filiadas às duas redes e a

formação de novas incubadoras, totalizando 43 incubadoras universitárias. O foco permanece

na incubação de empreendimentos econômicos solidários definidos pelas incubadoras ou

priorizados segundo as demandas dos financiadores – a incubagem é um processo de

136

formação que percorre desde o surgimento do empreendimento até sua consolidação e que

busca, ao fim do processo, a conquista da autonomia do grupo.

As atividades de incubação, inicialmente focadas em grupos isolados, tendem a

ampliar cada vez mais o seu campo de atuação. Esta se dá por meio do estímulo à formação

de cadeias e redes produtivas e de comercialização ou outras formas de organização entre os

empreendimentos, visando ampliar a sua viabilidade, sustentabilidade e representatividade

social, além de uma intervenção mais ativa nos processos de desenvolvimento local e

regional.

As incubadoras vêm se destacando ainda na formação de futuros profissionais no

campo da economia solidária, no desenvolvimento do conhecimento e de novas tecnologias,

no apoio às ações governamentais e movimentos sociais, enfim, no desafio de pensar

alternativas de inclusão, pela via do trabalho coletivo e autogestionário, de milhares de

trabalhadores. Buscam a articulação com outras políticas públicas, principalmente aquelas

desenvolvidas pelos órgãos de governo participantes do programa. Os recursos financeiros

são originários das entidades parceiras.

O programa passa ainda a contar com um acompanhamento sistemático de uma

organização selecionada para tal, que o desenvolve por meio de visitas às incubadoras e aos

empreendimentos incubados, realização de seminários e elaboração de relatórios. Essa

iniciativa permitiu detectar dificuldades no desenvolvimento dos projetos das incubadoras e

uma ação mais efetiva do comitê, no decorrer do processo, resultando no redirecionamento de

alguns projetos.

Os relatos do acompanhamento demonstram uma considerável heterogeneidade entre

as incubadoras e a necessidade de valorização das redes como espaços fundamentais na

incubação de incubadoras. Elas geralmente demandam um espaço de tempo significativo para

estar plenamente capacitadas a funcionar como verdadeiras incubadoras e contam nesse

período com o apoio das redes.

Os dados disponibilizados pelo acompanhamento revelam uma forte correlação entre a

trajetória do PRONINC e a dinâmica de criação e expansão das incubadoras – de 14

incubadoras com mais de cinco anos, por exemplo, nove foram criadas, coincidindo com a

primeira fase do programa; nos últimos anos, período que compreende a segunda fase. O

número anual de incubadoras criadas corresponde ao dobro da média dos quatro anos

precedentes. Hoje, as incubadoras apoiadas estão disseminadas por todas as regiões do país:

Norte (4); Nordeste (8), Centro-oeste (4); Sudeste (17), Sul (10). O mesmo ocorre em relação

aos empreendimentos incubados: entre 2003 e 2005, por exemplo, ocorreu um aumento

137

expressivo tanto no número de empreendimentos incubados (82%), quanto no número de

participantes (110%). Esse crescimento pode ser atribuído ao surgimento de novas

incubadoras e à intensificação das ações das existentes, possivelmente como resultado da

retomada do PRONINC.

O PRONINC deu visibilidade às ações e ao potencial das incubadoras universitárias,

apresentando-se como indutor de novas perspectivas para as mesmas.

3.3. ENFRENTANDO DESAFIOS: OS PRIMEIROS RESULTADOS

O registro das experiências das 33 incubadoras inicialmente apoiadas aponta que, em

2005/2006, incubavam 315 empreendimentos, gerando 14.245 postos de trabalho em

empreendimentos econômicos solidários. Os grupos incubados originam-se, principalmente,

de pessoas sem acesso ao mercado formal de trabalho. Incluem-se nessa categoria desde

desempregados temporários até pessoas que nunca exerceram ocupação profissional (situação

mais frequente entre as mulheres). Entre o público-alvo das incubadoras citamos: coletores e

recicladores de lixo; comunidades quilombolas, de pescadores e de assentamentos de reforma

agrária; pessoas com deficiências; usuários do sistema de saúde mental e de transtornos

associados ao consumo de álcool e drogas; portadores do vírus HIV; egressos do sistema

Os dados da amostra dos empreendimentos incubados visitados pela entidade

contratada para acompanhamento, demonstram que estes se encontram em diferentes

momentos no processo de incubagem, embora a maioria (70%) apresente mais de dois anos de

existência. Apontam que 55% dos empreendimentos incubados estão legalmente constituídos

na forma de cooperativas, associações ou outras modalidades; os restantes 45% são de grupos

informais, que na sua maioria pretendem legalizar-se em um futuro próximo,

preferencialmente na forma de cooperativas. Revelam, ainda, que a participação de homens é

maior (55%); que os empreendimentos de menor porte (com menos de 40 pessoas), integrados

em sua maioria por mulheres, são os que predominam. A relação entre o tempo de existência

dos empreendimentos e as médias das retiradas em faixas salariais aponta para a concentração

das retiradas superiores a um salário mínimo nos empreendimentos com mais de um ano de

existência. Em relação aos segmentos envolvidos, indicam-se os de Prestação de Serviços

(diversos) e de Produção Agropecuária, Extrativismo e Pesca como os que apresentam melhor

remuneração.

O acompanhamento permitiu ainda constatar os impactos relativos à atuação das

incubadoras. Destacamos:

138

a) o conjunto de projetos apoiados pelo PRONINC representa um salto de qualidade para a construção de políticas ativas de geração de trabalho e renda, sobretudo pelas inovações propostas que resultam da percepção das metodologias de incubação enquanto tecnologias sociais que desempenham um papel estratégico como projeto dialógico, político e educativo na contribuição para o fortalecimento da cidadania e da organização dos setores populares;

b) as incubadoras contribuem para ordenar o quadro confuso da disputa sobre os rumos que devem tomar as iniciativas dispersas de capacitação para o trabalho, até agora realizadas de forma pouco sistemática e menos consistente... Neste contexto, a contribuição das ITCPs combina apoio direto, produção de conhecimentos, formação de quadros e construção de projetos e políticas;

c) a adoção de padrão sistemático e institucionalizado para a incubação de empreendimentos coletivos pelas Universidades é um precedente histórico para a construção de novas práticas de mobilização democrática e produtiva dos setores populares, propiciando uma releitura dos desafios econômicos e sociais para a construção de um novo paradigma organizacional para o trabalho e a economia solidária;

d) o sistema de acompanhamento permite observar os aspectos qualitativos gerados pela ação das incubadoras, na medida em que estas atuam na reconfiguração das formas de organização do trabalho autônomo, individual e de grupo, na direção do robustecimento, reconhecimento, fortalecimento e sustentabilidade da cooperativa popular como célula desse processo de inserção socioprodutiva (DIAGNÓSTICO E IMPACTOS DO PRONINC, FASE, 2006).

Além do que, ao trabalhar a partir dos fundamentos da Economia Solidária, as

incubadoras trazem para a academia um novo debate, uma nova cultura nas relações de

trabalho, enriquecendo e ampliando as experiências universitárias e as provendo de um novo

significado. A Economia Solidária, como ensaio de um novo projeto de sociedade, sinaliza

também para uma nova universidade, portadora de uma nova ética, de uma nova cultura

pautada nos princípios da solidariedade e da cooperação, na prática da autogestão e da

democracia. Dessa forma, apesar de seus limites, a economia solidária, com seu potencial

inovador abre perspectivas para renovar também a universidade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nossos dias, ganha atualidade a reflexão quanto às soluções coletivas,

efetivamente capazes de minimizar ou reverter os efeitos da desigualdade, especialmente no

mundo do trabalho. As Práticas de Economia Solidária das universidades, no Brasil,

constituíram o horizonte que vislumbramos para este debate em torno da temática.

Considerando que essas políticas são recentes, enfrentam enormes dificuldades e

muito mais ainda há a fazer para que suas potencialidades se tornem realidade. Os maiores

obstáculos a superar são no redirecionamento dos recursos públicos, incentivando políticas

públicas inovadoras, evitando-se sua fragmentação e mantendo a regularidade dos apoios de

forma a permitir uma continuidade das ações das incubadoras. Uma avaliação exige ainda um

horizonte temporal maior que permita o acompanhamento dos empreendimentos nos

territórios pós-incubação e sua capacidade de sobrevivência a longo prazo.

139

A estratégia do PRONINC, para 2007, enfrenta o desafio de caminhar na superação

desses obstáculos e equívocos, potencializando ações que criem sinergias, ampliando ações

convergentes já existentes e fortalecendo as incubadoras para que possam legitimar e dar

sustentabilidade a essas políticas.

REFERÊNCIAS ANAIS I Conferência Nacional de Economia Solidária. Brasília: 26 / 29 jun. 2006, 108p. ATLAS da Economia Solidária no Brasil 2005. Brasília: MTE, SENAES, 2006. 60p. FRANÇA, G. C. e outros (org.). Ação pública e economia solidária: uma perspectiva internacional. Porto Alegre: Editora da UFRS, 2006. 326p. Relatório Diagnóstico e Impactos do Proninc. FASE. Rio de Janeiro, 2006. SANTOS, B. S. (org.). Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 514p. SINGER, P. Globalização e desemprego. Diagnóstico e alternativas. 4.ed.São Paulo: Editora Contexto, 2000.139p.

140

Programas de inserção de jovens no mercado de trabalho: o olhar empresarial

Dener Chaves9

Antonio Carvalho Neto10

1. INTRODUÇÃO

O desemprego juvenil agravou-se consideravelmente nas últimas décadas, gerando

muitas consequências sociais atribuídas a essa difícil passagem dos jovens da inatividade ao

mundo do trabalho. Várias saídas são propostas como programas de inserção de jovens no

mercado de trabalho. As pesquisas se baseiam em dados quantitativos, ignorando as diversas

formas alternativas que se desenvolvem no meio social para minorar os efeitos. Essas formas

alternativas se dão de diversas maneiras pelo poder local, empresas, famílias e os próprios

jovens.

Este artigo aborda, inicialmente, a questão do desemprego juvenil e as diversas

correntes teóricas que trabalham com o tema. Optou-se em destacar a situação empregatícia

dos jovens levando-se em consideração os objetivos propostos na formulação de programas

sociais voltados para este segmento. A partir do esclarecimento quanto aos méritos de tal

política pública, discute-se a percepção dos empresários parceiros do Programa Bolsa-

Emprego de Betim (MG), no que tange à finalidade de tal programa e a relação estabelecida

entre os empresários, os gestores públicos e os jovens.

Para atender aos objetivos propostos, foi utilizada uma metodologia que procura partir

da realidade social em sua complexidade, em sua marcha histórica humana também dotada de

horizontes subjetivos, como salienta Demo (1995), configurando-se mais apropriada a

pesquisa qualitativa. Nessa abordagem qualitativa, foi realizado um estudo de caso, uma vez

que esse método supõe que se pode adquirir adequado conhecimento de um fenômeno a partir

da exploração intensa de um único caso, tendo o duplo objetivo de chegar a uma compreensão

abrangente do grupo em estudo e desenvolver declarações teóricas mais gerais sobre

regularidades do processo e estrutura sociais (BECKER, 1993).

Utilizaram-se entrevistas semiestruturadas com os empresários, ou funcionários

responsáveis pelo desenvolvimento do programa nas empresas11. As entrevistas individuais 9 Mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil (2005) Professor da Prefeitura Municipal de Betim, Brasil 10 Especialização em Pós-Graduação pela University of Stuttgart, Alemanha (1969) Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Ceará, Brasil

141

consistiram em questionário pré-formulado, com os representantes das empresas, que visaram

obter do entrevistado as descrições relevantes do problema. Ou seja, uma conversação guiada

em uma entrevista, também chamada semiestruturada, que deixasse ao entrevistado a

possibilidade de ir além das questões formuladas e pudesse captar insights, pensamentos ou

questões não esperadas. É necessário frisar que essa técnica foi escolhida por não apresentar

rigidez, uma vez que o desenvolvimento das entrevistas foi determinado e direcionado ao

longo do processo (YIN, 2005).

2. AS MUDANÇAS NO MUNDO DO TRABALHO E AS CONSEQUÊNCIAS PARA

OS JOVENS

O capitalismo pós-Segunda Grande Guerra estabeleceu um novo padrão de

desenvolvimento que articulava regulação e compromisso. Houve a consolidação de Estados

Nacionais fortes e a implementação de políticas de bem-estar social. O pleno emprego, o

consumo em massa, o contrato coletivo de trabalho foram também implementados nos países

mais desenvolvidos. A interlocução com sindicatos organizados de trabalhadores, o

compromisso capital/trabalho, era mediado pelo Estado (ANTUNES, 1997), resultando em

conquistas sociais e democráticas que buscavam reduzir as desigualdades sociais criadas pelo

capitalismo por meio de mecanismos amplos de provisão de bens e serviços concebidos como

direito (BARBOSA; MORETTO, 1996).

A partir dos anos 1970, o Estado de bem-estar social entra em crise. A crise do

petróleo em 1973 e 1974 e a concorrência dos produtos japoneses no mercado europeu e

americano geraram problemas na balança comercial desses países. O capitalismo começa a

entrar em crise perante a queda da taxa de lucro, esgotamento do padrão de acumulação

taylorista/fordista de produção e hipertrofia da esfera financeira. Na tentativa de se fortalecer

e reagir à crise, o Estado promove a reorganização do capital, do sistema ideológico e político

dominante. As teses liberais tomam fôlego com a privatização do Estado, a

desregulamentação dos direitos trabalhistas e a desmontagem do setor produtivo estatal

(BALTAR; DEDECCA, 1996).

Diante desse quadro, a questão social assume novas configurações na sociedade

capitalista, em decorrência da imposição dos ajustes econômicos como requisitos ditados pela

globalização. De acordo com Ianni (1997), na mesma escala em que ocorre a globalização do

11 Os dados apresentados aqui fazem parte da dissertação de mestrado defendida no curso de Programa em Pós-Graduação em Ciências Sociais: Gestão das Cidades da PUC Minas. (CHAVES, 2005)

142

capitalismo, verifica-se a globalização do mundo do trabalho. As mudanças afetam não só os

arranjos e a dinâmica das forças produtivas, mas também a composição da classe

trabalhadora.

Nessa dinâmica, novas exigências se estabelecem para a qualificação dos

trabalhadores, condicionadas tanto pelas inovações tecnológicas quanto pela forma de

estruturação do processo de trabalho e das novas configurações organizacionais. As

transformações na estrutura produtiva e no paradigma tecnológico acarretaram profundas

mudanças nos processos de trabalho e, consequentemente, no perfil da mão-de-obra, com

exigência de um trabalhador polivalente, reunido competências para enfrentar os imprevistos

(MORETTO; GIMENEZ; PRONI, 2003).

Para Castel (1998), a precarização do emprego e o aumento do desemprego são a

manifestação de um déficit de lugares ocupáveis na estrutura social, entendendo-se por

lugares posições a que se acham associados uma utilidade social e um reconhecimento

público. Trabalhadores “que estão envelhecendo”, sem lugar no processo produtivo; jovens à

procura do primeiro emprego, que vagam de estágio em estágio e de um pequeno serviço a

outro; desempregados de há muito tempo que passam por requalificações ou redescobrem-se

“inúteis para o mundo”, o que os desqualifica também no plano cívico e político.

Diante dessa situação, o Estado não foi capaz de adotar políticas de geração de

emprego e renda consistentes para enfrentar o desemprego e a concentração de renda que têm

caracterizado a economia brasileira. A postura do governo desde os anos 1990, de desvincular

as questões relativas à geração de emprego da política macroeconômica, marcada pela rápida

e pouco seletiva abertura comercial e pela forte dependência de financiamentos externos, tem

sido um dos fatores para adoção de um tipo de política social de caráter reativo, voltada para a

correção das distorções do mercado (DIEESE, 2001). Abre-se o debate sobre o papel do

Estado na regulação e no controle dos serviços de caráter público, isto é, demandando

políticas públicas eficazes na área social, principalmente voltadas para os setores

populacionais mais vulneráveis às transformações econômicas (SANTOS JÚNIOR, 2000).

Esse cenário de altas taxas de desemprego, precarização das relações de trabalho,

exclusão social e redução paulatina da renda média da população impõe restrições distintas

aos diferentes grupos populacionais “Os jovens, que já apresentavam uma inserção mais

difícil e vulnerável no mercado de trabalho, passam a sofrer com mais intensidade os

constrangimentos impostos por este contexto” (SOUZA, 2001, p.2).

A exclusão social dos jovens sob a forma do desemprego e precariedade das condições

de trabalho apresenta efeitos perniciosos sobre a vida futura dos indivíduos, com reflexos não

143

somente em sua vida profissional, mas também psicológica e social. A integração das novas

gerações na sociedade fica comprometida (RAMOS, 1997). Um panorama de desemprego e

baixa empregabilidade dos jovens tem contribuído para o aumento da violência, da

prostituição e do consumo e dependência de drogas entre eles, gerando um nível de

vulnerabilidade social que, em alguns países como o Brasil, ameaça a estabilidade social e o

progresso econômico (OIT, 2001).

Conforme Flori (2003), a taxa de desemprego dos jovens, no período entre 1983 e

2002, foi sempre maior e menos estável que a de adultos e a de idosos para seis regiões

metropolitanas. Ao observar a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), percebe-se

que a taxa de desemprego juvenil é o triplo da taxa de desemprego dos adultos. No entanto, a

taxa de entrada no desemprego dos jovens que já trabalharam antes é bem maior que a dos

que estão em busca do primeiro emprego. O estudo da autora mostra que, na RMBH, apenas

10 a 20% dos jovens que entram no desemprego nunca trabalharam. Conclui-se que os jovens

que já trabalharam anteriormente são os principais responsáveis pela alta taxa de entrada no

desemprego dessa faixa etária.

Para fazer frente a esse quadro complexo de desemprego e precariedade do trabalho,

começou-se a discutir possibilidades de análise e resolução desse sério problema social. A

seguir, buscar-se-á sintetizar essas correntes de pensamento para que se possa estabelecer uma

crítica mais adequada sobre as políticas de emprego voltadas para os jovens e sua relação com

os programas sociais.

3. AS POLÍTICAS DE GERAÇÃO DE EMPREGOS PARA OS JOVENS

As políticas de emprego são consideradas uma parte das políticas sociais e, como tal,

fazem parte das políticas públicas implementadas pelo Estado. Nessa perspectiva, parte-se da

observação sobre em que consiste essa política social, qual a percepção da função dessa

modalidade de política, para, finalmente, abordarem-se as diversas correntes que tratam sobre

as causas do desemprego e as possibilidades de superação do problema.

A política social, segundo Rocha (2001), é uma modalidade de política pública que

visa fornecer condições básicas de vida à população. Busca uma situação de maior igualdade

e fornece um nível básico de segurança socioeconômica. Pode envolver uma ampla gama de

modalidades, como políticas de saúde, educação, habitação, amparo a desempregados,

crianças, velhos, programas de renda mínima etc. Assim, visam dar conta do problema da

desigualdade e da pobreza. Mas, no universo da política propriamente dita, as políticas

144

publicas podem ser vistas como efeitos provocados por um conjunto complexo de forças

sociais, surgidos à medida que as demandas para a resolução de certos problemas pelo Estado

são propostas. As políticas públicas seriam reações do Estado às demandas da sociedade.

Para Rua (1998), uma vez que as políticas são respostas, estas não ocorrerão a menos

que haja uma provocação. As políticas públicas se destinam a solucionar problemas políticos,

que são as demandas que lograram ser incluídas na agenda governamental. Enquanto não

entram nesse patamar, são consideradas “estados de coisas”, situações diversas que atingem

grupos mais ou menos amplos da sociedade, mas não chegam a mobilizar as autoridades

políticas. Para o estado de coisa se transformar em problema político é necessária, pelo

menos, uma das seguintes características: mobilizar ação política de grupos ou de atores

individuais estrategicamente situados; constituir uma situação de crise, calamidade ou

catástrofe; constituir uma situação de oportunidade para atores sociais politicamente

relevantes.

Segundo Ramos (1997), há uma tendência de diversos países na focalização de ações

voltadas para o mercado de trabalho. Os grupos mais vulneráveis (jovens, mulheres, adultos

sem formação) merecem um tratamento privilegiado em quase todas as políticas ativas (como

a criação direta de emprego pelo setor público, o subsídio às contratações, a oferta de crédito

às pequenas e microempresas e o incentivo ao trabalho autônomo, entre outras) e, muitas

vezes, até nas políticas passivas (concessão de auxílio financeiro por desemprego de longa

duração, redução dos requisitos para a aposentadoria precoce etc.). Essa tendência à

focalização surgiu visando elevar a eficácia e eficiência de programas e recursos, dado que

partiu do diagnóstico de que o problema do desemprego cobriria uma ampla gama de

situações e problemas específicos de determinados grupos sociais.

As políticas de emprego no Brasil, nas últimas duas décadas, principalmente as

voltadas para o segmento juvenil, obtiveram um olhar mais cuidadoso por parte do poder

público, tendo em vista os altos índices de desemprego nessa faixa etária e suas consequências

para toda a sociedade. Nos anos 1950 e 1960, a economia brasileira registrou altas taxas de

desenvolvimento e crescimento econômico. No entanto, não se discutiu a execução de

políticas públicas de geração de emprego. As avaliações eram de que o problema tinha origem

no caráter incipiente de um mercado de trabalho em formação, que não conseguia absorver a

população (BARBOSA E MORETTO, 1998).

O modelo e o tratamento das políticas governamentais, direcionados para o mercado

de trabalho no Brasil nos últimos anos, são acometidos por uma falta de diagnóstico preciso

do funcionamento desse mercado e da importância dessas políticas. Entretanto, o emprego no

145

país é visto como um “produto secundário do crescimento econômico e não como um objetivo

que deva orientar as políticas do governo. A qualidade dos empregos que são gerados não é

questionada e o desemprego é tratado como resultado dos desequilíbrios do mercado de

trabalho” (DIEESE, 2001, p.250).

Segundo Baptista (2004), a ideia que vem se difundindo, de que o fenômeno do

desemprego em massa resulta da desqualificação técnica do trabalhador, é o que justifica os

altos investimentos de recursos públicos, sobretudo advindos do FAT. A concepção de

empregabilidade é tida como condição de inserção do jovem no seu primeiro emprego e

aparece como o objetivo a se atingir na formação profissional do trabalhador. Nessa

perspectiva, se constituem, em uma só esfera e ao mesmo tempo, uma política nacional de

educação profissional e uma política pública de emprego e renda; uma política voltada para o

jovem trabalhador no acesso ao primeiro emprego e uma política de enfrentamento do

desemprego do trabalhador em geral. É consensual nessa perspectiva, portanto, que, a partir

de uma política educacional, alcançam-se os resultados esperados de uma política de emprego

e renda. Desloca-se o problema do desemprego para o indivíduo e esvazia-se o problema

como expressão da questão social, responsabilizando o trabalhador por sua inclusão/exclusão

no mercado.

Para Pereira (2001), com as taxas de desemprego de quase o dobro no segmento

juventude, é necessário aumentar a “empregabilidade” dos jovens, ou seja, a aquisição de

qualificações, competências e habilidades requeridas pelo mercado de trabalho como

melhorias de educação e formação profissional, de preferência, acompanhadas de esforços

especiais de inserção dos jovens no mercado de trabalho. Como essas melhorias demandam

tempo, o autor sugere que se devam incrementar medidas orientadas a aliviar o desemprego e

a vulnerabilidade social dos jovens.

Moreira e Almeida Filho (2001) argumentam que, embora a educação formal se faça

necessária, o grau de escolaridade não pode ser entendido como pré-requisito fundamental à

inserção ao mercado de trabalho. Ele deve ser somado ao tempo de serviço no mesmo posto

de trabalho, ou seja, a inserção depende da educação e do acúmulo de experiência profissional

formalizada. A oferta educacional, tomada como componente isolado de ação social, constitui

estratégia insuficiente para conter a explosão do desemprego na faixa etária entre 15 e 24

anos. Imaginar que o roteiro educacional formal basta para garantir inserção no mercado de

trabalho é ilusão perigosa.

Por mais estranho que pareça, a ampliação das taxas de escolaridade da massa de

trabalhadores representa o primeiro fator que explica a impressionante exclusão dos

146

trabalhadores mais jovens do mercado de trabalho (TREVISAN, 2004). Para Pochmann

(1998), parcela significativa da população juvenil, frente ao desemprego e à inatividade,

procurou reverter seu tradicional processo de transição do sistema educacional para o setor

produtivo. O aumento da inatividade dos jovens em virtude do maior tempo dedicado à

educação (alongamento da escolaridade) decorreu, em parte, da preocupação generalizada de

fortalecimento da formação profissional como antídoto ao agravamento do desemprego. A

escola parece transformar-se em uma espécie de refúgio temporário do jovem diante do

quadro de generalizada escassez de emprego. O processo de procura de emprego, alternado

com o sistema de ensino, sem o acesso ao primeiro emprego, faz a inatividade por

continuidade no sistema educacional converter-se, cada vez mais, em estratégia oculta de

disputa por uma vaga.

Escolaridade formal é instrumento importante, obrigatório, mas não constitui o fator

preponderante e definidor dessa inserção. Sem dúvida, as políticas públicas que implicam

ativas estratégias de indução para a inserção do jovem no mercado de trabalho, como o

primeiro emprego, são mais eficientes (TREVISAN, 2004).

A percepção de que o desemprego é um fenômeno que atinge de forma desigual os

diferentes grupos populacionais induziu a proliferação de incentivos para a contratação de

segmentos vulneráveis (primeiro emprego, no caso dos jovens; desempregados de longa

duração; adultos com pouca qualificação; grupos étnicos, entre outros). Esses subsídios vão

desde a redução das cotizações sociais até o pagamento à empresa por desocupado contratado.

Para Ramos (1997), esses tipos de medida, embora muito utilizados, são extremamente

polêmicos, pois pode se estar induzindo uma substituição, ou seja, o Estado pode estar

subsidiando uma ação que se realizaria de qualquer maneira. Estudos de caso relatados pela

Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 1993, mostram

um elevado desperdício de recursos na maioria desses programas, alimentando as posições

conservadoras sobre a eficiência e eficácia desse tipo de política.

Como afirma Telles (2001), as tendências da precarização do trabalho e da

desregulamentação do mercado de trabalho, bem como os novos circuitos que articulam o

mercado formal e informal ao longo das cadeias produtivas, fazem com que os programas

sociais promovam a transgressão das normas trabalhistas, favorecendo a proliferação de

empregos precários. Nessa perspectiva, um programa de inserção de jovens pode acarretar, na

verdade, uma flexibilização das leis trabalhistas, em vez de uma possibilidade de atenuação

do desemprego juvenil.

147

Para Castel (1998), crítico desses programas de inserção de jovens, sejam eles

federais, estaduais ou municipais, as numerosas medidas do tipo auxílio para a contratação,

abatimento dos encargos sociais sem obrigações de contratação pelas empresas, entre outras,

deram a prova, senão de sua inutilidade, pelo menos de seus efeitos extremamente limitados.

Quanto ao público que enfrenta dificuldades, como os jovens, teria sido necessário distribuir

menos frequentemente subvenções em favor de contratações que, de todo modo, teriam

ocorrido. O que se chama de “ganho inesperado” de algumas medidas sociais é muito

interessante para as empresas, e não se vê por que razões não se aproveitariam dele.

Conforme Madeira (2004), os programas sociais de natureza focalizada fracassam por

operarem, com frequência, na lógica de responder às pressões de urgências cotidianas,

ancoradas no voluntarismo, na intuição, em convicções que ouvem mais o coração que a

mente. Rua (1998) afirma que a formulação de políticas públicas refere-se à definição das

alternativas para solucionar o problema político e escolher a alternativa a ser adotada

envolvendo interesses materiais e ideais, raramente orientando-se por critérios estritamente

técnicos. Ao contrário, a decisão é sempre política, e cada um dos atores sociais, nessa fase,

exibe suas preferências e seus recursos de poder. Formulada, uma política só se transforma

em realidade ao ser implementada. É um engano achar que, uma vez tomadas as decisões, a

implementação simplesmente ocorrerá. A implementação implica novas decisões de

acentuada complexidade, articulando o sistema político com a realidade concreta das práticas

políticas e sociais dos interessados.

Segundo a OIT (2001), os programas devem ter objetivos claros, satisfazendo as

necessidades dos participantes e, assim, sendo mais eficientes no momento de promover

oportunidades de emprego. Como o desemprego não é distribuído de uma forma equitativa

entre a população jovem, os programas devem visar aos jovens mais desfavorecidos para

evitar o perigo da exclusão social.

Um dos grandes obstáculos à inserção dos jovens no mercado de trabalho, além das

características recessivas e de sua baixa qualificação, reside na exigência de experiência de

trabalho. Como o investimento empresarial em educação e capacitação profissional é bastante

reduzido, e ainda se exige experiência de trabalho sem que sejam oferecidas oportunidades

para tanto, o quadro só piora (RUA, 1998).

Criar estratégias para incorporar produtivamente os trabalhadores das faixas etárias

mais baixas trata de possibilitar mecanismos, em última instância, de inclusão social, à

medida que o mercado de trabalho seria o locus no qual as desigualdades são reproduzidas e

reforçadas mediante barreiras sociais e estruturais que se colocam para determinados grupos.

148

Nesse contexto em que o papel do Estado-nação encontra-se debilitado para formular

políticas públicas, tem-se valorizado o papel do governo local como aquele capaz de dar

respostas à crise de governabilidade e legitimidade do Estado (COELHO, 1996 e KLINK,

2001). É precisamente no nível do poder local que se discutirá a implementação dos

programas de primeiro emprego e, consequentemente, sua eficácia em garantir que os mais

necessitados tenham acesso aos recursos.

Para Azeredo (1998), o cenário político introduz a participação de novos sujeitos

sociais na formulação, gestão e controle social das políticas públicas. As políticas de emprego

e proteção social ganham notoriedade em nome do combate à pobreza, da erradicação e

controle do desemprego.

Há uma tendência clara de prefeituras e governos municipais de se converterem em

agentes de desenvolvimento econômico. Três aspectos ficaram ressaltados nas razões pelas

quais o governo local deve exercer o papel de protagonista do desenvolvimento: dispõe de um

conhecimento muito mais profundo da dinâmica da economia local; encontra-se próximo à

população; por essa proximidade com a população, é mais pressionado para integrar a ação de

desenvolvimento econômico com objetivos sociais (COELHO, 1996).

Segundo Sposito (2003), o aparecimento no plano regional e local de organismos

públicos destinados a articular ações do poder executivo e estabelecer parcerias com a

sociedade civil, para a implementação de projetos ou programas para jovens, é bastante

recente e decorre, sobretudo, de compromissos eleitorais de partidos que incluíram em sua

plataforma política as demandas que aspiravam à formulação de ações específicas destinadas

aos jovens.

O tema da focalização é muito controvertido, pois, se a focalização e a seletividade das

políticas sociais ameaçam a ideia da universalização, que realmente se deu apenas nas

economias desenvolvidas do pós-Welfare State, nos países em desenvolvimento, exatamente

porque os recursos mostram-se escassos e os contingentes a ser atendidos, tão numerosos, a

focalização é uma estratégia a se considerar. Mas, pela falta e escassez de recursos, a

focalização e a seletividade implicam clara definição de clientelas prioritárias como os jovens,

em especial aqueles com eminente vulnerabilidade social (RUA, 1998).

O Programa Bolsa-Emprego da Prefeitura Municipal de Betim surgiu no início da

administração 2001-2004, como uma resposta às promessas de campanha da composição

política vencedora nas eleições de 2000, confirmando as constatações apresentadas pela

literatura (DAYRELL, 2005) sobre o aumento dos programas no âmbito local, voltados para o

segmento juvenil na RMBH, no início da década de 2000, e sobre o caráter reativo das

149

políticas públicas para a juventude no Brasil (RUA, 1998). Na campanha eleitoral de 2000, o

lema dos candidatos, de uma forma geral, era o combate à violência, ao desemprego, a

melhoria da saúde e da educação e obras de infraestrutura urbana. Os três últimos itens

poderiam ser classificados como da esfera do poder municipal, com apoio dos governos

estadual e federal, mas, os dois primeiros, violência e desemprego, não configuravam,

necessariamente, tópicos da área de atuação do poder local. O desemprego é caracterizado por

mudanças macroeconômicas, como a reestruturação produtiva, as mudanças tecnológicas e a

abertura de mercado, que ocorreram na sociedade brasileira a partir da década de 1990. A

violência urbana agravou-se em todo o Brasil nesse período, talvez como um reflexo direto da

falta de oportunidades no mercado de trabalho. No município de Betim, o aumento

descontrolado e desordenado da população, a partir da migração das regiões mais pobres da

RMBH e do estado de Minas Gerais para o município, potencializou os efeitos indesejáveis

dessas mudanças, que terminaram por encontrar um ambiente propício para o aumento

considerável do desemprego, da miséria e, consequentemente, da violência.

A limitada atuação dos governos federal e estadual, para atuar no controle do

desemprego e da violência, induziu a administração local a propor ações que pudessem ser

implementadas no intuito de atacar tais problemas. Era necessário criar oportunidades para

que os jovens pudessem terminar os estudos e entrar para o mundo do trabalho. Isso com base

no pressuposto de que o estudo formal e a capacitação profissional ajudariam esses jovens a

conseguirem emprego e de que a falta de emprego seria uma das agravantes da violência

urbana.

A nova administração quis atuar no processo de seleção de funcionários, realizada

pelas empresas sediadas no município de Betim, uma vez que parte significativa dos

trabalhadores não reside no município. Esses trabalhadores são denominados genericamente

como estrangeiros, fato muito comum em regiões metropolitanas, com áreas de conurbação

que, pelo histórico do município e pela proximidade da capital do estado, assumem

proporções superiores à média, principalmente nas funções com maior especialização e

remuneração. No intuito de possibilitar, assim, a formação dos jovens do município nas

empresas e sua continuidade nos estudos, a administração municipal formulou, durante esse

período, um programa que tinha como pressuposto a união positiva do trabalho e da escola,

como forma de atuar no universo juvenil.

O Programa Bolsa-Emprego fora pensado de forma que se pudesse contar com a

parceria da iniciativa privada, para dar aos jovens residentes no município a possibilidade de

aprender uma profissão e ser inseridos no mercado de trabalho. Para a formulação do

150

programa, duas secretarias dividiram as tarefas de formulação e implementação. À Secretaria

Municipal de Desenvolvimento Econômico coube a elaboração de uma legislação específica

que pudesse dar respaldo legal e ao mesmo tempo atrair o maior número possível de empresas

para o programa. À Secretaria Municipal de Assistência Social coube assumir a gestão do

programa, no que se refere à atração das empresas, à inscrição e seleção, ao encaminhamento

dos jovens e à organização contratual dos envolvidos.

A seguir, apresenta-se a percepção dos empresários que aderiram ao programa.

Aborda-se nesse tópico aspectos como a configuração da parceria com a prefeitura, as

dificuldades e facilidades encontradas, a responsabilidade social e a oportunidade de ganhos

com o programa, bem como a adequação de um sistema de estágio dentro da empresa e a

relação com os jovens estagiários.

4. O OLHAR DOS EMPRESÁRIOS

O termo empresário é aqui utilizado para designar todos aqueles que, de uma forma ou

de outra, representaram as empresas na pesquisa, podendo ser o proprietário, o gerente de

Recursos Humanos ou o funcionário responsável pelo Programa Bolsa-Emprego na empresa.

É destacado como se estabeleceram os vínculos que resultaram nessa parceria entre a

iniciativa privada e o poder local; como ocorreram os primeiros contatos com a prefeitura; as

dificuldades e as facilidades encontradas para estabelecer essa filiação a um programa

patrocinado pelo poder público local e a percepção dos empresários em relação aos gestores

públicos responsáveis pelo programa.

Observam-se os aspectos relevantes dessa construção que são apresentados a partir do

olhar do empresário, ou seja, como foi viabilizado, dentro da empresa, um programa de

estágio e as adequações, possivelmente necessárias, para que os jovens fossem inseridos na

estrutura produtiva da empresa. Ressaltam-se as perspectivas da empresa em obter os

benefícios publicitários, como, por exemplo, de empresa com responsabilidade social,

supostamente possível de ser alcançada a partir do programa, e como essa modalidade de

política social pode viabilizar, à empresa, mais uma fonte de lucro.

Por fim, explora-se a percepção dos empresários sobre os jovens que participam do

programa. Enfatiza-se como a empresa percebe o estagiário em relação ao processo de

obtenção de experiência e aprendizagem, que são os fins do programa, segundo a lei que o

regulamenta. Trata-se, aqui, de como a empresa se ocupa desse estagiário em suas

dependências, pautando-se pela opção de ensinar para que, no futuro, o estagiário seja um

151

profissional, ou colocando-o para trabalhar utilizando-se desse tipo de mão-de-obra barata

com o discurso do trabalho como instrumento de ensino.

4.1. O OLHAR DOS EMPRESÁRIOS SOBRE O PBE E A AÇÃO DA PREFEITURA

Os representantes das empresas revelam ter tomado conhecimento do Programa Bolsa-

Emprego por meio dos meios de comunicação do município; em reuniões de classe; de

escritórios de contabilidade, que realizam a contratação dos funcionários das pequenas e

médias empresas; da visita de funcionários da prefeitura, que tinham o propósito de apresentar

o programa. Esse último foi apontado como fator principal de sua filiação, pois foram

discutidos, com o gestor da prefeitura durante a visita, os possíveis entraves legais à adesão da

empresa ao programa.

O processo que resultou na parceria entre a empresa e a prefeitura foi descrito,

positivamente, como simples e confiável. Enfatizou-se, inclusive, o fato de não haver os

entraves burocráticos típicos das relações das empresas com o poder público, como se pode

observar no depoimento a seguir:

Os processos são muito simples, tanto no âmbito de operacionalização da contratação, quanto na busca do benefício fiscal que o programa oferece para nós. Não existe aquela burocracia de tempo, aquela grande quantidade de formulários para preencher, são muito simples (Informação verbal).12

A percepção de que o programa traria vantagens econômicas para as empresas foi o

motivo mais evidenciado para a participação das mesmas. No entanto, em algumas empresas,

os funcionários responsáveis pelo Bolsa-Emprego e, mais explicitamente, o dono da empresa,

destacaram o apoio, ou melhor, a simpatia que teriam pela administração municipal gestora do

programa. Essa simpatia torna-se mais visível com o reconhecimento à postura do prefeito em

assinar os contratos e a ênfase à ajuda que a empresa conferia ao programa e à administração

municipal, para resolver o problema do desemprego dos jovens.

Após a visita, esclarecidas as dúvidas, os contatos entre a empresa e a prefeitura eram

realizados por meio de telefonemas, pelos quais a empresa comunicava à prefeitura o número

de vagas e o perfil dos jovens que deveriam ser encaminhados para a seleção. Esse processo,

segundo o relato dos empresários, era o meio de contato entre os gestores da prefeitura e a

12 Entrevista concedida, em 06/07/2005, por empresário.

152

empresa. Inclusive, é ressaltada por alguns empresários a ausência do poder público no

desenvolvimento do processo de aprendizagem dos estagiários dentro da empresa.

Embora a falta de acompanhamento do programa pelo gestor público seja uma crítica

apontada pelos empresários, a flexibilidade dos gestores do PBE em atender às demandas da

empresa constitui um dos pontos do programa citados como positivos. Nesse sentido, tem-se a

opção da empresa de apresentar ao gestor do programa um jovem que já constava no seu

arquivo ou de não haver uma lista por ordem de inscrição a ser imposta à empresa, sendo

possível a seleção dos jovens pelo perfil desejado, independentemente da ordem de inscrição.

O relato a seguir é elucidativo:

Às vezes, eu encaminho o menino para fazer o contrato (...) não tem problema nenhum. Porque, às vezes, é uma indicação mesmo, de um funcionário da empresa, de um parente; então, a gente atende aos funcionários (Informação verbal).13

O poder de decisão da empresa de contratar o jovem que ela achar melhor não é

constrangido pelo programa, com exceção de pessoas de outras cidades. A seguir, aponta-se

como os empresários percebem o programa em relação à empresa.

4.2. O OLHAR DOS EMPRESÁRIOS SOBRE O PBE NA EMPRESA

Algumas empresas já trabalhavam com outro sistema de estágio, por meio de uma

empresa especializada em fornecer estagiários. Depois da filiação ao programa, as empresas

que tinham o sistema de estágio anterior trocavam-no pelo da prefeitura ou implantavam o

Programa Bolsa-Emprego, juntamente com o anterior. Alguns empresários destacaram que

continuam com o programa anterior porque necessitam de estagiários com perfil não

encontrado no município, principalmente os relacionados a cursos universitários que não são

oferecidos nas faculdades de Betim. Isso se deve ao fato de o programa prever que apenas os

jovens residentes no município possam participar.

Embora o Programa Bolsa-Emprego sirva para que a empresa possa realizar um

sistema de estágio em suas dependências, o sistema oferecido por empresas especializadas em

fornecer estagiários é bem diferente, segundo os empresários. A principal diferença consiste

no reembolso. Como a maioria das empresas repassa para o estagiário o mesmo valor que

recebem da prefeitura, elas terminam por obter mão-de-obra quase gratuita. Isso,

considerando que ocorrem despesas com transporte, alimentação, seguro, entre outros. As

13 Entrevista concedida, em 08/07/2005, por empresário.

153

empresas podem, também, utilizar-se da participação no programa como forma de se

enquadrar no rol das empresas preocupadas com a sua responsabilidade social no município.

É ilustrativo o depoimento a seguir:

Eu sempre reembolso quase que 100% dos valores. Então, para mim, é um belo benefício porque é como se eu tivesse estagiários com custo zero. E eu trabalho isso, faço marketing disso interno: “Olha, bota o estagiário aí que o custo é zero. Pode colocar” (Informação verbal).14

Os empresários, contudo, descreveram alguns pontos negativos, como o valor do

reembolso, que não foi reajustado durante todo o período de vigência do programa. Assim, a

maioria dos estagiários do ensino médio, que recebe apenas o valor do reembolso, está com

sua remuneração sem correção desde o início do programa. Os empresários disseram também

que os jovens encaminhados para as empresas não apresentam o perfil exigido,

comprometendo o processo de seleção com jovens que não satisfazem as condições mínimas

para preencher os quesitos necessários à vaga. Outro fator de descontentamento, apontado

pelos empresários foi a demora para que o contrato fosse firmado, ou seja, para que todas as

assinaturas fossem efetuadas no contrato. São despendidos, em média, dez dias, não

permitindo que o jovem comece o estágio antes desse prazo. Foi levantada a falta de um

reconhecimento público do bom desempenho da empresa, quanto aos fins estabelecidos pelo

programa, como é descrito no depoimento a seguir:

Eu peguei esse estagiário e fiz dele um profissional, dei uma oportunidade para ele. Você realmente participou do Bolsa-Emprego, você realmente criou um profissional. Uma coisinha, só para falar assim: “Você é realmente um cara que está participando e que esta ajudando”. Não é nada de remuneração (Informação verbal).15

As empresas, também, destacaram como positiva a formação de funcionários por meio

do programa. Empresas que só admitiam funcionários com experiência profissional anterior, a

partir do programa, começaram a formar seus próprios funcionários, embora a maioria dos

jovens realize o estágio em departamentos específicos da empresa, como os escritórios, não

sendo requisitados para realizar estágio nos setores de produção das empresas, como o setor

de metalurgia. Alguns empresários afirmaram que os estagiários são, atualmente,

impreteríveis para a formação de mão-de-obra e para o bom desenvolvimento das atividades

da empresa, como pretendemos destacar no item a seguir.

14 Entrevista concedida, em 06/07/2005, por empresário. 15 Entrevista concedida, em 06/07/2005, por empresário.

154

4.3. O OLHAR DOS EMPRESÁRIOS SOBRE O JOVEM ESTAGIÁRIO

Os primeiros contatos das empresas com os jovens candidatos a realizar um estágio

em suas dependências podem dar-se de duas formas diferentes. A primeira é por intermédio

de terceiros ou do próprio Programa Bolsa-Emprego. São considerados terceiros todos

aqueles que, de alguma forma, realizam a intermediação entre a empresa e o jovem, podendo

ser um funcionário da empresa, amigo ou parente do dono. Também admite-se, como fator de

diferenciação, e, em certa medida, intermediação na hora da entrevista, o cadastro realizado

pelo jovem na empresa, independentemente do programa, já que o mesmo é usado como

critério de seleção durante as entrevistas para o estágio. Os jovens que têm acesso à empresa,

a partir da referida intermediação do programa são aqueles que foram selecionados pelos

gestores para ser direcionados à entrevista, mas, sem uma indicação dentro da empresa. No

entanto, alguém, com influência entre os gestores do PBE. Embora ocorra essa diferenciação

entre os jovens, foi afirmado, categoricamente, pelos representantes das empresas, que todos

passam pelos testes e aqueles que não se mostrem aptos, mesmo com a indicação, não são

contratados.

Por outro lado, é uma reclamação comum, entre os empresários, o modo como os

jovens se apresentam nas entrevistas, principalmente os que não foram indicados por

terceiros. Boa parte deles não tem a mínima noção de como se portar. Segundo o relato dos

empresários, os jovens deveriam ter mais qualificação ou acesso às informações necessárias

para a entrada no mercado de trabalho, como a capacidade de preencher uma ficha ou mesmo

o curso de informática. O comportamento inconveniente de alguns jovens ao se apresentar nas

entrevistas, seja no modo de se vestir ou na maneira de se portar, é descrito como a principal

desqualificação no processo de seleção e de depreciação do programa. Esse, seguido da falta

de experiência, que é um paradoxo, se considerarmos que o programa tem o objetivo de

proporcionar exatamente a experiência necessária ao jovem para sua entrada no mercado de

trabalho. O relato a seguir é elucidativo:

O que acontece no Bolsa-Emprego é que o perfil de cadastro deles é bem primeiro emprego mesmo. São pessoas novas, 16, 17 anos, que nunca trabalharam. E apesar de ser estágio, em alguns momentos, você precisa de alguém com uma vivência, não necessariamente tenha que ter tido emprego. Sei lá, a família, alguém que teve alguma experiência administrativa em algum lugar (Informação verbal).16

16 Entrevista concedida, em 09/07/2005, por empresário.

155

O conhecimento prévio sobre o jovem, mediante indicação feita por pessoas que se

relacionam com o empresário ou por outro funcionário da empresa é um costume existente.

Os empresários afirmaram que a prática existe e é incentivada como forma de se prevenir

problemas futuros. Apesar de o programa ter um caráter social de poder auxiliar jovens que

não disponham de uma rede social, atuando como uma forma de intermediar sua entrada no

mercado de trabalho, os empresários preferem os jovens que tenham esse quesito, em

detrimento dos que não o apresentem. Algumas empresas, inclusive, optam por contratar

apenas jovens indicados pelos funcionários. Essa cultura é expressa de forma singular no

relato a seguir:

É costume. Eu até pergunto: “Você conhece alguém?”. Depois, eu chamo em particular e pergunto: “Você conhece? Quem é?” Já aconteceu muitas vezes de falarem “Oh... não aceita não porque tem isso, e isso, e isso! (Informação verbal).17

Após a admissão, o estagiário é direcionado ao setor onde irá trabalhar, sem que

ocorram adequações que permitam ao jovem a realização de um estágio supervisionado. Os

empresários enfatizaram que o processo de aprendizagem do estagiário é realizado da mesma

forma que seria com um outro jovem qualquer contratado pela empresa. Na maioria dos

casos, os jovens foram direcionados a realizar os serviços mais simples, ou seja, de menor

responsabilidade dentro da empresa, com a ressalva de que eles poderiam, no decorrer do

tempo, aprender atividades mais complexas. Destacou-se que os jovens apresentam uma

disposição considerável para aprender as tarefas e que isso era um dos fatores que validava a

experiência com o programa.

Os empresários afirmaram que, a partir dos resultados positivos alcançados com os

jovens dentro da empresa, gostariam de poder ampliar o número de vagas para estágio, porém

não o fazem pela questão da lei, que estabelece limites para número de estagiários em relação

ao número de funcionários. Entretanto, relata-se o lado positivo dessa cota de estagiários

permitidos às empresas, pois, na necessidade de mais um auxiliar administrativo e não

podendo contratar outro estagiário, admite-se o estagiário como auxiliar administrativo e

abre-se mais uma vaga de estágio para outro jovem.

Ocorreram relatos de empresas que substituíram o modelo de contratação de mão-de-

obra com experiência profissional anterior (muitas, inclusive, só contratavam dessa maneira)

pela estratégia de formar sua própria mão-de-obra, a partir do Programa Bolsa-Emprego.

17 Entrevista concedida, em 09/07/2005, por empresário.

156

Alguns relatos demonstram que o programa substituiu a contratação de adultos que, também,

não tinham experiência anterior, por jovens do programa, partindo da constatação de que os

estagiários aprendiam o serviço rapidamente e se dedicavam com mais afinco às tarefas

propostas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Programa Bolsa-Emprego foi criado pela administração municipal (2001-2004) com

o intuito de proporcionar a abertura de postos de trabalho para os jovens, cumprindo, assim,

as promessas realizadas durante a campanha eleitoral, que se baseavam no combate ao

desemprego e à violência urbana. Como os jovens seriam os mais afetados pelo desemprego e

pela violência, os mesmos seriam inseridos no mercado de trabalho por meio de um estágio

supervisionado. No entanto, a opção por estágio de um ano e não por um programa de

primeiro emprego com registro, como outros programas do gênero, ocorreu devido às

questões legais, pois a “assinatura da carteira” poderia afastar os empresários. O sistema de

estágio adotado pela administração municipal implica em uma flexibilização das leis

trabalhistas. Essa opção fica evidente ao se observar a falta de acompanhamento e controle

das atividades realizadas pelos estagiários, que deveriam ser supervisionadas pelos gestores

públicos, pelos empresários e/ou pelos funcionários das escolas.

Os gestores públicos esbarraram nas exigências dos empresários, que não distinguem

os estagiários subvencionados pela prefeitura de outros jovens, que poderiam ser formados

dentro dos quadros das empresas, sem subvenção. Essa condição acarreta aos gestores

públicos a necessidade de diferenciar os candidatos no ato mesmo da inscrição, levando-os à

busca de estagiários que preencham as condições impostas pelas empresas e não o contrário.

Os gestores públicos procuram propor às empresas os jovens em situação de vulnerabilidade,

que mais necessitam do programa para se inserirem no mercado de trabalho, pois, sua rede

social dificulta a inserção no mercado formal de trabalho. Como o Programa Bolsa-Emprego

é perpassado pela questão político-eleitoral, em vista da visibilidade política, supostamente

obtida pela administração, os gestores públicos e o programa, como um todo, ficam à mercê

das vicissitudes da quantidade em detrimento da qualidade. Ou seja, o critério de avaliação de

desempenho imposto aos gestores do poder local encarregados do programa prioriza o maior

número de jovens atendidos, em detrimento dos benefícios que o programa possa trazer aos

mesmos. Esse “atendimento” é realizado somente pelas orientações dos empresários

157

participantes, sem que haja mais cuidado com a aprendizagem profissional do jovem e como

ocorre esse processo.

É de ressaltar, entretanto, que as regras estabelecidas pelo programa atuam de forma

positiva nos objetivos propostos, seja direta ou indiretamente. Ao estabelecer que apenas os

jovens residentes no município de Betim possam ser atendidos, o programa cria uma reserva

de mercado para os jovens do município, anteriormente em desvantagem em relação aos

trabalhadores com experiência, e oriundos de outros municípios. As empresas que primavam

pela experiência utilizando-se, inclusive, de profissionais de outros municípios, depois de

aderidas ao programa, abriram a possibilidade de formar mão-de-obra residente em Betim,

que poderia ser contratada tanto pela própria empresa como pelas demais, alterando a

configuração do processo de seleção anteriormente utilizado. Outra regra estipulada pelo PBE

que atingiu os objetivos propostos era referente à quantidade de jovens atendidos pela

empresa. Como era atrativo obter mão-de-obra juvenil de baixo custo, ao abrirem mais vagas

que pudessem ser preenchidas pelos estagiários – mas não sendo possível contratá-los, uma

vez que o número de estagiários ultrapassava a cota –, as empresas preferiam a contratação do

estagiário como funcionário e a abertura de novas vagas para outros estagiários. Dessa forma,

parte dos jovens era realmente inserida como funcionários da empresa.

As empresas que aderiram ao programa esperavam baixar seus custos de contratação e

formação de mão-de-obra, assim como participar de um programa que lhes proporcionasse o

rótulo de empresas com responsabilidade social (de preferência, com baixo custo e sem

mudanças administrativas e produtivas significativas). A maioria das expectativas das

empresas foi atendida com o programa. As situações que os representantes das empresas

apontaram como problemáticas referiam-se às questões que emperravam o processo de

contratação dos jovens, que, por ser demorado, causava prejuízos à empresa. Mas esse

“prejuízo” era devido à vaga aberta pela empresa, que, apesar de ser uma vaga precisamente

criada mais para o estágio supervisionado, na verdade espelhava a necessidade de ocupação

de um trabalhador dentro da estrutura produtiva.

A falta de acompanhamento do gestor público, apontada pelos empresários, adquire

um tom voltado mais para a falta de reconhecimento da “formação” que o jovem vinha tendo

na empresa, do que a importância pedagógica do acompanhamento das atividades no estágio.

Assim, apesar do relativo sucesso do programa em estabelecer parcerias entre a

iniciativa privada e o poder público para a abertura de postos de trabalho para os jovens, não

se verificaram os pressupostos apontados pela bibliografia quanto à prioridade para os jovens

com maiores dificuldades de se inserir no mercado de trabalho. Ao contrário, observou-se que

158

os costumes que os excluíam, como a intermediação de conhecidos, ainda persistem, apesar

da finalidade do programa ser exatamente romper com tal ciclo.

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160

PARTE III

Inclusão Social, Gênero e Raça: Questões Específicas

161

Gênero e Raça no Brasil: Impasses e Avanços

Rosana Heringer1

A proposta deste artigo consiste em refletir sobre a questão da diversidade racial e de

gênero, bem como dos impasses e desafios em torno dessa questão, principalmente no Brasil.

A concepção de que parte este trabalho é da discriminação como uma violação dos Direitos

Humanos. Tomar o marco dos Direitos Humanos como ponto de referência para se debater a

questão da inclusão e a questão da diversidade se faz importante porque nos remete à

compreensão do ser humano como um todo e não de determinado grupo específico. A

percepção da discriminação como violação de direitos traz embutida uma crítica à falsa noção

de um ser humano supostamente universal. Tal seria um ser humano associado com o

masculino, com o branco, com o heterossexual, com uma pessoa sem eventuais necessidades

especiais. Essa é uma noção que nos permite ampliar e pensar a questão da inclusão

(HERINGER; PITANGUY, 2002).

A ideia de respeito às diversidades mostra-se presente nos principais documentos

internacionais de direitos humanos, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de

1948. Ao longo das últimas cinco décadas, tal concepção de diversidade associada aos direitos

humanos ampliou-se e se consolidou. Pode-se tomar como exemplo a Declaração da

Conferência Mundial dos Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993, cujo texto

consolidou a percepção da indivisibilidade dos Direitos Humanos, entre outros avanços

(ONU, 1993).

O ciclo de conferências sociais da ONU, iniciado em 1992, com a Conferência

Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), nos aponta para a ampliação

dessa concepção de direitos: direito ao meio ambiente, direitos humanos, direito das

populações ao desenvolvimento social, direito das mulheres. A Conferência de Durban (III

Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância

Correlata), realizada em Durban, na África do Sul, em 2001, representou o clímax desse

movimento, no que diz respeito à luta contra a discriminação racial. No entanto, com exceção

da Conferência de Durban (que teve como tema específico a questão da discriminação), outras

1 Doutora em Sociologia (IUPERJ), coordenadora do Programa de Direitos das Mulheres e Afrodescendentes, ActionAid Brasil .

162

conferências pouco trataram do debate sobre discriminação racial e diversidades (Heringer &

Lopes, 2003).

Essa conferência constituiu-se em um marco importante para a redefinição da agenda

das relações raciais no mundo e, particularmente, no Brasil. A oportunidade de interferir tanto

por meio da denúncia do racismo quanto da formulação de propostas que pudessem vir a ser

incorporadas na declaração final e no plano de ação da conferência motivou a participação de

centenas de organizações do movimento negro brasileiro, juntamente com organizações

indígenas, de mulheres e de diferentes grupos religiosos, entre outros, no processo

preparatório da conferência, impulsionando um momento de ricos debates sobre o padrão

vigente de relações raciais no Brasil.

Quando se pensa no caso brasileiro e no debate contemporâneo sobre o assunto, o

princípio da diversidade, ao ser trazido para o âmbito das políticas públicas e,

particularmente, das políticas sociais, significa apontar que as chamadas políticas universais

têm efeitos diferenciados sobre distintos grupos sociais.

Na prática, as políticas universais admitem que a sociedade brasileira comporta uma

diversidade de cidadãos que não pode se reduzir às categorias com as quais tradicionalmente

as políticas públicas atuaram durante muito tempo – utilizando categorias tais como “os

excluídos” ou “os pobres”. Dentro desses grupos existem várias especificidades e isso afeta o

reconhecimento e o acesso aos direitos e à forma como esses direitos realizam-se na prática. É

importante pensar que o tradicional recorte feito com base no rendimento ou no nível de vida

se mostra insuficiente para traduzir as diferenças e, portanto, as necessidades e os direitos da

população.

No que diz respeito à questão específica da dimensão de raça e etnia no Brasil, um

conjunto de indicadores sociais demonstra as diversas desigualdades raciais e étnicas quanto

ao acesso aos direitos (Henriques, 2001; Heringer, 1999 e 2006). A própria mídia no Brasil,

além da mobilização do movimento negro e do trabalho de pesquisadores, vem fazendo com

que esses números estejam bastante conhecidos hoje em dia. Os indicadores relacionados ao

rendimento das famílias, à mortalidade infantil, ao acesso à educação, à vitimização, à

vulnerabilidade do trabalho infantil, entre outros, demonstram as desigualdades de

oportunidades, segundo o IBGE, entre os grupos que se autoclassificam como pretos e pardos

e o grupo que se autoclassifica como branco.

Esses indicadores representam o retrato de uma trajetória no campo das políticas

educacionais e das políticas sociais como um todo que traduz um contínuo de desigualdades,

do ponto de vista da autoclassificação de cor ou raça dos brasileiros. Como bem aponta

163

Paixão (2003), esses dados expressam o fato de que as supostas políticas universais

implantadas no Brasil, nas últimas décadas, não apenas não chegaram a se universalizar, mas

também não contribuíram para a redução das distâncias entre brancos e negros, no que diz

respeito às oportunidades. No ritmo em que nos encontramos hoje no Brasil, levaremos ainda

muitos séculos para chegar a uma efetiva igualdade de oportunidades entre os diferentes

grupos raciais no Brasil.

Acreditamos ser muito importante, nessa rápida reflexão, tomar como referência a

mobilização negra antirracista no Brasil, pois que sempre houve essa mobilização,

principalmente no período pós-abolição e ao longo do século XX, quando permanentemente

se apresentaram propostas de debates sobre a questão da inclusão da população negra no

Brasil.

A mobilização das organizações negras esteve presente em toda a história do Brasil,

tanto no período da escravidão, com diversas formas de resistência política, cultural e

religiosa, quanto a partir do fim do século XIX, no movimento abolicionista, e na mobilização

nas décadas seguintes pela ampliação dos direitos da população negra. A agenda das

organizações negras que surgem no país, a partir da década de 30, fundamenta-se na ideia de

aumentar o acesso dos negros à educação, a oportunidades de trabalho e a um maior espaço na

participação na vida política e econômica (Silva, 2003).

É interessante observar que todo debate que hoje ocorre sobre as cotas e sobre a ação

afirmativa, por exemplo, não se mostra isolado de uma demanda histórica. Nos últimos 25

anos e, em particular, no momento em que os vários movimentos sociais se rearticularam pós-

ditadura militar, o movimento negro também sempre se organizou e trouxe bandeiras

específicas voltadas para a luta contra a discriminação.

São vários os aspectos que devem ser lembrados em torno dessa mobilização pela

promoção da igualdade. Devemos nos lembrar do debate sobre políticas específicas

(principalmente para população negra); da questão dos entraves à plena inserção do negro no

mercado de trabalho, e não apenas em posições menos qualificadas e de menor rendimento;

dos desafios de se enfrentar o racismo no cotidiano, talvez uma das formas mais perversas e

difíceis de racismo que temos de enfrentar para conseguir a plena inclusão2.

Na sequência, apresentamos um rol de questões para pensar em torno da promoção da

igualdade e valorização da diversidade no campo das políticas públicas. Decidimos apontar

2 Foi justamente essa situação concreta da discriminação racial que motivou um conjunto de várias organizações não-governamentais e do movimento negro no Brasil a lançar a campanha “Onde você guarda o seu racismo?”. O objetivo foi estimular o debate sobre o racismo vivenciado no cotidiano, motivando as pessoas a percebê-lo para, então, combatê-lo. Mais informações na página www.dialogoscontraoracismo.org.br.

164

como foco principal a questão do direito à educação, pela sua importância na geração de

oportunidades e na contribuição potencial para uma sociedade não discriminatória.

Um tema fundamental, por exemplo, é a questão da educação de zero a seis anos e,

principalmente, na faixa de zero a três anos. Há também o tema da construção de uma

proposta curricular antirracista, além de estratégias para promover um melhor rendimento

educacional dos estudantes negros. Existem algumas pesquisas com resultados importantes

mostrando que é possível construir bons resultados, em termos de sucesso escolar, nas

diversas séries. As pesquisas mostram ainda que, à medida que se ampliam as oportunidades

de acesso às várias formas de tecnologia e a escola apresenta uma educação de qualidade, as

diferenças que os estudantes trazem na sua história pessoal e na sua origem social diminuem

(SOARES et al., 2001). Então, precisamos investir principalmente nos grupos que têm

apresentado um rendimento escolar de menor sucesso.

O movimento negro vem realizando um grande trabalho na implementação da Lei

10.639/2003 – que é a lei voltada para o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas

–, com a produção de material didático, bem como da promoção de oportunidades de

formação de professores.

Em relação à promoção de atividades culturais tendo como enfoque as crianças e os

adolescentes negros, temos visto pelo Brasil muitas experiências importantes que vêm

acontecendo em comunidades, em bairros de periferia, em favelas e, principalmente, nas

grandes cidades brasileiras – experiências que têm sido verdadeiros laboratórios, digamos

assim, de inclusão, promovendo tanto ações culturais como ações de treinamento e de

qualificação profissional. Essas experiências atingem grande número de jovens,

majoritariamente de jovens negros. Isso é muito importante para refletirmos sobre os

alcances, os sucessos e os limites dessas experiências, além de verificarmos até que ponto elas

podem dialogar umas com as outras.

Tais experiências têm relação com outro aspecto desse assunto: a redução do trabalho

infantil e do trabalho informal e precário. Todo mundo que trabalha com jovens –

principalmente com jovens que já terminaram o ensino médio e ainda não obtiveram sucesso

ou oportunidade de entrar em uma universidade, ou mesmo quem trabalha com aqueles jovens

que conseguiram entrar na universidade, mas ainda estão desempregados – sabe que, na

questão do mercado de trabalho, a grande massa de desempregados no Brasil de hoje é de

jovens de até 25 anos. Reconhecemos a complexidade associada a questões de desempenho

econômico do país, necessária à geração de empregos, entretanto apontamos para a

165

necessidade de promover um crescimento que não seja excludente, que não beneficie apenas

determinado grupo.

Ainda nesse campo das políticas voltadas para a questão racial, existe a situação

específica de vulnerabilidade dos jovens e adolescentes do sexo masculino. De vez em

quando, ao colocarmos essa questão, surge certa polêmica porque sempre há a tendência de se

pensar nas mulheres como um grupo específico, um grupo que demanda uma atenção maior.

Algumas pesquisas, porém, demonstram que as taxas de mortalidade por causas externas –

basicamente mortes violentas – entre jovens, negros e pobres nas áreas metropolitanas

brasileiras são bem maiores do que a taxa média do conjunto da população3. Isso nos mostra

um ponto muito concreto, qual seja a questão da segurança pública e do respeito aos direitos

em relação à juventude em geral e aos jovens negros em particular.

1. GÊNERO: O PROTAGONISMO DAS MULHERES NOS ESPAÇOS PÚBLICO E

PRIVADO

O artigo 5º da Constituição Brasileira, promulgada em 1988, declara que “homens e

mulheres são iguais em direitos e obrigações” (Parágrafo I). Essa declaração abrangente se

expressa em diferentes conquistas obtidas pelas mulheres no processo constituinte, como a

igualdade no casamento, a garantia de alguns direitos trabalhistas às empregadas domésticas e

o reconhecimento do papel do Estado em coibir a violência doméstica, entre outras4.

Essas e outras conquistas foram frutos da mobilização e atuação política de um ativo

movimento de mulheres que, desde o início do século XX, atuou intensamente na luta pela

ampliação do papel da mulher na sociedade brasileira. Nesse processo de organização das

mulheres para a conquista de seus direitos, a composição desse movimento social congregou

uma diversidade de militantes, refletindo a própria diversidade regional, social, econômica e 3 Um estudo feito pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) indica que as mortes causadas por homicídios (assassinatos) são mais frequentes entre os homens negros na faixa de 10 a 24 anos do que entre os brancos no Estado de São Paulo. Enquanto ocorrem 60,5 óbitos para cada 100 mil homens no caso dos brancos, essa proporção sobe para quase o dobro entre os negros: 120 mortes para cada 100 mil homens. (Acesso na página eletrônica http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2006/11/16/materia.2006-11-16.0421729587/view em 08/08/2007). 4 Uma articulação que ficou conhecida como Lobby do Batom, liderada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), alcançou, a partir da mobilização de centenas de organizações de mulheres, as seguintes conquistas na Constituição de 1988: eliminou-se a supremacia dos homens nas questões familiares; conquistou-se o direito da mulher casada declarar separadamente seu imposto de renda; os mesmos direitos para os filhos tidos fora do casamento e no matrimônio; os mesmos direitos dos casados para parceiros em uniões consensuais; direito à licença-paternidade de oito dias remunerada; violência sexual como crime contra os Direitos Humanos e não como crime moral; direitos trabalhistas e previdenciários estendidos aos trabalhadores domésticos, na sua ampla maioria mulheres (Pena; Pitanguy, 2003, p.94).

166

racial presente na sociedade brasileira. Entretanto, o movimento sufragista na década de 30,

assim como, ao longo das décadas seguintes, o movimento feminista, mantinham sua base

social principalmente composta por mulheres brancas, escolarizadas e de classe média e alta

(ALVES, 1980). As mulheres trabalhadoras de baixa qualificação, as empregadas domésticas,

as mulheres negras e indígenas foram personagens ainda pouco presentes na vida política

nacional até o período da redemocratização política, iniciado em meados da década de 1970.

Ao longo do século XX, marcado por intenso crescimento econômico e pela crescente

urbanização e modernização da sociedade brasileira, o papel destinado a mulheres negras e

indígenas continuou sendo subalterno: desvalorização do trabalho das mulheres na área rural;

trabalho desqualificado ou subemprego nas áreas urbanas; expressivos contingentes de

mulheres indígenas (principalmente no Norte e Centro-oeste do país) e negras empregadas no

trabalho doméstico; altos índices de prostituição e condições precárias de saúde e educação,

em comparação com as mulheres brancas.

Em relação à questão de gênero, é importante resgatarmos o histórico de mobilização

das mulheres no Brasil, mobilização que vem de longa data e se intensificou nas últimas

décadas. Creio que uma das principais vitórias do movimento de mulheres tenha sido,

justamente, a possibilidade de reconhecimento do espaço privado como espaço político. A

visibilidade das mulheres vem ocorrendo nos mais diferentes setores, principalmente, ao

deixarem de ocupar apenas o espaço dedicado à família, passando a ocupar também espaços

públicos na sociedade.

É certo que ainda existem demandas importantes. Algumas lograram vários avanços,

outras ainda têm muita coisa para alcançar, por exemplo, a luta contra a violência, a luta por

direitos sexuais reprodutivos, a luta pela participação política e maior ocupação de espaços de

poder. Enfim, temos experimentado algumas conquistas em torno dessas questões, porém

ainda há espaços para avançar mesmo em áreas nas quais as mulheres obtiveram grandes

conquistas, como é o caso do mercado de trabalho, no qual ainda são vivenciadas situações de

grande desigualdade.

Quanto à questão de gênero no âmbito educacional, os dados mostram a necessidade

de ampliar a construção de uma proposta curricular não-sexista. Temos vivido algumas

experiências importantes, e o movimento de mulheres vem desempenhando papel importante

nesse campo da formação de professores voltados para lidar com o tema da diversidade de

gênero, da luta contra a violência, de se pensar os papéis sociais de homens e mulheres.

Outra questão com que devemos nos preocupar é a do trabalho infantil –

principalmente em relação às meninas que trabalham como empregadas domésticas, um tema

167

que a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres vem dando prioridade. A secretaria

tem trabalhado igualmente em temas voltados para o combate à violência de gênero, à questão

da gravidez precoce, à exposição ao HIV – sabe-se que a maioria das novas pessoas

infectadas se constitui de mulheres – e a política pública de segurança, entre outras temáticas.

2. REFLETINDO SOBRE ESTRATÉGIAS

A vivência democrática permite que se estabeleçam espaços e arenas nos quais os

diferentes conflitos existentes na sociedade brasileira possam ser negociados. Entretanto, ao

mesmo tempo, também se criam situações de impasse, em que dificilmente ocorre uma

conciliação dos interesses.

Temos uma preocupação específica com a questão da integração das agendas.

Obviamente que existem agendas inconciliáveis, porém acreditamos ser possível haver dentro

da agenda dos diversos movimentos sociais, com suas variadas agendas, também uma luta

antirracista ou uma luta pelos direitos das mulheres. A intenção é que os próprios excluídos,

de alguma forma, possam dialogar entre si e pensar como seus direitos podem ser

reivindicados em conjunto.

Outro aspecto importante, em termos de estratégia, é o monitoramento dos programas

sociais, principalmente levando-se em conta as variáveis de gênero e raça. Já existem alguns

programas de ação afirmativa sendo implementados, da mesma forma que foram implantados

alguns programas que apresentaram como foco as mulheres e jovens, entre outros grupos.

Tais programas precisam ser ampliados e mais bem monitorados. É fundamental formular

mecanismos de priorização para grupos específicos no acesso aos programas sociais, a fim de

se chegar àqueles que realmente precisam.

No campo específico da luta contra a discriminação e a desigualdade racial, é

importante refletir sobre estratégias que ampliem o acesso e a permanência de estudantes

negros no ensino superior, que se apresenta como um terreno fundamental para o movimento

negro e antirracista. Esses devem ser capazes de reunir aliados em diferentes setores da

sociedade brasileira, vencendo resistências e ampliando sua base de apoio.

Pesquisa de opinião em nível nacional, realizada pela Fundação Perseu Abramo, em 2003, aponta que entre a

maioria dos entrevistados, em todos os grupos, divididos de acordo com a autoclassificação racial, a aprovação

às cotas é majoritária. Entre os brasileiros brancos, a medida é apoiada por 56%. O índice sobe para 59%, se

consideradas apenas as respostas dos pardos, e para 68% entre as pessoas que se autodeclaram pretas. Entre os

168

índios, o percentual ficou em 59%. Em uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em 1995, com as mesmas

perguntas, a aprovação da política de cotas era de 48%, contra os 59% de hoje (SANTOS; SILVA, 2005).

Essa questão é um objetivo que as pessoas aceitam e, mais ainda, acreditam ser

importante para o Brasil. Devemos repensar as maneiras de superar o problema da

desigualdade e da discriminação racial e de gênero no Brasil, como formas de garantia dos

Direitos Humanos e realização da cidadania.

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170

Inclusão, exclusão e raça: Uma articulação entre psicanálise e sociedade

José Tiago dos Reis Filho5

“Os mortais são aqueles que podem ter a experiência da morte como morte. O animal não o pode. Mas o animal tampouco pode falar. A relação essencial entre morte e linguagem surge como num relâmpago, mas permanece impensada. Essa relação pode, contudo, dar-nos um indício para o modo como a essência da linguagem nos reivindica para si e nos mantém desta forma junto de si, no caso de a morte pertence originariamente àquilo que nos reivindica”

Heidegger

Falar de inclusão numa sociedade exclusiva é, no mínimo, constrangedor! É como

percebo esse tema no Brasil. Desde nosso “descobrimento”, as práticas exclusivistas têm sido

uma constante, uma norma. Os índios foram dizimados; o que vemos hoje é uma pequena

porcentagem (10%) da população de origem. Os negros foram “assimilados”, por causa da

miscigenação ou da vida à margem. Outros povos encontraram aqui uma pátria. Afinal, o

Brasil é uma democracia racial! Doce ilusão. Quando olhamos de perto, não é isso que vemos.

A exacerbação da violência; a proletarização crescente; o baixo nível das redes públicas de

educação e de saúde... Isso afeta, especialmente, os negros, índios e nordestinos, essas

categorias historicamente marcadas pela desassistência.

A pobreza, a miséria, a falta de recursos dignos para o exercício da cidadania

envolvem uma parcela significativa da população. No presente texto darei ênfase aos negros e

sua histórica luta pela dignidade. É curioso perceber que o tráfico negreiro para o Brasil teve

início ainda nos anos 1500 e perduraram por mais de três séculos. Passados quase 120 anos da

Abolição da Escravatura, assistimos a uma pequena parcela da população brasileira (5%) que,

sendo negra, tem acesso a uma cidadania plena. Quando utilizo essa expressão – cidadania

plena –, não tenho a ilusão de que tais sujeitos sejam realmente cidadãos, mas que, pelo fato

de pertencerem à classe média, tenham acesso à educação, saúde, moradia e lazer decentes.

O fato de pertencer à classe média e ter acesso a bens de uso e consumo, não isenta

sujeitos negros de viverem ou sofrerem cotidianamente a sua negritude. Essa, muitas vezes,

5 Psicanalista. Doutor em Psicologia Clínica PUC-SP. Professor PUC Minas. José Tiago foi tirado de nós subitamente, como em um relâmpago foi tragado pela morte. Mas na sua morte a sua vida de lucidez e alegria ganhou nova força e significação. Este texto fica como um rastro de sua presença. Ele que foi tão cedo reivindicado pela morte, mas desde sempre, como analista, foi também chamado pela linguagem.

171

vem acompanhada da pobreza ou da miséria, o que pode provocar sua invisibilidade. Não me

deterei nos aspectos econômicos da questão racial, mesmo considerando-os de fundamental

importância, por não me autorizar a dizer desse lugar; falarei como psicanalista e cidadão ou,

como bem diz Eric Laurent (1999), como analista cidadão.

Desde 1988, pesquiso e participo, como cidadão, dos interesses da comunidade negra

brasileira. Em minha atividade clínica, tenho dito a oportunidade de escutar sujeitos, entre

estes alguns negros. A escuta de um negro não difere da de qualquer outro sujeito. Em clínica

psicanalítica, isso não traz nenhuma especificidade, mas podemos pensar que há aí uma

particularidade. As situações de preconceito e discriminação vividas historicamente pelos

negros nos falam dessa particularidade. Quando um sujeito negro diz que foi interprelado,

revistado ou batido pela polícia e que isso se deve à sua cor, não é fantasia; sim, um dado de

realidade. No Brasil, interpelar, revistar e suspeitar de um negro não constitui algo que

surpreenda; todos sabemos disso. Desde crianças, os negros aprendem que devem tudo fazer

para não levantar suspeita. Afinal: “preto parado é suspeito; correndo é ladrão!”. Quando o

assunto é assassinato, sabemos que essa é a segunda causa de morte no Brasil; esse tipo de

delito acomete, principalmente, a população das periferias e, nas periferias – margem, reúne-

se a maioria da população negra. A cor preta é para ser a-batida (REIS FILHO, 2005).

Quando digo que escuto negros em clínica psicanalítica, isso causa surpresa ou

espanto em alguns. Afinal, historicamente, a psicanálise é uma prática para pouco e abastados.

Essa realidade vem mudando ao longo dos tempos, pois tanto os abastados são em número

cada vez mais reduzido, quanto o acesso aos serviços fica mais viável. A população fica

enriquecendo: não, ela cresce e consequentemente, cresce a demanda por serviços. A razão de

os negros me procurarem pode consistir no fato de eu ser negro, pesquisar e escrever sobre o

tema, ser o único analista negro de minha cidade. Procuram a mim pelos mais diversos

motivos. Alguns, inclusive, só ficam sabendo de minha cor quando me veem, o que, muitas

vezes, causa estranhamento. Dizem que os negros não frequentam consultórios de analistas, é

porque não desejam, não têm dinheiro ou moram em regiões distantes dos consultórios. Pois

os negros – metade da população brasileira – ocupam, desde que aqui chegaram, as posições

mais desprivilegiadas, a base da pirâmide social. Habitam favelas, periferias, lutam pela

sobrevivência. O acesso à saúde se dá pela via pública, e nesta, quando há atendimento

psicanalítico, é restrito, escasso.

Sempre que pergunto aos analistas se atendem negros, geralmente dizem que têm ou já

tiveram algum analisante, mas nunca se perguntaram pela questão racial. Estamos diante de

um sintoma, no sentido psicanalítico. Não reivindico uma especificidade para o negro, mas

172

também não quero negar uma diferença. Essa é visível, não só à pele, quanto ao redor das

cidades, nos orfanatos, presídios, hospícios, ruas e viadutos. Falando assim, pareço concordar

com muitos que dizem ser a questão racial fruto da situação econômica dos negros, que, de

tão caótica, realmente nos faz crer que represente a causa do racismo. Entretanto, o problema

vai além, pois os negros que não tem problemas econômicos não deixam de sentir, na própria

pele, as questões advindas de sua cor ou raça.

Quanto ao sintoma, é uma formação do inconsciente, produz satisfação pela via do

desprazer, sendo de difícil abandono, pois abandoná-lo pode produzir um desprazer ainda

maior. Mas, fala-se de um sintoma individual tão marcado por atravessamentos sociais e

econômicos que leva a pensar: um sintoma pode ser social? Sim. Koltai (2000) o percebe

como:

histórico, localizado e específico, significado pelo Outro e que, por isso mesmo, pode mudar com o tempo, acompanhando as transformações do Outro – tanto no plano pessoal quanto coletivo. É social ainda se o entendermos como a maneira singular pela qual o sujeito enfrenta o discurso de seu tempo (p.111).

Ou seja, há em todo sintoma neurótico aspectos do social que vêm marcar os

significantes do sujeito; seus fantasmas são marcados pela realidade histórica. Ainda seguindo

Koltai, somos todos portadores de um nome, uma história singular, inserida na história de

cada um, seu romance familiar, seu mito individual, todos sofrem assujeitamentos de que nem

sempre foram atores, mas, no entanto, marcam sua individualidade. Cotidianamente

escutamos relatos de conflitos, traumas, humilhações, perdas, ligados aos nossos analisandos

ou a seus pais, irmãos, avós. Muitos trazem marcas de uma história transgeracional, ainda

hoje geradora de sofrimento e dor. E, em se tratando de negros, por que mais de três séculos

de escravidão seriam diferentes?

Cada sujeito, negro ou não negro, deste país carrega consigo as marcas do escravismo,

presente em dois terços de nossa História. Sendo assim, em se tratando de negros, como

possibilitar, a esse sujeito, a travessia deste fantasma? Nicéas (in Koltai, 2000), nos diz que:

Ao sujeito, uma psicanálise não pode prometer uma mudança dos determinantes de sua história. O que ela pode tocar, modificando-a, é a maneira como o gozo deixou sua marca na história do sujeito, particularmente sob a forma do sintoma. Ou, dizendo mais precisamente, o sujeito será convocado, pela operação do analista, a rever a sua responsabilidade subjetiva e, assim, poder querer modificar, ou não, o modo pelo qual ele mesmo investiu a sua história (p.10).

Com relação à vítima, Koltai (2002) acrescenta que esta parece estar se tornando uma

representação dominante da subjetividade, em nossa sociedade da reparação, pois a vítima

173

permanece no registro da demanda, impossível de ser satisfeita. Não quero me aliar às

vítimas, mas a história aponta para algo mais que um reclame, uma queixa. Como construir

referências identificatórias para o negro e, ao mesmo tempo, operar uma desalienação desses

ideais? Quando o negro sai de seu lugar historicamente marcado – o navio negreiro, a senzala,

a favela, a cela –, se depara com uma dura realidade: a de não possuir referências

identificatórias, não contar com algo ou alguém em quem se espelhar, se mirar. Isso, devido a

experiências cotidianamente vividas de preconceito, discriminação e até racismo.

Aqui é necessário fazer uma diferenciação entre preconceito e discriminação.

Preconceito significa um pré-julgamento, uma maneira de se obter uma conclusão antes de

qualquer análise; significa posição irrefletida e também entendida com prejuízo. É uma

atitude negativa, contra alguém, baseia-se numa comparação social em que a pessoa se coloca

como referência positiva e o outro, objeto de preconceito, é visto em situação de desvantagem

ou inferioridade social, econômica, cultural ou biológica. O preconceito faz parte do humano,

assim como o incesto e o crime. Esses, por constituírem efeitos de civilização, devem ser

combatidos, para não ficarmos entregues à barbárie. Uma forma de se manifestar é a

disfarçada, que se esconde sob um véu qualquer de neutralidade – sempre suspeita – como é o

caso da suposta cordialidade característica do povo brasileiro (BENTO, 1992). Ela não passa

de máscara e oculta, além da questão racial, nossa divisão social, destacando dois extremos: o

das carências, no qual se situa boa parcela de nossa população e a imensa maioria dos negros

e dos privilégios, geralmente desfrutados pelas classes média e alta. Como as pessoas não se

dispõem a abrir mão de seus privilégios, transformando-os em um bem comum, resta a

carência como condição de muitos. O fato de a classe média desfrutar privilégios não se torna

seus integrantes cidadãos, pois cidadãos têm a mesma cor daqueles que são barrados, o que

costuma causar ainda mais estranheza, admiração e susto.

O preconceito não se confunde com a discriminação. Esta é a manifestação

comportamental do preconceito; são ações promovidas com o objetivo de manter as

características do grupo de posição privilegiada e referência positiva. A discriminação é mais

individualista, esporádica, episódica, aberta, “escancarada”. Alguns exemplos: os testes de

seleção de pessoas para admissão no trabalho, uma carta da promoção, um anúncio no jornal

dando preferência a um grupo ou a um segmento da população. No mercado de trabalho, os

negros sofrem basicamente três tipos de discriminação: ocupacional, uma dificuldade em

obter vaga para funções mais bem remuneradas e valorizadas; salarial, que diz respeito às

diferenças salariais, quando exercidas as mesmas funções, ou seja, o trabalho do negro não

vale tanto o dos demais; visual, que impede o negro de obter uma vaga pela sua aparência, o

174

que pode ocorrer para um emprego em uma resistência ou numa grande empresa (SANTOS,

2000, p.90).

Quanto ao racismo:

É uma ideologia, uma estrutura e um processo pelo qual, grupos específicos, com base em características biológicas e culturais verdadeiras ou atribuídas, são percebidos como uma raça ou grupo étnico inerentemente diferente e inferior. Tais diferenças são, em seguida, utilizadas como fundamento lógico pra se excluírem os membros desses grupos do acesso a recursos materiais e não materiais (ESSED, 1995, p.174)

O racismo pode ser entendido como um princípio de inferioridade do grupo segregado,

antes de tudo desigual e injusto. Ele pode ocorrer sob três formas: individual, quando uma

pessoa se crê superior a outra em função de sua raça; institucional, quando instituições,

estados e/ou governos entendem que determinado grupo racial deve ter primazia em relação a

outros grupos; cultural, ocorre quando determinado grupo racial entende que a sua herança

cultural se sobrepõe em importância à de outros grupos.

Uma das consequências do racismo é a autorrejeição do eu outro. O nosso chamado

“racismo cordial” é marcado e, por isso, de difícil combate. O fato de a sociedade brasileira

considerar os negros incapazes por natureza se reflete diretamente em três setores sociais: nos

meios de comunicação, que reproduzem estereótipos; na polícia, que reprime os considerados

perigosos, e nos próprios negros, que assimilam tais ideais, podendo gerar ressentimento, o

ódio de si. Mas, conforme afirma Koltai (2000), não há racismo sem discurso, lembrando que

o discurso do sujeito se constitui no discurso outro. As particularidades do sujeito no mundo

são significados pelo sintoma. A partir dessas definições, cabe perguntar: como se dá, para o

sujeito negro, a elaboração, no plano psíquico, dos significados que racismo traz consigo?

Em seu artigo “O estranho” (1919), Freud nos apresenta a versão daquilo que nos é

familiar, sendo estranho, estrangeiro. O familiar se torna estrangeiro devido à ação do

reclamento. A essa terra estrangeira interior, Lacan (1998) chamou “extimidade”, designando

com isso o rela simbólico: simbólico que organiza a experiência, enquanto o real é aquilo do

qual não se pode dizer. O estranho é esse enlace entre o real e o simbólico, articulados pelo

imaginário que tudo representa, a partir de nossas criações, imagens, sentidos e fantasmas. O

estranho vem, então, se apresentar sob três formas: a do autômato, daquilo que rouba o lugar

do que deveria ser espontâneo e natural, passando despercebido; a do duplo, que aparece

como imagem especular ou como sensação de pura presença que, mesmo invisível, se faz

existir, sem sobra de dúvidas.

175

Radmila Zygouris (1995) denomina assombração àquilo que vem de algo que

efetivamente aconteceu na realidade, vindo a assumir autonomia psíquica e, por isso, podendo

ser esperado novamente em uma realidade futura. Ela se difere do fantasma, uma vez que este

designa a sujeição originária ao Outro, traduzida pela pergunta: Que queres? A outra forma do

estranho é o feminino: feminino pensado como diferença, como Outro. É um Outro que se

opõe ao Mesmo, resistindo ao um da norma, fazendo objeção ao todo. A norma é o

masculino, o adulto, o branco; norma fálica. O estranho vem de onde não se espera, da mais

absoluta proximidade mantendo-o à distância ou ignorando sua estranheza.

Freud distingue o outro como semelhante, no qual nos reconhecemos, segundo as

regras do bem e da identificação; e o próximo propriamente dito, esse outro inominável, que

ameaça aquela que sofre as consequências do racismo: estranhar no outro aquilo que julgo

oposto aos costumes, o que é diferente do esperado e, por isso, causa espanto, admiração,

surpresa; daí desviar, fugir, atacar, desumanizar, matar. O que inquietante no outro é o seu

modo particular de gozar, pois o racista não reconhece outra forma de gozo que não a sua:

reconhecer outra forma de gozo é reconhecer que todo o gozo não lhe pertence. Segundo

Koltai (1998):

O racismo é ódio do gozo do outro. Tentar se libertar do gozo do outro é uma tentativa mortífera, em que o estrangeiro aparece como representante do gozo e tem, portanto, de ser destruído. Não existe, nem pode existir, sociedade que ofereça a todos um gozo igual, uma vez que, do ponto de vista do fantasma, é sempre o outro que goza. Imputa-se sempre ao outro um gozo excessivo, acusando-o de querer estragar nosso modo de vida. O que nos incomoda no outro estrangeiro é justamente seu modo particular de organizar seu gozo e, mais precisamente, o excesso que é o seu (p.110).

A problemática da alteridade tem três eixos. O primeiro diz do juízo de valor: o outro

é bom ou mau, amado ou não, igual ou inferior. No segundo, aceitam-se ou não os valores do

outro, assimilando-os, ou então impondo a ele minha própria imagem e o assimilo a mim, na

tensão que submete quem. No terceiro eixo, posso conhecer e reconhecer a alteridade que se

constitui na superação dos eixos anteriores (de amor-ódio, dominação-submissão). O oposto

do discurso discriminador seria a fraternidade, pois esta domestica o estrangeiro, tornando-o

semelhante. O semelhante introduz a amizade, a ternura, a solidariedade entre os humanos,

que não deve ser pensada apenas como uma redução da agressividade, uma formação reativa

secundária, mas como essa tentativa de humanizar o outro (TODOROV, 1995). Qualquer

modalidade de poder visa sempre dominar os homens e submetê-los docilmente neuróticos,

mas só, aliam-se a outros indivíduos, entidades, instituições, partidos, traficantes, em um

176

pacto rofanamente sagrado, em busca de alguns podres poderes, com marcas de gozo, para

além do prazer, desafiando a castração.

Assistimos ao estrangeiro, no nosso caso, o negro, exercendo fascínio, principalmente

pelo exotismo e provocando horror, expresso pelo meio de racismo. Wiesel (in Koltai, 2000)

distingue três categorias de estrangeiros: o neutro, que é indiferente, quase ausente; o que

agita, estimula, é criador e, devido à sua presença, uma sociedade adormecida em seus hábitos

pode se permitir recuperar seu brilho; e há aquele estrangeiro hostil, quase odioso, a quem se

teme.

Preconceito, racismo e discriminação formam o conjunto daquilo que Freud (1930),

em “O mal-estar na civilização” nomeou o “narcisismo das pequenas diferenças”. Diferenças

nem tão diferentes assim e pequenas, às vezes, nem tão pequenas. Mas todas narcísicas.

Segundo Laca (1998), cada vez que o sujeito se aproxima da alienação primordial, que ele

descreve como o estágio do espelho, surge a agressividade radical, o desejo de aniquilamento

do outro, como suporte do desejo do sujeito. O discurso racista surge, então, como uma das

manifestações da universalidade do discurso científico, baseando-se na negação do outro, de

qualquer subjetividade, destituindo-o de seu estatuto humano, reduzindo-o a mero traço

diferencial. Ele é baseado numa lógica totalizante, que implica pensar em fronteiras, margens,

separações – físicas, ideológicas, culturais, psíquicas.

Essa diferença, esse narcisismo das pequenas diferenças, nos remete ao gozo, a outra

forma de gozar que não a que se conhece. Isso marca uma estrangeiridade: se há outra forma

de gozar, “alguém” pode estar gozando mais e melhor do que “eu”. O “mais gozar” de um

implica um “menos gozar” do outro e esse gozar provoca ira, ódio, agressividade. A

psicanálise vem mostrar que não existe nada mais estrangeiro para o sujeito que sua própria

exterioridade, e a maneira como lida com essa exterioridade determina o que define no Outro

como estrangeiro. O que ela pode propiciar é o fim desse processo sacrificial, apontando outra

solução à questão do desejo do Outro. Ela aposta em uma mudança de posição em relação ao

desejo do Outro, que consiste em separar-se dele, não mais esperar que dele venham as

respostas para viver e gozar. Uma psicanálise pode levar um sujeito – receptor ou

discriminador – a não mais rejeitar esse heterogêneo sobre os outros, encontrando seu próprio

destino, aceitando suas particularidades, sua parte de outro gozo e dos outros. Enfim,

encontrar uma outra lógica, não mais baseada na segregação (KOLTAI,2000).

Nessa luta entre as pulsões de vida e as de morte, temos de reconhecer um limite,

saber que existe um ponto último no sujeito a partir do qual o outro só poderá ser apreendido

como estrangeiro, inimigo, predador, um assassino em potencial, possibilitando a expressão

177

do não e a individuação, mesmo que pela divisão. É nesse limite que residem brancura e

negritude.

Ser discriminado, xingado, humilhado, negligenciado em sua capacidade, reduzido à

condição de objeto para o gozo do outro, tudo isso tem por base a cor da pele e outros traços

físicos, significantes encarnados, incorporados e marcados em corpos e psiquimos de negros.

Como ilustra Neusa Souza (1991): “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido

massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigências,

compelida a expectativas alienadas” (p.17-18).

A luta permanente de setores organizados, buscando dar maior visibilidade ao negro e

à questão racial no Brasil, tem contribuído com algumas propostas e alternativas para curar

essa ferida social. Uma dessas propostas é a implantação das ações afirmativas, que servem de

referências para políticas públicas para a população negra, pelo governo brasileiro. Mesmo

reconhecendo a necessidade de criação de ações afirmativas, como o sistema de cotas, pode

ser uma “faca de dois gumes”, pode-se correr o risco de congelar o negro numa posição de

escravo, a exemplo do que ocorreu com a Lei Áurea. Se a cidadania passa pelo acesso de bens

de uso e consumo (educação, saúde, trabalho, moradia, lazer), esse acesso deve ser

possibilitado com uma modificação nas formas de distribuição de renda, e não com

privilégios.

Também acredito que um sistema de cotas que pode sofrer as vicissitudes da ideologia

do branqueamento, tendo como balizadores o nosso contínuo de cor, em que o mulato ou o

moreno teriam prevalência sobre os negros. O outro balizador é a dificuldade de sujeitos

negros se verem como tal. Nas recentes tentativas de implantação da política de cotas nas

universidades, assistimos a vários indivíduos se declarando negros. Se, à primeira vista, isso

pode ser um aspecto positivo no sentido da conscientização acerca da identidade étnico-racial,

pode ser também um oportunismo de muitos, buscando, dessa forma, a inserção em nossa

pequena parcela de privilegiados.

Outro aspecto é a manutenção do negro numa atitude de eterna vitimização, com seu

choro, seu lamento. Cidadãos não lamentam; reivindicam o respeito a seus direitos.

Desescravizar os negros torna-se um desafio a ser enfrentado por toda a sociedade. A vertente

subjetiva dessa questão diz respeito à escravidão psíquica. Aqui, saímos do âmbito do

coletivo, sem deixá-lo de lado, para a dimensão do particular. O negro tem que se haver com

um corpo historicamente marcado pelo escravismo. Ele faz parte de uma sociedade que não o

vê, não o aceita.

178

Para concluir, retomo o conceito de analista cidadão, forjado por Eric Laurent (1999).

Ele diz do analista que sai de sua reserva (suposta neutralidade) e participa da sociedade

democrática. Um analista sensível às formas de segregação, capaz de entender sua função e ir

além, dizendo muito com seu dizer silencioso e, justamente por isso, não se calando perante

as injustiças. Assim, o dizer silencioso contribui para que, cada vez que se tentar erigir um

ideal, faça-se a denúncia de que a promoção de novos ideais não é a única alternativa, daí

devemos insistir no debate democrático. Não é possível a um analista ficar alheio aos ruídos

do mundo exterior que chegam a seu consultório. É importante interrogar-se sobre os aspectos

do social e do político que marcam os significantes de seu analisando, assim como que

conteúdos do fantasma encontram argumento na realidade histórica, pois o social e o político

marcam a escuta do analista.

REFERÊNCIAS

BENTO, Maria Aparecida Silva. Resgatando a minha bisavó: discriminação racial no trabalho e resistência na voz dos trabalhadores negros. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 1992. Dissertação de Mestrado ESSED, Philomena. “Por trás da fachada holandesa: multiculturalismo e a negação do racismo nos Países Baixos”. Estudo Afro-asiáticos. Rio de Janeiro, v.28, out. FREUD, Sigmund. “O estranho” (1919). Edição Standart Brasileira das Obras psicológicas

completas de. Rio de Janeiro: Imago,1976. FREUD, Sigmund. “O mal-estar na civilização” (1930). Edição Standart Brasileira das

Obras psicológicas completas de. Rio de Janeiro: Imago,1976. KOLTAI, Caterina. Política e psicanálise: o estrangeiro. São Paulo: Escuta 2000. KOLTAI, Caterina. (org). O estrangeiro. São Paulo: Escuta 1998. LACAN, Jaques. O Seminário. Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LAURENT, Eric. “O analista cidadão”. Curinga, nº 13, set. 1999. REIS FILHO, José Tiago. Negritude e sofrimento psíquico. São Paulo: PUCSP, 2005. Tese de doutorado. 143 pp. SANTOS, Milton. As cidadanias mutiladas. In: LERNER, Julio (org.). O preconceito. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1997.

179

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes de identidade do negro brasileiro

em ascensão social. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1991. TODOROV, Tzvetvan. Em face do extremo. São Paulo: Papirus, 1995.

ZYGOURIS, Radmila. Ah! As belas lições. São Paulo: Escuta, 1995.

180

Mulher Negra e a Inclusão dos Direitos Sociais

Alzira Rufino6

Entramos hoje nas universidades não mais pela porta dos fundos ou pelo elevador de

serviço. Viemos aqui para falar das nossas especificidades.

Sou filha de Yansã, a primeira ancestral feminista em África, e com ela aprendi a

dividir o poder com os homens. Estarmos hoje organizadas como mulheres negras significa a

luta constante para se atingir a igualdade garantida na Constituição Brasileira. Atuar há 22

anos no movimento de mulheres é fazer com que nossas aliadas percebam que nós, mulheres

negras, temos nossas especificidades e falamos por nós. Na história, nós, mulheres negras,

somos a resistência desse povo negro que ainda sobrevive. Fomos as amas-de-leite, e nossos

tabuleiros, ainda hoje, continuam alimentando nossas famílias. Somos 80% das trabalhadoras

domésticas e 76,5% trabalham sem carteira assinada. Estas, entre outras, já deveriam ter sido

resolvidas há muito tempo.

Entendo que precisamos avaliar o que conseguimos por meio de nossa luta cotidiana,

clamando por justiça às portas dos fóruns, nas passeatas, nas intervenções em conferências

nacionais e internacionais.

Foram anos de pressão na mobilização para dar visibilidade à violência racial e

doméstica;sempre estaremos mobilizadas com o Movimento de Mulheres e Negros, para

2 Foi a primeira escritora negra a ter seu depoimento gravado no Museu de Literatura Mário de Andrade, em São Paulo/SP. É a mulher negra brasileira que recebeu o maior número de prêmios e menções honrosas no exterior, por sua atuação no combate à Violência Doméstica, Racial e Sexual. É ativista e articulista do Movimento Negro e do Movimento de Mulheres. Coordena, desde 1991, um serviço de apoio jurídico e psicológico, que atende, anualmente, cerca de 500 pessoas vítimas de violência racial, doméstica e sexual. Articulista pioneira, em sua região, ao escrever para a imprensa com recorte de gênero e raça e sobre a violência contra a mulher, sendo responsável pelo debate e por um crescente envolvimento da mídia, do poder público e da comunidade nessas questões, além de dar visibilidade política às mulheres negras da Baixada Santista. Convidada de vários países como França, México, Canadá, Peru, Panamá, Equador, Chile, EUA, Inglaterra, Alemanha, Índia, Bélgica, África do Sul, Áustria, Itália e Holanda, onde dá consultoria, capacitação, palestras sobre Violência Racial, Doméstica e Sexual. Destaca-se em consultoria, avaliação e assessoria para agências internacionais em projetos de Casas Abrigo e Violência contra a Mulher, na área rural da África do Sul, nos anos de 1997 e 1998. Lançou, em 1986, o Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista. Em 1987, criou o Coral Infantil Omo Oyá e o grupo de Dança Afro-Ajaína; 1988 – Eleita Madrinha das Profissionais do Sexo da Baixada Santista; 1989 – Eleita Madrinha da Comunidade Gay. Em 1990, fundou a Casa de Cultura da Mulher Negra. Primeira representante da Comunidade Negra e única mulher negra a receber o Título de Cidadã Emérita da Cidade de Santos. Indicada para o Prêmio 1.000 Mulheres para o Nobel da Paz em 2005. Portadora da Medalha de Mérito da Câmara Federal em 2006. Prêmio Mulher Destaque do Clube Soroptmista Internacional.

181

assegurar a inclusão de nossos direitos; a exemplo da Lei 11.340/06, batizada de Lei Maria da

Penha, e a Lei 10.639/03.

A Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres e a Secretaria da Promoção da

Igualdade Racial não foram criadas por conta da boa vontade do presidente. Pelo contrário,

essas secretarias com status de ministérios, se hoje constituem uma realidade, o fato se deve à

pressão do Movimento de Mulheres e do Movimento Negro. Queremos que o poder público

implante as alternativas que fornecemos para a luta contra o racismo e o machismo. Falta

ainda um orçamento para atender à demanda de nossas especificidades.

Queremos, com a Lei 10.639/03, que trata do ensino da cultura negra nas escolas, a

implantação de nossa verdadeira história. Este país tem uma dívida muito grande com o povo

negro e que precisa ser paga. Na Antiguidade, nossa comunicação se fazia através dos

tambores, hoje falamos de inclusão digital. Tão velozes são as informações, quão lentas e

inacessíveis são elas para nosso povo, principalmente para as mulheres negras.

Em relação à questão dos quilombolas, nossa luta tem sido gradativamente reparada,

mas ainda há muito por fazer. Falta acesso à saúde, educação e capacitação para o trabalho a

partir da realidade das comunidades remanescentes de quilombos. Ser mulher negra e pobre

neste país significa sobreviver ao grau máximo das injustiças. É uma violência racial

cotidiana.

Não dá mais para aceitar o genocídio por parte da polícia contra a juventude negra.

Nossa gente, nossa cor, não pode mais estar mais associada à marginalidade. Somos nós que

enterramos os nossos jovens, com o coração em sangue.

Durante a mobilização para a Marcha Zumbi realizada em Brasília, no dia 16/11/05,

em maio de 2005, lideranças de Mulheres Negras reunidas em Guarulhos elaboraram o

documento da Mulheres Negras, que se acha disponível em nosso site

www.casadeculturadamulhernegra.com.br.

Eis algumas propostas e ações inclusivas para as Mulheres Negras:

- Garantir o cumprimento dos tratados firmados nas convenções internacionais

pelo governo brasileiro, especialmente a convenção sobre a eliminação de todas as

formas de discriminação contra a mulher;

- Reconhecer o estatuto da igualdade racial, apoiando o fundo nacional de

verbas;

- Assegurar mecanismos que permitam uma participação real das mulheres

negras nas instâncias de decisão em todos os âmbitos do poder e da sociedade;

182

- Garantir que os contratos públicos, celebrados pelo governo com agências de

publicidade, propaganda e mídia em geral, contenham cláusula específica referente à

participação de negros e negras e à não-discriminação;

- Reconhecer que as mulheres negras são detentoras de saberes ancestrais da

cultura de matriz africana, garantindo nas diversas áreas onde a cultura se insere;

- Implementar ações de promoção de direitos referentes às religiões de matriz

africana, para que sejam também baseadas na Lei nº 10.639/03, como pressuposto

educativo e antidiscriminatório;

- Estimular as lideranças do movimento de mulheres e do movimento feminista a

participar dos fóruns de orçamento participativo, bem como de outros organismos de

controle social, buscando a priorização da perspectiva de gênero nas políticas, no nível

local, além de criar e implementar políticas para a equidade de gênero, raça, etnia,

faixa etária e orientação sexual nas candidaturas a cargos eletivos, nos três níveis de

governo, com igual estrutura de campanha;

- Assegurar via implantação da Lei 10.639/03, a revisão dos materiais didáticos

no que diz respeito ao papel da mulher negra na história da resistência negra deste

país, recuperando a imagem das heroínas negras, apresentando-as como protagonistas

no processo de resistência e construção da identidade nacional, afirmando e

valorizando a imagem feminina;

- Introduzir nos materiais nos materiais didáticos o reconhecimento do papel da

mulher negra como pilar de sustentação das fragmentadas famílias negras, vítimas da

prática escravista, seja nos espaços religiosos, comunitários, quilombolas, urbanos e

rurais, atuais e passados.

- Capacitar os professores dos ensinos fundamental, médio e universitário para

concretização da Lei 10.639/03;

- Implantar cotas em todas as universidades, assegurando a igualdade de gênero;

- Criar campanhas de sensibilização e prevenção e tratamento da epidemia de

HIV entre mulheres negras;

- Elaborar políticas de visibilização nacional e internacional acerca do genocídio

da população negra nas ações de grupos de extermínio, violência policial e urbana;

- Capacitar agentes e outros profissionais de saúde para atendimento às

comunidades quilombolas;

- Implantar programas de geração de emprego e renda para mulheres em

situação de risco social, tendo como eixo o incentivo à organização de associações,

183

cooperativas e grupos de produção de mulheres em superação da situação de

violência;

- Criar políticas de acesso à moradia para mulheres em situação de violência;

- Garantir o acesso aos direitos, à saúde, exames ginecológicos, atendimento à

saúde mental;

- Garantir o atendimento integral e regionalizado às mulheres em situação de

violência e suas famílias;

- Criar e fortalecer centros de atenção às mulheres vítimas de violência, com

atendimento de saúde, psicológico e serviço social, regionalizados, próximos às

DEAMs;

- Ampliar o atendimento às vítimas de violência sexual, nos hospitais, com

aplicação do protocolo que garante a profilaxia das doenças sexualmente

transmissíveis, incluindo HIV/Aids e anticoncepção de emergência;

- Apoiar a efetivação dos direitos trabalhistas de jovens trabalhadoras

domésticas;

- Estabelecer campanhas de conscientização contra o assédio sexual,

cumprimento e ampliação da lei referente, e a exploração de jovens negras;

- Promover a efetivação da CLT, no que tange ao trabalho aprendiz, referente

aos estágios;

- Priorizar o programa “Meu Primeiro Emprego” para jovens negras;

- Estimular o diálogo direto e aberto entre empresas e instituições públicas a fim

de estabelecerem cotas para que jovens negras entrem no mercado de trabalho.

Os direitos da mulher só poderão avançar quando acreditarmos que o lugar da mulher

não é só na cozinha, que deve estar atuando nos movimentos populares, nos sindicatos, nas

câmaras, em instâncias de decisão em todos os âmbitos do poder.

Nossa estratégia hoje é outra. Se continuarmos batendo panelas às portas das Câmaras

Legislativas sem que lá dentro haja pessoas comprometidas a encaminhar e articular com

parlamentares nossas propostas, vamos continuar ao vento.

Prosseguiremos com as mesmas reinvidicações, articulando também estratégias para

que, nas próximas eleições, tenhamos um número maior de mulheres nas esferas do poder.

Estaremos trabalhando para que, dentro da cota de 30% de presença feminina nos partidos,

15% dela sejam para as mulheres negras. Entendo que a luta contra o racismo deve ser

184

prioridade de todos os segmentos da área dos Direitos Humanos, enfim de toda sociedade

brasileira.

Queremos parcerias de todas as cores, na luta por políticas públicas concretas para

nosso povo, em todos os níveis dos governos federal, estadual e municipal.

185

Perfis de Autonomia e Vulnerabilidade na Juventude:

diferentes aspectos da exclusão social

Alessandra Sampaio Chacham77

Ana Laura Lobato78 Lucas Wan Der Maas79

O objetivo deste artigo é analisar as diferentes dimensões da exclusão na juventude,

com ênfase nas questões de raça, gênero e classe social. Para tanto, utilizaram-se dados de

uma pesquisa realizada com mulheres de 15 a 24 anos de idade, em sua maioria negras ou

pardas, residentes em uma favela de Belo Horizonte, o Taquaril. Nessa análise, utilizou-se o

método estatístico Grade of Membership (GoM), que permitiu construir perfis das jovens em

relação a seus atributos demográficos, seu comportamento sexual e reprodutivo, arranjos

familiares e grau de autonomia em cada uma de suas diferentes dimensões.

1. DIMENSÕES DA EXCLUSÃO NA JUVENTUDE

A exclusão social entende-se aqui como um processo “inseparável” da cidadania à

medida que o direito de participar da sociedade e usufruir os benefícios considerados básicos

não é alcançado igualmente por todos indivíduos (SCHWARTZMAN, 2004). Isso implica,

indubitavelmente, chamada desigualdade e seus múltiplos aspectos. Pode-se falar em exclusão

por diferentes recortes, seja pelas questões de geração, classe, gênero ou raça, como também

pela questão das necessidades especiais, além de muitas outras. Portanto, para se entender o

que significa permanecer nesse processo de exclusão e desigualdade dentro da sociedade

brasileira – uma das mais desiguais, com uma das maiores concentrações de renda do mundo

–, além da questão de classe (que é bastante discutida), faz-se necessário voltar a todas

aquelas outras dimensões.

Neste artigo, dar-se-á um foco maior na questão da especial vulnerabilidade de ser

jovem no Brasil, bem como de ser mulher e de ser negra. Afinal, a despeito dos esforços de

garantir em lei os direitos civis, políticos e sociais, tal garantia não se observa efetivamente;

existe ainda uma grande massa de indivíduos que não pertence de fato à comunidade político-

social, especialmente quando se trata de indivíduos com perfil de mulheres e não de homens,

77 Doutora em Demografia e Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da PUC Minas. 78 Mestranda do Programa em Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp. 79 Mestrando do Programa em Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC Minas.

186

de jovens ao invés de adultos, de pobres e não de ricos, e também negros ao invés de brancos.

Essas são pessoas que trazem contribuição à sociedade, embora não tenham acesso aos bens e

à cidadania.

Em que pese a dimensão da geração, a escolha da juventude se justifica, uma vez que

crianças e adolescentes encontram-se entre a maioria dos socialmente excluídos no Brasil. No

ano de 2002, dos 34 milhões de jovens entre 15 e 24 anos no Brasil, 40% viviam em famílias

com renda abaixo de três salários mínimos (CASTRO, 2006). Esses jovens são os que têm

menos oportunidades de acesso ao mercado de trabalho e à continuidade dos estudos, embora

seja esse um pré-requisito fundamental na sociedade de hoje, que demanda um alto grau de

especialização para se obter sucesso profissional. Entre as mulheres jovens da mesma faixa

etária, menos da metade exercia atividade remunerada e a maior parte delas estava empregada

dentro do serviço doméstico, e se declaravam negras.

Comparando renda e escolaridade, quanto maior a escolarização da pessoa, maior será

sua probabilidade de inserção no mercado profissional, assim como maior será sua renda.

Entre a população mais pobre, o número médio de escolarização, que é de cerca de seis anos,

tem aumentado desde o ano de 2000; porém, entre a população de renda mais alta, essa média

é de 10 anos (HEILBORN et al, 2006). A educação é a chave para maior possibilidade de

mobilidade social e de superação das condições de pobreza. No entanto, a população de renda

mais baixa continua longe de ter a mesma escolaridade que a população de renda mais alta.

Em se comparando renda, gênero e diferentes classes sociais, a idade média com que

as mulheres de baixa renda tinham seu primeiro filho era 19 anos – esses dados são do Rio de

Janeiro, no ano de 2000. O curioso é que em 1970 essa idade média era de 21 anos, o que nos

mostra que hoje em dia, entre as jovens mais pobres, vem caindo a idade média com que elas

têm o primeiro filho. Isso também significa que vem ocorrendo um aumento da fecundidade

nos anos de adolescência e de seu final, justamente o período em que a mulher estaria

ingressando no mercado de trabalho, ou pelo menos se qualificando para tal. Comparando

com a percentagem das jovens com renda mais alta, pode-se ver que a idade média com que

elas têm seu primeiro filho passa para os 24 anos, significando que somente depois de

qualificada profissionalmente é que a classe média opta por ter filhos. Já entre as mulheres

jovens de classe alta o primeiro filho vem, em média, aos 25 anos (HEILBORN et al, 2006).

Esses dados também apontam para uma proporção muito grande de mães adolescentes.

Infelizmente, nessa pesquisa, os dados não foram desagregados por raça, mas sabe-se que,

toda vez que fala-se da população feminina de baixa renda, fala-se sobre um percentual de

70% a 80% de negros. Portanto, isso significa que, além de serem jovens e pobres, são as

187

mulheres negras aquelas que têm o primeiro filho em uma idade mais baixa. Quando se

comparam os dados de jovens negros e jovens brancos, fica clara a diferença existente na

idade média, tanto ao terem seu primeiro filho quanto ao entrarem no mercado de trabalho. Os

dados da pesquisa do GRAVAD (HEILBORN et al, 2006) realizada em três capitais

brasileiras (Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador) servem para ilustrar a situação em todo o

Brasil. Verifica-se um aumento da fecundidade na adolescência entre as mulheres de classe

mais baixa, o que significa que o fato ocorre entre uma maioria de jovens negras.

Outro indicador da maior vulnerabilidade social da mulher jovem, pobre e negra foi o

aumento nos casos diagnosticados de AIDS no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde (2004),

a razão homem/mulher de casos notificados de AIDS, que era de 6,1 em 1980, caiu para

menos de 2,1 em 2000 e continua caindo ano a ano. Entre janeiro e julho de 2004, a razão

homem/mulher infectado(a) caiu para 1,5. Entretanto, essa razão é diferente, de acordo com o

grupo de idade, entre pessoas entre 13-24 anos de idade, a taxa de infecção é mais alta entre

mulheres e pessoas com baixa escolaridade (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004). A baixa

escolaridade, a maior incidência de gravidez na adolescência e também a maior probabilidade

de infecção pelo HIV representam indicadores dramáticos da grande vulnerabilidade social

desse segmento da população.

2. EXCLUSÃO SOCIAL: A EXPERIÊNCIA DAS JOVENS DO TAQUARIL

Dados da pesquisa “Autonomia e susceptibilidade ao HIV/AIDS entre mulheres jovens

moradoras de uma área de favela em Belo Horizonte” (CHACHAM et al, 2007), realizada

em Belo Horizonte em uma favela conhecida como Taquaril, apontam para um alto índice de

exclusão social na população estudada. Nessa pesquisa, foi realizado um survey (uma

pesquisa por amostragem com aplicação de questionário) com mais de 350 mulheres jovens,

entre 15 e 24 anos de idade, residentes na região. Nesse trabalho, buscou-se entender as

diferentes dimensões dessa vulnerabilidade entre as mulheres jovens e pobres que

impactavam tanto nos índices de gravidez indesejada na adolescência quanto de infecções por

HIV.

O Taquaril é uma região de favela com alto índice de pobreza – mais da metade da

população tem renda abaixo de um dólar por dia, que é o limite de pobreza dado pela ONU. A

concentração de população negra: 86% das mulheres entrevistadas se declararam pretas,

pardas ou negras. As mulheres entrevistadas tinham entre 15 e 24 anos, sendo que 30% delas

estavam casadas ou unidas, no momento; no entanto, mais de 60% dessas jovens já tinham

188

sido unidas pelo menos uma vez. A maior parte delas estava fora da escola e, em média, tinha

nove anos de escolaridade. Um dado muito curioso é que 24% delas já tinham completado o

2º grau. Isso é um número alto, muito mais alto do que o esperado em regiões de periferia. No

entanto, esse índice elevado de escolarização não impactava positivamente em sua inserção

profissional, pois somente 27% delas estavam trabalhando no momento da pesquisa. Entre as

ocupadas, todas tinham empregos como babás, balconistas, empregadas domésticas, caixas,

cabeleireiras, manicures, garçonetes e algumas poucas como secretárias e recepcionistas. Tais

profissões revelam baixa possibilidade de ascensão ou mesmo de elevação da qualificação

profissional.

Viu-se que a exclusão social é um processo por meio do qual os indivíduos têm acesso

diferenciado, ou mesmo inexistente, à garantia de seus direitos. Considerou-se a autonomia,

ou seja, o acesso e controle sobre recursos materiais e sociais (DIXON apud JEJEEBHOY,

2000) como um instrumento de superação das barreiras que permeiam as várias dimensões da

desigualdade.

A autonomia reflete basicamente a extensão do controle da mulher sobre as tomadas

de decisões, especialmente aquelas realizadas no âmbito familiar. Em outras palavras, mais do

que aumentar o acesso aos recursos materiais (incluindo alimento, renda, terra e outras formas

de riqueza) e sociais (incluindo conhecimento, poder e prestígio), a mulher precisa ter também

capacidade de decidir sobre eles. Jejeebhoy criou cinco dimensões de autonomia e selecionou

indicadores para cada uma delas, os quais foram utilizados no survey do Taquaril. São elas:

autoridade para tomar decisões econômicas e relacionadas com os filhos; mobilidade;

ausência de ameaça do companheiro; acesso a recursos econômicos e sociais; controle sobre

os recursos econômicos.

Integra-se aqui a autonomia na esfera sexual e reprodutiva, significando que a mulher

pode, com segurança, determinar quando e com quem estabelecerá relações sexuais e que ela

pode fazê-lo sem medo de violência, infecção ou gravidez não desejada (SEN;

BATLIWALA, 2000). Desse modo, a autonomia tem efeito diferenciado na capacidade de

impor sua vontade quanto ao desejo de ter ou não relações sexuais com seu parceiro, por

exemplo. As dimensões e seu respectivos indicadores encontram-se no quadro a seguir.

189

Área de

autonomia

Indicador usado no estudo

Decisões

econômicas

Quem comprou os principais e mais caros utensílios domésticos, como a

casa ou um carro.

Mobilidade e

acesso a

recursos sociais

Lugares onde a mulher pode ir sozinha: centro de saúde, centros

comunitários, casa de amigos e parentes, shopping ou outra cidade. Se ela

tem atividades de lazer. Se tem acesso a TV, rádio ou livros. Se tem a

chave de casa. Se tem hora marcada para chegar em casa. Se pode sair com

os amigos. Se pode usar a roupa que quiser. Se pode se maquiar.

Controle sobre

recursos

econômicos

Se tem trabalho remunerado e se controla como seu dinheiro e/ou o

dinheiro da casa será gasto. No caso de não ter trabalho, se tem alguma

fonte de renda. Se tem liberdade para comprar objeto de uso pessoal. Se

tem conta bancária.

Liberdade de

ameaças

Se tem medo e/ou foi exposta a violência física, psicológica ou sexual ou

outro abuso por parte do parceiro ou parente. Se já viu a mãe ser vítima de

violência doméstica. Se sente que pode evitar ou interromper a relação

sexual, se quiser. Se pode demandar o uso do preservativo com segurança.

Sexualidade

Se ela desejou ter a primeira relação sexual; discutiu com o parceiro sobre

contraceptivo/camisinha antes da primeira relação sexual; o parceiro já

recusou usar camisinha; se sentiria confortável em demandar o uso de

preservativo; usou preservativo na primeira relação; usou preservativo na

última relação; se gosta de fazer sexo; sente que poderia recusar a ter a

relação.

Quadro 1: Indicadores por dimensão de Autonomia

Fonte: CHACHAM et al, 2005.

2.1. A DEFINIÇÃO DOS PERFIS

A partir do tratamento dos dados da pesquisa do Taquaril e dos indicadores de

autonomia, buscou-se explorar melhor os diferenciais de autonomia e vulnerabilidade entre as

jovens entrevistadas no delineamento de perfis. Para tal, lançou-se mão de um método

estatístico de análise multivariável – que abrange mais de uma variável resposta –, mediante o

qual se definem agrupamentos de atributos pessoais pela associação, não observada, das

categorias das variáveis do modelo (LACERDA et al, 2005). O método é denominado Grade

of Membership. Seu uso permite definir agrupamentos de características descritivas de uma

190

população heterogênea (neste caso, jovens que se diferenciam principalmente pelo grau de

autonomia e pelas trajetórias afetiva e sexual). Portanto, quanto maior o número de variáveis,

melhor fica definido um perfil (SAWYER et al, 2002).

A forma de estimação ocorre pela probabilidade de resposta a uma categoria de uma

variável. Simultaneamente, são definidos para cada caso da amostra graus ou escores de

pertinência aos perfis, que variam dentro do intervalo [0,1]. Apresentar grau de pertinência

igual a um é reunir todas as características predominantes de dado perfil extremo; já o

inverso, não apresentar nenhuma das características, é ter escore igual a zero (SAWYER et al,

2002). O pertencimento a mais de um perfil ocorre à medida que a entrevistada não apresenta

escore igual a um.

Trata-se de um processo interativo, pelo qual a associação de características se dá pelo

cálculo da probabilidade de que exista na população uma entrevistada com os atributos

agrupados aleatoriamente, isto é, com grau de pertinência total ao perfil. Para os casos que

não apresentem grau de pertinência total, este variará dentro do intervalo permitido. Portanto,

à medida que uma entrevistada se aproxima do perfil extremo, maior é seu grau de pertinência

com relação a este e menor em relação aos demais (LACERDA et al, 2005).

Para fins comparativos, as mulheres entrevistadas foram divididas pelo survey em dois

grupos, e em cada caso aplicou-se o método separadamente. Os grupos foram: mulheres entre

15 e 19 anos e mulheres entre 20 e 24 anos. Em cada caso foram estimados dois perfis. A

escolha por essa divisão da população resulta de teste anterior à definição do modelo final

feito com todo o universo. Nesse teste, os resultados apontaram perfis que se diferenciaram

principalmente pela faixa etária – de um lado mulheres mais jovens, até os 19 anos, e do

outro, mulheres entre 20 e 24 anos – o que não permitiu observar particularidades internas a

cada um desses segmentos. Em geral, em função dessa separação, foram observados perfis

puros, com predominância de um lado de solteiras, concentradas entre as mais jovens, e do

outro de casadas, concentradas entre as menos jovens. Assim, não se pôde compreender a

situação das que tinham estado civil diferente ao predominante no grupo, tampouco as

diferenças entre mulheres na mesma situação conjugal.

Quanto à análise dos perfis, é importante destacar que seu objetivo é descritivo e

comparativo, ou seja, observar de que maneira a população em estudo se organiza,

aleatoriamente, em função das variáveis selecionadas e entre os distintos perfis delineados. Os

resultados obtidos no modelo final permitiram uma análise pormenorizada, a partir da qual se

verificaram diferenciais em termos de: tipos de estrutura familiar, autonomia, entrada na

conjugalidade e susceptibilidade ao HIV e gravidez indesejada (LOBATO, 2007). Em uma

191

população extremamente homogênea, no que tange aspectos socioeconômicos, nível de

informação e acesso aos serviços de saúde, a observância conjunta de atributos pessoais em

múltiplas esferas da vida permitiu a análise de certos grupos que se diferenciam, entre si, em

função das relações de gênero e das trajetórias afetiva e sexual, como será explorado no

próximo tópico.

2.2. DESCRIÇÃO DOS PERFIS

A Tabela 01 expõe a distribuição da população em cada perfil. As jovens entre 15 e 19

anos representam 50,57% do total da população e estão distribuídas nos perfis P1 e P2; foram

179 entrevistadas no total. Já as jovens entre 20 e 24 anos somam 49,43% do total do universo

ou 175 casos, e estão distribuídas nos perfis P3 e P4 e nos mistos MP3 e MP4. Estes últimos

se diferenciam por apresentar características de P3 e P4 ao mesmo tempo, no entanto com

predominância de características de um ou de outro extremo, respectivamente.

Tabela 01 Distribuição da População Total por Perfil

Freqüência % % Acumulado

P1 85 24,01 24,01

P2 94 26,56 50,57

P3 45 12,71 63,28

P4 99 27,97 91,25

MP3 18 5,08 96,33

MP4 13 3,67 100

Total 354 100

Fonte: os autores; dados: CHACHAM, et al (2005).

Perfis das jovens de 15 a 19 anos de idade

No Perfil Um (P1), há adolescentes de todas as faixas etárias, no entanto predominam

as que têm 15 anos de idade, por ocasião da entrevista. O nível de escolaridade e o rendimento

familiar não se mostraram relevantes para explicar o pertencimento a esse perfil, uma vez que

não houve predominância de nenhuma categoria em ambas as variáveis. Destaca-se, contudo,

que praticamente todas as 85 jovens do perfil estudavam. Quanto ao estado civil e estrutura

familiar, todas se declararam solteiras, e a maioria residia em domicílios do tipo casal, onde

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ocupavam a posição de filha. Apesar dessa maioria, a categoria predominante em tipo de

família foi a de domicílios chefiados por outros parentes que não os pais.

Em relação à autonomia financeira, a maioria não trabalhava, apesar de não ter sido

uma categoria de probabilidade predominante. Também não houve destaque para o poder de

compra de artigos pessoais, ainda que a maioria tenha mostrado alta autonomia neste quesito.

Quanto aos indicadores de autonomia sexual não foi possível fazer nenhuma inferência para

esse grupo, uma vez que a grande maioria respondeu não ter se iniciado sexualmente.

Para autonomia de gênero, observou-se uma variação entre os diferentes indicadores.

A maior parte delas não sofreu proibição de ter algum amigo, mas predominou a interferência

do pai. Na pergunta quanto à proibição de usar alguma roupa, houve equilíbrio tanto em caso

de negativa quanto em caso positivo, seja pelo pai ou pela mãe. Quanto a ter horário para

chegar em casa, a predominância foi da autoridade do pai. Finalmente, os indicadores de

informação sobre o HIV se apresentaram com níveis elevados.

Apesar de não ser possível analisar a vulnerabilidade desse grupo decorrente do não-

uso de preservativo, uma vez que nele predominam as jovens que nunca tiveram relação

sexual, é preciso destacar sua autonomia limitada nos indicadores de autonomia de gênero,

especialmente pela figura do pai. No entanto, são também jovens, em geral, com bom nível de

informação sobre o HIV e que continuam estudando, podendo isso significar que esse grupo

teria menor vulnerabilidade social.

No Perfil Dois (P2), predominam jovens com idade de 18 e 19 anos e com renda

familiar de até meio salário mínimo, ainda que a maioria apareceu na categoria entre um e três

salários. Assim como em P1, o perfil escolaridade não se mostrou relevante, mas boa parte

das jovens parou de estudar. Já o estado conjugal predominou nas categorias “casada”,

“unida” e “separada/divorciada”, isto é, de mulheres que estavam ou já estiveram unidas.

Consequentemente, em posição na família, predominaram aquelas que são chefe, cônjuge ou

que compartilhavam a chefia do domicílio com o parceiro.

Em relação ao que se chamou de autonomia financeira, o fato de trabalhar não foi

relevante, embora o grau de poder de compra de artigos pessoais tenha sido alto. Na variável

“já ter tido sexo” a categoria “sim” foi predominante, o que reflete o estado conjugal. Em

relação às variáveis relativas à autonomia sexual, tem-se um grupo bastante heterogêneo, pois

em todos os indicadores predominam todas as categorias. Há mulheres que conversaram e

outras que não sobre como evitar filhos antes da primeira relação, que gostam e que não

gostam de fazer sexo, que conseguiriam ou não evitar ou interromperam a última relação, que

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já ficaram grávidas ou não. O uso do preservativo, tanto na primeira quanto na última relação

sexual também variou entre negativa e afirmativa.

No entanto, destaca-se que, para o nível de informação sobre o HIV e autonomia de

gênero, os indicadores são um pouco mais precários em comparação ao perfil anterior.

Predominam aquelas que mostram pouco conhecimento de como prevenir HIV e que já

sofreram proibição do parceiro para usar determinada roupa ou ter algum amigo, além do

estabelecimento de horários para chegar em casa. Também ficam evidentes, neste perfil,

aquelas contra as quais o parceiro foi o agressor de violência física que porventura sofreram,

ficando evidente, portanto, a relação entre status conjugal, baixa autonomia e vulnerabilidade.

Mesmo tendo sido poucas as mulheres, neste perfil, que sofreram violência, é preciso

destacar que, provavelmente, a associação dessa agressão com a ocorrência de terem um

parceiro que as proíbe de ter um amigo, que vigia o tipo de roupa usada e que estabelece

horários para chegar em casa, implica probabilidades muito menores de terem usado

camisinha alguma vez ou de terem ido ao serviço de planejamento familiar. Não deixa de ser

interessante o fato de que a violência contra a mulher pode ser medida de maneira

quantitativa. A jovem usa menos a camisinha quando se apresenta em um padrão de relações

mais tradicionais, quando existe violência e controle por parte do parceiro.

Perfis das jovens de 20 a 24 anos de idade

No Perfil Três (P3), predominam as jovens de 20 anos de idade e que residiam em

domicílios com rendimento acima de três salários mínimos, uma peculiaridade frente aos

outros grupos. Além da renda, outro indicador socioeconômico que diferencia esse grupo dos

demais, demonstrando melhores condições, é a existência de mulheres cursando o ensino

superior ou que já concluíram o ensino médio. São todas solteiras, exceto para o caso da única

jovem viúva entrevistada pelo survey. Quanto à estrutura familiar, predominam tanto

domicílios do tipo casal quanto do tipo monoparental; em ambos, sua posição é de filha.

Os indicadores de autonomia financeira foram os melhores, no total da população:

predominam as jovens que trabalham e com alto poder de compra de artigos pessoais. Já na

dimensão sexual, todas já tiveram a primeira relação, ainda que não quisessem; contudo,

houve predomínio das que assim pensavam por achar que não era hora e não aquelas que

foram forçadas. Seguindo as variáveis de autonomia sexual, predominam aquelas que

conversaram sobre como evitar filhos antes da primeira relação e que talvez conseguissem

evitar ou interromper a última relação. Para o indicador de gravidez, predominam aquelas que

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nunca engravidaram. Entre as que engravidaram, assim o fizeram entre os 19 e 20 anos, acima

da média geral, que foi de 17 anos. Quanto à utilização de camisinha na primeira relação, a

maioria usou o método. Destaca-se que esses resultados demonstram menor probabilidade da

jovem quanto à infecção pelo HIV ou gravidez indesejada o que, curiosamente, se vê

relacionado pela existência, neste perfil, de casos de entrevistadas residentes em domicílios

chefiados pela mãe, justamente aqueles que as moradoras apresentaram os melhores

indicadores de autonomia sexual.

Nas questões relativas ao conhecimento sobre HIV, ocorreu predominância de um

ótimo grau de conhecimento quanto a pegar e ruim quanto a prevenir o vírus. Na dimensão da

aqui chamada autonomia de gênero, observou-se que a maioria apresentava alta autonomia,

contudo predominaram as categorias referentes à proibição, seja pelo pai ou pela mãe. Para

violência física, prevaleceram aquelas que já sofreram pelo pai e aquelas que nunca sofreram;

estas últimas constituem também a grande maioria.

No Perfil Quatro (P4), não há prevalência de idade. Em geral, caracteriza-se por

aquelas que percebem renda familiar de meio a um salário mínimo, ainda que a maioria

vivesse em domicílios com renda de um a três salários. A escolaridade se apresentou limitada

ao ensino fundamental, isto é, ou de 2ª a 5ª séries completas ou de 6ª a 8ª séries completas.

São jovens, predominantemente, em união (civil ou consensual) ou separadas ou divorciadas.

Seguindo o estado civil, a estrutura familiar é de domicílios do tipo casal, tanto chefiados pelo

companheiro, pela entrevistada ou por ambos; no entanto, a maioria ocupava a posição de

cônjuge.

Na dimensão econômica, não houve predominância para existência ou não de trabalho,

e o poder de compra de artigos pessoais mostrava-se baixo. Quanto à autonomia sexual, este é

o grupo que apresenta os piores indicadores, pois predominam aquelas que não queriam ter

tido a primeira relação sexual, mas tiveram por pressão do namorado, que não conversaram

com o parceiro sobre como evitar filhos antes dessa relação, que não conseguiriam evitar ou

interromper a última relação e que declararam não gostar de fazer sexo. Também são

mulheres que, em sua maioria, não utilizaram condom na primeira relação.

Em relação à gravidez, predominou aquelas que ficaram grávidas uma vez, duas vezes,

três vezes ou mais. A idade, à primeira gravidez, variou no intervalo de 13 a 18 anos, e de 21

a24 anos, isto é, entre as que engravidaram precocemente e aquelas que assim estiveram

provavelmente após o casamento. No grupo de variáveis chamado de autonomia de gênero,

prevaleceram aquelas a quem o parceiro já estabeleceu horário para chegar em casa, também

proibiu de usar algum tipo de roupa ou de ter algum amigo. No quesito referente à agressão

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física, encontram-se mulheres que sofreram agressão por parte do companheiro ou de outra

pessoa.

Uma informação que fica patente entre as jovens deste perfil e que mostra uma

situação muito parecida entre as pertencentes ao segundo perfil (mulheres casadas entre 15 e

19 anos) é o impacto de sair da escola e de não ter acesso ao mercado de trabalho. Quando as

meninas de 15 a 19 anos eram perguntadas sobre seus planos para a vida (planos de futuro),

todas queriam continuar estudando, todas falavam que queriam estudar para conquistar uma

vida melhor do que suas mães tiveram. Mas, das quase 400 mulheres entrevistadas, somente

três estavam na universidade. E entre as de 20 a 24 anos, menos de 30% trabalhavam fora.

Estas últimas, quando perguntadas sobre quais eram seus planos de futuro, estes já apareciam

muito mais limitados, pois praticamente nenhuma falava em estudo. Todas falavam que ou

não tinham nenhum plano definido ou pretendiam arrumar um emprego para sustentar os

filhos, para dar uma vida melhor aos filhos.

Isso mostra que, dentro deste grupo, há, em muito pouco tempo (quatro anos), um

choque de realidade: estamos garantindo o acesso dos jovens à escola, mas não sua entrada no

mercado de trabalho – principalmente em relação às mulheres jovens. E aqui vem o problema

de que não existem políticas, nem programas, para mulheres jovens a partir dos 12 ou 15

anos, no sentido de garantir uma entrada no mercado de trabalho ou de permanência na

escola. Os programas que existem focalizam muito as necessidades dos homens. Claro, estes

têm uma vulnerabilidade muito grande em termos de exposição à violência, mas o que existe

de qualificação profissional para mulher, comparativamente aos homens, é muito voltado para

mantê-las em setores pouco qualificados. Pois, como se destacou anteriormente, há verdadeira

manutenção das mulheres em empregos como os de manicure, cabeleireira, bordadeira, babá,

empregada doméstica, entre outros.

Entre as jovens entrevistadas, 71% eram sexualmente ativas e 63% já haviam ficado

grávidas. Elas ficam grávidas, em média, um ano depois da primeira relação sexual. Isso

mostra que, apesar de conhecerem os métodos contraceptivos, o acesso ao serviço de

planejamento é muito baixo. Curiosamente, o fato de fazer um planejamento familiar

aumentava a probabilidade das jovens de ter um filho – o que é uma relação inversa, na

verdade. Elas só iam ao planejamento depois que engravidavam, pois, uma vez grávidas, o

serviço de saúde fazia encaminhamento. Por isso, apesar de terem acesso ao centro de saúde

local, o modo como esse planejamento familiar é feito não inclui os jovens antes do início da

vida reprodutiva nem mesmo antes do início da vida sexual.

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Em geral, quando engravidam, ou já deixaram a escola (o que é mais comum) ou

largam a escola em seguida. Também são as que têm o menor grau de inserção no mercado de

trabalho. Por se verem excluídas do mercado de trabalho e excluídas da escola, ter filhos não

chega a representar algo indesejável para essas jovens. É manifesto, no discurso delas, que um

filho, muitas vezes, é um plano de vida, em substituição a qualquer outro tipo de projeto, pois

sabem não existir possibilidade real de mudanças para quem não estiver se qualificando

profissionalmente.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos resultados aqui reunidos apontam que, em uma população com a maioria

das mulheres jovens em situação de exclusão social, em geral, reunir informações sobre

práticas preventivas e ter acesso à camisinha não garante seu uso, uma vez que há maior

associação entre uso do preservativo com idade, status conjugal e graus de autonomia. Outro

resultado importante é a evidência de que a entrada precoce em relações conjugais tem um

impacto negativo na autonomia da mulher jovem, aumentando sua vulnerabilidade social: os

perfis de mulheres casadas/unidas, entre 20 e 24 anos, e com baixo grau de autonomia,

apresentaram maior vulnerabilidade ao HIV e à gravidez indesejada, comparativamente aos

perfis de mulheres solteiras, entre 15 e 19 anos, e com melhores níveis de autonomia. O

último ponto a ressaltar é que os resultados também deixam claro que existe uma necessidade

de se estudar melhor a relação entre escolaridade e profissionalização, no caso de mulheres

jovens de baixa renda, que parece estar longe de ser linear quanto preconizam os modelos

tradicionais de análise. A ausência de políticas públicas voltadas para esse segmento da

população também reflete essa falta de entendimento sobre tal realidade.

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