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1 In: Osmar Sepúlvida; Fernando Pedrão;. (Org.). Reflexões de economistas baianos.Salvador: Corecon-Ba: CoreconBA - Conselho Regional de Economia 5a Região/BA, 2005, v. , p. 125-152. A Integração Passiva no âmbito da Globalização: os ajustes estruturais na América Latina Paulo Balanco 1 Eduardo Costa Pinto 2 Resumo: neste artigo procura-se localizar as origens do processo de retrocesso vivido pela América Latina desde meados dos anos 1970. Considera-se, como procedimento metodológico, a crise dos países latino-americanos como parte integrante da própria crise de superprodução, atrelada ao excesso de capacidade e de produção, experimentada pelo capitalismo no mesmo período. Sendo assim, localiza-se o endividamento como a componente estrutural principal que, na era da globalização, conforma uma integração passiva da região ao circuito de valorização do capital, principalmente, a partir da assunção do modelo de desenvolvimento liberal na década de 1990. JEL: P16; ÁREA: A mundialização e a América Latina Palavras chave: Crise, Globalização Capitalista, América Latina, Integração Passiva I Introdução A regressão social e econômica vivenciada pelos países da América Latina, durante as duas últimas décadas, não consegue ser explicada pela tese da herança cultural, associada à suposta incompatibilidade, entre os valores ibéricos tradicionais, o pluralismo político e a liberdade de mercado. Na verdade, as crises sociais e econômicas recorrentes, o crescimento da instabilidade e da vulnerabilidade, o retrocesso e a maior desarticulação social materializadas a partir das décadas de 1980 e de 1990, só conseguem ser apreendidas, em sua totalidade, a partir da percepção das modificações atreladas à dinâmica da acumulação 1 Professor do curso de mestrado em economia da Universidade Federal da Bahia, Doutor pela Unicamp 2 Professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e Mestrando em economia da UFBA

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In: Osmar Sepúlvida; Fernando Pedrão;. (Org.). Reflexões de economistas

baianos.Salvador: Corecon-Ba: CoreconBA - Conselho Regional de Economia 5a

Região/BA, 2005, v. , p. 125-152.

A Integração Passiva no âmbito da Globalização:

os ajustes estruturais na América Latina

Paulo Balanco1

Eduardo Costa Pinto2

Resumo: neste artigo procura-se localizar as origens do processo de retrocesso vivido pela

América Latina desde meados dos anos 1970. Considera-se, como procedimento

metodológico, a crise dos países latino-americanos como parte integrante da própria crise de

superprodução, atrelada ao excesso de capacidade e de produção, experimentada pelo

capitalismo no mesmo período. Sendo assim, localiza-se o endividamento como a componente

estrutural principal que, na era da globalização, conforma uma integração passiva da região ao

circuito de valorização do capital, principalmente, a partir da assunção do modelo de

desenvolvimento liberal na década de 1990.

JEL: P16; ÁREA: A mundialização e a América Latina

Palavras chave: Crise, Globalização Capitalista, América Latina, Integração Passiva

I – Introdução

A regressão social e econômica vivenciada pelos países da América Latina, durante as

duas últimas décadas, não consegue ser explicada pela tese da herança cultural, associada à

suposta incompatibilidade, entre os valores ibéricos tradicionais, o pluralismo político e a

liberdade de mercado. Na verdade, as crises sociais e econômicas recorrentes, o crescimento

da instabilidade e da vulnerabilidade, o retrocesso e a maior desarticulação social

materializadas a partir das décadas de 1980 e de 1990, só conseguem ser apreendidas, em sua

totalidade, a partir da percepção das modificações atreladas à dinâmica da acumulação

1 Professor do curso de mestrado em economia da Universidade Federal da Bahia, Doutor pela Unicamp 2 Professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e Mestrando em economia da UFBA

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capitalista contemporâneo que abriu espaço para a globalização financeira e, por conseguinte,

para a emersão do rentista à posição central na disputa entre frações da classe dominante.

Tal configuração está eminentemente vinculada à contestação da hegemon, ao excesso de

capacidade, à crise de lucratividade e à retomada da hegemonia norte-americana e, mais

recentemente, à política externa americana pós-dissolução do pacto de Varsóvia e do fim da

União Soviética. Neste cenário, propugna-se o aprofundamento da dependência dos países

latino-americanos, amplificada pela integração passiva - adoção de estratégias liberais de

desenvolvimento - da região, nos anos de 1990, no processo de acumulação do capital.

Nesse contexto, tornaram-se necessárias medidas, por parte do capital, de reorientação da

acumulação em direção a formas alternativas de recuperação da lucratividade e da ampliação

da ideologia liberal, vinculadas a transformações políticas no âmbito das relações nacionais e

internacionais. Desde então ocorreu, nos países latino-americanos, um aumento da

dependência econômica e do aprofundamento do quadro social desigual. Para estes países, a

cristalização deste quadro deletério deu-se mediante a fixação de um processo estrutural de

reprodução da dependência e da crise associado ao endividamento.

Este artigo enseja analisar o aprofundamento da dependência estrutural dos países latino-

americanos, principalmente do México, da Argentina e do Brasil, diante dos países centrais,

na fase da globalização do capitalismo, e seus efeitos deletérios na articulação social da

região. Para tanto, elegeu-se como variáveis explicativas relevantes o processo do

endividamento estrutural da região, a dinâmica dos fluxos de capital e as mudanças nas

políticas internas e externas dos Estados Unidos. Perseguindo este objetivo, e considerando o

grau de complexidade que cerca esta problemática, metodologicamente, alocou-se o objeto

aqui destacado em uma dialética materialista histórica, implicando, por conseguinte, na

necessidade de uma caracterização do capitalismo na sua fase de globalização e o papel da

integração passiva dos países latino americanos nessa dinâmica.

Para este propósito, além desta introdução, discute-se na segunda seção deste artigo, o

papel da crise econômica e política na conformação de novos padrões de valorização do

capital e seus impactos sobre os países latino-americanos, nas últimas três décadas do século

passado, destacando: o papel do endividamento no processo de acumulação, a questão da

hegemonia no quadro das relações entre as nações e o novo papel das instituições

supranacionais. Na terceira seção, avalia-se a assunção dos modelos de desenvolvimento

liberal (ajustes estruturais) nos países da América Latina, a partir dos anos de 1990, e seus

efeitos deletérios na articulação econômica e social da região. Por fim, na quarta seção,

procura-se alinhavar algumas idéias a título de conclusão.

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II – A Globalização e sua face excludente: a regressão latino-americana

A expansão econômica do pós-segunda guerra esteve vinculada à capacidade do núcleo de

países capitalistas avançados de realizar e sustentar altas taxas de lucro, produzindo

excedentes relativamente elevados a partir do uso de capital fixo/estoque de capital

(instalações e equipamentos).3 As elevadas taxas de lucro alcançadas pelas economias

avançadas proporcionaram a possibilidade da manutenção de altos índices de investimentos,

gerando uma aceleração da produtividade associada a um crescimento rápido dos salários

reais sem ameaçar os lucros (BRENNER, 2003). Nesse período, a maioria das economias

capitalistas avançadas, e alguns países periféricos latino-americanos, que adotaram os

modelos cepalinos de substituição de importações, vivenciaram um longo boom econômico.

A expansão econômica dos anos dourados foi materializada a partir da articulação entre

crescimento das taxas de lucro e dos salários reais nos países centrais – economia da demanda

efetiva. Essa articulação só se tornou factível em virtude de determinados eventos políticos, a

saber, a segunda guerra mundial e a posterior consolidação do bloco socialista, conformando a

divisão do mundo em dois pólos. No pólo capitalista, os Estados Unidos, buscaram configurar

o êxito econômico para seus aliados e concorrentes como forma de consolidar a ordem

capitalista – um mundo seguro para a livre empresa – e combater o regime comunista. Nesse

cenário, o estado americano, já consolidado enquanto hegemonia, arquitetou uma cooperação

antagônica entre os principais países capitalista, isto é, uma cooperação entre Estados

capitalistas concorrentes (THALHEIMER apud MEYER, 2000), alçando o crescimento

econômico a uma questão de segurança nacional.

O boom econômico, nos países centrais, foi caracterizado pela elevação inédita dos índices

de crescimento do investimento, de produção, de produtividade e dos salários em

concomitância com pequenos índices de desemprego e processos recessivos reduzidos. Esse

boom, na América Latina, assume características bastante diferenciadas da dos países

centrais, em virtude da sua condição de economia industrial dependente4. Nessa condição não

se verificou, na região, a consolidação de uma economia de demanda efetiva ampla como nos

países centrais do capitalismo, já que a construção da industrialização não significou uma

3 Entre 1950 e 1973, a taxa de lucro líquido, em média anual, foi de 24,35% nos EUA, 23,1% na Alemanha e 40,4% no Japão (BRENNER, 2003) 4 “O movimento interno do capitalismo dependente para a resolução de seus problemas de realização encontra

três formas possíveis de solução: a exportação de mercadorias e de capitais; o consumo estatal e o

aprofundamento do consumo suntuário” (MARTINS, 2000, p.8).

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forte elevação dos níveis salariais, nem tão pouco numa ampla redução do exército industrial

de reserva, apesar da elevação ingente dos índices de crescimento do investimento, de

produção e de produtividade na região.

Desse modo, a dinâmica do crescimento regional, nos anos dourados, foi atrelada à

substituição do modelo de desenvolvimento “para fora” (primário-exportador), das vantagens

comparativas ricardianas5, pelo modelo de substituição de importações cepalino

(industrialização dependente), assentado na tese da deterioração dos termos de troca. A

industrialização dependente só conseguiu se consolidar através da ampliação do consumo das

camadas médias e do esforço para aumentar a mais-valia absoluta e relativa (superexploração

do trabalho), condição necessária para baratear as mercadorias. Configurando assim, na

região, um modelo de demanda efetiva incompleto (MARINI, 2000).

O processo de expansão mundial não ocorreu de forma simultânea no núcleo dos países

avançados e muito menos nos países periféricos da América Latina. Na verdade, os EUA,

pelas suas condições econômicas e materiais hegemônicas no final da segunda guerra

mundial, saíram na frente no processo de expansão. Isso provocou um crescimento

temporalmente desigual entre os Estados Unidos, a Europa e o Japão e alguns países

periféricos (Brasil, México, Argentina, Korea, etc.). Quando a Europa e o Japão, num

primeiro momento, e alguns países periféricos, num segundo lapso de tempo, atravessaram os

seus auges expansionistas a economia doméstica americana já vivenciava um processo de

declínio relativo. Essa dinâmica mundial diacrônica garantiu a contínua vitalidade das forças

dominantes dentro dos Estados Unidos, pois o desenvolvimento mais tardio de outros países,

em relação ao norte-americano, representou oportunidades de expansão externa para as

empresas multinacionais produtivas e financeiras americanas, configurando canais de

lucratividade para os seus investimentos diretos (BRENNER, 2003).

Desse modo, o êxito econômico americano esteve atrelado ao sucesso de seus

concorrentes e aliados capitalistas. Isso propiciou um maior grau de cooperação e

coordenação internacional - Plano Marshall, sistema financeiro internacional “regulado” e até

mesmo maior conivência com o protecionismo dos estados periféricos aliados - , marcado por

altos níveis de apoio político-econômico dos norte-americanos a seus aliados e concorrentes,

ainda que sob hegemonia dos Estados Unidos. Nesse período a hegemonia americana é

5 Para Ricardo quanto mais livres forem as fronteiras dos estados, mais eficiente seria a alocação do mercado no

âmbito internacional, já que a alocação produtiva nacional dependeria apenas da sua maior produtividade

marginal em determinados produtos com relação aos produtos forâneos. O que engendraria o bem estar no

sentido paretiano através de uma divisão internacional do trabalho benéfica para o conjunto das nações.

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exercida através de um comportamento dual: coercitivo e persuasivo, com o aspecto

persuasivo ocupando maior destaque na política internacional (MEYER, 2000).

Essa configuração econômica e política internacional abriu a possibilidade da

industrialização dependente, principalmente do México, Brasil e Argentina, através da

importação de capitais externos, sob a forma de financiamento e de investimentos diretos na

indústria. Esse afluxo de capitais forâneos, na região, ocorreu, principalmente, a partir do

término da reconstrução européia (Plano Marshall) e japonesa, uma vez que as grandes

corporações financeiras e não-financeiras estadunidenses e européias – que nesse momento

apresentava grande liquidez de capital – necessitavam de novos espaços de valorização e

realização para garantir a manutenção dos níveis de lucratividade. Essa firmas perceberam

que a “periferia” deveria ser um novo eixo de expansão, principalmente, do capital industrial.

As possibilidades de atraentes lucros para o capital forâneo, que investisse no setor

industrial dos países periféricos, eram garantidas pelo mecanismo de superexploração do

trabalho na indústria periférica e pela necessidade, por parte dos países centrais, de exportar

equipamentos e maquinarias obsoletos não amortizados completamente, devido ao acelerado

progresso técnico. Na verdade, verificou-se que “a industrialização latino-americana

corresponde assim a uma nova divisão internacional do trabalho, em cujo âmbito se

transferem aos países dependentes etapas inferiores da produção industrial” (MARINI, 2000,

p.145).

O desenvolvimento desigual capitalista, resultante do crescimento do comércio, da

divisão internacional do trabalho e dos efeitos da II guerra nas relações de poder entre Estados

nacionais, que possibilitou a expansão econômica dos anos dourados, começa a apresentar

efeitos econômicos desfavoráveis. A partir da segunda metade da década de 1960, os

produtores da Europa ocidental e do Japão começam a suprir frações cada vez maiores do

mercado mundial, inclusive com bens similares àqueles que já eram produzidos pelos Estados

Unidos. “Assim, os bens que eles agora acabaram exportando tenderam a duplicar, em vez

de complementar, os produtos dos titulares americanos nos mercados existentes, incitando a

redundância, o excesso de capacidade e de produção” (BRENNER, 2003, p.55)

Desde meados da década de 1970, as taxas de acumulação do capital nos países avançados

começaram a apresentar trajetórias de desaceleração, indicando o começo de um excesso de

capacidade e de produção, na medida em que os preços do setor manufatureiro mundial

haviam sido incapazes de crescer de acordo com os salários e os custos de instalação de

equipamentos. Isto ocorreu em virtude da confrontação em preços no mercado mundial, dos

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produtos americanos, pelos fabricantes localizados em blocos econômicos de

desenvolvimento mais tardio, mais notadamente pelos fabricantes japoneses e alemães.

Com a queda das taxas de acumulação no âmbito da produção, a superestrutura financeira

envereda por uma trajetória de descolamento atrofiado relativamente à esfera produtiva. A

origem desta atrofia deve ser localizada na obstrução encontrada pelo capital para retornar aos

patamares pretéritos da taxa geral de lucros obtidos com a produção de mercadorias. Esta

dificuldade leva o capitalismo a voltar-se preferencialmente para alternativas de lucro

centradas em fundamentos financeiros, primeiro como capitais de empréstimos e, depois,

como capitais voláteis especulativos (“exportação de capitais”), configura-se uma dinâmica de

acumulação predominantemente financeira (BALANCO & PINTO, 2004).

O avanço econômico do Japão e da Alemanha, nos anos de 1970, começou a confrontar a

hegemonia econômica estadunidense no pólo capitalista. Ademais, a derrota no Vietnã, a crise

dos mísseis em Cuba e o fortalecimento militar da União Soviética e da China colocaram a

prova a hegemonia geo-política americana. Diante de um quadro que se revelou reticente no

que tange à fixação de novas taxas de expansão da economia e no que se refere à hegemonia

norte-americana, importantes e contraditórias transformações estruturais de grande

envergadura foram introduzidas com o objetivo de reorientar a acumulação, principalmente

do capital americano, articulada com políticas de ampliação do poder norte-americano através

de medidas unilaterais e coercitivas. (TAVARES, 1997). Tais transformações estão

vinculadas à quebra dos cânones keynesianos, abrindo espaços para a acumulação rentista e

para o aumento da extração de mais-valia tanto relativa quanto absoluta, por meio da

flexibilização do trabalho e da reestruturação produtiva.

A partir de meados da década de 1970 o governo norte-americano propiciou, buscando

consolidar sua posição central no sistema, o aumento da mobilidade de capital para financiar

os déficits de seu balanço de pagamento através do crescimento da emissão de títulos da

dívida pública do Tesouro. Isso facilitou seus planos para a economia doméstica (crescimento

da demanda) e, ao mesmo tempo, fortaleceu os interesses financeiros domésticos dos

principais bancos de Nova York. O ponto culminante dessas políticas foi a elevação ingente

das taxas de juros americanas (“diplomacia do dólar forte6”), imposta por Paul Volcker, no

ano de 1979, que teve como objetivo estratégico enquadrar os países sócios e os principais

competidores econômicos do mundo capitalista. É importante perceber que essa reorientação

6 “O enfraquecimento do dólar como padrão monetário internacional obrigou os Estados Unidos a um exercício

extremo de poder, concentrando na defesa da função de reserva universal de sua moeda nacional”

(BELLUZZO & ALMEIDA, 2002, p.11)

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da política de retomada da hegemonia americana associa-se à luta entre as frações de classes

dominantes no espaço intra-estatal americano e, por conseguinte, materializou-se o controle

da alta finança sobre a apropriação da riqueza e renda.

A política Volcker praticamente decretou o default da maioria dos países latino-

americanos na década de 1980. Os países da região, em sua maioria, tinham contraído

empréstimos, ao longo dos anos 1970, aproveitando a liquidez financeira do mercado

internacional, passando a priorizar o endividamento como estratégia principal de

desenvolvimento econômico. No final desse período a região ingressou num regime de

financiamento Ponzi7, que, naturalmente, caracteriza-se pela extrema fragilidade a choques

externos. Acontece que a montanha de dinheiro, que fluiu para a região, foi contratada para

começar a vencer em períodos relativamente curtos e a taxas de juros flutuantes (LIBOR e

prime rate americana). Evidentemente, com o choque externo do aumento ingente das taxas

de juros internacionais, em 1979, estes países não foram capazes de viabilizar excedentes

necessários ao pagamento regular do serviço da dívida. Esse choque provocou, sobretudo para

os países endividados, a assunção de crises cambiais e fiscais intensas, associadas à iminência

do desmoronamento de seus respectivos sistemas nacionais (BELLUZZO & ALMEIDA,

2002).

Nesse contexto de crise estrutural materializam-se, na maioria das economias capitalistas

avançadas e, principalmente, periféricas, nos anos de 1980 e de 1990, uma desaceleração

acentuada dos índices de investimento e de produtividade, um declínio dos salários reais,

uma elevação relevante dos índices de desemprego e uma sucessão de recessões e crises

financeiras, o que acabou por se refletir num baixo dinamismo econômico, de grande parte

das economias avançadas e periféricas nesse período8. Gerou assim, como conseqüências

típicas dos processos recessivos, resultados sociais amplamente negativos. Essa nova

dinâmica da acumulação provocou uma intensificação do conflito político-econômico

internacional dos países capitalista avançados frente a um mercado mundial de crescimento

econômico muito mais lento, em especial quanto às regulamentações para o investimento, o

comércio e o dinheiro internacional. Essas transformações estruturais de grande envergadura

alçaram o capitalismo a um novo patamar conhecido como globalização.

7 Segundo Minsky essa etapa corresponde ao processo de endividamento em que a tomada de novos créditos

decorreu da necessidade de se cobrir o serviço da dívida passada. 8 Entre os países avançados a desaceleração dos níveis de atividade tornou-se a regra neste período, a exceção

fica por conta dos EUA, em virtude de sua posição hegemônica no sistema capitalista. Esta manutenção do nível

de atividade americana é oriunda de seus ganhos de corretagem sobre o capital financeiro nacional e

internacional e das políticas keynesianas parciais configuradas a partir de gastos bélicos.

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Esse processo de globalização do capital reduziu a autonomias dos governos latino-

americanos, uma vez que a ausência de limites à mobilidade do capital possibilitou aos

mercados (alta finanças) um maior poder de interferência sobre as políticas econômicas

domésticas latinas. A partir daí a região começa a se inserir de forma, cada vez mais, passiva

aos fluxos e a dinâmica de acumulação do sistema mundo. Não é por acaso que a América

Latina vivenciou duas “décadas perdidas”(1980 e 1990), passando a vivenciar profundas

mudanças, as quais, na maior parte das vezes, representaram um aumento da vulnerabilidade

econômica e da ampliação do quadro social amplamente desigual conhecido desde a

superação do período colonial. Avaliadas por qualquer indicador de desempenho econômico,

as décadas de 1980 e de 1990 revelam um quadro de crise profunda e persistente. A

cristalização deste quadro deletério deu-se mediante a fixação de um processo estrutural de

reprodução da dependência e da crise associado ao endividamento. Isso representou a

colocação em prática, por parte dos países centrais, principalmente os EUA, de medidas que

estimulavam a acumulação rentista, buscando reverter a queda da lucratividade. Tal processo

se irradiou, no final dos anos 80, a partir de medidas de que visavam a retomada da

hegemonia norte-americana dentro do sistema mundo, que teve na política Volcker um de

seus instrumentos.

Não demorou muito para a América Latina sentir o impacto da política internacional

americana. Foi um nocaute atrás do outro! O primeiro grande país da região a cair foi o

México que decretou a moratória em 1984. Os efeitos da queda mexicana fragilizaram os

outros países latinos, já que, com a decretação do default, minguaram ainda mais os fluxos

financeiros para a região. Entre 1984 e 1989 o saldo da conta capitais em porcentagem do PIB

na região – média entre Colômbia, Chile, Peru, Argentina, México e Brasil – foi negativo em

1,6%. Logo toda a região foi guiada à crise no balanço de pagamentos, aprofundada pela

recessão mundial, e a ampliação da deterioração dos termos de troca. Diante dessa restrição

de capitais, quase toda região teve que buscar empréstimos junto ao Fundo Monetário

Internacional (FMI) e ao Banco Mundial (BM). A contrapartida requerida por estas

instituições foi a implementação de políticas econômicas9 voltadas a exportação. Na verdade,

essas políticas tinham com único propósito criar receitas em divisas estrangeiras necessárias

ao pagamento do serviço da dívida. Vale ressaltar que o pagamento dos juros aos credores

9 As políticas implementadas apresentaram as seguintes diretrizes: i) políticas fiscais e monetárias restritivas; ii) redução do salário real. Estes dois elementos provocaram a redução do consumo e do investimento; iii)

desvalorizações cambiais, como uma forma de incentivar as exportações e diminuir as importações. Para tanto,

foram realizadas maxi desvalorizações cambiais, em vários países da região, que tiveram como efeito negativo a

elevação das taxas de inflação.

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absorveu uma parcela significativa da elevação das exportações nos anos 80. Com a

deterioração dos termos de troca, em especial, nas commodities agrícolas e industriais,

verificou-se uma corrosão dos esforços exportadores, pós-85, realizados na região.

O esforço exportador foi viabilizado a partir da implementação de recessão econômica de

longo alcance. Os grandes países latino-americanos, Argentina, Brasil e México, em

diferentes momentos dos anos 1980, vivenciaram crises internas agudas cujas características

principais foram recessões e nível de inflação galopante. Entrementes, no geral, embora

tivessem parcialmente superado os efeitos mais deletérios, a dura realidade do endividamento

já se tornara estrutural. “Nesta altura, a dependência crucial dos capitais de financiamento

para garantir a reprodutibilidade da própria dívida, e possibilitar pequenos períodos de

recuperação limitada, constituíra-se como inexorável e seria decisivo no novo ambiente que

se formaria entre o final dos anos 80 e início dos anos 90 do século passado” (BALANCO &

PINTO & MILANI, 2003, p. 05).

As crises que se sucederam em diversos países da região serviram como uma

pavimentação social para uma assunção social do modelo de desenvolvimento liberal na

década de 1990. Os ajustes macroeconômicos heterodoxos, da década de oitenta, não

conseguiram compatibilizar o ajustamento do balanço de pagamento e a reordenação das

finanças públicas. Na verdade, o conflito distributivo, que foi modelado pelo regime

monetário inflacionário dos anos 80, na América Latina, foi a primeira etapa da renúncia da

soberania monetária dos Estados que delegaram, em grande parte, ao FMI e ao Banco

Mundial o engendramento das políticas econômicas na região, que convergiram para os

interesses dos que enriqueceram com os títulos da dívida. Assim, as políticas neoliberais

foram ganhando legitimidade na sociedade e na classe financeira de cada país.

O ajustamento dos anos 80, na região, patrocinou a reestruturação corrente e patrimonial

do grande capital; em contraponto, provocou o desequilíbrio do setor público. Deste modo,

esse processo preservou os lucros e o patrimônio do setor privado, como proporcionou o

reequilíbrio em conta corrente. Entrementes, concomitantemente, engendrou o agravamento

das incertezas associadas à alta inflação, à percepção da precariedade da situação cambial, o

aprofundamento da vulnerabilidade do setor público e das empresas estatais (BELLUZZO &

ALMEIDA, 2002).

As políticas monetárias desse período, implementadas para assegurar a continuidade do

pagamento dos serviços da dívida externa, reduziram a nada a esperança que a democracia

poderia modificar de maneira substancial o rumo da história social na América Latina

(PEREIRA, 2001).

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O quadro capitalista que passou a ser denominado de globalização foi acelerado nos anos

1990, impulsionado pela vitória inequívoca dos Estados Unidos na disputa bipolar. A derrota

do grande “inimigo totalitário” incitou uma maior agressividade dos países capitalistas

centrais, principalmente dos EUA, visando à integração completa dos países dependentes ao

mercado mundial através da “exportação de capitais”. Nesta oportunidade, o capital-dinheiro

mudara a forma de seu movimento: em vez de empréstimos externos, como assinalado na

década anterior, agora passava-se a privilegiar os investimentos financeiros especulativos de

curto-prazo. Trata-se de uma situação nova. Quando prevalecera o mecanismo dos

empréstimos, a remuneração do capital dinheiro era fixada pelas taxas de juros vigentes no

mercado internacional, aquelas determinadas pelas principais praças financeiras, tais como

Londres e Nova York. Além disso, como os empréstimos, teoricamente, representavam o

movimento de entrada de massas de capitais para dentro dos estados tomadores por iniciativa

interna (governos e empresas), não havia necessidade de mudanças das normas regulatórias

do mercado financeiro nacional.

O ciclo de absorção de capital externo, iniciado nos anos de 1990, apresenta

características particulares, o que contribui, inclusive, para dificultar a prospecção dos riscos

envolvidos em seu momento inicial. Nas décadas de 1970 e 1980 os empréstimos e

financiamentos eram as principais formas de ingresso de capital na América Latina e,

portanto, a dívida externa constituía uma aproximação razoável do passivo externo total dos

países da região. Recentemente, isso já não é mais verdade, uma vez que os investimentos

diretos (muitos vezes resultantes de operações de privatização) ou investimento de portfólio

(como por exemplo aplicações em bolsa de valores) constituem parte substancial do capital

que vem do exterior. Como esses passivos não são contabilizados na dívida externa, os dados

referentes ao estoque e ao serviço da dívida, assim como suas relações com as exportações ou

PIB, subestimam significamente a extensão do problema (NOGUEIRA, 1993) .

Não surpreende, portanto, que o Banco Mundial, o FMI e a OMC (Organização Mundial

do Comércio), instituições “supranacionais”, tenham se fortalecido ao longo da década de

1980, uma vez que elas desempenham funções relevantes para o ajuste integrativo dos

espaços mundiais, à luz das novas condições de produção e reprodução do capital. Para tanto,

verifica-se que os movimentos efetuados por estas instituições estão associados ao

capitalismo, enquanto eixo da esfera econômica; à democracia liberal, no campo político; aos

valores culturais coerentes com a ideologia liberal. Estas linhas devem ser seguidas pelos

países que solicitam empréstimos ou ajuda financeira em momentos de captação de

investimentos produtivos ou crises cambiais (OLIVEIRA, 1998).

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Para assegurar a rentabilidade máxima do capital, em sua forma financeira, os EUA

impôs, via Banco Mundial, FMI e OMC, a desregulamentação financeira e os ajustes

estruturais, reformas necessárias à acumulação do capital-dinheiro na sua forma especulativa.

Isto conformou um novo quadro político-econômico que se materializou na aplicação do

chamado receituário neoliberal. Com o intuito de consolidar este ideário, o FMI e o Banco

Mundial impõem os ajustes estruturais aos países que enfrentam dificuldades no balanço de

pagamentos. Em linhas gerais, as principais estratégias das reformas institucionais liberais

estão associadas: (a) à liberalização do comércio, à revisão das políticas de preços e à

diminuição dos subsídios com o objetivo de permitir a operacionalização das vantagens

comparativas; (b) à eliminação das restrições ao investimento externo e ao alento a

intermediação financeira com taxas de juros reais positivas com o intento de remover a

repressão financeira e fomentar a livre circulação de capitais; (c) à redefinição do papel do

setor público (redução dos programas sociais universalizantes, eliminação de subsídios aos

bens e serviços públicos, políticas focalizadas, redução do déficit fiscal) (LICHTENSZTEJN

& BAER, 1987).

Além do Banco Mundial e do FMI, as novas formas de integração capitalista se

sustentam, também, através da OMC. Estas instituições formam um tripé “virtuoso” para a

produção e reprodução do capitalista. Após a Rodada Uruguai e a criação da OMC, as

economias nacionais foram obrigadas a adotar uma nova regulação comercial do

investimento, dos serviços e da propriedade intelectual. Essas regras da OMC facilitaram e

facilitam as práticas monopolistas das grandes empresas internacionais, ao mesmo tempo em

que não impedem o protecionismo e a regulação nacional das grandes potências. Verifica-se

claramente que as instituições “supranacionais” viabilizam a instrumentalização do novo

processo integrativo do capital dos espaços mundiais, conformando um processo de

centralização capitalista acelerada, ampliando a concentração do poder econômico e político

num espaço restrito, qual seja, o Estado norte-americano.

III- A inserção passiva da América Latina nos anos 1990: ajustes estruturais neoliberais

e a desarticulação social

A década de 1990 foi marcada por profundas transformações estruturais no âmbito

intra e interestatal, quais sejam, a implosão do mundo socialista, a forte desaceleração das

economias desenvolvidas, a queda relevante das taxas de juros internacionais, a iminente

integração de novos espaços à dinâmica do capital através da reestruturação das dívidas

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12

externas, a reestruturação produtiva das multinacionais nos espaços periféricos e a busca

americana de mercado exterior para novos excedentes exportáveis. Neste contexto, os EUA

vêm ampliando sua capacidade autônoma para determinar políticas internas e externas e

estabelecer, através da coerção, a dominação sobre estados nacionais mais débeis. Esse

controle pode ser observado através da imposição por parte dos EUA, aos países devedores,

das chamadas políticas neoliberais. O FMI e o Banco Mundial instrumentalizam a

implantação dos modelos de desenvolvimento liberal nos países periféricos, já que esses

foram constrangidos por seu endividamento estrutural, que se consolidou a partir da política

do “dólar forte”. Dessa forma, os governos latino-americanos, entre o final dos anos 80 e

início dos 90, começaram a aderir aos ajustes estruturais que se configuram em planos de

estabilização econômica e reformas institucionais voltadas, principalmente, à flexibilização do

mercado de trabalho.

As economias dos países centrais, sobretudo o Japão e o Estados Unidos,

atravessaram, no início dos anos de 1990, situações econômicas restritivas. Os EUA sofreram

uma forte recessão, entre 1990 e 92, e o Japão ocorreu o “estouro” da bolha especulativa

financeira. Isso provocou uma deflação da riqueza mobiliária e imobiliária nos mercados

globalizados. Numa situação como esta os Bancos Centrais desses países reduziram suas taxas

de juros significativamente, buscando equalizar os desequilíbrios correntes e do balanço

patrimonial de empresas, bancos e famílias (BELLUZZO & ALMEIDA, 2002).

Essas reduções dos juros dos países centrais proporcionaram uma grande elevação da

liquidez internacional. Parte desse capital direcionou-se à América Latina10

, engajando-a

assim em um novo ciclo de absorção de capitais externos. A região se configurou como um

novo porto bastante rentável para os capitais forâneos. Isso representou uma reviravolta em

relação aos anos de 1980, momento em que a região praticamente não participou da rápida

expansão dos fluxos financeiros na economia internacional daquela década. Na verdade, esse

afluxo de capital, inclusive com períodos de superabundância, potencializou uma nova forma

de integração da região à dinâmica de acumulação do capital. Quer seja como espaço de

reprodução da acumulação fictícia ou como espaço de realização das mercadorias do setor

manufatureiro americano, através do ajuste importador realizado pela América Latina ao

longo, de boa parte, dos anos noventa.

10

A partir de 1990, o continente se inseriu no mercado internacional como receptor de investimentos de portfólio

e o saldo da conta de capitais foi de 1,4% (UNCTAD, apud MEDEIROS, 1997, p. 293). Desta forma, o crédito

interno, entre 1988 e 1993, aumentou de 22% para 30 % do PIB, enquanto o índice dos preços dos valores

negociados em bolsa incrementou-se mais de três vezes e meia - “efeito riqueza”.

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13

Esse fluxo de capital foi potencializado a partir da abertura comercial e financeira, nos

países da região, em concomitância com a reestruturação da dívida externa através do Plano

Brady. Além da abertura da conta de capital, a dinâmica financeira foi impulsionada pela

securitização da dívida externa utilizando-se a emissão de bônus negociáveis no mercado

financeiro americano e pelas inovações financeiras (derivativos, mercados futuros, etc.).

Nesse novo cenário internacional, a América Latina sai da posição de exportador líquido de

capitais para tornar-se receptor, principalmente, de capitais de curto prazo (hot-money).

Vale destacar que a intensa abertura comercial e financeira, desse período, também

esteve atrelada à estratégia comercial americana voltada para a recuperação da

competitividade das suas exportações assentada na desvalorização do dólar em relação ao

iene, entre 1992 e 1995 (queda de mais de um terço na relação dólar/iene). Isso constituiu um

elemento central para o entendimento da mudança do contexto macroeconômico dos anos 80

em relação aos anos 90 e da atual inserção internacional dos países latino-americanos

(MEDEIROS, 1997; BRENNER, 2003).

O ingresso de capitais na região, portanto, funcionou como elemento chave para a

acumulação do capital forâneo. Pelo lado da acumulação financeira, verificou-se que os

capitais voláteis especulativos foram recompensados com altas taxas de juros (D-D’). A

entrada de capitais, em consonância com a abertura comercial, também possibilitou constantes

equalizações dos déficits em transação corrente provocados pelo aumento das importações

associado a sobrevalorização cambial da maioria dos países. Isso, conseqüentemente,

beneficiou o capital produtivo estrangeiro através da elevação das exportações para a região.

Portanto, o intenso processo de abertura financeira e econômica da América Latina está

associado às estratégias da hegemon voltadas às altas finanças e ao capital manufatureiro

norte-americano.

A grande maioria dos países da região abraçou, se bem que seletivamente e com diferentes

graus de intensidade, os ajustes estruturais, que consistiam, sinteticamente, em privatizações e

desregulamentações, na flexibilização do mercado de trabalho, em diminuição do papel do

Estado e na abertura comercial, como uma nova estratégia alternativa para alavancagem do

desenvolvimento. Assumia-se, portanto, a retórica de que o excessivo intervencionismo

estatal e seus déficits fiscais eram os principais empecilhos para os países latinos adentrarem

numa nova fase de prosperidade. Deste modo, nessa perspectiva, a estabilidade monetária, o

equilíbrio fiscal e a competitividade internacional seriam os elementos para a modernização

da periferia. O modelo de “desenvolvimento” neoliberal aplicado na região assentou-se no

binômio da abertura e da competitividade atrelado à estabilidade inflacionária.

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14

As políticas econômicas, da década de 1980, que tinham como objetivo fulcral garantir

o pagamento dos serviços da dívida através de superávits comerciais recorrentes e elevados,

tiveram como efeito colateral processos hiperinflacionários agudos e violentos no Brasil, na

Argentina e no México, que promoveram uma aguda instabilidade e crise econômica e, por

conseguinte, social. O combate à inflação, na década de 1990, foi a pedra de toque da

construção do modelo neoliberal, uma vez que a sociedade latina, dos mais diversos países,

entendia que os problemas internos estavam associado basicamente à inflação. Os

diagnósticos que levaram às políticas de desregulamentação foram os que atacaram a inflação

como fonte do problema que haviam levado à estagnação econômica, à deterioração dos

serviços estatais e da infra-estrutura do estado e ao empobrecimento generalizado da

população. Os argumentos do imposto inflacionário e do ataque à intervenção econômica

estatal, cujo déficit seria a fonte da inflação, ganharam grande aceitação no imaginário

coletivo da população da região. O que, em certa medida, facilitou a aceitação, por parte da

sociedade, da adoção de estratégias liberais de desenvolvimento em quase todo território

latino (SADER, 2003).

Esta aquiescência foi reforçada pela rápida redução da inflação11

na região, que

associada ao aumento do crédito, proporcionou um círculo virtuoso de aumento do consumo e

crescimento da produção e do emprego. A estabilidade monetária se converteu no principal

bem público da América Latina, garantindo a eleição e reeleição de vários presidentes: Carlos

Menem na Argentina, Fernando Henrique Cardoso no Brasil, Alberto Fujimori no Peru e a

manutenção do partido governista no México. Ademais, os Ministros da Fazenda e

presidentes de bancos centrais que implementaram a austeridade fiscal e monetária foram

saudados como heróis pelos investidores estrangeiros, que trouxeram quantidades de capital

sem precedentes para a região. No entanto, esse crescimento logo se mostrou efêmero, diante

dos problemas surgidos pela própria operacionalização do modelo neoliberal, quais sejam, a

deterioração das contas externas e das finanças públicas e a elevadíssima dependência de

capital especulativo forâneo. Sendo assim, as economias latino-americanas assumiram uma

cara espasmódico ao longo da década de 1990.

A abundância de capitais internacionais, provocada pelas políticas monetárias menos

restritivas dos países centrais, viabilizou a implantação dos modelos liberais na Argentina, no

11

As políticas econômicas ortodoxas conseguiram alcançar seu intento monetário: conter a inflação. No México

a inflação de reduziu de 60,9%, na média entre 1980-95, para 5,1% em 1995. No Brasil e na Argentina essa

redução foi ainda maior, de 2.862,4%, em 1990, para 6%, em 1995, e de 2.314,%, em 1990, para 3,4 %, em

1995, respectivamente. (CEPAL, 2003)

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15

México e no Brasil. Vejamos algumas características especificas da implementação desse

modelo nas maiores economias da região.

No México a gravidade da crise da dívida adiou o início das reformas liberalizantes

salvo o programa de desestatização. As reformas se iniciam no período 1983-1988, sendo

aprofundadas, entre 1989 e 1995, com assunção no Governo do tecnocrata Salina que

governou o México, entre 1988 e 1994, imbuído da missão de concluir a abertura e a

desregulamentação, e de consolidar a integração da economia mexicana à dos EUA, com a

inserção do país à NAFTA. Alçando assim o México ao “Primeiro Mundo”! As privatizações

foram conduzidas gradualmente, tendo em vista a difícil negociação com trabalhadores,

sindicatos e Congresso, para obter emendas constitucionais e novas leis que fossem retirando

da exclusividade do Estado ou do capital nacional em atividades econômicas. A consolidação

da abertura comercial, em 1987, e a valorização cambial a partir de 1988 formaram as vigas

mestras para a política de estabilização praticada entre 1987 e 1989. A desregulamentação

financeira e as crescentes entradas de capitais de curto prazo expandiram o crédito ao setor

privado, financiando as crescentes importações, privatizações e a especulação bursátil. A

integração mexicana à NAFTA, atrelou o país, cada vez mais, à dinâmica da economia norte-

americana, como um departamento de produção no exterior, em incessante busca de trabalho

barato. O modelo de reestruturação produtiva adotada, implicou, num primeiro momento, na

desestruturação de partes da cadeia produtiva. Num momento seguinte, a reestruturação feita

sob o comando do capital internacional assentado nas maquiladoras (a legislação mexicana

permite que sejam controladas em até 100% por capital estrangeiro) substitui, com

importações crescentes, o que antes era fornecido pela produção interna (CANO, 2000).

Na Argentina hiperinflação de 1989 consubstanciava um processo de desorganização

econômica e social, a saber: produção paralisada, redução drásticas dos salários reais,

incremento da miséria e do descontentamento social. Na campanha eleitoral Carlos Menem

assume um programa tipicamente peronista de incremento salarial e da revolução produtiva.

Após sua vitória eleitoral Menem muda radicalmente este programa e implementa o mais

severo programa de ajuste estrutural da América Latina, uma “terapia de choque” ao estilo

monetário ortodoxo de Chicago. Em 1991, o Ministro da Economia Domingo Cavalo

implementa o Plano de Conversibilidade, o que limitou as funções do Banco Central a uma

caixa de conversão. Esta política teve como o objetivo essencial garantir o pagamento dos

débitos externos, um interesse que se atrelava fortemente aos interesses financeiros argentinos

e internacionais. A manutenção da Lei de Conversibilidade por mais de dez anos, os

sucessivos ajustes fiscais, as privatizações de todo o patrimônio público, as reduções do valor

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16

dos salários e aposentadorias aprofundaram as dificuldades e jogaram a crise para adiante, que

estoura em 2001.

O Brasil foi um dos últimos países da região a substituir o modelo de Substituição de

Importação pelo modelo de desenvolvimento neoliberal. Isto não acontece por acaso. Na

verdade, entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, verifica-se um vácuo de poder no

ponto hierárquico mais alto do sistema capitalista brasileiro dependente. Configurando assim,

um disputa de poder interna produtivista e financeira para controlar as estratégias de

desenvolvimento nacional. O Governo Collor foi a representação desse interregno de controle

de uma fração de classe consolidada no plano interno. Na medida em que a estratégia liberal,

no Brasil, vai ganhando a disputa, configurou-se um novo modelo de “desenvolvimento”

liberal (Plano Real) assentado na abertura e na competitividade, tendo como suposto da

estabilidade inflacionária. Na década de 1990, verificou-se uma mudança desfavorável no

padrão de comércio internacional, qual seja, a perda de competitividade das exportações

manufatureiras e a expansão das exportações de produtos agrícolas, refletindo na

reprimarização das exportações. Os ganhos de competitividade brasileiros associaram-se à

expansão dos produtos agrícolas, o que, na verdade, gera uma incerteza crítica no processo de

ajustamento das contas externas, uma vez que essa alternativa tende a ampliar a trocas

desiguais. Do ponto de vista estrutural verificou-se, na América Latina, uma mudança

desfavorável no padrão do comércio internacional, o que levou ao aumento da participação

dos produtos com baixo valor agregado nas exportações. Isso aconteceu fortemente no Brasil

e na Argentina e com muito menos intensidade no México, em virtude das características

especificas das maquiladoras na estrutura produtiva desse país. O baixo dinamismo das

exportações manufatureiras nesses dois países, dentre outras coisas, demonstra o

desmantelamento do aparelho produtivo atribuído especialmente à apreciação cambial e às

baixas taxas de investimento (GONÇALVES, 2000; TEUBAL, 2000-2001; SALAMA, 2002

e 2003).

O modelo macroeconômico, com livre mobilidade de capital e câmbio fixo ou quase-

fixo, que foi utilizado na maioria dos países do continente, em boa parte dos anos 90,

apresentava a seguinte dinâmica: a entrada de capitais viabilizada pela liquidez internacional e

pelos spreads exigidos pelos investidores estrangeiros, num primeiro momento, proporciona o

aumento das reservas internas, em virtude do regime cambial. Isto provocaria o aumento do

crédito e da liquidez monetária interna que poderia engendrar um aumento no nível de preço.

Para reverter essa possível situação o Banco Central enxuga a liquidez através da venda de

títulos públicos, políticas de esterilização. Para tanto, faz-se necessário elevar a taxa de juros

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17

com o intuito de atrair compradores para os títulos do Governo. Este processo de esterilização

impacta no aumento da dívida interna e, por conseguinte, provoca a elevação ingente de

pagamento de juros, acentuando o déficit orçamentário. Ademais, com a valorização cambial

os países da região criam uma situação de déficits comerciais recorrentes e intensos12

,

provocados pelo incremento do diferencial entre taxa de câmbio real e nominal. Como estes

déficits comerciais e orçamentários foram financiados ao longo da década de 1990? Os

comerciais foram financiados pelo lado da conta de capital e financeira do balanço de

pagamentos através da entrada continua de capital forâneos, em grande monta voláteis. Os

orçamentários foram financiados através da emissão de novos papeis da dívida, apresentando

cada vez mais maior rentabilidade para esse tipo de título. No que tange à questão distributiva,

esse modelo macroeconômico provoca um ingente deslocamento das rendas nacionais para as

frações de classe rentista internas e, sobretudo, internacionais.

Evidentemente, para que esse quadro se tornasse viável, o movimento de entrada e

saída dos capitais nos espaços nacionais teria que ser a mais ampla possível. Daí, o caráter

volátil que o capital-dinheiro passou a ter e, por conseqüência, a ampliação da vulnerabilidade

dos países recebedores destes capitais. Aqui se revela novamente, sob outras condições, o

papel da dívida13

como componente estrutural decisivo. Os novos capitais passavam a entrar

por períodos relativamente curtos, sem compromisso com a alteração da estrutura produtiva

interna, quando muito, os mesmos passavam a ser utilizados para o cumprimento das

obrigações do serviço da dívida externa que continuava como regularidade. Ao mesmo

tempo, praticando a arbitragem, estes capitais, agora especulativos, não tinham prazos nem

critérios definidos para sair e quando o faziam, em função de melhores oportunidades em

outras regiões do planeta, ou por conta da deterioração das contas externas dos países onde se

encontravam, abria-se um ataque especulativo que levou os países latino-americanos a

enfrentarem crises agudas (México 1994, Brasil 1999, e Argentina 2001).

Nesse modelo as taxas de juros reais, que funcionara como instrumento de atração de

capitais forâneos em abundancia naquele momento, assume um caráter basilar. Na medida em

que “garantia” o afluxo de capital. “As taxas reais não podem ser reduzidas abaixo de

determinados limites estabelecidos pelos spreads exigidos pelos investidores estrangeiros

12 As políticas de valorização cambial e a abertura comercial provocaram o aumento da taxa de crescimento das

importações que excedeu notoriamente às das exportações. Entre 1990 e 2000, o déficit comercial, com relação ao PIB, foi de 0,9% e o déficit da conta capital foi de 2,6% do PIB, ambas em média anual. Isto demonstra o

aumento da vulnerabilidade externa na economia Latino América (CEPAL, 2003). 13 A dívida externa bruta da América Latina saltou de U$ 460,9 para U$ 727,8 bilhões, entre 1991 e 2001. A

Argentina e o Brasil desembolsaram mais de 40% de sua riqueza nacional em pagamentos da dívida. Entre 1991

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para adquirir e manter em carteira um ativo denominado em moeda fraca, artificialmente

valorizado” (BELLUZZO & ALMEIDA, 2002, p. 367). Neste contexto, a política de

elevação da taxa de juros, no âmbito interno, é utilizada para conter a inflação e, no espaço

externo, para atrair capitais forâneos. O ingresso desses capitais dependeria de projeções das

taxas de juros determinadas pelos mercados, o que acaba por reduzir a capacidade de gestão

monetária dos Estados nacionais, já que uma expectativa de redução das taxas de juros ou de

outras medidas que reduzam lucratividade bursátil, tenderia a consubstanciar crise financeira.

Comprometendo assim a possibilidade de crescimento econômico consistente na região.

Esses movimentos, de curto prazo, de aceleração e desaceleração da economia latino-

americana, foram uma característica recorrente nas economias da região. Nem mesmo as

mudanças dos regimes cambiais, nem as políticas de metas inflacionárias, nem os regimes

fiscais mais draconianos, engendrados no final dos anos 1990 e início dos 2000, conseguiram

reverter, de forma estrutural, a vulnerabilidade externa e a fragilidade financeira do setor

público nos países da região. A experiência vem demonstrando que o câmbio flutuante, apesar

de atenuar os efeitos internos das crises cambiais, não tem conseguido insular a política

monetária e dar-lhe uma maior autonomia; a cada ataque especulativo contra as moedas

locais, as autoridades monetárias, tanto em função da fuga de capitais quanto de seus

impactos sobre a inflação, terminam por elevar a taxa de juros, com todas as conseqüências

conhecidas sobre o nível de atividade, do emprego, da renda e da dívida pública

(CARVALHO, 2003; CARNEIRO, 2003; FILGUEIRAS & PINTO, 2003).

Os países dependentes ficam agora prisioneiros de dois movimentos: a continuidade

do pagamento do serviço da dívida e, ao mesmo tempo, a remuneração generosa do capital

estrangeiro especulativo. Para isso foram obrigados a encaminhar políticas de ajuste

macroeconômico cujas principais características foram os combates violentos a inflação

mediante medidas restritivas da atividade interna, o crescimento do endividamento interno por

conta da oferta de títulos públicos a juros estratosféricos e, não menos importante, a adoção de

regimes cambiais fixos ou quase-fixos voltados para a valorização das moedas nacionais

frente ao dólar. Estes três fatores combinados constituem uma garantia de que os capitais

especulativos serão remunerados a taxas de juros reais as mais amplas possíveis. Portanto, o

combate à inflação, via recessão e mediante a sobrevalorização cambial, esteve voltado,

sobretudo, para a viabilização desta rentabilidade excepcional. A América Latina, na década

de 1990, se integra a dinâmica de valorização do capital, por um lado, sob um circuito

e 2001 a dívida externa bruta desembolsada saltou de 32,3% para 52%, na Argentina, e de 30,4% para 43,4%, no

Brasil

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financeiro/fictício (D-D’) e, por outro lado, como um espaço de realização das mercadorias

dos países industrializados.

Em suma, os ajustes estruturais implantados na maioria dos países latino-americanos

proporcionaram “enormes transferências de renda, poder e riqueza para o establishment

político e econômico”. Implicando a “marginalização e exclusão da maioria da população” e a

desvalorização das políticas sociais universalizantes (TEUBAL, 2000-2001, p. 461). Estas

medidas políticas liberais provocam um incremento na exploração do trabalho, evidenciado

através da redução dos salários reais dos grupos de rendimentos mais baixos, uma maior

regressividade na distribuição da renda e a elevação do desemprego em suas várias formas.

Conformando um modelo desenvolvimento neoliberal definido como desarticulado

setorialmente e socialmente 14

.

Os programas de ajustes estruturais na América Latina, em certa medida, não

apresentaram como componente principal o avanço tecnológico, que provocaria o aumento da

taxa de mais-valia relativa. Na verdade, a busca pela lucratividade, no âmbito produtivo, na

região, esteve assentado no incremento da taxa de mais-valia absoluta, que se vinculou à

redução dos salários reais. Engendrado pelo processo de flexibilização. Não obstante, tanto a

taxa de mais-valia relativa quanto à taxa de mais-valia absoluta podem ser engendradas

concomitantemente (TEUBAL, 2000-2001).

Com a acumulação regional assentada na flexibilização do mercado de trabalho e na

valorização fictícia, materializa-se um aumento da heterogeneidade no continente, tanto

interno a cada país quanto à diferentes países, pois a renda vem sendo distribuída de forma

cada vez mais regressiva. Deste modo, a desigualdade, nos países latino-americanos, se

acentuou15

, tanto nos que tiveram êxito nos ajustes estruturais quanto nos menos exitosos. O

14 O conceito de desarticulação vincula-se à dissociação da demanda originária da renda salarial a dinâmica

econômica, que se volta às exportações ou ao consumo de grupos de rendas médias e mais elevadas. Essa dinâmica tende a retroalimentar-se ainda mais, ampliando as desigualdades de renda. Nessa estrutura, de

desarticulação o salário deixa de ser a alavancagem do crescimento, o que tende a provocar uma queda nos

rendimentos salariais e uma elevação do desemprego. Ademais essa dinâmica pode provocar o

desbalanceamento entre o departamento de produção e consumo dentro do país. Sendo assim, o conceito de

“(des)articulação social setorial”, que ainda não foi delimitado completamente, “refers to the degree or rate de

exploitation prevailing in different economies [taxa de mais-valia relativa ou absoluta que depende da luta de

classe] (...) and also includes important demand elements [principalmente a renda salarial no modelo construído

por Kalecki] (…) that influences the industrial structure of the economy” (TEUBAL, 2000-2001, p.463). 15 A distribuição da renda encontra-se em níveis piores hoje, na maioria dos países do continente, do que nas

décadas de 80 e 90. Segundo a Cepal (2003), os 20% mais pobres e os 20% mais ricos da população detinham,

respectivamente, em porcentagem da renda total: na Argentina, 6,8 e 45,3, em 1980, e 6,0 e 56,0 no ano de 1999;

no Brasil, 3,3 e 59,2 , em 1980, e 3,5 e 61,9, em 1999. Neste país, apesar de certa melhora na renda dos mais pobres, ocorreu um aumento na renda dos mais ricos, com um provável descolamento de renda das classes

médias brasileiras para as classes mais pobres e mais ricas, o que não se configura como melhor forma para

obtenção de equidade na renda; 7,8 e 41,2, em 1984, e 6,7 e 49,0, em 2000, no México, uma das piores

evoluções na distribuição de renda, só perdendo para a Venezuela. Uma das poucas exceções foi o Chile e a

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abismo entre os mais abastados e os mais pobres cresceu de forma acentuada mesmo tendo

ocorrido maior crescimento do produto e recuperações parciais de salários em alguns dos

países latino-americanos que adotaram as políticas liberalizantes. Dentre os países principais,

a evolução do salário mínimo real urbano mostrou a superação dos níveis salariais de 1990 -

com exceção do México e Uruguai. Entrementes, no cotejo entre os níveis de 1980 e de 2000,

encontrou-se reduções significativas: no Brasil (-5,42%), na Argentina (-32,80%), na

Venezuela (-98,47%), no México (-235,27%) e no Peru (-460,51%) (CEPAL, 2003).

O baixo crescimento econômico, juntamente com abertura comercial, as privatizações das

empresas estatais e a fragilização dos sindicatos, na América latina, implicaram diretamente e

indiretamente no aumento das taxas de desemprego e contribuíram para a desestruturação do

mercado de trabalho16

, com a substituição de ocupações mais estáveis e de melhor qualidade

por outras mais precárias. O que existe subjacente a este processo é a busca por parte das

empresas multinacionais, aqui implantadas, em aumentar a taxa de exploração do trabalho,

mais-valia relativa e absoluta, viabilizada pela flexibilização do mercado de trabalho na

América Latina.

Nesse contexto, de aumento do desemprego e queda da renda das famílias, em

justaposição com a piora dos serviços públicos sociais (saúde e educação, principalmente) que

vêm se configurando, no decurso dos últimos vintes anos, na América latina, conforma uma

contra-face de profunda deterioração social hodiernamente associada à prostituição, à

violência, ao tráfico e à corrupção que atinge praticamente todo os espaços urbanos e parte do

rural da América Latina, variando apenas em grau entre diferentes países (CANO, 2000).

Colômbia que lograram uma melhora dos índices de equidade social. No conjunto da América latina a herança

da desigualdade social e suas conseqüências continuam sendo levadas às futuras gerações. A pobreza e a

indigência da população urbana, entre 1994 e 1999, diminuiu de 32% e 12% para, respectivamente, 30% e 9%.

Embora se perceba uma pequena melhoria neste período, a pobreza ainda manteve-se muito acima dos níveis de 1980 (25% e 9%), enquanto a indigência urbana se manteve na mesma posição. Com a população rural, o quadro

é ainda pior: entre 1994 e 1999, a pobreza e a indigência caíram de 56% para 54% e de 34% para 31%,

respectivamente; em relação a 1990, ambas também pioraram (CEPAL, 2003). 16 A taxa de desemprego urbano aberto, em média ponderada, da América Latina, ao longo da década de 80, se

reduz de 6,1 a 5,8, entre 1980 e 1990 apesar de todo colapso das várias políticas macroeconômicas e da crise do

endividamento na região. No decorrer dos anos 90 a taxa de desemprego eleva-se, de 5,8 para 8,4, no cotejo

entre 1990 em 2001, confirmando que as políticas neoliberais tendem a acentuar o desemprego, seja pelo seu

aspecto estrutural, seja pela sua dimensão conjuntural. A maior era a da Argentina (passa de 2,6 em 1980 para

7,4 em 1990, e mais do que dobra, 17,4, em 2001); vale ressaltar que este foi o país que implementou de forma

mais intensa o ajuste; a do México, embora fosse uma das mais baixas (por problemas metodológicos), cai de 4,5

em 1980 para 2,7 em 1990, mantendo-se praticamente estável 2,5 em 2001; a taxa do Brasil, também apresenta

problemas metodológicos16, passa de 6,3 em 1980 para 4,3 em 1990, elevando-se para 6,2 em 2001. A queda do desemprego no México e a certa estabilidade do Brasil são explicadas em grande parte pela violenta precarização

e informalização dos seus mercados de trabalho, na medida em que se empregam cada vez mais pessoas sem

vinculo empregatício e com relações de trabalhos precários.

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V – Conclusão

Na análise aqui efetivada procuramos identificar as razões que conduziram à posição

degenerescente trilhada pela América Latina desde os anos 70 do século passado. E as razões

profundas explicativas dessa situação só podem ser descortinadas se procedermos a uma

análise totalizadora na qual a América Latina seja compreendida como parte inelutável do

sistema capitalista internacional. Dessa forma, podemos concluir que o quadro econômico e

social presenciado nos países latino-americanos, de forma quase homogênea, nada mais

significa do que a expressão das novas formas de valorização do capital.

Vale ressaltar que essa nova dinâmica está associada às transformações nas relações de

poder entre países centrais e periféricos. Quer dizer que os EUA, desde meados dos anos de

1980 tem procurado reforçar sua posição de centro hegemônico, o fizeram em bases político-

militares mais profundas e restritivas depois da derrocada da União Soviética e, mais

recentemente, após o atentado de 11 de setembro de 2001. Essa ação corresponde à imposição

de um dispositivo imperialista inerente ao enfrentamento da crise.

Assim, como parte deste processo, o envolvimento da América Latina na operação de

salvamento dos capitalismos centrais deu-se através da constituição de um endividamento ao

mesmo tempo crônico e estrutural. Ocorreu, então, o aprofundamento da integração da

América Latina através da retomada das “exportações de capitais” dos países centrais para os

países dependentes, as quais adquiriram duas formas, a saber, primeiramente, os empréstimos

externos e, depois, já no limiar dos anos 90, os movimentos de capitais especulativos e

voláteis.

A impossibilidade de desatrelar-se deste endividamento permanente foi cristalizada

mediante a aplicação de políticas de ajuste macroeconômico e de corte neoliberal emanadas

dos países centrais, medidas que garantiram a reprodução do endividamento como elemento

estrutural dessa nova dinâmica.

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