impresso no brasil · curso de direito constitucional / ana paula de barcellos. – rio de janeiro:...

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  • A EDITORA FORENSE se responsabiliza pelos vícios do produto no que concerne à suaedição(impressãoeapresentaçãoafimdepossibilitaraoconsumidorbemmanuseá-loelê-lo).Nemaeditoranemoautorassumemqualquerresponsabilidadeporeventuaisdanosouperdasapessoaoubens,decorrentesdousodapresenteobra.Todososdireitosreservados.NostermosdaLeiqueresguardaosdireitosautorais,éproibidaa reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico oumecânico,inclusiveatravésdeprocessosxerográficos,fotocópiaegravação,sempermissãoporescritodoautoredoeditor.

    ImpressonoBrasil–PrintedinBrazil

    ■DireitosexclusivosparaoBrasilnalínguaportuguesaCopyright©2018byEDITORAFORENSELTDA.UmaeditoraintegrantedoGEN|GrupoEditorialNacionalTravessadoOuvidor,11–Térreoe6ºandar–20040-040–RiodeJaneiro–RJTel.:(0XX21)3543-0770–Fax:(0XX21)[email protected]|www.grupogen.com.br

    ■O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer formautilizada poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão dadivulgação,semprejuízodaindenizaçãocabível(art.102daLein.9.610,de19.02.1998).Quemvender,expuseràvenda,ocultar,adquirir,distribuir, tiveremdepósitoouutilizarobraoufonogramareproduzidoscomfraude,comafinalidadedevender,obterganho,vantagem,proveito,lucrodiretoouindireto,parasiouparaoutrem,serásolidariamenteresponsávelcomo contrafator, nos termos dos artigos precedentes, respondendo como contrafatores oimportadoreodistribuidoremcasodereproduçãonoexterior(art.104daLein.9.610/98).

    ■Capa:DaniloOliveiraDaniloOliveira

    ■Produçãodigital:Ozone

    ■Fechamentodestaedição:01.03.2018

  • ■CIP–Brasil.Catalogaçãonafonte.SindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ.

    B218c

    Barcellos,AnaPaulade

    Cursodedireitoconstitucional/AnaPauladeBarcellos.–RiodeJaneiro:Forense,2018.Incluibibliografia

    ISBN978-85-309-8011-5

    1.Brasil.[Constituição(1988)].2.Direitoconstitucional–Brasil.I.Título.

    18-47923 CDU:342(81)

    AntonioRochaFreireMilhomens–Bibliotecário–CRB-7/5917

  • AGRADECIMENTOS

    Poder agradecer é, em si mesmo, uma benção divina: mais uma vez esempre. Este livro, diversamente de outros que já escrevi, corresponde a umprojetodesejadopormuitosanos,mascontinuamenteadiado.Por issomesmo,muitas pessoas, ao longo do tempo, contribuíram para ele de alguma forma.Ainda que eu já não seja capaz de recuperar essas várias contribuições, queroregistrarminhagratidão.

    Em primeiro lugar, agradeço aos meus alunos das várias turmas daFaculdade de Direito da UERJ que acompanhei até aqui: suas indagações,curiosidades, perplexidades, questionamentos e entusiasmo foram e são ocombustível que permitiu a elaboração deste curso. E não apenas isso, mastambém as muitas pesquisas realizadas por eles; especificamente, gostaria deagradecerameusmonitoresaolongodosanos,aLunaBarrosoeaJoãoGaldi,cuja ajuda foi particularmente importante para vários pontos deste trabalho.Quero reservar também uma palavra de gratidão especial a meus mestres eprofessoresnavida,eofaçonapessoaqueridadoProfessor(hojeMinistro)LuísRobertoBarroso. Este curso simplesmente não existiria se não fosse por tudoqueaprendicomeleequecontinuoaaprender.

    Agradeço também, e sempre, aosmeus pais, José e Alice, e aminha TiaMarcelina.ElessãomeusuporteemintercessãodiantedeDeus,juntocommeumarido, além de acreditarem todo o tempo, com incrível e assustadoratranquilidade,queeusereicapazdefazerpraticamentequalquercoisa.Aomeumarido Daniel, dirijo meu mais especial agradecimento do ponto de vistahumano:nãohácompanheirocomovocêe,seestamosjuntos, todaequalquercoisaficamelhor.Écomvocêquesemprequeroestar:obrigadaportudo.

    Omeuagradecimentofinal,emaisimportante,éaDeus.Emprimeirolugar,porElenosamar–acadaumdenós–etermandadoJesusparacumprirapenadevida pelos nossos pecados e, assim, nos oferecer perdão, reconciliação comDeus e salvação eternas.EporEle esperar compaciência que cadaumaceiteessaoferta,emboraEleabsolutamentenãoprecisedenósparanada:Eleapenasnos ama.Não temos categorias noDireito Constitucional para compreender amisericórdia e a graça de Deus. Em segundo lugar, sou grata a Deus porqueemboraarazãojácitadafossemaisdoquesuficienteparaumavidadegratidão,Ele temme cercadode bênçãos adicionais por todos os lados, por cima e porbaixo: tudovemdEleeaElesougrata.Nessecontexto,emterceiro lugar,sou

  • realmentegrataaDeuspelaoportunidadede ter escritoepublicadoeste livro.ComooapóstoloPaulo,naPrimeiraCartaaosCoríntios,Capítulo10,verso31,meudesejoéquetudooqueeufaçoouvenhaafazer–inclusiveescreverlivrosdeDireitoConstitucional!–sejaparaaglóriadeDeus.

    AnaPauladeBarcellos

  • SUMÁRIO

    Capítulo1–ConceitosPreliminares1.1Noçõesfundamentais

    1.1.1Normas,normajurídica,direitoedireitoconstitucional1.1.2Sistemasjurídicos:romano-germânico/civillawecommonlaw1.1.3Direitoedireitos

    1.2Constitucionalismo:umanota1.3Constituiçãoeclassificações1.4Direito,justiçaeconstituição1.5Direito,constituiçãoedemocracia1.6Enunciadonormativoenorma1.7Espéciesnormativas:princípioseregras1.8Direitopúblicoedireitoprivado1.9Normasjurídicasenormasconstitucionais:características1.10Eficáciajurídicaeaplicabilidade

    1.10.1Modalidadesdeeficáciajurídica1.10.1.1Modalidadedeeficáciajurídica:simétricaoupositiva1.10.1.2Modalidadedeeficáciajurídica:nulidade1.10.1.3Modalidadedeeficáciajurídica:ineficácia1.10.1.4Modalidadedeeficáciajurídica:anulabilidade1.10.1.5Modalidadedeeficáciajurídica:negativa1.10.1.6Modalidadedeeficáciajurídica:vedativadoretrocesso1.10.1.7Modalidadedeeficáciajurídica:penalidade1.10.1.8Modalidadedeeficáciajurídica:interpretativa

    1.10.2Eficáciajurídica,aplicabilidadedasnormasconstitucionaisealgumasclassificações

    1.11Efetividade1.12Interpretaçãoconstitucional

  • 1.13Direitoconstitucional

    Capítulo2–HistóriaConstitucionalBrasileira2.1Oimpério2.2Constituiçãode19342.3Constituiçãode19372.4Constituiçãode19462.5Constituiçãode1967/692.6Aconstituintede1987/88,antecedentesdaconstituiçãode1988eoscincoprimeirosanos

    Capítulo3–PoderConstituinte3.1Poderconstituinteoriginário3.2Poderconstituintederivadooureformador3.3Poderconstituintedecorrente

    Capítulo4–DireitoConstitucionalIntertemporal4.1Aconstituiçãonovaeaconstituiçãoanterior4.2Aconstituiçãonovaeaordeminfraconstitucionalanterior4.3Aconstituiçãonovaeasposiçõessubjetivasanteriores4.4Aconstituiçãode1988eadisciplinadodireitointertemporal4.5Asemendasconstitucionais,aconstituiçãoealegislaçãoinfraconstitucionalanterior

    Capítulo5–PrincípiosConstitucionaiseseusCorolários5.1República(art.1º,caput)5.2Democracia(art.1º,caput)5.3Estadodemocráticodedireito(art.1º,caput)5.4Dignidadehumana(art.1º,III)5.5Bem-estarsocial(art.3º,IV)5.6SoberaniaNacional(art.1º,Ieart.170,I)5.7Livre-iniciativa(art.1º,IV,eart.170,caput)5.8Valorizaçãodotrabalhohumano(art.1º,IVeart.170,caput)5.9Solidariedade(art.3º,I)5.10Legalidade(art.5º,II)5.11Isonomia(art.5º,caput,I)

  • 5.12DevidoProcessoLegaleseuscorolários.Limitesaodireitosancionador(arts.5º,LIIIALVIIEXLVAL)5.13RazoabilidadeeProporcionalidade(art.1º,caputeart.5º,LIV)5.14Segurança(art.5º,caput,XXXVI,XL,art.142,art.144,art.150,III,a)

    Capítulo6–DireitosFundamentais:Umabreveintrodução6.1Centralidadedapessoahumanaedeseusdireitos6.2Destinatáriosegarantiasdosdireitos6.3Interpretaçãoeeficáciadosdireitosfundamentais.Restriçõesaosdireitosfundamentais6.4Direitosfundamentais:brevíssimopanoramanaConstituiçãode1988

    6.4.1Direitosedeveresindividuaisecoletivos6.4.2Direitoànacionalidade6.4.3Direitospolíticos6.4.4Direitosdostrabalhadores6.4.5Direitossociais6.4.6Direitosdifusosecoletivos

    Capítulo7–OrganizaçãodoEstadoeaFederaçãobrasileira7.1Conceitospreliminares7.2União7.3Estados7.4DistritoFederal7.5Municípios7.6Territóriosfederais7.7Distribuiçãodecompetências

    7.7.1Critériosdedistribuiçãodecompetências7.7.2Bens7.7.3Competênciaspolítico-administrativas7.7.4Competênciaslegislativas7.7.5Competênciastributárias

    7.8JudiciárioeFederação7.9Ascompetênciaseminteração:algunsexemplos7.10ConflitosdecompetênciasnaFederaçãoecritériosdesolução

  • 7.10.1Poderesimplícitos,competênciasgeraiseespecíficasenacionaiselocais7.10.2ConflitopotencialentreEstadoeMunicípios:interesselocalxinteressecomum.Limitesdecadacompetência.Regiõesmetropolitanas

    7.11Intervençãofederal7.12Umanotafinal:ainterpretaçãodascompetênciasfederativasecontrolesocial

    Capítulo8–SeparaçãoeOrganizaçãodePoderes8.1Separaçãodepoderes:breveevoluçãohistóricaedopensamentopolítico8.2Sistemasdegoverno(presidencialismo,parlamentarismoesemipresidencialismo)econtroledopoderpolítico8.3Opresidencialismobrasileiro8.4Separaçãodepoderescomocláusulapétrea:umanota

    Capítulo9–OLegislativoBrasileiro9.1Poderlegislativo

    9.1.1CâmaradosDeputados9.1.2SenadoFederal9.1.3LegislativosdosEstados,DistritoFederaleMunicípios9.1.4Regimejurídicodosparlamentares

    9.1.4.1Prerrogativas9.1.4.2Vedações9.1.4.3Perdadomandato

    9.1.5PoderLegislativoesuascompetências9.1.5.1Competênciasnormativas

    9.1.5.1.1CompetênciasnormativascomparticipaçãodoExecutivo9.1.5.1.2CompetênciasnormativassemparticipaçãodoExecutivo(arts.49,51e52)

    9.1.5.2Competênciasdecontroleefiscalização9.1.5.3ComissõesParlamentaresdeInquérito

    9.2TribunaisdeContas9.3Processolegislativo

    9.3.1Iniciativa

  • 9.3.2Discussãoevotação9.3.3Sanção/Veto,promulgaçãoepublicação9.3.4Ocontrolejudicialdoprocessolegislativo

    9.4Espécieslegislativas9.4.1Emendasconstitucionais9.4.2LeisComplementareseleisordinárias9.4.3Leisdelegadas9.4.4Medidasprovisórias9.4.5DecretosLegislativoseResoluções

    Capítulo10–PoderExecutivo10.1Poderexecutivo:ingressoegarantias

    10.1.1Eleiçãoesucessão10.1.2Garantias

    10.2Poderexecutivo:perdadomandato.Ocasodoimpeachment10.3Competências

    10.3.1Introduçãoereservadeadministração10.3.2Competênciasnormativas10.3.3Competênciaspolítico-administrativas

    Capítulo11–AdministraçãoPública11.1Introdução:regimepúblicoeprivadoesuasrecíprocascomunicações11.2Princípioseregrasgeraisdaadministraçãopública

    11.2.1Princípiodalegalidadeadministrativa11.2.2Princípiodafinalidade11.2.3Princípiodamotivação11.2.4Princípiosdasegurançajurídicaedaboa-fé11.2.5Autotutelaecontrolesinternos11.2.6Princípiodaimpessoalidade

    11.2.6.1Licitações11.2.6.2Concursopúblico

    11.2.7Princípiodaproporcionalidade11.2.8Princípiodamoralidade11.2.9PrincípiodaPublicidade11.2.10Princípiodaeficiência

  • 11.3Agentespúblicos11.4Umanotasobreoregimejurídicodassociedadesdeeconomiamistaeempresaspúblicasexploradorasdeatividadeseconômicas11.5Umanotasobrearesponsabilidadecivildoestado

    Capítulo12–PoderJudiciário12.1FunçãojurisdicionalePoderJudiciário:introdução12.2OrganizaçãodoPoderJudiciário

    12.2.1ÓrgãosdoPoderJudiciárioedistribuiçãoconstitucionaldecompetências12.2.2JustiçaEstadual12.2.3JustiçasdaUnião12.2.4Justiçaeleitoral12.2.5JustiçadoTrabalho12.2.6JustiçaMilitar12.2.7JustiçaFederalcomum12.2.8SuperiorTribunaldeJustiça–STJ12.2.9SupremoTribunalFederal–STF

    12.3PrincípiosconstitucionaisdeorganizaçãodoPoderJudiciário12.4PrincípiosconstitucionaisdefuncionamentodoPoderJudiciário12.5FunçõesessenciaisàJustiça

    Capítulo13–OrdemEconômica,Tributação,OrçamentoeFinançasPúblicas

    13.1Ordemeconômica13.1.1Introdução:direitoconstitucionaleordemeconômica13.1.2AordemeconômicanaConstituiçãode1988

    13.1.2.1Fundamentosdaordemeconômica13.1.2.2Princípiossetoriaisdaordemeconômica(art.170)

    13.1.3Agenteseconômicoseseuspapéis13.1.3.1Agentesprivados13.1.3.2Agentesestrangeiros

    13.1.3.1.2Cooperativas13.1.3.1.3Terceirosetor

    13.1.4Estado

  • 13.1.4.1Modalidadesdeintervençãoestatalnaordemeconômica13.1.4.2Disciplina/regulação

    13.1.4.2.1Apolíticaurbana13.1.4.2.2Apolíticarural13.1.4.2.3Osistemafinanceiro

    13.1.4.3Fomento13.1.4.4Atuaçãodireta

    13.2Tributação13.2.1Introdução:direitosfundamentais,limitesepossibilidadesdoEstadoeFederação13.2.2Limitaçõesaopoderdetributar

    13.2.2.1Limitaçõesaopoderdetributar:proteçãodocontribuinte13.2.2.2Limitaçõesaopoderdetributar:promoçãodefinsconstitucionalmenterelevantes13.2.2.3Limitaçõesaopoderdetributar:federação

    13.2.3Competênciaslegislativasemmatériatributária13.2.4Espéciestributáriaserepartiçãofederativa

    13.2.4.1Impostoserepartiçãodasreceitastributárias13.2.4.2Taxas13.2.4.3Contribuiçõesdemelhoria13.2.4.4Empréstimoscompulsórios13.2.4.5Contribuições

    13.3Orçamentoefinançaspúblicas13.3.1Introdução

    13.3.1.1Orçamento,finançaspúblicasedireitosfundamentaisdasgeraçõespresentesefuturas13.3.1.2Orçamentoecontroledeconstitucionalidade

    13.3.2Sistemaconstitucionalorçamentário13.3.3Sistemaconstitucionaldasfinançaspúblicas

    Capítulo14–ControledeConstitucionalidade14.1Controledeconstitucionalidade:introduçãoebrevehistórico14.2Inconstitucionalidade:algumasclassificações

    14.2.1Inconstitucionalidadeformalematerial

  • 14.2.2Inconstitucionalidadeporaçãoeporomissão14.2.3Inconstitucionalidadeoriginária,supervenienteeprocessodeinconstitucionalização/inconstitucionalizaçãoprogressiva14.2.4Inconstitucionalidadediretaeindireta/reflexa14.2.5Constitucionalidadeemtese/emabstratoeinconstitucionalidadeemconcreto

    14.3Modelosclássicosdecontrolejudicialouquase-judicialdeconstitucionalidadeesuascaracterísticas14.4OsistemabrasileirodecontroledeconstitucionalidadepeloPoderJudiciário

    14.4.1Ocontroledifusoeincidental14.4.1.1Areservadeplenário:art.97eaSúm.Vinculantenº10doSTF14.4.1.2OSTF,orecursoextraordinárioeasúmulavinculante

    14.4.2Controledeconstitucionalidadeconcentrado14.5AçõesperanteoSTF

    14.5.1Açãodiretadeinconstitucionalidade(ADI)14.5.2Açãodeclaratóriadeconstitucionalidade(ADC)14.5.3Arguiçãodedescumprimentodepreceitofundamental(ADPF)14.5.4Açãodiretadeinconstitucionalidade(ADI)poromissão14.5.5Mandadodeinjunção(MI)14.5.6Representaçãointerventiva

    14.6ControleconcentradonoâmbitodosTribunaisdeJustiça14.7ControledeconstitucionalidadedeemendasàConstituição14.8Controledeconstitucionalidade:classificações(umesforçodidático)

    14.8.1Quantoànaturezadoórgãodecontrole14.8.2Quantoaosórgãosjudiciaiscompetentesparaocontrole14.8.3Quantoaomodocomoocontroleélevadoacabo14.8.4Quantoaomomentodocontrole14.8.5Quantoàobrigatoriedadedehavercontrole14.8.6Quantoàeficáciadadecisãodecontrole14.8.7Quantoaoobjetodasdecisõesdecontroledeconstitucionalidade

  • 14.8.8Quantoaosefeitosobjetivosdadecisãoquedeclaranormainconstitucional14.8.9Quantoaosefeitossubjetivosdadecisãoquedeclaranormainconstitucional14.8.10Quantoaosefeitosnotempodadecisãoquedeclaranormainconstitucional

    14.9Legitimidadedocontroledeconstitucionalidade14.10Controledeconstitucionalidadeeinterpretaçãoconstitucional

    Referências

  • Capítulo1CONCEITOSPRELIMINARES

    Sumário: 1.1 Noções fundamentais: 1.1.1 Normas, norma jurídica, direito edireito constitucional; 1.1.2 Sistemas jurídicos: romano-germânico/civillawecommonlaw;1.1.3Direitoedireitos–1.2Constitucionalismo:umanota–1.3Constituiçãoeclassificações–1.4Direito,justiçaeconstituição–1.5Direito,constituição e democracia – 1.6 Enunciado normativo e norma – 1.7 Espéciesnormativas: princípios e regras – 1.8 Direito público e direito privado – 1.9Normasjurídicasenormasconstitucionais:características–1.10Eficáciajurídicaeaplicabilidade:1.10.1Modalidadesdeeficáciajurídica;1.10.1.1Modalidadedeeficácia jurídica: simétrica ou positiva; 1.10.1.2Modalidade de eficácia jurídica:nulidade;1.10.1.3Modalidadedeeficáciajurídica:ineficácia;1.10.1.4Modalidadede eficácia jurídica: anulabilidade; 1.10.1.5 Modalidade de eficácia jurídica:negativa; 1.10.1.6 Modalidade de eficácia jurídica: vedativa do retrocesso;1.10.1.7 Modalidade de eficácia jurídica: penalidade; 1.10.1.8 Modalidade deeficácia jurídica: interpretativa – 1.10.2 Eficácia jurídica, aplicabilidade dasnormas constitucionais e algumas classificações – 1.11 Efetividade – 1.12Interpretaçãoconstitucional–1.13Direitoconstitucional.

    1.1NOÇÕESFUNDAMENTAIS

    Oestudododireitoconstitucionalpressupõeacompreensãodedeterminadasnoções fundamentais, que serão examinadas, de forma breve, na sequência.Essasnoçõesenvolvemotemadasnormasemgeral,edasnormasjurídicasemparticular, das relações entre Direito, Estado, Indivíduo e Sociedade, e asconexõesentreesseselementoseo fenômenoconstitucional.Cadaumadessasnoções se desdobra em múltiplas discussões: apenas algumas delas serãoabordadasaqui,edeformapropositalmentesimplificada.Inicie-sepelanoçãodeDireito.

    1.1.1Normas,normajurídica,direitoedireitoconstitucional

    Odireito,nosváriossentidosqueaexpressãopodeter,esobreosquaissetratará adiante, pode ser localizado como uma espécie inserida em um gêneromaisamplodasnormassociais.Ditodeoutromodo,normas jurídicas (direito)

  • são uma espécie de norma social.Normas sociais, por sua vez, são comandosdeontológicos,indicandoumdever-ser,padrõesdecondutaacumprirouevitar,padrões de conduta de alguma forma adotados pelo grupo social e cujaobservânciaseespera1.

    Nem todas as condutas socialmente esperadas das pessoas são normasjurídicas, isto é: nem todas as normas são direito. Cumprimentar amigos efamiliaresnodiadoaniversárioouemdatascomemorativas(nemquesejaviaFacebook) é uma norma social, mas não é uma norma jurídica. Seudescumprimento poderá ter consequências – ressentimentos, retaliações,rompimentosderelaçõesetc.–,masessasnãosãoconsideradasconsequênciasjurídicas:ninguémpoderáiraoJudiciárioexigircoisaalgumaporqueseumelhoramigoesqueceudoseuaniversárioouporqueosnetosesqueceramdeligarparaa avó no Natal. Isso não significa que as consequências que se seguem àviolação de tais normas não sejam relevantes: muitas vezes, elas serão maissignificativas para a vida do indivíduo do que qualquer condenação que oJudiciáriopossaimpor.

    Masoquesão,afinal,normasjurídicas?Porqueasnormasreferidasantesnãosãodireito?Oquedistinguenormasjurídicasdasdemaisnormassociais?Deformasimplificada,épossíveldizerqueserãonormasjurídicasaquelasàsquaiso Estado confere especial importância, associando ao seu descumprimentoalgumtipodeconsequência(frequentemente,umasanção)quepodeserimpostacoativamente por autoridades reconhecidas pelo Estado (em geral, pelo PoderJudiciário)2.

    As normas jurídicas podem ter diferentes origens quanto ao seu conteúdo.Por vezes, o Estado juridiciza ou torna jurídicas normas já existentes nasociedade,atribuindoaelasostatusdenormasjurídicas.Váriasdasnormasdedireitodefamília,ouasqueregulamasobrigaçõesnoâmbitodoscontratosmaissimples,ou, ainda,determinadasnormasdedireitopenal já eramconsideradasnormas sociaismuito antes de serem transformadas em normas jurídicas peloEstado.

    Em outras ocasiões, porém, o Estado cria normas de forma original eautônoma, isto é: sem relação com normas sociais anteriores. A criação doProgramaNacional deAcesso aoEnsinoTécnico eEmprego –Pronatec, pelaLei nº 12.513/11, por exemplo, não corresponde a uma norma social anterior,mas a um conjunto de normas originais, no sentido de normas criadasoriginalmentepeloEstado.

    Poisbem.Parte importantedasquestõescentraisdoDireitoConstitucionalenvolve justamente aprofundamentos desse ponto básico acerca das relaçõesentrenormasjurídicas,indivíduoseEstado.Asperguntasnasequênciailustramalgumas dessas questões. Há limites para a criação de normas jurídicas pelo

  • Estado?Sehá,quaissãoeles?Equem,noâmbitodoEstado,podecriarnormasjurídicas? No caso de um Estado federal como o Brasil, por exemplo, tantoUniãoquantoEstadoseMunicípiospodemcriarnormasjurídicas?E,noâmbitode cada unidade de poder político, quem pode criar normas jurídicas? Jáassumindo a tripartição de órgãos estatais adotada por boa parte dos Estados,quem pode criar normas jurídicas: o Executivo?O Legislativo?O Judiciário?E como as normas jurídicas devem ser elaboradas? Há limites para asconsequências ou sanções previstas para a hipótese de descumprimento dasnormas?Quempodeaplicaressasconsequências/sançõesecomo?

    As respostas a estas perguntas são dadas, sobretudo, pelo direitoconstitucional,eboapartedestecursoserádedicadaaelas.Antesdisso,porém,existe uma conexão anterior entre o que se expôs aqui acerca das normasjurídicas e o direito constitucional. É que o direito constitucional se ocupa deuma espécie particular de norma jurídica – as normas constitucionais – e,portanto, é formado por normas cujo descumprimento deve poder ser exigidocoativamente, via Poder Judiciário. A lógica das normas jurídicas descritaanteriormente–anormajurídicaéumcomandodeontológico(istoé:umdever-ser)acujodescumprimentoestáassociadaumaconsequênciaqueserá impostacoativamente, senecessáriopeloaparatoestatal–aplica-se tambémàsnormasconstitucionais.Duasobservaçõessãorelevantesaqui.

    Em primeiro lugar, é importante saber que a compreensão das normasconstitucionaiscomonormasjurídicaséumfenômenorelativamenterecentenoBrasil.Até aConstituição de 1988, as normas constitucionais – a despeito denominalmente serem normas jurídicas – eram consideradas, em sua grandemaioria, proclamações puramente políticas, dirigidas ao Executivo e aoLegislativo,quedeveriam levaremconsideraçãoseuconteúdonoexercíciodesuas competências.Não havia, nomais das vezes,meios ou possibilidades deexigir seu cumprimento. Esse quadro mudou substancialmente desde então, ehoje, entende-se de forma bastante consolidada que as normas constitucionaissão normas jurídicas no sentido exposto anteriormente, isto é: seudescumprimentodevegeraralgumtipodeconsequênciaquehaverádepoderserexigidade formacoativa,pormeiodoPoderJudiciário.Aopontose retornaráadiante.

    Asegundaobservaçãoéadeque,semprejuízodoqueseacabadeafirmaracercada“exigibilidadejudicial”dasnormasconstitucionais,issonãosignificaqueserásimplesassociarconsequênciasacadaumadelas,consequênciasessasque possam ser exigidas perante o Judiciário. O ponto será discutido adiante,inclusive com o exame de que espécies de consequência podem e devem serassociadasataisnormas:umexemplo,entretanto,ajudaacompreenderopontodesdelogo.

  • A Constituição de 1988, art. 1º, III, prevê como um dos fundamentos doEstado brasileiro a dignidade da pessoa humana. Pois bem: que condutas essanorma jurídico-constitucional impõe ou proíbe (ou permite)? Essa pergunta éfundamental para que se saiba quando a norma está sendo descumprida. E,diante de eventual descumprimento, qual a consequência associada? Essaperguntasedesdobraemoutras:qualoconteúdodessaconsequência,aquemeladeve ser imposta, e quem pode exigi-la judicialmente? As respostas a essasperguntas serão discutidas adiante: neste momento, o que se quer é apenasdestacarqueaquestãonãoésingela.

    Descritasdeformainicialanoçãodedireitoealgumasdesuasrelaçõescomas normas constitucionais e com o direito constitucional, cabe aprofundar umpoucomaisaquestão.

    1.1.2Sistemasjurídicos:romano-germânico/civillawecommonlaw

    Anarrativadotópicoanteriorapresentouasnormasjurídicascomoaquelas–jáexistentesanteriormentenasociedadecomonormassociaisounão–àsquaisoEstadoatribuiumstatusdiferenciado,associandoconsequênciasquepoderãoserexigidascoativamente.Essadescriçãoassumecomopremissaqueseestejano âmbito de um sistema jurídico romano-germânico,mas é importante saberqueessenãoéoúnicosistemaexistente.

    O sistema jurídico brasileiro é identificado com a tradição romano-germânica, na qual, de forma simples, a principal fonte do direito é a lei,elaboradapela autoridadecompetente:nocontextodeumEstadoDemocráticodeDireito,porórgãoseleitosdemocraticamente.Aoladodossistemasromano-germânicos, oriundos sobretudo daEuropa continental e incorporados por boapartedospaíseslatino-americanos,desenvolveu-setambémemoutraspartesdomundo um sistema jurídico diverso, denominado common law, originário datradiçãoinglesa.

    Ainda que de forma esquemática, é possível afirmar, acerca do sistemadacommonlaw,queneleodireitonãoépropriamentecriadoporumaautoridadecompetente,mastrazidoàtonaoureveladopelosTribunais,quesolucionamoscasosapartirdoqueseconsideracomoodireitopraticadopelacomunidade,achamadalawoftheland,enãodeumaleipositivaeditadapeloLegislativo.Osistemadacommonlaw prevê, adicionalmente, que uma vez que osTribunaisSuperiorestomemumadecisãofinalsobredeterminadasituação,ateseporelasdefinidaéconsideradaumprecedenteobrigatórioquedevesernecessariamenteobservadopelosdemaisórgãosdoPoderJudiciário.

  • Aclassificaçãodospaísesemfunçãodessesdoisgrandessistemascontinuaútil,masalgumasobservaçõesdevemserfeitasparaquesetenhaumapercepçãomais atual da questão. Em primeiro lugar, assim como países que adotamsistemas romano-germânicos exibem diferenças marcantes – como Brasil,Alemanha e França, por exemplo –, o mesmo se passa com paísestradicionalmentevinculadosàcommonlaw,comoEstadosUnidos, InglaterraeÁfrica do Sul. Além disso, já não existem sistemas puros. Países de tradiçãodacommonlawutilizamcadavezmaisleiselaboradaspeloLegislativoouatosnormativosdoExecutivopararegulardeterminadasmatérias;aomesmotempo,aimportânciadajurisprudênciatemcrescidomuitíssimonasúltimasdécadasnossistemasromano-germânicos,inclusivecomaintroduçãodefigurassimilaresadosprecedentes,eoBrasiléumexemplonotáveldessefenômeno.

    Duas diferenças centrais entre esses dois sistemas jurídicos envolvem, emprimeirolugar,opapeldoPoderJudiciárioe,emsegundo,osmecanismosquepromovemumadisciplinajurídicauniforme,capazdeassegurarquepessoasemsituaçõesequivalentes recebamomesmo tratamento jurídico,ouseja:queelassejam tratadasde forma isonômica.Nacommonlaw, as decisões dos tribunaissuperiores de cada jurisdição definem o direito na forma de precedentes quevinculamosdemaisórgãosjurisdicionais,eporessemeioadisciplinajurídicadedeterminadotemaéuniformizada.Essavinculaçãonãoésimplista:sempreháapossibilidadedeoprecedente vir a ser superadono futuropela corte superior.Alémdisso,múltiplas técnicas são utilizadas pelas cortes para identificar qualseriaoprecedenteaplicávelaocasoaserdecidido,dentrevárioseventualmenteexistentes,emesmoparaconcluirquenãoháprecedentealgumsobreamatéria,demodoqueojuizpoderádecidirlivremente.

    Já nos sistemas romano-germânicos, é a lei que, emprincípio, garante umtratamento isonômico a todas as pessoas, cabendo ao Judiciário interpretar eaplicar a lei. Em tese, diante de fatos similares, todos os órgãos judiciáriosinterpretariam e aplicariam a lei chegando a umamesma conclusão, demodoque a uniformização da disciplina decorreria naturalmente da lei. A verdade,porém,équea realidade, inclusivenormativa, tornou-semuitomais complexadoqueseimaginounopassado.

    Deumlado,asleissemultiplicaramenormementenasúltimasdécadaseemmuitoscamposse tornarammenosespecíficas,valendo-sedeprincípiosgerais.Deoutraparte,arealidadeécadavezmaiscomplexaemultifacetada,demodoque questões talvez imprevistas pelo Legislador podem se apresentar nomomentodainterpretaçãoeaplicaçãodasnormas.Alémdisso,associedades,edentro delas os juízes, são cada vez mais plurais, com diferentes visões demundo que, sem surpresa, consideram relevantes aspectos diferentes darealidade e atribuem sentidos diversos aos princípios gerais contidos nas

  • previsões legislativas. Não é difícil imaginar que boa-fé, função social docontrato, dignidade humana e liberdade, por exemplo, não são noções quesignificamamesmacoisaparatodasaspessoasemumasociedadepluralcomoacontemporânea3.

    A consequência desse quadro é que, cada vez com maior frequência, osórgãos judiciários nos sistemas romano-germânicos chegam a conclusõesdiversas, apesar de estarem tratando de fatos similares e aplicando o mesmosistema legislativo. Essa variedade de decisões, além de não assegurartratamento isonômico às pessoas, pode tornar difícil saber qual é, afinal, adisciplinajurídicadedeterminadotemanoPaísantesdeostribunaissuperioressemanifestaremsobreaquestão.Comolidarcomesseproblema?

    Diantedaslimitaçõesdaleiemgarantirumtratamentoisonômicoàspessoasnas sociedades contemporâneas, essa função, mesmo nos sistemas romano-germânicos, acaba por ser complementada, ou desempenhada, pelajurisprudênciadosórgãosdeúltimainstânciadoPoderJudiciário.Sãoelesque,afinal,vãodizeroquealegislaçãosignificanasdiferentescircunstâncias.Todoestudantedodireitodescobrirá rapidamenteque tão importantequanto saberoconteúdodaConstituiçãoedas leis seráconhecera interpretaçãoque lhedáajurisprudência dos Tribunais Superiores do País: Supremo Tribunal Federal,SuperiorTribunaldeJustiça,TribunalSuperiordoTrabalho,TribunalSuperiorEleitoraleSuperiorTribunalMilitar.

    Mais adiante se vai discutir quais os efeitos das decisões dessesTribunaisSuperiores,sobretudodoSupremoTribunalFederal,sobreosdemaisórgãosdoPoderJudiciáriobrasileiro.Porenquanto,bastaregistrarquenosúltimosanosseobserva uma crescente tendência – levada a cabo por meio de alterações daprópriaConstituiçãoepelaediçãode legislação tratandodo tema–deatribuirefeitos vinculantes ou quase vinculantes a tais decisões, particularmente, masnão exclusivamente, quando proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Aaproximação progressiva com a figura do precedente originária dos sistemasdecommonlawéevidente4.

    Feita a nota sobre os dois grandes sistemas jurídicos, suas distinções eaproximações, cabe prosseguir.Vale o registro de que os temas, a partir destemomento, serão novamente tratados sob a perspectiva do sistema jurídicobrasileiroque,comoseviu,continuaacaracterizar-secomoumsistemaromano-germânico, noqual, entretanto, a jurisprudência tem se tornado cadavezmaisimportante.

    1.1.3Direitoedireitos

  • Aexpressãodireitofoiutilizadanosparágrafosanteriorescomosinônimodenormas jurídicas. A verdade, porém, é que a palavra direito é utilizada paradesignarfenômenosvariados,eéimportante,aomenos,identificá-los.Emumaprimeira grande divisão, a expressãodireito pode ser utilizada em um sentidodescritivoouprescritivo/normativo.Autilizaçãonosentidodescritivodesignaasnormas jurídicas existentes sobre um assunto em determinado Estado. Épossível, claro,queumassunto sejaobjetodenormas jurídicasespecíficasemdeterminadoslugaresenãoemoutros.Assim,porexemplo,oBrasildisciplinaodireito à licença-maternidade (Constituição, art. 7º, XVIII), ao passo que emoutrospaísesafiguranãoexiste.

    Aindanocampodautilizaçãodaexpressãodireitoemumsentidodescritivo,háumaoutradistinçãopossível.Emrigor,osentidoeoalcancequeasnormasjurídicas previstas na Constituição e na legislação (mais especificamente, osenunciadosnormativoscontidosnessesdocumentos)realmentetêmdependedesuainteraçãocomosfatossobreosquaiselasirãoincidiredainterpretaçãoqueos intérpretes e aplicadores das normas lhes atribuam. Assim, é comum adistinção (especialmente em sistemas romano-germânicos) entre asexpressões direito positivo, designando, sobretudo, os textos legais escritos,edireitoobjetivo,queprocuradescreverosentidoeoalcancequeesses textostêm na dinâmica de sua aplicação. O conjunto de disposições que tratam dodireito de família, por exemplo, é o direito positivo,mas omodo como ele érealmente interpretado e aplicado pelos Tribunais descreve o direito objetivo.Umexemplopontualesclareceadistinção.

    AConstituição de 1988 prevê em seu art. 5º,LXIII, que o preso deve serinformadoarespeitoseusdireitos,entreosquais,odepermanecercalado.Poisbem.NosanosqueseseguiramàpromulgaçãodaConstituiçãode1988,tornou-se frequentequeComissõesParlamentaresde Inquérito (noâmbitodaCâmarados Deputados, do Senado Federal e do Congresso Nacional) convocassempessoas para depor e determinassem sua prisão por desacato na hipótese depreferiremnãoresponderadeterminadapergunta.

    AquestãofoiváriasvezeslevadaaoSupremoTribunalFederal,queconcluiuque o art. 5º, LXIII, da Constituição garantia também a esses indivíduosconvocadospelasCPIsodireito ao silêncio (embora,note-se, elesnão fossempresos nem acusados tecnicamente)5. Nesse cenário, não é incomum que aprevisãoconstantedotextoconstitucionalsejadescritacomoodireitoobjetivo,aopassoqueosentidoatribuídoaelasejaidentificadocomoodireitoobjetivo.Essa distinção também é refletida pelo uso diferenciado dasexpressõesenunciadonormativoenorma,comoseveránotópicoseguinte.Mashá,ainda,outrasutilizaçõesdaexpressãodireitoquemerecemregistro.

    Na fronteira entre os planos descritivo e prescritivo, a expressão direito é

  • utilizada,também,paraidentificaroutrafacedomesmofenômeno,comumentedenominadodireitosubjetivo: a pretensão de alguém que, invocando o direitopositivoouobjetivo,sustentafazerjusaalgumtipodeproteçãooudireitoasertutelado pelo Estado. Trata-se, na realidade, do impacto, na esfera individual,daquilo que o direito positivo ou objetivo preveem: uma vez que o direitopositivoouobjetivoasseguremdeterminadodireitoeassociemàviolaçãodeledeterminada consequência, a incidência dessa previsão na vida real de umindivíduo lhe atribui a possibilidade de exigir do aparato estatal que a talconsequênciaseja,afinal,observada.

    Assim,mantendo-seoexemploanterior, imagine-seaprimeiravezemqueumaCPIdeterminouaprisãodealguémquehaviasidoconvocadoparadeporporhaverficadoemsilêncio.Tudoquehaviaatéaquelemomentoeraodireitopositivo: o textodaConstituição.Nadaobstante, o indivíduoquestionouo atoperanteoSTF,alegandoqueodispositivoconstitucionalreferidolheassegurariatambémodireitoaosilêncio–quenãopoderiaserqualificadocomocrimepelaCPI–,demodoquesuaprisão,nocaso,era inválida.Tratava-se,comoéfácilperceber, de uma interpretação a partir do texto, que foi, afinal, acolhida peloSTF: a Corte reconheceu que de fato o indivíduo era titular de um direitosubjetivoaosilêncio,nocaso,edeterminouqueelefossesolto,jáqueaprisãodeterminadapelaCPIerainválida.

    Note-se que o direito subjetivo se encontra, com alguma frequência, nafronteira entre uma dimensão descritiva e outra prescritiva/normativa, comoantes referido.E isso porque, por vezes, a pretensão apresentada ao Judiciáriocomoumdireitosubjetivonãodecorredeformaimediatadaliteralidadedotextonormativo e nem está já consolidada na jurisprudência, formando o direitopositivo. Eventualmente, ela poderá ser rejeitada pelo Judiciário; em outrasoportunidades, porém, ela poderá ser acolhida e atribuir um novo sentido aodireitoobjetivo,apartirdainterpretaçãododireitopositivo.Opontoquesequerdestacaraquiéque,paraalémdaelaboraçãoformaldasleiseatosnormativos,há um elemento dinâmico na construção do direito objetivo e dos direitossubjetivosporcontadainterpretaçãoeaplicaçãodosenunciadosnormativosàsmais diferentes circunstâncias que se apresentem. A esse ponto se voltaráadiante.

    Um último sentido no qual a expressão direito é utilizada é puramenteprescritivo ou normativo. Até aqui, as referências feitas a normas, sejam anormas jurídicas em particular ou ao direito de forma mais ampla, não seocuparam, em qualquer medida, de qual o conteúdo dessas normas. Nadaobstante, o debate acerca do conteúdo das normas jurídicas é da maiorimportância.Podeodireitoveicularqualquerespéciedeconteúdo?E,seofizer,ainda assim será considerado direito? Uma norma – editada por quem se

  • considereautoridadecompetente–queconsagre a escravidãodedeterminadosgruposhumanospoderáaindaserdescritacomodireito?

    Comoéfácilperceber,aexpressãodireitonocontextoapresentadopretendecomunicarmuitomaisdoqueapenasadescrição feitaatéagora, a saber:umanormajurídica,assimcompreendidacomoasnormasàsquaisoEstadoassociaconsequênciasquepodemserexigidasdeformacoativasenecessário,pormeiodo recurso ao aparato estatal. A expressão, agora, indicadeterminada qualidade do conteúdo das normas jurídicas, qualidade essavinculada às ideias de justiça e de moralidade. Nesse sentido, para que sereconheça algo como direito, não basta esse conceito formal. Exigem-se,também, determinadas qualidades mínimas de justiça e moralidade quanto aoseuconteúdo.Nãoéocasodediscorreraquisobreotemadeformadetalhada,mas alguns registros, mesmo que breves, serão úteis para a compreensão detemasextremamentecentraisparaodireitoconstitucionalcontemporâneo.

    Esse sentido da expressão direito está subjacente às discussões milenaresacercadalegitimidadeedajustiçadasnormasjurídicasemgeral6,deumlado,eda possibilidade de o indivíduo resistir e/ou desobedecer à lei (no sentido denormajurídicaoudireitoreconhecido)ilegítimaouinjusta7.Aprimeiraquestãotratadadistinçãoentrelegalidadeelegitimidade–istoé:nemtudoqueélegalé,porisso,justo–edacomplexaquestãofilosóficaqueédefinirqueparâmetrosdevemseradotadosparaapuraroudefiniralegitimidadeeajustiçadasnormas.Assim, por exemplo, será legítima/justa toda e qualquer norma, uma vezobservado determinado procedimento para sua elaboração? Ou a legitimidadedecorrerá de um exame do conteúdo da norma?Mas, nesse último caso, quecritérios de avaliação do conteúdo das normas devem ser utilizados e,igualmente importante, quem pode defini-los? Como se verá, boa parte dosEstadoscontemporâneostentoulidarcomessasquestõespormeiodaadoçãodeConstituições que estabelecem limites à elaboração das normas: limites essesqueenvolvemtantoseuconteúdoquantoseuprocessodeelaboração.

    O segundo aspecto da discussão envolve as possibilidades de reação dosindivíduos diante da chamada lei injusta. Embora os Estados, em geral, nãoreconheçam os direitos de resistência e de desobediência civil, o que parecenatural,otemaétradicionalmentediscutidonodireitointernacional,nafilosofiaenaciênciapolítica.Comotambémsevaiobservarnasequência,ocontroledeconstitucionalidadedas leis acaboupor absorver, nadinâmicada relação entreEstadoeindivíduo,essestemas,emmuitoslugaresdomundo:umavezqueasConstituições passaram a incorporar normas que exigem padrões de justiça erazoabilidadeda ação estatal comoum todo, o controle de constitucionalidadedos atos do Poder Público acaba por institucionalizar a possibilidade deresistênciaaodireitoinjusto.Masoqueé,afinal,umaConstituição?Édoquese

  • passaatrataragora.

    1.2CONSTITUCIONALISMO:UMANOTA

    No século XXI, é comum que a expressão Constituição invoqueimediatamente a ideia de um documento escrito que se ocupa de prever egarantir direitos aos indivíduos e organizar oEstado, elaborado pelo chamadopoderconstituinte, emmomentosextraordináriosdavidadeumasociedade.Anoçãodequeasnormasprevistasnessedocumentosãosuperioresàsdemaisé,hoje,amplamentecompartilhadaemvárioslugaresdomundo.

    Narealidade,apercepção–moral,religiosaoufilosóficadeformaampla–dequeexistemnormassuperioresaoutras,quedevemestabelecerlimitesàaçãodos governantes – essência do conteúdo original do constitucionalismo – éantiga e remonta, nomínimo, aos registros bíblicos doAntigoTestamento e àGréciaantiga.Alegislaçãomosaicaeraconsideradasuperioraeventuaisnormasexpedidas pelos monarcas ou chefes tribais do momento, ainda que o únicomecanismo de controle disponível fosse, em geral, as pregações dos profetascontraacondutailícitadoslíderes.

    TambémnaGréciaAntigajáhaviaaideiadequedeterminadasnormaserammais importantes e superiores (em geral, por razões religiosas) do que asdecisões contingentes dos líderes. A história de Antígona ilustra o ponto:Antígona descumpre a ordem real que proíbe que seu irmão seja enterrado etenha as honras fúnebres próprias para observar uma norma que considerasuperior e que impõe o respeito aosmortos.A rigor, séculos depois, todas asrevoluções liberais partiam da premissa de direitos inatos, naturais, seja porrazões religiosas ou por fundamentos racionais, anteriores à ordem vigente esuperioresaela.

    Essa percepçãode que há normas que, por seu conteúdo, são superiores aoutras e, particularmente, à vontade do governante está por trás da ideia deConstituiçãoedoconstitucionalismoquevaisedesenvolverapartirdemeadosdaIdadeMédia,comosdocumentos(cartas,forais,pactos)celebradosentrereise grupos de nobres, estabelecendo limites à atuaçãodosmonarcas, e culminarnasrevoluçõesliberaisdosséculosseguintes,comaelaboraçãodeConstituiçõespropriamenteditas.

    AMagnaCarta,firmadaentreoReiJoãoebarõesinglesesem1215,éumexemplodessefenômeno.Provavelmente,acláusulamaisconhecidadaMagnaCarta é a que dispõe que “Nenhum homem livre será preso, aprisionado ouprivadodeumapropriedade,ou tornadoforada lei,ouexilado,oudemaneiraalgumadestruído,nemagiremoscontraeleoumandaremosalguémcontraele,anãoserporjulgamentolegaldosseuspares,oupelaleidaterra”.Nadaobstante,

  • talvezmais importantepara a época tenha sidooutraprevisão,queorganizavaum comitê de 25 barões com poderes para reformar qualquer decisão real, achamada “cláusula de segurança” (Cláusula 61).Vale registrar que oRei Joãorepudiou o documento logo que os barões deixaram Londres, desencadeandouma guerra civil no país. Com a morte do Rei, porém, a Magna Carta foiconfirmadaporseufilhoereafirmadasucessivamenteem1217e1225.

    A Magna Carta não é, naturalmente, o único exemplo dessa espécie dedocumentoouacordo.Emmuitosmomentos,aolongodoperíodo,negociaçõessimilarestiveramlugarnaEuropaentremonarcaseanobrezadaregião.Temasimportantes nessa disputa envolviam, além de garantias de liberdade, anecessidadedeacordoemtornodedecisõescomoaumentodetributoseguerras.

    É interessante observar que, tradicionalmente, esses limites impostos àmonarquiaserelacionavamcomasuperioridadeontológicadeseuconteúdo,porrazõesmorais,religiosasoutradicionais:porexemplo,aexigênciaderespeitoagarantias básicas do devido processo legal para que alguém fosse condenado.Simultaneamente, porém, apresenta-se também a necessidade de que o reisubmetesse determinadas decisões à deliberação prévia de um colegiado ou apossibilidade,comonaMagnaCarta,deumcolegiadoreformardecisõesreais,que no mais das vezes contava, igualmente, com razões históricas. Assim,emboraocritériomaterialsejafundamentaldopontodevistahistórico,ouseja:determinadas normas sejam superiores por sua importância e valor intrínseco,aospoucos,os critérios formais (a saber:quemdecideouquem temapalavrafinal em determinado assunto) vão também ganhando certa relevância einfluenciandoopercursodoconstitucionalismo.

    Sem prejuízo desses antecedentes históricos, considera-se como onascimentodoconstitucionalismomodernooperíododaschamadasrevoluçõesliberais,quetêmseumarcoinicialcomaRevoluçãoGloriosainglesade1688,porforçadaqualseimpuseramlimitespermanentesàmonarquia,seconsolidouoparlamentarismonaInglaterraeseasseguraramgarantiasaosparlamentareseproteçãoadireitos individuaispormeiodaBillofRights.Na tradição inglesa,vale lembrar, é o parlamento o principal agente de controle contra abusos damonarquiaeodefensordosdireitosindividuais,enãooJudiciário.

    Arevoluçãonorte-americana,narealidadeummovimentodeindependência,consolidou-sepelaelaboraçãodeumaConstituiçãoem1787que,diferentementedoquesepassounaInglaterra,rejeitouamonarquia,criandoumarepúblicaporforça da qual, como se sabe, os governantes são eleitos para mandatos porperíodos determinados e, diferentemente da monarquia, têm responsabilidadepolíticaporseusatos.Alémdisso,noesforçodelimitaropoderpolíticoedar-lhemaiseficiência,adotou-seumaseparaçãorígidadepoderessobaformadopresidencialismo pela primeira vez. E, por fim, como se sabe, organizou-se

  • tambémdeformaoriginalumEstadofederal.Em1791 foramaprovadasasprimeirasdezemendasàConstituiçãonorte-

    americana, identificadas como Bill of Rights, prevendo uma série de direitosindividuais clássicos. Também diferentemente do modelo inglês, a novaConstituiçãoelaboradaseriadotadadesuperioridadehierárquicaeem1803,nocasoMarburyvs.Madison,aSupremaCorteafirmariaoPoderdoJudiciáriodelevaracaboocontroledeconstitucionalidadedeleiseatosdoPoderPúblico.

    Apesardaprecedência inglesaenorte-americana,aRevoluçãoFrancesade1789acabousetransformandonosímbolomáximodasrevoluçõesliberaisedoconstitucionalismo em seu esforço de extinguir o absolutismo e garantir,sobretudo, a primazia da legalidade e da igualdade formal (a despeito doconhecido lema incluir tambéma fraternidade).Diferentementeda experiêncianorte-americana, a França, embora tenha tido um curto período republicano,adotouomodelodasmonarquiasconstitucionais,emversõesdiversas,pormeiode várias Constituições, isto é:monarquias limitadas pela Constituição e peloparlamento.Naconcepçãofrancesa,ecomosediscutiunapartesobrecontrolede constitucionalidade, não cabia ao Judiciário um papel específico nessecontrole, sendo vedada inclusive a possibilidade de juízes declararem ainvalidadedeleis.

    Documento fundamental da história constitucional francesa e doconstitucionalismoemgeraléaDeclaraçãodeDireitosdoHomemedoCidadãode1789,consideradaatéhojeparteintegrantedoblocodeconstitucionalidadenaFrança.AlémdegarantirosdireitoseliberdadesclássicosemfacedoEstado,aDeclaração faz algumas assertivas que se tornaram tradicionais para oconstitucionalismo. O art. 3º prevê “O princípio de toda a soberania reside,essencialmente,nanação.Nenhumaoperação,nenhum indivíduopodeexercerautoridadequedelanãoemaneexpressamente”.Areferênciaéàideiadopoderconstituinteoriginárioque,àquelaaltura,foiidentificadocomanação.

    Emborao entendimentodemocráticohoje seja o dequeo titular dopoderconstituinte originário é o povo, e não uma ideia difusa de nação, a distinçãoentre poder constituinte e poder constituído é registrada de forma clara nessedispositivo. Essa noção é complementada pelos arts. 12 e 15, que dispõem,respectivamente:“Agarantiadosdireitosdohomemedocidadãonecessitadeumaforçapública.Estaforçaé,pois,instituídaparafruiçãoportodos,enãoparautilidadeparticulardaquelesaqueméconfiada”e“Asociedadetemodireitodepedircontasatodoagentepúblicopelasuaadministração”.

    Tambémoart.16tornou-sebastantetradicionalaoprever:“AsociedadeemquenãoestejaasseguradaagarantiadosdireitosnemestabelecidaaseparaçãodospoderesnãotemConstituição”.Trata-sedaidentificaçãodosconteúdosquese consideram materialmente constitucionais e dos propósitos centrais da

  • Constituição:organizarelimitaraaçãoestataltantopelaprevisãodaseparaçãodosPoderesquantoporforçadagarantiadedireitos.Aolongodotempo,outrospropósitos foram sendo agregados ao texto constitucional, sem,porém,queosprimeirostenhamperdidosuacentralidade.

    AolongodoséculoXIX,novosmovimentosderevoluçõesliberaistiveramlugar na Europa, em geral agrupados, para fins didáticos, em três grandesmomentos:1820,1830e1848.EmPortugal,achamadaRevoluçãoLiberaldoPorto, em 1820, teve repercussões importantes para o Brasil. Em todos essesmovimentos,aadoçãodeConstituiçõesfoiumdosmecanismosutilizadosparapromoveralimitaçãodopoderdasmonarquiaseagarantiadedireitos.

    Osmovimentos socialistasecomunistasdo fimdoséculoXIXe iníciodoséculoXX,apesardacríticaaodireitocomoelementodedominaçãointegrantedasuperestrutura,nãodeixaram,porisso,devaler-sedeConstituições.Éapartirdessemomento,inclusive,quedireitostrabalhistasesociaissãoincorporadosemdiversas Constituições – como a Constituição Mexicana de 1917 e aConstituiçãodeWeimarde1919–,assimcomodisposiçõessobrearegulaçãodaordemeconômicaedaordemsocial.MesmoosEstadosqueadotaramsistemasintegralmente socialistas ou comunistas editaram também suas Constituições,refletindonelas,emalgumamedida,essaopçãoideológica.

    O constitucionalismo prosseguiu em suas experiências ao longo do séculoXX, particularmente no contexto dos movimentos de descolonização noscontinentesafricanoeasiático:ospaísesagoraindependentesprocuramelaborarConstituiçõespararefundaroEstadoquepretendemorganizar.Namesmalinha,ospaísesdoLesteEuropeu,apósofimdaUniãoSoviética,procuraramrecriarseus Estados por meio de Constituições. O mesmo foi feito por países quedeixavampara trásperíodosdeditadura,comoaconteceunaAméricaLatinaenaPenínsulaIbérica.

    A adoção de Constituições têm sido, ao longo dos últimos séculos, umapráticaamplamenteadotadaenaqualospovosdepositamgrandesesperanças.Feitoessebreve registro sobreoconstitucionalismo,cabeagoraexaminaressedocumento,afinal,eseussentidosepossibilidades:aConstituição.

    1.3CONSTITUIÇÃOECLASSIFICAÇÕES

    Oqueé,afinal,umaConstituição?Comoqualquerfenômeno,eaindamaishumano, é possível observá-la sob múltiplas perspectivas e seu conjunto. Ascríticas que lhe são mais comumente dirigidas fornecem uma melhorcompreensãodoqueéaConstituição.

    Uma primeira perspectiva, com a qual os operadores do Direito estãonaturalmente familiarizados, é a perspectiva jurídica pura. A Constituição é,

  • assim, uma norma jurídica e, para amaior parte dos sistemas, norma jurídicadotadadesuperioridadehierárquicaemrelaçãoàsdemais.ParaHansKelsen,aConstituição define quem elabora as normas e como elas vão ser elaboradas,constituindo,assim,opontodepartidaedevalidadedetodoosistemajurídico.Comoseveráadiante,aolongodotempoosignificadodeser“normajurídica”eas consequências dessa premissa em relação à Constituição variaramconsideravelmente.

    UmacríticaàconcepçãojurídicadaConstituiçãoésuanaturezapuramenteformal, sobretudo na concepção de Kelsen, muitas vezes identificada comopositivismojurídico.AoafirmarqueaConstituiçãoéanormasuperiorquecriaas normas e define como elas podem ser elaboradas do ponto de vistaprocedimental–porexemplo:asespécieslegislativasesuascompetências,bemcomoo processo legislativo –, o conceito nada diz acerca do conteúdo dessasnormas,nemlhesimpõequalquerlimiteemparticular.Assim,porexemplo,umanormaelaboradapela autoridade competente ede acordocomoprocedimentoprevistoconstitucionalmentepoderia,arigor,terqualquerconteúdo,inclusiveosmaisbárbarospossíveis,comoahistóriacomprovou.

    O fim da SegundaGuerraMundial apresentou à humanidade um prato dedifícil digestão: a banalidade e a proximidade domal8, cuja ingestãoproduziuefeitos variados nas diferentes áreas do conhecimento humano.No direito emgeral,enoconstitucionalemparticular,esseseventosrepresentaramoápicedoprocessodesuperaçãodopositivismojurídico,quehaviasetornadodominantenasprimeirasdécadasdoséculo,eoretornoàideiadevalores9.OreflexomaisvisíveldessesefeitosnasConstituições,novasoureformadas,foia introdução,nostextos,decláusulasjuridicamenteobrigatóriasparatodaequalquermaioriadeplantão, veiculandode forma expressa a decisãopolítica do constituinte (i)por determinados valores fundamentais orientadores da organização política e(ii),emmaioroumenorextensão,porcertoslimites,formaseobjetivosdirigidosà atuaçãopolítica do novoEstado, coma finalidade de promover a realizaçãodessesvalores.

    Nocontextodacríticaaessaconcepçãopositivista,umasegundaperspectivaacerca da Constituição se apresenta, de natureza filosófica ou material, queidentificacomoConstituiçãodeterminadosconteúdosespecíficos,consideradosvaliosos.Istoé:paraalémdocaráterpuramenteformaldotextoconstitucional,essa concepção sustenta que, para que se possa falar de Constituição, éindispensávelqueestejapresenteumconteúdoético-moralmínimo.Nessecaso,fala-se de três elementos mínimos constitucionais: direitos fundamentais,separação de Poderes e organização/limitação do exercício do poder político.Istoé:sealgoquesedenominaConstituiçãonãotemessesconteúdos,seráoutracoisa,masnãoConstituição.

  • É possível cogitar uma crítica a esse conceito filosófico/material daConstituição considerando os contornos específicos de cada um desses trêselementos,porexemplo,eadificuldadedeseestabelecerconsensoacercadeles,sobretudo em sociedades plurais como as contemporâneas.Assim, afirmar emtese que a garantia de direitos fundamentais e a separação de Poderes sãoconteúdos constitucionais mínimos e obrigatórios pode não encontrar maioroposição no ocidente, por exemplo,mas nomomento de detalhar que direitosespecíficos e que modelo de separação de Poderes serão definidos, asdivergênciasnaturalmentesurgirão.

    Outras perspectivas terão uma visão bastante crítica, tanto da concepçãojurídica, quanto da concepção filosófico/material da Constituição, a partir deuma perspectiva sociológica e, portanto, descritiva. A primeira delas vaiponderar que a Constituição, documento escrito, é, na realidade, apenas umafolhadepapel(aexpressãoédeFerdinandLassalle,umativistaeteóricoalemãodo séculoXIX, em seu livroO que é a Constituição?). As relações de poderreaisexistentesnasociedadeéquedefinem,arigor,oquedefatoaconteceounão–quedireitossãogarantidosecomoopoderéexercido–,demodoqueaConstituição-documento,senãoéinformadaporessarealidadeounãoareflete,será apenas uma folha de papel semeficácia na prática.Ou seja: haveria aquiuma distinção entre uma espécie de Constituição real – as relações de poderexistentes que determinam o que efetivamente acontece – e a Constituição-documento,folhadepapel.

    Alguns exemplos ilustram a distinção que essa perspectiva traz à tona.Várias Constituições pelo mundo afora – inclusive a brasileira de 1824 –garantiamaigualdade,masconviviamcomaescravidão;garantiamaliberdadedeexpressão,masa censura era rotineira; asseguravamuma sériedegarantiaspenaisede integridade física,aomesmo tempoemquea torturaerapraticadacomo rotina. A desconexão entre a Constituição real e o documento aparecebastante evidente nesses casos. Essa concepção sociológica, independente daadesãoaela,pontuaumacrítica importanteacercada idealizaçãoem tornodaConstituição,comoseelafosseuminstrumentoque,porsuasimplesexistência,poderiatudoeseriacapazdetransformarmagicamenteasrelaçõesexistentesnasociedade.

    OutraperspectivaacercadaConstituição, tambémdenatureza sociológica,podeseridentificadacomoumaconcepçãopredominantementepolítica.OautormaiscomumenteidentificadocomessavisãoéCarlSchmitt(1888-1985).Paraessaperspectiva,asubstânciadaConstituiçãonãosãoasnormasconstantesdeumdocumento,masasdecisõespolíticas tomadaspelogovernodospaísesemcadamomentohistórico.Nessesentido,aConstituiçãoseriatambémumpedaçodepapelque,casonãofossecompatívelcomasaspiraçõesdopoderpolíticoe

  • dogrupoquecontroleopoder,seriaalteradaporele.AConstituição,portanto,seriaumdadoessencialmentepolítico:quemestá

    no poder é que tomará as decisões acerca do que é a Constituição realmente.Nessesentido,aConstituiçãonãoéaquiloqueestánopapel:elaéumconjuntodas decisões do poder político tomadas no presente, e não no passado.Vale oregistro de que Carl Schmitt enfatizava o papel do Poder Executivo nessecontextoenadecisãodosconflitospolíticosexistentes,emoposiçãoàvisãodeHans Kelsen, que propunha que deveria caber a um outro órgão – a CorteConstitucional–asoluçãodessastensões.

    Cadaumadessas concepçõesdeve ser compreendidanocontextohistóricoemqueseusautoresadesenvolveram,pornatural,maselasdestacamaspectosda realidade que continuam importantes. Lassalle, como referido, viveu nafrustração do pós-revoluções liberais, período em que as grandes promessasrevolucionáriassemostraramfrustradasparaboapartedapopulaçãoeascríticasmarxistasaodireitoproliferavam.AvisãodeCarlSchmittseinserenoperíodode certo caos social sob a Constituição de Weimar na Alemanha e decrescimento do nazismo. Ambos apontam, de todo modo, para os limites daConstituiçãonasuacapacidadedetransformarasrealidadessociaiselidarcommomentosdecrisepolítica.

    Outra concepção da Constituição que vale mencionar, por fim, foi adefendidaporoutrojuristaalemão,KonradHesse,quefoi,de1975a1987,juizdo Tribunal Constitucional Alemão. Em famoso texto, cujo título é A forçanormativa da Constituição, Hesse incorpora as críticas sociológicas antesmencionadas e reconhece os limites da Constituição, destacando que, nadaobstante,ela temtambémpotencialidadesdepromover transformações.Assim,embora de fato haja um condicionamento recíproco entre a realidade e aConstituição,estatemalgumacapacidadedeproduzirefeitosealteraromundoreal. Trata-se, portanto, de uma concepção normativa, mas que incorpora acomplexidade das relações nas quais a Constituição está inevitavelmenteinserida.

    Atéporque,eesseéumpontoimportante,umanormasempredescreveumdever ser, além de atuar no campo da liberdade humana. Se jamais um serhumanohouvessematadooutro,provavelmenteanormaquevedaohomicídionãoserianecessária.Namesmalinha,nãohánecessidadedenormaparapreveraquilo que não pode ser diferente do que é. A Constituição, portanto, nãodescrevearealidadecomoé,mascomoeladeveser.Averdade,porém,équeosimples texto daConstituição não é capaz, por si, de alterar a realidade: umasérie de outros atos e decisões terão de ser tomados para esse fim. Por outrolado,existeumlimitemáximoentreessedeversereoserque,seultrapassado,podetransformaraConstituiçãoemumapeçasemcapacidadedesecomunicar

  • com o mundo real. Algumas classificações das Constituições, discutidas nasequência,vãotentarcaptaressasdistinções.

    As diferentes concepções acerca da Constituição mencionadasanteriormente, às vezes de forma um tanto radical e unilateral, procuram darênfase a um aspecto da realidade constitucional: cada autor olha o mundo edestacaoque,emsuaprópriavisão,émaisimportante.Aconcepçãoquedestacaa força normativa da Constituição tem sido amplamente adotada no ambientejurídico brasileiro nas últimas décadas, mas isso não significa que as outrasvisõesnãosejamúteis,justamenteporenfatizaraspectosrelevantesdasrelaçõesque a Constituição trava, necessariamente, com múltiplos contextos que aenvolvemequenãodevemserignorados.

    Apresentadas algumas das principais concepções acerca da Constituição,cabeagorasistematizarasclassificaçõesmaiscomumenteutilizadasacercadasConstituições.Cadaumadelasadotaparâmetrosdiferentesdeclassificação,demodoque serão apresentadas emuma sequência embora tenhamentre si certaautonomia.

    AprimeiraclassificaçãoépropostaporKarlLowensteineprocuradescreverasConstituiçõesemfunçãodesuarelaçãonormativacomarealidade.Paraisso,o autor identifica três grandes categorias: as Constituições normativas,semânticas ou nominais. Antes de expor essa classificação, porém, éfundamentalaprofundaranoçãodeConstituiçãocomonorma,nalinhadoqueseanunciouanteriormente.

    Nos primeiros tópicos deste capítulo discutiu-se brevemente a noção denormajurídicaesuavinculação,deformasimples,comaideiadesançãooudealgum tipo de consequência capaz de garantir o que seus comandos preveem,casoodestinatáriododeverdescritonanormanãooobservevoluntariamente.Ao longo dos séculos XVIII, XIX e de boa parte do século XX, porém, aafirmaçãodeque aConstituição eraumanorma jurídicanão atraía a assertivaqueseacabadefazeracercadasnormasjurídicasemgeral.AConstituiçãoatépoderia ser descrita comoumanorma,mas não funcionava comoumanorma:comrarasexceções–comonocasodohabeascorpusquetutelavaaviolaçãoàliberdadedeirevir–nãohaviaqualquermeiocapazdeimporaobservânciadasnormas constitucionais caso descumpridas por seus destinatários, que eram,inicialmente,apenasopróprioEstado,emparticularoLegislativoeoExecutivo.

    Essaquestãoserádiscutidacommaisdetalhesadiante,quandosetratardascaracterísticasparticularesdasnormasconstitucionais,masvaledesdelogoesseregistro deque asConstituições elaboradas ao longodo séculoXIXeduranteboapartedoséculoXX–noBrasil,até1988–eramconsideradasdocumentosde conteúdo sobretudo político, cujos destinatários eram o Executivo e oLegislativo basicamente, cabendo a esses órgãos desenvolver (ou não) as

  • disposiçõesconstitucionaiscomolhesparecessemelhor.Ouseja:aConstituiçãoeradescritacomonorma,massuasdisposiçõesnão

    tinham conteúdo normativo no sentido técnico da expressão; não serviam defundamentoparaoPoderJudiciáriotomardecisõeseimporcondutasaoEstado,ao menos não como regra geral. Interessantemente, com a incorporação dedireitos trabalhistas a muitas Constituições, esses dispositivos – cujosdestinatários eram empregadores, agentes privados portanto, e não o Estado –passaramaterconteúdonormativoeaseremexigidosjudicialmente.Omesmo,porém,nãovaliaparaorestantedoconteúdoconstitucional.

    ÉimportantedestacarqueaquestãodoconteúdonormativodaConstituiçãosemescla com duas outras damaior sensibilidade: o debate sobrequem fariaessaespéciedecontroleeoestabelecimentodoslimitesdessecontroleàluzdascompetências do Executivo e do Legislativo de fazer escolhas, no âmbito dopluralismopolítico, sobre temas acercadosquais aConstituição trata.Ditodeoutromodo,quemteriacompetênciaparaimporaoExecutivoeaoJudiciárioocumprimento de normas constitucionais e a quem caberia definir o que aConstituiçãoafinalexigeeoquecabeaoExecutivoeaoLegislativodecidir?

    Os Estados Unidos fizeram, ainda no início do século XIX, a opção deatribuir esse Poder ao Judiciário, por meio do sistema difuso e incidental decontrole de constitucionalidade. Por razões históricas e políticas próprias, essanão foi a opção da Europa continental, que apenas no início do século XXdecidiucriarórgãosespecíficos–osTribunaisconstitucionais–paralidarcomocontroledeconstitucionalidadede leiseatosdoPoderPúblico.Aquestãoseráexaminadanapartedecontroledeconstitucionalidade.

    Narealidadebrasileira,odebate teóricoemtornodaefetivanormatividadedaConstituiçãosurgenofinaldadécadade1960einíciodadécadade1970eencontradesenvolvimentoeaplicaçãoefetivacomaConstituiçãode1988.Atéentão, o centro do sistema jurídico brasileiro era, sobretudo, o Código Civil.Hoje, é adequado afirmar, noBrasil, que a Constituição é norma jurídica nãoapenasdopontodevistaretórico,mascomnormatividadeprópria,alémdeserdotada de superioridade hierárquica, repercutindo sobre a validade e ainterpretaçãodasdemaisnormasexistentesnosistema.

    Isso não significa, como se verá, que a construção da normatividade daConstituiçãosejasimples,ouqueoslimitesentreoqueéconstitucionaleoqueépolíticoestejamsempreclaramentedefinidos,ouqueoPoderJudiciáriotenhaacapacidade–real–deassegurarocumprimentodasnormasconstitucionaisnomundodosfatosporforçaapenasdesuasdecisões.Trata-sedeumaconstruçãoemandamento:aopontoseretornaráváriasvezesaolongodestecurso.

    Feitoesse registro,cabeagoraexaminaraclassificaçãodasConstituiçõesproposta por Lowestein, que as organiza em três categorias, como referido:

  • as Constituições normativas, semânticas e nominais. As ConstituiçõesnormativassãoaquelasemqueexisteumaconexãoentreoqueaConstituiçãoprevê e o que acontece realmente. Não há 100% de cumprimento – quedificilmenteseverifica,dequalquermodo–masháumacertacoerênciaentreanormaeomundoreal.

    Um exemplo possível na realidade brasileira envolve provavelmente aproteçãodaliberdadedeexpressãoedeimprensa.AConstituiçãoaassegurae,embora haja violações, há um regime razoável de liberdade vigente. Essa é aideia da constituição normativa: ela está sendo razoavelmente observada deformageral.Oautorusaametáforadasroupasedoscorposqueelasvestem:aConstituiçãonormativaéaroupaquevesteonúmerodocorpo.

    As Constituições nominais, por seu turno, são aquelas que estabelecemmetasmaisambiciosasdoqueaobservaçãodarealidade,pretendendo,comisso,conduzir a sociedade na realização efetiva dessas metas. Na classificação deLowestein, uma Constituição será considerada nominal se houver umcompromisso e um esforço real das autoridades em perseguir essas metas,mesmoqueelasestejamdistantes.Ametáforaaquiédaroupaqueéumnúmeromaior,masocorpoestáemcrescimentoeespera-sequeumdia,nofuturo,eleseajusteaeladeformaadequada.

    Na realidade brasileira, as previsões sobre a universalização da educaçãobásica regular talvez possam ser descritas como um exemplo de Constituiçãonominal. Houve, de fato, desde a edição da Constituição de 1988, umconsiderávelesforçopelauniversalizaçãodasmatrículas,oqueestápróximodeseralcançado.Issonãosignifica,éverdade,queosresultadosesperadoscomoserviçoeducacionalpúblicoestejamseproduzindocomodesejadonavidadosalunos,mas essa é uma outra discussão – a da qualidade da educação – que,emboradamaiorrelevância,nãocabefazeraqui.Dopontodevistadoingressonaescola,porém,aexpansãonosúltimos25anosfoirealerelevante.

    Por fim, as Constituições chamadas semânticas são descritas pelo autorcomo disfarces, e não propriamente roupas: são mera retórica política semqualquer conexão com a realidade ou com o que se pretende que a realidadevenhaaser.Éocaso,porexemplo,deConstituiçõesemEstadosditatoriaisqueassegurampluralismopolíticoe liberdadedeexpressão,quandona realidadeaperseguição política, a censura e a vedação à oposição são as práticasinstitucionais.Emváriospontos,asConstituiçõesbrasileirasde1937e1967/69seapresentavamcomoConstituiçõessemânticas.

    Uma segunda classificação damaior importância é a que classifica asConstituições em funçãode suaposiçãodehierárquica, dopontode vistatécnico-jurídico, em relação ao restante das normas. Trata-se de saber seumaConstituiçãoérígidaouflexíveleemquetermos.Explica-semelhor.

  • AsConstituiçõesflexíveis,cadavezmaisraras,sãoaquelasquepodemseralteradas como qualquer lei ordinária do país: sua relevância e estabilidadedecorrem não da superioridade técnico-jurídica, mas de elementos históricos,culturaisesociológicosdeformamaisampla.AsConstituiçõesRígidas,porseuturno, são aquelas que demandam um procedimento mais complexo para suaalteraçãodoqueoprevistopelo sistema jurídicoparaaelaboraçãoealteraçãodasdemaisnormasdosistemajurídico.

    Nocasobrasileiro,nostermosdoart.60daConstituiçãode1988,alémderegras diferenciadas acerca da iniciativa, emendas à Constituição devem seraprovadaspormaioriadetrêsquintosemquatrovotações:duasnaCâmaradosDeputadoseduasnoSenadoFederal.Alémdisso,aConstituiçãonãopodeseremendadaemdeterminadosmomentosealgunstemas–aschamadascláusulaspétreas – não podem sofrer alteração que tenda a aboli-las. Existem muitasoutras formasemodalidadesde rigidezconstitucionaladotadapelospaíses,demodoqueosistemabrasileiroatualéapenasumexemplo.

    Lembre-se que umaConstituição rígida não precisa, para isso, contar comcláusulaspétreas.Oque caracteriza a rigidez constitucional é a adoçãodeumprocedimento mais complexo do que o ordinário para alteração de seu texto.Cláusulasdeimutabilidade,comoaspétreas,sãoumaopçãoadicionaldequeopoderconstituinteorigináriopodeeventualmentesevaler.Alémdisso,épossível–eessefoiocasodaConstituiçãobrasileirade1824–adotarumaConstituiçãoem parte rígida e em outra parte flexível. Isto é: um procedimento maiscomplexoéexigidoparaalteraçãoapenasdedeterminadosdispositivos,masnãode outros. É igualmente possível que uma mesma Constituição adote níveisdiversos de rigidez, dependendo do assunto tratado. Enfim, as fórmulas ecombinaçõespossíveissãomuitonumerosas.

    Note-se, por fim, que a rigidez constitucional é um pressuposto lógico docontroledeconstitucionalidade,masnãooimpõeporsisó.Assim,paraquehajacontroledeconstitucionalidade,énecessárioqueaConstituiçãosejarígida,masoutras decisões políticas de cada país precisarão ser tomadas para atribuir aoJudiciárioacompetênciadedeclararinconstitucionaisatosdosoutrosPoderes.

    Constituições escritas e Constituições costumeiras. Embora o maiscomumsejaqueasConstituiçõessejamescritas,épossívelidentificarexemplosde normas consideradas constitucionais que decorrem não de uma previsãoescrita,masdocostumeoudatradição.NoBrasil,porexemplo,decorredeumcostumeconstitucional–enãodequalquerprevisãoexpressa–anecessidadedaexpediçãodeumdecretopresidencialparapromulgarodecreto legislativoporforça do qual o Congresso Nacional aprova e internaliza determinado tratadointernacional. E, do mesmo modo, a prática de o Vice-Presidente assumir aPresidência em viagens do Presidente não conta com qualquer previsão

  • constitucionalespecífica,sendofrutodeumatradiçãonacional.DocumentosúnicosouVáriosdocumentos.ConsideradasasConstituições

    escritas,háalgumasquesãocompostasporapenasumdocumento–comoéocaso da norte-americana – ou por vários documentos.Na história inglesa, porexemplo,váriosdocumentos,editadosaolongodotempoeindependentesentresi, são considerados normas de natureza constitucionais (como, e.g., oBill ofRightseoBillofParliament).Omesmoaconteceemalgunspaísesnórdicose,arigor,tambémhojenoBrasil.

    Com a EC nº 45/04, tratados internacionais aprovados pelo mesmoprocedimento das emendas constitucionais passaram a ter o status de normaconstitucional.AConvençãosobreosDireitosdasPessoascomDeficiênciafoiinternalizadanoBrasilem2009deacordocomessanovaregra,demodoqueé,hoje, norma constitucional, mas não consta do mesmo documento que aConstituiçãode1988.

    Promulgadas ou Outorgadas. Afirma-se que as Constituições sãopromulgadasquandoforamdiscutidaseelaboradasporumaassembleiaeleitadeformarazoavelmentedemocrática,aopassoqueasConstituiçõesoutorgadassãoaquelas elaboradas por uma autoridade, ou um comitê por ela nomeado, eimposta à sociedade. Ou seja: a expressão outorgada comunica certoautoritarismo na elaboração da Constituição, ao passo que aexpressão promulgada comunica que houve um processo de elaboração comparticipaçãopopularmaior.

    SintéticasouConcisas eProlixasouAnalíticas.Umaoutra classificaçãofrequentementeutilizadaprocuraordenarasConstituiçõesemsintéticas/concisas– como a norte-americana – e prolixas ou analíticas, como a brasileira e aindiana.Essadistinçãosepreocupacomotamanhodostextos,aquantidadeeodetalhamento de suas normas e temas que ela disciplina. É natural queConstituiçõesprolixasouanalíticassejammaisemendadasaolongodotempo,jáquetratamdemaisassuntose,portanto,paramodificá-laséprecisoalterarotextoconstitucional.

    Existem diferentes visões acerca das vantagens e desvantagens deConstituições concisas ou analíticas, havendo prós e contras em ambos osmodelos. O exemplo clássico norte-americano de Constituição conciso revelasuacapacidadederesistiraotempo:poroutrolado,écertoqueacabaporcaberaoJudiciáriodefinirmuitodeseusentido.Assim,sobamesmaConstituição,osEstados Unidos tiveram vários regimes diversos, por exemplo, em relação àquestãoracial.Poroutrolado,umaConstituiçãoextremamenteanalítica,comoabrasileira, acaba por tratar de temas da rotina política, que claramente não serelacionamcomdecisõesfundamentaisdaestruturadoEstado.

    Ideológicas e Compromissórias. Ainda uma classificação importante

  • distingueasConstituiçõesentreideológicasecompromissórias,tendoemcontaa fidelidade e coerência do texto a uma única concepção ideológica ou àexistência de múltiplos compromissos ao longo do texto entre concepçõesdiversas.Asconstituiçõesideológicassãoaquelaselaboradasnumcontextoemque o órgão elaborador é socialmente homogêneo – como era o caso dosprimeirosparlamentosnosquaisapenasaelitetinhaassento,porforçadasregraseleitorais–,ouideologicamentehomogêneo,nocasoderegimesautoritáriosoudepartidoúnico,comofoioexemplodospaísessocialistasecomunistas.

    Por outro lado, as Constituições serão inevitavelmente compromissóriasquandoelaboradasnoâmbitodesociedadespluraisnasquaishajaliberdadedeexpressão e o órgão que as elabora reflita essa diversidade. Com efeito, emsociedades democráticas em que há pluralidade e nas quais esses diferentesgruposestãorepresentadosnaassembleianacionalconstituintequevaielaboraressa Constituição, é inevitável que o texto seja resultado de múltiploscompromissos.ÉocasodaConstituiçãode1988edetantasoutraspelomundoafora.

    Assim,aoladodealgunsconsensosbásicos,aConstituiçãoseráoresultadoda acomodação e negociação entre múltiplas visões de mundo. Esse carátercompromissório das Constituições contemporâneas terá uma consequênciaimportante para a interpretação constitucional, como discutido na parteespecífica sobre o tema: trata-se da necessidade de o intérprete garantir aunidade da Constituição e a concordância prática entre suas várias normas e,paraisso,eventualmente,seráprecisoutilizaratécnicadaponderação.

    Apresentados alguns conceitos básicos acerca do chamadoconstitucionalismo e da Constituição propriamente, cabe agora integrar essedebatenadiscussãomaisamplasobreoDireitoesobreaJustiça.

    1.4DIREITO,JUSTIÇAECONSTITUIÇÃO

    Comoreferidoanteriormente,umdossentidosemqueaexpressãodireitoéempregada é como um adjetivo, para descrever uma qualidade de algo – umacondutaou,noqueaqui interessamaisdiretamente,umanorma–como justa,corretaouadequada.Nessaadjetivaçãoreside,pornatural,umaavaliaçãomoralacercadoconteúdodanormaquesuscitaoupodesuscitaralgumasquestões.Emprimeiro lugar, e como se viu, a norma jurídica impõe comportamentos quepodemserexigidospormeiodoaparatoestatale,portanto,nãosãoemgeraldeobservância facultativa. Se o indivíduo considera a norma injusta, estaria eleobrigadoaobedecê-la?Oquetornaodireitolegítimo,afinal?Ou,ditodeoutraforma, por quais razões deveríamos obedecer às normas jurídicas? Poderia oindivíduo questionar a norma de algum modo e negar-se a obedecê-la? Em

  • segundo lugar, o tema traz à tona o problema, complexo, acerca de qual oparâmetro a ser utilizado para aferir o que é uma lei justa ou injusta, comoapontadoantes.Inicie-sepelaprimeiraquestão.

    A tensãoentrea submissãodo indivíduoaumanorma injustaeditadapelaautoridadeeapossibilidadeounãodeeleseinsurgircontraelaéregistradaaomenosdesdea literatura judaicaegregaantiga.Nesteponto,o temadanormainjustaseaproximadaideiamãedoconstitucionalismo,discutidaanteriormente,de normas consideradas superiores a outras. Como referido, os profetas noAntigo Testamento confrontam o desrespeito das decisões dos monarcas emcontraste com a legislação mosaica, considerada o padrão superior que elasdeveriamobservar.NomitodeAntígona,poroutro lado,apersonagemdecidedesobedecer à norma da cidade (no caso, a ordem editada por Creonte), quedeterminava que o corpo de um de seus irmãos não poderia ser enterrado,devendo ser deixado a esmo: Antígona decide desafiar a norma posta paraatenderacomandoqueconsiderasuperioreenterrarseuirmãocomobservânciados ritos sagrados. Os diálogos em torno da morte de Sócrates refletemdiscussão similar, salvo que naquele caso o filósofo teria consideradomelhorsubmeter-se à norma da cidade (e não fugir, por exemplo), a despeito de suainjustiçaintrínseca.

    Muitosséculosdepois,asrevoluçõesliberaisfundamentaram-setambémnaexistência de um conjunto de normas superior – direitos como a garantia daigualdade e da liberdade individuais, por exemplo– que estaria sendovioladopelas normas estatais: estas, portanto, não mereciam obediência, e elas e opróprioEstadoqueaseditavaemantinhadeveriamsersubvertidos.Essamesmaideiacontinuasubjacenteaosdebatessobredireitoshumanos,sobretudoquando,noplanointernacional,seexamina,porexemplo,aadequaçãodedeterminadosordenamentos jurídicos nacionais às exigências dos direitos humanosreconhecidosemdocumentosinternacionais.

    Defato,edopontodevistahistórico,omais frequenteéqueaautoridadeque emite a norma injusta dificilmente concordará, digamos, com adesobediênciaaessamesmanorma.Osquemanifestamsuadiscordânciaforame continuam a ser perseguidos porEstados autoritários emgeral.A discussão,portanto,particularmenteemregimesautoritários,nãosedánecessariamentenointeriordaordemjurídicadoEstadoondeseverificaaleiinjustapropriamente,masnoplanofilosóficoepolítico.MasoquedizerdosEstadosdemocráticos?Aquestão da lei injusta estaria superada no contexto da democracia?A respostanãoétãosingela.

    É verdade que,mais recentemente, Estados democráticos têm incorporadoem suas Constituições princípios consagrando, por exemplo, a justiça, aigualdade e a liberdade. Assim, se tais Constituições forem consideradas

  • hierarquicamente superiores às demais normas (rígidas), e se houver algummecanismode controle de constitucionalidadedas leis, comalguma facilidadeuma lei considerada gravemente injusta editada por esses Estados poderá serdescrita como inconstitucionalporviolar algumdessescomandos: aoponto sevoltaráadiante.

    Asegundaquestão,envolvendoqualouquaisosparâmetrosafinaldefinemseumanormaéjustaouinjusta,corretaouincorreta,émaiscomplexajáquesecomunicaemalgumamedidacomametafísica.Eissoporqueotemapassapelarespostaàsperguntas:Oqueécertoeoqueéerrado?Oqueéjustoouinjusto?Eseaspessoasdiscordaremacercada respostaa talpergunta,quemadefine?Caberiaàmaioriadefiniroqueécertooujusto?Masamaiorianãopoderáestarerrada? E, nesse caso, como sabemos que ela está errada?Qual o parâmetro?Cadaumpodeterseupróprioconceitodoqueéjustoouinjustoelevaracabosuaprópriaavaliaçãodasnormasjurídicasparaofimdeobedecê-lasounão?

    Durantemuitosséculos,osparâmetrosutilizadospelassociedadesparaessaavaliaçãotinhamorigemefundamentometafísico,istoé,umaautoridademoralsuperior (a divindade) e sua vontade eramo parâmetro para essa avaliação.Apredominânciadacomunidadesobreoindivíduominimizavavozesdivergenteseamaiorhomogeneidadeculturaldosgrupossociaiscontribuíaparaminimizarosconflitosacercadessaquestão.

    Esse quadro, porém, mudou significativamente nos últimos séculos noocidente. A secularização das sociedades ocidentais, associada à progressivaproteçãodo indivíduoe tambémàrealidadedopluralismotornaramo temadalei justamaisdifícil.Ouseja: a religiãodeixoude serumdadocompartilhadopelacomunidadeeumafontesocialdeautoridadenamatéria.Simultaneamente,oindivíduoassumiuacentralidadenãoapenasdopontodevistaexistencial,mastambémdopontodevistafilosófico,alimentandoorelativismomoral.

    Assim,umavezquenãoháumparâmetrosuperiorquepossadefinirojusto/injusto, certo/errado, cada indivíduo constrói suas próprias concepções namatéria.Alémdisso,osindivíduoscadavezmaistêmdiferentesvisõespolíticas,filosóficas, religiosas, ideológicas; eles estão emposições sociais, econômicas,étnicas, culturais diversas e têm interesses diferentes: os pluralismos em suasvariadasformas.Nãoésurpreendente,portanto,queasconcepçõesconstruídaspelosindivíduosegruposacercadajustiçapossamser,efrequentementesejam,diversas.

    Nessecontexto,adificuldadeacercadodebateemtornodaleiinjustajánemsecolocaemfacedoeventualdéspotaoutiranoquepretendeimporumanormacontraaqualacomunidadeseinsurgemajoritariamenteporconsiderá-lainjusta.Aquestãoéprévia:comodefiniroqueéounãoumaleiinjusta?Pareceevidenteque não poderá caber ao juízo de cada indivíduo decidir que norma pretende

  • obedecer–porconsiderá-lajusta–,sobpenadeaconvivênciaemcomunidadeficar gravemente prejudicada. Basta imaginar (ou lembrar) que se coubesse acada motorista decidir se e quando parará no sinal vermelho, o trânsito seriapoucoviável.Poroutrolado,qualquernormapelosimplesfatodecontarcomorespaldoestatalseriaporissojusta?

    Algumas ideias foram desenvolvidas ao longo do tempo para tentar lidarcom essa dificuldade. Elas serão resumidas, de forma muitíssimo singela, nasequência. A concepção clássica acerca da matéria envolvia e envolve, comoreferido, a confronto das leis com parâmetros normativos consideradossuperiores–parâmetrosdejustiça,correção–frequentementeidentificadospelaexpressão geral de direito natural. Até determinado momento histórico, essesparâmetros estiveramvinculados principalmente à realidademetafísica,mas, apartir do século XVII, sobretudo, desenvolveram-se também concepções nãoreligiosas do direito natural, que extraíam/extraem seu fundamento, e.g., darazão humana e de valores compartilhados pela humanidade, substituindo ovínculocomadivindadeporesseselementosseculares.

    Essaconcepção,queapresentamúltiplosdesenvolvimentosevariedadesquenão serão examinadas aqui, é em geral denominada de jusnaturalismo, e suacaracterísticaprincipal é adefesada tesedequeexistemvaloresantecedentes,parâmetrosde justiça superiores àquiloqueoshomens criama cadamomentocomo leis, e que essas leis devem obedecer a esses parâmetros. Como é fácilperceber, e já se mencionou anteriormente, a concepção jusnaturalista exigealguma espécie de acordo acerca do conteúdo desses valores e parâmetros dejustiça, e o debate acerca desses pontos se tornou especialmente difícil nosúltimosséculos.

    Uma segunda ideia que se desenvolveu no contexto do que se está aqui aexaminar é comumente denominada de juspositivismo. De certa forma, ojuspositivismoserelacionacomademocratizaçãodassociedadesocidentaisaolongodoséculoXIXecomaexpansãocapitalista.Suatesecentraléadequeodireito corresponde ao direito positivo, isto é, àquele conjunto de normaselaborado pelos homens em cada momento histórico, e não a parâmetrosnormativosuniversaiseimutáveisdeorigemmetafísicaoucomfundamentonarazãohumana.Paraojuspositivismo,odireitoé,sobretudo,umfenômenoaserdescrito,nãoavaliadodopontodevistamoral,ecorrespondeaoprodutodaaçãohumana. O positivismo pretendia, assim, limitar a influência da moralidade(religiosaoudequalqueroutrafonte)sobreodireito,segregandoosdoistemas:moralidadeedireito.

    Para muitos juspositivistas, a discussão acerca da lei justa ou injusta atépoderia ser relevante,mas não propriamente para o direito, e sim para outroscampos, comoa filosofia e apolítica.Aodireito, cabia estudar avalidadedas

  • normas a partir de parâmetros formais – isto é: se ela foi elaborada pelasautoridades competentes e de acordo com os procedimentos exigidos para aelaboraçãodeumanormajurídicaporaquelesistema–enãoemfunçãodeseuconteúdo.Moralidadeedireitoseriamreinosdistintosea investigaçãojurídicanãoseenvolveriapropriamentecomoconteúdodasnormaseditadas.

    OfimdoséculoXIXeasprimeirasdécadasdoséculoXXexperimentaramogrande apogeu do juspositivismo, sendo sempre lembrada a figura de HansKelsen e de sua obra clássica A Teoria Pura do Direito. Mas as décadasseguintes seriam de grande reviravolta na matéria e imporiam uma reflexãosobreaseparaçãoentredireitoemoralpropostapelojuspositivismo.Oshorroresda SegundaGuerraMundial e os julgamentos dos criminosos nazistas que seseguiramaelasuscitaramquestõesdedifícilsolução.

    Comolidar,porexemplo,comoargumentodeváriosoficiaisnazistasdequeestavam apenas cumprindo as normas em vigor, quando o conteúdo dessasnormasdeterminavaaexecuçãoemmassademilhõesdepessoas?Essaspessoaseramculpadas–edeveriamserpunidas–ounão?Esedeviamserpunidas,combase em que normas prévias essa punição seria aplicável? Do ponto de vistahistórico, como se sabe, o argumento não foi aceito para afastar aresponsabilidadedoscriminososnazistas.Mascomoadiscussãosobreodireitoreagiriaaesseturbilhãodeeventos?

    De fato, o pós-Segunda Guerra conduziu o debate por outros caminhos eapenas dois serão mencionados aqui. O primeiro deles envolveu areaproximação do direito com os valores e com a moral, a chamada viradakantiana, em uma referência a Immanuel Kant. Essa reaproximação assumiumuitasformas,tantonoplanointernacionalquantonoplanointernodosEstados,e uma delas envolveu a incorporação desses valores em normas jurídicasconsideradassuperiores–asConstituições–,emgeralsobaformadeprincípios.Assim, asConstituições em diversos países passaram a incluir em seus textosprincípios gerais como dignidade humana, igualdade, liberdade, justiça social,solidariedade, razoabilidade etc., ao lado da consagração da democracia comoregimedegoverno.

    Essesprincípios,aliadosàsuperioridadehierárquicadaConstituiçãoemfacedas demais normas e à possibilidade de controle de constitucionalidade,passaramafuncionarcomolimitesmateriaisaoconteúdodasleisemgeral.Nalinhadoquejásereferiu,umanormagravementeinjusta,nessecontexto,poderáfacilmente ser descrita como norma inconstitucional. Ou seja: a questão dajustiça ou injustiça do direito acabou sendo transferida para dentro do própriosistema jurídico, por meio das Constituições e do controle deconstitucionalidade10.

    No Brasil, e por conta de nossas circunstâncias históricas, essa

  • reaproximação entre direito e valores mediada pela Constituição deu-se maistardenotempo,apartirdaConstituiçãode1988.Comoseverá,aConstituiçãode1988incorporoudeformabastanteabrangenteprincípioscomforteconteúdovalorativo,nalinhadoquejáseexpôs,tantoporcontadocontextomaisgeralderetorno aos valores quanto, particularmente, em reação ao período ditatorialanteriorvividopeloPaís.

    Um segundo caminho que se passou a percorrer após a Segunda GuerraMundial para examinar o problema da lei justa ou legítima parte de umaperspectivaprocedimentalista.Apremissadessaconcepçãoéadeque,emumasociedade plural como a contemporânea, a formação de consensos materiaisacercadoqueéjustonãoseriaviávele,portanto,nãohaveriaparâmetroexternodisponível para avaliar o conteúdo das normas. De outro lado, porém, asexigências formuladaspelopositivismopara reconheceravalidadedasnormasjurídicas seriam excessivamente formais e insuficientes. A propostaprocedimentalistaenvolveagarantiadequeaelaboraçãodasnormasobedeçaaum procedimento democrático adequado que assegure a igualdade e aparticipação de todos. Uma vez percorrido esse procedimento, a lei afinalelaborada seria consequentemente justa (ou, ao menos, não injusta), nãoexatamenteporcontadeseuconteúdo,maspelasubmissãoaoprocedimento11.

    Aquestão central, é claro, envolve saber emque consiste exatamente esseprocedimento adequado e o que o qualificaria como tal. Como em todas asdemaisconcepçõesjámencionadas,diversosautorestratamdoassuntocomseusprópriosdetalhamentos,masemgeraloprocedimentoéconsideradoadequado,semprejuízodoatendimentoaoutras exigências,umavezque se reconheçaatodas as pessoas igualdade e liberdade, além de um mínimo de condiçõesmateriais que as permitam ser participantes reais desse processo de discussãoacercadasnormasaseremeditadasnoâmbitodoEstadoondevivem12.

    Essaprimeiraexigênciadoprocedimento,comoseobserva,jáincorporaumconjuntoimportantedeopçõesvalorativas:deumlado,aopçãopelademocraciae,deoutro,ocompromissocomadignidadehumanaeumconjuntodedireitosfundamentais.Assim,emboraosprocedimentalismosquestionemapossibilidadedeconsensosmorais,algunsdessesconsensos transformaram-seemexigênciasdopróprioprocedimento.

    Boapartedospaísesocidentaisprocurouadotaremseussistemas jurídicosas duas soluções expostas simultaneamente: (i) Constituições rígidas queincorporamelementosvalorativossobaformadenormajurídicaconstitucionalassociadoaalgumsistemadecontroledeconstitucionalidade;e(ii)umregimedemocrático de governo (o que incluirá a elaboração de normas) nos quais segarante emalgumamedidaparticipaçãopolítica, igualdade e liberdadepara aspessoasemgeral.Cadapaís,naturalmente, faz suasprópriasopçõesacercado

  • conteúdodesuaConstituição,queelementosvaloresserãoounãoincluídos,emquemedidasuasnormaspodemounãoseralteradasaolongodotempo,comoseorganizaráocontroledeconstitucionalidadeequaisserãoseusefeitospossíveis.Essasquestõesserãoexaminadasnoscapítulosqueseseguem.

    1.5DIREITO,CONSTITUIÇÃOEDEMOCRACIA

    Um dos temas fundamentais para o direito constitucional contemporâneoenvolveasrelaçõesentredireito,constituiçãoedemocracia,valendofazerbrevemenção sobre elas aqui. Embora constituição e democracia se integrem nosmodeloscontemporâneosdeEstado,comoreferido,existeentreelasumatensãopermanente e inevitável. E isso porque asConstituições rígidas – aquelas queexigemumprocedimentomaiscomplexoparasuaalteraçãodoqueonecessáriopara a elaboração de normas ordinárias – pretendem impor limites à ação dospoderesestataisconstituídos:sejamessespoderesocupadoseexercidosemumcontextoautoritá