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Imprensa e criminologia: O papel do jornalismo nas políticas de exclusão social Sylvia Moretzsohn Universidade Federal Fluminense Índice 1 Introdução 1 2 Definindo o campo da análise 3 3 Falando em nome de “todos”: a im- prensa como “quarto poder” 6 4 Definindo o inimigo 8 5 Disseminando o medo: a produção de “ondas de crime” e outras estratégias 12 6 Delimitando espaços: favela/periferia como locus do mal 15 7 Apresentando o “outro lado”: o crime e a exclusão como “problema social” 21 8 Propondo “soluções”: o social como coisa simples 25 9 Finalizando: melhorar ou mudar a im- prensa? 31 10Bibliografia 36 Tudo aquilo que rompe o ronron dessa politologia flácida que serve [aos jornalistas] de instrumento de apreensão da sociedade tem todas as chances de ser percebido como uma agressão ou de simplesmente não ser percebido. Loïc Wacquant 1 Introdução A passagem do sociólogo francês Loïc Wac- quant pelo Brasil no início de abril de 2001 causou ao mesmo tempo esperança e frus- tração por parte dos que propõem a crítica ao sistema penal e ao neoliberalismo. Es- perança porque uma entrevista no site No (Notícia e Opinião) provocou o previsível al- voroço nos vasos comunicantes de um sis- tema midiático que trabalha segundo esse tipo de impulso, especialmente agora na era do “tempo real” (o que sai em um noticiá- rio é imediatamente reproduzido em outros, ou no mínimo influencia a pauta dos de- mais). Frustração porque as inúmeras entre- vistas que se seguiram acabaram não sendo publicadas: naquela semana, apenas o Jor- nal do Brasil abriu espaço para o questiona- mento do sociólogo à política de punição dos pobres através do encarceramento crescente. Uma semana mais tarde, a Folha de S. Paulo dedicava um quarto de página à passagem de Wacquant pelo Rio, em matéria editada após a sua partida, sem os devidos cuidados de atualização – para o leitor desavisado, era como se o pesquisador ainda estivesse aqui. Mais de um mês depois, o Correio Brazili- ense publicava matéria semelhante, no con-

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Imprensa e criminologia: O papel do jornalismo naspolíticas de exclusão social

Sylvia MoretzsohnUniversidade Federal Fluminense

Índice

1 Introdução 1

2 Definindo o campo da análise 3

3 Falando em nome de “todos”: a im-prensa como “quarto poder” 6

4 Definindo o inimigo 8

5 Disseminando o medo: a produção de“ondas de crime” e outras estratégias12

6 Delimitando espaços: favela/periferiacomo locus do mal 15

7 Apresentando o “outro lado”: o crimee a exclusão como “problema social”21

8 Propondo “soluções”: o social comocoisa simples 25

9 Finalizando: melhorar ou mudar a im-prensa? 31

10Bibliografia 36

Tudo aquilo que rompe o ronron dessapolitologia flácida que serve [aos

jornalistas] de instrumento de apreensão dasociedade tem todas as chances de ser

percebido como uma agressão ou desimplesmente não ser percebido.

Loïc Wacquant

1 Introdução

A passagem do sociólogo francês Loïc Wac-quant pelo Brasil no início de abril de 2001causou ao mesmo tempo esperança e frus-tração por parte dos que propõem a críticaao sistema penal e ao neoliberalismo. Es-perança porque uma entrevista nosite No(Notícia e Opinião) provocou o previsível al-voroço nos vasos comunicantes de um sis-tema midiático que trabalha segundo essetipo de impulso, especialmente agora na erado “tempo real” (o que sai em um noticiá-rio é imediatamente reproduzido em outros,ou no mínimo influencia a pauta dos de-mais). Frustração porque as inúmeras entre-vistas que se seguiram acabaram não sendopublicadas: naquela semana, apenas oJor-nal do Brasilabriu espaço para o questiona-mento do sociólogo à política de punição dospobres através do encarceramento crescente.Uma semana mais tarde, aFolha de S. Paulodedicava um quarto de página à passagemde Wacquant pelo Rio, em matéria editadaapós a sua partida, sem os devidos cuidadosde atualização – para o leitor desavisado, eracomo se o pesquisador ainda estivesse aqui.Mais de um mês depois, oCorreio Brazili-ensepublicava matéria semelhante, no con-

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2 Sylvia Moretzsohn

texto da discussão da privatização das pri-sões.

A pequena expressão, nos jornais, da vi-sita de alguém que despertou inicialmentetanto interesse da imprensa poderia ser ex-plicada exatamente através de uma interpre-tação mais imediatista do trecho escolhidopara a epígrafe deste artigo: o discurso deWacquant vai contra aquele “ronron” que amídia sedimenta, portanto não serve, deveser descartado. Aparições fortuitas, como asque ocorreram, estariam aí apenas como ex-ceções a confirmar a regra.

Se buscarmos um aprofundamento do sen-tido dessa mesma epígrafe, porém, podere-mos perceber algo mais importante e reve-lador, não apenas da orientação majoritáriada grande imprensa em relação à sua pautadiária (e ao enfoque da questão criminal, emparticular), mas principalmente das possibi-lidades (e dificuldades) de superação dessequadro, por parte dos setores sociais interes-sados em uma ação transformadora de cunhosocialista. Pois, se entendermos o “ronron”como o discurso cotidiano através do qual aimprensa procura sedimentar consensos, per-ceberemos a necessidade de formulação deum outro discurso com a mesma ênfase nocotidiano, que assuma a tarefa de buscar umnovo senso comum, no sentido que origi-nalmente Gramsci e mais recentemente Boa-ventura de Sousa Santos formularam1.

O cerne da questão foi exemplarmente ex-posto por Armand e Michèle Mattelart emum de seus relatos sobre sua experiência du-

1 Antonio Gramsci.Concepção dialética da his-tória. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.Boaventura de Sousa Santos.Crítica da razão indo-lente– contra o desperdício da experiência. Para umnovo senso comum: a ciência, o direito e a política natransição paradigmática. São Paulo, Cortez, 2000.

rante o governo Allende, no Chile: lidar coma comunicação significa lidar com o cotidi-ano, “e, para as pessoas, o cotidiano é a vidanum regime capitalista”2. Portanto não setrata simplesmente de utilizar as formas con-sagradas de sucesso popular e injetar-lhesum conteúdo crítico: seria preciso repen-sar o próprio processo de comunicação dia-leticamente, tanto a relação forma/conteúdoquanto a interação entre produtores e pú-blico.

Violentamente interrompida três anos de-pois de iniciada, a breve experiência chilenanão teve tempo de sedimentar-se e apresen-tar resultados passíveis de crítica. Ao queparece, ocorreu lá algo semelhante ao quePaulo Pontes apontava aqui, referindo-se àsatividades dos Centros Populares de Cultura:quando chegava a hora de avaliar o trabalhoe redefinir-lhe os rumos, veio o golpe mili-tar, que obrigou a um reordenamento das for-ças e a uma ação de resistência que precisavainventar formas de continuar existindo, numambiente cada vez mais opressivo.

As atuais e já numerosas iniciativas de co-municação popular a partir de rádios e TVscomunitárias aparecem como uma retomadadesse esforço e estão a merecer um estudoque leve em conta a questão central da lin-guagem: como se dá a capacitação dos mora-dores interessados em atuar nesse meio, quala relação entre os comunicadores e o público(seus vizinhos), de que maneira absorveme transformam (ou reproduzem) as fórmulasdos programas populares já consagrados.

Trata-se de um trabalho fundamental, que,entretanto, escapa ao alcance deste artigo.

2 Armand & Michèle Mattelart.Frentes cultura-les y movilización de masas. Barcelona, Anagrama,1977.

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Nosso propósito aqui é desenvolver parale-lamente um esforço igualmente importantede análise da lógica que orienta a coberturacriminal na grande imprensa, procurando de-monstrar que ela se estende à cobertura dosfatos relacionados às classes populares, ecomo ela serve à disseminação do medo eà formulação e ampliação de políticas cadavez mais repressivas de segurança pública.Procuraremos demonstrar também que, em-bora predominante, o discurso repressor nãoé único, mas se completa com outro que apa-rentemente seria o seu contrário, evidenci-ando duas formas de se tratar a “questão so-cial”, num desdobramento do que foi estu-dado por Gisálio Cerqueira Filho3: ora como“caso de polícia” (expresso na “política cri-minal com derramamento de sangue” apon-tada por Nilo Batista4), ora como “caso depolítica”, fechando o círculo alimentado poraquela politologia flácida de que fala Wac-quant. O objetivo final é sugerir maneiras dealterar esse processo, no sentido já declaradode buscar a formação de um novo senso co-mum.

Antes de prosseguirmos, devemos ressal-tar que o tratamento das estratégias de disse-minação do medo pela imprensa estará aquicircunscrito aos limites já definidos, mas,de fato, não se restringe à questão criminal,transbordando para os mais distintos temasda vida cotidiana: a carne contaminada, osremédios falsificados, a água imprópria para

3 Gisálio Cerqueira Filho.A “questão social” noBrasil – crítica do discurso político. Rio de Janeiro,Civilização Brasileira, 1982.

4 Nilo Batista. “Política criminal com derrama-mento de sangue”, inDiscursos Sediciosos – crime,direito e sociedade, ano 3, no 5-6. Rio de Janeiro,Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, 1o

e 2o semestres de 1998.

consumo, os inúmeros golpes com cartõesde crédito, tudo é exposto como se o mundofosse um lugar essencialmente hostil e peri-goso, produzindo uma permanente sensaçãode insegurança em todos os níveis. Mas éclaro que esta abordagem transcende os ob-jetivos desse artigo, exigindo estudo especí-fico, inserido na linha de pesquisa que apontaa contradição entre o projeto iluminista ori-ginal da imprensa e sua prática cotidiana,que mais alarma do que esclarece os cida-dãos.

2 Definindo o campo da análise

Nosso campo de análise principal é, aqui, agrande imprensa voltada para o público declasse média, que se concentra em quatro jor-nais de expressão nacional –O Globo, Jornaldo Brasil, Folha de S. Pauloe O Estado deS. Paulo– e na revistaVeja. Grandes jor-nais auto-proclamados “populares” (no sen-tido de que têm como alvo o público debaixa renda), comoO Dia, Extraou o recém-extinto Notícias Populares, que deixou decircular em janeiro de 2001, teriam de seranalisados à parte, antes de mais nada de-vido ao seu papel distinto na relação com seuleitor (supostamente, falam “com”, “para” e“em nome” dele, enquanto os jornais para aclasse média falam “do” povo). Isso pres-supõe uma forma particular de eleger e tra-tar as notícias, que, de saída, determina umainversão de ênfase, na qual os temas privi-legiados pela imprensa “séria” (o noticiáriopolítico e econômico, nacional e internacio-nal) são resumidos para dar espaço ao quediga respeito à “vida popular”, em especialà questão criminal. Essa particularidade en-volve a questão decisiva da linguagem, tãobem expressa em propaganda doPovo emcartazes afixados em bancas de jornal, em

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outubro de 2001: “O melhor conteúdo porapenas 40 centavos. Ou seja, a parada todapor uma merreca” – revelando a decisão deexpor a realidade “como ela é”, sem rodeiosnem meias-palavras, o que insinua a ênfaseno apelo sensacionalista. E envolve, sobre-tudo, o papel que esse tipo de jornalismo de-sempenha, identificado por já vasta biblio-grafia5, na qual se destaca o precursor es-tudo de Antonio A. Serra sobre o jornalODia, então emblemático do jornalismo dito“popular”: a função de intermediário entreo “povo” sofredor e sem voz e o governo,aparentemente inatingível por esses carentestanto das condições básicas de subsistênciaquanto da linguagem adequada para sensibi-lizar o poder.

Esta linguagem, que só o jornal possui, é aque permite retirar os problemas de sua bru-talidade vivida, e equacioná-los como ques-tões “técnicas” que possam ser absorvidaspelo Estado. Fragmentar as situações emproblemas concretos e tecnicamente soluci-onáveis, eis uma das funções do intermediá-rio. Para tanto, “fetichiza-se” o problema

5 As pesquisas envolvem tanto veículos impressoscomo programas de rádio e TV, todos, porém, coma mesma linha editorial. Assim, temos os trabalhosde Antonio A. Serra (O desvio nosso de cada dia – arepresentação do cotidiano num jornal popular, Riode Janeiro, Achiamé, 1980), Danilo Angrimani (Es-preme que sai sangue – um estudo do sensaciona-lismo na imprensa, São Paulo, Summus, 1994), MariaImmacolata V. Lopes (O rádio dos pobres, São Paulo,Loyola, 1980), Maria Tereza P. da Costa (O pro-grama Gil Gomes – a justiça em ondas médias, Cam-pinas, Unicamp, 1992), Maria Thereza Fraga Rocco(A linguagem autoritária – televisão e persuasão, SãoPaulo Brasiliense, 1988), Ana Rosa Ferreira Dias (Odiscurso da violência – as marcas da oralidade nojornalismo popular, São Paulo, Educ/Cortez, 1996),Kleber Mendonça (Discurso e mídia: de tramas, ima-gens e sentidos. Um estudo do Linha Direta.Dis-sertação de mestrado em Comunicação, Niterói, UFF,2001).

num correlato adequado à gama de soluçõesestatais, com isso impedindo que considera-ções de ordem mais geral, enfim, que a re-lação de exploração seja aventada. Em ou-tras palavras, o lugar do intermediário polí-tico se legitima na medida em que o povotenha sempre “problemas” e que seja o Es-tado quem disponha das soluções. A desi-gual distribuição de recursos, de meios, depalavra e poder, nada disto vem ao caso:ao contrário, é tudo cristalizado numa or-dem natural, fortalecedora do tipo de repre-sentatividade política que o jornal e os porele eleitos compõem. Ao mesmo tempo, aatomização dos problemas e sua traduçãoem tópicos de um programa administrativocorta qualquer possibilidade de articulá-losem relações políticas e sociais estruturais6.

No caso específico, tal intermediaçãorevestia-se de um caráter funcional mais efi-caz, na medida em que o jornal era, à época,de propriedade do governador do estado. Umestudo atualizado sobre esses jornais certa-mente identificará mudanças na linha edito-rial, conforme alterações ocorridas no con-trole das respectivas empresas que os publi-cam (O Dia, por exemplo, iniciou em 1987uma reforma que o levou a afastar-se da ima-gem do jornal “espreme que sai sangue”,abrindo caminho para oPovoe publicaçõessimilares) e poderá verificar se essas mudan-ças representam alguma alteração no trata-mento da notícia.

Dizíamos, porém, que nosso objetivo eratratar da grande imprensa voltada para aclasse média, e demonstrar que a lógica ori-entadora da cobertura criminal, fundamen-tada, embora não declaradamente, nos pos-tulados positivistas da criminologia tradicio-nal, se estende à abordagem dos fatos rela-

6 Antonio A. Serra. op. cit., p. 33.

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cionados às classes populares, encarando-as,assim, da perspectiva do perigo que repre-sentam para o público dessas publicações.

Este não será um estudo exaustivo e quan-titativo do material noticioso: a abordagemé orientada pela fundamentação teórica daanálise de discurso formulada por Foucaulte Pêcheux, e que por sua vez tem origem notrabalho pioneiro de Bakhtin, que apontou o“papel produtivo e a natureza social da enun-ciação”7. Se a produção de sentido está vin-culada a uma posição social e historicamentedeterminada, de pouco vale verificar se, for-malmente, dedica-se o mesmo espaço, porexemplo, a fontes de distintas e às vezes con-flitantes percepções da realidade; mais im-portante é perceber como esse material foieditado, como se estabeleceu a relação entretexto e imagem (pois um jornal é a reuniãode elementos verbais e não-verbais que inte-ragem na produção de sentido) e qual a rela-ção dessas publicações com o seu público, oque implica verificar o trabalho sobre a lin-guagem. É por isso, também, que vez por ou-tra recorreremos a exemplos de material no-ticioso veiculado em outros meios (televisão,internet), que integram os conglomerados decomunicação responsáveis pelos jornais aquicitados e ajudam a compreender o processoglobal de que vamos tratar.

Outro aspecto importante, que não abor-daremos aqui, é a verificação do vínculoentre o noticiário e os interesses das em-presas de comunicação, em geral, e a con-juntura política em particular. No primeirocaso, Nilo Batista observa o papel que cabeà imprensa na elaboração daquilo que, emoutro artigo, chamou de “política criminal

7 Mikhail Bakhtin. Marxismo e filosofia da lin-guagem. São Paulo, Hucitec, 1992.

com derramamento de sangue”: “só alguémmuito ingênuo suporá que são as convicçõespolíticas de seu empresariado e não as pers-pectivas bilionárias da exploração da telefo-nia celular, por exemplo, que definirão a in-clinação dos editoriais e a ênfase do noticiá-rio”, o que implica, no campo criminal, “arelegitimação cotidiana do sistema penal ea campanha por sua expansão”8. A relaçãocom a conjuntura política, por sua vez, levafrequentemente a uma deturpação deliberadadas informações, chegando-se mesmo à purae simples invenção de fatos. A propósito,certa vez Janio de Freitas escreveu artigorelacionando uma série de informações naárea criminal (ataques a delegacias, seques-tros, assaltos em túneis) que, embora com-pletamente falsas, foram divulgadas pela im-prensa e contribuíram para criar um climade pânico propício à acusação de incúria dogoverno do Rio em relação à segurança pú-blica9. Mas, além de implicar um esforço su-plementar de pesquisa, essas duas vertentesdo trabalho nos levariam a discutir detalhesdo comportamento ético dos meios de comu-nicação que fogem a nossos objetivos. Alémdo mais, a análise do material aqui expostopermite esclarecer o essencial: o modo peloqual os fatos são construídos, reiterando-seestereótipos e preconceitos, às vezes de ma-neira muito sutil.

8 Nilo Batista. “A violência do Estado e os apa-relhos policiais”, inDiscursos Sediciosos – crime, di-reito e sociedade, ano 2, no 4. Rio de Janeiro, FreitasBastos/Instituto Carioca de Criminologia, 2o semestrede 1997, p. 153.

9 Janio de Freitas. “As ondas do Rio”.Folha de S.Paulo, 30 de outubro de 1994.

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3 Falando em nome de “todos”:a imprensa como “quartopoder”

É preciso, em primeiro lugar, sublinhar que onosso principal foco de análise constitui “a”imprensa por excelência, “modelo do pró-prio conceito de jornalismo”10, aquela queexpressa, ou se propõe a expressar, os postu-lados clássicos que norteiam a atividade, re-lacionada à proposta iluminista de “esclare-cer os cidadãos”, e é reconhecida pelo títuloauto-atribuído de “formadora de opinião” –como se os jornais “populares” não desem-penhassem também esse papel. Tal carac-terização mal disfarça, portanto, a desquali-ficação desta outra imprensa, o que é umaforma de expressar o secular desprezo daelite por tudo aquilo que diga respeito ao“povo”. Com uma agravante, pois esse com-portamento é adotado também pelos críticosdo sistema vigente, de modo que a luta pelademocratização dos meios de comunicação,pelo respeito à ética e outras propostas deteor semelhante tenham como campo de lutaprincipal, senão único, esta “imprensa mo-delo”, não por acaso corriqueiramente cha-mada de imprensa “séria”.

Os documentos publicados por essas em-presas jornalísticas não deixam dúvidasquanto ao propósito de falar em nome detoda a sociedade, assumindo o papel de umsuposto “quarto poder” sem outros interes-ses a defender que não os dos próprios cida-dãos indiferenciadamente. Tal formulação,surgida na Inglaterra em 1828, encontroucampo fértil de desenvolvimento nos Esta-

10 Adelmo Genro Filho.O segredo da pirâmide –para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Ale-gre, Tchê!, 1987, p. 23.

dos Unidos, onde floresceu a idéia de quea imprensa era os “olhos e ouvidos da so-ciedade”, “cão de guarda” das instituiçõesdemocráticas, fiscal do poder, sempre alertaquanto aos atos do Executivo. E tornou-serecorrente nos discursos a respeito do papelda imprensa, apesar das inúmeras críticas aapontar o caráter ideológico dessas defini-ções, encobridoras de interesses muito bemdefinidos11.

Assim, aFolha de S. Paulo, além de ser oprimeiro jornal brasileiro a preocupar-se emsistematizar, através de seus famosos manu-ais, uma racionalidade para o trabalho da im-prensa, deixa claras suas intenções ao estam-par todos os dias, abaixo do logotipo, o lema“um jornal a serviço do Brasil”. A revistaVeja, em campanha publicitária de fins dosanos 90, dizia-se “os olhos do Brasil” (emcartaz ilustrado, a propósito, com um grandeolho azul. Seriam os olhos azuis do Bra-sil? Seria o Brasil de olhos azuis? Ou eracom olhos azuis que a revista via o Brasil?).O Globo, em documento divulgado no pró-prio veículo em 1994 e disponibilizado nainternet até meados de 1999 – quando a pá-gina da empresa foi modificada para atenderexclusivamente aos propósitos demarketingdo grupo –, define-se como “um jornal cari-oca, respeitado no país inteiro”, que se ex-pressa “pelaidentidade com os costumes eas aspirações da comunidadee pela intensa

11 Cf., entre outros, Serge Halimi.Os novos cãesde guarda. Petrópolis, Vozes, 1999; Pierre Bourdieu.Sobre a televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997.Patrick Champagne. “La vision médiatique”, in PierreBourdieu (org).,La misère du monde. Paris, Seuil,1993, p. 61-79; Chico Nelson el al. (org.).Jorna-listas pra quê? Os profissionais diante da ética. Riode Janeiro, Sindicato dos Jornalistas Profissionais doMunicípio do Rio de Janeiro, 1989.

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prestação de serviços à população do Rio deJaneiro. Líder de mercado, conta a quasedois milhões de leitores, todos os dias, o queacontece no Rio de Janeiro, no Brasil e nomundo”. Esta a sua “missão”: “levaro re-trato fiel da realidadeao maior número depessoas e procurar sempreservir à comuni-dade” (grifos nossos).

Desnecessário dizer que o jornal se auto-legitima ao dizer-se identificado com os cos-tumes e as aspirações da comunidade, à qual,humildemente, apenas “serve”: tudo o queestá naquelas páginas, automaticamente, ex-pressa aqueles costumes e aspirações. Semfalar na idéia de que o noticiário ali expostoé “retrato fiel da realidade”: o jornal não in-terfere, apenas “relata fatos” para que o lei-tor soberano “tire suas próprias conclusões”,escondendo assim todo o processo de cons-trução da notícia, resultante de mediaçõesdiscursivas inerentes ao trabalho jornalístico,que obviamente influem nas tais conclusõesa que o leitor vai chegar – dependentes, alémdisso, também de seu grau de formação, deseu repertório de crenças, de suas referênciasculturais, de sua condição social, em suma.

O mais interessante, porém, é perceberque o jornal, embora obviamente se des-tine a um públicodeterminado, proclame-seporta-voz detoda a comunidade. No casodo Globo, isso fica mais claro em outro tre-cho do documento, que aborda os objetivosda redação: entre outros, a “defesa do pri-mado do Direito sobre a força e da ordemsobre a anarquia, em qualquer de suas mani-festações”, e a “vigilância permanente contraa injustiça, a corrupção, a violência, a arbi-trariedade, a incompetência no trato de as-suntos públicos e tudo mais que prejudique aqualidade de vidaem todos os níveis da so-ciedade” (grifos nossos). Note-se, a propó-

sito, a indiferenciação entre os termos soci-edade e comunidade, o que, à parte o inte-resse no campo das ciências sociais, traz umproblema para a análise específica dos tex-tos das reportagens, na medida em que essestermos não se confundem no material notici-oso: comunidade, no caso, é expressamentea forma pela qual são tratados os habitantesde favelas e conjuntos habitacionais da peri-feria das cidades, mas serve mais como eufe-mismo politicamente correto para substituir“favelados” e outros termos depreciativos, eindica também um sentido de solidariedadee de ação política coletiva raramente existen-tes.

A auto-legitimação como um prestador deserviço para “todos” faz parte da estraté-gia da imprensa (desta imprensa) para as-segurar seu lugar de autoridade. Mas, aomesmo tempo, implica o processo de natu-ralização dos fatos sociais traduzidos comonotícia. O jornal, afinal, pode apresentar-secomo o espaço da ordem, uma ordem con-sensual, inquestionável, indispensável para avida em sociedade. Essa observação é par-ticularmente importante no caso do noticiá-rio criminal. Em considerações aplicáveisà constituição do discurso jornalístico, Serraargumenta:

A própria qualificação de criminal (...) é naverdade fruto de apropriação de certos fa-tos, acontecimentos, personagens e sua tra-dução e recomposição em um produto queé o crime tal como apresentado na notícia.Daí decorre uma “naturalização” do crime,algo que está aí e que o jornal testemunha.(...) Se acrescentarmos que a prática da lei-tura do jornal é cotidiana, um espaço incor-porado culturalmente à vida, ao qual recor-remos “naturalmente” para saber o que sepassa, concluiremos que aí se instala, comocoisa dada, como referência espontânea, um

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universo do qual somos solidários e do qualnos tornamos igualmente personagens12.

Não é difícil perceber que, de acordo comessa demarcação de espaços, esse jornalismotende a assumir, para a cobertura do fato cri-minal, a fundamentação da criminologia po-sitivista, cujo objeto era “o estudo do ho-mem delinquente”, e que dividiu os homensem “normais” (os que aceitavam a ordem)e “anormais” (os desviantes, que tanto po-diam ser criminosos comuns como anarquis-tas e outros “resistentes” à ordem)13. Clas-sificação funcional, como já demonstrou acrítica marxista, pois, num contexto de in-tensa agitação política (segunda metade doséculo XIX), lançavam-se bases teóricas “in-questionáveis” (porque “científicas”) perfei-tamente adequadas para justificar o exercícioda disciplina e do controle social. A seguir,veremos como essas idéias de disciplina econtrole são reforçadas através do noticiáriocotidiano.

4 Definindo o inimigo

Ao estudar a conduta da imprensa inglesa emrelação à criminalidade, Steve Chibnall per-cebeu que as diferenças entre os veículos de-sapareciam quando se tratava de cobrir as ati-vidades do IRA: contra o terrorismo não po-deria haver complacência, portanto para seusrepresentantes ou defensores não valia a “leidos dois lados”; eles não precisam ser ou-

12 Serra. op. cit., p. 18.13 Rosa del Olmo.A América Latina e sua crimino-

logia. Rio de Janeiro, Freitas Bastos/Instituto Cariocade Criminologia, p. 35 (no prelo).

vidos, não podem ter voz, pois sua ação éinjustificável, uma ameaça à sociedade14.

Entre nós ocorre algo semelhante, espe-cialmente se considerarmos o noticiário so-bre o combate à droga: diferenças de linhaeditorial, frequentemente tópicas ou casuís-ticas, se dissolvem quando se trata de de-finir o inimigo. Aí, todos se unem, assu-mindo acriticamente o discurso oficial. As-sim, banalizam-se expressões como “guerra”e “cruzada”, contra um inimigo mitificado edemonizado – às vezes a própria droga, fe-tichizada no melhor sentido marxista, comose tivesse vida própria e pudesse, por exem-plo, “invadir as universidades”15; às vezes otraficante, cuja identidade varia conforme ascircunstâncias; às vezes o “tráfico”, tratadode maneira semelhante à “droga”.

Nilo Batista vai buscar na Inquisição asraízes desse processo, ao demonstrar que elaexpõe, “pela primeira vez na história, comoo sistema penal pode adquirir uma certa au-tonomia que o desvincule do projeto polí-tico que o criou, e como essa poderosa cria-tura, a serviço de correntes específicas, podeusar conjunturalmente suas armas prestigia-das e ferozes”16. Estabelecem-se aí as basesda criminalização do diferente, que “sobre-viveram à descriminalização histórica da he-resia” e permanecem hoje, facilmente visí-veis “em conjunturas mais claramente politi-zadas (judeus perante a ordem nazista, soci-alistas perante os tribunais militares do Cone

14 Steve Chibnall.Law-and-order news – an analy-sis of crime reporting in the british press. Londres,Tavistock, 1977.

15 “Droga invade as universidades”. JB, 13 de ou-tubro de 1999.

16 Nilo Batista. Algumas matrizes ibéricas do di-reito penal brasileiro– vol I. Rio de Janeiro, Frei-tas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, 2000, p.233.

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Sul, etc.), porém sem muito esforço mesmoquando as variáveis políticas estejam enco-bertas (a ‘guerra santa’ contra as drogas e otraficante-herege que pretende apossar-se daalma de nossas crianças)”.

Como disse Louis Sala-Molins na inspiradaintrodução à sua tradução do Manual de Ey-merich, a Inquisição “sobrevive, no indica-tivo presente”, e “quando o público reclamade novo os rigores do fogo” – o que, nas so-ciedades contemporâneas, é quase sempreo fruto induzido de campanhas da mídia –basta “modificar um parágrafo para (a In-quisição) estender legitimamente sua juris-dição sobre o novo tipo de ‘combustível”’.(...)A Inquisição nos legou o princípio da oposi-ção entre a ordem jurídica virtuosa e o caosinfracional, ou seja, a idéia de que a infraçãodesorganiza (desvirtua) a ordem. Ao con-trário de uma concepção politizada da inter-venção penal, que incorpora o delito não sóconceitualmente mas principalmente comoa possibilidade banal de sua própria eficá-cia, a sacralização da ordem jurídica produzum injusto que a ameaça, que se coloca ex-ternamente a ela (um injusto fora-da-lei) eque deve ser não simplesmente compensadoou retribuído, mas exterminado. A matrizdocombate ao crimevê-se assim revigorada(...). Quantos séculos deverão transcorreraté que nos apercebamos das funções ocul-tas que, no plano das relações internacionaiscontemporâneas, desempenha a guerra con-tra as drogas recomendada nas decretais dospresidentes norte-americanos? No discursoda política criminal inquisitorialmente ori-entada, ocombate ao crimeinvariavelmenteutilizava metáforas de conteúdo extermina-dor: o operador judiciário é o agricultor pre-vidente, cuja enxada deve extirpar a má se-mente ou matar a víbora; ou é o cirurgiãodiligente, que deve amputar o membro apo-

drecido para obviar a infecção; pragas nocampo e epidemia nas cidades resultarão dequalquer transigência com os inimigos daordem virtuosa17.

Esta é, de fato, a lógica que preside asinúmeras campanhas contra a violência, no-meada estrategicamente em sua generalidadeabstrata, para ganhar concretude na violênciaimediatamente visível. Mais interessante: àsvezes são campanhas de iniciativa dos pró-prios veículos de comunicação. Assim, porexemplo,O Globopromoveu em 1985 a pes-quisa “O Rio contra o crime”, que recebeuaplausos de quem teria todos os instrumentospara criticá-la. A antropóloga Alba Zaluar,embora ressalvando a baixa adesão da popu-lação pobre ao questionário, aplaudiu a ini-ciativa do jornal18, desconhecendo a críticapreliminar, fundamental e aparentemente ób-via a ser feita a partir do próprio título dapesquisa, que incorpora uma dualidade ma-niqueísta opondo a cidade (e seus cidadãos)como lugar da paz e da concórdia e o “crime”como entidade demoníaca que, de fora, vemafrontá-la e agredi-la. Esse raciocínio, ade-mais, se aplica perfeitamente ao mito do Bra-sil como um país especial, abençoado porDeus, ilha de tranquilidade num mundo con-turbado, reino da harmonia, onde os confli-tos sociais não têm lugar19: nesses termos,o “tráfico” e o “traficante” só podem ser fa-tores estranhos, exógenos, passíveis de iso-lamento e combate como algo não-natural ànossa índole.

17 Idem, p. 234-5.18 Alba Zaluar. “O Rio contra o crime”, in Zaluar,

Condomínio do diabo. Rio de Janeiro, Revan/UFRJ,1994, p. 36-41.

19 Ver o tratamento dado à “questão social” emdiferentes épocas, da República Velha ao populismopré-64, in Gisálio Cerqueira Filho, op. cit.

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Mesmo quando não lidera a campanha, aimprensa contribui para justificá-la. Foi as-sim com o “Reage, Rio”, logo desdobradono “Reage, São Paulo”, a partir de séries dereportagens que desenhavam um quadro caó-tico do cotidiano urbano e levavam à percep-ção de que o “sentimento de insegurança” dapopulação havia chegado a um ponto into-lerável. Foi assim também com o famoso“Basta, eu quero paz!”, empalmado peloMovimento Viva Rio no embalo midiáticodo sequestro do ônibus 174, em 12 de junhode 2001, no Jardim Botânico. Numa área no-bre da cidade – ademais, o bairro onde se lo-caliza a sede da maior rede de televisão bra-sileira –, o fato mereceu cobertura ao vivo daTV Record e do canal pago Globo News, du-rante quase quatro horas e meia, terminandocom a morte do sequestrador e de uma refém.O impacto daquelas imagens, associado à co-bertura maciça dos jornais nos dias seguin-tes, forneceram os argumentos para a cam-panha, assumida entusiasticamente pelos jor-nais. No dia do ato, 7 de julho de 2000, oJornal do Brasilgritava em letras enormes,desproporcionais aos demais títulos da capa:“Basta!” E o texto da chamada seguia o tomconvocatório: “Participe. Vista branco, po-nha bandeiras brancas na janela, vá à mani-festação ecumênica no Largo da Carioca...”.A única voz dissonante nesse coro foi a dohistoriador Joel Rufino dos Santos, que con-siderava o ato uma forma de preparar o espí-rito da população para “indultar os produto-res da violência” e disse que não participariadele justamente porque os violentos dissimu-lados, porém mais importantes, estariam lá.

Há os que sofrem a violência e os que a pro-duzem. Estes têm interesse em esvaziar aviolência do seu conteúdo concreto. Numgolpe inconsciente, mas de mestre, mobi-lizam as vítimas para ato cívico, altamenteemotivo, contra a violência. Gritam e fazem

a população gritar “Basta!”. Com isso, dão àviolência, de que são os produtores, um ca-ráter abstrato. Eximem-se de qualquer res-ponsabilidade. Os violentos são os outros.Na verdade, não são ninguém. Podem, por-tanto, ser demonizados – livrando a cara de-les, os reais produtores de violência. Põem,no lugar sua cara, a cara do pobre-coitadodo ônibus 17420.

Esta era, porém, umaopinião, publicadano espaço reservado especificamente a essetipo de manifestação – algo que o jornalismosublinha na sacralizada, porém falaciosa, se-paração entre os lugares da objetividade (ainformação) e da subjetividade, e que sobre-vive apesar dos reiterados estudos que apon-tam o despropósito (mas também a funciona-lidade) dessa divisão21. O jornal, ele mesmo,não utilizou os argumentos de Rufino emqualquer de suas reportagens, de modo a ofe-recer um contraponto, mínimo que fosse, àcampanha em marcha. De todo modo, a opi-nião do historiador só teve possibilidade deinfluenciara posteriori: o artigo saiu em 11de julho, quatro dias depois do ato.

Tais exemplos demonstram, portanto, emprimeiro lugar, uma caracterização redutorade violência, associada estritamente ao seuaspecto criminal. Uma abordagem mais am-pla remeteria a uma discussão central nocampo da ética, à qual a violência se opõe“porque trata seres racionais e sensíveis, do-

20 Joel Rufino dos Santos. “Leitura do ato contra aviolência”. Jornal do Brasil, 11 de julho de 2001.

21 Cf. especialmente Manuel Carlos Chaparro, paraquem “o jornalismo não se divide, mas se constróicom opiniões e informações”, demonstrando que a di-visão realmente existente é entre dois tipos de texto,um de ordem expositiva, outro de ordem argumenta-tiva. Sotaques d’aquém e d’além mar – percursos egéneros do jornalismo português e brasileiro. Santa-rém, Jortejo, 1998, p. 97.

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tados de linguagem e de liberdade como sefossem coisas”22 – e se pensarmos nos pro-cessos de fetichização e reificação operadosno capitalismo, seríamos levados a supor aincompatibilidade entre a ética e esse sis-tema. Não podemos aqui, obviamente, avan-çar nessa discussão: baste-nos a referência àcomplexidade do tema, cujo desdobramentoé bem resumido por Alberto Silva Franco:

[a] área de significado do conceito de vio-lência é bem mais abrangente do que a cri-minalidade. Violência é a terrível faixa deexcluídos, na sociedade brasileira; é a con-centração de riquezas em poder de um nú-mero tão reduzido de pessoas; é a fome; éa miséria; é o salário aquém das necessi-dades básicas mínimas; é a prostituição in-fantil; é o elevado percentual de acidentesdo trabalho; é o privilégio das corporações;é, enfim, a ausência de adequadas políticaspúblicas. Sobre a problemática brasileira,como um todo, ou sobre cada um dessesgraves problemas de violência, em particu-lar, os meios de comunicação não esclare-cem a população, nem pressionam a opiniãopública e os órgãos de representação popu-lar. “Dramatizar” a violência é bem maisfácil e, além disso, à sua retaguarda, há todoum processo de politização (movimento delei e ordem) que atende aos interesses desegmentos sociais hegemônicos que visamaumentar, através de expedientes repressi-vos, o grau de controle da sociedade23.

Significativamente, aliás, uma semana de-pois do dia do “Basta!”, o Jornal Nacional,

22 Marilena Chaui. “Ética e violência”, inTeoria &Debateno 39, out/dez 1998.

23 Alberto Silva Franco. “As perspectivas do di-reito penal por volta de 2010”, inDiscursos Sedicio-sos – crime, direito e sociedade, ano 5, no 9-10. Frei-tas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, 1o e 2o

semestres de 2000, p. 63.

da TV Globo, exibiu uma série de reporta-gens sobre a situação do transporte urbanono Brasil: pessoas que acordam de madru-gada e caminham até o local de trabalhopor não terem o dinheiro da passagem, pes-soas enlatadas em trens suburbanos e ôni-bus, exaustas após um dia de trabalho, dor-mindo jogadas nos bancos ou mesmo em pé,amparando-se umas nas outras. “Sina de tra-balhador”, disse o repórter. Ninguém faloude violência.

Assim, delimitando-se redutoramente aárea de significado desse termo, a imprensapassa a explorá-lo politicamente, contri-buindo para a formação de uma opinião fa-vorável a políticas repressivas. Silva Francomostra que o destinatário desse processo éo direito penal, que “deixa de ser o garantedos bens jurídicos mais relevantes da soci-edade para tornar-se um direito de eficáciasimbólica: um direito que responde aos me-dos sociais”. E fornece vários exemplos, en-tre os quais a Lei dos Crimes Hediondos,consequência da mobilização produzida pelonoticiário em torno do seqüestro de figurasimportantes da elite econômica e social dopaís (casos Martinez, Salles, Diniz, Medina,etc.), até então a salvo da ação de delinqüen-tes. “Foi tal a pressão exercida pelos meiosde comunicação social, tal foi o nível demedo transmitido, que pessoas componen-tes de classes sociais desfavorecidas passa-ram a temer a possibilidade de serem víti-mas daquele delito”24. O próprio episódiodo ônibus 174 foi outro exemplo: dois diasdepois do ocorrido, os jornais noticiavam a“resposta” do governo, com uma reunião ex-traordinária da equipe responsável pelo novo“Plano Nacional de Segurança”. “Violência

24 Idem, ibidem.

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faz governo agir”, deu o JB de 14 de julho,num título sob uma foto do então ministroda Justiça, José Gregori, em que a palavraVIOLÊNCIA, destacada de uma faixa, pa-rece desabar sobre sua cabeça. No lead, ojornal faz a associação imediata: “Depois doassalto com reféns e da morte da professoraGeisa Gonçalves no Rio, o presidente Fer-nando Henrique Cardoso convocou às pres-sas, para ontem à noite, uma reunião com aequipe ministerial encarregada da elaboraçãodo Plano Nacional de Segurança Pública”. Aseguir, diz que o presidente está “decidido apôr um ponto final ao que chamou de violên-cia inaceitável”.

Duas semanas antes do caso do 174, no dia24 de maio, um confronto entre quadrilhasrivais de traficantes – de acordo com o que aimprensa noticiou – resultou em quatro mor-tos e levou pânico à favela Nova Holanda,em Bonsucesso. Particularmente a um casale seus três filhos, entre os quais uma meninade 2 anos, feitos reféns em sua casa. Da ja-nela, traficantes fortemente armados erguiama criança em sinal de ameaça. Aquela violên-cia, porém, não era “inaceitável”: tratava-sede mais uma ocorrência habitual em zonasjá tradicionalmente conflagradas, que os for-madores de opinião não frequentam e, por-tanto, não suscitam a interrupção do fluxo“normal” do noticiário para a irrupção da co-bertura ao vivo nem, consequentemente, im-põem uma pronta resposta das autoridades.

Da mesma forma, um crime que ganhou asmanchetes em fins de abril de 2001 – o assas-sinato da fonoaudióloga Márcia Maria Lo-pes Coelho Lira, assessora do deputado Car-los Minc, em Santa Teresa – foi precedidode duas outras “ocorrências” que, por issomesmo, nem mereceram registro: jovens ne-gros amarrados, com tiros e sinais de seví-

cias, encontrados mortos em terrenos baldiosdo mesmo bairro.

Os assassinos da fonoaudióloga foramimediatamente chamados de bárbaros, nãosó pelos requintes de crueldade (em nada di-ferentes, porém, da violência que ocorre naperiferia), mas porque um deles trabalhavana reforma da casa e era ajudado pela vítima.Vera Malaguti questiona:

Se, na primeira e na segunda mortes domês, nada sentimos, nada noticiamos, nadanos surpreendeu, por que achar que “eles” seimportam conosco? “Nós” não nos importa-mos com “eles”25.

5 Disseminando o medo: aprodução de “ondas de crime”e outras estratégias

Ao serem confrontados com estudos socioló-gicos baseados na teoria da construção socialda realidade para a análise da produção dasnotícias, jornalistas das mais diversas ten-dências ideológicas costumam reagir com ir-ritação, rejeitando a idéia de que “fabricam”o noticiário, o que para eles soa como umainaceitável e antiética falsificação. MichaelSchudson aponta a confusão numa frase que,no original em inglês, permite um jogo depalavras que dá uma dimensão mais clara doequívoco: “We didn’t say journalistsfakethenews, we said journalistsmakethe news”26.

Isto quer dizer que o processo de seleçãoe hierarquização dos fatos a serem transfor-

25 Vera Malaguti Batista. “O medo na cidade”, inTransgressões– anais da I Jornada do Espaço Brasi-leiro de Psicanálise (no prelo).

26 Michael Schudson. “The sociology of news revi-sited”, in James Curran and Michael Gurevitch (org.).Mass media and society. Nova Iorque, Edward Ar-nold, 1992, p. 141.

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mados em notícia implica uma intencionali-dade, frequentemente não explícita, dos res-ponsáveis por esse trabalho. Mas pode signi-ficar algo mais importante, que ainda causapolêmica entre estudiosos da mídia: a exis-tência ou não de distinções entre os fatos queocorrem espontaneamente e outros que são“provocados” pela presença dos meios de co-municação. Daniel Boorstin inaugurou a de-nominação “pseudo-eventos”, ou eventos demídia (os famosos factóides da recente po-lítica brasileira, organizados apenas para setornarem notícia), para desclassificar os fa-tos assim “provocados”: considerava que anobre tarefa da imprensa era noticiar aquiloque acontece de forma espontânea27. Her-bert Gans contesta essa idéia, argumentandoque “todas as atividades que se transformamem reportagem são eventos de mídia; se elassão espontâneas ou produzidas é menos im-portante do que se elas se tornam notícia ounão”28. Nicolau Sevcenko vai além: diz quenão faz qualquer sentido a diferenciação en-tre fato “de verdade” e fato produzido porque“o mundo, tal como existe, especificamentea partir dos anos 20, é o mundo e o complexodas comunicações”. Portanto, a utilização derecursos de mídia para produzir situações ar-tificiais é parte das estratégias dos conflitosque envolvem os jogos de decisões políticase econômicas.

Fatos de verdade e fatos fabricados convi-vem como parte de uma realidade históricana qual é possível fabricar fatos, da mesmaforma como fatos podem se desdobrar por simesmos, por uma cadeia genética de even-tos históricos. É o caso, bem evidente, da

27 Daniel Boorstin.The image – a guide to pseudo-events in America. Nova Iorque, Harper and Row,1964.

28 Herbert Gans.Deciding what’s news: a studyof CBS Evening News, NBC Nightly News, Newsweekand Time. Nova Iorque, Pantheon, 1979.

guerra do Golfo, que foi montada como umgrande show da mídia para representar o su-cesso da nova ordem mundial. (...) Essesacontecimentos são tão intrinsecamente em-baraçados que seria desnaturado querer se-parar uma coisa da outra. Todas elas com-põem o campo da significação e não umasignifica e outra falsifica29.

Essas considerações são importantes paraa percepção do papel da imprensa num doscasos que mais nos interessam aqui: a for-mação das “ondas de crime”. Mark Fish-man, em seu estudo sobre uma onda decrime contra idosos em Nova Iorque, cons-tatou de saída os procedimentos de “auto-alimentação” entre veículos diversos: os te-lejornais da manhã fornecem idéias para suí-tes de edições vespertinas e noturnas e influ-enciam a pauta dos jornais impressos, que,por sua vez, têm na ronda do noticiário ra-diofônico uma recorrente fonte de informa-ção30.

Rejeitando as perspectivas de pesquisado-res que tomavam o processo de produção donoticiário apenas como um processo de se-leção de notícias - que, portanto, ou refleti-riam ou distorceriam a realidade -, Fishmanindaga-se até que ponto o processo de produ-ção de notícias não estaria ajudando a criaressas ondas que os próprios jornais reporta-vam. Mas a principal preocupação do autoré com o poder de multiplicação das notícias,que geram mais notícias em cascata e efei-tos práticos convenientes para a exploração

29 Nicolau Sevcenko. “Fim da História”.AtratorEstranho, no 19, São Paulo, NTC/ECA-USP, 1996.

30 Mark Fishman. Manufacturing news.Austin,University of Texas Press, 1990. Citado em SylviaMoretzsohn. A velocidade como fetiche – o discursojornalístico na era do “tempo real”. Dissertação demestrado em Comunicação. Niterói, UFF, 2000, cap.2.

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política: de acordo com a rotina das reda-ções, as notícias são agrupadas em temas,“conceitos organizadores”, de modo que, nocaso estudado, as matérias sobre idosos tal-vez não tivessem merecido atenção se edita-das isoladamente, mas ganharam expressãoquando noticiadas em conjunto. Logo se se-guiria um efeito importante: o prefeito con-voca uma coletiva para “declarar guerra” aoscrimes contra idosos. Outra consequência:a criação de novos procedimentos de regis-tro pela polícia, “o que tornou visível, para aimprensa, um grande número de ocorrênciasbastante comuns”.

Como uma onda de publicidade, [a onda decrimes contra idosos em Nova Iorque] con-centrou a atenção do público num novo pro-blema e ao mesmo tempo formulou o pro-blema. A mídia foi ao mesmo tempo omeio pelo qual todo mundo em Nova Iorque“soube” da onda de crimes e o meio peloqual ela foi montada. Os órgãos noticiososcriaram a onda, não no sentido de que inven-taram os crimes, mas no sentido de que de-ram forma e conteúdo determinados a todosos incidentes que reportaram. Do trabalhojornalístico surgiu um fenômeno transcen-dendo os acontecimentos particulares queeram suas partes constitutivas. Uma onda decrimes é uma “coisa” na consciência públicaque organiza a percepção do povo em rela-ção a um aspecto de sua comunidade. Foiessa “coisa” que a mídia criou.

E criou também a sensação de medo, oque justifica medidas como pôr mais polici-ais nas ruas, criar novas leis, sonhar com amudança para cidades do interior, etc. Noentanto, diz ele, “a orientação política demonitorar de perto e reportar os crimes con-tra idosos havia sido projetada para um pe-ríodo de três meses apenas. Quando o mo-

nitoramento especial terminou, a coberturamorreu, e a onda de crimes acabou”31.

Os jornais dedicam eventualmente maté-rias especiais para “explicar” o fenômeno, nomelhor estilo da “profecia auto-cumprida”:participam do processo e, em seguida, o de-nunciam. Foi o que ocorreu com aFolha deS. Paulo, que, numa edição do caderno Mais!– suplemento dominical destinado à extraçãomais intelectualizada de seu público –, mos-trou as alterações do sentimento de medo dopaulistano, em época de campanha eleitoral:após uma série de notícias sobre o “desca-labro” da violência na cidade, a questão dasegurança passou a ocupar o primeiro lugarna preocupação do público. Do ponto devista estritamente funcional, o jornal sai ga-nhando: noticia a violência, noticia tambéma implicação que esse noticiário tem na per-cepção do público. O círculo se fecha per-feitamente, em um daqueles famosos “bene-fícios secundários do crime”: tudo é “notí-cia”. Mas não “esclarecimento” – porque,desse ponto de vista, seria necessária antesde mais nada uma avaliação sobre os crité-rios editoriais para o noticiário do dia-a-dia.

Menos sutil é a estratégia de man-ter o tema permanentemente na memóriado público, dando-lhe, a título de bem-intencionado serviço, informações sobre aspossibilidades de se proteger das várias for-mas de violência espalhadas pela cidade. O

31 Idem, ibidem. A propósito, Janio de Freitasaborda a questão num sentido diverso, mostrandocomo a imprensa amparou versões oficiais que ummínimo de checagem comprovaria serem insustentá-veis, e que no entanto justificaram incursões policiaisem favelas e a disseminação do medo num momentopolítico delicado para o Rio de Janeiro, incentivandodiscursos a favor da intervenção federal no estado. Cf.Janio de Freitas, “As ondas do Rio”, art. cit.

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sitedo Estadão, por exemplo, sustentou du-rante o ano de 2000 um quadro de impacto:a imagem de um marginal lombrosiano napose clássica do preso recém-capturado (ne-gro algemado tapando o rosto) à frente dasilhueta de uma cidade sob nuvens pesada-mente cinzentas, e sobre as quais se desta-cam as letras vermelhas da chamada: “VIO-LÊNCIA – a cidade com medo”. A páginaconduz a uma série de informações “úteis”para a “população” (isto é, o leitor de classemédia) se defender – como agir no ponto deônibus, no sinal de trânsito, no caixa eletrô-nico, etc., como se devêssemos ficar semprealertas – e ligeiramente apavorados – por-que estaríamos sob o risco permanente de umataque em cada esquina.

Daí ser plenamente compreensível a man-chete de página que o mesmo jornal publicouno dia 5 de dezembro de 2000, para infor-mar sobre a fuga de um jovem criminoso daFebem: “Batoré fugiu. São Paulo está maisperigosa”.

Daí também o espanto do JB na capa de13 de dezembro de 2001, aparentemente es-tranha à sua linha editorial, estampando fotocolorida de dois presuntos estirados no as-falto, à beira do meio-fio, sob o sol: pés des-calços de um lado, chinelos do outro, diantedas botas de um policial em primeiro plano.“Cadáveres desovados no Aterro”, o título damatéria, tem sentido dúbio: sugere a escolhade um local nobre para a “desova” de pes-soas mortas em outro lugar, quando se tra-tava de dois rapazes que tentaram assaltar umônibus e foram mortos a tiros por um pas-sageiro, que logo fez o motorista parar paralivrar-se dos bandidos. A legenda completa oescândalo: “Um corpo estendido à luz do diano asfalto do Flamengo avisa que a violên-cia não respeita hora nem lugar”. Pois, como

é óbvio, violência tem hora e principalmentelugar: os ambientes ermos e mal-iluminadosda periferia.

6 Delimitando espaços:favela/periferia como locus domal

Opera-se aí uma clara delimitação de espa-ços, onde, como nota Vera Malaguti Batista,“aparecem os zoneamentos hierárquicos dacidade, as visões da favela comolocus domal, como dissolutora de fronteiras a trans-bordar para a ‘cidade legal”’32. A famosaOperação Rio, em fins de 1994, é um dosexemplos mais bem acabados dessa divisão:à parte a especificidade da conjuntura polí-tica (intervenção federal no Rio devido à su-posta perda de controle sobre a violência porparte de um governo jamais aceito pelo po-der central), importam os canhões dos tan-ques apontados para os morros, culminandocom a imagem-símbolo mais evidente – a re-tirada, pelo exército, do cruzeiro que ilumi-nava o topo de uma favela, erguido suposta-mente a mando de traficantes, e sua substi-tuição pela bandeira do Brasil, uma cena queevocava a tomada de Monte Castelo durantea Segunda Guerra Mundial.

No varejo da cobertura cotidiana, poucosexemplos serão tão claros quanto o da capado Globo de 21 de outubro de 2000: “Fa-velas levam violência ao Centro e Copaca-bana – ônibus são destruídos, carros apedre-jados e motorista escapa de linchamento”,manchete e subtítulo sobre duas fotos ates-tando o conflito informado por legendas des-critivas: “Com um tijolo na mão, moradorado Morro da Providência ameaça um oficial

32 Vera Malaguti Batista. art. cit.

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da PM que tentava controlar o tumulto noCentro” e “Na Avenida Atlântica, moradordo Morro do Cantagalo usa pá para atacaro carro de um professor que atropelou ummenor”. Na longa chamada, o relato de umclima de guerra:

Duas regiões do Rio ficaram sitiadas ontemapós a explosão de violência de moradoresde dois morros. Em Copacabana, cerca decem moradores do Cantagalo provocaramum grande tumulto ao descerem para a Ave-nida Atlântica, na altura do Posto 5, e ten-tarem linchar o professor Bruno Rabin, de25 anos, que havia atropelado André LuizFaustino de Oliveira, de 12 anos, deficienteauditivo. Apesar de o sargento Lyrio, do 19o

BPM, que testemunhou o acidente, ter ino-centado o professor ao afirmar que o meninoatravessou na frente do carro, os morado-res da favela depredaram o Escort de Bruno,usando inclusive uma pá. Sob ameaça de es-pancamento, Bruno precisou ser retirado dolocal por PMs.No Centro, a violência foi ainda maior. Mo-radores do Morro da Providência levarampânico a quem passava pelo Viaduto São Se-bastião, uma das principais vias da cidade,ao incendiarem um ônibus e apedrejaremoutros três num protesto – segundo a polí-cia, organizado por traficantes – contra umaoperação policial que resultou na morte deIsaías dos Santos, de 22 anos, acusado deter assaltado um supermercado. Carros tam-bém foram apedrejados e vários motoristas,assustados, fugiram na contramão ou aban-donaram os veículos. O viaduto e duas ruaspróximas ficaram interditados por mais dequatro horas, o que provocou engarrafamen-tos por todo o Centro do Rio. Mais de cempoliciais invadiram o morro e trocaram tiroscom traficantes.

O morro é assim como um acidente da na-

tureza: está ali na geografia da cidade e derepente, sem qualquer justificativa, explode,inesperadamente, e agride a tranquilidade dequem passa. Protestos contra a polícia ja-mais são legítimos, são sempre orquestradospor traficantes: o jornal encampa essa ver-são, embora tenha seu álibi conveniente, poisdedica um pequeno texto em página internapara, através da fala de antropólogos (os es-pecialistas do “saber competente”), questio-nar essa explicação. Como sempre, cabe aoleitor concluir, mas a ênfase escolhida e amaneira pela qual o material foi editado jáindicam um sentido para essa conclusão.

Tampouco se justificaria tamanha reaçãocontra um cidadão de bem (professor, jovem,branco, proprietário de carro) que involun-tariamente atropelou um menino surdo (oumelhor, deficiente auditivo: o jornal lhe con-cede essa delicadeza) e imprudente a pontode não olhar para os lados ao atravessar arua. Ocorre que o menino morreu na hora,mas esta informação não está na chamada decapa, e também passa longe de manchete,antetítulo e subtítulo da matéria de páginainteira, no corpo do jornal: figura apenasno fim do sublead. E apenas no sétimo pa-rágrafo sabemos que o rapaz “foi lançadoa aproximadamente 25 metros de distância,passou por cima da ciclovia e bateu com acabeça no calçadão”.

Outro exemplo notável foi o que o mesmojornal publicou em 11 de março de 2001, naprimeira de uma série de três reportagens so-bre a providência que a classe média apa-vorada da Zona Sul estava tomando para seprevenir contra assaltos e outras surpresas,contratando a segurança de jovens das fave-las próximas. A ênfase evidente na produçãode sentido está na foto assustadora: sete ra-pazes musculosos e carecas em posição de

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combate, bermuda larga e chinelos, negros-escurecidos pela sombra da foto contra a luzque só revela os contornos, Pão de Açúcarao fundo, e suas próprias sombras enormes,fantasmas refletidos no chão: “A segurançaque vem da favela”, manchete da página, sópode ser uma ameaça.

O texto procura ser objetivo: informa asprovidências, apresenta depoimentos a fa-vor e contra, ouve “especialistas” (sobre cujafala, evidentemente, recai a conclusão dese-jável).

Moradores de bairros nobres da zona sul dacidade recorrendo aos serviços irregularesde favelados. A antropóloga Alba Zaluarnão deixa por menos: “com essa proposta desegurança, o tráfico garantiria os moradoresdo morro e do asfalto. A proposta é tomaro Estado dentro do próprio Estado. Eles sãomais sutis que os mafiosos”.

A associação é imediata: morador do morro,portanto traficante. O jornal garante que to-dos os “seguranças” têm ficha limpa. Adi-anta pedir desculpas?

No dia seguinte, a repercussão: “Segurançasob investigação”. O coronel Lenine deFreitas, subsecretário operacional de Segu-rança Pública, está atento: vai abrir inqué-rito para investigar o serviço feito por mora-dores de favelas e, “assim que leu a repor-tagem”, ordenou maior patrulhamento nasáreas informadas - Copacabana, Gávea e Ti-juca.

Mais um dia e o resultado na foto de capa:“O segurança Rogério Fidélis é preso: eleestava patrulhando ilegalmente uma rua acerca de 200 metros do quartel do 23o

BPM”. Dupla vitória: eliminação dos “fa-velados clandestinos”, acusação de incom-petência da polícia.

Mas não é a incompetência da polícia que

leva a recorrer aos “favelados clandesti-nos”?Rogério Fidélis havia de conhecer garotosque circulavam pelas redondezas. Podia serum “tio” a dissuadi-los de qualquer má in-tenção. Foi preso, como tantos outros na-quele dia. E a classe média continuou apa-vorada33.

A “onda do arrastão” nas praias do Rio deJaneiro, em 1992, mereceu estudo detalhadoque reitera e amplia as fronteiras entre a “ci-dade legal” e a periferia. Amparado na teoriada análise de discurso, Kleber Mendonça de-monstrou como jornais e revistas produziramdiferentes sentidos (mas todos num mesmo“sentido” de reiteração de estereótipos) aotratarem do tema, vinculando o arrastão aofunk, à segregação racial e à produção domedo social. Um trecho de matéria daVejade 18 de outubro de 1992 é exemplar:

“Da zona sul, a classe média alta partiu decarro para os recantos mais distantes em di-reção ao norte, para Cabo Frio, e ao sul, paraa Barra da Tijuca. No contrafluxo, ônibuscomeçaram a despejar nas praias (...) mora-dores de bairros distantes das zonas norte eoeste e dos subúrbios do Rio”34.(...)Enquanto a classe média alta partia, os su-burbanos eram despejados pelos ônibus. Nodicionário de Aurélio Buarque: despejo –aquilo que se despeja, lixo, dejeção. Osentido aqui produzido não é de qualquerlixo, mas de um lixo social: uma camada

33 Sylvia Moretzsohn. “A segurança da favela ea classe média apavorada”, inwww.anf.org.br, marçode 2001.

34 Kleber Mendonça. “A onda do arrastão”, inDis-cursos Sediciosos – crime, direito e sociedade. Riode Janeiro, Freitas Bastos/Instituto Carioca de Crimi-nologia, ano 4, no 7-8, 1o e 2o semestres de 1999, p.271.

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da sociedade considerada não aproveitávele, portanto, incômoda e desnecessária parao corpo social hegemônico35.

O autor ressalta ainda uma estratégia dis-cursiva muito comum e sutil para atribuir aooutro a autoria exclusiva da fala: o uso dasaspas. Comumente visto como uma referên-cia para atestar a fidelidade do que é dito,este recurso é também uma forma de ocul-tamento. Assim, a mesma revista relata o es-panto de uma dona de casa que passeava coma filha e alguns amigos no calçadão de Copa-cabana quandodeu de frente com o pessoaldo subúrbio36: “Era um bando mal-encaradode gente escura, pobre e mal-vestida”.

Ao valer-se do recurso de aspear o dis-curso direto, a revista não diz diretamenteo preconceito. Apropria-se da voz da en-trevistada, num processo aparente de ocul-tamento. Essa apropriação, ao mesmotempo que permite o ocultamento, dá lugar aum distanciamento no espaço da discursivi-dade: a revista não “opina”, reproduz a vozda dona de casa. Assim, produz um sentidose eximindo da responsabilidade de ter deresponder por essa declaração polêmica37.

Mendonça comprova o preconceito “dis-farçado” pelo aspeamento do discurso di-reto ao citar o trecho seguinte da reportagem,quando a dona de casa declara sua decisãode passar a frequentar praias mais distantes,na Região dos Lagos. A revista identificaaí “a rota migratória dos fins de semana queainda vai acabar levando garotas de Ipanemae princesinhas de Copacabana a banhar-seem Vitória, num extremo, e Guarujá, no ou-tro”. O prognóstico sombrio é notável na

35 Idem, ibidem.36 Grifamos o texto correspondente ao original da

reportagem.37 Mendonça. op. cit, p. 272.

associação de imagens: a evasão dos tradi-cionais frequentadores é uma perda para asbelezas naturais do Rio, infestadas agora poraquele bando da periferia. Gente escura, po-bre e mal-vestida. Gente feia, deseducada emal-cheirosa. A violência é também estética.

Nem se diga que este é um caso isolado,próprio de uma revista caracterizada peloestilo editorializado, de recurso frequente ametáforas fáceis e de gosto no mínimo du-vidoso. Não apenas a análise em questãoabrange outras publicações como o mesmorecurso pode ser visto, sem grande esforço,em matérias realizadas em outra época, poroutros jornais, mas com o mesmo sentido.Em 3 de fevereiro de 2000, por exemplo,o JB deu em manchete de página: “Praialimpa, só no inverno”. O texto principal ésobre o combate às línguas negras nas praiasda zona sul, mas as fotos, que ocupam meiapágina, são todas de desabrigados que vivemna areia. Um sutil e quase imperceptível re-curso gráfico (um fio ao redor desse bloconoticioso) vincula essas imagens à segundareportagem da mesma página (“Condomíniodos moradores de areia”), mas a associaçãoé inevitável: aquelas pessoas fazem parte dolixo – ou, talvez, são o principal lixo que aprefeitura deve eliminar, junto com as lín-guas negras.

Sem contar que o texto da matéria referentea esses personagens é um primor de lugares-comuns antitéticos entre a beleza do Rio ea feiúra dos intrusos, que ali se estabelece-ram “para o desespero de frequentadores ecomerciantes da orla”. A matéria opõe “ocenário mundialmente famoso graças à mú-sica de Tom Jobim” ao “exército de catado-res de lata”, a “princesinha do mar” ao “qui-nhão de moradores que dependem do alumí-nio para sobreviver”38.

38 Sylvia Moretzsohn. Jornalismo em “tempo

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Mas a ironia começa na capa: a foto colo-rida de um homem, aparentemente um men-digo, sentado sob um coqueiro, à noite, di-ante do mar, leva um título que faz graçacom a nobreza improvável: “Vieira Souto,no 1”. A legenda vai no mesmo tom, insinu-ando o abuso dos invasores indesejáveis con-tra quem paga impostos: “sem se preocuparcom IPTU, uma legião de sem-teto (...) morana praia”. E a chamada de capa inverte aordem de importância definida na página in-terna: “Lado ímpar da orla vira área residen-cial”. O texto é exemplar: “As praias da zonasul não são ocupadas só por palcos e línguanegras de esgoto. São também casas para umgrande contingente de sem-teto que vive sobos coqueiros. O mesmo lixo que incomodaos banhistas é a principal fonte de renda des-ses moradores da areia, que ganham a vidacomo catadores de latas. Depois de empur-rar um para o outro a responsabilidade pelaslínguas negras na orla da cidade, a prefeiturae o estado anunciaram que vão trabalhar emconjunto para resolver o problema”.

O mesmo “problema” (do lixo humano,não da poluição orgânica) aparece em ma-téria doGlobode 18 de abril de 2001: “Maisbossa no degradado Beco das Garrafas” éa manchete da reportagem que fala sobre oprojeto de revitalização do “famoso redutoboêmio” de Copacabana. Na foto, uma mu-lher caminha sob o sol, falando ao celular,passando por um mendigo dormindo. Le-genda: “À luz do dia, um mendigo dormenum banco do calçadão de Copacabana: apopulação de rua é um dos principais pro-blemas do bairro”.

E assim vão se consolidando as metáfo-

real”: o fetiche da velocidade.Rio de Janeiro, Re-van, 2002, p. 90.

ras biológicas do discurso higienista, queexpressam a naturalização dos conflitos so-ciais, simplificados a partir de estereótipos(“bandidos”versus“cidadãos de bem”) quereproduzem o senso comum a respeito e dei-xam ilesa a estrutura radicalmente segrega-dora e violenta da própria sociedade que pro-duz o crime e a exclusão. Mesmo o lazer dossubalternos é criminalizado: os bailesfunksão notícia sempre que registram algum inci-dente mais grave, ou envolvem alguma per-versão. Verdadeira ou não, e nem mesmo ve-rossímil, pouco importa: pois, em março de2001, os jornais noticiaram o grande escân-dalo das jovens menores de idade que esta-riam engravidando naqueles bailes, em con-sequência da dança do “trenzinho”. Tudo apartir de uma denúncia do então secretáriomunicipal de Saúde, Sérgio Arouca, que sedeclarava preocupado não com a moral, mascom a questão sanitária: a possibilidade decontraírem doenças sexualmente transmissí-veis, inclusive a Aids, tendo em vista que atal dança propiciava conjunções carnais comvários parceiros.

A denúncia teve por base relatos das pró-prias moças, e em momento algum ocorreu anenhum jornal imaginar que se poderia tratarde uma estratégia banal para encobrir da fa-mília a paternidade de uma gravidez inespe-rada, ou o álibi moralmente redentor do es-tupro. Ao contrário, deu-se crédito automá-tico à palavra da autoridade. As consequên-cias eram previsíveis: declarações indigna-das condenando a depravação daquelas fes-tas, mandados judiciais expedidos para que,na saborosa expressão de Nilo Batista, “a po-lícia trate de intervir nos bailes e impor en-tre os alegres vagões do ‘trenzinho’ uma dis-tância compatível com os elevados padrõesmorais de nossa sociedade”. Sem conseguir

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comprovar a denúncia, as diligências logra-ram apenas o óbvio, flagrando adolescentesingerindo bebida alcoólica.

Pode perfeitamente ter ocorrido que al-guma(s) adolescente(s) tenha(m) se engra-vidado em bailesfunk. Será uma novidade?Quantas moças brancas de classe média nãose engravidaram em boates e discotecas?Ocorre que o secretário de saúde só dispõede poderes para intervir e pronunciar-se so-bre a gravidez das meninas pobres, que a re-latarão em postos de saúde municipal, e nãoem clínicas de Botafogo. Admitamos queo secretário tenha de boa fé acreditado naversão que tornou pública, certamente comautorização de sua(s) cliente(s), cuja iden-tidade preservada se revelaria na originali-dade do caso, pelo menos nos limites da vi-zinhança. Sua iniciativa teve como resul-tado visível alavancar repressão penal so-bre todos os participantes de todos os bai-les funk. E aí aprendemos que, na prática, asaúde e o lazer dos pobres continuam sendoem nossa cidade um caso de polícia.(...) No Rio de Janeiro, o lazer dos pobressempre foi criminalizado, desde os temposdo Vidigal, e a saúde pública constituiu his-toricamente um grande pretexto para remo-ções e vigilância, dando surgimento às me-táforas da “insalubridade social”. Pareceque nada mudou39.

O painel fornecido até aqui é coerentecom a análise que, uma vez mais, Nilo Ba-tista empreende, ao sublinhar que no mo-delo neoliberal “o foco do controle socialpenal se desloca das chamadas ‘classes pe-rigosas’ para os ‘excluídos’, para essa le-gião de pessoas humanas que se defronta-ram com as grades intransponíveis que a ra-

39 Nilo Batista. “Nada mudou”, inwww.anf.org.br,março de 2001.

cionalidade do mercado construiu ao redordo alegre condomínio no qual residem asnovas acumulações de riqueza”40. Trata-se,segundo o autor, de “minar os campos poronde se movimentam os excluídos, para quea cada passo mais afoito exploda-lhes um de-lito aos pés”41.

A campanha de “Tolerância Zero”, quecomeçou em Nova Iorque e rapidamente ga-nhou o mundo na segunda metade da décadade 90, teve enorme repercussão na mídia e éo exemplo recente mais bem acabado dessapolítica, resumida com clareza numa decla-ração do então chefe de polícia daquela ci-dade: “Em Nova Iorque sabemos onde estáo inimigo”.

Estes inimigos seriam os“squeegee men”,os sem-teto que abordam os motoristas nossinais para lavar os pára-brisas por uns tro-cados ([o prefeito] Giuliani tinha feito deleso símbolo desprezível do declínio social emoral da cidade durante sua campanha elei-toral vitoriosa em 1993 e a imprensa popularos assimila abertamente a vermes:“sque-egee pests”), os pequenos revendedores dedroga, as prostitutas, os mendigos, os vaga-bundos e os grafiteiros. Em resumo, o sub-proletariado que vive do mercado informal erepresenta uma ameaça. Este é o alvo prio-ritário da política de “tolerância zero”, cujoobjetivo anunciado é o restabelecimento daqualidade de vida dos nova-iorquinos, poisestes, sim, sabem se comportar em público:as classes médias e altas, as que ainda vo-tam42.

40 Nilo Batista. “A violência do Estado e os apare-lhos policiais”, art. cit., p. 147.

41 Idem, p.152-3.42 Loïc Wacquant. “A globalização da Tolerância

Zero”, in Discursos Sediciosos – crime, direito e so-ciedade, ano 5, no 9-10. Rio de Janeiro, Freitas Bas-tos/Instituto Carioca de Criminologia, 1o e 2o semes-tres de 2000, p. 112.

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Trata-se, portanto, como o nome indica,de aplicar a lei ao pé da letra, “com uma in-transigência sem falhas, reprimindo todas asmenores infrações cometidas na via pública,de maneira a restaurar o sentimento de or-dem e forçar os membros das classes infe-riores a ‘moralizar’ seu comportamento”43.Ressuscitando a “teoria da janela quebrada”,segundo a qual os pequenos delitos são aporta de entrada para os maiores – e por issodevem ser reprimidos com igual rigor –, acampanha foi um sucesso de mídia, pois oque se destacava era a defesa da “qualidadede vida”, contra o quê ninguém, em sã cons-ciência, poderia se opor. Assim, escondiam-se as origens e o propósito da campanha, ini-ciada no princípio dos anos 80. Loïc Wac-quant aponta a articulação entre o trabalhode uma rede de “think tanksneoconservado-res” na Costa Leste dos Estados Unidos e asatividades de pesquisadores, jornalistas e po-líticos para justificar e divulgar a campanha,“visando solapar a legitimidade do Estado dobem-estar e substituí-lo, nas camadas inferi-ores da pirâmide social, por um Estado domal-estar capaz de ‘enquadrar’ os segmen-tos da classe operária hostis à nova culturado salário precário e de neutralizar os que serevelam por demais rebeldes”.

De Nova Iorque a doutrina da “tolerânciazero” vai se propagar pelo globo com umarapidez estonteante e com ela a retórica mi-litar da “guerra” ao crime e da “reconquista”do espaço público. Esta doutrina é o ins-trumento de legitimação da gestão policial ejudiciária da pobreza que incomoda - a quese vê, a que causa incidentes e problemasno espaço público, alimentando assim umsentimento difuso de insegurança ou mesmosimplesmente de tenaz incômodo e de in-conveniência. Facilitando o amálgama com

43 Idem, ibidem.

a imigração, os delinqüentes (reais ou ima-ginários), os sem-teto, os mendigos e ou-tros marginais são assimilados comoinva-sores estrangeiros, elementos alógenos quedevem ser expurgados do corpo social, oque acaba trazendo resultados eleitorais po-sitivos nos países varridos por fortes corren-tes xenófobas44.

7 Apresentando o “outro lado”:o crime e a exclusão como“problema social”

O quadro exposto até aqui pode sugerir quea grande imprensa adota uma única estraté-gia discursiva, voltada para o apelo à adoçãode políticas repressivas na área da segurançapública e, por extensão, para um controlemais rigoroso dos marginalizados. No en-tanto, é fácil perceber a existência de um ou-tro discurso, que vai aparentemente em sen-tido contrário ao da repressão: um discursobenevolente, de cunho “social”, que procuraentender e justificar o crime como expres-são de múltiplas carências e propõe soluçõessupostamente simples e óbvias, baseadas naboa fé e na boa vontade. Pretendemos de-monstrar que esse outro discurso, longe decontestar o primeiro, lhe é complementar,e faz parte da mesma matriz positivista se-gundo a qual a grande imprensa trabalha.

Assim, os inúmeros exemplos fornecidosaté aqui dão conta de um tratamento impie-doso em relação aos excluídos: são bandidosbárbaros (portanto, não-humanos), são indi-gentes, escória, lixo a ser removido. Mas hátambém um “outro lado”, tão simplificadorquanto o primeiro. Tomemos o caso do ôni-bus 174: Sandro do Nascimento, o rapaz ne-

44 Idem, p. 113.

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gro, feio, mal vestido e desdentado, foi fla-grado por um transeunte que o viu armadoe denunciou o fato à polícia. Acuado, emvez de se entregar, o rapaz tomou uma passa-geira como refém e se tornou um sequestra-dor. Os jornais do dia seguinte falavam em“bandido sanguinário e frio”, “visivelmentedrogado”. No entanto, talvez pelo comporta-mento de uma jovem passageira que se tor-nou a heroína da semana ao dialogar como sequestrador e tentar acalmá-lo apelandopara a imagem do homem “produto do meio”(“Sabe quem é a maior vítima dessa situa-ção? Você”), talvez porque o rapaz tivesseuma história trágica (era um dos sobrevi-ventes do famoso massacre da Candelária,em 1993), surgiu paralelamente o discursodo bandido como “vítima da sociedade”. Aponto de a revistaÉpocaestampar na capa afoto de um dos momentos dramáticos do se-questro com o título “Passageiros do horror:numa redação escolar e num diário pessoal,Sandro do Nascimento e Geisa Gonçalves,os protagonistas do seqüestro ao ônibus dalinha 174, relatam o que esperavam da vida.O encontro dos dois na segunda-feira 12 foi obra de um acaso que terminouem tragédia”45.

Nas páginas internas, a “Tragédia brasi-leira”: “Trechos do diário de Geisa e umaredação escrita por Sandro aos 13 anos reve-lam o que esperavam da vida os dois mortosno sequestro do ônibus da Linha 174”. Am-bos são igualados na condição de vítimas. Otexto se derrama pelas páginas, lacrimogê-neo, trabalhando o paralelismo que reforçao nivelamento dos personagens, começandopela descrição do dia em que o destino oslevaria a “se encontrarem para revelar os de-

45 Época, no 109, 19 de junho de 2000.

sencontros de um país marcado por contradi-ções sociais”:

Sandro do Nascimento acordou às 9 horasna manhã de 12 de junho. Atravessara amadrugada daquela segunda-feira dormindosob o viaduto do Catumbi, bairro do Riode Janeiro cercado por um anel de favelas.Geisa Gonçalves despertou pouco antes das5 horas, fiel à rotina seguida na Vila Verme-lha, localizada na parte alta da Rocinha, amaior favela da cidade. Ali, numa das tan-tas vielas úmidas e escuras, morava Geisa.Sandro tinha brigado com a namorada de 20anos, com quem vinha dividindo o cober-tor marrom. Ela se aborrecera na noite dedomingo ao ver Sandro descer, drogado, oMorro da Mineira. “Ele pegou R$ 150 egastou tudo em pó”, conta a jovem. O na-morado irritou-se. "Eu me amarro na sua,mas minha mina é a coca", retrucou. No jar-gão do morro, "mina"é mulher.(...)Poucas horas antes, estremunhada, Geisadespedira-se do marido, que saía rumo aoJockey Club, onde trabalha como cavala-riço. Era apaixonada por Alexandre, perso-nagem central do diário que abrigava seussonhos e decepções. “Perto dele sou cri-ança e mulher numa só”, escreveu, num tre-cho em que faz uma descrição minuciosa doamor de sua vida.

São muitas, aliás, as referências ao diáriode Geisa, que buscam o evidente contrasteemocional entre a esperança da moça e o seudestino trágico.

“Estou viajando para o Rio de Janeiro. Es-tou indo ao encontro da minha felicidade”,escreveu em 21 de maio de 1999. Ao em-barcar em Fortaleza, no Ceará, virou-se paraa irmã e disse 11 palavras dramaticamentepremonitórias. “Vou ficar famosa no Rio.

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Vocês vão me ver na TV”. Era só um sonho.Seria um pesadelo. O último. Chegando aoRio, Geisa foi morar na Rocinha. Ao contrá-rio dos brasileiros que vêem as favelas ape-nas como cenário do desfile de tragédias donoticiário policial, ela se encantou. “Estoumorando na Rocinha, mas muito feliz”, con-fidenciou ao diário.

Quanto aos sonhos de Sandro, porém, apromessa do título não se cumpre: há apenasduas singelas frases retiradas de uma reda-ção feita aos 13 anos (“Eles não são animaisnão. São crianças indefesas sem nenhuma ri-queza”) e o comentário de sua então profes-sora, a pedagoga Lígia Costa Leite: “Desdeos 7 anos ele lutava para não morrer. O ex-termínio virou política social no Brasil”.

Houve, é certo, pelo menos dois exemplosque evitaram a simplificação. Ambos no JB:um rememorava a história dos sobreviventesdo massacre (“Uma chacina que dura seteanos”, na edição de 19 de junho de 2000,manchete da página 18, com chamada decapa que apresenta duas fotos de Sandro, aos14 e aos 21 anos, sob o título “Marcados paramorrer”); outro, no dia 21, um pequeno qua-dro com foto de um grupo de quatro rapazespobres, intitulado “Sandro na PUC”, expõea precariedade das possibilidades de integra-ção de jovens marginalizados, a fragilidadedos laços entre eles e quem deseja ajudá-los: o breve período em que aqueles jovenstiveram a oportunidade de participar de umprograma comunitário promovido pela PUC,através da prática da capoeira.

Os meninos participaram apenas um ano emeio, de meados de 93 até o final de 94.Sandro, porém, se desligou do grupo antese nunca mais foi visto. Nessa época, elefoi preso traficando drogas e ficou internadodurante seis meses no Instituto Padre Seve-rino. Depois, seguiram-se assaltos e prisões

que resultaram em mais cinco anos de con-denação na Justiça. Foragido, Sandro voltoua viver nas ruas e se afastou dos amigos.

No contexto geral da cobertura, porém, oque ficou foi essa oscilação entre o retratode um bárbaro e o desenho de uma vítima dosistema, ambos vivendo na mesma pessoa. Aoutra ênfase recaiu sobre a condenação da in-competência da polícia – que mereceria aná-lise à parte, pois se baseia na mesma simpli-ficação –, mas disso não vamos tratar aqui.

Outro exemplo clássico nesse movimentopendular é o do tratamento dado a crian-ças e adolescentes marginalizados. Em meioa inúmeras matérias que sublinham o pe-rigo representado por menores delinquentes(“Batoré fugiu. São Paulo está mais peri-gosa”) e carreiam argumentos para o apeloa mais repressão (a redução da idade paraimputabilidade penal, por exemplo), surgemtextos que tratam esses menores piedosa-mente, como crianças inocentes. O então di-retor de redação do JB, Fritz Utzeri, esco-lheu o Dia das Mães de 2000 para escreverum artigo melodramático sobre um meninoque dormia ao relento num calçadão da orlada Zona Sul, na manhã de um dia radioso,entre jovens atléticos que desfilavam roupasesportivas e faziam suas caminhadas sem lhedar atenção. A foto do menino encolhido nocobertor sujo ocupava a capa e a contracapada edição de 15 de maio. É notável aindaque, no dia seguinte à publicação do texto, ojornal tenha desejado sair à cata daquele me-nino, como se fosse possível encontrá-lo en-tre tantos outros e, principalmente, como se ahistória dele fosse diferente da de tantos ou-tros; enfim, como se aquela situação particu-lar fizesse alguma diferença – a não ser parao próprio jornal sublinhar seu lado humanitá-rio: quem sabe, a partir daquela história co-movente, não surgiria alguma boa alma para

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adotar o menino que dormia “o triste sonosem mãe”?

Na manhã fria de Ipanema, o meninodorme um sono profundo. Estaria so-nhando? Enrolado numa manta, encolhidopara proteger-se do frio, falta algo àquelemenino sem nome no dia de festa. O Diadas Mães. Quem será a mãe do menino? Porque não estão juntos nesse dia como tantosfilhos e tantas mães, de todas as idades, quebrincam na praia e fazem grandes filas emchurrascarias, exibindo presentes? Comoele, centenas de meninos, milhares de meni-nos, em todo o Brasil, não tiveram a alegriade ver as mães em seu dia.Dorme o menino, alheio a trabalhos de espe-cialistas que registram aumento do consumode cola de sapateiro entre os menores de ruanesses dias de festa. A droga-cola, que ali-via, ajuda a fugir do triste dia-a-dia e acabapor matar.O que esperar desse menino que dorme? Oque cobrar dele mais tarde? Provavelmentea sociedade lhe reserva repulsa e repressãoe, se tiver sorte, chegará a ser um adulto.Que tipo de adulto? Inocente e indefeso,dorme o menino. Está só, todos passamosindiferentes por ele quando o vemos em si-nais, vendendo doces, limpando vidros, pe-dindo esmola.Por que tem que ser assim? Que tipo de vidae de sociedade leva uma mãe a abandonarsua cria à própria sorte? Nem os animais fa-zem isso, mas as circunstâncias, muitas ve-zes, obrigam o ser humano a ser mais insen-sível do que os bichos. O que vamos fazertodos, a começar pelo governo das estatísti-cas sem alma? Esse menino não seria con-seqüência de um modo de conduzir a soci-edade? Näo seria melhor que os políticose governantes prestassem mais atenção nelee na legião de sem-mãe que assolam nossasruas? E nós, o que vamos fazer a respeito?

Não seria a hora de, pelo menos no Dia dasMães, pensar um pouco a respeito disso?Dorme o menino, na frieza dura da pedra,e se pudesse sonhar, sonharia com o calormacio do regaço materno, com uma cançãode ninar, cheia de carinho. Dorme o menino,dorme com frio...46

O que “nós” (a imprensa, no caso) pode-ríamos fazer a respeito seria, de saída, mudaro foco da cobertura. Pois esse mesmo me-nino andrajoso frequenta sistematicamentea capa dos mesmos jornais, flagrado emsequências de fotos que testemunham peque-nos furtos nas praças movimentadas da ci-dade, nos sinais de trânsito, nos calçadõesà beira-mar, ou perambula em grupos demaltrapilhos cheirando cola, jogados ao léu.Essa configuração cotidiana não deixa dú-vidas sobre quem ele é: um perigo para asociedade. No entanto, o discurso oscila:num mar de repressão, espasmos de huma-nitarismo também centrados na figura do in-frator, momentaneamente encarado como ví-tima.

Devemos ter pena ou medo deles? De-vemos ampará-los a ponto de adotá-los emnossas casas ou ranger os dentes, cerrar ospunhos e bradar pelo seu extermínio?

Essa dualidade simplificadora não é ape-nas resultado de alguma falha na formaçãodo jornalista, ou de uma incapacidade deapreender as questões sociais em sua com-plexidade: faz parte da própria maneira pelaqual a imprensa se organiza como empresa,envolvendo as rotinas de produção e a ne-cessidade de cumprir prazos cada vez maisexíguos. Começa com o círculo vicioso for-mado pelo recurso às mesmas fontes, abor-dado por Gans com ironia – numa demons-

46 Fritz Utzeri. “O triste sono sem mãe”.Jornal doBrasil, 15 de maio de 2000.

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tração dos motivos pelos quais “tudo o querompe o ronron tem todas as chances de nãoser percebido”:

A relutância em contactar outras pessoasque não as fontes oficiais e familiares nãodeveria nos espantar. Os sempre apressa-dos repórteres não têm tempo para desen-volver um relacionamento com fontes nãofamiliares e nem seguir a rotina que trans-forma desconhecidos em informantes. (...)As fontes não familiares podem fornecer in-formações não passíveis de avaliação, o quegera insegurança. E, sobretudo,as fontesnão familiares podem fornecer informaçõesnovas ou contraditórias que atrapalhem acapacidade dos repórteres para generalizare resumir. Todos os jornalistas têm que seapoiar numa base de dados de número limi-tado para não serem inundados por um vo-lume de informação maior daquele que po-dem rapidamente processar e adaptar ao li-mitado tempo de transmissão ou ao limitadoespaço de impressão [do jornal]47.

E se completa com a argumentação deSchudson a respeito da dualidade sobre aqual a imprensa opera:

Isto é o que a imprensa realiza melhor: ma-tériasadequadas, que têm antecipadamenteseus pontos finais, e cujos pontos finais re-sultam de possibilidades simples, binárias -a eleição ou o jogo será ganho ou perdido,o índice Dow-Jones vai subir ou descer, oacusado será julgado culpado ou inocente, ocriminoso foi preso ou está à solta, o paci-ente sobrevive ou morre, a criança está de-saparecida ou foi encontrada. Temas maiscomplexos do que estes - o orçamento, porexemplo -, se devem ser cobertos com efici-ência, são traduzidos em oposições binárias

47 Gans. op. cit. Grifos nossos.

do tipo: o presidente vai sair vitorioso ouserá derrotado pelo Congresso48.

Cabe ressalvar, porém, que não são os te-mas que são simples ou não; a rigor, todasas notícias poderiam ser exploradas em suacomplexidade. Fatos criminais, jornalísti-cos por excelência - pois representam o des-vio mais ou menos violento à norma - pode-riam ser abordados no seu potencial crítico aessa mesma norma, pois “o desviante não éaquele que lê a norma diferentemente, mas éo que lê na norma aquilo que ela quer ocul-tar”49. Mas para isso a imprensa precisariaestar assentada em outras bases.

8 Propondo “soluções”: o socialcomo coisa simples

No já referido estudo sobre a “questão so-cial” – grave questão resultante das contradi-ções entre capital e trabalho –, Gisálio Cer-queira Filho demonstra como as oscilaçõesno tratamento do tema (caso de polícia/casode política), desde o não-reconhecimento,na República Velha, até a legitimação, apósa Revolução de 30, se deu sempre atravésda mesma fundamentação positivista oculta-dora dos conflitos, orientada sempre por umateoria da integração social. A estratégia dis-cursiva é, claro, converter o ideológico em“natural”. Assim, a própria legitimação daquestão se dará nos termos da reiteração domito do Brasil como “um país especial,suigeneris, onde não cabem a violência, o con-flito social, que são atribuídos a outros po-vos”50: assim, em toda parte a “questão so-cial” é grave e inquietadora; aqui, ela pode

48 Schudson, op. cit., p. 99. Grifo nosso.49 Antonio A. Serra. op. cit., p. 23.50 Gisálio Cerqueira Filho, op. cit, p. 119.

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ser “reconhecida” exatamente porque não re-presenta perigo – ao contrário, expressa aharmonia entre capital e trabalho51.

Essa teoria da integração social é “um dosmarcos fundamentais em torno dos quais seconstrói o discurso político dominante sobrea ‘questão social”’.

Portanto, o discurso político dominante so-bre a “questão social” é o discurso políticodo capital, adaptado às condições conjuntu-rais da formação histórica brasileira. Valedizer, calcado no autoritarismo e na concili-ação, isto é, no paternalismo52.

A análise tem como foco central a relaçãoentre Estado e sindicatos, a legislação tra-balhista como “outorga” e não como resul-tado das tensões entre as classes, etc., mas seaplica igualmente à maneira pela qual o dis-curso dominante enquadra os subprodutos darelação capital/trabalho: a questão criminal ea periferia, os marginalizados em geral.

Some-se a isso a crítica de Jock Young à“criminologia cosmética” e ao social como“coisa simples”, e teremos instrumentos paraavaliar esse outro eixo da cobertura desti-nada aos fatos criminais e aos excluídos.

A falácia cosmética concebe a criminali-dade como um problema superficial da so-ciedade, tópico, que pode ser tratado coma aplicação do ungüento apropriado, e nãocomo uma doença crônica da sociedadecomo um todo. Esta atitude engendra umacriminologia cosmética, que vê a crimina-lidade como uma mancha passível de serremovida com o tratamento apropriado docorpo, que, sem ela, é saudável e tem poucanecessidade de reconstrução. Esta crimino-logia (...) prefere soluções técnicas, seg-mentárias. Por isto ela inverte a causalidade:51 Idem, p. 77.52 Idem, p. 119.

“a criminalidade causa problemas para a so-ciedade”, em vez de “a sociedade causa oproblema da criminalidade”53.

Tal é a inversão que permite, segundo oautor, a demonização de partes da socie-dade:

Em vez de se reconhecer que temos pro-blemas na sociedade por causa do núcleobásico de contradições na ordem social,afirma-se que todos os problemas da soci-edade são devidos aos próprios problemas.Basta livrar-se dos problemas e a sociedadeestará,ipso facto, livre deles! Assim, emvez de sugerir, por exemplo, que grandeparte do uso deletério de alto risco de dro-gas é causado por problemas de desigual-dade e exclusão, sugere-se que, se nos li-vrarmos deste uso de drogas (“diga não”,trancafiem os traficantes), não teremos maisnenhum problema. A solução torna-se entãoentronizar potentados como czares do com-bate antidrogas, na perspectiva de eliminaro problema da sociedade, como se fosse umproblema cosmético e não da estrutura e dosvalores interiores da própria sociedade54.

A segunda falácia, segundo Young, “giraem torno da idéia amplamente aceita de queo mundo social é uma estrutura relativa-mente simples, em que taxas de diferenteseventos sociais (e.g. casamentos, suicídios,greves, crimes) podem ser relacionados commudanças estreitamente delineadas em ou-tras partes da estrutura”. O autor mostracomo essa simplificação adapta-se perfeita-mente à rotina de trabalho da imprensa:

53 Jock Young.A sociedade excludente – exclusãosocial, criminalidade e diferença na modernidade re-cente. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Crimino-logia/Revan, 2003, p. 191.

54 Idem.

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A chave para o interesse e a qualidade deuma notícia é (...) o atípico: aquilo que sur-preende, que está em contraste com a pre-sumida “normalidade” cotidiana. Não é deespantar que criminólogos e estudantes ve-nham se interessando pelo lado negativo doatípico: vilões, assassinos em série, demô-nios populares e outros monstros. Mas olado positivo, estrelas, heróis, princesas en-cantadas mortas em circunstâncias trágicas,também é um lugar de concentração da mí-dia e de projeção de esperanças e ansiedadespúblicas. E exatamente os mesmos proces-sos de seleção, ênfase e construção de notí-cias ocorrem aqui, como no lado escuro daexistência humana. Assim, embora ondasde crimes sejam um prato de resistência daimprensa, as curas “milagrosas” da crimina-lidade também o são (sejam elas suplemen-tos alimentares, circuitos fechados de tele-visão, Vigilantes de Bairro, teste de ADNou Tolerância Zero em Nova Iorque). Pâni-cos e panacéias morais andam lado a lado, econstituem o estoque diário das coberturasnoticiosas, assim como as histórias trágicasdos que estão aflitos pelo câncer e as des-cobertas “revolucionárias” regulares no seutratamento55.

Criminosos e excluídos – esses, sempre aum passo da delinquência – seriam ovelhasdesgarradas cuja ressocialização dependeria,portanto, de soluções “simples”. Curioso éque a ressocialização – em instituições comoa Febem, no caso de crianças e adolescentes– se daria através do aprendizado de determi-nadas profissões que eventualmente os pró-prios infratores desempenhavam antes de se-rem ali recolhidos, e que não são considera-das como tais quando esses menores respon-dem aos questionários que os enquadram.

55 Idem, p. 189 .

Foi o que demonstrou estudo de Vera Mala-guti Batista, indicando ainda a diferença detratamento em função da classe social: ummenor pobre, usuário de maconha, foi inter-nado por ter família desestruturada; outro, declasse média, também usuário de maconha,estava na mesma situação: morava com amãe, psicóloga, os pais eram separados. Noentanto, voltou para casa, pois a própria mãe,devido à sua profissão, estaria em condiçõesde ampará-lo...56

Estereótipos de cunho social estão presen-tes, por exemplo, no caso das “meninas docrime”, que o JB publicou em 13 de agostode 2000 e foi objeto de nossa análise em ou-tro artigo:

A foto domina a primeira página: um quêde vaidade no detalhe de unhas pintadas ecabelos tingidos, e a humilhação do gestoinevitável, corpo curvado, rostos encober-tos entre os braços cruzados. Três jovens deuniforme azul e chinelos: Amélia, Ivonete eEstela, presas por roubar um celular. Nomesfictícios, figuras sem rosto: a medida pro-tege mas também agride, rouba-lhes a iden-tidade. Só podem aparecer escondendo-se,num contorcionismo autoflagelador, supos-tamente envergonhado da culpa.O ritual se repete na manchete da página in-terna: “um retrato das meninas do crime”.Retratos pela metade: na foto principal, denovo as três, agora de pé, com as mãos sobreo rosto; abaixo, uma jovem de comporta-mento exemplar para ilustrar a matéria (estágrávida mas diz ter relações homossexuais)aparece contra o espelho, barriga proemi-nente à mostra, cabeça cortada; ao lado, dei-tada sobre a grama do pátio do reformatório,

56 Vera Malaguti Batista.Difíceis ganhos fáceis –drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio deJaneiro, Freitas Bastos/Instituto Carioca de Crimino-logia, 2000.

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outra jovem encara a câmera, mas a velhatarja preta nos olhos lhe contém a ousadia.

É a matéria principal doJornal do Brasildo domingo 13 de agosto: “Droga duplicapresença das meninas nos crimes”. Re-portagem (mais uma) sobre uma pesquisa(mais uma) com jovens marginais. A pes-quisa se detém sobre o universo femininoe aponta o crescimento “estarrecedor” demais de 100% de moças infratoras. A repor-tagem utiliza os depoimentos da pesquisapara reiterar as “histórias de vida”: filhas defamílias “desestruturadas”, ou sem famíliaalguma, envolvidas no tráfico por causa do“amor bandido” ou iniciadas muito cedo noconsumo de drogas.

Nem a pesquisa nem a reportagem suspei-tam que talvez não seja a droga, tão consu-mida nas classes média e alta, que leve aocrime, mas as condições em que as famí-lias se “desestruturam”, e que levam aquelasmeninas a vender algo ilegal para essas mes-mas classes média e alta, enxergando aí apossibilidade de conseguir um dinheiro quenão seria obtido de outra forma.

Uma tal hipótese permitiria abrir a perspec-tiva de uma investigação mais profunda so-bre desigualdades sociais. Portanto, convémficar na superfície e reiterar o que já se sabe.

Então surge mais uma reportagem sobremais uma pesquisa. E se apontam mais umavez as mesmas “soluções”: os projetos de“ressocialização”, lamentavelmente emper-rados pela “sociedade”. Aquelas moças in-convenientemente violentas também são ca-pazes de mostrar suas prendas. Fazem qui-tutes ótimos; também aprendem artesanato.Só que a “sociedade” não compra.

As “meninas do crime” garantem manchetefácil porque chocam: meninas devem serdelicadas. Mas, uma vez presas, aprendem:boas meninas, vão cozinhar, costurar ou fa-bricar enfeites. Também os meninos vão

“aprender uma profissão”: carpinteiro, jar-dineiro, servente.É o lugar de meninas (e meninos) crimino-sos. Nada de sonhar com o prazer, o poder,a felicidade e a fama prometidos nas ima-gens da publicidade. Meninos e meninas àbeira da marginalidade devem conhecer seulugar: assim não vão atacar a “sociedade”que pode sonhar e realizar seus sonhos.O problema é que não há lugar para tantascozinheiras e serventes. A sociedade nãocompra57.

Muito menos haveria lugar para tantos ar-tistas e jogadores de futebol. No entanto, es-sas são as saídas simples defendidas pelo dis-curso bem-intencionado da “integração” dosexcluídos, e reproduzido de forma tão entu-siasmada pela imprensa. Significativamente,a salvação se daria através dos caminhos damúsica e do futebol: talentos inatos dessagente bronzeada que, por esse meio, mos-tra seu valor aos olhos do mundo – mas que,para aflorarem, exigem enorme esforço, nãosó para trabalhar a vocação como para afas-tar os muitos e sedutores apelos do “mal”.

Então,O Globo, em 18 de julho de 1999,louva a iniciativa dos “Jogos da Paz”, num tí-tulo em que o jogo de palavras não deixa dú-vidas quanto à expectativa: “O esporte viraarma na luta contra a violência”. O cam-peonato, promovido pelo Movimento VivaRio com o apoio da Unesco, contava comcerca de 40 mil jovens entre 14 e 17 anos, “amaior competição envolvendo adolescentesno Brasil”, reunindo times de colégios, con-domínios, favelas e instituições para meno-res infratores, que estariam em campo para“enfrentar a cidade partida”, numa maratona

57 Sylvia Moretzsohn. “A sociedade não com-pra”. RevistaAliás, Niterói, IACS/UFF, 2o semestrede 2000.

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que terminaria em fins de novembro daqueleano.

Ilustra a matéria foto de um time formadocomo manda o figurino – um grupo em pé,outro agachado –, tudo normal não fosse odetalhe: os atletas apresentam-se de costas,pois, como infratores, não podem mostrar orosto. Têm a cabeça raspada e estão des-calços. “O time do Padre Severino posa decostas, como manda a lei, para preservar aidentidade dos menores infratores: sonhosde uma vida melhor”, diz a legenda. Os de-poimentos reiteram o sonho de seguir a car-reira de jogador, cada qual comparando-se aum ídolo do momento. A regra do jogo tam-bém parece ter sido bem entendida e é rela-tada logo nolead:

O adolescente estava quase terminando deresponder sua ficha de inscrição. A lacunaseguinte, uma das últimas, era “Nome dotime”.– “Lá Vai Bala” – respondeu ele, sem alterara voz.Um instante depois, o menino pediu à fun-cionaria que não escrevesse o nome.– Acho que não combina, né? Vamos trocar.Escreve aí: “União pela Paz” – decidiu.

A seguir, o repórter compara a cena, ocor-rida em Nova Iguaçu, “à história da con-cepção das Olimpíadas, na Grécia antiga,quando os homens desistiram da guerra parase dedicar às disputas esportivas”.

O JB de 9 de julho de 2000 também faztrocadilho no título de matéria sobre o pro-jeto “Tênis para todos”, aplicado a criançasda favela da Maré na esteira do sucesso in-ternacional de Guga: “Sonho de criança namaré do tênis”. E aposta: “A brincadeira decriança, que começou há um mês, na VilaOlímpica da Maré, passa a ser agora umapossibilidade de futuro”.

A solução mágica do esporte é assimapontada como a salvação para jovens po-bres que, de outra forma, estariam no trá-fico. A história de “Bruno Pacheco, um bra-sileiro”, no Globo de 24 de novembro de2001, é apresentada como “uma metáfora dopaís”: 18 anos, bicampeão brasileiro juvenile campeão sul-americano dos 100 e 200 me-tros rasos, a “maior promessa do atletismobrasileiro” vem de família humilde. Nascidonuma favela na Zona Norte do Rio, despon-tou para o atletismo aos 14 anos, mas, semdinheiro, sem perspectivas, procurou ami-gos de infância, já envolvidos com o tráfico.Tornou-se um deles. Até que o técnico foibuscá-lo. Negociou com os traficantes, que– segundo relato do próprio técnico – só qui-seram saber se o colega “era bom mesmo”.A saída, como se vê, é o esporte (haja cam-peonatos!), mas o próprio Bruno a consideraprecária: “Já tentei levar alguns que estãohoje no tráfico para o atletismo. Tenho cer-teza de que muitos seriam campeões. Mascomo convencer o cara a largar aquilo paraum negócio que ele nem sabe se vai dar re-torno e que dificilmente dá?”. Ao escolheresse trecho da fala do entrevistado, a reporta-gem faz a sua própria ressalva, falando atra-vés dele. Mas não investe na crítica; ao con-trário, respira aliviada com a salvação do ra-paz: “Hoje, esses dias e noites bandidas es-tão no passado”. E conclui, em tom apoteó-tico: “Suas noites agora são muito mais tran-quilas que as de antes, em claro, vigiandoos movimentos da polícia em uma laje qual-quer. Dormindo o sono dos justos, sonhandocom Atenas 2004. Bruno Pacheco, um bra-sileiro”.

O menino pobre que supera a adversidadee conquista seu lugar é um vencedor típico daética protestante – e é disso que tratam sis-

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tematicamente as reportagens que traçam operfil desses atletas, abusando do jogo de pa-lavras de duplo sentido (fulano dribla o pre-conceito, vence a miséria, ergue o troféu dasuperação, etc). Em 1o de agosto de 1999,O Globo falava sobre os “campeões dentroe fora das pistas”: Vanderlei Cordeiro deLima, Claudinei Quirino, Elenilson da Silvae Eronildes Araújo, ganhadores de medalhasnos Jogos Pan-Americanos daquele ano. Otexto relata a infância difícil de todos eles,ex-bóias-frias, frentistas, boiadeiros, balco-nistas, até que foram descobertos para o es-porte e conquistaram “a vitória definitiva so-bre as terríveis dificuldades postas no cami-nho de quem nasce miserável”. Aquelas me-dalhas seriam “os certificados de que está ga-nha – de virada – a luta para vencer na vida”.

Toda a lógica gira em torno da ascensãodentro do sistema, do qual, aliás, o esportese tornou a mais perfeita metáfora: todos es-tão no jogo, mas apenas alguns vencem. Defato, não há lugar para todos – pelo contrário,há lugar para muito poucos –, mas mesmoassim este continua sendo o aceno principalpara os jovens de periferia mudarem de vida.

“Assim nascem os homens”, sentenciapomposamente o título do JB que, em 8de fevereiro de 2000, evoca famosowesternpara falar sobre o repentino sucesso de umajovem revelação do Flamengo na mais re-cente vitória do time. O subtítulo (“Adriano,destaque no 5 a 2 sobre o São Paulo, diz quegol marcou o início da maturidade”) procurafechar o sentido sobre o “nascimento” da-quele “homem” de que fala o título, mas osignificado é muito maior, como a matériaevidencia:

Cabo Jorge, Nino, Hermes e Adauto bri-lham no campo de terra da favela de VilaCruzeiro. Maguilinha, um dos maiores cra-

ques da comunidade, foi assassinado antesde completar 22 anos. Vida na favela é as-sim: todos jogam bola, muitos se envolvem“com o caminho errado do tráfico” e poucosconseguem sair dos becos escuros.

O texto parece enveredar para um aprofun-damento crítico, mas logo muda de tom:

O adolescente Pipoca, que aos nove anosviu o pai cair baleado, talvez seja um dessesiluminados. Seu Mirinho sobreviveu comsaúde, apesar da bala alojada na cabeça. EPipoca trocou o campo da favela pela es-perança verde do futebol profissional, ondejá é respeitado como o Adriano, aquele quemarcou o terceiro gol do Flamengo, na go-leada de 5 a 2, domingo, contra o São Paulo.

A foto principal da matéria mostra o rapazem meio a entusiasmadas crianças no campoda Vila Cruzeiro. A expectativa é de todosali, mas a chance é apenas para os “ilumina-dos”. Pois não basta ser bom de bola: Ma-guilinha, por exemplo, “jogava muito”. Épreciso, portanto, ser também um bom rapaz.Como Adriano, que não bebe e, aos 17 anos,já está “nos braços de Ariane, de 16 anos,com quem (sic) ficou noivo após nove mesesde namoro”.

A outra tábua de salvação é a música.“Choro abre perspectivas para jovens pobresda Baixada”, diz o título de matéria doGlobode 23 de dezembro de 2001, que comemorao “prazer de exercer a cidadania através damúsica”. Uma cidadania que, entretanto, ca-rece de patrocínio:

A grande dificuldade da associação [do Mo-vimento de Compositores da Baixada] éconseguir patrocínio. O apoio do BNDESem seu programa de incentivo e valoriza-ção das artes e da cultura de jovens talentosdeu ânimo aos educadores da escola de mú-sica. (...) Mas, segundo a própria diretora,

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ainda há muita coisa a ser feita e a coordena-ção pretende sensibilizar a prefeitura de SãoJoão de Meriti para os projetos da escola,que tiram as crianças da ociosidade.

No mesmo dia, no mesmo jornal, outroexemplo de salvação pela música: “O rapde Garnizé contra as almas quase perdidas –músico e educador da periferia de Recife temvida contada em filme e tenta salvar menoresem situação de risco”. O título evoca o fa-moso filme “O rap do Pequeno Príncipe con-tra as almas sebosas”, no qual o rapaz dividea cena com o justiceiro Hélio Muniz José daSilva, mais tarde preso, e que acabou mortopor colegas de cela.

A matéria começa assim:

Um sobrevivente. É assim que José Alexan-dre a Silva, o Garnizé, de 30 anos, se define.Criado em um bairro violento no municípiode Camarajibe, a 15 quilômetros de Recife,já perdeu as contas dos amigos do Alto daBoa Vista que morreram ou estão presos.Mas ele quis mudar esse destino: músico,educador e ator, Garnizé trabalha com me-nores em situação de risco e já começa a fi-car conhecido em Pernambuco.

Eis aí mais um que reuniu força de von-tade para se superar. Na entrevista, ele repro-duz o discurso já sacralizado sobre os malesda periferia:

“O que acontece em Camarajibe acontecena periferia de todo o Brasil. Nos morros,falta ocupação, faltam alternativas de lazer,quadras poliesportivas. Do que não presta,sobra tudo: armas, drogas fartas e excessode más companhias. Se o adolescente nãotem uma base familiar sólida e uma boa edu-cação, termina sendo empurrado da socie-dade”.

De novo a favela comolocus do mal, evista assim não por alguém de fora, algumaautoridade interessada em lhe tolher os mo-vimentos, mas por um seu legítimo represen-tante. Especialmente significativa é a refe-rência às más companhias: quem são, comoe de onde elas surgem? Como caracterizá-las, como reconhecê-las? Garnizé não diz,ou pelo menos não lhe perguntam. E assimele pode usar o lugar-comum que opõe a so-ciedade (os homens de bem, que têm educa-ção e base familiar sólida) e o resto (que sópode ser a favela).

Na mesma página, introduzida por um tí-tulo que reforça a via da música como sal-vação (“Percussão é a arma contra a violên-cia”), matéria coordenada remete novamenteao “problema social” ao contar a história doentrevistado:

Garnizé teve família. O pai era operário e amãe fazia quitutes para aumentar a renda dafamília. Mas o pai tinha um vício: o álcool.E o filho não suportava vê-lo bêbado. Saiude casa e passou quatro meses dormindo narua, até ser acolhido por uma família.

Temos então uma explicação “social” parao drama daquela criança: o pai alcoólatra.Não um contexto de incerteza e insegurança,mas uma pessoa que se entrega ao vício.Naturalmente, ninguém se lembra de quan-tos pais alcóolatras ou similares existem naclasse média e na elite, e que provavelmentegeram crises familiares, mas jamais a pontode levar uma criança abastada, ou simples-mente remediada, a ir morar na rua.

9 Finalizando: melhorar oumudar a imprensa?

No dia 21 de julho de 2001, um sábado, oJB chocou o público ao estampar foto ocu-

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pando quase toda a metade superior da capacom a cabeça ensanguentada do jovem CarloGiuliani, morto com um tiro em Gênova, du-rante um dos protestos que a imprensa clas-sifica generica e imprecisamente como “an-tiglobalização”. As críticas imediatas, ex-pressas especialmente em cartas de leitores,diziam respeito à propriedade de se utilizaruma foto daquelas na primeira página: al-guns elogiavam a ousadia, outros condena-vam o jornal por estar fazendo concessões aosensacionalismo e ao mau gosto, nivelando-se aos jornais populares, utilizando um apelodesnecessário para vender mais, etc. Em suacoluna de 26 de julho, o articulista Eugê-nio Bucci abordou o tema de maneira maisdensa, explorando um aspecto que passa des-percebido da maioria do público pela própriaestrutura segundo a qual a informação é di-vulgada: as imagens de impacto, que se bas-tam a si mesmas, e silenciam sobre o con-texto.

Retratar essa morte é um dever jornalístico.(...) O que se passou foi tão grave que foidestaque em todos os jornais e programasjornalísticos a que tive acesso esta semana.Mas algo está faltando. O que me incomodanessa cobertura toda não é o que ela vemmostrando, nem as tintas de que ela se vale,mas exatamente o que não ela mostra e nãoilumina. É como se exibir a morte fosseo bastante. Para uma imprensa viciada emimagens de impacto, a cabeça ensangüen-tada de Carlo Giuliani é o olho do furacão.E basta. O nosso olho – nosso olho de pú-blico, nosso olho de jornalistas, tanto faz –fica hipnotizado e não consegue se despren-der daí. Não vê o entorno, não estabelece asrelações necessárias. Assim, caímos numainversão: a imagem forte, que nos alerta,serve para nos cegar. As razões menos su-perficiais nos escapam.(...)

O jornalismo cumpriu sua função ao retrataros enfrentamentos em Gênova, mas deixaa desejar quando não investiga as razõesde fundo desses enfrentamentos – e quandoaceita acriticamente, em seu discurso cotidi-ano, as premissas que presidem a globaliza-ção. Penso na imprensa brasileira de modoespecial. (...) Ela não se pergunta sistemati-camente das conexões entre as tragédias so-ciais – desemprego generalizado, fome, tra-balho escravo – e o processo de globaliza-ção, assim como não apura como e por queas demandas do capital, no nosso tempo,acabaram se transformando em metas públi-cas de governo pelo mundo afora: privatiza-ções, desmonte da Previdência, asfixia dasuniversidades públicas etc. Em todos os paí-ses periféricos ou semiperiféricos as metasde governo são idênticas. Por quê? Ela nãopergunta enfim por que a globalização vi-rou um fato consumado que se impõe semqualquer outro diálogo que não esses “decúpula”. Antes, as razões de Estado é queeram indiscutíveis e indevassáveis. Hoje,são as razões do mercado. Por quê?58

A crítica tem a clareza de apontar a omis-são da imprensa no estabelecimento de re-lações entre as premissas da globalização ea nossa tragédia cotidiana, e o mérito de fa-zer esse tipo de observação no próprio jor-nal; mas, talvez por isso mesmo – o lugaronde se publica a crítica – não avança parao principal. Pois não se trata de uma falha,uma lacuna passível de ser preenchida:estaimprensa não investiga essas relações exata-mente porque adota o discurso da globaliza-ção, e o adota porque faz parte dele. É deacordo com ele que se organizam as empre-

58 Eugênio Bucci. “O olho da gente no olho dofuracão”.Jornal do Brasil, 26 de julho de 2001.

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sas jornalísticas produtoras desse tipo de in-formação.

Assim, não é que fiquemos sem saber “porque” as coisas são como são; somos treina-dos a incorporar um “porque” perverso, atra-vés do qual nosso papel de subalternos passaa ser plenamente justificável e aceitável. Osexemplos são inúmeros: matérias sobre pri-vatização (que incluem o desmonte da Previ-dência e da universidade pública) trabalhamcom a lógica neoliberal, segundo a qual o Es-tado (como no velho anúncio do governo) éum paquiderme nefasto, afirmando que a efi-ciência (cujo sentido jamais se discute) deveser a meta suprema em nossas vidas. Ma-térias sobre tragédias sociais exploram aomesmo tempo o drama apresentado e a sensi-bilidade do público, disposto a engajar-se emcampanhas de voluntariado (como a relativa-mente recente série do Jornal Nacional sobrea fome, que ganhou vários prêmios de jor-nalismo, embora não fizesse relação algumaentre a seca e os interesses políticos que im-pedem qualquer ação não-paliativa). Maté-rias sobre violência, como as que analisamosem detalhe ao longo deste artigo, partem depremissas muito claras sobre quem é o agres-sor, e reiteram no público os estereótipos quebloqueiam a capacidade crítica para qualqueração transformadora.

O próprio JB resume exemplarmente es-ses argumentos, ao evidenciar a diferença detratamento entre a capa com o jovem mortoem Gênova e outra capa, apenas dois dias an-tes, que noticiou mais uma “explosão” po-pular numa favela. O título “A globalizaçãoe seus descontentes”, como Bucci lembra,evoca Freud (“A civilização e seus descon-tentes”), o texto sentencioso remete à poesiade Mário Faustino. Já a violenta manifes-tação de moradores do Morro da Providên-

cia foi tratada como “encenação” – e tome-se a palavra aqui em seu sentido corriqueiro,longe da teoria da “encenação dos sentidos”,a produção de “eventos de mídia” ou formu-lações semelhantes que colocariam o debateem outros termos para o público do jornal.Encenação como montagem, falsidade, coisaforjada: não haveria drama algum no “pro-testo controlado por traficantes”, o pai damenina morta “encena[va] revolta pela filha”na legenda da foto de capa. Claro, o gladia-dor defunto mas intacto de Gênova merece abalada do poema: é jovem, branco, europeu,mártir de uma causa política. Um legítimoresistente. Os pretos pobres do morro cari-oca, impertinentemente atrapalhando o trá-fego no viaduto do Centro da cidade (que,aliás, leva ao JB), não agiam ao som de vagasde verdade e de loucura, nem mereceriam sertratados como cidadãos completamente lou-cos com carradas de razão: para o jornal, étudo encenação. O drama social – não ape-nas a morte de uma criança de 3 anos, masum desempregado de 18 anos que foi pai aos15, a mãe desdentada que aos 19 tem maisquatro filhos além daquela, uma comunidadeinteira vivendo à beira do precipício no altode uma pedreira desativada que ameaça de-sabar, nada disso importa. Vale apenas regis-tro parcial ao pé de uma retranca, que ousachamar de “casal” os pais da menina morta,como se constituíssem uma família estável.

Retornemos, então, à nossa epígrafe e ànossa hipótese original: tudo aquilo querompe o “ronron” dessa politologia flácidaque serve de instrumento de apreensão da so-ciedade tem todas as chances de ser perce-bido como uma agressão ou de simplesmentenão ser percebido, mas romper o “ronron”não significa abrir espaço eventual para en-trevistas com (ou artigos de) intelectuais crí-

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ticos dessa politologia flácida. Esse espaçoos jornais podem abrir, mesmo porque sãoo seu álibi contra críticas mais ligeiras a res-peito de sua conduta editorial: afinal, tais en-trevistas e artigos estariam ali para compro-var o respeito à diversidade de pensamento.Além disso, tal espaço importa para o sem-pre fundamental debate no campo das idéias,mas esse debate não é absorvido pela cober-tura cotidiana dos fatos, a que influencia sis-tematicamente o que se configura como opi-nião pública59, funcionando como um refe-rendo ao senso comum. A questão é, por-tanto, redirecionar o enfoque da cobertura.

Não se trata de sugerir queestaimprensapossa assumir tal tarefa: acabamos de dizerque esta imprensa é o que deseja ser, e jus-tifica sua conduta exatamente com base noargumento do senso comum – precisa “ser-vir a seu público”, precisa ser compreendidapor ele e, como representante dele, dizer oque ele quer ouvir –, escondendo nesse pro-cesso a sua participação ativa na formula-ção desse mesmo senso comum. A crítica,portanto, deve partir do questionamento dosentido que assumiu esse “serviço público”,demonstrando – como julgamos haver feitoaqui, no caso da questão criminal – o papelpolítico do jornalismo na produção de sen-tido e, consequentemente, na formação doque se convencionou chamar de opinião pú-blica.

Em estudo anterior, procuramos demons-trar que essa atitude representa a tentativa desuperação do projeto iluminista de “esclare-

59 A relativização dessa expressão é necessária de-vido às críticas de Bourdieu (“L’opinion publiquen’existe pas”, in Questions de sociologie, Paris, Mi-nuit, 1984) e Champagne (Formar a opinião – o novojogo político, Petrópolis, Vozes, 1998), impossíveisde detalhar aqui.

cer os cidadãos”, através da formulação deum outro discurso, que não mascare o lugarda fala.

Uma das consequências seria combater oideal de imparcialidade que tende a forjar,no jornal, um equilíbrio ausente na socie-dade real, dividida e desigual. Com isso,claramente o lugar de autoridade da im-prensa se desloca - ou, dizendo melhor,muda a qualidade dessa autoridade: a ins-tituição deixa de ser onisciente para assumirno discurso o espaço que já ocupa de fato,no jogo de forças de compõem a sociedade.(...)E, se a matéria-prima do jornalismo é a re-alidade cotidiana, “domínio do movediço,do impreciso, domais ou menos, do cercade”, um discurso não mistificador precisa-ria ser menos afirmativo, menos conclusivo,menos definitivo; precisaria expor as limita-ções do trabalho de apuração e aceitar a dú-vida como componente desse trabalho. (...)[A] dúvida que permite outras interpreta-ções, que está na origem de toda possibili-dade de transformação social60.

Foi nesse sentido que enunciamos o con-ceito de notícia comoclinamen, “aquele des-vio que Epicuro identificou na rota previsívele mecânica dos átomos e que rompe com afatalidade, representando, para a natureza, apossibilidade de criação do mundo, e, paraos homens, a possibilidade de liberdade”.

Encarar a notícia comoclinamen seria,aparentemente, apenas uma consequêncialógica da associação corrente entre notícia enovidade: o desvio pode ser, em si mesmo,considerado novidade, pelo simples fato deque rompe com a normalidade. No entanto,o conceito vai muito além, porque é a rup-tura tomada num sentido transformador, que

60 Sylvia Moretzsohn, op. cit., p. 179-180.

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encara a realidade não apenas como aquiloque existe, mas como “tudo aquilo em queainda não nos tornamos, ou seja, tudo aquiloque nós mesmos nos projetamos como sereshumanos, por intermédio dos mitos, das es-colhas, das decisões e das lutas”61.

No enorme esforço teórico para “reinven-tar a democracia” a partir da formação de um“novo senso comum”, Boaventura de SousaSantos utiliza conceito semelhante, “ação-com-clinamen”, para designar a rebeldia daação contrária ao conformismo, “que reduzo realismo ao que existe”62. Tratar das re-lações entre jornalismo e senso comum re-presentará uma das consequências lógicas denosso trabalho, e demandará um esforço queleve em conta os ainda incipientes estudosde recepção em nosso meio. Por ora, e parafinalizar, cabe ressaltar que o senso comumé aqui encarado positivamente, remetendo àconcepção original encontrada em Gramsci,a partir do conhecido argumento de que “to-dos os homens são filósofos” e estendendo-se à perspectiva de criação de “uma nova cul-tura”63. Embora não cite o autor, Sousa San-tos parece trilhar caminho semelhante ao for-mular a possibilidade de um novo senso co-mum para a “transição paradigmática” pro-vocada pelo inconformismo diante da frus-tração das promessas da modernidade face àrealidade do aumento exponencial da fome,do desemprego, das violações aos direitoshumanos, e assim por diante.

61 Idem, p. 181.62 Boaventura de Sousa Santos. “Reinventar a de-

mocracia”. In Francisco de Oliveira e Maria CéliaPaoli (orgs.).Os sentidos da democracia - políticasdo dissenso e hegemonia global. Petrópolis/Brasília,Vozes/Nedic, 1999, p. 110.

63 Gramsci, op. cit.

Preocupado explicitamente com o lugarque a ciência, o direito e a política ocupamna trajetória do paradigma da modernidadeocidental64, Sousa Santos parece esquecer ainfluência da mídia, poderosa barreira contraqualquer discurso crítico à globalização. É,por isso, fundamental inserir o tema (e, comele, o conceito de notícia comoclinamen)nesse “processo de transição paradigmática”,lidando com o senso comum para alterá-lo.Num exemplo simples, tal postura sustenta-ria uma orientação oposta àquela identificadapor Mattelart a respeito de um “desvio” siste-maticamente demonizado pela mídia, comoo tráfico de drogas - pois a ênfase é sem-pre nas operações de combate a esse crime,não sobrando espaço para investigar comoum contingente cada vez maior de populaçãomarginalizada consegue conservar sua digni-dade apesar da sujeição à mais extrema vio-lência65.

Há cerca de duas décadas, inúmeros estu-dos no campo da criminologia crítica vêmfornecendo a necessária sustentação teóricapara uma reorientação da cobertura jornalís-tica66. Como utilizá-los será tarefa resultantede uma densa pesquisa de linguagem. Masserá, sobretudo, produto de uma decisão po-lítica fundamental para alterar as bases da“sociedade excludente”.

64 Sousa Santos.A crítica da razão indolente. op.cit., p. 18-19.

65 Mattelart. Comunicação-mundo – história dastécnicas e das estratégias.Petrópolis, Vozes, 1994, p.276.

66 Cf. Eugenio Raúl Zaffaroni, Lola Anyiar de Cas-tro, David Garland, Nils Christie, Louk Houlsman,entre outros – e além dos autores já citados aqui.

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