implicava uma a distância aqui tão perto, um...

12
Ascensão implicava uma deambulação pela distância, um percurso que fazia do espectador um explorador dos meandros do edifício. Sabemos como a tradição testamental do monoteísmo faz do verbo uma autoridade e do relato o seu veículo. Desloquei-me à Mouraria ao encontro de Ascensão de Rui Chafes, o 3º dos qua- tro passos de Não te faltará a distância, “exposição-ensaio” com curadoria de Paulo Pires do Vale. 1 Diria que essa minha primei- ra ida à Igreja de São Cristóvão surpreendeu- -me com uma epifania. Porém, impressiona- do e de smartphone no bolso, optei por não fazer registos de imagem, por não gravar ví- deo ou som, por não tirar fotos, não tirar nada – porquê? Inibição iconoclasta? Pressenti- -mento de que as imagens, se surgidas do vampirismo de um click, acrescentam mais um nível à distância, mais uma camada, mais um ecrã? Constrangimento ou presságio, excesso de zelo ou purismo infantil, resta-me então também a mim a opção pela palavra (entre o seu poder testemunhal e tudo o resto que a linguagem lhe dá) convencido de que é na inevitabilidade da metáfora que devo guiar a verbalidade da minha memória (fotográfi- ca, por sinal) em considerações sobre arte e espiritualidade. A distância aqui tão perto, um relato. Ascensão : Rui Chafes – Igreja de São Cristovão, Lisboa DANIEL PERES Pisar arfante o Largo de S. Cristóvão em ple- na tarde de Junho, é constatar que estamos no centro-histórico de Lisboa, a poucos pas- sos da Baixa em época alta. Para trás ti- nham ficado as Escadinhas de S. Cristóvão onde soçobravam apenas destroços da ins- talação de Martin Monchicourt – imensas placas de sinalética repetindo exaustiva- mente “Attention a la Marche”, degrau a de- grau e que alguém se tinha encarregado de ir quebrando e retirando de onde estavam afixadas. 2 “Vandalismo”? “Arte efémera”? Limito-me a dizer “é a vida” – a vida cujo trânsito se pretendia que passasse pelos eventos de Não te faltará a distância – a ra- zão da minha ida à igreja – cuja articulação com a desenvoltura psico-geográfica da ci- dade adivinhar-se-ia sempre como sendo um dos seus desafios primeiros. Nas ameias de cada instante de turismo acontece a azáfa- ma do bairrismo (uma das “atracções, claro) aglutinando-se formas de vida aparente- mente antagónicas. É nesse ambiente de amena entropia – que me engana com a sua aparente fami- liaridade – que o olhar é chamado para uma janela da fachada da igreja. Um elemen- to pende, é uma escultura, e também ela só por engano irrompe como uma disrupção A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres RE • VIS • TA arte / reflexão / crítica 11. 2016 – n.º2 01/12 /

Upload: others

Post on 14-Aug-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

Ascensão implicava uma deambulação pela distância, um percurso que fazia do espectador um explorador dos meandros do edifício.

Sabemos como a tradição testamental do monoteísmo faz do verbo uma autoridade e do relato o seu veículo.

Desloquei -me à Mouraria ao encontro de Ascensão de Rui Chafes, o 3º dos qua-tro passos de Não te faltará a distância, “exposição -ensaio” com curadoria de Paulo Pires do Vale. 1 Diria que essa minha primei-ra ida à Igreja de São Cristóvão surpreendeu--me com uma epifania. Porém, impressiona-do e de smartphone no bolso, optei por não fazer registos de imagem, por não gravar ví-deo ou som, por não tirar fotos, não tirar nada – porquê? Inibição iconoclasta? Pressenti--mento de que as imagens, se surgidas do vampirismo de um click, acrescentam mais um nível à distância, mais uma camada, mais um ecrã?

Constrangimento ou presságio, excesso de zelo ou purismo infantil, resta -me então também a mim a opção pela palavra (entre o seu poder testemunhal e tudo o resto que a linguagem lhe dá) convencido de que é na inevitabilidade da metáfora que devo guiar a verbalidade da minha memória (fotográfi-ca, por sinal) em considerações sobre arte e espiritualidade.

A distância aqui tão perto, um relato.Ascensão: Rui Chafes – Igreja de São Cristovão, Lisboa

DANIEL PERES

— Pisar arfante o Largo de S. Cristóvão em ple-na tarde de Junho, é constatar que estamos no centro -histórico de Lisboa, a poucos pas-sos da Baixa em época alta. Para trás ti-nham ficado as Escadinhas de S. Cristóvão onde soçobravam apenas destroços da ins-talação de Martin Monchicourt – imensas placas de sinalética repetindo exaustiva-mente “Attention a la Marche”, degrau a de-grau e que alguém se tinha encarregado de ir quebrando e retirando de onde estavam afixadas. 2 “Vandalismo”? “Arte efémera”? Limito -me a dizer “é a vida” – a vida cujo trânsito se pretendia que passasse pelos eventos de Não te faltará a distância – a ra-zão da minha ida à igreja – cuja articulação com a desenvoltura psico -geográfica da ci-dade adivinhar -se -ia sempre como sendo um dos seus desafios primeiros. Nas ameias de cada instante de turismo acontece a azáfa-ma do bairrismo (uma das “atracções, claro) aglutinando -se formas de vida aparente-mente antagónicas.

É nesse ambiente de amena entropia – que me engana com a sua aparente fami-liaridade – que o olhar é chamado para uma janela da fachada da igreja. Um elemen-to pende, é uma escultura, e também ela só por engano irrompe como uma disrupção

A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel PeresR E • V I S • T A

arte / reflexão / crítica 11 . 2 0 1 6 – n . º 2

01/12 /

Page 2: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres

completamente estranha à normalidade de toda a sua envolvência. Trata -se de “Estou pronto para nascer, ferro, 2016” de Rui Chafes e está longe de ser um alien. “Cabe” ali. Aceita o desafio de ter cabimento no “dia -a -dia” da “singular vida de todos os dias”. Voluntariamente impotente para não querer existir neste mundo, assume que a sua potência passa por aqui, apesar da ma-nobra poética do seu título parecer dizer -nos que ela ainda aqui não está. Talvez por anun-ciar a anterioridade transcendente desse porvir, a peça pareça pausar o fluxo da vivên-cia mais mundana ao mesmo tempo que com ela se deseja imiscuir. Intromete -se assim na torrente terrena das rotinas do quotidia-no, como a própria igreja, de cuja janela se atira encaracolando -se de volta ao interior do gradeamento.

Lá dentro o ar não era tão fresco como as igrejas nos habituam – há muita pedra mas impera a madeira (a talha barroca que reveste a arquitectura seiscentista de estilo português “chão”, e que já fora muito doura-da em tempos). Desde a entrada ia preven-do um embate contrastante entre a aparente austeridade da escultura de Rui Chafes e os apelos do movimento Arte por São Cristóvão, que dava calorosas boas -vindas com uma parafernália de material: cartazes, folhetos, telhas assinadas como donativo para a nova cobertura da igreja, tudo em coabitação com o carácter mais circunspecto da exposição. 3 Havia no entanto algo extremamente pro-fícuo em tudo o que eram convivências ex-temporâneas – não estava num “white cube”, tudo parecia ser mais empático. Gélido, apa-rentemente só o ferro de Chafes, que nasce da incandescência em brasa para se conge-lar numa febre pétrea mas profundamente humanizada. Especialmente desta vez.

Bem ao centro da nave surgia logo “Ascensão II, ferro, 2016”, ou a “escada” co--mo vulgarmente era chamada. Suspensa por cabos de aço, sem tocar em chão ou tecto, o “ferro flutuante” de Rui Chafes es-tabelecia uma simetria tensa com a pesa-da patine da “poeira das eras” 4. Quando em contra -luz, aparecia quase como um dis-túrbio bidimensional às leis do espaço e do tempo da volumetria tangível em que esta-va apoiada. Voltada ao “céu” mas também à “terra”, a peça erguia -se como um lim-bo com aquele seu preto absorto que é um dos responsáveis pelas paralaxes das leis do peso e da leveza que muitas das esculturas de Chafes implicam. “Preto” e não “negro”. Preto embora nunca o seja, pois a negritude absorve ténues valores atmosféricos: nela dançam cinzas e outros negrumes entoando vivacidades na metálica superfície do ferro e permeabilizando -o subtil mas afirmativa-mente com os acidentes da vida circundan-te. Por vezes o código do pigmento industrial nem é o de uma tinta preta mas antes de um cinzento metalizado; outras vezes trata -se somente da pigmentação agreste do ferro ou do aço – mas continua sempre a ser “preto”. Preto porque mais impossível (incorroborá-vel como o radical de qualquer tom), mais inerte, mais não -cor. Quando aplicado a cer-tas formas, é fácil senti -lo como funesto, en-lutado com um luto romântico pela insanável cesura com a origem dos tempos. Aspirando ecoar transcendências, esse preto vê aqui o seu silêncio ser reverberado na igreja, nes-te habitat habitado pelos vivos e por mortos, por cultos e rituais, por gente.

Foi só depois de já ter cumprido parte “daquilo que ia ali fazer” – ver a exposição e por sorte contemplar algo próximo do espí - rito – que dei por um caixão no púlpito norte,

R E • V I S • T Aarte / reflexão / crítica

11 . 2 0 1 6 – n . º 202/12 /

Page 3: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

O velar do corpo em câmara -ardente é uma cerimónia fúnebre pública, aberta à comuni-dade que se queira “despedir”. Não é privada mas é extremamente íntima – sentia -me um invasor. Empunhando o folheto da exposi-ção, seguia o roteiro à distância. Esquivei -me pelo lado esquerdo em direcção ao ponto 3 do mapa que se situava na sacristia. No alto dum canto (curiosamente a orientação de al-guns ícones religiosos para a igreja ortodo-xa 9) estava “Escuridão, ferro, 2015”, que todo este contexto eclesiástico viciava a ver como uma auréola preta, inclinada sobre o seu pró-prio oco e apoiada numa espécie de ferrão curvo. Soerguia -se quase como um jugo so-bre aquele espaço híbrido, como costumam ser as sacristias – divisões que estão entre a intimidade de um aposento e as formalida-des de uma espécie de “gabinete laboral do sagrado”. O transparecer da corporeidade do ofício do sacerdócio coabitava com a es-cultura de Chafes que parecia absorver o as-cetismo de crucifixos e cálices para o devol-ver ainda mais dramatizado àquele espaço. A própria iluminação da peça incrementa-va o pendor cénico de tudo quanto compu-nha a sala, já povoada por duas pinturas que entravam em toda esta conversação: uma curiosa paisagem embutida num nicho numa das paredes que suportava a peça de Chafes e a A morte de S. José (2º metade do séc. XVII), atribuída a Bento Coelho da Silveira tal como a maior parte das pinturas da nave 10. Por toda a igreja, as peças do escultor pare-ciam fadadas a encenar esta oscilação entre meditação intelectualizada sobre instâncias supra -sensíveis e a intensificação da mun-danidade de objectos e pessoas.

Retornei à sala principal e segui para a 4ª paragem do itinerário. Novamente junto ao altar -mor, e em linha com o defunto à

em frente ao altar -mor. Só então reparei verdadeiramente que havia gente em redor – pouca gente – circulando vagarosamente ou sentada em provisórias cadeiras de plás-tico dispostas em fila na nave (a escultura Ascensão II exigia -a sem os habituais genu-flexórios 5). Só então notei que carpiam ao mesmo tempo que entrava um turista e que se alheavam conversas à margem junto da porta. Decorria portanto um velório – um ve-lório morno. 6 Frio eu, de realismo: vislumbrar a urna por entre a estrutura de Ascenção II, com a qual estava perfeitamente enquadra-da, não tinha como não insinuar uma confu-são teatral entre a arte e a vida, uma violên-cia 7. Quando a “realidade” da arte e a “ficção” da vida encenam um curto -circuito ontológi-co entre verdade e falsidade, não há como não sentir um descontrolo. É um limiar té-nue que a qualquer momento ameaça resva-lar ora para a perfeição dramática, ora para um terreno de insustentável incompreensibi-lidade que faz constatar o desconhecido que nos constitui. Será do pressentimento dessa instância incógnita, originária, que se crê ora “mistério” ora “enigma” mas sempre irreso-luta, sempre insolvente, que nasce a pulsão primordial da religiosidade (cuja autenticida-de a doutrina da religião pode matar se a afo-ga em dogmatismo). Será talvez também da sedução face a esse perpétuo não -saber que nasce o impulso antropológico da arte.

A curadoria de Não te faltará a distân-cia fazia do “andarilhar” e da “vida como caminho” entidades poéticas para medita-ção filosófica (o símbolo da viagem física e espiritual é central na hagiografia de S. Cris--tóvão 8). Ascensão implicava uma deambula-ção pela distância, um percurso que fazia do espectador um explorador dos meandros do edifício, e eu tinha um velório na minha rota.

R E • V I S • T Aarte / reflexão / crítica

11 . 2 0 1 6 – n . º 2A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres03/12 /

Page 4: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

Por toda a igreja, as peças do escultor pareciam fadadas a encenar esta oscilação entre meditação intelectualizada sobre instâncias supra -sensíveis e a intensificação da mundanidade de objectos e pessoas.

minha esquerda, viro à direita para a casa mortuária onde, após uma cortina de flanela negra, a penumbra me “encandeia” por com-pleto. É só passado alguns segundos que distingo um holofote a meia -luz iluminando um rectângulo horizontal que parece levitar. Trata -se de “Véu, ferro, 2016”. Ao debruçar--me na charneira das suas arestas cortan-tes, constato o rasgão na superfície metá-lica, como uma agressão que a perpassou de lá para cá, na direcção do espectador. 11 Véu é portanto uma escultura com uma fren-te e um verso, um “vulto redondo” a cujas costas o olhar não acede. É vindo do invisível que aquele desferimento eclode na concre-tude do ferro transformado em carne e em espírito (representação que o imaginário não consegue suster no contexto deste lugar). Fere a matéria como uma força que veio do chão e do túmulo em cima do qual foi depos-ta a escultura. Por aquela ferida aberta (len-ta, modelada) passam o espaço e o tempo reais que nos envolvem, pondo -nos em jogo entre um aqui tácito e a irrequieta projecção de um além obscuro.

Agora quero avançar e apercebo -me de uma nesga de luz do lado oposto ao de onde entrei, mas não vejo os meus passos, tacteio o piso. Acabo por corromper o desconforto do breu acendendo a lanterna do telemóvel (era neste nível quase “biológico”, “somá-tico”, de reactividade emocional que a ins-talação interferia, era a partir daí que dava rédea solta ao pensamento). Só então con-cluo que me encontro na casa mortuária e noto as proporções da lápide por baixo da escultura, como que emoldurando -a num encaixe deliberado. 12 Há mais túmulos – um enorme anichado na parede. Volto a apagar a luz para recuperar a aspereza sensorial da-quele ambiente (tenebroso e apaziguador ao

R E • V I S • T Aarte / reflexão / crítica

11 . 2 0 1 6 – n . º 2A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres04/12 /

Page 5: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

mesmo tempo) e dirijo -me ao feixe luminoso que escapava da cortina de saída.

O “libreto” aconselhava -me a rumar em frente para “Ascensão I, chumbo, 2016” que se apropria da pequena escadaria recôndi-ta que sobe para o coro alto da igreja e que terá sido o principal referente a captar Rui Chafes. A trilogia que desenvolveu de pro-pósito para esta ocasião – Ascensão I, II e III – teve por base essas escadas. Foi na quina irregular desses degraus de pedra, desbas-tados pelo suor das épocas, que o escultor aplicou cunhas de chumbo que a cada cal-car nosso iam decalcando as depressões do piso, como escudos maleáveis a adiar a de-gradação da pedra, pois é o metal em vez dela que é polido pela nossa passagem, mo-delando Ascensão I.

Subidas essas escadas, o ângulo de vi-são elevava -se na escala de Ascensão II – a escada vertical suspensa na nave. Vista do coro alto, era ela que orientava os pontos de fuga com que o olhar percorria a sala princi-pal da igreja e as lentas movimentações fu-nerárias lá em baixo. 13 Sentia a pressão de uma diluição cénica entre a arte e tudo o res-to e pressentia que isso teria muito que ver com o facto de haver um ritual fúnebre en-volvido (o motivo de tantas formas de arte quando a arte ainda nem sequer dava por esse nome). Em contacto com a criação ar-tística, a morte e o seu culto pareciam permi-tir sondar algo de fundador que interrogava a imagem como meio de trazer à presen-ça a ausência mais distante, de dar apa-rência ao desaparecimento, de percor-rer a lonjura (“fantasmagórica”) do não -ser até nós. 14 Enquanto não faltar essa distân-cia sabemos que há vida, caminho, viagem. Mas a proximidade da morte parecia ali in-dispensável para me garantir que era com a

crueza da própria vida que eu me espantava – o paradoxo de um espanto estético com a existência ela mesma, com o seu aporético ser assim. Era esse sentimento que o envol-vimento da arte de Chafes naquela situação aumentava e era a experiência dessa “tau-tologia” o mais transcendental ali. Alguém evangelizado teria talvez uma formulação para aplicar a este espanto: o confronto com o simples “milagre da existência”. Eu tenho apenas a certeza que não sei mas que acre-dito no valor desse espanto que não sei, nem quero, nomear. Agora as palavras não bas-tam, não valem. É o indizível a aparecer na existência em bruto e a merecer só silên-cio (e eu tinha optado por não fazer registos de imagem...) 15 .

Sentia que o sentido de tudo aquilo (a sua “razão” de ser) era captado instanta-neamente, fosse qual fosse a minha cultu-ra, religião ou ateísmo. Como se de música se tratasse, tinha lugar uma linguagem ime-diata (como acreditavam os filósofos do Romantismo Alemão de cuja postura a es-cultura de Chafes parece ser tão próxima). Este reconhecimento automático de um sentido para a reunião da arte com a vivên-cia da morte, adivinhava uma comunidade de sentido assente em qualquer coisa pro-fundamente comum, mas indefinível. Talvez seja sempre assim com os rituais em torno da morte e é portanto natural que a arte te-nha nascido ancestralmente com eles: inde-pendentemente da sua proveniência ou cre-do, expressam algo a que a sensibilidade é universalmente sensível, compreendendo -o por impacto, sem explicações, sem teorias, sem doutrinas.16

Regresso à nave e volto a olhar Ascen--são II mais de perto. Torno a observar como os degraus de pedra que acabara de descer

R E • V I S • T Aarte / reflexão / crítica

11 . 2 0 1 6 – n . º 2A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres05/12 /

Page 6: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

vêem as depressões da sua usura serem disciplinadas no ferro. A escultura nasceu portanto do mesmo processo epidérmi-co face ao chão subjacente a Ascensão I. O escultor tirou o molde ao peso do tempo. Percorreu os perfis acidentados de cada de-grau de pedra esquematizando o seu des-gaste nas ondulações cósmicas de cada de-grau de ferro da “escada” suspensa. Foi ao caudal dos passos do passado para lhes roubar a cronologia e “intemporalizar” a passagem do tempo no seu arquétipo geo-metrizado suspendendo -o a fio -de -prumo na monumentalidade daquela escada verti-cal 17. Cristalizou na lisura do ferro a porosi-dade dos séculos e das vontades que foram polindo a pedra com o pesado andamento do seu esforço. Foi o trânsito dessa vontade que deixou aquele vestígio físico (tornado poé-tico) da experiência de ascender e descen-der, dos altos e baixos do corpo e do espírito, das alegrias e sofrimentos do seu ânimo, das “virtudes” e assombros da sua anima [alma], as suas expiações, os seus sacrifícios, a sua humanidade. Chafes oferece -lhes quase co - mo uma homenagem a verticalização em al-tura de um desejo de leveza “aérea” que o esforço elevatório parece sempre almejar e que não pode fazer surgir senão pesadas imagens (mas não são elas que alimentam qualquer ideia de eternidade?). Ascensão II “eterniza” a incessante transitoriedade da vida na lentidão do ferro, numa imagem fei-ta de uma matéria que aparece etérea mas que é fisicamente pesada, que é melancoli-camente “pesada” mas que parece “fisica-mente” leve.

A 6ª e última etapa desta ambulação, “Ascensão III, 2016, ferro”, ocupava um ni-cho ao lado da porta da igreja sobre um inesperado fundo amarelo.18 Mais uma vez

2. Rui Chafes, Véu, ferro, 2016.© Rui Chafes e Alcino Gonçalves.A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres06/12 /

Page 7: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

densamente preta, a peça apresentava os perfis dos mesmos degraus rodados a 90º e soldados numa espécie de estilete magnéti-co longitudinal que os acopla verticalmente formando um “raio” ou “lança” – talvez a que desferiu a chaga de Cristo, seguindo o en-tendimento alegórico de uma das senhoras que auxilia na igreja. Parecia ser assim que interpretava a relação de Ascensão III com Véu, a peça que ocupava a casa dos túmulos e que representava para ela um sudário com vestígios dos tormentos do corpo e da alma, da laceração que todos carregamos no nos-so íntimo – a certeza da morte.

Com efeito, tantas vezes a obra de Chafes nos instiga a implicar mentalmente um corpo em interacção física com as pe-ças 19. As formas invocam frequentemente objectos utilitários, biomorfismos, acções, sugestões ambíguas dependentes do obser-vador. Essas partículas de figuração funcio-nam como fragmentos que despertam uma fagulha de reconhecimento encetando ins-tintivamente um jogo de imaginação táctil que transporta a fantasia até à reminiscên-cia de sensações de dor e prazer, à memó-ria de estados emocionais de medo, paz, ter-ror. São pistas que engodam um caminho ilustrativo para depois invalidarem qualquer narratividade deixando -nos apenas com o corrupio do pensamento e do sentido.

— Ao ter na Igreja de S. Cristóvão o epicentro da sua programação, Não te faltará a distância acabaria sempre por re -anunciar – mesmo que não o quisesse (e deseja -o, claramente) – que a arte, i.e., o terreno de participação que apelidamos com esse nome (o cultivo e a cultura da arte, para ser ainda mais óbvio) implica sempre algo de cultual, quando não

mesmo uma dimensão ritual. Não evito intuir que era justamente por ressurgir num lugar de culto religioso, que a arte contemporânea reforçava o apelo universalista à dimensão de um homo spiritualis radicante 20, resisten-te aos cânones das religiões, e que aponta para uma religiosidade em estado pulsional – antropologicamente mais lata, mais co-mum, mais laica.

Enunciadas a partir da igreja, as gramá-ticas daquelas obras (desde a “poética polí-tica” de Francis Alÿs às meditações contem-plativas de Agnes Martin) proporiam sempre uma indagação crítica não apenas da colos-salidade histórico -política do binómio arte e religião, mas da ancestralidade mais imemo-rial e insondável do par arte e religiosidade. Pareciam intensificar que o gesto artístico – do mais “sacro” ao mais “profano” (fron-teiras aqui sujeitas a salutares e harmonio-sas problematizações) – implicará sempre o culto de níveis de pura interrogação humana, com auscultações metafísicas e místicas que ultrapassam os pré -requisitos de lite-racia na heráldica ou na hermenêutica de quaisquer doutrinas, religiosas ou não. Dado este contexto expositivo, estabeleciam tro-cas e analogias com a religião (com a moral do cristianismo católico e com a exegese bí-blica, neste caso) mas chamando -a a uma articulação mais genética dos seus ideais e fundamentos, honrando -os com tolerância e abertura, e libertando a reflexão a planos de profundo questionamento subjectivo que – quero crer – a espiritualidade da arte sempre terá estimulado ao longo dos tempos – mes-mo quando exalada de cerradas molduras teológicas, ideológicas ou institucionais.·

R E • V I S • T Aarte / reflexão / crítica

11 . 2 0 1 6 – n . º 2A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres07/12 /

Page 8: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

NOTAS:

1. Passos esses, 1 – “Esvaziar – Hospedar”: com Attention a la Marche, instalação do francês Martin Monchicourt nas Escadinhas de S. Cristóvão e Projecto Vão, programado pela coreografa Madalena Victorino, contando com a performance RINGE e com Corações ao Alto, uma criação vocal de Margarida Mestre; 2 – “Caminhar – Pesar”: apresentação de 2 vídeos da série Paradox of Praxis de Francis Alÿs; 3 – “Peso e Leveza”: com Ascensão intervenção site specific na Igreja de S. Cristóvão por Rui Chafes; 4 – “Sair”: Apresentação do vídeo Gabriel (1976) de Agnes Martin simultaneamente com um ciclo de cinema dinamizado em conjunto com diversas colectividades da Mouraria. Cf. http://www.arteporsaocristovao.org/ [consultado a 17/08/2016].

2. Attention à la marche é um trabalho de 2011 que Paulo Pires do Vale inseria neste projecto como espécie de mote curatorial, um “convite” a uma consciência corporal do caminhar e a uma concepção existencial do caminho, da viagem, passo a passo. Cf. http://www.arteporsaocristovao.org/ (último acesso: 17/08/2016)

3. Não te faltará a distância inseriu -se na iniciativa Arte por São Cristóvão, aprovada no Orçamento Participativo da C.M.Lisboa, que visa angariar fundos para o restauro da igreja.

4. Ocorre -me esta expressão que coincide com um trabalho de Lawrence Weiner cuja parte mural diz “Covered with all the dust from moving a mountain”, seguida de uma curva gráfica (uma parábola), e em baixo, no pavimento, “[The dust o the ages.]”. Esta “charada” conceptual dá -se, dentro do museu ou galeria de arte – é esse o sistema crítico que referencia a história. Em Não te faltará a distância a arte contemporânea esteve fora do seu habitual espaço expositivo, o que acarreta um escopo crítico face ao contexto institucional.

5. Nome técnico dos bancos corridos com costas para ajoelhar em oração. Arredá -los da nave foi opção em todos os passos de Não te faltará a distância. Esta igreja terá sido concebida para não os ter, o mobiliário de oração é coisa mais recente, adiantou -me o Padre Edgar Clara. Por vezes a concentração depende disso, retorquiu (um conforto físico que permita atingir os desconfortos da alma). Lembrou ainda que a questão postural da oração esteve no centro do 1º passo da exposição, na coreografia de Madalena Victorino.

6. Li mais tarde que me encontrava então em presença de um mesmo “arco” que, certa manhã, com a igreja ainda vazia, Rui Chafes revela ter experimentado: “ Eu não queria acreditar. E, de repente, vi um arco incrível: a arte, a vida e a morte. Quantas vezes um artista tem uma obra de arte ao lado de um defunto? Não é uma coisa que aconteça mas faz parte do mesmo círculo.” Entrevista a Isabel Salema, in “Rui Chafes leva -nos até ao céu”, Público,“Ipsilon”, 12/05/2016.

7. Como lhe chamaria talvez Giorgio Colli. Remeto -me ao capítulo “Arte é ascetismo” in COLLI, Giorgio, Depois de Nietzsche (1974), trad. Maria Filomena Molder (prelo).

8. Auferus ou Reprobus de seu nome pagão, narra a Legenda Dourada que após a conversão à fé cristã o futuro mártir usava a sua elevada estatura e prodigiosa força para servir a Deus transportando os transeuntes que, de outra maneira, não conseguiriam atravessar um perigoso rio. Certa vez o peso de uma criança revelou -se insuportável. O menino era Cristo, que trazia consigo todo o peso do mundo. Cf. http://www.bcdp.org/v2/images/documentos/s.cristovao.pdf [consultado a 21/07/2016].

9. Também o Quadrado negro sobre fundo branco de Malevich fora instalado assim na exposição 0.10 (1915-16). Do alto de uma aresta da sala, a tela como que norteava a 360º as restantes “formas dinâmicas no espaço” dispostas nas paredes, afirmando -se como ponto de partida e de chegada do Suprematismo.

10. Esta pintura fora ponto de partida do trabalho que Madalena Victorino desenvolvera no 1º passo de Não te faltará a distância.

11. Um pouco como acontece ao suporte de alguns “concetti spaziali” de Lucio Fontana, mas mais “gutural”, sem a frieza de uma raiva gestual acalorada ainda modernista, intempestiva mas racionalizada. A dilaceração de Chafes é tecnicamente mais controlada mas mais emocional.

12. Consta que o túmulo do séc. XV foi descoberto já depois de Chafes ter concebido a peça para aquele lugar. Como me contou o Padre Edgar na sua afabilidade, era mais um “acaso” entre outras “coincidências”, como a inauguração de Ascensão no dia de Nossa Senhora da Ascensão, sem premeditação. Atestava -se nas suas palavras uma previdência da providência divina.

13. As condolências, o ir lentamente até ao corpo, o levantar o paninho do rosto. “ – Está muito bonita.”, ouvi uma senhora confessar quando voltei a descer. Franqueza leviana? Era “típico”, “vernacular”, e de um “pictoresco” que parecia tão arbitrário que quase roçava uma ofensa inocente, bem intencionada. Mas já nada soava trivial ali.

14. Perseguir “a pegada do tempo às avessas”, em busca de “representações nascentes” e tirando a máscara de falsidade à violência (a verdade da inexistência da verdade). Para Colli, seria este o caminho do artista e a viagem que nos é dada a percorrer pela arte. Cf. COLLI, Giorgio, Op.Cit.

15. Suponho que seja esta a natureza do espanto paradoxal que Wittgenstein aborda na Conferência sobre ética (1929), um espanto estético que extravasa a lógica da linguagem e que, por isso mesmo – por se mostrar na linguagem mas como indizibilidade – não pode senão receber o nome de místico. É o plano a que a consciência recorre para conceber um absoluto valor ético e estético – o bem, o belo – cujo sentido apenas pode sentir, i.e., ter dele compreensão em forma de sentimento, esforçar -se por teorizá -lo, mas nunca explicá -lo. Cf. Conferência sobre Ética, Edición Electrónica de www.philosophia.cl / Escuela de Filosofía Universidad ARCIS, p.6.

16. Nas Observações sobre “O Ramo Dourado” de Frazer (1931) – crítica à antropologia evolucionista do início do século XX Wittgenstein aflora este aspecto. Para ilustrar como a mundividência mística de outros povos não pode ser encarada como “inferior” ou “errónea” por não responder ao nexo de causalidade positivista, Wittgenstein usa um exemplo bastante ocidental: Após a morte de Schubert o seu irmão cortou partituras e distribuiu pedaços pelos discípulos do compositor. A génese de sentido deste ritual manter -se -ia intacta caso se tivesse decidido queimar essas pautas. A compreensão (catártica) do lamento seria igualmente eficaz, faria igualmente sentido poético, e não por um ser mais “lógico” do que outro. Cf. WITTGESNTEIN, Ludwig, Observações sobre “O Ramo Dourado” de Frazer, Deriva, 2011, p.37. Esta plasticidade gramatical do simbólico manifesta algo de seminal quanto à natureza da arte, dos seus cultos e da sua compreensibilidade. Naturalmente que são variadíssimos os estudos que equacionam uma necessidade antropológica da arte com a capacidade de reconhecer a inevitabilidade da morte.

R E • V I S • T Aarte / reflexão / crítica

11 . 2 0 1 6 – n . º 2A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres08/12 /

Page 9: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

17. “Não existe arte sem a ambição de parar o tempo”, frase de Rui Chafes que dá título a uma entrevista de Alexandra Carita e Celso Martins a propósito da atribuição do Prémio Pessoa de 2015, in http://expresso.sapo.pt/cultura/2015-12-27-Rui-Chafes.-Nao-existe-arte-sem-a-ambicao-de-parar-o-tempo [consultado a 17/08/2016].

18. No trabalho de Chafes, é muito infrequente a pintura de tons que não o preto ou os cinzas, e a cenografia raramente foge do cromatismo nativo do ambiente em que as peças se instalam (para além desta aplicação da cor, recordo -me apenas da luz verde na sala de Burning in the forbidden sea da exposição conjunta com Orla Barry, Five Rings, M.C.Berardo, 2011).

19. Oficialmente, tal deu -se na colaboração performativa com Vera Mantero, Eating Your Heart Out, Bienal de S. Paulo, 2004.

20. Um aprofundamento desta noção é -nos dado pelo filme Cave of the Forgotten Dreams (2012) de W.Herzog, onde, a propósito da arte paleolítica de Chauvet, um antropólogo refere -se a um homo spiritualis que a concepção científica de um homo sapiens sapiens não contempla com suficiente justiça. Apetece parafrasear palavras de Wittgenstein nos seus Diários de 1914 -16, “Sentimos que mesmo que a ciência resolvesse todas as suas questões, o nosso problema [natural, antropológico, humano, espiritual] ainda não teria sido sequer tocado”.

3. Rui Chafes, Ascenção I, chumbo, 2016.© Rui Chafes e Alcino Gonçalves. A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres09/12 /

Page 10: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

1. Rui Chafes, Estou pronto para nascer, ferro, 2016.© Rui Chafes e Alcino Gonçalves.A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres10/12 /

Page 11: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

4

5

4. Rui Chafes, Escuridão, ferro, 2015.© Rui Chafes e Alcino Gonçalves.

5. Rui Chafes, Ascensão II, ferro, 2016.© Rui Chafes e Alcino Gonçalves.

6. Rui Chafes, Véu, ferro, 2016.© Rui Chafes e Alcino Gonçalves.

7. Rui Chafes, Ascensão III, ferro, 2016.© Rui Chafes e Alcino Gonçalves.

R E • V I S • T Aarte / reflexão / crítica

11 . 2 0 1 6 – n . º 2A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres11/12 /

Page 12: implicava uma A distância aqui tão perto, um relato.re-vis-ta.com/wp-content/uploads/2017/12/Re.vis_.ta2...A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres completamente estranha

7

6

R E • V I S • T Aarte / reflexão / crítica

11 . 2 0 1 6 – n . º 2A distância aqui tão perto, um relato. / Daniel Peres12/12 /