imbricações entre o ordinário e o excêntrico

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resenha de Raquel Gomes

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  • 1Iracema DulleyResenha

    rev. hist. (So Paulo), ahead of print, 2015http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2015.89563

    GOMES, RAQUEL. UMA FEMINISTA NA CONTRAMO DO COLONIALISMO: OLIVE SCHREINER, LITERATURA E A CONSTRUO DA NAO SUL-AFRICANA, 1880-1902. SO PAULO: ANNABLUME, 2013.

    Iracema Dulley1

    Imbricaes entre o ordinrio e o excntrico: literatura, feminismo e poltica na frica do Sul nascente

    Como destaca Robert Slenes em sua apresentao, o trabalho de Raquel Gomes, Uma feminista na contramo do colonialismo: Olive Schreiner, literatura e a construo da nao sul-africana, 1880-1902, insere-se no novo surto brasileiro de monografias voltadas para contextos africanos. O livro deriva da disser-tao de mestrado da autora, realizada na rea de Histria Social na Uni-camp. A obra dialoga com a tradio de estudos desse departamento ao ar-

    1 Doutora em Antropologia Social pela USP, ps-doutoranda, bolsista Fapesp, pesquisadora do Cebrap. E-mail: [email protected].

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    ticular a trajetria e os escritos polticos e literrios de um sujeito especfico, Olive Schreiner, ao contexto histrico e social mais amplo em que estavam inseridos: a formao da nao sul-africana. A autora anuncia a inteno de dar conta de questes como as seguintes: Nesta nao em formao, quais papis seriam desempenhados por britnicos, beres e nativos? Como o dis-curso [de Schreiner] refletia e dialogava com o avano da legislao segre-gacionista? (p. 15). Estas so, sem dvida, questes que apontam, como nota Omar Ribeiro Thomaz na orelha do livro, no s para a gnese da nao sul-africana, como para problemas contemporneos candentes neste pas.

    Como no estudo de Ginzburg sobre Menocchio em O queijo e os vermes (2006), trata-se de atentar para a biografia e os escritos de um sujeito que no exatamente ordinrio, mas que, em virtude de sua excentricidade, revela no s o que seria comum em seu contexto como um possvel caminho de dilogo e disputa com ele. Olive Schreiner certamente no seria considerada uma mulher sul-africana exemplar em sua poca. No entanto, sua distncia em relao ao que seria ordinrio ajuda a ilumin-lo. A partir da circulao de Schreiner pela Inglaterra e frica do Sul, possvel vislumbrar no s questes sociais e polticas mais amplas como a criao da Unio Sul-Afri-cana, o lugar da mulher na sociedade e a questo do nativo, contexto muito bem reconstrudo por Gomes , como acompanhar a mincia das relaes cotidianas com base em suas obras e cartas.

    Anglfona no contexto de formao da nao sul-africana, Schreiner ope-se poltica imperialista britnica para fazer uma defesa do modo de vida ber e da integrao anglo-ber. Feminista em um ambiente bastan-te conservador quanto aos costumes, chocou inclusive a sociedade inglesa com sua denncia da condio parasitria da mulher no casamento. Para Schreiner, homens e mulheres deveriam ser parceiros no casamento, em igualdade de condies e com diviso do trabalho; ademais, a mulher no deveria depender financeiramente do homem, mas casar por amor. Perten-cente a uma camada privilegiada da sociedade sul-africana por ser branca e anglfona a despeito das dificuldades financeiras que a teriam levado a trabalhar como governanta para famlias beres na juventude , acabar por questionar as polticas adotadas em relao questo do nativo aps sua desiluo com a poltica de Cecil Rhodes: cerceamento do acesso das populaes africanas a terra, restrio de seu j pouco expressivo direito ao voto, educao racialmente segregada com destino das melhores escolas aos brancos. Schreiner, simultaneamente colonizadora e colonizada, aparece na narrativa de Gomes como o lugar da disjuno possvel. Seu vis particular coloca a possibilidade do deslocamento. A caracterizao de seu lugar social

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    por Gomes mostra como, se o centro do imprio o lugar a partir do qual se pode olhar para todas as suas bordas, as discordncias introduzidas a partir das margens podem ser to revolucionrias quanto passveis de receber o rtulo de selvagens.

    principalmente por meio de sua produo literria que Schreiner se posiciona em relao ao cenrio poltico e social da frica do Sul de seu tempo. The story of an African farm, de 1883, retrata a vida em uma fazenda ber e teve grande repercusso quando de sua publicao, acabando por tornar-se parte do cnone da literatura vitoriana de lngua inglesa. Segundo Gomes, Schreiner deu a um lugar que fazia parte do imaginrio britnico as cores necessrias para que pessoas que o viam como distante imaginas-sem seu cotidiano. Em meio s paisagens sul-africanas, a oposio entre as aspiraes de vida dos personagens delineiam a crtica social de Schreiner, direcionada principalmente s relaes de gnero: Lyndall, anglfona, morre tragicamente aps dar luz o filho do amante com o qual se recusa a ca-sar-se; por outro lado, TantSannie, fazendeira ber retratada como religio-sa, conservadora e ignorante, casa-se com sucessivos maridos por interesse financeiro. A atitude predatria inglesa na frica do Sul tambm evocada por meio da figura de Bonaparte Blenkins. Com sua publicao, a autora foi recebida nos crculos intelectuais da Inglaterra, embora no sem atritos. Conforme se depreende da narrativa de Gomes, as resistncias se deveram a suas ideias feministas e origem africana.

    Gomes especialmente bem-sucedida ao mostrar como os personagens de African farm remetem aos esteretipos que se projetavam sobre as diver-sas posies sociais nos contextos em que Schreiner se inseriu. TantSannie aponta para a viso dos beres como ignorantes, arcaicos e ociosos por parte dos ingleses; a isso se soma a figura do ingls ganancioso, visto pelos beres como no comprometido com o territrio que pretendia unicamente explo-rar. Se no romance os kaffirs bantos so retratados como ladres preguiosos, seriam em obras posteriores caracterizados como conscientes de si e reflexi-vos, capazes de organizao poltica e reflexo intelectual Schreiner chega a comparar sua capacidade de expresso quela permitida pelo Taal, lngua vista como indissocivel do ser ber , os hotentotes seriam versteis, vivos e emotivos, alm de dceis. A discusso de Gomes sobre os personagens e seus nomes reflete tanto sobre seu papel na narrativa quanto sobre o que ela revela a respeito da estrutura social em questo e do posicionamento poltico de Schreiner. No que diz respeito aos esteretipos, tampouco escapa a sua percepo a forma como as mulheres da elite intelectual inglesa viam Schreiner: uma sul-africana bomia que falava com as mos.

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    Em um momento em que se coloca o debate acerca de quem e quem tem o direito de ser sul-africano (p. 51), as apreciaes dos vrios lugares sociais acerca de si e dos outros exercem papel fundamental. A re-lao entre as diversas categorias de designao, relacionadas por sua vez de forma complexa s posies sociais passveis de serem ocupadas pelos sujeitos assim nomeados, determinar o que significa ser sul-africano. E o posicionamento poltico de Schreiner a esse respeito que vai da nfase na unio entre ingleses e sul-africanos com o silenciamento sobre a questo nativa a uma mudana de atitude conforme o final do sculo XIX assiste articulao da legislao segregacionista traz para o leitor os debates pol-ticos da poca a partir de sua insero neles. O trabalho de Gomes extrapo-la, portanto, uma perspectiva estritamente biogrfica ou de anlise literria para compreender a obra de Schreiner em relao ao contexto de formao da nao sul-africana.

    Nesse sentido, ganha importncia o mapeamento de Gomes dos dilogos intelectuais e polticos de Schreiner, que vo do amigo e sexlogo ingls Ha-velock Ellis ao admirado e depois inimigo Cecil Rhodes e membros da South African Improvement Society, em sua maioria, africanos negros. No que diz respeito a esses dilogos, um olhar etnogrfico sente falta de uma discusso sobre a relao de Schreiner com seu marido, Samuel Cronwright-Schreiner, com quem escreveu o panfleto poltico The political situation. Se a intimidade do casal provavelmente pouco relevante para a constituio da nao sul--africana, o casal, por meio de sua atuao conjunta, passou a ocupar um lugar na cena poltica sul-africana no qual os dois indivduos no estavam completamente dissociados. Talvez levar essa relao em conta permitisse acompanhar os desenvolvimentos da militncia feminista de Schreiner em relao a um aspecto cotidiano de sua vida: sua prpria relao conjugal.

    Outros escritos se seguiro ao romance de estreia de Schreiner, segundo Gomes nem sempre facilmente classificveis do ponto de vista da forma: se The political situation e Thoughts on South Africa poderiam ser ditos de cunho po-ltico, Trooper Peter Halket of Mashonaland um romance-alegoria que trata da trajetria de um ingls pobre que foi para a frica do Sul lutar na guerra de pacificao contra os Mashona. A narrativa mostra como Peter Halket, que chegou ao territrio africano em busca de ascenso social custa de pouco trabalho, humaniza-se a ponto de recusar-se a matar um nativo. Embora os escritos de Schreiner difiram em sua forma, Gomes argumenta de forma bastante convincente que no se pode pretender classific-los segundo uma diviso estanque entre trabalhos de imaginao e textos polmicos, pois h algo de poltico nos textos mais explicitamente literrios, como African

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    farm; ademais, os escritos predominantemente polticos seguem muitas ve-zes um estilo literrio, com grande destaque para a paisagem sul-africana, personagem expressivo de muitas de suas narrativas. Trooper Peter Halket seria por excelncia inclassificvel nesse sentido.

    Na narrativa de Gomes sobre Schreiner, os detalhes do cotidiano se ar-ticulam s grandes questes polticas do seu tempo: a Guerra Anglo-Ber, o papel de Rhodes no Cabo e na Rodsia, as guerras de pacificao contra os nativos, sua explorao como mo de obra barata e seu alijamento da cena poltica sul-africana. No que diz respeito questo dos nativos, vistos por Schreiner como um pequeno humano em formao, penso que parte da riqueza da leitura de Gomes deve-se a sua capacidade de mostrar de forma muito clara qual era o sistema de classificao vigente e as concepes que se atrelavam a cada categoria social. Os africanos eram divididos basica-mente em quatro categorias: bosqumanes, hotentotes, kaffirs (bantos) e colou-red (termo que pode ser imperfeitamente traduzido como mestio). A cada uma dessas categorias estavam relacionadas caractersticas e personalidades distintas, como apontamos acima, e a classificao se baseava principalmen-te no critrio econmico (bosqumanes eram caadores-coletores; hotentotes eram pastores; kaffirs eram pastores e agricultores dotados de organizao centralizada). Contudo, se as trs primeiras categorias eram compreendidas como raas, e juntamente com a raa branca perfaziam as quatro raas que compunham a nao sul-africana segundo a classificao de Theal em Compendium of the history and geography of South Africa (1878), no se poderia dizer o mesmo dos coloured, classe trabalhadora sul-africana compreendida por Schreiner e grande parte dos intelectuais de sua poca no como uma raa distinta, mas como half-castes (literalmente meia-castas). Estes seriam, segundo ela, resultantes da unio entre mulheres negras escravizadas e um branco dominante.

    A crtica de Schneider incide no s sobre a desigualdade dessa rela-o de gnero como sobre o carter indesejvel da miscigenao. Para ela, a frica do Sul deveria ser construda harmonicamente a partir de todas essas raas, uma nao com vrias cores que, no entanto, deveriam perma-necer separadas, como muito bem explicitado em seu mandamento mais importante: Keep your breeds pure! [Mantenham sua raa pura!] (p. 113). A miscigenao silenciada ou vista como problema por Schreiner que, no en-tanto, defende a assimilao, obrigao moral de elevar os outros. A viso de Schreiner em relao questo do nativo mostra como ela, ao mesmo tempo em que assumia uma atitude progressista em relao ao lugar dessas pessoas na poltica sul-africana, era tambm uma mulher de seu tempo,

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    pertena esta derivada em grande medida da linguagem de que dispunha para pens-lo: para ela, os nativos sul-africanos eram distintos dos bran-cos e assim deveriam permanecer. No h espao, em seu discurso, para o questionamento da ideia de raa e das hierarquias dela resultantes. Imersa nas ideias eugenistas de sua poca, Schreiner via a miscigenao com preo-cupao e considerava ser papel da raa branca, especialmente dos ingleses, que ocupavam seu mais alto nvel, contribuir para a melhoria das outras raas por meio da assimilao. Para ela, cada raa tinha suas qualidades e defeitos e poderia, a partir deles, desenvolver-se; a miscigenao traria o problema da degenerescncia, pois faria uma juno das piores caractersti-cas de cada raa.2 A riqueza da narrativa de Gomes aponta, contanto, para as vozes dissonantes de trs clrigos anglicanos e Abdol Burns. Estes se opuse-ram segregao racial nas escolas com base no seguinte argumento: como identificar brancos e negros em uma sociedade miscigenada e com notria permeabilidade em sua barreira de cor? Se seu questionamento apontava para a evidncia que a classificao racial buscava distorcer, seu apelo no teve ressonncia no debate poltico do perodo.

    O texto de Gomes, extremamente bem escrito, faz jus proposta de anlise que apresenta e convida o leitor, com bom humor e perspiccia, a participar do contexto do nascimento da nao sul-africana e da definio de lugares sociais marcados por categorias de designao que determina-riam muitas das possibilidades e impossibilidades colocadas para os diver-sos sujeitos sul-africanos ao longo do sculo XX.

    Referncias bibliogrficas

    GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.SCHWARCZ, Lilia. O espetculo das raas: cientistas, instituies e pensamento racial no Brasil,

    1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.THEAL, George. Compendium of the history and geography of South Africa. Londres:

    Edward Stanford, 1878.

    Recebido: 11/09/2014 Aprovado em: 17/12/2014

    2 So curiosas as semelhanas do discurso eugnico sobre raa na frica do Sul e no Brasil do mesmo perodo. Sobre o contexto brasileiro, ver Schwarcz (1993).