imaginar a memÓria: invenção e descoberta na animação de imagens que experimentam um passado

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IMAGINAR A MEMÓRIA: invenção e descoberta na animação de imagens que experimentam um passado Carlos Henrique Rezende Falci 1 Como a lembrança organiza as experiências vividas em um tempo passado? E qual é a ordem temporal desse passado, se é possível realmente falarmos de um passado puro, do qual a lembrança ou as lembranças seriam esse resgate? Obviamente, tal questão não é nova, e já foi abordada por diversos autores que discutem a noção de memória e as associações conceituais que acompanham esse conceito. Desejo aqui investigar de que modo os registros dessa lembrança produzem uma experiência de invenção e descoberta, e como isso acontece quando se conjugam metadados, elementos do cinema de animação e testemunhos que produzem a lembrança de uma experiência passada. Os metadados entram nessa equação como elementos que traduzem lembranças sobre um acontecimento “passado”, e nessa tradução permitem a quem utiliza tais metadados imaginar a sua própria memória 2 . Nesse sentido, as inscrições criadas com metadados “autorizam” determinadas imagens e experiências a se tornarem os arquivos de um acontecimento que sobreveio a alguém. Deseja-se 1 Professor Adjunto III da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em Literatura pela UFSC, atua no programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social e no curso de Cinema de Animação e Arte Digital (graduação). Atualmente desenvolve pesquisa sobre poéticas e políticas da memória em ambientes programáveis, em projeto financiado pelo CNPq. Email: [email protected] 2 A memória aqui será tratada como um fundo memorial do qual a lembrança, ou as lembranças são a face objetal; assim, as lembranças fazem vibrar a memória e produzem uma organização temporal desse fundo memorial.

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Como a lembrança organiza as experiências vividas em um tempo passado? E qual é a ordem temporal desse passado, se é possível realmente falarmos de um passado puro, do qual a lembrança ou as lembranças seriam esse resgate? Obviamente, tal questão não é nova, e já foi abordada por diversos autores que discutem a noção de memória e as associações conceituais que acompanham esse conceito. Desejo aqui investigar de que modo os registros dessa lembrança produzem uma experiência de invenção e descoberta, e como isso acontece quando se conjugam metadados, elementos do cinema de animação e testemunhos que produzem a lembrança de uma experiência passada. Os metadados entram nessa equação como elementos que traduzem lembranças sobre um acontecimento “passado”, e nessa tradução permitem a quem utiliza tais metadados imaginar a sua própria memória.

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IMAGINAR A MEMRIA: inveno e descoberta na animao de imagens que experimentam um passadoCarlos Henrique Rezende Falci Como a lembrana organiza as experincias vividas em um tempo passado? E qual a ordem temporal desse passado, se possvel realmente falarmos de um passado puro, do qual a lembrana ou as lembranas seriam esse resgate? Obviamente, tal questo no nova, e j foi abordada por diversos autores que discutem a noo de memria e as associaes conceituais que acompanham esse conceito. Desejo aqui investigar de que modo os registros dessa lembrana produzem uma experincia de inveno e descoberta, e como isso acontece quando se conjugam metadados, elementos do cinema de animao e testemunhos que produzem a lembrana de uma experincia passada. Os metadados entram nessa equao como elementos que traduzem lembranas sobre um acontecimento passado, e nessa traduo permitem a quem utiliza tais metadados imaginar a sua prpria memria. Nesse sentido, as inscries criadas com metadados autorizam determinadas imagens e experincias a se tornarem os arquivos de um acontecimento que sobreveio a algum. Deseja-se justamente compreender como um uso potico dos metadados pode modificar as narrativas de memria, de modo a operar passagens entre inveno e descoberta quando se trata de criar memrias digitais que so, ao mesmo tempo, volteis e duradouras na sua capacidade de mudana contnua. Trata-se aqui de pensar a inveno e a descoberta associadas s narrativas de memria, entendendo a narrativa como um processo que se desdobra em trs mimeses (Ricoeur, 1994). A pesquisa aqui apresentada parte de projeto financiado pelo CNPq sobre poticas e polticas da memria em ambientes programveis. Entender a memria como um fenmeno, como o caso desse artigo, abre o caminho para tambm olhar os elementos que a compem como partes instveis, dependentes do prprio fenmeno ao qual do origem. A memria teria o carter do algo acontecido, de um dado-presente no passado, e esse carter seria uma funo da narrativa. Alia-se a narrativa memria nesse ponto, tomando a primeira como uma ordenao temporal, de acordo com a discusso de Ricoeur (1994) sobre a trplice mimese. A mimese, base estrutural da narrativa, uma ao de estruturar os fatos, que comea com a disposio prtica destes (mimese I), tem continuidade com a organizao dessa disposio num tipo de ordenao especfica (mimese II) e encontra um termo com a leitura (mimese III). Trata-se de investigar, na relao entre as trs mimeses, a forma do agenciamento dos fatos. A mimese I equivalente a um tempo pr-figurado, que ser posteriormente configurado pela mimese II. Ricoeur define trs traos fundamentais da mimese I: os traos estruturais, os simblicos e os temporais. Segundo o autor, toda ao possui traos estruturais relacionados aos agentes da ao, aos motivos da execuo da ao e aos fins da ao. Entretanto, compreender esses traos j lig-los de alguma maneira, possuir a competncia do que se chama compreenso prtica. A compreenso prtica seria uma pr-compreenso narrativa, porque ligada capacidade de acrescentar estrutura prtica da ao, ainda que minimamente, traos discursivos que ligariam logicamente os seus elementos.

Para realizar a composio narrativa, seria preciso entender tambm as caractersticas simblicas da ao. Ou seja, toda ao, se pode ser narrada, porque j est articulada em signos, ou melhor, em smbolos. Aqui se encontram as caractersticas simblicas da ao, que sero depois traduzidas na narrativa em termos de discurso. E, por fim, os traos temporais da ao estariam ligados ao ato de construir a ao como um todo, definindo o seu passado, o seu presente e o seu futuro. A caracterstica temporal da ao s seria percebida com base numa intratemporalidade, numa construo do tempo da ao a partir de suas prprias qualidades internas. Tais traos preparariam o sujeito para empreender a mimese II, a configurao da ao atravs da narrativa, a mediao da ao prtica em direo mimese III, que seria refigurao dessa mesma narrativa pelo leitor.

Seguir uma histria avanar no meio de contingncias e de peripcias sob a conduta de uma espera que encontra sua realizao na concluso. Essa concluso no logicamente implicada por algumas premissas anteriores. Ela d histria um ponto final, o qual, por sua vez, fornece o ponto de vista do qual a histria pode ser percebida como formando um todo. (RICOEUR, 1994, p. 105).

Atravs da tessitura da intriga, os acontecimentos do campo da ao so constitudos como uma histria. E a concordncia discordante entre passado, presente e futuro encontra seu termo em um todo que dado pela prpria tessitura. A ideia de todo aqui se relaciona com uma ao narrada com princpio, meio e fim lgicos e no necessariamente cronolgicos. O ato de narrar coloca em movimento os traos componentes do trplice presente e prope uma configurao para a ao percebida em mimese I. A narrativa, nesse sentido, menos a sequncia de acontecimentos lineares e mais a configurao de um processo entre os acontecimentos que se encontravam ainda precariamente interligados em mimese I. A tal processo Ricoeur denomina tessitura da intriga e, no, intriga. A noo de tessitura empregada para enfatizar o carter de mediao de mimese II, o seu carter processual. somente em mimese III que a narrativa permitiria compreender que o tempo percebido sempre o tempo narrado, o tempo tornado humano na e com a narrativa.

A mimese III a ao que reconfigura o tempo pr-figurado da mimese I, atravs da experincia de mimese II. Tal reconfigurao no se d apenas em funo de uma suposta ordenao dos traos temporais que apareciam de maneira desordenada em mimese I. A configurao proposta em uma tessitura da intriga apenas uma proposio e, como diz o prprio Paul Ricoeur, o comeo de um processo que encontra um termo em mimese III, e no necessariamente o seu trmino.

A narrativa uma das vrias configuraes que se encontram ainda no contadas. As histrias no contadas estariam em estado de potncia enquanto situam-se em mimese I. O processo levado a um termo em mimese III aquele de fazer emergir, atravs da imerso em mimese II (a tessitura da intriga), tanto o sujeito implicado nessa imerso quanto uma temporalidade prpria desse conflito, que caracterstico da mimese III e uma das possveis histrias ainda no contadas em mimese I.

O emaranhamento aparece antes como a pr-histria da histria narrada da qual o comeo permanece escolhido pelo narrador. Essa pr-histria da histria o que a vincula a um todo mais vasto e d-lhe um pano de fundo. Esse pano de fundo feito pela imbricao viva de todas as histrias vividas umas nas outras. preciso pois que as histrias narradas emerjam desse pano de fundo. (RICOEUR, 1994, p. 115,116).

O uso de metadados, na elaborao de uma tessitura, na produo do agenciamento dos fatos, parece-nos capaz de criar hibridaes importantes entre as trs mimeses, de modo a explicitar a maneira como as noes de inveno e descoberta fazem surgir determinados rastros como arquivos autorizados para narrar uma temporalidade dos fatos dispostos na narrativa. Antes, no entanto, de trabalhar com o conceito de metadados, importante entender o papel da inveno e da descoberta, ainda na esteira do pensamento de Ricoeur.Paul Ricoeur (2007) prope, em a A memria, a histria, o esquecimento, uma distino entre memria (enquanto lembrana) e imaginao, com base na noo de que a memria diria respeito a algo do passado, algo que efetivamente aconteceu, ainda que esteja ausente; a imaginao, por sua vez, produziria tambm algo que est ausente, mas que seria ficcional, no tendo necessariamente acontecido, o que a aproximaria mais da lgica da inveno. Nos dois casos, no entanto, h similaridades e diferenas, j que a memria teria o carter do algo que se passou, de um dado-presente no passado. Essa maneira de pensar a memria aproxima tal conceito de um tempo do mundo, um tempo que no precisa advir a um sujeito para que continue a ter sua existncia, a passar. Uma diferena em relao imaginao seria o fato de que, nesta, possvel criar uma temporalidade exclusiva da prpria histria a ser contada, sem nenhuma referncia a algo que tenha se passado ou acontecido de fato. A coerncia da narrativa ficcional seria o fator capaz de conferir existncia a esse tempo exclusivamente imaginado. Ricoeur, no entanto, afirma que a narrativa histrica (que aproximamos aqui da memria como algo que da ordem do passado) se apropria de elementos da narrativa ficcional para produzir uma anterioridade do fato passado que seja coerente, bem como a narrativa ficcional se apropria de formas da narrativa histrica para criar o seu mundo imaginado. No caso desse artigo em questo interessa-nos o movimento que estrutura a narrativa histrica a partir de traos da narrativa ficcional, de modo a conferir primeira uma ordenao temporal capaz de reefetuar um passado que surge como qualidade do presente, como referente ao presente que o faz surgir.Para compreender o movimento indicado, analisamos o que Ricoeur chama de conectores entre o tempo vivido e o tempo do mundo, mais especificamente, as noes de rastro, documento e arquivo. Um arquivo seria uma forma do testemunho que atestaria a existncia passada de um acontecimento, mas j de maneira institucionalizada. Entender o arquivo ou o documento como uma inscrio de um testemunho (seja essa inscrio em signos escritos ou no escritos) significa conferir a ele o carter de narrativa, pois um testemunho uma organizao particular, uma trama dos acontecimentos, que se situaria a meio caminho entre a inveno e a descoberta. Colombo (1991) trata o arquivo a partir de uma ao de arquivamento, associada traduo dos fatos num sistema de memorizao dos mesmos. Quatro microaes intervm no processo de constituio de um arquivo: a gravao de um fato num suporte material; o arquivamento, que a traduo do evento em uma informao cifrada (por exemplo, atravs de um metadado); o arquivamento da gravao, a organizao desta num sistema mais amplo; e a gravao do arquivamento, destinada a multiplicar essa gravao em vrios suportes. Interessa, para o propsito dessa discusso, o fato do arquivo ser associado a um processo e no especificamente, ou somente, a um lugar fixo, a uma estrutura determinada de uma vez por todas. So vrias as aes que constituem o arquivo e que sero tambm responsveis por fazer que ele surja enquanto tal, quando for buscado novamente. A abordagem de Colombo parece reforar a caracterstica de tessitura de um arquivo, tambm discutida por Ricoeur (1997). Para esse autor, o arquivo teria trs caractersticas principais: ele se relaciona com um corpo organizado de documentos; com uma instituio, com uma atividade institucional (e para esse artigo assume-se que a institucionalizao tambm um ato cultural, podendo ser associada constituio da memria cultural); e, ainda, o arquivo o que conserva ou preserva os documentos sobre um fato passado, o que faz com que tais documentos sejam investidos de certa autoridade sobre o acontecimento a que fazem aluso. Verifica-se aqui que o arquivo pode ser constitudo de apenas um documento, confundindo-se com ele e sua narrativa, ou pode ser visto como uma tessitura entre documentos de uma determinada espcie, ou que portam uma similaridade de contedo, por exemplo. A viso de Ricoeur sobre os arquivos deve ser relacionada ao papel que os documentos e os rastros tm em relao a um fato acontecido num lugar do passado, para que se possa compreender proximidades e distncias entre arquivos e rastros, atravs do modo como os documentos so organizados.Os rastros seriam tanto as marcas de que algo se passou, ou de que algo passou por um lugar, bem como a ao que produziu aquela marca, aquele vestgio. A passagem que produz a marca confere ao rastro uma dinmica, a possibilidade de resgatar a narrativa que criou tal marca da passagem; e ao mesmo tempo, essa marca tem uma permanncia no aqui e no agora, fundamentalmente ligada ao documento que contm o rastro. O rastro ento , ao mesmo tempo, mvel e esttico, porque fala de um ato que aconteceu, e se faz visvel naquele momento em que reconhecido enquanto tal, numa inscrio mais duradoura. O rastro seria construdo na prpria busca de um lugar passado, e no somente como a confirmao de que esse lugar passado existiu. Por essa razo, entende-se que o rastro no pode ser dissociado da operao que produz o documento, nem da que cria o arquivo. No entanto, como se intensidades diferentes operassem em cada um desses momentos: o rastro ainda uma pr-figurao do acontecimento, conquanto tenha sugestes da narrativa que capaz de produzir; o documento apresenta-se como a escolha de alguns rastros, e sua consequente autorizao enquanto rastros; e o arquivo a institucionalizao daquilo que j estava contido no rastro, mas apenas como ranhura. Surge assim uma maneira de caracterizar o arquivo relacionando a sua criao a uma escolha arbitrria, uma vez que os acontecimentos passados so selecionados a partir de uma motivao, de uma pergunta ou questo que se deseja investigar, feita a documentos coletados e que se relacionam com um acontecimento anterior. Os arquivos, ao serem investidos de tal condio, permitem que se criem, a partir da delimitao temporal que eles mesmos produzem, novas associaes entre acontecimentos que tiveram lugar num tempo passado. Descobrem-se assim, tessituras ainda no reveladas, que provocam a memria a revolver sobre si mesma. Ao mesmo tempo, os arquivos podem ser inveno, uma vez que aquilo que se chama arquivo pode ser criado pela prpria narrativa, na escolha de elementos antes no considerados como pertencentes aos acontecimentos passados. Em ambos os casos, olha-se para fatos passados e para os documentos que lhes servem de comprovao a partir de uma questo que ir torna-los (os documentos) uma evidncia do acontecimento que se deseja lembrar, do qual se deseja produzir memria. (Ricoeur, 1997) O que surge, doravante, como memria de um fato passado, um conjunto de elementos que, mais do que apresentar efetivamente o passado, apresenta a maneira como ele foi construdo. Ou melhor, a maneira como essa memria passa a re(a)presentar algo que da ordem do passado, mas que no tem lugar fixo de uma vez por todas. Esse movimento (de fixao) o que marca a relao entre modos da memria se institucionalizar. As possibilidades aqui elencadas ganham uma nova complexidade quando tais modos so produzidos com elementos da rea de animao e metadados que delimitam esses elementos. Essas potencialidades sero examinadas mais adiante, quando da anlise da experincia The Johnny Cash Project.Os arquivos e documentos so uma forma de registrar externamente um testemunho, de permitir o compartilhamento comum desse fato. Constituem, assim, elementos institucionais, ou antes, institucionalizadores da memria. No entanto, a ao institucionalizadora depende, ainda, de lgicas especficas de registro, para que se possa caracterizar a memria assim narrada, temporal e espacialmente. exatamente como um modo de registro que os elementos da rea de animao so explorados nesse texto. O cinema de animao traz para o terreno do cinema documentrio formas de manipulao hbridas, cujo estatuto ficcional ou histrico (para falar ainda com Ricoeur) no termina de ser colocado prova. Recursos como a condensao do espao e do tempo num nico plano, penetrao no interior da mente ou de objetos, entre outros, elencados por Wells (1998) misturam as noes de fabricao artificial da memria, numa animao; e uma pretensa fabricao mais prxima do real, que seria prpria do documentrio, num ponto de vista mais tradicional. Abordo aqui de maneira mais prxima as relaes entre animao e documentrio porque o projeto analisado mescla imagens de momentos da vida de Johnny Cash e possibilidades de interferncia sobre tais imagens.Um primeiro ponto de contato entre documentrio e as noes de inveno e descoberta diz respeito s imagens desse tipo de produo terem associadas a si o status de no-fico, de serem reconhecidas como asseres sobre o mundo (RAMOS, 2008; NICHOLS, 2005). Se a narrativa histrica tem como pretenso falar de algo que efetivamente aconteceu, o documentrio parece ter essa mesma pretenso, ao organizar imagens do mundo numa configurao narrativa que sugere ao espectador o modo como as coisas efetivamente aconteceram. Obviamente, se tomamos a noo de narrativa como a mimese II em Ricoeur, j fica claro aqui que a narrativa do documentrio um estado intermedirio entre os fatos do mundo, em sua organizao pr-figurada, e a experincia da leitura do documentrio, na mimese III, quando essa configurao narrativa ento refigurada pelo espectador. Isso significa dizer que na passagem da mimese III em direo mimese I, atravs da mimese II, que o espectador confere sentido s sugestes feitas pela narrativa documental. A ideia de conferir sentido associada questo de produzir uma ordem para o que efetivamente se passou, tendo como base as perspectivas que a configurao temporal da mimese II prope ao espectador. Jennifer Serra (2012) baseia sua noo de documentrio na relao que o filme estabelece com o mundo quando ele reivindica uma abordagem do mundo histrico. (SERRA, 2012, p. 247). Essa afirmao traz, em seu bojo, hipteses que este artigo defende principalmente o entrecruzamento entre narrativa histrica e narrativa ficcional, entre descoberta e inveno. Na definio de Serra a descoberta aparece na relao que o filme estabelece com o mundo, no seu modo de descortinar um mundo especfico. Tal modo, entretanto, no pode ser desconectado da noo de abordagem do mundo histrico, que desejamos aqui afirmar como o lugar da inveno na narrativa histrica. preciso deixar claro que as separaes que operamos entre inveno e descoberta, como momentos puros da narrativa tm como propsito apenas explicitar a contribuio de cada elemento para a narrativa em si, e no defender que em uma narrativa h inveno pura ou descoberta pura.O documentrio animado tensiona de maneira ainda mais intensa as relaes j indicadas, alm de acrescentar caractersticas prprias da animao. Na captao de cenas para um documentrio, as imagens gravadas teriam o poder de transportar o espectador para a circunstncia da tomada dessas imagens, segundo Ferno Ramos (2008). J na criao de imagens animadas, essa circunstncia no se faria presente, uma vez que a relao com a circunstncia da tomada no se daria. Aqui haveria um espao para a construo de imagens icnicas, imagens que so mais caractersticas da rea de animao, nessa ausncia que se opera entre o fato e as possveis formas de experiment-lo, e que permitiriam ao espectador se projetar nessas imagens.

Como a imagem animada explicitamente de natureza construda, ela deixa claro, no caso do documentrio animado, que o que se experimenta ali uma perspectiva narrativa que no permite mais uma abordagem pura somente dos fatos como acontecidos, ou dos fatos como somente criados pela imaginao. nessa natureza conflituosa que a lembrana aparece, duplamente, como imaginao e como esforo de rememorao, produzindo o que chamamos aqui de imaginar a memria. Desejo enfatizar o carter positivo dessa associao, e no coloc-la como um problema de assertividade da lembrana em relao ao fato passado. Ao contrrio, imaginar a memria significa reconhecer que, ainda que as narrativas ordenem configuraes temporais de um modo prprio, inventivo, elas so tensionadas pelo que de fato aconteceu, mas no est mais presente. a aporia da presena da coisa ausente que esse artigo se refere, a essa duplicidade que provoca todo ato de memria.

No caso do projeto em questo, trabalho com a hiptese que a escolha de determinados frames e estilos de desenho terminam por funcionarem como reforo de um tipo de lembrana sobre o artista Johnny Cash. A repetio de escolhas, seja de frames ou de estilos de desenho, terminariam por autorizar determinados traos como documentos e, consequentemente, como arquivos que institucionalizariam a memria do artista a partir de um aspecto mais proeminente. Ou, como diz Serra, a animao pode oferecer um percurso intensificado para entender o mundo social real. (Serra, 2012, p. 251) No momento da anlise desenvolverei melhor os problemas relativos a essa hiptese.

Destaco ainda um elemento do documentrio animado que interessa nossa anlise, qual seja, como trabalhar com a noo do testemunho associada a caractersticas do documentrio animado. Martins (2009) elenca trs funes retricas principais no documentrio animado: descrever situaes, quando os documentrios fazem referncia direta ao mundo histrico; representar sensaes, em documentrios animados que valorizam as sensaes oriundas de estados subjetivos de personagens ancoradas no mundo histrico (MARTINS, 2009); e estabelecer relaes entre situaes visveis e invisveis, quando os documentrios animados fazem a ponte entre o mundo subjetivo e o mundo histrico. Parece-nos que o documentrio animado seria capaz de trabalhar com o testemunho no sentido que Ricoeur confere a este, como uma operao marcada por algumas caractersticas que associo aqui s funes retricas descritas por Martins. A especificidade do testemunho se baseia na noo de que o fato atestado deve ser significativo; o testemunho inseparvel da autodesignao do sujeito que testemunha, se dirige a algum e pode ser provado coletivamente, alm de poder ser repetido ao longo do tempo. Ainda que de maneira muito resumida, a apresentao dessas caractersticas sugere conexes possveis com a ideia de que o documentrio animado descreve situaes ou representa sensaes, alm de estabelecer relaes entre situaes visveis e invisveis. Um testemunho significativo aquele capaz de provocar uma afeco importante no sujeito que testemunha, sensao essa que poderia ser representada pelo documentrio animado, de acordo com Martins. A correlao entre testemunho e narrativa autobiogrfica pode ser associada ponte entre mundo histrico e mundo subjetivo, j que a narrativa autobiogrfica est no meio caminho entre o que de fato aconteceu e a experincia do que aconteceu.O projeto The Johnny Cash Project guarda ainda relaes estreitas com o testemunho, uma vez que este

no encerra sua trajetria com a constituio dos arquivos, ele ressurge no fim do percurso epistemlogico no nvel da representao do passado por narrativas, artifcios retricos, colocao em imagens. (RICOEUR, 2007, p.170)

em direo s narrativas e artifcios retricos que esse artigo se volta agora, buscando compreender de que maneira os metadados do continuidade ao testemunho, constituindo-os como arquivos. A hiptese aqui aventada a de uma potica capaz de criar arquivos que aliam inveno e descoberta, atravs do uso metadados na sua relao com elementos da rea de animao. Metadados podem ser considerados tanto uma descrio sobre um conjunto de dados quanto o seu modo de funcionamento num determinado contexto, se analisarmos a forma como foram criados. (Manovich, 2002; Matthews, Aston, 2012). No caso do exemplo em questo a ser investigado, os metadados funcionam como descritores de itens de menu, os quais permitem agir sobre uma determinada imagem e alter-la. Num sentido mais geral, os metadados so o que permitem que o computador recupere informaes, porque permitem ao computador manipular os dados, alm de realizar diversas outras tarefas, como mover os dados, comprimi-los etc (Manovich, 2002). O computador estabelece uma relao de reconhecimento, mas tambm de apropriao dos dados, atravs dos metadados. A apropriao como a institucionalizao que o estabelecimento de um arquivo gera em relao a documentos especficos. Quando esses metadados tornam-se tambm manipulveis pela pessoa que interage com uma determinada interface, a operao de apropriao se torna mais complexa, gerando momentos que confrontam a inveno com a descoberta de lembranas. No entanto, os metadados no so arquivos em si; podem, no mximo, serem conectados com rastros de uma ao. Dependendo da forma como o metadado organizado e colocado para funcionar numa determinada interface, ele talvez seja capaz de gerar uma passagem entre a noo de rastro e arquivo, conectando o testemunho a documento autorizado. O uso de uma tcnica de desenho (o pontilhismo), por exemplo, pode gerar um conjunto de imagens com caractersticas especficas, uma espcie de ordenao de tais imagens, mesmo que essa ordenao no seja ainda uma narrativa. No momento em que a interface permite organizar tal conjunto de imagens como um todo quase coerente, opera-se uma espcie de interferncia cruzada entre a mimese I e a mimese II, sem que se possa dizer que esse todo est em um ou em outro momento do processo de mimese. Entende-se aqui o arquivo como a narrativa criada, uma vez que ela um conjunto de documentos organizados em funo de uma escolha arbitrria. A tcnica de desenho indicada acima, ao ser repetidamente utilizada, gera a permanncia de uma forma de testemunho no tempo, iniciando assim o caminho que leva do testemunho ao arquivo, atravs de uma prova documental. No obstante, tal prova conserva tanto as marcas da inveno quanto da descoberta.Quando h uma apropriao de um conjunto de metadados numa organizao arbitrria (ou seja, a partir de uma escolha, ou de uma interface), inicia-se a criao de um lugar praticado, de uma marca temporal. Essa localizao se assemelha a um rastro, um vestgio de uma ao no tempo. H uma peculiaridade nessa relao de similitude, no entanto. H metadados que so construdos e disponibilizados para garantir uma maior estabilidade temporal da ao qual se referem, enquanto outros talvez sejam mais fluidos. Sugere-se aqui pensar que quanto maior a capacidade do metadado de produzir uma relao unvoca com o fato passado, mais esse elemento se aproxima do carter institucional prprio do arquivo; inversamente, quanto menor essa capacidade, mais o metadado se configura como um rastro, como um vestgio. No se trata de criar uma oposio excludente entre arquivos e rastros, e sim de reforar a continuidade entre um e outro tipo de apresentao da memria. Em ambientes programveis, potencializa-se a passagem entre rastros e arquivos, o que provoca uma instabilidade de princpio, em relao s narrativas de memria a contidas. Veremos, adiante, como tal instabilidade se conjuga com os fatos narrados da vida de Johnny Cash, com a histria que ele mesmo parece ter construdo em volta de si.Os metadados so capazes de fazer a passagem entre as marcas dos acontecimentos passados e sua consequente entrada no seio de uma narrativa. A realizao dessa transio adquire caractersticas especficas, quando ela se d em ambientes digitais. O uso de metadados seria capaz de isolar o modo como um testemunho criado, conferindo a este a potncia de indicar uma prova documental, um lugar de memria. Os arquivos, como colees de documentos, teriam tambm tal capacidade, conquanto pudessem ser analisados a partir de seus vrios elementos mnimos constituintes (o ngulo em que uma imagem foi capturada; quais interferncias essa imagem sofreu; como elas foram feitas; os instrumentos utilizados etc). Esse procedimento conferiria objetividade, ou um maior grau de objetividade ao arquivo e, consequentemente, ao fato. Penso, no entanto, que a questo no assim to simples. Afinal, um arquivo, para garantir-se como evidncia do lugar de um fato passado, de maneira inequvoca, deveria distanciar-se da trama que o criou? Deveria caminhar em direo de uma objetividade impossvel? Essa seria a prova documental da memria por excelncia? E seria essa direo capaz de diferenciar a lembrana da imaginao, a descoberta da inveno, a histria da fico? Afinal, no se trata muito mais de pensar as relaes entre esses termos?O que produziria diferenas entre lembrana e imaginao seria o modo como essas narrativas se configuram e como se apresentam para aquele que as deseja acessar. No caso de memrias em ambientes digitais, as narrativas de memria so construdas tanto pelos modos de registro dos fatos, quanto pelo modo como esses fatos so dispostos em interfaces que os agrupam. Interessa, nesse caso, compreender como determinados modos de registro e interfaces criam lembranas que transitam entre a inveno e a descoberta, evocando a possibilidade de imaginarmos a memria. Andrew Hoskinks (2009) e Jos van Dijck (2007) trabalham com o termo memrias mediadas para caracterizar as memrias em ambientes digitais. Trata-se de uma qualidade das memrias relacionada ao modo de existncia dos objetos de memria, e ao modo de acessar tais contedos. Van Dijck (2007) introduz a questo a partir do conceito de itens de memria que seriam capazes de realizar a mediao entre indivduos e grupos, itens esses que funcionariam no apenas como lembranas de coisas passadas. importante ter em mente que esses itens so produzidos pelas tecnologias de mdia. Pensar os objetos de memria como objetos dialgicos (que estabelecem relaes entre) entend-los como mveis, como pontos que tensionam camadas temporais invisveis e no definidas como passado, presente ou futuro por si s. Essas mediaes podem ser compreendidas como eventos que se cruzam e fazer aparecer uma parte dessas camadas temporais. A memria seria, ento, nesse sentido, um fenmeno que dura pouco tempo num s formato, porque ela uma relao entre coisas. Ela apario. Pensando numa potica da memria em ambientes programveis, os metadados que se relacionariam com esse conceito de memria so aqueles que conseguem dar conta justamente do modo como o ambiente se modifica em funo dos objetos/elementos/relaes que o compem num determinado momento. Os metadados, em ambientes programveis, ganhariam a caracterstica de rastros, conquanto se portassem como uma marcao, no aqui e no agora, de que algo se passou. E ao serem trabalhados de maneira a poderem indicar vrios atos passados, a partir de pontos de vista distintos, tornar-se-iam maneiras de orientar a caa, a busca, tpica dos rastros (Ricoeur, 2007). Nesse momento aconteceria a passagem de rastros a arquivos, quando os metadados fossem capazes de criar um fluxo constante entre a inveno e a descoberta. Para verificar como esse movimento pode acontecer, analiso o projeto The Johnny Cash Project, que conjuga elementos do cinema de animao e uso de metadados, produzindo uma experincia da memria que se situa entre a inveno e a descoberta. The Johnny Cash Project baseado em uma interface que permite a criao de frames animados de um vdeo feito para a msica Aint no Grave, o ltimo trabalho do msico em estdio. Os desenhos so criados a partir de frames do vdeo clip, os quais podem ser escolhidos no site, por qualquer um que acessar a sua interface. A criao de imagens no projeto se assemelha tcnica da rotoscopia, ainda que no possa ser classificada como tal. O vdeo clipe original apresenta imagens capturadas em vrios momentos da vida de Cash, com forte carter documental. Apesar de no ser possvel ver, atravs do site do projeto, o vdeo integralmente realizado somente com as imagens feitas com cmeras, ao entrar na rea de colaborao do projeto pode-se visualizar cada frame separadamente, o que sugere a fora testemunhal e documental de tais imagens.A interface do projeto apresenta duas sees principais, as quais funcionam como locais em que possvel visualizar as lembranas criadas por outros ou acrescentar seu prprio testemunho a essa narrativa histrica. A pgina principal apresenta formas de acessar essas duas sees, bem como uma rea em que h a explicao de todo o projeto. A anlise, nesse artigo, ir se deter sobre as formas de leitura e de criao da narrativa de memria sobre Johnny Cash.

A seo Contribute mostra as vrias maneiras que cada pessoa pode utilizar para registrar sua prpria lembrana, associando-a a frames do vdeo clipe, com uso de ferramentas de desenho. Ao clicar nesse item do menu, o participante apresentado a trs frames do vdeo clipe, escolhidos de maneira randmica entre os vrios possveis. A cada nova entrada nessa seo, novos frames so escolhidos aleatoriamente. Podemos associar tal configurao a um movimento entre a mimese I e a mimese II, segundo as noes de Paul Ricoeur sobre esses conceitos. A mimese I est presente, pois o site apresenta traos estruturais da ao sem ainda acopl-los a uma configurao narrativa passvel de visualizao. No entanto, h traos da mimese II, j que o nmero do frame indicado, e tais nmeros esto relacionados a uma perspectiva temporal especfica sobre o conjunto total de imagens coletadas. Aps a escolha o frame se abre na tela, juntamente com um conjunto de ferramentas pr-determinadas para que se possa desenhar usando o frame como uma referncia. As ferramentas incluem o tipo de pincel a ser utilizado, a largura ou grossura do pincel, o nvel de opacidade, a cor do pincel (no caso do projeto, variaes entre preto e branco), o nvel de zoom sobre o frame, e a opacidade do frame escolhido pelo participante. As interferncias podem seguir a lgica da imagem que o frame exibe, ou serem feitas de modo absolutamente livre. Cada ferramenta tambm pode ser usada de maneira livre, dentro dos limites de funcionamento de cada elemento. Ao dar por encerrada sua interferncia, o participante pode escolher envi-la para a equipe de criao do projeto, que ir anex-la ou no ao conjunto das outras lembranas j incorporadas ao mesmo. Nesse momento, entram em cena elementos importantes na configurao dos metadados que regem as maneiras de exibir o vdeo final (mesmo que esse final seja sempre provisrio) que um conjunto de lembranas sobre Johnny Cash. A interface de submisso do desenho apresenta alguns campos que depois funcionaro como metadados para visualizao do vdeo, quais sejam: o participante deve escolher se o seu desenho ser categorizado como realstico, esboado, abstrato, ou baseado no pontilhismo. H outras informaes como nome, cidade, estado e pas, que sero submetidas juntamente com o desenho. Para fazer a submisso preciso fazer um registro no projeto.Esse um primeiro momento em que talvez possamos falar de inveno e descoberta na produo de testemunhos sobre Johnny Cash. O que permite essa afirmao justamente a criao de interferncias nos frames atravs de ferramentas de desenho, assim como o fato de que cada interferncia agrupada a todas as outras que foram feitas sobre o frame escolhido, produzindo assim uma animao dessa parte do vdeo. Ao trabalhar sobre um frame do vdeo, o participante inventa sobre um fato passado, capturado como passado, o seu testemunho emocional, a sua verso daquele fato. No entanto, tal verso feita a partir de elementos que no fazem parte de nenhuma imagem real, posto que so criados com ferramentas de desenho. Explicita-se, dessa forma, uma juno entre o ficcional (o desenho e as emoes/sensaes do participante) e o histrico (o que se passou e foi registrado pela cmera). Nesse ponto da interface, no possvel interferir, de maneira explcita, numa ordenao temporal do vdeo clipe, posto que a interferncia se reduz a um frame isolado. Para aquele que produz o desenho, o que acontece pode ser pensado como uma vibrao da memria sobre Johnny Cash. Afinal, no se trata de relatar uma histria vivida, mas de produzir uma experincia a partir do contato com registros sobre a vida de Cash. o prprio ato de desenhar, nesse aspecto, que se produz como lembrana em relao ao artista, desdobrando-se a partir de lembranas no registradas, sensaes e sentimentos que cada um tem sobre o cantor. Assim, a interface permite exibir o rastro de uma ao que ir se apresentar posteriormente como registro histrico e ficcional. A cada desenho que repete usos similares das ferramentas de desenho, tais rastros comeam a tomar a forma de documentos autorizados coletivamente, capazes de tornarem-se um arquivo institucionalizado sobre o artista. Essa institucionalizao, no entanto, continua a ecoar o seu carter de rastro, pois possvel ver como tal ao foi executada, resgatar o nome de quem a executou e visualiz-la junto de todas as outras aes enquanto ainda estavam sendo realizadas. O acontecimento passado aqui se mostra como um duplo: tanto o frame de vdeo clipe quanto a ao de desenhar sobre esse frame, os quais no podem mais ser vistos isoladamente na memria que a interface do projeto cria. O site coloca em questo tambm o carter de anterioridade dos fatos que estruturam a memria do artista, conforme ela aparece no projeto. De que passado tratamos aqui? Somente daquele descoberto em cada interferncia criada por participantes de todo o mundo? Ou daquele inventado pela narrativa histrica que agrupa imagens capturadas e as organiza numa ordenao que lhes confere uma organizao temporal lgica, e no necessariamente cronolgica, ligada ao tempo do mundo? Manipulo aqui os termos inveno e descoberta associando-os histria ou fico de modo a demarcar uma impossibilidade de isolar tais formas narrativas, ou mesmo de alocar a memria somente em um dos lados desse lugar imaginrio da memria. Resta, ainda, compreender como os metadados conjugam inveno e descoberta nessa experincia. Esse o momento de explorar as participaes e interferncias feitas no projeto.Na seo Explore fica evidente de que maneira os metadados podem interferir na organizao lgica dos acontecimentos do vdeo clipe, bem como na possibilidade de determinadas imagens animadas terminarem por ser mais autorizadas como arquivo das emoes relacionadas a Johnny Cash. O que indica que tais asseres podem ser feitas? A seo abre apresentando a sequncia do vdeo clipe a partir dos frames que foram mais bem avaliados por todos aqueles que passaram pelo site. O projeto no apresenta as imagens capturadas com cmeras e sim o vdeo clipe j com todas as interferncias produzidas para cada frame. Podem-se escolher vrias outras maneiras de visualizar o vdeo clipe, a partir de outros metadados sugeridos pela interface do projeto. Assim, possvel visualizar as lembranas que so associadas somente a frames realsticos, ou a frames que se dizem abstratos. Pode-se perguntar qual a conexo entre os fatos passados, apresentados pela imagem capturada, e as indicaes feitas para cada interferncia desenhada sobre os frames. Aqui aparece a noo de imaginar a memria, num sentido positivo do uso do termo imaginar na sua relao com um aspecto de verossimilhana da memria. O frame desenhado exibe a marca do gesto de vrias anterioridades, entre elas: o frame como imagem capturada; os gestos que traaram o desenho que aparece no vdeo clipe, e que dizem respeito ao participante que produziu esse desenho; a relao do frame com outras marcas de anterioridade, que contribuem para tambm indicar sua ordem temporal no conjunto dos fatos; a marca da escolha que o coloca entre os frames mais bem avaliados, ou frames realsticos ou outro tipo de frames. Nenhuma dessas marcas capaz, isoladamente, de apresentar a lembrana inequvoca que o frame evoca em relao ao gesto ou gestos que o geraram. Engendra-se assim, a mistura entre inveno e descoberta, a partir da conjuno entre animao e metadados.Outra anlise importante aquela voltada para o tipo de metadado escolhido para categorizar cada interferncia, e a relao entre essa categoria, o frame que sofreu interferncia e o seu local na lgica temporal do vdeo clipe. Quando se decide exibir o vdeo a partir de qualquer categoria de metadados, o que aparece na tela um conjunto de lembranas relacionadas no a um sentimento claramente definido, mas delimitadas pelo modo como os metadados foram utilizados para descrev-las. A partir da escolha da categoria dos desenhos relacionados com o pontilhismo, por exemplo, a interface exibe um vdeo clipe em que nem todos os frames aparecem (uma vez que no ha interferncia para todos os frames com esse estilo de desenho), e isso termina por configurar a aparncia do registro como um todo. Afinal, as lembranas, no projeto, esto tanto em cada frame que sofreu interferncia como no conjunto das imagens organizadas nos frames do vdeo clipe original. Se no h uma mudana na ordem dos frames, de acordo com cada categoria de exibio escolhida, o papel lgico de cada um dentro do conjunto de lembranas reconfigurado pelo modo de funcionamento da interface, que s traz os frames que sofreram interferncia dentro da categoria de pontilhismo, nesse exemplo.As lembranas que o projeto faz surgir tambm permitem problematizar qual exatamente a funo dos modos de registro da memria quando os metadados so explorados em suas vrias facetas de descrio do contedo registrado, quando tal descrio serve como perspectiva para configurar a narrativa de memria que o projeto exibe. Nesse caso, os metadados no so uma delimitao da lembrana a posteriori, e sim um elemento fundamental na maneira como as memrias sero imaginadas. Fica patente a necessidade, cada vez mais premente, de discutir como os metadados estruturam poticas da memria em ambientes digitais. As memrias que aparecem no vdeo clipe final so resultado, ento, de uma coordenao entre a escolha dos metadados para alocar a interferncia do participante, os frames como ordenados pelo vdeo original utilizado no projeto e a escolha que fazemos quando resolvemos ver uma das possibilidades de exibio da memria sobre Johnny Cash.A discusso que apresentei aqui teve como intuito apresentar possibilidades poticas para o trabalho com metadados, a partir da sua funo estruturante na criao de narrativas de memria. Entendo que, em ambientes digitais, cada vez mais, as lgicas de autorizao dos testemunhos de memria so derivadas da maneira como as interfaces conseguem ler/criar tais testemunhos e multiplicar suas maneiras de fazer surgirem lembranas, ou, em outras palavras, de imaginar a memria.

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Professor Adjunto III da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em Literatura pela UFSC, atua no programa de Ps-Graduao em Artes Visuais, no Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social e no curso de Cinema de Animao e Arte Digital (graduao). Atualmente desenvolve pesquisa sobre poticas e polticas da memria em ambientes programveis, em projeto financiado pelo CNPq. Email: [email protected]

A memria aqui ser tratada como um fundo memorial do qual a lembrana, ou as lembranas so a face objetal; assim, as lembranas fazem vibrar a memria e produzem uma organizao temporal desse fundo memorial.

Utilizaremos aqui as noes passado do presente, presente do presente e futuro do presente, a partir da noo de trplice presente em Santo Agostinho. Assim, ainda que digamos passado, presente e futuro, entendemos que tais temporalidades so qualidades do presente, que demarcado a partir da noo de um instante singular.