invenção (invenções) do nordeste

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Invenção (invenções) Do Nordeste

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  • Anais do II Seminrio Nacional Literatura e CulturaVol. 2, So Cristvo: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128

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    DIALOGOS COM A TRADIO: A INVENO DO NORDESTE EM ANTONIO CARLOSVIANA

    Paulo Andr de Carvalho Correia (UEFS)

    INTRODUOA literatura regionalista nordestina produziu e produz um conjunto de imagens e

    enunciados que discursivamente conformam, com outras artes, o Nordeste. Mas se antes osescritores pensavam dizer a verdade sobre a regio, na contemporaneidade, assumiram aconscincia da condio de discurso da obra literria e do prprio espao geogrfico,produzindo verdades e rasurando a cartografia discursiva responsvel pelavisibilidade/dizibilidade da regio. Parafraseando Coutinho em seu ensaio Discurso literrioe identidade nacional: A cartografia nordestina no mais um conceito que possa serentendido em termos fixos, mas uma construo discursiva mltipla e mutvel que s fazsentido quando vista em sua dinmica e plurissignificao (COUTINHO, 2001-2, p. 62).

    O ensaio de Durval Muniz de Albuquerque motivou a feitura deste trabalho. A noode inveno do Nordeste tornou-se marco terico importante na anlise do dilogo com atradio por ns aventado. A obra do escritor sergipano Antnio Carlos Viana nos serviu decorpus. Primeiro por ser uma obra de um escritor nordestino, segundo pelo recorte do realde muitos dos contos, que recorrem ao acervo de imagens e arquivos que, segundo DurvalMuniz de Albuquerque, conformam a regio.

    Em nossa anlise traaremos o seguinte percurso metodolgico: (a) faremos uma

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    breve apresentao do contista sergipano; (b) em seguida, discutiremos conceito deinveno do Nordeste, de Durval Muniz de Albuquerque; (c) analisaremos dois contos,selecionados de dois livros, O meio do mundo e outros contos (1999) e Aberto est o inferno(2004). Do Primeiro: O meio do mundo; do segundo, As meninas do coronel e Quandomeu pai enlouqueceu.

    A OBRA DE ANTONIO CARLOS VIANA E O DILOGO COM A TRADIOAntonio Carlos Viana tem cinco livros publicados: Brincar de manja (1974), Em pleno

    castigo (1981), O meio do mundo (1993),O meio do mundo e outros contos (1999), umaantologia de contos publicados nos livros anteriores, Aberto est o inferno (2004).

    Ao primeiro contato com a obra do escritor sergipano, chama-nos logo a ateno odesenvolvimento de uma voz narrativa que do mnimo de recurso extrai o mximo deexpresso, como destaca Paulo Henriques Brito em prefcio do livro O meio do mundo eoutros contos:

    Quem l (ou rel) de enfiada o total da produo do autor os trs livros jmencionados e uns poucos contos dispersos no pode deixar deimpressionar-se com a coerncia e o rigor de um ficcionista que parecededicado tarefa de aprimorar cada vez mais uma certa voz narrativaempenhada em um tipo muito especfico de histria, e que consegue extrairdessa severa delimitao de recursos e metas uma riqueza surpreendentede resultados (BRITO, 1999, p.7-8, grifo nosso).

    A narrativa de Antonio Carlos Viana transita por vrios ambientes. No estranhoque vrias de suas histrias tenham como ambiente o serto nordestino como o conto Omeio do mundo e outra seja ambientada em Marrakesh, Parque em Marrakesh. Nestetrabalho nosso foco estar centrado nas narrativas que trazem marcas do espao

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    nordestino. Nosso objetivo compreender como o autor sergipano dialoga com a tradioregionalista e como este dilogo produz continuidades e rupturas, retomadas edesmistificaes da tradio discursiva nordestina.

    Em 2005, a revista Entrelivros, na edio de julho, trouxe um dossi de FlvioMoura sobre a produo literria da nova gerao de escritores nordestinos. Segundo arevista, marca esta gerao o distanciamento do naturalismo de 30 e a continuidade com aproduo literria de Ariano Suassuna, que tinha como projeto uma viso mais potica darealidade. No iremos discutir os limites e equvocos desta relao. Afinal, desde GracilianoRamos que a prosa regionalista afasta-se do objetivo de estabelecer um retrato sociolgicodo nordeste e busca aproximar-se da expresso mais ficcional dessa realidade. Nestesentido, era preciso estabelecer uma relao com as obras de Guimares Rosa, com suarecriao mitopotica do serto e do sertanejo.

    Segundo a revista, mais que o critrio geogrfico, o dilogo com a tradio quesinaliza a base comum para a atual fico feita do nordeste (Entrelivros, 2005, p. 42). Estedilogo sempre diverso, marcado pelo que denomina de poticas individuais. a partirdesse critrio dialgico que deve ser lido, segundo o crtico, os livros de Antonio CarlosViana.

    com esta disponibilidade que deve ser lido os livros do sergipano AntnioCarlos Viana. Integrante da gerao de prosadores - entre eles Luiz Vilela eSrgio Sant'Anna que nos anos 70 contribuiu para a renovao do contobrasileiro, ele ocupa posio singular nesse panorama. at possvelencontrar o semi-rido como ambientao de seus textos, mas ater-se aesse ponto perder o essencial: a habilidade com que maneja a narrativacurta e a capacidade de transformar a riqueza do vocabulrio regional noem exuberncia de estilo, mas preciso descritiva e sordidez (idem, p. 42).

    Lus Augusto Fischer, numa resenha veiculada na internet, chama a ateno para a

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    linhagem realista-documental do escritor, aproximando-o do projeto esttico da prosa dosescritores de 30. Fischer indica uma perspectiva de um contato mais direto com osescritores de 30, preocupados com um retrato sociolgico da realidade nordestina. Estasduas crticas ligeiras apontam caminhos diversos na genealogia do contista sergipano.Flvio Moura alinha-o ao projeto esttico de Ariano Suassuna, com uma viso mais poticasobre o mundo, Fischer aproxima-o do projeto esttico dos escritores de 30, de cunho maisrealista, tendo como fora motriz a denncia das mazelas sociais. Neste sentido,precisamos explicitar o dilogo do autor sergipano com a tradio. Para isso, vamosproblematizar o sentido do termo tradio, discutindo-a a partir da perspectiva que ainterpreta como uma formao discursiva, responsvel pela visibilidade/dizibilidade doespao geogrfico denominado nordeste.

    A INVENO DA TRADIO NORDESTINAQuando propomos discutir o dilogo de Antonio Carlos Viana com a tradio

    regionalista-nordestina, estamos partindo de pressuposto de que a tradio uma formaodiscursiva que tem uma genealogia, mesmo que a pretenda perdida no tempo. Nestesentido, nossa questo refletir de que forma o autor sergipano l esta tradio e a produze reproduz na sua obra, ou seja, como arrola discursos e imagens desta tradio,reproduzindo-os e transgredindo-os na e pela linguagem.

    Como operador terico chave deste trabalho, tomamos de emprstimo de DurvalMuniz de Albuquerque Jr. a definio do Nordeste como uma inveno imagtico-discursiva(ALBURQUERQUE JR., 2001). Segundo Margareth Rago, em prefcio ao livro A invenodo nordeste (2001), o livro uma indagao e tambm uma resposta para o surgimento de

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    um recorte espacial, de um lugar imaginrio e real no mapa do Brasil, que todos nsconhecemos profundamente, no importa de que maneira, mas que nunca pudemosimaginar com uma existncia to recente. (Rago, 2001, p. 13,). Nas palavras do prprioDurval Muniz de Albuquerque Jr.:

    O que faremos, neste texto, a histria da emergncia de um objeto desaber e de um espao de poder: a regio nordeste. [...] estudar como seformulou um arquivo de imagens e enunciados, um estoque de verdades,uma visibilidade e uma dizibilidade do Nordeste, que direcionamcomportamento e atitudes em relao ao nordestino e dirigem, inclusive, oolhar e a fala da mdia. (idem, p. 22)

    Partindo das consideraes do Albuquerque Jr., analisaremos como alguns contosde Antnio Carlos Viana resgatam o arquivo de imagens e enunciados sobre o Nordeste,encenando-o e reencenando-o, cristalizando e descristalizando verdades erepresentaes sobre esse espao, operando a sntese proposta por Zil Bernd Literatura e identidade nacional (2003) das funes sacralizadoras e dessacralizadoras,que caracterizam o movimento errante da literatura brasileira. Como afirma a autora, asntese do jogo dialtico associa o resgate dos mitos sua constante desmistificao, oredescobrimento da memria coletiva a um movimento continuo de textos, o que equivale aum perseverante questionamento de si mesma (BERND, 2003, p. 20).

    Aqui abrimos um espao para uma ressalva tese de a Inveno do Nordeste eoutras artes; por no levar em conta o aspecto esttico, deixou de perceber em sua anlisecomo desde Graciliano Ramos os escritores regionalistas vm produzindo novos sentidos,novas verdades, no dilogo com a tradio.

    Em nossa anlise, focamos, nos contos, o arquivo de imagens e enunciados queexplicitam o dilogo de Antonio Carlos Viana com a tradio nordestina atravs das

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    estratgias e marcas lingusticas, sintticas, semnticas e enunciativas.

    OS DILOGOS DE ANTONIO CARLOS VIANAO meio do mundo - o serto, espao da experincia ertica

    No conto O meio do mundo, o primeiro do livro homnimo, o narrador em primeirapessoa comea com a seguinte frase : A estrada era cumprida que nem s, mais ainda quea do Mulungu onde a gente ia ver o doutor uma vez por ano (VIANA, 1999, p. 13). Almdos elementos tomados do arquivo de imagens e enunciados sobre o nordeste, como aestrada comprida e o nome de um micro espao da regio Mulungu,a forma como oescritor plasma a linguagem regional atravs do menino-narrador imprescindvel naanlise do texto. O autor d voz a um menino do ermo do serto que relata sua primeirarelao sexual. Vejamos o restante do pargrafo:

    [...] Meu pai na frente, calado mais que nunca, o sol ardendo na cabea, atque ps um leno no cocoruto calvo. Minha me tinha me dado um chapuque nem dava mais na minha cabea. E l amos no silncio da areiaquente esfolando os ps, minha alpercata mais comida que correia deamolar faca. Na verdade eu nem sabia para onde estava indo. Vagasconversa na noite, meu pai pedindo as poucas economias a minha me,dizendo que estava faltando remdio para o carrapato e que tinha quenegociar uns cabritos no caminho da Vagem Grande. Quando acordei jestava tudo pronto e s faltava partir. S sabia que a estrada era um nuncade ter fim, as casinhas rareando, criao perdida vez ou outra por entre acapoeira do mato. Na mochila a quarta de farinha e o pedao de carneseca. A gua numa cabacinha de couro que ele mesmo fizera. Eu atrssentia o cansao nele quando olhava para mim, como a dizer que faltavamuito. At que numa parada mais longa, me olhou no sei se com pena oudesespero, e disse tamos perto. Pensei no caminho de volta, e vi que noia ser fcil, ainda mais se voltasse em cima das buchas (idem, 1999, p. 13,grifo nosso).

    A citao acima apresenta um pequeno acervo de imagens e enunciados queconstri o recorte espacial nordestino: O sol, a areia quente, as alpercatas, a capoeira

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    do mato etc., plasmado pela voz enunciativa de um menino que habita o serto nordestinoe, sem muitas delongas, pe-nos diante de imagens cara literatura regionalista doNordeste: A imagem do humano que caminha pelo espao trrido e inspito do serto. Essepargrafo dialoga com o pargrafo inicial de Vidas secas (1999), de Graciliano Ramos, emque a famlia de Fabiano tambm caminha sob um sol escaldante e sob a areia quente. Masenquanto Graciliano Ramos, com um narrador fraturado em sua onipresena, narra a lutacclica de uma famlia contra a seca, Antnio Carlos Viana conduz um menino-narrador parasua primeira relao sexual, seu rito de passagem para a idade adulta. O ambiente, emVidas secas, encerra um circularidade, assinalada pelo eterno retorno dos mesmoseventos (ALMEIDA, 1999, p. 294). Em O meio do mundo, alis em toda obra do autorsergipano, o espao intensifica uma experincia ertica.

    Em O meio do mundo, o menino-narrador no sabe para onde est indo. Questionao porqu de ter ido para a casa perdida no meio do mundo. Eu estava de gargantaestorricando, mais por querer adivinhar por que tanto caminho para dar naquela casaperdida com a carvoeira atrs (1999, p. 14). Sua sede outra e o prprio ambiente j lheantecipa algumas respostas e o erotismo desloca o olhar do menino com o bode fedidocruzando as cabras: Algumas cabras foram chegando para beber gua num barreirinho, umbode terrvel de fedorento que montou numa delas e ficou se babando todo (idem, p. 14). Opai vai embora, e no demora muito a mulher chega para realizar o rito de passagem domenino. Neste momento do conto, surge algo pertinente para a nossa anlise. Como tudoera novidade para o narrador, ele busca elementos do seu universo infantil parareconhecer o desconhecido, utilizando a expresso de Helder Macedo, numa confernciasobre o imaginrio da colonizao portuguesa, feita do congresso no Rio de Janeiro e que

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    integra de seu romance Partes de frica (1999) .Outra citao longa, mas que se faz pertinente para mostrarmos o que estamos

    falando:[...] Levou minha mo com jeito e a dela se encaminhou para ondenenhuma outra tinha se encaminhado ainda, a no ser a minha. Escoladono saber dos pastos, nem me assustei com o molhado de suas entrepernas.Deixei que fosse at onde quisesse e quando arrebentou a saia j era outramulher, mais ainda pintalgada de carvo, mas com fora igual a de guaquando entestava de ir beber gua no poo. Sentada em meu colo, seajeitou inteira e poderosa, eu magro demais para sustentar seu corpo eminhas pernas pareciam que iam estalar se ela fizesse movimentosbruscos, se ajeitando toda, eu como a me perder no sumidouro do mundo.Escanchou-se que nem eu correndo desembestado em cima do cavalo deseu Z do Adobe pelo pasto estorricado. Agora era tudo nos descaminhos epela primeira vez adivinhei uma campina verde, devia ser assim, diferentede tudo o que tinha visto at ento (idem, 1999, p. 15. Grifo nosso).

    Na citao o discurso do menino-narrador est vazado pelo que podemos chamar deuma voz nordestina, como podemos ver nos trechos grifados, rasurada pela experinciatransgressora da descoberta sexual. O elemento ertico desloca o olhar do menino quereconhece o desconhecido. E como ele mesmo diz agora tudo nos descaminhos. Umafrase prenhe de sentidos que na narrativa traz uma outra viso oposta a de Durval Muniz deAlbuquerque. Para este para uma nova configurao de verdades sobre o nordeste preciso destruir o arquivo de imagens e enunciados j sedimentado. As imagens eenunciados grifados na citao acima revelam a noo de dilogo que estamos tentandoestabelecer: a referncia a seu universo infantil, o saber do pastos, a mulher comparada aoanimal ligado a este espao, o pasto estorricado, na relao ertica possibilita a viso dacampina verde, elemento que define o serto por oposio, como j delimitou Euclides daCunha em Os sertes. Utilizando de sua perfeita alegoria, o narrador-menino, o escritor diz:Nada de sombra do pai, e eu achei a vida a coisa mais estranha do mundo, assim de

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    repente, depois de uma caminhada sem fim, eu ali outro mas o mesmo (idem, p. 16. Grifonosso). Este jogo, outro mas o mesmo, rasura e produz novos sentidos para a regioNordeste.

    Quando meu pai enlouqueceu e o espao da saudadeQuando meu pai enlouqueceu dialoga com uma idia cara ao recorte imaginrio do

    nordeste, com o que Durval Muniz de Albuquerque denominou espaos da saudade, onordeste [que] parece estar sempre no passado, na memria, evocado como espao para oqual se quer voltar, um espao que permaneceria o mesmo (ALBUQUERQUE, 2001, p. 84).O conto foca o retorno de uma famlia derrotada na cidade do Rio de Janeiro, derrotada pelaprpria modernidade que fora buscar, uma famlia que trazia uma baixa, um filho quecometeu suicdio: A gente voltava do Rio de Janeiro, onde fomos morar e no deu certo. Amorte de Getlio acabara com os sonhos de meu pai (2004, p. 15).

    O conto narra o incidente no percurso do trem no retorno da famlia que desencadeiaa loucura do pai do personagem-narrador; as poucas referncias do espao para ondevoltam so do discurso deste personagem-narrador: Ele, que no era de entregar arapadura, demonstrou medo diante da ponte de ferro gigante (2004, p. 16, grifo nosso); Foium alvio ver as dunas de areia branca anunciando o ponto final (idem, p. 21 grifo nosso). Oconto tambm retoma uma temtica j presente em Essa terra (2001), de Antnio Torres,que narra o retorno e o suicdio do personagem desnorteado que volta da cidade grande eno mais se adapta ao espao de origem.

    O nordeste deixa de ser espao da saudade e passa a ser espao do retornotrgico. O elemento problemtico nesta passagem que o espao e quem volta j no so

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    os mesmos o pai volta louco. Na frase final do personagem narrador, h algo quepodemos discutir para pensar a questo: Eu tinha vontade de dizer pra ele [o pai] queesquecesse a malinha, que s olhasse para frente, olhar para trs sempre perigoso(2004, p. 22). guisa de explicao, a malinha referida uma mala com ferramentas desapateiro, perdida na trgica viagem de trem; elemento sgnico do profisso do pai, que noconseguiu ascender para uma profisso melhor.

    Que s olhasse para frente traz um sentido de corte com a tradio do espao dasaudade. Para o narrador-personagem olhar para frente esquecer o espao da memria,um espao que permaneceria o mesmo e que os acolheria como se no tivessem partido.Ao pai, perder a malinha com as ferramentas tm o sentido de desenraizamento do espao,talvez j no haja espao para ele ali. Olhar para trs sempre perigoso quebra de vezcom a noo de espao da saudade. Olhar para trs revela um sujeito e um espaodiferentes no presente e uma distncia intransponvel entre eles. Esquecer a malinha desapateiro esquecer seu lugar no mundo, como diz o pai pela voz do personagem narrador:[...] se lhe roubassem aquilo era o mesmo que lhe cortar um brao (idem, p. 16).

    Quando fala de sua vontade de dizer a frase ao pai, o personagem-narrador dizmuito de si. Ele mesmo no segue sua assertiva, olha para trs e narra para compreender,mesmo sabendo perigoso, narra em busca de um sentido, mesmo que evocando o passadocorra o risco de enlouquecer como o pai. Ressai aqui a idia do dilogo. Se pensarmos onarrador em primeira pessoa como alegoria do prprio processo de escrita (Dal Farra,1978), este narrador-personagem revela que, na busca de novos sentidos e de novascartografias preciso dialogar com os velhos sentidos e as velhas cartografias, semnecessariamente estilha-los como props Durval Muniz de Albuquerque. Mesmo sendo

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    perigoso preciso olhar para trs, dialogar com a tradio, dela fazer brotar novos sentidos.

    CONSIDERAES FINAISOs contos de Antnio Carlos Viana revelam que o dilogo com a inveno do

    nordeste possibilita novos sentidos da cartografia regional, desvelando um dinmicoprocessos de deslocamentos, fraturas e rupturas dos sentidos e verdades da regiosimblica e cultural denominada nordeste.

    O meio do mundo dialoga como o espao sertanejo, trrido e seco. No conto, oserto no s o espao do eterno retorno da seca e da misria, mas o espao de umaexperincia ertica, transgressora e produtora de uma nova identidade, marcada por outrasfronteiras simblicas e culturais. O serto torna-se espao de uma experincia transgressoraque possibilita a configurao de novas verdades sobre a regio.

    Dois dilogos que retomam, deslocam, fraturam e rasuram com os arquivos deimagens e enunciados sobra a regio nordeste, dilogos que permitem a configurao denovas verdades e sentidos sobre a regio. no trato com a linguagem que este dilogocom a tradio se torna premente, na conscincia que tem o escritor de estar lidando comuma construo discursiva e que preciso desvelar seus processos de enunciao. sobreisso que Paulo Henriques Britto nos alerta na citao supracitada, no desenvolvimento davoz narrativa que vai deixando suas marcas para que o leitor v construindo edesconstruindo sentidos, desvelando os processos de enunciao. Parafraseando AntnioCarlos Secchin, o Nordeste em Antnio Carlos Viana um estilo. Capt-lo, traduzir-se nele, estar atento a suas incontveis configuraes, sobretudo as discursivas (SECCHIN, 1996,p. 70).

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    REFERNCIAS BIBLIOGRAFICASALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A Inveno do Nordeste e outras artes. 2 ed. Recife:FNJ, Ed. Massangana; So Paulo: Cortez, 2001.ALMEIDA, Jos Maurcio Gomes. A tradio regionalista no romance brasileiro (1857-1945). 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks. 1999.BERND, Zil. Literatura e identidade nacional. 2 ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS,2003.BRITO, Paulo Henriques. Apresentao. In: VIANA, Antnio Carlos. O meio do mundo eoutros contos. So Paulo: Companhia das Letras, 1999.COUTINHO, Eduardo. Discurso literrio e construo da identidade brasileira. In: Lgua emeia: Revista de literatura e diversidade cultural. Feira de Santana: UEFS, n1, 2001-2,p.54-63.DAL FARRA, Maria Lcia. O narrador ensimesmado (O foco narrativo em Virglio Ferreira).So Paulo: tica. 1978.FISCHER, Lus Augusto. A Fora dos perdedores. Documento eletrnico. Disponvel em:. Acesso em 03/05/2005.MACEDO, Helder. Partes de frica. Rio de Janeiro: Record. 1999.MOURA, Flvio. Poticas individuais. In: Revista Entrelivros. Julho de 2005. p. 40 -43RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 78. ed Rio de Janeiro: Record, 1999.REGO, Jose Lins do. Menino de engenho. 13.ed Rio de Janeiro: J. Olympio, 1969.SECCHIN, Antnio Carlos. Poesia e Desordem. Rio de Janeiro: TopBooks, 1996.TORRES, Antonio. Essa terra. Rio de Janeiro: Record, 2001.VIANA, Antonio Carlos. O meio do mundo e outros contos. So Paulo: Companhia dasLetras. 1999.VIANA, Antonio Carlos Viana. Aberto est o inferno. So Paulo: Companhia das Letras.2004.