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Antropologia, Arte e Imagem | Nºs. 5-6 (Nova Série) | 2009 Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa 119 Imaginando Kolkata 1 : O Turismo Internacional e as Representações de Terceiro Mundo em Photovoice Sandra C. S. Marques ISCTE/CRIA [email protected] 1. Nota Introdutória 2 O mundo que conhecemos, sobre o qual reflectimos e dizemos, é discursivamente construído através de uma rede mais ou menos densa de conceitos mediadores entre o objecto (referente) e as palavras ou imagens pictóricas que lhe associamos. Assumindo como central o recurso epistemológico da partilha de espaço de reflexão pelas partes directamente envolvidas no encontro do turismo internacional (ocidental 3 ) na cidade de Kolkata, West Bengal, Índia, foi efectuada uma 1 O nome Kolkata foi restituído oficialmente à cidade em Janeiro de 2001. Calcutta (termo inglês) ou Calcutá (termo português) resultaram de uma incorrecção de tradução fonética pelos colonizadores, não existindo sequer a possibilidade de transcrição fonética do termo inglês na escrita bengali ou bangla (bangla lipi), da língua oficial deste estado de West Bengal. Deste modo, embora a primeira designação e suas derivações fonéticas tenham sido correctas até um passado recente e ainda sejam amplamente utilizadas, entendo como legítima a vindicação bengali de reposição do nome da sua cidade. (কলকাতা) [Kolkaataa] é o seu nome, oficialmente transcrito para o alfabeto latino como “Kolkata”, e em conformidade assim será designada pela autora. Contudo, os diferentes termos serão alternados ao longo do texto em conformidade com o seu uso no contexto material em que aparecem nas diferentes narrativas. 2 Este artigo insere-se num projecto de investigação, em curso, com vista a tese de doutoramento em Antropologia (I.S.C.T.E., Lisboa). Contou com três períodos de trabalho de campo em Kolkata no estado de West Bengal, Índia, num total de 15 meses de estadia no terreno entre 2004 e 2007, tendo sido financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia em Lisboa. 3 A compilação de dados efectuada pelo West Bengal Tourism Office (WBTO) para 2003, revelou que, exceptuando o vizinho Bangladesh que contribuiu com quase 32% das entradas com visto de turismo neste estado, os grandes representantes da população de visitantes internacionais em Kolkata, são originários dos EUA (12.3%), seguidos de perto pelo Reino Unido com uma contribuição de 11%. Austrália, Canadá, Alemanha, França, Itália e Israel contribuem em conjunto com 14% de visitantes, seguidos do Japão e Tailândia com um representatividade conjunta de 9.5%. (West Bengal Tourism Office, Kolkata, Janeiro de 2005). Da amostra de turistas internacionais que faz parte desta investigação, compreendida entre os anos de 2004-2007, a grande maioria dos

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Antropologia, Arte e Imagem | N º s . 5 - 6 ( N o v a S é r i e ) | 2 0 0 9

Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa

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Imaginando Kolkata1: O Turismo Internacional e as Representações de Terceiro Mundo em Photovoice

Sandra C. S. Marques ISCTE/CRIA [email protected]

1. Nota Introdutória2

O mundo que conhecemos, sobre o qual reflectimos e dizemos, é discursivamente construído através de uma rede mais ou menos densa de conceitos mediadores entre o objecto (referente) e as palavras ou imagens pictóricas que lhe associamos. Assumindo como central o recurso epistemológico da partilha de espaço de reflexão pelas partes directamente envolvidas no encontro do turismo internacional (ocidental3) na cidade de Kolkata, West Bengal, Índia, foi efectuada uma 1 O nome Kolkata foi restituído oficialmente à cidade em Janeiro de 2001. Calcutta (termo inglês) ou Calcutá (termo português) resultaram de uma incorrecção de tradução fonética pelos colonizadores, não existindo sequer a possibilidade de transcrição fonética do termo inglês na escrita bengali ou bangla (bangla lipi), da língua oficial deste estado de West Bengal. Deste modo, embora a primeira designação e suas derivações fonéticas tenham sido correctas até um passado recente e ainda sejam amplamente utilizadas, entendo como legítima a vindicação bengali de reposição do nome da sua cidade. (কলকাতা) [Kolkaataa] é o seu nome, oficialmente transcrito para o alfabeto latino como “Kolkata”, e em conformidade assim será designada pela autora. Contudo, os diferentes termos serão alternados ao longo do texto em conformidade com o seu uso no contexto material em que aparecem nas diferentes narrativas. 2 Este artigo insere-se num projecto de investigação, em curso, com vista a tese de doutoramento em Antropologia (I.S.C.T.E., Lisboa). Contou com três períodos de trabalho de campo em Kolkata no estado de West Bengal, Índia, num total de 15 meses de estadia no terreno entre 2004 e 2007, tendo sido financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia em Lisboa. 3 A compilação de dados efectuada pelo West Bengal Tourism Office (WBTO) para 2003, revelou que, exceptuando o vizinho Bangladesh que contribuiu com quase 32% das entradas com visto de turismo neste estado, os grandes representantes da população de visitantes internacionais em Kolkata, são originários dos EUA (12.3%), seguidos de perto pelo Reino Unido com uma contribuição de 11%. Austrália, Canadá, Alemanha, França, Itália e Israel contribuem em conjunto com 14% de visitantes, seguidos do Japão e Tailândia com um representatividade conjunta de 9.5%. (West Bengal Tourism Office, Kolkata, Janeiro de 2005). Da amostra de turistas internacionais que faz parte desta investigação, compreendida entre os anos de 2004-2007, a grande maioria dos

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aproximação ao objecto em estudo - Imagens e Turismo - através da didáctica combinada às metodologias visuais reflexivas, utilizando o Photovoice como metodologia basilar4.

Da análise dos resultados obtidos5, foram identificadas persistências de características pictóricas e de enunciados, que conduziram à definição de um dos eixos temáticos dominantes nas narrativas utilizadas pelos turistas internacionais para representação de Kolkata e dos seus habitantes e que será objecto de análise neste texto: as metanarrativas produzidas sobre o Terceiro Mundo. Sob a sua égide, serão abordados

participantes é originária dos EUA, Reino Unido (claramente, os dois países que lideram em presença), Austrália, Canadá, Alemanha, França e Espanha. 4 Photovoice, desenvolvido em 1992 por Caroline Wang e Mary Ann Burris (1996), foi definido como um processo através do qual os sujeitos entendidos como objecto de estudo são dotados de um papel activo e catalizador de mudança na utilização combinada do imediatismo da imagem visual com as histórias contadas, permitindo assim «the possibility of perceiving the world from the view point of the people who lead lives that are different from those traditionally in control of the means for imaging the world» (Wang in www.photovoice.com). Para esta investigação, foram fornecidas câmaras fotográficas a elementos dos grupos em estudo (turistas e anfitriões) convertendo-os em documentadores e intervenientes activos na reflexão sobre as imagens captadas. 5 Para análise da informação recolhida em Photovoice - fotografias e narrativas associadas – recorro a uma síntese entre a Semiótica Cognitiva e a Análise de Discurso, adaptada no sentido de criar uma semântica que permita aceder à dialógica das associações estabelecidas entre as imagens visuais e textuais produzidas pelos mesmos sujeitos e assim aceder aos significados das suas representações. O produto final resulta da fusão destes resultados com outros obtidos a partir de metodologias de investigação mais clássicas de trabalho de campo, através da aplicação genérica do modo de contingência de conteúdos. Baseada em modelos de análise usados para a linguagem (Peirce, 1977, 1984; Eco, 1979, 1997; Saussure, 1986), a análise semiótica de fotografias procura tratar cada imagem como um todo, procurando padrões na relação dos elementos constituintes que se repetem ou contrastam em outras fotografias, relacionando-os depois com as narrativas que as acompanham (Barthes, 1977, 1989). O recurso a este tipo de análise procura aceder aos significados simbólicos e formações ideológicas subjacentes ao manifesto da imagem. São exemplos de estudos recentes de análise semiótica de fotografias: Mauad, 1996; Clawson, 2000; Fairweather & Swaffield, 2001; Machin, 2004; Szörényi, 2006. Relativamente à análise do discurso, utilizo-a como metodologia qualitativa cujo objectivo consiste em estabelecer o conteúdo semântico dos conceitos correspondentes aos termos efectivamente utilizados (orientação que remete para Harris, 1954; Pecheux, 1969; Foucault, 1997, 1981). Distingue-se assim das análises de conteúdo, ao não admitir um conhecimento a priori de nenhuma classe enquanto conteúdo semântico da linguagem, propondo a procura do modo de construção dos conteúdos ou significados em função do uso dos termos no contexto material em que aparecem.

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alguns axiomas que assumem relevância ao nível destas representações: Kolkata é um lugar de Terceiro Mundo; Terceiro Mundo é Pobre e Perigoso.

I

2. Representações de Terceiro Mundo: Metanarrativas e Conceitos Mediadores

Falar de Terceiro Mundo é falar de um mundo que por diferenciação não é o primeiro nem o segundo. Esta ideia remete imediatamente para o conceito de significado por diferença do modelo de Saussure (1986). Este conceito não é apenas um detalhe estrutural para a análise da Linguística mas, antes, a demonstração do poder dicotomizador da lógica aristotélica na base do pensamento ocidental. E é no ocidente que esta expressão irradia um significado. Ou melhor, vários significados não isentos de ambiguidade, transmutação e reversão, como será demonstrado.

Le Tiers Monde é uma expressão utilizada pelo demógrafo francês Alfred Sauvy, no início dos anos 1950 e que dá nome à obra colectiva nº 27 de Les Cahiers de l’Ined (Institut National d’Études Démographiques), organizada pelo antropólogo Georges Balandier em 1956 e dedicada ao tema do subdesenvolvimento. Tanto Sauvy como Balandier referem a indexação temporal do pós-guerra a este conceito e uma intenção de conotação positiva, que terá sido obscurecida pela espectacular vulgarização do seu uso nos últimos 50 anos:

Cette expression a connu un succès planétaire. Mais, souvent, elle a suscité des malentendus. Pour nous, il ne s'agissait pas de définir un troisième ensemble de nations, à côté des deux blocs (capitaliste et soviétique) en guerre froide. Non, c'était une référence au tiers état de l'Ancien Régime, cette partie de la société qui refusait de “n'être rien”, selon le pamphlet de l'abbé Sieyès. Cette notion désigne donc la revendication des tierces nations qui veulent s'inscrire dans l’Histoire 6.

Terceiro Mundo não é então apenas um conceito. É a expressão de uma imagem mental para grande parte do território planetário e que há muito extrapolou o significado original dos seus criadores. Se assim não fosse,

6 Excerto de entrevista a Georges Balandier : «On n'Importe Pas la Démocratie», l'Express, 9-10-2003.

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seria uma expressão de significado vazio: não existe um bloco homogéneo de nações que possam ser designadas de primeiro mundo; não existe, definitivamente, um segundo bloco de nações designado por União Soviética; o que por evidência de lógica da sequência ordenativa, torna impossível a existência de um terceiro mundo. Assim, Terceiro Mundo remete para uma imagem fechada, reproduzida e solidificada por várias fontes, desprovida de capacidade de adaptação e mudança. Sendo de significado aparentemente estático, é no entanto, actualizada a cada momento pela indexação a várias outras imagens estereotipadas, organizadas em agregações discursivas para o reconhecimento e representação de determinados lugares sócio-espaciais. Assim é para o caso da Índia e assim é particularmente para a cidade de Kolkata.

As raízes históricas das noções de desenvolvimento e nações subdesenvolvidas emergentes no período pós-guerra, reflectem o processo pelo qual o mundo se reorganiza e se redefine em termos de estruturas de poder global a partir da segunda metade do séc. XX: das relações entre países vitoriosos e perdedores, dominâncias capitalista e comunista, ex-colonizadores e ex-colonizados, oportunidades de mercado internacional e liberalização económica e o estabelecimento de instituições financeiras multilaterais de alcance global. Neste novo reagrupamento de poderes, os países determinados como subdesenvolvidos convertem-se num alvo de intermináveis programas de intervenção.

Como nos revela Arturo Escobar (1988), a implantação da estratégia global da retórica de desenvolvimento foi conseguida através da sua profissionalização e institucionalização. A primeira, o corpo de técnicas e práticas disciplinares para validação do conhecimento, foi alcançada através da aplicação de velhos conhecimentos ao novo problema e criação de novas subdisciplinas, formando profissionais dotados de competências específicas para o tratamento do problema de subdesenvolvimento do terceiro mundo. Para o mecanismo da sua institucionalização (operacionalização dos discursos e técnicas no terreno) foi estabelecida uma rede poderosa de instituições internacionais como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) a Organização das Nações Unidas (ONU) e as suas inúmeras agências, instituições bilaterais e agências voluntárias de implantação nacional, regional e local, que organizam e controlam exposições e visibilidades, tornando possível o exercício de poder sobre este imenso objecto.

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Na construção das representações associadas a este novo modelo de reorganização do mapa mundial e das lógicas discursivas que lhes subjazem, dois axiomas assumem a maior relevância: Terceiro Mundo é pobre e A pobreza é causada pela falta de desenvolvimento económico. A construção destes axiomas emerge do vasto discurso das metanarrativas criadas pelas ciências sociais sobre desenvolvimento reflectindo, por um lado, a relevância ocupada pela ciência económica no universo discursivo ocidental do pós-guerra, e, por outro, a nova postura adoptada por esta ciência em relação à pobreza enquanto problema. A ideia novecentista da inseparabilidade dos factores económicos, sociais e políticos é decididamente substituída pela teoria de crescimento económico e crença inabalável na industrialização como a chave para a criação de excedente de capital para a necessária poupança e investimento que produzem o desenvolvimento e eliminam a pobreza (ver Escobar, 1988).

Como sabemos, este poderoso sistema de significados não existe no espaço discreto e isolado do universo de produção do conhecimento e actividade económica. A contribuição do geógrafo Lakshman Yapa em «How the Discipline of Geography Exacerbates Poverty in the Third World» (2002) é reveladora para a compreensão da sua transversalidade e impacto ao nível da produção de discursos colaterais. A partir da análise dos discursos académicos veiculados pela sua disciplina, Yapa demonstra como a definição de pobreza como problema económico, não só é uma formação discursiva como reflecte a herança epistemológica dos modos de construção de discurso, que servem a um corpo mais vasto de produção de conhecimento pelas ciências sociais. Argumenta ainda que, o recurso repetido dos mesmos pressupostos metodológicos, além de impedir uma aproximação criativa ao problema da pobreza também serve para obliterar a implicação dos que a produzem como agentes causais (ver Yapa, 2002: 17-18).

Para testar a incorporação destes axiomas na informação correntemente difundida pelos meios de comunicação de massa, recorro ao exemplo da Internet. Sendo o inglês a língua mais utilizada por este meio de comunicação, insiro o termo “Poverty” para pesquisa em dois dos motores de busca mais amplamente utilizados - Google e Yahoo. Em ambos os casos, a primeira entrada7 é o artigo sobre o tema, na

7 Em ambos os motores de busca, o critério para ordenação das entradas é feito com base na dimensão de consulta por utilizadores. Por outras palavras, os mais vistos são os primeiros a serem exibidos.

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enciclopédia online Wikipedia – The Free Encyclopedia8. Para além de um longo artigo estruturado com base nas teorias economicistas sobre pobreza, evidenciam-se as imagens escolhidas para ilustração do conceito.

imagem I

A primeira fotografia surge, imediatamente, à direita, aquando da abertura da página. Em primeiro plano, é destacada uma criança sorridente de pele e cabelos lisos escuros, vestida com camisola de manga curta e calções. Olhando directamente para a câmara, exibe uma boneca de tipo “Barbie” despida e suja. Em segundo plano, uma lixeira a céu aberto, mais crianças e uma idosa, sorridentes e atentos à câmara, e algumas cabras revirando os lixos. A legenda informa-nos de que «A boy from an East Cipinang trash dump slum in Jakarta, Indonesia shows his find»9. O seu achado (a boneca “Barbie”) é o atributo do Primeiro Mundo claramente indexado como objecto de desejo para a criança pobre indonésia que a exibe com um sorriso para a câmara. Ao longo do texto são exibidas 4 fotografias, das quais, três são referenciadas com países do sudeste asiático. A indexação é evidente: pobreza é uma característica dos

8 http://en.wikipedia.org/wiki/Poverty [11-01-2007]. 9 Consultando a mesma página em língua portuguesa (http://pt.wikipedia.org/wiki/Pobreza [11-01-2007]), a fotografia foi substituída por uma outra, legendada como «Bairro de Lata de Jacarta». Mostra um plano médio de construções degradadas, que ladeiam um esgoto a céu aberto. Emolduradas nas entradas estreitas das casas, vêem-se várias crianças e uma mulher de pele e cabelos lisos escuros, de pés descalços.

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países do Terceiro Mundo, do qual são representativos, neste caso, os países Indonésia, Filipinas e Índia10.

Vários mapas são exibidos para consubstanciar esta construção discursiva. O primeiro, deles, um “Mapa Mundial de Pobreza” que informa sobre a distribuição geográfica, por países, da percentagem de população que vive com menos de 1 dólar americano por dia. As indexações a esta representação são várias: A pobreza é um problema evidentemente económico e distintivo de determinados territórios-nação, mapeável pelo que têm a menos por relação ao referencial, não problemático, dólar americano; A pobreza é uma condição económica interna, excluindo todo o nexo de múltiplas relações causais de escassez (técnicas, sociais, ecológicas, culturais, políticas ou académicas) manufacturadas no exterior, em territórios não problemáticos. E finalmente, para os milhões de indivíduos que vivem nestes países distinguidos como problemáticos, representa o que eles não são por referência ao que deveriam desejar ser. Tudo o mais que possam ser - crianças, pais, camponeses, operários ou artistas - é descartado como irrelevante pela aplicação de uma métrica universalista que os generaliza e ordena economicamente, como pessoas de desenvolvimento inferior11.

II

3. O Turismo Internacional em Kolkata: Representações em Photovoice

3.1 Kolkata e as Representações de Terceiro Mundo

Kolkata é «chaotique, grouillant, pollué et surtout plein de vie!» (turista francês, um dia de estadiaT5); «poverty, beggars, lepers, more poverty, shanty towns, filth, more poverty and Mother Theresa» (turista norte-americana, quatro dias de estadiaT3); «filthy; loss; beggars; affluence, effluence; poverty» (turista inglesa, alguns dias de estadiaT1) ; «loud, 10 Em 12-01-2007, coloquei a discussão online as minhas críticas a este artigo da Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Talk:Poverty), como pode fazer qualquer utilizador desta enciclopédia “livre”. As críticas foram tomadas em consideração por alguns dos editores mais assíduos e o artigo foi sujeito a um processo de revisão, tendo sofrido algumas alterações quer ao nível do conteúdo textual quer por adição de novas fotografias. Contudo, não foi aceite a introdução da minha proposta de revisão substancial do modelo retórico utilizado. 11 Ver: Esteva, 1992.

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polluted, ugly. One of the most densely populated cities on Earth» (turista canadiano, dois dias de estadiaT2); «a city where the smell, fumes and poverty hits you harder than the heat» (turista inglesa, dois dias de estadiaT7). 12

A persistência desta regularidade nos modos de descrição de Kolkata é evidente sobretudo nas narrativas obtidas pela fracção dominante de turistas na cidade: turistas em trânsito por alguns dias e turistas de baixo orçamento envolvidos em voluntariado social em rite de passage (Van Gennep, 1960; Turner, 1974; Graburn, 1989) com estadias mais longas na cidade. São excepção, alguns dos turistas envolvidos em projectos profissionais ou académicos que permanecem por alguns meses nesta cidade e frequentemente regressam ano após ano. Esta diferença é introduzida pelo factor familiaridade e duração da estadia 13.

12 Os enunciados discursivos das séries narrativas obtidas através da aplicação da metodologia Photovoice são apresentados a negrito. Esta diferenciação de tratamento, ao mesmo tempo que os distingue de enunciados obtidos através de outras conversas, entrevistas, etc., pretende sugerir a sua leitura enquanto imagens textuais, estabelecendo uma relação de paralelismo com a leitura das imagens fotográficas que acompanham, nas narrativas. A identificação do tipo T1 ou R2 serve à discriminação dos narradores enquanto Turista e Residente e à eliminação do risco da sua fragmentação identitária. Ainda que não tenha sido solicitado o anonimato por parte de nenhum dos sujeitos que generosamente acederam a colaborar neste estudo, por decisão da investigadora, os seus nomes não são revelados. Quanto às fotografias apresentadas, estas serão ou não legendadas em conformidade com o modo como foram apresentadas na construção narrativa pelo seu autor. 13 Os turistas internacionais que visitam Kolkata podem ser agrupados genericamente em três tipologias. Turistas jovens, com baixo orçamento, com estadias de várias semanas ou meses complementadas com trabalho de voluntariado social; um segundo tipo constituído por viajantes em trânsito (que usam Kolkata como porta de entrada para o nordeste e este do país), aproveitando a oportunidade da experiência de visita a esta mega-metrópole, por alguns dias; e um terceiro tipo, constituído por turistas que permanecem alguns meses na cidade, envolvidos em projectos académicos ou profissionais diferenciados, e que frequentemente regressam ano após ano. Em comum às três tipologias, a proveniência de classes média e média alta de ambiente urbano (maioritariamente com origem em sociedades de desenho “ocidental”) e a busca de experiências alternativas aos pacotes de turismo de massa. Como já revelado em inúmeros estudos empíricos ao nível das percepções dos lugares, os turistas tendem a expressar imagens mais holísticas, complexas e diferenciadas em função da familiaridade, número de visitas e duração da estadia (Chon, 1991; Fakeye & Crompton, 1991; Echtner & Ritchie, 1993; Hu & Ritchie, 1993; Milman & Pizan, 1995; Baloglu & Mangaloglu, 2001); contudo, como demonstrarei, a este nível de representações nem sempre isso acontece. Também não foram identificadas diferenças significativas em

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De facto, em nenhuma das narrativas citadas acima, foi utilizada a expressão verbal “Terceiro Mundo”. No entanto, quando se procede à análise destes enunciados discursivos, verifica-se a persistência desta representação ganhando significado pelo recurso a uma série de outros termos, indexados pelas metanarrativas do discurso científico como a Geografia, a Política, ou a Economia, difundidos correntemente nos meios de comunicação de massas. Os termos utilizados pelos turistas ganham sentido na lógica da linha de tradição ocidental classificatória de tipo dicotomizador, quando definidos pela posição hierarquizada em pares duais que opõem o Primeiro Mundo ao Terceiro Mundo: desenvolvido/subdesenvolvido; rico/pobre; avançado/atrasado; moderno/tradicional; superior/inferior; controlo populacional/sobrepovoamento; limpo/sujo; sujeito com conhecimento/objecto necessitado; igualdade/desigualdade; ordem/desordem; mais/menos; bom/mau; não problemático/problemático.

Derrida (1978), examinando a história da filosofia ocidental desde Platão à modernidade, explica como o pensamento ocidental fundado na lógica binária de opostos se traduz sempre numa posição hierárquica dos elementos dos pares duais, em que o primeiro termo dominante define o segundo como inferior ou marginal. A implicação retirada é a de que, pela inerência de posicionamento neste sistema diferencial, o segundo termo é sempre o de significado negativo, por referência ao primeiro que se constitui como parâmetro desejável, como objecto de desejo. Assim, a noção e direcção de desenvolvimento são discursivamente apresentadas como óbvias e objectivas, pelo que as soluções possíveis para que uma comunidade deixe de ocupar o problemático lugar de segundo termo do par, são inevitavelmente no sentido da aquisição desta igualdade de parâmetros: mais rica, mais industrial, mais urbana, mais moderna, menos povoada, mais limpa, mais ordenada, mais igual.

Esta lógica é revelada claramente pela perplexidade deste turista canadiano: «Everyday I'm asked, You are liking India? I always respond, Great! Wonderful people! But it is very dirty, polluted (I can point in any direction). Locals always look puzzled at such an unfounded concern» T2. O que é estranho para este turista não é a sujidade e a poluição que encontra. Pelos seus quadros de construção do real, a inscrição deste país na imagética de Terceiro Mundo cumpre as expectativas a esse nível. A

função da nacionalidade de origem ou do género dos turistas contactados, como pode ser verificado na diversidade de proveniências das narrativas que apresento.

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sua estranheza é, antes, o não reconhecimento do Primeiro Mundo como objecto de desejo, por parte dos seus anfitriões; a falta de motivação para adquirir os atributos que para si são obviamente os parâmetros não problemáticos e desejáveis: espaços públicos higienizados em que os lixos e detritos da acção material são removidos do olhar.

So all the terrible stories we’d heard about India and to be honest all of which I believed and [J.] didn't we were ready for a mass onslaught of touts, baggage handlers and the like when leaving the airport. (...) On arrival in Calcutta the first thing to hit us was the poverty and the vast amount of people sleeping on the streets. Rows and rows of them some families some alone but so many everywhere, everywhere (turista inglesa, três dias de estadia T13).

O excerto de texto e a fotografia legendada são parte de um diário de viagens facultado por um casal de turistas (inglesa e belga) que, na sua viagem pela Índia em 2005, fizeram a entrada por Kolkata e três dias depois seguiram para Bodhgaya no vizinho Estado de Bihar (rota do circuito turístico religioso budista na Índia). A apresentação deste diário é organizada em narrativas complementares: a narrativa visual de fotografias datadas e legendadas e a história contada textualmente.

Porque é que a Fotografia 1 representa um “Homeless with a view”? Um homem de pele e cabelos lisos escuros repousa deitado no varandim da

Fotografia 1 India, Calcutta - 2005. Homeless with a view. T13

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margem de um lago. Veste uma camisa e um lungi14. À sua frente, no chão, encontram-se um par de chinelos de borracha de cores diferentes e um saco. Sobre o saco, um lenço ou gamchha15 que serve de cobertura a um volume e um par de jornais dobrados. Em segundo plano, o lago, rodeado de vegetação luxuriante, que o separa de edifícios urbanos de grandes dimensões, destacando-se uma construção imponente de cúpula abobadada.

Qualquer residente da cidade ou mesmo um estrangeiro que aqui permaneça durante algum tempo refutará a identificação inequívoca deste homem com um sem-abrigo, pela sua aparência, neste enquadramento. As características aparentes apontam apenas para um operário do sector informal da economia da cidade em período de repouso da sua actividade. Esta foi a resposta recorrentemente obtida quando mostrei a mesma foto a alguns residentes e turistas com permanências longas na cidade.

A área de enquadramento desta imagem é B.B.D. Bagh (Benoy Badal Dinesh Bagh16, ex Dalhouise Square: que foi centro da cidade imperial sob domínio britânico). O belo edifício de cúpula abobadada e colunas jónicas e coríntias é o General Post Office, erigido sobre o local do Fort Williams original. À volta do lago (Lal Dighi) confluem os distritos administrativo e institucional, comercial e financeiro e de estruturas portuárias de Kolkata. Sendo considerada por muitos como o centro de negócios da cidade, esta é uma das zonas mais movimentadas, sendo ponto de aglomeração de comércio e serviços e interface dos inúmeros transportes públicos.

Vendedores e prestadores de serviços temporários na rua concentram-se, por isso, diariamente, nesta área de grande demanda para a sua

14 Lungi [loongee] – Peça de tecido de algodão, sem costuras, usada em redor da cintura como uma saia longa ou curta (se dobrada no sentido longitudinal). 15 Gamchha [gamtchhaa] – Peça de tecido (toalha) de algodão fino. 16 Em 8 de Dezembro de 1930, Benoy Basu, Badal Gupta e Dinesh Gupta, jovens revolucionários anti-colonialismo britânico, entraram no edifício administrativo Writer’s Building e assassinaram o inspector-geral de prisões N.S. Simpson, tentando o suicídio com cianeto de potássio, logo após o atentado. Dinesh Gupta embora tendo sobrevivido à tentativa de suicídio, foi condenado à morte por enforcamento pouco tempo depois. Os três foram elevados ao estatuto de mártires e atribuído o seu nome a esta praça após a Independência obtida em 1947.

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actividade. Muitas vezes transportam os seus equipamentos ou produtos nestes sacos de nylon sintético durável, também largamente utilizados para compras no mercado17. O lungi com camisola ou camisa é indumentária comum masculina para trabalho manual e os lenços constituem peça essencial para múltiplas funções ao longo do dia, seja protecção do sol e transpiração, higiene, transporte de volumes ou outro uso. Também é comum para muitos operários, não apenas para os do sector da economia informal, o repouso nos espaços públicos à hora da sesta, quando distantes da sua casa.

Mas para esta turista britânica, no seu primeiro dia na Índia e em Kolkata, não há qualquer dúvida de que a sua câmara fotográfica captou um sem abrigo local da mega-metrópole terceiro mundista. A procura da imagem antecipada de um lugar para o qual “So all the terrible stories we’d heard about India and to be honest all of which I believed” é imediatamente atestada à sua chegada na cidade: “On arrival in Calcutta the first thing to hit us was the poverty and the vast amount of people sleeping on the streets. Rows and rows of them some families some alone but so many everywhere, everywhere”.

17 Uma vez que a utilização de sacos de plástico descartáveis é desincentivada por regulamentação, no estado de West Bengal e em toda a Índia, pelo «Recycled Plastics Manufacture and Usage Rules, 1999», Environment (Protection) Act, 1986 (Ministry of Environment and Forests, Government of India). Ao encontro desta legislação, o West Bengal Pollution Control Board baniu, neste estado, a manufactura, venda, distribuição e uso de sacos de plástico de espessura inferior a 20 microns, em Janeiro de 2002.

Fotografia 2 India, Calcutta – 2005. Rickshaw and a huge goat in Sudder street Calcutta. T13

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Uma segunda fotografia legendada da mesma turista permite ir mais além na procura dos significados das suas representações de Kolkata. Ao contrário da primeira, a indexação atribuída pela legenda é limitada a alguns conteúdos manifestos da imagem. Segundo ela, esta fotografia representa uma rickshaw e uma cabra enorme no local Sudder street da cidade de Calcutá. Ou seja, para esta situação, exibe um conhecimento gramatical que lhe permite denotar o conteúdo da imagem directamente com significantes do seu património linguístico e do seu quadro de referências: o veículo de transporte “rickshaw”, já conhecido desde a sua desde a sua visita a Hanoi, no Vietname (mencionada num outro momento da sua narrativa); o animal “cabra”, embora a sua grande dimensão seja assinalável; e a via pública distinguida como “Sudder Street”, que lhe é familiar por ser a rua onde ficaram hospedados.

Para a situação anterior, isto não acontece. Na sua movimentação fugaz pela cidade, a turista depara-se com a inexistência de uma relação intrínseca do real com os seus referentes para conotação da aparência daquele indivíduo e do seu uso do espaço público da cidade. A sua indexação da imagem revela a falta de um conhecimento gramatical para compreender o objecto manifesto que não tem o significado que conhece. Como afirma num outro momento «it was a new place and unlike any we’d seen before», e assim, ao consumir a sua experiência de viagem nos termos das suas matrizes de conhecimentos, expectativas e fantasias formatadas a priori na sua cultura de origem (ver MacCannell, 1992; Craik, 1997; Smith & Brent, 2001), ela recorre aos referenciais mediadores que lhe são familiares. Para si, um indivíduo com escassez de roupa, repousando descalço no espaço público urbano de uma cidade é um sem-abrigo; Kolkata, que para ela permanece “Calcutta” como designada pelos seus antepassados colonizadores, “por todas as horríveis histórias que ouviu e em que acredita”, é uma cidade que emana pobreza, repleta de mendigos e sem-abrigo por toda a parte.

No que se refere às motivações associadas aos turistas em regime de férias complementado por voluntariado social em Kolkata, é por demais evidente a sua procura do consumo da representação do objecto necessitado - a mega-metrópole de Terceiro Mundo mergulhada na pobreza e carências de toda a ordem - que lhes permitirá adquirir o capital social necessário à sua reconfiguração identitária em agentes sociais politicamente interessados e pro-activos. De facto, em muitos dos casos, estes turistas terão contactado nos seus países de origem as sedes das organizações não governamentais (ONG) às quais se associam como

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voluntários em Kolkata, denunciando uma estratégia de planeamento à sua experiência de “turismo pro-pobreza”18 nesta cidade.

A rua Sudder Street e áreas circundantes reúnem a quase totalidade deste tipo de turistas, pela concentração de hotéis de baixo custo e serviços vocacionados para os turistas estrangeiros em regime de voluntariado social. Eis um exemplo representativo da tipologia e experiência de viagem de muitos destes turistas: [A.], alemã, 22 anos, fisioterapeuta, viajou para a Índia com uma amiga da mesma nacionalidade, mesma faixa etária, enfermeira. Terminaram o curso e antes de entrarem no mercado de trabalho do seu país, decidiram passar seis meses na Índia: «to combine holidays with an experience of a lifetime», tendo, para isso, decidido despender cinco desses meses em regime de voluntariado social em Kolkata, prestando serviço para organizações como a Calcutta Rescue19, contactada no seu país de origem e a instituição da Madre Teresa e Missionárias da Caridade que contactaram já na cidade. Cinco dias da semana são ocupados a prestar apoio nos cuidados a doentes nas várias clínicas das ONG e apoio a crianças de uma escola (também da Calcutta Rescue) localizada no Red Light District (Sonagachi – o maior bairro de prostituição da cidade), vocacionadas para os mais desfavorecidos, nas palavras de [A.]: «the poorest of the poor». No final deste período a que chamam “internship”, irão desfrutar o seu mês de férias fora da cidade. O seu plano contempla viajar para Darjeeling, no norte deste estado, seguir para as ilhas Andaman na baía de Bengala e depois regressar ao continente, viajando para noroeste para realizar o circuito Golden Triangle.

Quando conheci estas jovens, acompanhadas de outros turistas em regime de voluntariado (uma sueca, uma inglesa e um espanhol), num dos

18 O uso da expressão “turismo pro-pobreza” não tem o mesmo significado de Pro-Poor Tourism (PPT) utilizado por organizações internacionais como o International Centre for Responsible Tourism (ICRT), International Institute for Environment and Development (IIED), e Overseas Development Institute (ODI) para designar estratégias de desenvolvimento do turismo centradas na redução da pobreza e na participação mais efectiva dos pobres no produto resultante. Contudo, a escolha desta expressão é intencionalmente “pró-ambígua”, numa referência irónica à sobreposição de significados de ambas as estratégias: ocidentais privilegiados (a designação PPT e as organizações referidas são originárias do Reino Unido) empenhados na redução da pobreza e no alívio do sofrimento dos pobres nos países de Terceiro Mundo.

19 A ONG Calcutta Rescue foi fundada pelo britânico Jack Preger no final dos anos 1970.

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restaurantes da rua Sudder Street, habitualmente frequentados por estes turistas para as suas refeições de omoleta ou salada acompanhada de chapati20 e um lassi21, já se encontravam na cidade há cerca de três meses. Como constatei, à semelhança de muitos outros destes turistas, apesar do considerável tempo de permanência, o seu conhecimento geográfico e sócio-espacial de Kolkata permanecia absolutamente confinado a este universo de “turismo pro-pobreza” enquadrado pelas ONG que operam na cidade:

S: What do you think about the city? A: In this part of the city, there are a lot of beggars (...) the children [beggars]: most of them are professionals. (...) Here, people are not dangerous but it’s annoying: a lot of them touch you and come in motorcycles driving just right to you...and then go! Or sometimes, saying «fuck you» or something like that. (...) I like the NGO, they do a good job (...) but sometimes we can’t follow how the patients take the medicines, if they sell them instead of taking them...we never know. (...) Calcutta is difficult. But after sometime, it is like a village, everybody know each other...I like it. S: Do you know any other parts of the city? Have you been in the south, in the other side of the river or up north... some music concerts, art performances, cultural events, College Street... some tour? A: No. We don’t have much time to travel around; we have so much to do! S: Most of the people you [the NGO] are taking care of are Bengalis? A: Yes, most of them. S: How do you know? Did you ask? Do they all speak Bengali? A: I don’t know...Yes. Some of them speak Hindi, but I think most of them are Bengali. S: Did you try to learn some Bengali?

20 Chapati [tchaapaatee] - tipo de pão sem fermento (pão ázimo), redondo e plano, muito leve e seco. 21 Lassi [laassee] - batido à base de iogurte natural.

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A: I tried in the beginning with a teacher but it is difficult, so I abandoned it. And all the staff (Indians, too) speak English...22

Para os restantes turistas em trânsito, a situação é um pouco diferente. Embora, a sua motivação primária não seja a de se envolverem em voluntariado social, o que acontece é que a sua experiência turística da cidade é inflexivelmente determinada pelos mesmos mediadores, conduzindo-os para paisagens sócio-espaciais precisas e vedando o acesso a todo o universo restante. Isso mesmo é revelado pelo enunciado de um outro turista inglês, em 2005, que, não obstante, ter como propósito de visita «to interview the Hindu icon-makers of the Kumartuli district» como ele próprio afirma: «but this didn’t mean I escaped the vicarious role of tourist in a city unfortunately famous for its poverty» T10. E na procura de duplicação das representações das suas fontes:

I checked into the Fairlawn Hotel, about which I had read, and retired to my room from which I could see the outdoor bunks of the hotel staff. Soon I found myself squeezed into a cliché: I felt very hot and could smell all sorts of unfamiliar things. I took a look round this hotel famous from the pages of Paul Theroux and Joe Roberts (...) And so I and my indolent heart walked with my companions to the Botanical Gardens (...) To our left were the network of communities which feature in the film City of Joy T10.

Esta representação da pobreza em Kolkata, enquadrada pelas ONG de caridade e alívio do sofrimento dos mais desfavorecidos, é baseada na reprodução de uma imagem unidimensional repetida por várias fontes e que é relativa a uma qualidade intrínseca de uma situação de crise passível de ser localizada temporalmente. A sucessão de acontecimentos iniciada com a segunda guerra mundial e a trágica Panchasher Manvantar23 ou Great Bengal Famine de 1943 provocada por causas humanas sob administração britânica e que se calcula ter causado mais de 3 milhões de mortos24, a Independência do país em 1947 e subsequente Partição do território, até à emancipação do Bangladesh em 1971 conduziram esta cidade a uma situação de crise profunda. À inundação populacional de camponeses famintos das áreas rurais adjacentes, juntaram-se os refugiados do vizinho território recém-criado. Contaram-se mais de 5.4 milhões de refugiados do Paquistão Oriental (hoje,

22 Conversa com [A], Kolkata, 8-03-2006. 23 Panchasher Manvantar – “A Fome de 50”. Em referência ao ano 1350 do Bangla Sone (Calendário Bengali) correspondendo ao ano de 1943 do Calendário Gregoriano. 24 Para mais sobre este assunto ver: Sen, 1977; Islam, 2007.

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Bangladesh) acolhidos pelo estado de West Bengal neste período, com uma hiper-concentração na capital que reclamou todos os espaços vagos disponíveis (ver Dasgupta et al, 1991). A escassez e falha de distribuição de alimentos, água potável e eliminação de detritos culminaram numa situação de vagas epidémicas de gripe, cólera, tifóide e malária com elevadas taxas de morbilidade e mortalidade e com repercussões ao longo de várias décadas, até meados dos anos 1980.

Esta é a qualidade intrínseca em que se baseia a imagem explorada pelas ONG de caridade, adequadamente inscrita nas referências imagéticas ocidentais de Terceiro Mundo e difundida pelos vários meios de comunicação massificada ocidentais. Obedecendo à lógica de exploração unidimensional de realidades parciais em imagens textuais e pictóricas comprimidas “de apreensão fácil para um público abrangente” e servindo à reafirmação da posição de supremacia de um Primeiro Mundo do qual depende um universo restante de nações necessitadas, fracas e impotentes, dão visibilidade internacional a este lugar apenas quando ocorrem eventos de natureza dramática, como situações de catástrofe e pobreza extrema, e habitualmente por relação à magnanimidade da intervenção da ajuda internacional nesses momentos. Confinada a um período espacio-temporal passado, esta qualidade que seria contingencial, através da sua reedição continuada, é, assim, convertida em essência intemporal.

Um dos exemplos de duplicação desta representação com grande penetração na cultura popular, mencionado na narrativa do último turista, é o best-seller La Cité de la Joie de Dominique LaPierre publicado em 1985 e transformado em filme City of Joy pela Warner Brothers, com direcção de Roland Joffé, em 199225. O filme apresenta a história de um jovem médico norte-americano, em busca de clarividência e iluminação espiritual, e uma enfermeira irlandesa residente na cidade26: «A place of indescribable poverty where the desperate struggle for survival is hampered still further by the activities of the evil ‘mafia’ who ruthlessly

25 Para o sucesso da sua implantação massificada, foi decisiva a ligação de LaPierre à pessoa e obra de Madre Teresa de Calcutá, instituída como expoente máximo da representação da abnegação ocidental no alívio do sofrimento dos habitantes deste lugar e personagem indexada à cidade pelo atributo da sua própria designação, muitas vezes evocada à distância como a primeira referência da imagem antecipada da cidade. 26 No livro são um padre católico francês (baseado na figura de Gaston Grandjean), uma enfermeira missionária e um médico norte-americano.

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prey on the local residents» (excerto da descrição de apresentação da capa do filme City of Joy27). Juntos mergulham no sofrimento e miséria dos mais pobres e desafortunados desta cidade (emblematizados pela família da personagem Hazaree, imigrante de Bihar puxador de rickshaw e outras personagens famintas, estropiadas ou leprosas), salvando-os da opressão das maléficas máfias locais e oferecendo-lhes a esperança, através da generosa dádiva do desenvolvimento do saber pensar e saber agir, que é propriedade dos sujeitos ocidentais e da qual agora também podem usufruir.

A narrativa de LaPierre, conforme aos modelos referenciais utilizados pela rede de agentes institucionais de ajuda internacional, ONG de caridade e um batalhão de adeptos do voluntariado social internacional (duplicados, também, nos enunciados discursivos de inúmeros turistas contactados em Kolkata), assenta na construção da ideia de que a redenção da culpa é obtida não pela auto-flagelação mas antes pelo “resgate do ego ocidental culpado”. Por outras palavras, o ocidental privilegiado (de forma legítima, porque implementa as estratégias racionais ao desenvolvimento desejável) que, não por indispensabilidade mas por indulgência, se indigna e disponibiliza tempo e atenção presencial para ajudar os “não tão racionais” e por isso “menos desenvolvidos” e menos favorecidos, pode, por isso, sentir-se redimido. Os maus resultados obtidos pelas personagens da história de LaPierre (e Joffé), pelas centenas de ONG internacionais que se multiplicam em Kolkata, e também por décadas de estratégias como as do Food and Nutrition Policy and Planning (FNPP), implementadas por especialistas de organizações internacionais ocidentais - «For 40 years, strategies to combat malnutrition and hunger in the Third World have succeeded one another, in spite of the persistence of the problems they are supposed to eradicate» (Escobar, 1988: 434) -, são os possíveis. De acordo com este modelo retórico, não porque haja algo de errado nas premissas das estratégias aplicadas, mas pela “inaptidão”, “malevolência”, “corrupção” e “aberração” do sistema social dos últimos.

Dos livros para a tela e destes para a experiência turística, as limitadas possibilidades de imagens e de enunciação discursiva sobre a cidade são decalcadas, uma e outra vez, dezenas de vezes, nas histórias contadas pelos turistas que encontrei em Kolkata. Como também já reportado por John Hutnyk, na primeira metade da década de 1990:

27 City of Joy [vídeo-cassete]. Warner Home Video, UK, 1996.

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Travellers come to Calcutta to experience, and hence to report on, something they expect to be extreme (...) The hermetic seal of this city’s framing resists any challenge, so that even alternative travellers and eco-tourists, volunteers, participant travellers and other traveller-expatriate forms do not deviate significantly from the established paths. For all the minutiae of travel guides, backpacker lore and gossip, literary imagination and snapshot voyeurism, it is striking how Calcutta is framed in such conventional ways (Hutnyk, 1996: 19).

3.2 Kolkata: Risco e Restrição da Experiência Turística à “Zona de Segurança”

Diversos autores argumentam que do ponto de vista teórico, genericamente, qualquer actividade turística pode ser descrita como aventura, já que a sua experiência é sempre construída em torno da dialéctica das motivações de fuga (ao ordinário) e da procura (da diferença, do extraordinário). Nesta acepção, estará sempre implicada a aceitação de algum nível de risco. Urbain argumenta que todas as actividades recreativas no turismo se inscrevem na construção de uma identidade de aventura que permite dar sentido à experiência, através de processos sucessivos de diferenciação e identificação (1989: 116); Simmel sugere que nesta experiência de fuga ao ordinário, o sujeito incorre no constante diálogo entre as imagens mentais pré-estabelecidas e as percepções (1971: 187) in situ; o que, segundo Cohen (1979) ocorre, independentemente das variantes na modalidade da experiência turística. A noção de risco é aqui integrada como capital diferenciador no projecto individual de construção identitária.

Isto parece contraditório com as afirmações de conformismo, falta de independência e espontaneidade atribuídas ao turismo de massa e viagens de pacote turístico. E com efeito, muitos turistas em Kolkata alegam destacar-se desse modelo de viagem, precisamente por considerarem que não permite a liberdade necessária à experiencia da aventura, da descoberta (exterior e interior). Como descrito por Torun Elsrud: «The adventurous traveler is usually regarded as a ‘real traveler’, a person

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interesting enough to write books and magazines about and to be followed around by a documentary film team» (Elsrud 2001: 598).

Mas, na verdade, quando o viajante é tomado sob a perspectiva do narrador e a viagem sob a forma de narrativa, esta distinção estabelecida pelos próprios turistas entre si, perde significado. Desde que, no séc. XVIII, a narrativa de viagem se constituiu como o género literário, por excelência, ao serviço da construção de identidades, a viagem para lugares distantes, em especial, quando “exóticos”, “primitivos”, mais recentemente também “pobres”, “subdesenvolvidos”, de Terceiro Mundo (em que se inscreve a Índia e, em particular Kolkata), é sempre entendida como uma experiência que envolve risco, perigo e aventura. Não obstante, a possibilidade da sua materialização em doenças, acidentes, agravos ou crimes, a ideação de risco, a materializar-se ou não, é, em primeira instância, um instrumento de construção narrativa desta experiência de viagem.

O popular guia Lonely Planet India (omnipresente na bagagem dos turistas ocidentais em Kolkata) dispensa um largo espaço de atenção a este assunto, num capítulo intitulado “Facts For the Visitor” (2001: 76-131). Sobre saúde, embora, comece por afirmar que «While the potential dangers can seem quite frightening, in reality few travellers experience anything more than an upset stomach» (ibid: 102), logo de seguida, apresenta 11 páginas exclusivamente dedicadas à enunciação de doenças e contaminações a antecipar e a discorrer sobre precauções de segurança a este nível. Segue-se uma secção devotada à segurança das mulheres viajantes em particular, dispensando mais uma página e meia ao risco de assédio sexual e medidas preventivas ao nível do uso de vestuário e adereços, bem como comportamentos a adoptar em espaços públicos e modos de relacionamento com a população masculina “local” (aparentemente, não existindo riscos a considerar no relacionamento com homólogos estrangeiros ou com a população feminina). Finalmente, inclui ainda uma secção intitulada “Dangers & Annoyances” com outras quatro páginas consagradas a alertar respectivamente sobre os perigos de: “Theft”, “Holi Festival”, “Contaminated Food & Drink”, “Beware of Those Bhang lassis!” (alertando para a possibilidade da sua confecção clandestina com o derivado de marijuana, designado por bhang), “Risky Regions” (para rapto e terrorismo), “Racism” e “Other Important Warnings”.

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Precisamente, porque o risco é uma construção mental (suportada por narrativas pré-organizadas), o sujeito pressupõe a necessidade de uma atitude calculista face às possibilidades de acção que antecipa (ver Giddens, 1991; Douglas, 1992) e assim, não é necessariamente o conteúdo da acção que define a presença ou ausência de risco, mas sim, o modo como, primeiro, é experienciado quando e onde tem lugar e o modo como, depois, se constitui em ingrediente narrativo.

Torun Elsrud (2001) cita uma jovem turista sueca que expressa claramente o que está em causa:

I mean, as soon as you leave Sweden you are away, so you have then already entered a risk zone, so to speak. At home there is nothing, but as soon as you land... I mean Denmark is enough, then you are already away. There is already a risk. And especially in Asia, even further away where things are even more different (in Elsrud, 2001: 605).

Ou seja, a narrativa de risco da retórica de viagem, independentemente das suas variantes circunstanciais ou do lugar a que se refere, assenta, primordialmente, num mesmo princípio e que é o do estabelecimento de uma zona de contacto com a diferença.

Se, por um lado, esta narrativa de risco se apresenta como factor dissuasor para muitos turistas internacionais28 para, os que persistem na visita a estes lugares, a incorporação deste mediador na experiência funciona como factor motivador. E desse modo, a narrativa da experiência é tanto mais gratificante, recompensadora e bem sucedida quanto mais maximizados os riscos (reais ou imaginários) de exposição à alteridade a que o viajante esteve sujeito. Como definiu o escritor de viagens Paul Theroux na sua introdução ao The Best American Travel Writing 2001, a melhor narrativa de viagem será: «a journey of discovery that is frequently risky and sometimes grim and often pure horror, with a happy ending: to hell and back» (Theroux, 2001: xix).

28 A Índia, apesar do seu imenso território e potencial turístico, em termos globais é um destino pouco procurado. Segundo a UNWTO, no ano de 2004, foi escolhida como destino por 3.46 milhões (Portugal, no mesmo ano, ocupou a vigésima posição mundial com 10.6 milhões de visitantes), o que constitui apenas 0.46 % do total de turistas internacionais a nível mundial. Kolkata e West Bengal, em termos de fatia percentual do contexto nacional, apenas recebem cerca de 0.5% de todos os turistas internacionais que visitam o país (West Bengal Tourism Office, Kolkata, Maio de 2007).

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«I am still paranoid that men are going to be leaping out at me and grabbing me from all angles... this has yet to happen» (turista inglesa, três dias de estadia T13); «Walking around the city was quite intimidating at times as being fair and blonde makes me stand out like a sore thumb» (turista inglesa, dois dias de estadia T7); «The people will kill the driver and burn the car, whether or not there is someone in it.... I never saw this happen, fortunately, but I have been told by countless people that it does» (turista inglesa, alguns dias de estadiaT1). Este tipo de enunciados (muito frequentes) é extraordinariamente revelador dos significados subjacentes a estas narrativas de risco em lugares de Terceiro Mundo. Primeiro, não reportam a qualquer situação experimentada de risco materializado, ou seja, são apenas narrativas sobre construções mentais de possibilidades imaginadas. Segundo, não sendo decorrentes da experimentação de uma situação de perigo concreto, estes enunciados discursivos só podem adquirir expressão e significado, quando suportados por um sistema mais vasto de ideacional narrativo sobre o distante Terceiro Mundo que permitirá ao interlocutor compreender.

Particularmente para os dois primeiros enunciados, em que as turistas não sentiram ser necessário emitir mais explicações, torna-se óbvio que o risco atribuído à situação é matéria do conhecimento de “senso comum”: para qualquer pessoa que tenha lido o Lonely Planet Índia, ou, de um modo geral, conhecer os rumores da generalidade de narrativas de viagens contadas ao longo de séculos sobre lugares como a Índia, num oriente, exótico, agora, terceiro mundista - estes são lugares povoados por outros diferentes, em que “being fair and blonde makes [her] stand out like a sore thumb”, convertendo-a em alvo de inimagináveis intenções duvidosas por parte dos locais “selvagens”, “primitivos” e “irracionais”, que a colocam sob ameaça constante a qualquer momento, na rua, no autocarro, no hotel ou à mesa de um restaurante, “to be leaping out at [her] and grabbing [her] from all angles”.

Como argumentou Mary Douglas, já em 1966 (embora sob uma perspectiva funcionalista, no meu entender, ainda extremamente útil como ponto de partida), sobre a associação simbólica entre perigo e poluição social, são várias as maneiras de lidar com o ambíguo - o que não é facilmente inserido numa das nossas categorias classificatórias, o que é estranho, o que não se reconhece - e que incluem ignorá-lo, percebê-lo, percebê-lo e condená-lo ou enfrentá-lo e criar uma nova ordem do real onde possa ser inserido (Douglas, 1991: 53-54). Ou seja, as várias maneiras têm o propósito único de reduzir ou eliminar essa ambiguidade.

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Assim, o que não está no lugar certo, conformado ao nosso esquema (confortável) de ordenamento do real, quando excessivamente diferente (ou excessivamente similar) tende a ser remetido para as fronteiras exteriores do sistema ou para um lugar claramente distinto delimitado por fronteiras internas - o outro, o outro lado, o que não é nós, o que não é nosso. De acordo com este argumento, o perigo é associado à experiência de atravessar esta linha de fronteira, de interdição, de entrar em contacto com o outro e arriscar à fractura da sua identidade - de poder converter-se em algo ambíguo, poluído, i.e., perder o lugar certo no seu sistema de ordenamento do real social.

E de facto, a estratégia adoptada face ao perigo pela maioria destes turistas “audazes” (relembro que em Kolkata, a tipologia dominante de turismo procura destacar-se dos modelos de turismo de massa) é a da experiência confinada a uma “zona de segurança”: aos espaços que lhes são indicados pelos seus mediadores como representativos das suas imagens antecipadas, todavia menos inseguros (traduzido na proximidade com outros estrangeiros, que aqui são percepcionados como semelhantes) e de acessibilidade mais fácil para experimentar este lugar estranho, excessivo e de significados dificilmente reconhecíveis. Munidos das informações recolhidas a priori sobre este lugar perigoso e desconhecido, são transportados pelo seu guia Lonely Planet India directamente do aeroporto para os alojamentos da Sudder Street ou proximidades, a área de concentração de viandantes internacionais (que, pela sua concentração em número, servem de protecção ao contacto com a alteridade dos outros). A partir desta localização e, em muitos casos, dispondo apenas de alguns dias, já muito dificilmente conseguirão afastar-se destas imediações ou desviar-se dos circuitos previamente estabelecidos por estes seus novos vizinhos.

Se observasse isoladamente as suas fotografias das narrativas que as acompanham, a persistência desta representação de pobreza e perigosidade da cidade por parte dos turistas internacionais seria largamente atenuada. Salvaguardando algumas excepções, as fotografias impõem uma intenção de ponderação aos enunciados verbais, revelando conotações e significados amplificados quando analisadas em correlação com a história oral ou escrita contada. As fotografias de um casal de ingleses em turismo de aventura, que em trânsito na cidade aí permaneceram cerca de três dias em 2004, compreendem o cemitério de Park Street (a Fotografia 3 reproduzida aqui e uma outra com a presença da turista), um eléctrico numa rua movimentada, ladeada por edifícios

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com a fachada coberta por placares publicitários, e diferentes perspectivas, com e sem a turista e sem presença de outros sujeitos, do Fairlawn Hotel em Sudder Street onde pernoitaram uma noite29.

A propósito desta fotografia, diz: «This is an amazing old cemetery from the 1700's, and an oasis of calm in the centre of Kolkata. Great atmosphere, complete with gothic crows» T6.

Este cemitério cristão de tumbas monumentais, grandes mausoléus e até algumas imitações de pirâmides egípcias, com longos epitáfios de exaltação do poder colonial e missão civilizadora dos “bárbaros nativos”30, foi criado no início do séc. XVIII, albergando mais de 1600

29 O Fairlawn Hotel também terá sido elevado ao estatuto da fama internacional pelo filme City of Joy. 30 Exemplo de um excerto destes epitáfios: Here lie the remains of │Augustus Cleveland, Esquire, │late Collector of the Revenue; │Judge of the Dewanny Adawlat of the │Districts of Bhaugulpore, Monghyr, Rajamahal, │&c. &c. │he departed this life 12th January 1784, at sea│on board the ‘Atlas’ Indiaman, Captain Cooper, │Proceeding to the Cape for the recovery of his health, │aged 29 Years (...) The public and private virtues of this excellent│young man, were singularly eminent│in his public capacity; │he accomplished by a system of conciliation│ what could never be effected by a system by Military coercion; │he civilized a savage race of the mountaineers, │who for ages had existed in a state of barbarism, │and eluded every exertion that had been practiced │against them to suppress their depredations, │and reduced them to obedience; │to his wise and beneficent conduct, │the English East India Company│were indebted for the subjecting to their Government, │the numerous inhabitants of that wild│and extensive country, the Jungleteterry (...).

Fotografia 3 – South Park Street Cemetery, Kolkata, 2004.T6

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restos mortais de europeus e seus descendentes datados da era gloriosa do Raj colonial. Encerrado há mais de um século e votado ao abandono pela ex-administração britânica pouco depois de 1947, é actualmente mantido como atracção turística, cuidado por jardineiros e seguranças contratados pela APHCI (Association of the Preservation of Historic Cemeteries in India) e o Christian Burial Board de Kolkata, com horário de visitas à semelhança de um monumento histórico.

Situado na zona de concentração de turistas internacionais, e mencionado no ubíquo Lonely Planet India, na secção “Other Attractions” como: «This peaceful cemetery is an evocative reminder of Kolkata's colonial past and is definitely worth a visit» (2001: 439), é um espaço isolado, confinado por muros altos e vegetação luxuriante de grande porte, sempre apreciado pelos poucos turistas ocidentais que o visitam pela oferta da experiência de fuga à estimulação exacerbada de sentidos nas ruas da cidade e ao contacto com os seus habitantes - nas palavras da turista supracitada: “an oasis of calm in the centre of Kolkata”.

Para este casal (e também para muitos outros turistas que encontrei), a expressão “oásis de calma” é conotada com a privação do contacto com a cidade viva, com a mega-metrópole sobrepovoada de diferença, pós-colonial, e não com a paisagem natural de espaço verde evocativa de parque que se faz sentir neste cemitério. O monumento Victoria Memorial que também visitaram, localizado na mesma área, com uma arquitectura igualmente ostensiva e rodeado por um parque verde de muito maiores dimensões, embora ícone turístico da cidade, não foi sujeito a representação fotográfica e o comentário a que teve direito, foi:

We visited the absurdly obscene Victoria Memorial. This magnificent white marble palace (almost rivals the Taj Mahal) built in honour of our late Queen of the Empire, Victoria. Despite the honourable platitudes (“to civilise the world”, “that all should live in peace and prosperity”, etc), if the money used to build this place had been put in to a pension fund for all of Calcutta's poor, they could all have retired peacefully! T6

Com efeito, apesar de concebido por George Curzon (à altura Vice-rei da Índia), e desenhado por William Emerson, ambos britânicos, o edifício

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construído já no crepúsculo do império colonial (1906-1921) em homenagem à sua história e à rainha Alexandrina Victoria31, que havia falecido recentemente, terá sido inteiramente financiado pela aristocracia indiana (Chakrabarti, 2005: 256). Não ocorreu a esta turista a idiossincrasia da sua indignação quando, imediatamente antes, havia considerado as ostensivas construções funerárias dos seus antepassados como absolutamente justificáveis para a criação de “um lugar impressionante e de atmosfera extraordinária”, sem qualquer relação com a desigualdade de distribuição de riqueza entre os habitantes da cidade. Relativamente ao espaço verde Maidan32 que circunda o Victoria Memorial, a sua grande dimensão, amplitude de espaços ajardinados e arvoredo abundante que fazem dele o “pulmão” da cidade, proporciona um isolamento atmosférico do ar quente e denso assim como do ruído do tráfego intenso que se faz sentir de forma mais ou menos constante nesta área. Contudo, apesar da atmosfera de paisagem natural, não cumpre os requisitos ao seu “oásis de calma” uma vez que, ao contrário do cemitério cristão, este é um parque vivo, povoado pela diferença, intensamente usufruído pelos residentes de Kolkata e visitantes não ocidentais, de outros lugares da Índia e de países vizinhos como o Bangladesh e o Afeganistão.

Este significado é clarificado por uma outra jovem turista norte-americana, que permanecia há sete meses em Kolkata com o propósito de desenvolver a sua formação em dança clássica indiana Kathak. As suas fotografias não incluem os espaços verdes Maidan ou o Rabindra Sarovar Park33 localizado na área sul onde se encontrava hospedada e que outros turistas com permanências longas aqui elegeram nas suas representações. Em vez destes, fotografou o mesmo cemitério de Park Street, porque, também para si, só este espaço verde da cidade traduz:

(...) a beautiful place, so peaceful, and people come here because they want to see it. It’s the only green place, here, where I feel peaceful the way I want to feel when I go to a park. And it’s a very interesting colonial reminiscence – young women came here to get married and died. And my friend get very emotional because she

31 Sobre a relação da rainha Victoria e a Índia, ver: Taylor, 2004. 32 Maidan [moidaan] – termo bengali para amplo espaço aberto e que é, ainda hoje, o nome do imenso parque verde no centro de Kolkata. 33 Rabindra Sarovar [Robindra Shaarobaar] – nome do grande parque verde existente na zona sul de Kolkata. Sarovar – lago; Rabindra – nome atribuído em homenagem a Rabindranath Tagore, premiado Nobel da Literatura em 1913 e um dos mais influentes pensadores/escritores em Bengala, elevado ao estatuto de ícone da cultura bengali.

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said she could identify with them because she is was getting sick all the time T21.

Esta ideia de fuga ao contacto com a cidade e aos seus habitantes é reforçada pela narrativa que acompanha estas duas fotografias de interiores de cafés localizados em Park Street. À esquerda, o “Barista”, franchising da cadeia italiana, com o ambiente característico dos espaços de fast-food ocidentais, de cores fortes, iluminação artificial intensa, superfícies brilhantes e ar condicionado. À direita, “The Tea Table” (ou T3 como é designado em tom coloquial) relativamente novo, mas a operar no edifício centenário Park Mansions, com tectos altos, paredes brancas, colunas de suporte revestidas a madeira e mobiliário escuro, o que lhe confere um ambiente nostálgico de passado colonial. Em comum, o serviço ocidentalizado e a descontinuidade com o exterior proporcionada

Fotografia 4T21

Fotografia 5T21

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pela porta fechada, ar condicionado e a selectividade da clientela que inclui a frequência habitual de estrangeiros. Para esta jovem norte-americana, a experiência sensorial e emotiva proporcionada por ambos os cafés é semelhante à do Park Street Cemetery:

(...) “Barista” is convenient if you want to sort of forget of everything and just be by yourself, just left alone: People won’t look at you ‘cause it’s full of foreigners, always. (...) I spend a lot of my time here in cafes just because I can’t concentrate in my room, I get claustrophobic, and there is not really a public space where I can go study. In the streets I can never let myself relax. In the bus, most of the time, I feel I’m having to fight for space and I’m never really comfortable, ‘cause I’m always sort on “en guard” against anything that could happen. Lot of the time on the bus there’s men being inappropriate, staring at me... I tend to avoid going outside because of that. Parks are weird spaces, here, too, because so often, you have couples holding hands and kissing or something T21.

Curiosamente, [BS], um jovem residente bengali terá dedicado uma das suas fotografias ao espaço de jardim vedado que circunda o Victoria Memorial, separando-o do restante espaço verde Maidan, para narrar, precisamente, sobre as recentes medidas implementadas de condicionamento no acesso e o seu efeito de decréscimo e mudança de tipologia na afluência deste espaço verde. O que, para si, o converte num espaço menos apelativo:

This is Victoria. Lots of times, I go there with my school students, my kids. But now, the best place to go with the kids is Science City. Now, Victoria is a lover point from morning to evening. Before, it

Fotografia 6 - Kolkata lover point. R13

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used to be free, but now you have to pay to go inside of the park. And that is good for lovers because less people go there, less large families. That’s why it is a lover point, now! ([BS] - residente bengali, homem, estudante universitário e voluntário numa ONG local vocacionada para apoio a mulheres e crianças no basti34 muçulmano vizinho ao seu R13).

O significado da eleição destes espaços aparentemente tão diferentes como representações de “oásis de calma” pelos turistas em Kolkata é assim revelado: pela sua capacidade de supressão de contacto interpessoal com a população residente, de exclusão de marcas identificadoras de localização e de descontinuidade com o meio envolvente, estes espaços permitem a experimentação temporária da sensação de fuga à diferença deste lugar. Como coloca uma outra turista inglesa «From the first moment you get onto the streets on Kolkata you are thrown into a world that is as far away from life at home as you can possibly imagine»T7. Sendo este o tom que marca a transversalidade a todas estas narrativas e que encerra um paradoxo gritante: a expressão do conflito que é para estes turistas combinar o desejo de adquirir o capital narrativo da aventura num lugar de Terceiro Mundo, imaginado como o mais diferente e distante, com o desconforto e desagrado que lhe provocam o medo do encontro com essa mesma distância e diferença: “en guard”.

4. Nota Final

Em resultado desta construção representacional pré-organizada e do medo que provoca para muitos turistas - como procurei demonstrar, um medo mais ou menos tolerável para uns do que outros, por vezes verbalizado, por vezes expresso pelo riso e a ironia, somatizado em mau estar físico, revulsão, sensações claustrofóbicas, agorafóbicas, até ao choque e premência da necessidade de fuga -, a experiência de consumo deste lugar (paradoxalmente, tão vasto e excessivo) é assim esgotada num exíguo espaço sócio-geográfico. Pela incapacidade revelada por estes turistas em atravessar a linha de fronteira que permitiria o seu envolvimento, permanecem, deste modo, reféns da sua “zona de

34 Basti, bustee, ou busti [bastee] - termo bengali utilizado alternadamente com o termo de origem inglesa slum. Embora não tenha uma correspondência exacta, basti é usado correntemente do mesmo modo, designando uma área habitacional urbana de condições degradadas.

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segurança”. Kolkata, condenada por estes turistas pela audácia de não vedar o acesso ao seu olhar, permanece, assim, ironicamente velada.

Como descrito por este turista (também antropólogo) dinamarquês residente na Noruega que, em 2007, permaneceu aproximadamente um mês e meio em Kolkata:

On the one hand, it’s an overwhelming city, I find: it heats you in the face. At least, it did when I first came here at the age of 20. But it quickly grows on you, I think, and that is probably the reason why I’m back here for the third time. (...)That once you managed to settle in this metropolis I think you find amazing hospitality and an amazingly welcoming feeling, that is there, once you make your way through the crowds and actually try to meet some individual people and not only see the crowds, that you see moving all over the place. It’s also a city that fascinates me for a whole range of personal reasons. People are very talkative, politically engaged in all sorts of things, well read, highly educated, like to debate and discuss. (...) It’s an incredible atmosphere to be in and I feel like a fish in water when I get here (turista, proveniente da Noruega, seis semanas de estadiaT20).

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