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IMAGENS DO PASSADO A instituição do patrimônio em São Paulo 1969 1987 Marly Rodrigues

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  • IMAGENS DO PASSADO

    A instituio do patrimnio em So Paulo

    1969 1987

    Marly Rodrigues

  • MARLY RODRIGUES

    IMAGENS DO PASSADO

    A instituio do patrimnio em So Paulo

    1969 - 1987

  • Este trabalho foi originalmente apresentado como tese de doutorado ao

    Departamento de Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da

    Universidade de Campinas, em maio de 1994. Nessa fase, contei com o

    apoio do CNPq, de meu orientador Prof. Dr. Edgar Salvadori de Decca e

    de inmeros amigos, muitos deles irmos de barca na difcil tarefa de

    preservao do patrimnio. Para a publicao foram inestimveis o apoio

    da Fapesp e as sugestes dos membros da banca examinadora, Professores

    Doutores Antonio Augusto Arantes, Jorge Sidney Coli Junior, Leila

    Mezan Algranti e Ulpiano Bezerra de Meneses. A todos registro meu

    agradecimento.

  • SUMRIO

    Apresentao ......................................................................................................................... 5

    Passado, reflexo do presente ................................................................................................ 7

    Materializar a histria ...................................................................................................... 7

    De So Paulo para o Brasil ............................................................................................ 18

    Outras tentativas............................................................................................................. 23

    Um servio de patrimnio de So Paulo ........................................................................... 27

    O Condephaat - As prticas definem a poltica ............................................................... 39

    Com os olhos na tradio, de 1969 a 1975 .................................................................... 41

    Considerando o presente, de 1975 a 1982 ..................................................................... 57

    Tempos de abertura, de 1982 a 1987 ............................................................................. 87

    O patrimnio de So Paulo: memria e histria ........................................................... 105

    Bibliografia ........................................................................................................................ 112

    Anexos

    Bens tombados e pedidos de estudo de tombamento arquivado 1969-1987............123

    Composio do Conselho 1969-1987........................................................................135

  • Imagens do passado

    5

    Apresentao

    Considerado pelos antigos romanos como parte da esfera privada do direito de

    herana, o patrimnio comea a ser entendido como herana de todos, herana pblica, a

    partir do Renascimento, quando, juntamente com a valorizao da cultura material da

    Antiguidade, comeava a ser construda a civilizao da imagem da qual somos

    continuadores. Hoje, a noo de patrimnio abarca um amplo universo de bens por meio

    dos quais a sociedade materializa o passado.

    Durante a Revoluo Francesa, inaugurou-se a forma moderna de o poder pblico

    tratar os bens culturais considerados representativos do passado de todos. A partir de ento,

    e sobretudo no sculo XIX, caberia aos Estado identificar, reconhecer e proteger os objetos

    que comporiam o universo do patrimnio. Arquivos, museus e outras instituies

    dedicaram-se a construir memrias nacionais referenciadoras de identidades unvocas, o

    que tornaria possvel sustentar a construo dos Estados-nao.

    Segundo Chastel,1 o cuidado do poder pblico com a memria no definia apenas

    uma rea de atuao, mas o prprio poder da cultura, alm de incluir cuidados morais e

    pedaggicos. Instituir os documentos do passado era recriar o passado determinando quem

    o havia construdo; era criar a identidade nacional como espelho da identidade da classe

    dominante. Era, portanto, criar mais uma instncia de exerccio do poder.

    O presente trabalho estuda uma das reas de instituio de memria da sociedade

    pelo poder pblico em So Paulo, a do patrimnio, a partir da criao do Conselho de

    Defesa do Patrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico e Turstico (Condephaat), em

    1968.

    Naquele momento, o patrimnio j no era apenas entendido como conjunto

    material representativo da memria e da identidade nacionais, mas assumira outro sentido,

    1 Chastel, 1986, p.412.

  • Imagens do passado

    6

    prprio da sociedade contempornea, o de elemento componente da indstria cultural,

    portador de grande potencial de incentivo ao lazer e ao turismo. A pesquisa sobre a atuao

    do Condephaat prolonga-se at 1987, quando o rgo define um perfil de atuao que

    permanece at o presente momento.

  • Imagens do passado

    7

    Passado, reflexo do presente

    Materializar a histria

    As primeiras ideias de proteo ao patrimnio histrico-arquitetnico surgiram no

    Brasil na dcada de 1910. A poltica dos governadores iniciada em 1904 possibilitou uma

    estabilizao relativa do regime republicano e, a partir de ento, observa Sevcenko,1 os

    esforos da elite poltica estiveram voltados para forjar um Estado-nao capaz de

    sintonizar o pas com as exigncias da expanso internacional do capitalismo. Tratava-se de

    ampliar a ao do Estado sobre a economia e a sociedade, articular as foras sociais

    gesto pblica e harmonizar as peculiaridades locais aos padres ditados pelos modelos

    vigentes nos grandes centros europeus. Tal postura inclua prestigiar as instituies liberais,

    a cincia e o progresso material.

    Pretendia-se moldar um povo para uma modernidade que fazia parte apenas do

    horizonte das elites polticas e intelectuais. A febre de cosmopolitismo que se instalou nas

    grandes cidades do pas implicou a interferncia no construir-se das identidades locais

    especialmente as das camadas populares urbanas , a negao dos hbitos tradicionais da

    sociedade brasileira, forjados em sculos de vivncias do mundo rural e na transformao

    radical dos espaos urbanos. Nesses, a ampla adoo do ecltico correspondeu ao gosto das

    elites dirigentes e evidenciou sua inteno de rompimento com o passado.

    Segundo Fabris,2 a afirmao do ecletismo no Brasil no implicou reconhecimento

    da tradio anterior, mas foi um repdio aos vestgios coloniais que persistiam entre ns. A

    utilizao de formas espetaculares nas fachadas de edifcios e em reas pblicas apontava

    as mltiplas possibilidades da moderna sociedade urbana e, com isso, criou a imagem que o

    Brasil procurava apresentar ao mundo; eram tapumes atrs dos quais se pretendia esconder

    1 Sevcenko, 1983, p.47.

    2 Fabris, 1993, p.135.

  • Imagens do passado

    8

    processos culturais definidores de uma identidade real, embora ainda no moderna e

    adequada nao pretendida pelas elites.

    O distanciamento entre as elites polticas e intelectuais e a sociedade, no que diz

    respeito construo da nacionalidade, foi objeto de um livro de Alberto Torres, publicado

    em 1914, O problema nacional brasileiro, no qual o autor conclamava os intelectuais

    brasileiros a se tornarem fora social atuante nas tarefas prioritrias do momento: forjar a

    conscincia nacional e promover a organizao nacional. Com isso, admitia-se a

    incompetncia de os governos republicanos forjarem a nao, competindo aos intelectuais

    parte dessa responsabilidade.

    Pcaut3 observa que, a partir de 1915, o nacionalismo invadiu a cultura brasileira

    assumindo formas diversas e dando origem a publicaes, como a Revista do Brasil, e a

    associaes entre as quais a Liga de Defesa Nacional, criada em 1916, no Rio de Janeiro,

    pela qual Olavo Bilac faria chegar a amplas camadas da populao o ideal nacionalista

    mediante pregaes de carter patritico e cvico.

    Outras ligas se multiplicaram em diversos Estados da federao, todas contando

    com a participao de intelectuais e professores. Em So Paulo, a Liga Nacionalista,

    fundada em 1916 por estudantes da Faculdade de Direito, contava com professores de

    diversas faculdades paulistanas, industriais, advogados, engenheiros e jornalistas entre os

    quais, Jlio de Mesquita e Jlio de Mesquita Filho, proprietrios do jornal O Estado de S.

    Paulo de incontestvel tendncia liberal. Entre os objetivos da Liga estava a promoo do

    civismo e da educao.

    Como observa Nagle,4 durante as dcadas de 1910 e de 1920 o pas viveu um clima

    de entusiasmo pela educao. A nfase dada ao ensino tinha suas razes no projeto

    republicano construdo nos ltimos anos do Imprio; nesse momento, porm, relacionava-

    se regenerao do prprio projeto republicano, especialmente a falta de representao

    poltica que, segundo os oposicionistas, guardava ntima relao com a manuteno do

    povo em permanente estado de ignorncia. Atribua-se escola o poder de regenerar o

    homem, de torn-lo cidado apto ao exerccio da poltica. Nesse sentido, o ensino da

    3 Pcaut, 1990.

    4 Nagle, 1977.

  • Imagens do passado

    9

    Histria, j bastante valorizado, passou a ser exaltado por seu potencial disciplinador e

    formador. No apenas nas salas de aula, mas nas festas cvicas e comemorativas de datas e

    heris nacionais, a histria fornecia continuadamente os instrumento simblicos necessrios

    moldagem do trabalhador-cidado brasileiro.5

    Logo aps a independncia coubera histria a criao de um corpo de

    representaes simblicas estabelecedor de um perfil para a nascente nao brasileira.

    Criada pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro6 como Histria Nacional refletia

    ressalta Schwarcz7 a posio dos membros do Instituto, grupo formado pela elite

    portadora de ttulos nobilirquicos, vinculada ao poder, e por intelectuais, parte deles

    plenos de ideias patriticas inspiradas no romantismo, quadro no qual a histria significava

    o retorno s origens e o culto ptria e seus heris. Especialmente a partir de 1850, quando

    se intensificaram as relaes entre o imperador e o Instituto, a produo historiogrfica

    desse se voltaria para os efeitos polticos dos fatos e a exaltao das aes heroicas,

    narradas em discursos laudatrios da ptria e da prtica poltica do Imprio.

    Em 1908, explica a mesma autora, o cientificismo comeou a influenciar a produo

    do Instituto. Gradativamente passou-se do historicismo para o positivismo e a histria, at

    ento lio do passado, exemplo, aproximou-se da erudio.

    A histria configurou-se, assim, como memria da nao, campo instituidor de uma

    unanimidade que baniu para a no histria os que ndios, negros ou brancos excludos do

    exerccio da poltica feriam a homogeneidade necessria eficcia das intenes

    unificadoras. Como tal passou a ser ensinada nas escolas e perpetuada, embora

    permanecesse, para a maioria, o registro de uma experincia distante, a verdade criada

    como de todos, mas que no era de ningum.

    Mesmo quando, depois da dcada de 1930, a histria passou a ser entendida como

    conhecimento de uma sociedade sobre seu passado, a histria-memria da nao

    5 Bittencourt, 1988.

    6 Logo aps a emancipao, o Arquivo Nacional foi pensado como espao exclusivo para a guarda dos

    registros documentais da histria brasileira; a instituio, porm, foi instalada apenas em 1838, ano em que

    tambm foi criado, por iniciativa da Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional, entidade privada que

    pretendia incentivar o progresso no pas, o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, que tambm cumpriria

    as finalidades de coligir, metodizar e guardar documentos histricos. Ver Schwarcz, 1989. 7 Schwarcz, 1989.

  • Imagens do passado

    10

    permaneceria um forte componente do imaginrio social, entre outros fatores, porque assim

    continuaria a ser ensinada nas escolas praticamente at o final da dcada de 1960.

    A histria seria evocada como justificativa de inmeras manifestaes que

    pretendiam compor a identidade nacional. Na arquitetura, essa busca resultou no

    neocolonial, movimento de criao de um estilo arquitetnico brasileiro que teve por marco

    inicial o discurso Culto tradio, pronunciado pelo arquiteto portugus radicado no

    Brasil, Ricardo Severo, no Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, em 1912. A esse

    se seguiriam artigos e conferncias por meio dos quais Severo incentivado por Jos

    Mariano Filho, convicto defensor da causa nacional procurou difundir o neocolonial

    que considerava expresso dos valores tradicionais da arquitetura brasileira, em

    contraposio ao ecltico, por ele visto como estranho a este ambiente.8

    Referindo-se ao neocolonial, em 1921, a revista Fon-Fon comentou:

    Cansados de copiar o que fazem os estrangeiros chegamos concluso de que

    necessrio qualquer coisa de acordo com a histria, a raa, a alma da nao ... de

    acordo com o progresso...9

    Concomitantemente, outro movimento propunha a preservao de valores

    representativos do passado nacional ameaados pela expanso do mercado internacional de

    arte e pela remodelao urbana de cidades Salvador, Recife, Rio de Janeiro e So Paulo

    como fatores que provocaram a evaso de objetos de arte nacionais, especialmente da fase

    do barroco, e o desaparecimento de antigas edificaes. Comeam ento a surgir propostas

    de proteo aos bens culturais por meio dos quais se materializava o passado. A emergncia

    de tal cuidado em um momento de exacerbado nacionalismo, entre 1917 e 1935, revela

    certa conscincia da importncia das representaes materiais do passado para a

    conformao da identidade nacional.

    A primeira proposta foi formulada por Wanderley Pinho, membro do Instituto

    Histrico e Geogrfico da Bahia academia que, com suas demais congneres, era guardi

    da histria regional e pretendia estender essa atribuio s representaes materiais da

    8 Apud Fabris, 1987, p.286.

    9 Apud Santos, 1977, p.99.

  • Imagens do passado

    11

    mesma histria.10

    O projeto colocava sob a responsabilidade de uma comisso formada por

    membros da entidade, a proteo dos monumentos pblicos, edifcios particulares de valor

    histrico ou artsticos e os objetos d'arte,de qualquer espcie de ao destruidora ou

    modificadora do tempo e dos homens.11

    No estavam inclusos na proteo pretendida os documentos da histria da nao

    registrados no suporte papel. Valorizados como fontes para a produo de conhecimento

    sobre a histria da ptria, eles foram vistos como objetos de interesse de especialistas e,

    abrigados em arquivos pblicos ou de instituies, como os institutos histricos, atendiam

    tambm ao funcionamento de museus histricos. Esses, por sua vez, foram amplamente

    valorizados desde o sculo XIX, uma vez que se acreditava que os objetos expostos

    permitiam materializar o passado nacional.

    O ano de 1922, quando se comemorou o centenrio da independncia, foi

    especialmente favorvel valorizao dos museus histricos brasileiros. Criou-se ento o

    Museu Histrico Nacional cujo primeiro diretor foi Gustavo Barroso, e, em So Paulo,

    Affonso dEscragnolle Taunay, desde 1917 diretor do Museu Paulista, a montou a Seo

    de Histria.

    Segundo Brefe,12

    no Museu Histrico Nacional, a tradio, a genealogia e a ideia de

    permanncia orientaram as atividades propostas e legitimaram o papel do Imprio e da

    nobreza brasileira na formao da nacionalidade como um processo que se iniciara na

    colnia, quando os bandeirantes alargaram as fronteiras do Brasil.

    Fundadas no conhecimento histrico produzido, respectivamente, no Instituto

    Histrico e Geogrfico Brasileiro e no Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, essas

    interpretaes de passado expressam no campo simblico no apenas as influncias

    presentes em cada uma dessas academias, mas tambm as disputas regionalistas existentes

    no cenrio poltico republicano na dcada de 1920, quando tambm se intensificaram as

    propostas de criao de instituies voltadas para a proteo do patrimnio histrico

    nacional.

    10

    Alm dos projetos citados, foram tambm apresentados Cmara, em 1924, o de autoria do deputado

    mineiro Augusto de Lima e, em 1930, e o do ento deputado pela Bahia, Wanderley Pinho, que seria

    reapresentado em 1935. 11

    Apud Peres, 1974, p. 162. 12

    Brefe, 1999, p.8-49.

  • Imagens do passado

    12

    Por meio dessas instituies seria possvel estender para as cidades as funes

    educacionais e morais exercidas pelos museus, pois os edifcios e monumentos histricos

    sob proteo do poder pblico materializariam a histria ptria em exposies a cu aberto,

    passveis de ampla fluio.

    No ano de 1923, ao apresentar Cmara dos Deputados projeto de criao da

    Inspetoria de Monumentos Histricos dos Estados Unidos do Brasil, o parlamentar

    pernambucano Luiz Cedro orientou-se pela mesma concepo de patrimnio manifesta

    anteriormente por Wanderley Pinho, porm atribuiu-lhe uma funo simblica, a de

    alimentar a nao, pois mobilizava a sua memria.

    uma longa e permanente lembrana faz a perpetuidade dos grandes povos, pois uma

    nao comea a morrer, quando ela esquece. O culto do passado, senhores, no deve

    limitar-se comemorao, como ns costumamos fazer das grandes datas nacionais,

    em discursos de sesses magnas, no hasteamento de bandeira nas reparties pblicas e

    no cio dos feriados nacionais. Comemoremo-lo tambm por outros modos menos

    platnicos, como o de evitar a destruio deste patrimnio que nos deixaram os

    antepassados.13

    Em 1925, outro projeto de criao de um rgo nacional de patrimnio, de autoria

    do parlamentar mineiro Jair Lins, inspirado em tericos franceses e italianos, incorpora em

    seu projeto uma ideia manifesta na Frana em 1793, por ocasio da instalao das

    comisses responsveis pela proteo de monumentos e obras de arte:14

    o valor do

    patrimnio no era apenas o de materializar o passado, mas, tambm, residia em sua

    potencialidade moral e pedaggica.

    Tanto mais eficiente a influncia das obras de arte e histricas na educao

    do povo, quanto, por elas, a instruo se faz como que independentemente da vontade

    de aprender.15

    Lins relacionava, assim, a proteo ao patrimnio a um dos pontos mais caros ao

    iderio liberal das elites brasileiras, a democratizao do ensino. A crena na potencialidade

    13

    Apud Peres, 1974. 14

    Chastel, 1986, p.412. 15

    Brasil, 1980b, p.67.

  • Imagens do passado

    13

    pedaggica do patrimnio seria reafirmada por Mrio de Andrade, posteriormente, ao

    ressaltar que defender o nosso patrimnio histrico e artstico alfabetizao.16

    Apesar da importncia atribuda por alguns intelectuais e polticos aos edifcios

    histricos remanescentes nas cidades brasileiras de Estados onde se concentravam

    monumentos do perodo da colonizao, at a dcada de 1930, a histria e os museus

    permaneciam como canais privilegiados de divulgao do passado. Algumas iniciativas

    oficiais na Bahia, em 1927, e em Pernambuco, em 1928 , criando Inspetorias Estaduais

    de Monumentos Nacionais, resultaram em aes limitadas ao inventrio dos bens locais, em

    razo das restries impostas pela Constituio de 1891, que garantia o exerccio pleno do

    direito de propriedade.

    A juno de alguns fatores, porm, resultaria na transformao desse quadro. A

    perda de tradio parecia iminente, pois o pas se transformava sob o impacto da expanso

    industrial e da metropolizao das capitais da Regio Sul. Em 1930, a instalao de um

    Estado que se proclamava modernizador, construtor de uma nao que sobrepujaria os

    regionalismos, mantenedor da coeso social e guardio dos interesses nacionais, inaugurou

    uma fase de reordenao institucional e administrativa que implicou a ampliao da

    interveno oficial, tambm, no campo da cultura, o que ampliaria a oportunidade de os

    intelectuais orientarem a construo do Brasil moderno por meio do Estado.

    Em 1933, um decreto assinado por Getlio Vargas, ainda chefe do governo

    provisrio, dava mostras de que o governo federal comeava a voltar a ateno para o

    potencial simblico, cvico e mnemnico dos espaos. O decreto17

    erigia Ouro Preto

    cidade desde a dcada anterior valorizada pelos adeptos do neocolonial e pelos modernistas

    por representar a brasilidade que buscavam monumento nacional. Considerando que a

    cidade fora

    teatro de acontecimentos de alto relevo histrico na formao de nossa nacionalidade e

    que possui velhos monumentos, edifcios e templos de arquitetura colonial, verdadeiras

    obras d'arte, que merecem defesa e conservao,18

    16

    Carta de Mrio de Andrade s. d., in Duarte, 1977, p.220-1. 17

    Decreto n.22.928, 12.7.1933, in Brasil, 1980, p.89. 18

    Ibidem.

  • Imagens do passado

    14

    o poder pblico institua o primeiro monumento histrico oficial cuja referncia era o

    sculo XVIII, momento de crescimento da conscincia emancipacionista, de maturidade da

    arte e da arquitetura coloniais, que se tornaria paradigmtico para a atuao do Servio de

    Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Sphan), organizado pelo governo federal em

    1937 com base em um projeto elaborado por Mrio de Andrade, a pedido do ministro de

    Cultura, Gustavo Capanema.19

    A atuao do Sphan baseou-se na noo de monumento histrico. Retomando Riegl,

    Choay20

    observa que monumento artefato construdo com finalidades comemorativas e de

    memria no pode ser confundido com monumento histrico, inveno do presente,

    qualidade possvel de ser atribuda a qualquer objeto do passado com o sentido de torn-lo

    testemunho da histria ou suporte da memria.

    Com os monumentos histricos se comps o patrimnio de todas as naes. Sua

    importncia cresceu durante todo o sculo XIX, paralelamente ao crescimento da

    importncia da histria como um dos elementos bsicos para a formao da conscincia

    nacional. Determinar o patrimnio tornou-se um campo de manipulao simblica de

    grande importncia, uma vez que, como aponta Chastel,21

    a ideia de patrimnio est

    relacionada perpetuidade dos objetos sagrados, essenciais comunidade. A ateno do

    rgo federal de proteo ao patrimnio, criado em 1937, voltou-se, preferencialmente,

    para os monumentos arquitetnicos, religiosos e civis, do perodo colonial, de formas

    simples, to caras aos arquitetos modernistas brasileiros. A ao preservacionista do rgo

    no se limitou a reproduzir, por meio dos documentos materiais do passado, um perfil do

    pas traado pela histria, mas tambm entrelaou-se a dois processos em curso, o desen-

    volvimento da arquitetura moderna e a construo de sua memria, a Histria da

    19

    A organizao do Sphan foi precedida de outras medidas do poder pblico: organizao de um servio de

    proteo aos monumentos histricos e obras de arte, anexo ao Museu Nacional, pelo Decreto n.24.753, de

    14.7.1934; aprovao do Artigo 148 da Constituio de 1934, segundo o qual cabe Unio, aos Estados e aos

    Municpios apoiar os trabalhadores intelectuais e a cultura em geral, bem como proteger os objetos de interesse histrico e o patrimnio artstico do pas. O Sphan foi organizado pelo Decreto n.25, de 30.11.1937. Em 1946 foi transformado em Diretoria sob a sigla Dphan; em 1970 passou a ser Instituto Iphan , e nove anos depois, como Secretaria, voltou a Sphan. Em 1981, mantendo essa sigla, transformou-se em Subsecretaria e, em 1990, passou a denominar-se Instituto Brasileiro de Patrimnio Cultural (IBPC),

    voltando a ser, em 1994, ainda em carter provisrio, Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    (Iphan). 20

    Choay, 1992, p.21-3. 21

    Chastel, 1986, p.406.

  • Imagens do passado

    15

    Arquitetura Brasileira. Ambos correspondiam fase de introduo do estudo da disciplina

    Histria da Arquitetura nos cursos de Arquitetura recm-institudos como campo particular

    de ensino, separado do de Belas Artes, medida essa que atendia necessidade de uma

    formao especfica voltada s exigncias tcnicas e estticas da arquitetura moderna.

    O advento da moderna arquitetura provocaria, portanto, a redefinio do perfil

    profissional do arquiteto. A eles caberia como expresso no 4o

    Congresso Internacional de

    Arquitetura Moderna (CIAM), concludo na capital da Grcia em 1931 a responsabilidade

    de promover as condies de bem-estar e beleza dos ambientes modernos. Isso os

    autorizava, em nome dos princpios de salubridade e de justia social, recomendar a

    substituio de antigos conjuntos arquitetnicos e bairros por espaos planejados de

    trfego, lazer e moradia.

    Tendo como conceito orientador o de monumento histrico, a Carta de Atenas,

    documento final daquele evento e o primeiro a orientar internacionalmente a preservao de

    bens arquitetnicos, consagrava a preservao de exemplares isolados, de valor

    excepcional, expresso de culturas anteriores; tornados monumentos esses remanescentes

    do passado ofereceriam um contraponto racionalidade esttica e eficincia dos

    modernos espaos urbanos. Suas recomendaes seriam plenamente acatadas no Brasil e

    cimentariam a proximidade entre duas funes do profissional arquiteto, restaurar e

    projetar.

    Se, por um lado, a valorizao da arquitetura tradicional brasileira foi motivada pelo

    interesse pela arquitetura moderna, por outro, fazia parte do esforo de explicao do Brasil

    desenvolvido por outras reas de conhecimento, como a Sociologia e a Histria.22

    Em seu estudo sobre o Sphan, Rubino23

    observa que em Casa grande e senzala, de

    Gilberto Freyre, que se explica o exemplar arquitetnico como representao da sociedade

    colonial, e em Lcio Costa que se articula o moderno ao tradicional, por meio da casa

    brasileira. Ambos, assim, vincularam Arquitetura e Histria do Brasil, funo que

    continuaria a marcar a formao dos arquitetos, especialmente os preservacionistas, e que

    aparecia no projeto de Mrio de Andrade para o Servio de Patrimnio Artstico Nacional,

    22

    A produo de obras como Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, Evoluo poltica do Brasil, de Caio

    Prado Junior, ambas publicadas em 1933, e Razes do Brasil, de Srgio Buarque de Holanda, de 1936,

    levaram Mota (1980) a classificar o perodo entre 1933 e 1937 como o redescobrimento do Brasil. 23

    Rubino, 1991.

  • Imagens do passado

    16

    como um dos elementos da arte histrica, embora ampliado para exemplares tpicos das

    diversas escolas e estilos arquitetnicos que se refletiram no Brasil.24

    A valorizao exclusiva da arquitetura tradicional, j se manifestara em 1937,

    quando o assistente da 6 Regio do Sphan, Mrio de Andrade, diante de So Paulo, cidade

    marcada pelo ecletismo, smbolo do progresso e da modernidade presente at mesmo nas

    casas de bairros populares e de classe mdia, ainda que apenas em detalhes decorativos,

    afirmou:

    no possvel entre ns descobrir maravilhas espantosas, do valor das mineiras, das

    baianas, das pernambucanas e paraibanas em principal. A orientao paulista tem que

    se adaptar ao meio; primando a preocupao histrica esttica. Recensear e

    futuramente tombar o pouco que nos resta seiscentista e setecentista, os monumentos

    onde se passaram grandes fatos histricos. Sob o ponto de vista esttico, mais que a

    beleza propriamente (esta quase no existe) tombar os problemas, as solues

    arquitetnicas mais caractersticas e originais.25

    Centrado na histria memria da arquitetura brasileira ponto de vista a partir do qual

    percebia a histria memria da nao, o Sphan estabeleceu uma ortodoxia preservacionista

    que s viria a ser contestada a partir da dcada de 1970, diante de fatores diversos, como a

    intensificao do debate sobre cultura, especialmente do aspecto de suas relaes com o

    Estado, e a ampliao das pesquisas de histria relativas aos perodos do Imprio e da

    Repblica, o que propiciaria a incorporao de novos elementos memria histrica. Alm

    disso, no plano internacional, a discusso sobre patrimnio deslocara-se do objetivo de

    materializar as memrias nacionais e da noo de monumento histrico isolado, para a de

    integrao do patrimnio ao planejamento urbano e territorial e, definitivamente, indstria

    cultura.

    Choay26

    observa que o patrimnio assumiu a representao da cultura ocidental a

    partir da mundializao dos valores e referncias internacionais concernentes a seu trato,

    em especial as convenes e recomendaes da Unesco, entre as quais a da Conferncia

    Geral de Genebra, em l972, na qual se criou a categoria de patrimnio cultural da

    24

    Brasil, 1980b, p.93. 25

    Carta de Mrio de Andrade a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 23.5.1937, in Andrade, 1981, p.69. 26

    Choay, 1992, p.158-86.

  • Imagens do passado

    17

    humanidade para classificar os monumentos histricos de excepcional valor universal,

    quer do ponto de vista da histria, quer do da arte ou da cincia.

    Permaneceria, porm, a capilaridade entre a Histria da Arquitetura brasileira e a

    eleio do patrimnio nacional; aquela buscaria documentar-se nos bens tombados,

    enquanto esta encontraria na Histria da Arquitetura brasileira as justificativas para o

    reconhecimento e proteo oficiais. E foi com as escolas de Arquitetura que o Sphan

    divulgou sua ortodoxia e formou a mentalidade preservacionista dos futuros profissionais

    do patrimnio complementada pela prtica, em estgios no Patrimnio. Antnio Luiz

    Dias de Andrade, renomado profissional da rea preservacionista, formado no incio da

    dcada de 1970, assim narrou sua experincia:

    sobre a questo do patrimnio, sobre o problema da preservao, na escola comentava-

    se um problema que surgia, mas muito pouco sistematizado ... as questes do

    patrimnio surgiam no diretamente, mas no curso dos estudos sobre histria da

    arquitetura ... estavam relacionadas mais com a pesquisa sobre a arquitetura tradicional

    do que com a questo terica ou conceitual do patrimnio, e se dava muito em funo

    da explicao da arquitetura brasileira.27

    A viso do significado dessa relao se completa com a vivncia de turmas

    anteriores, da dcada de 1950, da qual fala Nestor Goulart Reis Filho.28

    Nesse perodo, o

    Grmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de So Paulo mantinha atividades

    culturais de incentivo ao conhecimento da arquitetura tradicional, por meio do Centro de

    Estudos Folclricos. Influenciados por Lus Saia, diretor e personificao do Patrimnio

    em So Paulo, e sob o olhar inspirador de Mrio de Andrade, cujo retrato pendia de uma

    das paredes da sala onde funcionava o Grmio, os estudantes organizavam estudos e le-

    vantamentos de campo sobre a arquitetura tradicional paulista.

    27

    Entrevista concedida autora em 20.9.1991. 28

    Entrevista concedida autora em 14.10.1991.

  • Imagens do passado

    18

    De So Paulo para o Brasil

    Na primeira metade da dcada de 1930, a oposio liberal paulista concentrada em

    torno da famlia Mesquita, proprietria do jornal O Estado de S. Paulo, conseguiria realizar

    parte de um programa de atuao, que se estruturara na dcada anterior, de combate crise

    nacional, que acreditava haver sido causada com o estabelecimento do domnio

    oligrquico na Repblica.29

    Em seu entender, o combate oligarquia se faria com a

    democratizao do ensino, fator que, combatendo o analfabetismo, possibilitaria a amplia-

    o do direito de voto; acreditava-se que, estendida para o grau secundrio, a ampliao das

    oportunidades de formao escolar permitiria tambm a seleo das elites dirigentes em

    todas as classes sociais.

    O desenvolvimento desse projeto dependia de condies polticas, em parte

    alcanadas em 1933, quando Armando de Salles Oliveira foi nomeado interventor em So

    Paulo. No ano seguinte, por iniciativa do poder estadual, foi criada a Universidade de So

    Paulo, congregando as faculdades j existentes em torno da recm-criada Faculdade de

    Filosofia, Cincias e Letras cujo objetivo primeiro era a formao de professores para o

    curso secundrio, considerado celeiro das elites polticas.

    A inteno de promover o desenvolvimento cultural e educacional resultou tambm

    na formao do Departamento de Cultura da Prefeitura de So Paulo, cidade cujo governo

    estava nas mos da oposio liberal. Criado em 1934, segundo projeto de Mrio de

    Andrade e Paulo Duarte, o Departamento concentrou suas atividades na expanso da rede

    de bibliotecas pblicas, na organizao de arquivos documentais, na criao de parques

    infantis e no desenvolvimento de pesquisas, especialmente as sociolgicas, etnogrficas e

    folclricas.30

    A preocupao com o resgate da cultura paulista faria Mrio de Andrade, aps a

    organizao do Departamento, propor a ampliao de suas atribuies para a defesa do

    patrimnio histrico e artstico. Em carta dirigida a Rodrigo Mello Franco de Andrade, ele

    transcreveu o Artigo 180 do Ato 1.146 da Consolidao da Organizao Geral da

    Prefeitura, que colocava sob responsabilidade do Diretor do Departamento de Cultura o

    29

    Ver Cardoso, 1982. 30

    Ver Duarte, 1977.

  • Imagens do passado

    19

    traar, organizar e fazer executar o plano geral do tombamento de defesa do patrimnio

    artstico e histrico do Municpio.31

    A ideia de proteo oficial ao patrimnio, antes s defendida pelos cultualistas do

    passado, se incorporara ao iderio de modernizao do pas, abraado pelos intelectuais,

    direta ou indiretamente, relacionados ao modernismo e, por meio deles, como condio de

    sua prpria realizao, foi vinculada ao projeto da oposio liberal paulista.

    No centro dessa incorporao est o pensamento de Mrio de Andrade, no qual o

    interesse pelas tradies mveis como a dana, a poesia e a cantiga populares, nas quais

    ele fundava a brasilidade, espcie de civilizao especfica capaz de inserir os brasileiros na

    universalidade moderna, sem perder sua identidade fundiu-se ao interesse das tradies

    imveis, provavelmente a partir do conhecimento da obra de Gilberto Freyre e de Lcio

    Costa, bem como do contato com o cultualismo bandeirante do Instituto Histrico e

    Geogrfico de So Paulo, ao qual, como grande parte dos intelectuais da poca, fora

    filiado.32

    Paulo Duarte, companheiro de Mrio de Andrade no Departamento de Cultura,

    eleito deputado pelo Partido Constitucionalista, em 1933, procuraria estender o iderio

    daquela instituio para o Estado de So Paulo e, posteriormente, para o Brasil, caso o

    candidato da oposio democrtica paulista presidncia da Repblica, Armando de Salles

    Oliveira, vencesse as eleies programadas para 1938. Seria ento criado o Instituto

    Brasileiro de Cultura, rgo que centralizaria os institutos estaduais a serem organizados a

    partir do modelo paulista proposto por Paulo Duarte. Tratava-se de dar o melhor de So

    Paulo para melhorar o Brasil. Duarte pretendia estabelecer estreita vinculao entre os

    institutos e as universidades; os primeiros, sob a forma jurdica de fundaes, receberiam

    subvenes do Estado, segundo o previsto pela Constituio de 1934, uma porcentagem de

    impostos destinada aos servios educativos.33

    No segundo semestre de 1936, antes que tramitasse no Congresso Nacional o

    projeto de criao do Servio de Patrimnio, Paulo Duarte preparava a organizao do

    31

    Carta de 6.4.1937, in Andrade, 1981, p.65. 32

    Andrade, 1976. 33

    Duarte, 1977, p.61.

  • Imagens do passado

    20

    departamento de patrimnio paulista. Para isso, pretendia tomar como modelo o projeto

    elaborado por Mrio de Andrade a pedido de Gustavo Capanema, no incio daquele ano.

    A inteno de Paulo Duarte colocaria em cuidados Mrio de Andrade e Rodrigo

    Mello Franco de Andrade, que procuraram contornar possveis mal-entendidos, uma vez

    que So Paulo era um reduto de oposio a Vargas e a criao de um rgo estadual com a

    mesma finalidade do servio federal poderia trazer problemas de atribuio e ferir as

    perspectivas centralizadoras da Unio. De fato, Capanema solicitaria

    retardar por algum tempo a apresentao do projeto estadual, at que se saiba ao certo

    o que a Cmara far do servio federal.34

    Em outubro de 1936, Capanema e Rodrigo elaboraram a mensagem presidencial que

    remetia o anteprojeto do Sphan Cmara. Diante disso, Paulo Duarte adiou a apresentao

    de seu projeto de modo a incorporar artigos de interesse que porventura iriam constar da lei

    federal. Um ano depois nada se resolvera em relao ao Servio Nacional e Duarte

    apresentou seu projeto ao Legislativo paulista.35

    O fato foi precedido de intensa campanha

    entre junho e novembro de 1937, no jornal O Estado de S. Paulo.

    compreensvel que O Estado, porta-voz de parte da oposio democrtica

    paulista, dirio que prestava total apoio a Armando de Salles Oliveira, tenha abraado a

    defesa do Departamento de Patrimnio Histrico e Artstico de So Paulo.

    Durante aproximadamente cinco meses foram publicados artigos e discursos de

    Paulo Duarte, editoriais, ofcios, comentrios e cartas de apoio de intelectuais e instituies

    to diversas como a Academia Paulista de Letras, a Sociedade de Sociologia, o Instituto de

    Estudos Genealgicos, a Sociedade de Etnografia e Folclore e o Instituto Histrico e

    Geogrfico de So Paulo. Este passaria a coordenar a campanha um ms aps seu

    lanamento.

    A exemplo do que ocorrera na Frana no final do sculo XVIII quando, ao

    alcanar o poder a ala moderada da burguesia consagrou o termo vandalismo como crime

    contra o patrimnio , a campanha paulista tambm opunha vandalismo e proteo.

    34

    Carta de Rodrigo M. F. de Andrade para Mrio de Andrade, em 25.9.1936, in Andrade, 1987, p.121.

    35 Projeto de Lei n.279, apresentado na 74

    a Sesso da Assembleia Legislativa de So Paulo, em 7 de outubro

    de 1937.

  • Imagens do passado

    21

    Intitulada Contra o vandalismo e o extermnio, ela mobilizou liberais e conservadores aos

    quais, por razes diversas, parecia imprescindvel salvar os documentos materiais da

    histria de So Paulo,36 ameaados pelo progresso, pela incria dos homens estrangeiros

    indiferentes ou caboclos broncos, em suma, o povo inculto e pelo descuido dos poderes

    pblicos.

    Para os liberais, a ao de proteger o patrimnio guardava um carter educativo.

    Plinio Ayrosa, em um artigo no qual defendia a criao do Departamento, apontava a falta

    de amor ao passado como um caracterstica do nosso povo cujo cosmopolitismo impedia a

    formao de uma conscincia nacional; as instituies culturais, segundo Ayrosa, tinham o

    papel de aproximar o povo das coisas de sua terra.37

    Do ponto de vista conservador, a iniciativa de Paulo Duarte propiciaria o resgate do

    que se supunha estar ameaado pela ordem social urbana, ao mesmo tempo em que

    representava o reconhecimento do valor de um passado que se julgava comum. Afonso Jos

    de Carvalho, em discurso pronunciado no Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo,

    classificou a criao de um rgo de patrimnio como um esforo de

    exaltao e reabilitao dos homens e dos fatos at ento nunca desenvolvido atravs

    da conservao das verdadeiras testemunhas imveis da arte, do engenho e da vontade

    dos antigos vares formadores da histria bandeirante.38

    Os remanescentes materiais que referenciavam opinies to diversas compunham

    um s corpo representativo, o da histria bandeirante. Essa fora construda desde o final do

    sculo XIX no interior do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo por uma elite que

    pretendia estruturar a Repblica. Como registra Schwarcz,39

    construiu-se uma histria

    regional que procurava dar conta da totalidade brasileira.

    Sintetizada na figura do bandeirante, a histria paulista foi revigorada durante a

    dcada de 1920, momento de avano da oposio democrtica, que a usaria como emblema,

    e do nacionalismo, no quadro do qual se impunha o conhecimento do nosso passado,

    36

    Duarte, 1938, p.29. 37

    Publicado em 16.6.1937, in Duarte, 1938, p.172. 38

    Sesso de 5.10.1937, in Duarte, 1938, p.224. 39

    Schwarcz, 1989, p.45-50.

  • Imagens do passado

    22

    tambm como fator de nacionalizao do filho do imigrante, condio necessria para se

    constituir em bases slidas a mentalidade de nova gerao de brasileiros.40

    A veemente retrica de Paulo Duarte encontrou, por isso, campo frtil ao apontar o

    calamitoso estado de conservao dos documentos materiais da histria de So Paulo,

    como Cotia que j no tem nada da Acutia de Ferno Dias Pais e Gaspar Godi

    Moreira.41 Ento, como atualmente, a ideia de preservar estava diretamente relacionada

    de perda e implicava o desejo de retomada total de situaes que s o podiam ser

    fragmentariamente, uma vez que o passado impossvel de ser reconstitudo em sua

    totalidade e sentido.

    Baseado no estudo de Mrio de Andrade, no anteprojeto de lei redigido por Rodrigo

    Mello Franco de Andrade e nas legislaes francesa e italiana, Paulo Duarte props um

    Departamento cuja atribuio era

    prover e superintender aos servios de organizao, guarda, tombamento, preservao,

    defesa, enriquecimento e propaganda do patrimnio histrico e artstico de So

    Paulo.42

    Cabia tambm ao Departamento a administrao de alguns museus a serem criados

    no Estado, o controle do trabalho de misses cientficas estrangeiras e a promoo de

    publicaes.

    O Departamento seria composto por um Conselho Deliberativo, do qual fariam parte

    oito profissionais historiador, etnlogo, arquelogo, msico, pintor, escultor, arquiteto e

    biblifilo com mandato de dois anos e substituio de apenas 50% dos conselheiros a

    cada ano, de modo a permitir a continuidade dos trabalhos.43

    Enquanto o projeto de Paulo Duarte estava sendo revisto pela Comisso de

    Educao e Cultura da Assembleia paulista aps a apresentao de 54 emendas cuja

    finalidade era desvincular a proteo do patrimnio histrico da proteo do patrimnio

    40

    Discurso de Alfredo Ellis, in So Paulo, Cmara dos Deputados, Anais da Sesso Ordinria de 1926, 51a

    sesso, 30.9.1926. 41

    Artigo publicado no Suplemento em Rotogravura de O Estado de S. Paulo em 1937, in Duarte 1938, p.29. 42

    Projeto de Lei n.279. Anais da Sesso Ordinria da Assemblia Legislativa do Estado de So Paulo, 1937. 43

    Ibidem.

  • Imagens do passado

    23

    artstico, proposta que atendia os interesses contrrios integrao da Pinacoteca44

    ao

    Museu de Artes Plsticas a ser criado, subordinado ao Departamento do Patrimnio ,

    aconteceu o golpe do Estado Novo, em 10 de novembro, em decorrncia do qual foram

    suspensos o funcionamento do legislativo e as eleies.

    Pouco tempo depois, uma carta de Rodrigo Mello Franco45

    a Mrio de Andrade

    revela ter havido alguma movimentao provavelmente encabeada pelo prprio Paulo

    Duarte para a criao do Departamento, por meio de decreto do Executivo paulista. De

    fato, nenhuma medida se concretizou.

    Outras tentativas

    De 1937 a 1968, a instituio do patrimnio de So Paulo foi atribuio exclusiva

    do poder federal. Desta atuao resultou o reconhecimento de edificaes remanescentes do

    povoamento do litoral, as casas rurais bandeiristas, sedes de antigas fazendas de caf,

    capelas e igrejas dos seiscentos, como representaes mximas do passado paulista. A

    importncia desse trabalho regional foi inestimvel. Porm, em parte pela perspectiva que o

    norteava, o conhecimento da arquitetura regional acabou por assumir caractersticas de

    assunto acadmico, que dizia respeito apenas a especialistas, distanciando do cotidiano da

    maioria da populao, para a qual os bens eram apresentados como portadores de

    importncia para a histria da nao e da arquitetura brasileira. Desse modo, bens antes

    vistos como integrantes da paisagem cotidiana tenderam a representar um universo distante,

    alheio ao cidado comum, espcie de ddivas resgatadas do esquecimento pela ao heroica

    de pioneiros.

    Do ponto de vista da sociedade, esse quadro se prolongaria at a dcada de 1970,

    quando a preservao ambiental e, depois, a da memria passaram a ser vistas como um

    direito a ser conquistado ou mantido. compreensvel, portanto, que as propostas de

    extenso da responsabilidade do poder estadual ao patrimnio que se seguiram de Paulo

    Duarte, assim como esta, no partissem de reivindicaes da sociedade, mas nascessem nos

    44

    Desde janeiro de 1932, por fora do Decreto n.5.361, a Pinacoteca achava-se sob guarda da Escola de Belas

    Artes, entidade privada dirigida por Paulo Vergueiro Lopes de Leo. 45

    Carta de 3.12.1937, in Andrade, 1987, p.141.

  • Imagens do passado

    24

    pequenos crculos voltados para a cultura e para a histria, entendida como fator de civismo

    e tradio. Para essas elites, a destruio dos bens devia-se ignorncia da populao que

    no permitia que se compreendesse o alcance histrico e cultural dos bens que tinha a seu

    redor.

    No incio da dcada de 1950, usando uma das competncias do rgo federal, a

    realizao de acordos com vista a melhor coordenao e desenvolvimento das atividades

    relativas proteo do patrimnio,46 Lus Saia, diretor do 4o Distrito do Dphan, em So

    Paulo, sugeriu a elaborao de um projeto apresentado pelo deputado Antnio da Cunha

    Bueno ao legislativo. Tornado Lei n.1.048 em 5 de junho de 1951 pelo governador Lucas

    Nogueira Garcez, previa a criao de um servio de patrimnio que atuaria sempre em

    colaborao com o rgo federal. O acordo deveria ser elaborado por uma comisso e

    aprovado pelo Legislativo.

    Em seu trabalho Morada paulista, Saia47

    no faz referncia lei de 1951, mas

    lamenta que, em 1953, tenha desaparecido misteriosamente nos escaninhos do Palcio e da

    poltica um projeto entregue ao governador. Tratava-se, provavelmente, do estudo a ser

    aprovado pelo Legislativo para funcionamento da lei, cujo documento bsico foi

    denominado Sugestes para uma frmula de colaborao.

    Esse documento,48

    possivelmente elaborado com a colaborao de Saia, demonstra

    que, mais do que transformaes na estrutura de proteo ao patrimnio, buscava-se

    ampliar a possibilidade de ao do rgo federal. O Sugestes estabelecia uma espcie de

    hierarquia cultural dos bens arquitetnicos cuja responsabilidade financeira de manuteno

    era dividida entre o poder estadual e o federal, a saber: As casas grandes rurais do segundo

    sculo, ... documentos nicos em todo o Brasil, e as residncias urbanas e rurais do sculo

    XVIII, das quais interessava resguardar pelo menos um documento de cada tipo de

    arquitetura, caberiam ao Dphan. Aquele exemplares que, embora excelentes documentos,

    no apresentam importncia nacional ficariam a cargo dos cofres estaduais cabendo,

    porm, ao rgo federal a exclusividade de orientao na aplicao de verbas e de

    assistncia tcnica.

    46

    Decreto-lei n.25, Art.23, in Brasil, 1980b, p.111-9. 47

    Saia, 1972, p.56.

    48 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan), Arquivo 9

    o CR, Pasta AD24.1, doc. 006.

  • Imagens do passado

    25

    Mantinha-se, portanto, a garantia de que os cuidados com o patrimnio

    continuariam a ser aplicados segundo a prtica j estabelecida e, alm disso, que o trato

    com os documentos da Histria da Arquitetura permaneceria sob o controle do Dphan. Tais

    cuidados revelam ainda o esprit de corps existente entre os poucos profissionais do

    patrimnio, extremamente zelosos de sua atividade e posio. A distino de atribuies

    no aparecia no anteprojeto do qual resultou a lei; segundo esse documento, ao servio

    estadual caberia colaborar com o Dphan e velar pela preservao do acervo histrico e

    artstico regional. Suas atribuies seriam:

    inventariar, estudar e classificar as coisas mveis e imveis de valor histrico, artstico,

    arqueolgico e etnogrfico, assim como os stios naturais a eles equiparados e

    quaisquer outros bens de natureza equivalente.49

    No seria da competncia do servio estadual tombar, mas apenas organizar uma

    listagem de bens que, embora no tombados pelo rgo federal, devessem ser preservados

    e zelados como parte integrante do patrimnio histrico e artstico de So Paulo.50

    Em 1957, Jnio Quadros, ento frente do governo do Estado, manifestou a

    inteno de ampliar a ao cultural de seu governo, nomeando uma comisso composta por

    Srgio Buarque de Holanda, Lourival Gomes Machado e Ernani da Silva Bruno, para

    elaborar o anteprojeto de criao do Servio de Patrimnio Histrico e Artstico do Estado

    de So Paulo.51

    Lus Saia52

    informa que essa comisso retomou as sugestes anteriores e quando o

    trabalho j estava quase terminando, uma pendncia entre o governador e os professores da

    Universidade provocou a demisso de Gomes Machado e Buarque de Holanda, substitudos

    por Paulo Duarte a Herbert Baldus.

    Segundo notcias veiculadas pela imprensa, pretendeu-se, ento, criar um rgo com

    plenos poderes. Em razo disso, um editorial de O Estado de S. Paulo, depois de elogiar a

    49

    Ibidem, doc. 002. 50

    Ibidem, doc. 002. 51

    Dirio de So Paulo, 28.10.1957, p.12. 52

    Saia, 1972, p.56.

  • Imagens do passado

    26

    ideia, recomendava a realizao de um convnio entre Estado e Unio de modo a serem

    evitadas prejudiciais concorrncia e interferncia.53

    Ainda dessa vez o servio estadual de proteo ao patrimnio no seria constitudo.

    A administrao Quadros optou por orientar sua ao no campo da cultura histrica para

    a instalao de museus histricos e pedaggicos na sede de diversos municpios paulistas.

    Partindo de uma perspectiva cvica e disciplinadora, os museus visavam manter

    permanente culto das tradies nacionais, incentivando as interpretaes de dados

    histricos, o trato constante coma documentao, a evocao dos grandes vultos da histria

    ptria e os seus lances gloriosos, com o duplo objetivo de esclarecer e edificar, contribuindo

    para formar uma vigilante conscincia cvica entre os estudantes de nossas escolas,

    conforme esclarecia um documento oficial.54

    Com o objetivo de complementar a ao dos museus, o governo estadual tambm

    criou o Servio de Reconstituio Histrica Municipal,55

    que, com unidades instaladas em

    cada municpio, deveria incentivar a pesquisa das histrias locais.

    Posteriormente, a instalao de um rgo estadual de patrimnio foi includa, em

    1962, entre as propostas do 2 Plano de Ao do Governo Carvalho Pinto, mas tambm no

    se efetivou.

    53

    O Estado de S. Paulo, 29.11.1957, p.2. 54

    Mensagem do governador Jnio da Silva Quadros Assembleia Legislativa em 14.3.1958, So Paulo:

    Imprensa Oficial, 1958, p.162. Os Museus Histricos Pedaggicos foram criados pelo Decreto n.26.218 de

    3.8.1956. 55

    Decreto n.32.767 de 16.6.1958.

  • Imagens do passado

    27

    Um servio de patrimnio de So Paulo

    A proteo do governo paulista se estenderia ao patrimnio histrico apenas em

    1968, com a criao do Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Artstico e Turstico

    (Condephat), cujas atribuies um ano depois alcanaram a guarda do patrimnio

    arqueolgico, razo do acrscimo de mais uma vogal em sua sigla.

    A criao do Condephaat tornou-se possvel quando fraes conservadoras e

    tradicionalistas da burguesia paulista buscaram reafirmar a identidade bandeirante nos

    limites do quadro autoritrio estabelecido em 1964. O ato protetor pressupunha uma

    ameaa de destruio quase sempre atribuda, pelos que escrevem a histria, queles que

    nela no so includos. Essa ideia j estivera presente na campanha de Paulo Duarte,

    Contra o vandalismo e o extermnio, mostrando que de h muito as elites

    intelectualizadas de So Paulo haviam entendido a proteo do patrimnio como uma

    misso civilizadora.

    Proteger o patrimnio era mais um trao distintivo desse grupo em relao aos

    demais que compunham a sociedade. Em seu discurso de final de mandato, em 1971, Lucia

    Piza Figueira de Mello Falkenberg, primeira presidente e uma das idealizadoras do

    Condephaat, referindo-se aos conselheiros afirmou:

    Cada um de ns, independentemente, em diferentes posies e em diferentes

    situaes, h muito lutava desesperadamente em defesa deste patrimnio que

    desaparecia dia a dia em mos ignorantes, de interesses particulares e acima de tudo

    dos que desconhecem o que brasilidade.1

    As condies propcias criao do Condephaat surgiram durante a gesto de

    Roberto Costa de Abreu Sodr, em 1967, eleito governador pela Assembleia Legislativa.

    1 IBPC, Arquivo 9 CR, Pasta AD24.2, doc. 005.

  • Imagens do passado

    28

    O Grupo Executivo da Reforma Administrativa (Gera), por ele institudo,

    reorganizou a administrao estadual criando, entre outros rgos, a Secretaria de Cultura,

    Esporte e Turismo, qual foram sendo agregadas instituies culturais antes locadas nas

    Secretarias de Governo e de Educao.2

    Um dos responsveis pelo Gera, Lus Dria,3 observa que no existia ento um

    programa de governo articulado antecipadamente, o que daria chance concretizao de

    propostas de diferentes setores da sociedade, segundo sua possibilidade de acesso aos

    canais de deciso. Assim, Jos Bonifcio Coutinho Nogueira, em 1967, articulou a

    organizao da Fundao Padre Anchieta,4 destinada a promover atividades educacionais e

    culturais pelo rdio e pela televiso. Luiz Arrbas Martins, secretrio do Planejamento e,

    depois, da Fazenda, empenhou-se na organizao do Festival de Inverno de Campos do

    Jordo, na instalao do Museu de Arte Sacra5 e, com a assessoria de Waldisa Russio, dos

    Museus da Imagem e do Som,6 da Casa Brasileira

    7 e do Pao das Artes.

    8

    Tais iniciativas, inscritas no quadro da expanso do mercado cultural, no

    obedeceram a um plano estabelecido a partir de uma poltica de governo, mas refletiram,

    segundo Waldisa Russio,9 os projetos de uma vanguarda poltica e intelectual que pde

    operar aproveitando contradies do governo autoritrio e traduzindo, sua maneira, a

    obrigao constitucional de o Estado amparar a cultura. Congregando oposicionistas de

    diversos matizes, essa vanguarda procuraria superar o didatismo que marcara o discurso

    nacional-populista e projetar a popularizao de uma viso erudita da cultura brasileira.10

    2 Na Secretaria de Cultura, criada pelo Decreto n.49.165 de 29.12.1967, foram sendo locados o Arquivo do

    Estado, o Servio de Museus Histricos, o Servio de Fiscalizao Artstica, a Pinacoteca e o Conselho

    Estadual de Cultura. 3 Entrevista concedida autora em 21.2.1992.

    4 Lei n.9.849, de 26.9.1967.

    5 Decreto-lei de 28.10.1969.

    6 Decreto n.247 de 29.5.1970.

    7 Decreto n.246 de 29.5.1970.

    8 Decreto n.52.423 de 25.3.1970.

    9 Entrevista a Maria Lucia Pinheiro Ramalho e Walter Pires, em 25.4.1984, Centro de Documentao do

    Condephaat. 10

    Seu projeto mais ambicioso foi a criao do Centro Estadual de Cultura cuja proposta coube a um grupo

    especial organizado em 1970; os estudos foram interrompidos na gesto Laudo Natel. O Centro, integrado ao

    Palcio dos Campos Elseos onde deveria ser instalado o Museu da Civilizao Urbana do Caf, segundo proposta de Paulo Emlio Salles Gomes , concentraria a maior parte das atividades culturais promovidas pelo governo; teria teatros, salas de projeo, de conferncias e atelis.

  • Imagens do passado

    29

    Chama a ateno que o esforo dessa vanguarda no abarcasse a atividade

    patrimonialista. Se isso, por um lado, se relaciona prpria postura dos preservacionistas

    que protegiam a rea como um campo de atuao de portadores de saber arquitetnico ,

    por outro, provavelmente, deveu-se a concepo de ao cultural do Estado, que desde

    ento privilegiava o espetculo e as artes plsticas limitando o cuidado com a memria a

    criao de arquivos e museus.

    A rea do patrimnio histrico configurava-se, portanto, como de atividade cultural

    no prioritria, distante, cujos contornos eram difusos, afeta a poucos profissionais da

    arquitetura e eruditos que viam na histria uma forma de expresso de seus conhecimentos

    e de culto ao passado. Este ltimo aspecto, em particular, talvez motivasse o pequeno

    interesse dos profissionais da histria pelo patrimnio; esses, em grande parte, concebendo

    a histria como conhecimento cientfico da sociedade, restringiam suas atividades a

    docncia.

    Assim a proposta de criao de um rgo de defesa do patrimnio pde impor-se a

    partir da mesma matriz conservadora e tradicionalista que influra, por intermdio de

    Vinicio Stein Campos, na criao dos Museus Histricos e Pedaggicos e do Servio de

    Reconstituio Histrica, na segunda metade da dcada de 1950, durante o governo Jnio

    Quadros.

    Vinicio Stein Campos e Lucia Falkenberg estavam entre os fundadores do Instituto

    Histrico e Geogrfico de Guaruj e Bertioga, criado em 1958 e, dois anos depois,

    reconhecido como de utilidade pblica. Entre seus objetivos constava o de

    identificar e preservar os marcos referenciais da colonizao portuguesa no litoral

    paulista, desde o sculo XVI, que se encontravam em completo abandono e cuja perda

    seria inestimvel constituio da memria social.11

    A ao do Instituto ia ao encontro do que preconizava o Decreto Estadual de 1958

    referente reconstituio do quadro histrico dos municpios paulistas; ele promoveria

    cursos, comemoraes cvicas, organizaria museus e incentivaria o restauro de

    remanescentes da ocupao lusitana no litoral.

    11

    IHGGB, s.n.t., p.13.

  • Imagens do passado

    30

    Museus Pedaggicos, Servios de Reconstituio Histrica e Instituto afiguram-se

    pontos constitutivos de um mesmo projeto de defesa da tradio que se completou com a

    criao do Condephaat. Como observou Lucia Falkenberg, o Conselho atendia urgncia

    de coibir as destruies sucessivas que vinham dizimando o patrimnio cultural de So

    Paulo.12 A proteo pretendida, embora formalmente no difira da proposta pelo rgo

    federal de patrimnio, se origina de uma perspectiva diversa que guardava um profundo

    sentido cvico; isso e o interesse em promover o turismo fizeram que o governo paulista

    acampasse a idia de proteger bens culturais.

    A interveno do Estado na cultura, que, desde 1964, se tornara incisiva, alcanaria

    o patrimnio histrico sob o ponto de vista de sua valorizao econmica.13

    Esse aspecto

    tornara-se relevante no apenas no Brasil. O documento final do encontro promovido pelo

    Departamento de Assuntos Culturais da Organizao dos Estados Americanos (OEA),

    realizada em Quito, em novembro de 1967, do qual o Brasil foi signatrio, recomendava

    que projetos de valorizao do patrimnio monumental fizessem parte dos planos de

    desenvolvimento nacional e fossem realizados simultaneamente com o equipamento

    turstico das regies envolvidas. Recomendava-se, ainda, a cooperao dos interesses

    privados e o respaldo da opinio pblica para o desenvolvimento dos projetos.14

    A explorao sistemtica das atividades tursticas estava entre as intenes do

    governo Castelo Branco. Ele institura o Conselho Nacional de Turismo e a Empresa

    Brasileira de Turismo (Embratur),15

    ambos voltados a coordenar as atividades do turismo s

    necessidades do desenvolvimento econmico e cultural, e o Sistema Nacional de Turismo,

    esse em 1967, ano em que tambm se realizou o I Encontro Oficial de Turismo Nacional.

    Tratava-se de fomentar uma atividade econmica que atendia ao desenvolvimento social,

    meta que com a segurana e a integrao nacionais constituam o ncleo da poltica do

    governo federal. A valorizao turstica do patrimnio j se mostrara eficiente em outros

    12

    O Estado de S. Paulo, 18.3.1971, p.5. 13

    O dever do Estado amparara cultura foi firmado no Artigo 180 da Constituio Federal e na Constituio

    Estadual de 1967, Artigo 128. Miceli (1984) observa que, no mbito federal, a presena do Estado foi

    proporcional impossibilidade de autofinanciamento de uma atividade o que, entre outros fatores,

    impulsionou uma postura eminentemente patrimonial que se voltava quer para a restaurao de monumentos de pedra e cal e outras de arte do passado ... como para as atividades que no encontravam receptividade no mercado de bens culturais. 14

    Encontro de Quito, in Unisinos, 1986, p.75. 15

    Decreto-lei n.55, de 18.11.1966.

  • Imagens do passado

    31

    pases e, alm disso, possibilitava a manipulao de um universo simblico de considervel

    importncia para o reforo do civismo. A propaganda dos monumentos histricos,

    juntamente com as das festas tpicas e das belezas naturais, promoveria aos olhos do

    mundo e dos brasileiros a imagem de um pas com tradio e potencialidade para enfrentar

    o futuro.

    Em So Paulo, o governador Sodr promoveria em 1967 uma reforma

    administrativa que uniu as atividades oficiais de turismo s da cultura e esportes, tendo por

    objetivo, entre outros, o de melhor coorden-las;16

    assim foi criada a Secretaria de Cultura,

    Esporte e Turismo, qual ficaria subordinado o rgo de preservao do patrimnio criado

    no mesmo governo. At ento, as questes culturais haviam sido tratadas no mbito da

    Secretaria de Educao; a criao de uma secretaria voltada para os negcios da cultura se

    daria apenas quando essa j se configurara como indstria no Brasil e como tal passara a

    interessar ao poder pblico.

    A criao do rgo de proteo ao patrimnio em So Paulo inscreveu-se nos

    contornos do culto cvico ao passado e da consagrao pragmtica desse mesmo passado,

    como produto de consumo cultural valorizado com a expanso da indstria do turismo.

    Essas concepes opunham-se quela, de matriz modernista, que orientara a formao do

    Sphan e dos profissionais que atuavam no Patrimnio, segundo a qual o passado era

    referncia para a constituio da nacionalidade e fonte de conhecimento da Histria da

    Arquitetura.

    Embora anteriormente apresentada ao governador Laudo Natel,17

    a ideia de criao

    de um rgo estadual de patrimnio s pode desenvolver-se durante a discusso da nova

    Constituio Estadual. Em maio de 1967, a deputada Dulce Sales Cunha Braga props

    Assembleia Legislativa a emenda n.565, que previa fosse includa no texto constitucional a

    criao do Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico e Artstico do Estado. A proposta

    seria vetada pela Comisso Especial por considerar que a matria seria melhor tratada por

    lei ordinria.18

    16

    Decreto n.49.165 de 29.12.1967. 17

    Entrevista de Lucia Falkenberg a Maria Lucia Pinheiro Ramalho e Walter Pires, s. d., Centro de

    Documentao do Condephaat. 18

    So Paulo, Assembleia Legislativa de So Paulo, GAT Seo de Documentao. Proposies apresentadas Constituio do Estado de So Paulo, 1967/1975. Parecer n.385/67, relator Slon Borges dos Reis, p.32.

  • Imagens do passado

    32

    A parlamentar, porm, voltaria ao plenrio argumentando com a convico de estar

    defendendo uma causa justa:

    Justamente nesta poca de subverso dos valores artsticos e desprezo dos

    valores histricos, impe-se a criao de um rgo estatal nem sequer oneroso ao

    errio estadual, que promova no somente o levantamento do patrimnio espiritual dos

    paulistas como tambm a defesa deste mesmo patrimnio, atravs de projetos e

    propostas de governo, atravs da defesa de nossa paisagem, considerada mundialmente

    monumento natural, defesa de nossas bibliotecas, museus, obras de arte, igrejas, inclusive assistncia tcnica, artstica aos municpios que necessitem ... Todas as

    atividades que pretendemos reunir como atribuio desse Conselho se acham esparsas

    e perdidas junto a rgos pertencentes a diversas secretarias de Estado, numa flagrante

    evaso de esforos que se deveriam concentrar na consecuo de um objetivo

    comum.19

    Apesar do exagero retrico prprio da tribuna, a fala da deputada deixa entrever um

    rgo centralizador, de funes to amplas quanto pouco definidas, talvez pretendido nos

    moldes do Conselho Estadual de Cultura,20

    rgo constitudo por comisses que, contando

    com uma pequena estrutura administrativa, tratava de questes referentes a reas diversas

    como o teatro, as artes plsticas e publicaes. A criao do Condephaat foi consignada no

    Artigo 128 da nova Constituio, na qual tambm se firmou o dever do Estado amparar a

    cultura.

    Em setembro de 1967, o governador Sodr assinou a Resoluo n.1.926, instituindo

    na Secretaria de Governo, sob a responsabilidade do titular da pasta, uma comisso especial

    para elaborar um anteprojeto de lei dispondo sobre o amparo cultura e a proteo do

    patrimnio histrico, artstico e turstico do Estado. A Comisso foi composta pelo assessor

    cultural da Secretaria de Governo, Miroel Silveira; pelo procurador do Estado, Olavo

    Fernandes; por Vinicio Stein Campos, diretor do Servio de Museus Histricos e

    Pedaggicos da Secretaria de Educao; por Lucia Piza Figueira de Mello Falkenberg,

    presidente do Instituto Histrico e Geogrfico de Guaruj-Bertioga; por Eurpedes Simes

    19

    Discurso, 31 Sesso Extraordinria, 8.5.1967, Assembleia Legislativa de So Paulo, DROAG, Caixa 25,

    1967. Tambm publicado no Dirio Oficial do Estado de So Paulo, 12.5.1967. 20

    O Conselho Estadual de Cultura fora criado pelo Decreto n.34.825 de 9.4.1959 e era ligado Secretaria de

    Educao.

  • Imagens do passado

    33

    de Paula, diretor do Museu de Arte e Arqueologia da USP; e pelo jornalista Francisco Ruiz

    Ribeiro.21

    O projeto elaborado pela Comisso que contara extraoficialmente com a

    colaborao de Paulo Duarte e Rodrigo Mello Franco de Andrade , segundo Waldisa

    Russio,22

    passaria pelo Gera com ordens expressas de no sofrer alteraes de estrutura.

    Desse modo, embora alvo de crticas de funcionrios administrativos relativas s

    representaes do Conselho por no corresponderem aos rgos que, naquele momento, se

    ocupavam da cultura em So Paulo, apenas foram verificados os dispositivos referentes

    viabilizao financeira do rgo.

    Em agosto de 1968 o executivo encaminhou o projeto de lei para a aprovao na

    Assembleia. Nas consideraes preliminares o governador ressaltava:

    A preservao de tal patrimnio constitui, antes de mais nada, dever do Estado,

    no s pelo resguardo desses valores culturais da populao, mas tambm pelos

    atrativos que deles resultam como imediata repercusso no mbito do turismo.23

    O projeto tornou-se a Lei n.10.247, de 22 de outubro de 1968, promulgada por

    Abreu Sodr em cerimnia solenidade realizada no Palcio dos Bandeirantes, em dezembro

    do mesmo ano. Durante a solenidade, o governador foi condecorado com a medalha

    Martim Afonso de Souza, distino conferida pelo Instituto Histrico e Geogrfico de

    Guaruj-Bertioga a personalidades que se destacam por relevantes servios prestados

    ptria.24

    Na imprensa diria o processo de criao do Conselho no mereceu destaque e a

    cerimnia de assinatura foi anunciada sem comentrios. Sua criao ia ao encontro da

    poltica federal de ampliao da participao do Estado em diversas reas da produo

    cultural, fato, entre outras medidas, posteriormente firmado no documento resultante do

    Encontro Nacional para a Defesa do Patrimnio, o Compromisso de Braslia, de 1970.

    21

    Dirio Oficial do Estado de So Paulo, 20.9.1967, p.7. 22

    Entrevista concedida a Maria Lucia Pinheiro Ramalho e Walter Pires, em 24.4.1984, Centro de

    Documentao do Condephaat. 23

    Dirio Oficial do Estado de So Paulo, 15.8.1968, p.55. 24

    Dirio Oficial do Estado de So Paulo, 23.10.1968, p.1.

  • Imagens do passado

    34

    Nele, reconhecia-se a necessidade de uma ao supletiva dos Estados e Municpios

    atuao federal no que se refere proteo dos bens culturais de valor nacional.

    Em janeiro de 1969, quando os nove membros do Conselho de Defesa do

    Patrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico e Turstico se reuniram pela primeira vez,

    apenas estavam estabelecidas as condies mnimas para o funcionamento do rgo.

    Composto por conselheiros escolhidos pelo governador como representantes da

    Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo; da Universidade de So Paulo, Departamento de

    Histria e Instituto de Pr-Histria; dos Institutos Histricos e Geogrficos de So Paulo e

    de Guaruj-Bertioga; do Instituto dos Arquitetos do Brasil Seo de So Paulo; da Cria

    Metropolitana de So Paulo e da Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, o

    conselho deveria adotar

    todas as medidas para a defesa do patrimnio histrico, artstico e turstico do Estado,

    cuja conservao se impunha em razo de fatos histricos memorveis, do seu valor

    folclrico, artstico, documental e turstico, bem como assim dos recantos paisagsticos

    que meream ser preservados.25

    A lei, porm, que determinava sua competncia era omissa em relao estrutura

    administrativa necessria sustentao das atividades. Essa foi sendo definida lentamente,

    e obrigou os conselheiros a acumularem, por um longo tempo, funes tcnicas e

    administrativas, o que os levaria a protestar, paralisando as atividades do Conselho entre

    maio e agosto de 1969.

    A urgncia em regulamentar as atividades levara os conselheiros a elaborarem um

    anteprojeto de lei no qual procuraram contornar tambm o que lhes parecia falhas da Lei

    n.10.247, entre essas, a omisso relativa ao suporte financeiro das atividades

    preservacionistas e o uso dos edifcios pertencentes ao Estado e tombados que, segundo o

    estabelecido no Artigo 6o, deveriam ser utilizados exclusivamente para a instalao de

    museus, ou, ainda, a indeterminao das autoridades competentes, s quais o Artigo 2o

    remetia a deciso dos tombamentos26

    propostos. Na opinio de Paulo Duarte, conselheiro

    representante do Instituto de Pr-Histria, o tombamento cabia ao Conselho que, ao

    25

    Lei n.10.247 de 22.10.1968. 26

    Tombamento uma figura jurdica que protege da destruio e da alterao os bens culturais reconhecidos

    como portadores de valor cultural pelo poder pblico sem, entretanto, impedir sua alienao do bem.

  • Imagens do passado

    35

    contrrio, deixaria de ser o executor do preceito constitucional,27 tendo dessa forma seu

    trabalho invalidado.

    O comentrio de Paulo Duarte sugere adiante pretender-se para o Conselho extrema

    autonomia, condio prpria dos que se propem realizar uma misso. Algumas

    observaes de Rodrigo M. F. de Andrade a respeito do anteprojeto inspirado no Decreto

    n.25 que criara o Sphan em 1937 parecem apontar para uma certa exacerbao de

    poderes, que comprometeria a constitucionalidade do projeto, especialmente no que se

    refere s restries do exerccio e uso da propriedade privada e a possveis dificuldades de

    aplicao de uma lei estadual, diante de lei federal sobre a mesma matria. Sugeria, por

    isso, que o anteprojeto se referisse ao Artigo 172 da Constituio Federal de 1967, que

    colocava sob proteo especial do poder pblico os documentos, as obras e os locais de

    valor histrico e artstico, os monumentos e paisagens naturais notveis e as jazidas

    arqueolgicas; sugeria tambm meno ao Decreto n.25 e, por ltimo, que se

    estabelecesse a precedncia dos bens tombados pela Unio, para a inscrio nos livros do

    Tombo.28

    Em 1o de setembro de 1969, o governador assinou o Decreto-lei n.149 dispondo

    sobre o tombamento de bens; a regulamentao das atividades do Conselho seria,

    finalmente, estabelecida por um Decreto que no recebeu nmero, possivelmente calcado

    no anteprojeto de autoria dos conselheiros. Nele foram estendidas as atribuies do

    Conselho ao patrimnio arqueolgico, o que, em parte, se deve ao empenho de Paulo

    Duarte, h muito envolvido na obteno da proteo do Estado s reas de interesse

    arqueolgico. O Decreto estabeleceu, tambm, ser competncia do secretrio de Cultura,

    Esporte e Turismo a deliberao final sobre os tombamentos. Porm, no fazia referncia

    ao apoio financeiro do rgo e utilizao dos bens pblicos tombados.

    Do ponto de vista administrativo, o Decreto estabelecia a figura de secretrio do

    conselho deliberativo, eleito entre seus membros. O cargo foi ocupado pela primeira vez

    por Vinicio Stein Campos, que nele permaneceu at outubro de 1971, quando Ruy de

    Azevedo Marques foi indicado para a Secretaria Executiva do Condephaat, criada pelo

    27

    Reunio do Conselho, Ata n.2, 8.1.1969, Centro de Documentao do Condephaat. 28

    Carta a Luis Saia, em 2.2.1969, Arquivo 9 CR IBPC, Pasta AD24.1, doc. 011.

  • Imagens do passado

    36

    Decreto n.52.620, de 21 de janeiro de 1971, que tambm estabelecia a composio e as

    atribuies das unidades tcnicas do rgo.29

    Secretaria Executiva, com exceo do conselho deliberativo, estavam

    subordinadas todas as unidades componentes do Condephaat: Comisso Tcnica de Estudos

    e Tombamentos, Servio Tcnico de Conservao e Restauro, Seo Tcnico-Auxiliar e

    Secretaria de Administrao, cujas competncias administrativas e tcnicas tambm foram

    determinadas no Decreto. Os bens tombados deveriam ser inscritos em cinco livros do

    Tombo, o Arqueolgico, o Etnogrfico, o Paisagstico; o das Artes Aplicadas, o das Artes,

    o das Artes Populares e o Histrico.

    Em 1975, ao iniciar sua gesto no governo do Estado, Paulo Egydio Martins criou a

    Secretaria de Cultura, Cincia e Tecnologia,30

    qual foi integrado o Condephaat. Pouco

    depois, em 3 de fevereiro de 1976, o secretrio Jos Mindlin assinou o Decreto n.7.516

    acrescentando ao conselho mais duas representaes da Universidade de So Paulo do

    Departamento de Histria da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do

    Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas ; uma

    da Comisso de Artes Plsticas do Conselho Estadual de Cultura; e uma da Conferncia

    Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), totalizando treze conselheiros.

    Essas medidas atendiam solicitao contida em um documento enviado ao

    secretrio no qual fora apontada a duplicidade de representaes dos Institutos Histricos e

    a falta de representao de reas especializadas, o que, diante das cada vez mais frequentes

    exigncias de deciso sobre o valor de reas naturais e de colees de pintura, se tornava

    imprescindvel.31

    Em razo disso, o Decreto tambm estabelecera a escolha de conselheiros em lista

    trplice, acompanhada de curriculum vitae dos profissionais indicados pelas entidades

    representadas. O mesmo documento institua, ainda, a vice-presidncia do Conselho que da

    29

    Tambm exerceram o cargo de secretrio executivo do Condephaat: Jos Geraldo Nogueira Moutinho,

    1977-1979; Aldo Nilo Losso, 1979-1983; Celso Marchi, 1983. 30

    Decreto n.5.929, de 15.3.1975. 31

    Relatrio de Atividades, 1974; organizado por Ruy de Azevedo Marques, entregue a Jos Mindlin em

    31.3.1975.

  • Imagens do passado

    37

    mesma forma que a presidncia, era de escolha do governador, entre os conselheiros

    designados.32

    Essas disposies foram posteriormente ratificadas no decreto que reorganizou a

    Secretaria de Cultura, Cincia e Tecnologia.33

    Uma nova ampliao do conselho deliberativo efetivou-se em 1983, quando da

    reorganizao da Secretaria de Cultura, criada pelo governador Paulo Salim Maluf, em

    1979.34

    Foram, ento, includas representaes dos Departamentos de Cincias Sociais e

    Antropologia de todas as universidades pblicas do Estado e ampliadas as representaes

    dos Departamentos de Geografia, Histria e Histria da Arquitetura para a Universidade de

    Campinas e para a Universidade Estadual Paulista.

    Outro Decreto, n.22.986, de 30 de novembro de 1984, acrescentou ao conselho

    deliberativo mais duas representaes, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento e da

    Secretaria de Esporte e Turismo, totalizando 25 conselheiros. Ao iniciar seus trabalhos, o

    Condephaat no contava com um setor tcnico; embora no estruturado por lei, ele

    comearia a ser formado em outubro de 1969, por profissionais comissionados de outras

    secretarias. O arquiteto Carlos Lemos, que trabalhava no setor de engenharia sanitria da

    Secretaria de Sade, foi o primeiro responsvel pela coleta de dados tcnicos para os

    tombamentos em estudo.35 Em seguida, outro arquiteto, Raphael Glender, se transferiu do

    Instituto de Penses do Estado de So Paulo para o Condephaat.

    Os primeiros historiadores foram contratados a ttulo precrio somente em 1973.

    Dada a exiguidade de tcnicos, grande parte dos servios necessrios era contratada fora do

    rgo e orientados por Carlos Lemos, que se tornou responsvel pela Comisso Tcnica de

    Estudos e Tombamentos. A inexistncia de um corpo tcnico prprio e estvel dificultaria a

    reflexo sobre o trabalho e retardaria a possibilidade de estruturao de uma cultura de

    preservao prpria do rgo. Ao mesmo tempo em que o Condephaat reproduzia, quase

    sem questionamentos, a ortodoxia do Sphan, a relao entre o Conselho e a Universidade,

    segundo as possibilidades da prpria estrutura do Conselho, era tnue. Por si s, a presena

    32

    Decreto n.7.516, de 3.2.1976, respectivamente 2 e 3. 33

    Decreto n.7.730, de 23.3.1976. 34

    Decreto n.13.426, de 16.3.1979; a reorganizao foi determinada pelo Decreto n.20.955, de 1.7.1983 que,

    no Cap.II, Art.162, estabeleceu a nova composio do Conselho. 35

    Reunio do Conselho, Ata n.28, 15.10.1969, Centro de Documentao do Condephaat.

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    de conselheiros representando as universidades embora especialistas em suas reas, no

    garantiu a troca necessria entre a prtica preservacionista e os centros de produo do

    conhecimento a partir do qual a noo de patrimnio poderia ampliar-se para a de objeto

    pluridisciplinar.

    A contratao de um corpo tcnico permanente para compor o Servio Tcnico de

    Conservao e Restauro (STCR) ocorreria apenas em 1982, compondo-se prioritariamente

    de arquitetos e historiadores.

  • Imagens do passado

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    O Condephaat As prticas definem a poltica

    O Condephaat foi criado no momento em que se acelerava a expanso do consumo e

    da cultura de massas no pas. Embora o projeto modernista que pretendera definir a

    brasilidade e, nesse quadro, traara a ao preservacionista como instituidora do passado da

    arquitetura brasileira j houvesse sido absorvido por outras tentativas de explicao do pas,

    a ortodoxia criada pelo Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional impunha-se

    ainda como nica e adequada misso de salvar a cultura nacional da destruio.

    Tecida sob o argumento da perda, buscando a continuidade do que considerava

    autntico e parecia se perder em meio ao desenvolvimento tecnolgico ocorrido desde a

    modernidade, essa ortodoxia, aponta Santos,1 valorizava a esfera pblica como normativa,

    orientadora de um tica. Por isso, ressalta a mesma autora, o Sphan fora organizado nos

    moldes de uma academia, na qual a estratgia de documentao permitia comprovar os

    valores histricos e estticos nacionais e universais, o que revestia os tombamentos de um

    carter de utilidade pblica.

    Em razo disso, as divergncias relativas aos critrios, procedimentos e mtodos a

    serem adotados para o reconhecimento da importncia histrica de bens pelo Condephaat

    de pronto expressaram-se entre os conselheiros. Alguns, profissionais do patrimnio

    formados na perspectiva do Sphan, como Lus Saia, entendiam que os bens deveriam ser

    avaliados como documentos da arquitetura, o que implicava a valorizao de aspectos

    como o das tcnicas construtivas, dos materiais e das formas que lhe davam concretude e os

    tornavam testemunhos da histria e da cultura brasileiras. Esses se oporiam frontalmente

    queles que pretendiam que antigos edifcios fossem valorados, predominantemente, como

    testemunhos da tradio nobilirquica ou pela relao com a vida dos grandes heris do

    passado.

    1 Santos, 1992.

  • Imagens do passado

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    Tais opinies encontraram um ponto de convergncia, a valorizao do bandeirismo

    e dos primeiros anos da ocupao do litoral brasileiro, que representavam momentos

    bsicos da memria histrica regional e nacional. As aes do Condephaat se orientaram

    inicialmente por essas balizas histricas s quais foi acrescentado o perodo clssico de

    expanso do caf no Vale do Paraba e na regio de Campinas. Em plano absolutamente

    secundrio permaneceram outros processos regionais de importncia, como a

    industrializao.

    At 1987, os critrios de valorao de bens ampliaram-se sem que, entretanto,

    fossem definidas explicitamente polticas de preservao. Na ausncia de referncias

    maiores, as polticas culturais do Estado, as prticas do Condephaat foram circunstanciais e

    definiram polticas a partir da composio dos conselhos deliberativos, das presses

    externas resultantes da vontade poltica do poder pblico, de interesses do setor privado, em

    especial os relativos especulao imobiliria intensificada a partir da dcada de 1970, e de

    referncias tericas e conceituais assumidas por conselheiros e tcnicos.

    A influncia dos setores sociais no representados no Conselho na determinao do

    patrimnio se faria pelo uso do direito de todo cidado solicitar tombamentos. Os pedidos,

    at a dcada de 1980, grande parte dos quais advindos de rgos pblicos, corroborariam o

    critrio valor histrico. Por meio deles possvel avaliar-se a intensa penetrao da

    histria oficial nos diferentes estratos da populao, pois os argumentos dos solicitantes

    eram, em geral, os da passagem de personagens histricos pelo espao que se pretendia

    consagrar como patrimnio ou a posio social e nobilirquica de seu proprietrio.

    A valorizao da histria oficial estabeleceu a consonncia entre a ao do Conselho

    e a expectativa de parte da sociedade, embora outros fatores, como o precrio estado de

    conservao dos bens tombados, influssem negativamente na imagem do rgo junto

    opinio pblica.

    A partir de ento, alguns pedidos de tombamento comearam a apresentar

    argumentos referentes memria de um grupo social ou memria local e, tambm,

    importncia de manuteno das condies ambientais. O aparecimento desses argumentos

    correspondeu ampliao do entendimento social sobre o patrimnio e sobre os direitos de

    cidadania que, se no foi de todo acompanhada por uma renovao na atuao do

    Condephaat, foi parcialmente assumida por ele, que se tornou pioneiro, no Brasil, na

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    preservao de reas naturais por meio de tombamento. Esse movimento da sociedade

    incentivou, no mbito interno, a ampliao de uma discusso que se fazia sobre alguns

    conceitos, desde os meados da dcada de 1970 e, entre eles, o de patrimnio. Antes restrito

    definio de monumentos histricos, o termo passou a abranger outros objetos e, pouco a

    pouco, a ser entendido como referente ao conjunto da cultural material, e no apenas s

    formas arquitetnicas. Isso abriria as possibilidades de estender a proteo oficial para

    reas naturais e urbanas de porte, bem como para a considerao da memria social como

    um dos vetores envolvidos na preservao de artefatos materiais.

    Essa ampliao conceitual, porm, se refletiria apenas parcialmente na metodologia

    de trabalho adotado pelos tcnicos e nos critrios determinantes das decises sobre os

    tombamentos que continuariam influenciadas por circunstncias de momento.

    O estudo da trajetria dos primeiros dezoito anos de atuao do Condephaat indicou

    que, de modo a sistematizar o conhecimento de sua ao, fossem estabelecidas trs fases,

    delimitadas cronologicamente com base na adoo de critrios e conceitos diferenciadores

    que, embora sempre mesclados com procedimentos anteriores, caracterizaram a definio

    de um perfil particular das prticas instituidoras de parte da memria oficial da sociedade

    paulista.

    Com os olhos na tradio, de 1969 a 1975

    Abelardo Gomes de Abreu, representante do Instituto dos Arquitetos do Brasil no

    primeiro conselho deliberativo, recorda que a dinmica deste era realmente interessante,

    porque cada conselheiro agia com estilo prprio e no existia uma orientao, uma diretriz

    bem-definida para os procedimentos.2

    Apesar dessa impresso, desde logo conhecedores de procedimentos tcnicos e de

    conceitos relativos preservao, os conselheiros arquitetos procurariam desempenhar

    papel central no estabelecimento da metodologia do novo rgo, que acabou por tornar-se

    herdeiro e reprodutor da ortodoxia do Sphan.

    2 Entrevista concedida autora em 24.10.1991.

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