imagens_do_passado.pdf
TRANSCRIPT
-
IMAGENS DO PASSADO
A instituio do patrimnio em So Paulo
1969 1987
Marly Rodrigues
-
MARLY RODRIGUES
IMAGENS DO PASSADO
A instituio do patrimnio em So Paulo
1969 - 1987
-
Este trabalho foi originalmente apresentado como tese de doutorado ao
Departamento de Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da
Universidade de Campinas, em maio de 1994. Nessa fase, contei com o
apoio do CNPq, de meu orientador Prof. Dr. Edgar Salvadori de Decca e
de inmeros amigos, muitos deles irmos de barca na difcil tarefa de
preservao do patrimnio. Para a publicao foram inestimveis o apoio
da Fapesp e as sugestes dos membros da banca examinadora, Professores
Doutores Antonio Augusto Arantes, Jorge Sidney Coli Junior, Leila
Mezan Algranti e Ulpiano Bezerra de Meneses. A todos registro meu
agradecimento.
-
SUMRIO
Apresentao ......................................................................................................................... 5
Passado, reflexo do presente ................................................................................................ 7
Materializar a histria ...................................................................................................... 7
De So Paulo para o Brasil ............................................................................................ 18
Outras tentativas............................................................................................................. 23
Um servio de patrimnio de So Paulo ........................................................................... 27
O Condephaat - As prticas definem a poltica ............................................................... 39
Com os olhos na tradio, de 1969 a 1975 .................................................................... 41
Considerando o presente, de 1975 a 1982 ..................................................................... 57
Tempos de abertura, de 1982 a 1987 ............................................................................. 87
O patrimnio de So Paulo: memria e histria ........................................................... 105
Bibliografia ........................................................................................................................ 112
Anexos
Bens tombados e pedidos de estudo de tombamento arquivado 1969-1987............123
Composio do Conselho 1969-1987........................................................................135
-
Imagens do passado
5
Apresentao
Considerado pelos antigos romanos como parte da esfera privada do direito de
herana, o patrimnio comea a ser entendido como herana de todos, herana pblica, a
partir do Renascimento, quando, juntamente com a valorizao da cultura material da
Antiguidade, comeava a ser construda a civilizao da imagem da qual somos
continuadores. Hoje, a noo de patrimnio abarca um amplo universo de bens por meio
dos quais a sociedade materializa o passado.
Durante a Revoluo Francesa, inaugurou-se a forma moderna de o poder pblico
tratar os bens culturais considerados representativos do passado de todos. A partir de ento,
e sobretudo no sculo XIX, caberia aos Estado identificar, reconhecer e proteger os objetos
que comporiam o universo do patrimnio. Arquivos, museus e outras instituies
dedicaram-se a construir memrias nacionais referenciadoras de identidades unvocas, o
que tornaria possvel sustentar a construo dos Estados-nao.
Segundo Chastel,1 o cuidado do poder pblico com a memria no definia apenas
uma rea de atuao, mas o prprio poder da cultura, alm de incluir cuidados morais e
pedaggicos. Instituir os documentos do passado era recriar o passado determinando quem
o havia construdo; era criar a identidade nacional como espelho da identidade da classe
dominante. Era, portanto, criar mais uma instncia de exerccio do poder.
O presente trabalho estuda uma das reas de instituio de memria da sociedade
pelo poder pblico em So Paulo, a do patrimnio, a partir da criao do Conselho de
Defesa do Patrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico e Turstico (Condephaat), em
1968.
Naquele momento, o patrimnio j no era apenas entendido como conjunto
material representativo da memria e da identidade nacionais, mas assumira outro sentido,
1 Chastel, 1986, p.412.
-
Imagens do passado
6
prprio da sociedade contempornea, o de elemento componente da indstria cultural,
portador de grande potencial de incentivo ao lazer e ao turismo. A pesquisa sobre a atuao
do Condephaat prolonga-se at 1987, quando o rgo define um perfil de atuao que
permanece at o presente momento.
-
Imagens do passado
7
Passado, reflexo do presente
Materializar a histria
As primeiras ideias de proteo ao patrimnio histrico-arquitetnico surgiram no
Brasil na dcada de 1910. A poltica dos governadores iniciada em 1904 possibilitou uma
estabilizao relativa do regime republicano e, a partir de ento, observa Sevcenko,1 os
esforos da elite poltica estiveram voltados para forjar um Estado-nao capaz de
sintonizar o pas com as exigncias da expanso internacional do capitalismo. Tratava-se de
ampliar a ao do Estado sobre a economia e a sociedade, articular as foras sociais
gesto pblica e harmonizar as peculiaridades locais aos padres ditados pelos modelos
vigentes nos grandes centros europeus. Tal postura inclua prestigiar as instituies liberais,
a cincia e o progresso material.
Pretendia-se moldar um povo para uma modernidade que fazia parte apenas do
horizonte das elites polticas e intelectuais. A febre de cosmopolitismo que se instalou nas
grandes cidades do pas implicou a interferncia no construir-se das identidades locais
especialmente as das camadas populares urbanas , a negao dos hbitos tradicionais da
sociedade brasileira, forjados em sculos de vivncias do mundo rural e na transformao
radical dos espaos urbanos. Nesses, a ampla adoo do ecltico correspondeu ao gosto das
elites dirigentes e evidenciou sua inteno de rompimento com o passado.
Segundo Fabris,2 a afirmao do ecletismo no Brasil no implicou reconhecimento
da tradio anterior, mas foi um repdio aos vestgios coloniais que persistiam entre ns. A
utilizao de formas espetaculares nas fachadas de edifcios e em reas pblicas apontava
as mltiplas possibilidades da moderna sociedade urbana e, com isso, criou a imagem que o
Brasil procurava apresentar ao mundo; eram tapumes atrs dos quais se pretendia esconder
1 Sevcenko, 1983, p.47.
2 Fabris, 1993, p.135.
-
Imagens do passado
8
processos culturais definidores de uma identidade real, embora ainda no moderna e
adequada nao pretendida pelas elites.
O distanciamento entre as elites polticas e intelectuais e a sociedade, no que diz
respeito construo da nacionalidade, foi objeto de um livro de Alberto Torres, publicado
em 1914, O problema nacional brasileiro, no qual o autor conclamava os intelectuais
brasileiros a se tornarem fora social atuante nas tarefas prioritrias do momento: forjar a
conscincia nacional e promover a organizao nacional. Com isso, admitia-se a
incompetncia de os governos republicanos forjarem a nao, competindo aos intelectuais
parte dessa responsabilidade.
Pcaut3 observa que, a partir de 1915, o nacionalismo invadiu a cultura brasileira
assumindo formas diversas e dando origem a publicaes, como a Revista do Brasil, e a
associaes entre as quais a Liga de Defesa Nacional, criada em 1916, no Rio de Janeiro,
pela qual Olavo Bilac faria chegar a amplas camadas da populao o ideal nacionalista
mediante pregaes de carter patritico e cvico.
Outras ligas se multiplicaram em diversos Estados da federao, todas contando
com a participao de intelectuais e professores. Em So Paulo, a Liga Nacionalista,
fundada em 1916 por estudantes da Faculdade de Direito, contava com professores de
diversas faculdades paulistanas, industriais, advogados, engenheiros e jornalistas entre os
quais, Jlio de Mesquita e Jlio de Mesquita Filho, proprietrios do jornal O Estado de S.
Paulo de incontestvel tendncia liberal. Entre os objetivos da Liga estava a promoo do
civismo e da educao.
Como observa Nagle,4 durante as dcadas de 1910 e de 1920 o pas viveu um clima
de entusiasmo pela educao. A nfase dada ao ensino tinha suas razes no projeto
republicano construdo nos ltimos anos do Imprio; nesse momento, porm, relacionava-
se regenerao do prprio projeto republicano, especialmente a falta de representao
poltica que, segundo os oposicionistas, guardava ntima relao com a manuteno do
povo em permanente estado de ignorncia. Atribua-se escola o poder de regenerar o
homem, de torn-lo cidado apto ao exerccio da poltica. Nesse sentido, o ensino da
3 Pcaut, 1990.
4 Nagle, 1977.
-
Imagens do passado
9
Histria, j bastante valorizado, passou a ser exaltado por seu potencial disciplinador e
formador. No apenas nas salas de aula, mas nas festas cvicas e comemorativas de datas e
heris nacionais, a histria fornecia continuadamente os instrumento simblicos necessrios
moldagem do trabalhador-cidado brasileiro.5
Logo aps a independncia coubera histria a criao de um corpo de
representaes simblicas estabelecedor de um perfil para a nascente nao brasileira.
Criada pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro6 como Histria Nacional refletia
ressalta Schwarcz7 a posio dos membros do Instituto, grupo formado pela elite
portadora de ttulos nobilirquicos, vinculada ao poder, e por intelectuais, parte deles
plenos de ideias patriticas inspiradas no romantismo, quadro no qual a histria significava
o retorno s origens e o culto ptria e seus heris. Especialmente a partir de 1850, quando
se intensificaram as relaes entre o imperador e o Instituto, a produo historiogrfica
desse se voltaria para os efeitos polticos dos fatos e a exaltao das aes heroicas,
narradas em discursos laudatrios da ptria e da prtica poltica do Imprio.
Em 1908, explica a mesma autora, o cientificismo comeou a influenciar a produo
do Instituto. Gradativamente passou-se do historicismo para o positivismo e a histria, at
ento lio do passado, exemplo, aproximou-se da erudio.
A histria configurou-se, assim, como memria da nao, campo instituidor de uma
unanimidade que baniu para a no histria os que ndios, negros ou brancos excludos do
exerccio da poltica feriam a homogeneidade necessria eficcia das intenes
unificadoras. Como tal passou a ser ensinada nas escolas e perpetuada, embora
permanecesse, para a maioria, o registro de uma experincia distante, a verdade criada
como de todos, mas que no era de ningum.
Mesmo quando, depois da dcada de 1930, a histria passou a ser entendida como
conhecimento de uma sociedade sobre seu passado, a histria-memria da nao
5 Bittencourt, 1988.
6 Logo aps a emancipao, o Arquivo Nacional foi pensado como espao exclusivo para a guarda dos
registros documentais da histria brasileira; a instituio, porm, foi instalada apenas em 1838, ano em que
tambm foi criado, por iniciativa da Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional, entidade privada que
pretendia incentivar o progresso no pas, o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, que tambm cumpriria
as finalidades de coligir, metodizar e guardar documentos histricos. Ver Schwarcz, 1989. 7 Schwarcz, 1989.
-
Imagens do passado
10
permaneceria um forte componente do imaginrio social, entre outros fatores, porque assim
continuaria a ser ensinada nas escolas praticamente at o final da dcada de 1960.
A histria seria evocada como justificativa de inmeras manifestaes que
pretendiam compor a identidade nacional. Na arquitetura, essa busca resultou no
neocolonial, movimento de criao de um estilo arquitetnico brasileiro que teve por marco
inicial o discurso Culto tradio, pronunciado pelo arquiteto portugus radicado no
Brasil, Ricardo Severo, no Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, em 1912. A esse
se seguiriam artigos e conferncias por meio dos quais Severo incentivado por Jos
Mariano Filho, convicto defensor da causa nacional procurou difundir o neocolonial
que considerava expresso dos valores tradicionais da arquitetura brasileira, em
contraposio ao ecltico, por ele visto como estranho a este ambiente.8
Referindo-se ao neocolonial, em 1921, a revista Fon-Fon comentou:
Cansados de copiar o que fazem os estrangeiros chegamos concluso de que
necessrio qualquer coisa de acordo com a histria, a raa, a alma da nao ... de
acordo com o progresso...9
Concomitantemente, outro movimento propunha a preservao de valores
representativos do passado nacional ameaados pela expanso do mercado internacional de
arte e pela remodelao urbana de cidades Salvador, Recife, Rio de Janeiro e So Paulo
como fatores que provocaram a evaso de objetos de arte nacionais, especialmente da fase
do barroco, e o desaparecimento de antigas edificaes. Comeam ento a surgir propostas
de proteo aos bens culturais por meio dos quais se materializava o passado. A emergncia
de tal cuidado em um momento de exacerbado nacionalismo, entre 1917 e 1935, revela
certa conscincia da importncia das representaes materiais do passado para a
conformao da identidade nacional.
A primeira proposta foi formulada por Wanderley Pinho, membro do Instituto
Histrico e Geogrfico da Bahia academia que, com suas demais congneres, era guardi
da histria regional e pretendia estender essa atribuio s representaes materiais da
8 Apud Fabris, 1987, p.286.
9 Apud Santos, 1977, p.99.
-
Imagens do passado
11
mesma histria.10
O projeto colocava sob a responsabilidade de uma comisso formada por
membros da entidade, a proteo dos monumentos pblicos, edifcios particulares de valor
histrico ou artsticos e os objetos d'arte,de qualquer espcie de ao destruidora ou
modificadora do tempo e dos homens.11
No estavam inclusos na proteo pretendida os documentos da histria da nao
registrados no suporte papel. Valorizados como fontes para a produo de conhecimento
sobre a histria da ptria, eles foram vistos como objetos de interesse de especialistas e,
abrigados em arquivos pblicos ou de instituies, como os institutos histricos, atendiam
tambm ao funcionamento de museus histricos. Esses, por sua vez, foram amplamente
valorizados desde o sculo XIX, uma vez que se acreditava que os objetos expostos
permitiam materializar o passado nacional.
O ano de 1922, quando se comemorou o centenrio da independncia, foi
especialmente favorvel valorizao dos museus histricos brasileiros. Criou-se ento o
Museu Histrico Nacional cujo primeiro diretor foi Gustavo Barroso, e, em So Paulo,
Affonso dEscragnolle Taunay, desde 1917 diretor do Museu Paulista, a montou a Seo
de Histria.
Segundo Brefe,12
no Museu Histrico Nacional, a tradio, a genealogia e a ideia de
permanncia orientaram as atividades propostas e legitimaram o papel do Imprio e da
nobreza brasileira na formao da nacionalidade como um processo que se iniciara na
colnia, quando os bandeirantes alargaram as fronteiras do Brasil.
Fundadas no conhecimento histrico produzido, respectivamente, no Instituto
Histrico e Geogrfico Brasileiro e no Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, essas
interpretaes de passado expressam no campo simblico no apenas as influncias
presentes em cada uma dessas academias, mas tambm as disputas regionalistas existentes
no cenrio poltico republicano na dcada de 1920, quando tambm se intensificaram as
propostas de criao de instituies voltadas para a proteo do patrimnio histrico
nacional.
10
Alm dos projetos citados, foram tambm apresentados Cmara, em 1924, o de autoria do deputado
mineiro Augusto de Lima e, em 1930, e o do ento deputado pela Bahia, Wanderley Pinho, que seria
reapresentado em 1935. 11
Apud Peres, 1974, p. 162. 12
Brefe, 1999, p.8-49.
-
Imagens do passado
12
Por meio dessas instituies seria possvel estender para as cidades as funes
educacionais e morais exercidas pelos museus, pois os edifcios e monumentos histricos
sob proteo do poder pblico materializariam a histria ptria em exposies a cu aberto,
passveis de ampla fluio.
No ano de 1923, ao apresentar Cmara dos Deputados projeto de criao da
Inspetoria de Monumentos Histricos dos Estados Unidos do Brasil, o parlamentar
pernambucano Luiz Cedro orientou-se pela mesma concepo de patrimnio manifesta
anteriormente por Wanderley Pinho, porm atribuiu-lhe uma funo simblica, a de
alimentar a nao, pois mobilizava a sua memria.
uma longa e permanente lembrana faz a perpetuidade dos grandes povos, pois uma
nao comea a morrer, quando ela esquece. O culto do passado, senhores, no deve
limitar-se comemorao, como ns costumamos fazer das grandes datas nacionais,
em discursos de sesses magnas, no hasteamento de bandeira nas reparties pblicas e
no cio dos feriados nacionais. Comemoremo-lo tambm por outros modos menos
platnicos, como o de evitar a destruio deste patrimnio que nos deixaram os
antepassados.13
Em 1925, outro projeto de criao de um rgo nacional de patrimnio, de autoria
do parlamentar mineiro Jair Lins, inspirado em tericos franceses e italianos, incorpora em
seu projeto uma ideia manifesta na Frana em 1793, por ocasio da instalao das
comisses responsveis pela proteo de monumentos e obras de arte:14
o valor do
patrimnio no era apenas o de materializar o passado, mas, tambm, residia em sua
potencialidade moral e pedaggica.
Tanto mais eficiente a influncia das obras de arte e histricas na educao
do povo, quanto, por elas, a instruo se faz como que independentemente da vontade
de aprender.15
Lins relacionava, assim, a proteo ao patrimnio a um dos pontos mais caros ao
iderio liberal das elites brasileiras, a democratizao do ensino. A crena na potencialidade
13
Apud Peres, 1974. 14
Chastel, 1986, p.412. 15
Brasil, 1980b, p.67.
-
Imagens do passado
13
pedaggica do patrimnio seria reafirmada por Mrio de Andrade, posteriormente, ao
ressaltar que defender o nosso patrimnio histrico e artstico alfabetizao.16
Apesar da importncia atribuda por alguns intelectuais e polticos aos edifcios
histricos remanescentes nas cidades brasileiras de Estados onde se concentravam
monumentos do perodo da colonizao, at a dcada de 1930, a histria e os museus
permaneciam como canais privilegiados de divulgao do passado. Algumas iniciativas
oficiais na Bahia, em 1927, e em Pernambuco, em 1928 , criando Inspetorias Estaduais
de Monumentos Nacionais, resultaram em aes limitadas ao inventrio dos bens locais, em
razo das restries impostas pela Constituio de 1891, que garantia o exerccio pleno do
direito de propriedade.
A juno de alguns fatores, porm, resultaria na transformao desse quadro. A
perda de tradio parecia iminente, pois o pas se transformava sob o impacto da expanso
industrial e da metropolizao das capitais da Regio Sul. Em 1930, a instalao de um
Estado que se proclamava modernizador, construtor de uma nao que sobrepujaria os
regionalismos, mantenedor da coeso social e guardio dos interesses nacionais, inaugurou
uma fase de reordenao institucional e administrativa que implicou a ampliao da
interveno oficial, tambm, no campo da cultura, o que ampliaria a oportunidade de os
intelectuais orientarem a construo do Brasil moderno por meio do Estado.
Em 1933, um decreto assinado por Getlio Vargas, ainda chefe do governo
provisrio, dava mostras de que o governo federal comeava a voltar a ateno para o
potencial simblico, cvico e mnemnico dos espaos. O decreto17
erigia Ouro Preto
cidade desde a dcada anterior valorizada pelos adeptos do neocolonial e pelos modernistas
por representar a brasilidade que buscavam monumento nacional. Considerando que a
cidade fora
teatro de acontecimentos de alto relevo histrico na formao de nossa nacionalidade e
que possui velhos monumentos, edifcios e templos de arquitetura colonial, verdadeiras
obras d'arte, que merecem defesa e conservao,18
16
Carta de Mrio de Andrade s. d., in Duarte, 1977, p.220-1. 17
Decreto n.22.928, 12.7.1933, in Brasil, 1980, p.89. 18
Ibidem.
-
Imagens do passado
14
o poder pblico institua o primeiro monumento histrico oficial cuja referncia era o
sculo XVIII, momento de crescimento da conscincia emancipacionista, de maturidade da
arte e da arquitetura coloniais, que se tornaria paradigmtico para a atuao do Servio de
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Sphan), organizado pelo governo federal em
1937 com base em um projeto elaborado por Mrio de Andrade, a pedido do ministro de
Cultura, Gustavo Capanema.19
A atuao do Sphan baseou-se na noo de monumento histrico. Retomando Riegl,
Choay20
observa que monumento artefato construdo com finalidades comemorativas e de
memria no pode ser confundido com monumento histrico, inveno do presente,
qualidade possvel de ser atribuda a qualquer objeto do passado com o sentido de torn-lo
testemunho da histria ou suporte da memria.
Com os monumentos histricos se comps o patrimnio de todas as naes. Sua
importncia cresceu durante todo o sculo XIX, paralelamente ao crescimento da
importncia da histria como um dos elementos bsicos para a formao da conscincia
nacional. Determinar o patrimnio tornou-se um campo de manipulao simblica de
grande importncia, uma vez que, como aponta Chastel,21
a ideia de patrimnio est
relacionada perpetuidade dos objetos sagrados, essenciais comunidade. A ateno do
rgo federal de proteo ao patrimnio, criado em 1937, voltou-se, preferencialmente,
para os monumentos arquitetnicos, religiosos e civis, do perodo colonial, de formas
simples, to caras aos arquitetos modernistas brasileiros. A ao preservacionista do rgo
no se limitou a reproduzir, por meio dos documentos materiais do passado, um perfil do
pas traado pela histria, mas tambm entrelaou-se a dois processos em curso, o desen-
volvimento da arquitetura moderna e a construo de sua memria, a Histria da
19
A organizao do Sphan foi precedida de outras medidas do poder pblico: organizao de um servio de
proteo aos monumentos histricos e obras de arte, anexo ao Museu Nacional, pelo Decreto n.24.753, de
14.7.1934; aprovao do Artigo 148 da Constituio de 1934, segundo o qual cabe Unio, aos Estados e aos
Municpios apoiar os trabalhadores intelectuais e a cultura em geral, bem como proteger os objetos de interesse histrico e o patrimnio artstico do pas. O Sphan foi organizado pelo Decreto n.25, de 30.11.1937. Em 1946 foi transformado em Diretoria sob a sigla Dphan; em 1970 passou a ser Instituto Iphan , e nove anos depois, como Secretaria, voltou a Sphan. Em 1981, mantendo essa sigla, transformou-se em Subsecretaria e, em 1990, passou a denominar-se Instituto Brasileiro de Patrimnio Cultural (IBPC),
voltando a ser, em 1994, ainda em carter provisrio, Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
(Iphan). 20
Choay, 1992, p.21-3. 21
Chastel, 1986, p.406.
-
Imagens do passado
15
Arquitetura Brasileira. Ambos correspondiam fase de introduo do estudo da disciplina
Histria da Arquitetura nos cursos de Arquitetura recm-institudos como campo particular
de ensino, separado do de Belas Artes, medida essa que atendia necessidade de uma
formao especfica voltada s exigncias tcnicas e estticas da arquitetura moderna.
O advento da moderna arquitetura provocaria, portanto, a redefinio do perfil
profissional do arquiteto. A eles caberia como expresso no 4o
Congresso Internacional de
Arquitetura Moderna (CIAM), concludo na capital da Grcia em 1931 a responsabilidade
de promover as condies de bem-estar e beleza dos ambientes modernos. Isso os
autorizava, em nome dos princpios de salubridade e de justia social, recomendar a
substituio de antigos conjuntos arquitetnicos e bairros por espaos planejados de
trfego, lazer e moradia.
Tendo como conceito orientador o de monumento histrico, a Carta de Atenas,
documento final daquele evento e o primeiro a orientar internacionalmente a preservao de
bens arquitetnicos, consagrava a preservao de exemplares isolados, de valor
excepcional, expresso de culturas anteriores; tornados monumentos esses remanescentes
do passado ofereceriam um contraponto racionalidade esttica e eficincia dos
modernos espaos urbanos. Suas recomendaes seriam plenamente acatadas no Brasil e
cimentariam a proximidade entre duas funes do profissional arquiteto, restaurar e
projetar.
Se, por um lado, a valorizao da arquitetura tradicional brasileira foi motivada pelo
interesse pela arquitetura moderna, por outro, fazia parte do esforo de explicao do Brasil
desenvolvido por outras reas de conhecimento, como a Sociologia e a Histria.22
Em seu estudo sobre o Sphan, Rubino23
observa que em Casa grande e senzala, de
Gilberto Freyre, que se explica o exemplar arquitetnico como representao da sociedade
colonial, e em Lcio Costa que se articula o moderno ao tradicional, por meio da casa
brasileira. Ambos, assim, vincularam Arquitetura e Histria do Brasil, funo que
continuaria a marcar a formao dos arquitetos, especialmente os preservacionistas, e que
aparecia no projeto de Mrio de Andrade para o Servio de Patrimnio Artstico Nacional,
22
A produo de obras como Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, Evoluo poltica do Brasil, de Caio
Prado Junior, ambas publicadas em 1933, e Razes do Brasil, de Srgio Buarque de Holanda, de 1936,
levaram Mota (1980) a classificar o perodo entre 1933 e 1937 como o redescobrimento do Brasil. 23
Rubino, 1991.
-
Imagens do passado
16
como um dos elementos da arte histrica, embora ampliado para exemplares tpicos das
diversas escolas e estilos arquitetnicos que se refletiram no Brasil.24
A valorizao exclusiva da arquitetura tradicional, j se manifestara em 1937,
quando o assistente da 6 Regio do Sphan, Mrio de Andrade, diante de So Paulo, cidade
marcada pelo ecletismo, smbolo do progresso e da modernidade presente at mesmo nas
casas de bairros populares e de classe mdia, ainda que apenas em detalhes decorativos,
afirmou:
no possvel entre ns descobrir maravilhas espantosas, do valor das mineiras, das
baianas, das pernambucanas e paraibanas em principal. A orientao paulista tem que
se adaptar ao meio; primando a preocupao histrica esttica. Recensear e
futuramente tombar o pouco que nos resta seiscentista e setecentista, os monumentos
onde se passaram grandes fatos histricos. Sob o ponto de vista esttico, mais que a
beleza propriamente (esta quase no existe) tombar os problemas, as solues
arquitetnicas mais caractersticas e originais.25
Centrado na histria memria da arquitetura brasileira ponto de vista a partir do qual
percebia a histria memria da nao, o Sphan estabeleceu uma ortodoxia preservacionista
que s viria a ser contestada a partir da dcada de 1970, diante de fatores diversos, como a
intensificao do debate sobre cultura, especialmente do aspecto de suas relaes com o
Estado, e a ampliao das pesquisas de histria relativas aos perodos do Imprio e da
Repblica, o que propiciaria a incorporao de novos elementos memria histrica. Alm
disso, no plano internacional, a discusso sobre patrimnio deslocara-se do objetivo de
materializar as memrias nacionais e da noo de monumento histrico isolado, para a de
integrao do patrimnio ao planejamento urbano e territorial e, definitivamente, indstria
cultura.
Choay26
observa que o patrimnio assumiu a representao da cultura ocidental a
partir da mundializao dos valores e referncias internacionais concernentes a seu trato,
em especial as convenes e recomendaes da Unesco, entre as quais a da Conferncia
Geral de Genebra, em l972, na qual se criou a categoria de patrimnio cultural da
24
Brasil, 1980b, p.93. 25
Carta de Mrio de Andrade a Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 23.5.1937, in Andrade, 1981, p.69. 26
Choay, 1992, p.158-86.
-
Imagens do passado
17
humanidade para classificar os monumentos histricos de excepcional valor universal,
quer do ponto de vista da histria, quer do da arte ou da cincia.
Permaneceria, porm, a capilaridade entre a Histria da Arquitetura brasileira e a
eleio do patrimnio nacional; aquela buscaria documentar-se nos bens tombados,
enquanto esta encontraria na Histria da Arquitetura brasileira as justificativas para o
reconhecimento e proteo oficiais. E foi com as escolas de Arquitetura que o Sphan
divulgou sua ortodoxia e formou a mentalidade preservacionista dos futuros profissionais
do patrimnio complementada pela prtica, em estgios no Patrimnio. Antnio Luiz
Dias de Andrade, renomado profissional da rea preservacionista, formado no incio da
dcada de 1970, assim narrou sua experincia:
sobre a questo do patrimnio, sobre o problema da preservao, na escola comentava-
se um problema que surgia, mas muito pouco sistematizado ... as questes do
patrimnio surgiam no diretamente, mas no curso dos estudos sobre histria da
arquitetura ... estavam relacionadas mais com a pesquisa sobre a arquitetura tradicional
do que com a questo terica ou conceitual do patrimnio, e se dava muito em funo
da explicao da arquitetura brasileira.27
A viso do significado dessa relao se completa com a vivncia de turmas
anteriores, da dcada de 1950, da qual fala Nestor Goulart Reis Filho.28
Nesse perodo, o
Grmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de So Paulo mantinha atividades
culturais de incentivo ao conhecimento da arquitetura tradicional, por meio do Centro de
Estudos Folclricos. Influenciados por Lus Saia, diretor e personificao do Patrimnio
em So Paulo, e sob o olhar inspirador de Mrio de Andrade, cujo retrato pendia de uma
das paredes da sala onde funcionava o Grmio, os estudantes organizavam estudos e le-
vantamentos de campo sobre a arquitetura tradicional paulista.
27
Entrevista concedida autora em 20.9.1991. 28
Entrevista concedida autora em 14.10.1991.
-
Imagens do passado
18
De So Paulo para o Brasil
Na primeira metade da dcada de 1930, a oposio liberal paulista concentrada em
torno da famlia Mesquita, proprietria do jornal O Estado de S. Paulo, conseguiria realizar
parte de um programa de atuao, que se estruturara na dcada anterior, de combate crise
nacional, que acreditava haver sido causada com o estabelecimento do domnio
oligrquico na Repblica.29
Em seu entender, o combate oligarquia se faria com a
democratizao do ensino, fator que, combatendo o analfabetismo, possibilitaria a amplia-
o do direito de voto; acreditava-se que, estendida para o grau secundrio, a ampliao das
oportunidades de formao escolar permitiria tambm a seleo das elites dirigentes em
todas as classes sociais.
O desenvolvimento desse projeto dependia de condies polticas, em parte
alcanadas em 1933, quando Armando de Salles Oliveira foi nomeado interventor em So
Paulo. No ano seguinte, por iniciativa do poder estadual, foi criada a Universidade de So
Paulo, congregando as faculdades j existentes em torno da recm-criada Faculdade de
Filosofia, Cincias e Letras cujo objetivo primeiro era a formao de professores para o
curso secundrio, considerado celeiro das elites polticas.
A inteno de promover o desenvolvimento cultural e educacional resultou tambm
na formao do Departamento de Cultura da Prefeitura de So Paulo, cidade cujo governo
estava nas mos da oposio liberal. Criado em 1934, segundo projeto de Mrio de
Andrade e Paulo Duarte, o Departamento concentrou suas atividades na expanso da rede
de bibliotecas pblicas, na organizao de arquivos documentais, na criao de parques
infantis e no desenvolvimento de pesquisas, especialmente as sociolgicas, etnogrficas e
folclricas.30
A preocupao com o resgate da cultura paulista faria Mrio de Andrade, aps a
organizao do Departamento, propor a ampliao de suas atribuies para a defesa do
patrimnio histrico e artstico. Em carta dirigida a Rodrigo Mello Franco de Andrade, ele
transcreveu o Artigo 180 do Ato 1.146 da Consolidao da Organizao Geral da
Prefeitura, que colocava sob responsabilidade do Diretor do Departamento de Cultura o
29
Ver Cardoso, 1982. 30
Ver Duarte, 1977.
-
Imagens do passado
19
traar, organizar e fazer executar o plano geral do tombamento de defesa do patrimnio
artstico e histrico do Municpio.31
A ideia de proteo oficial ao patrimnio, antes s defendida pelos cultualistas do
passado, se incorporara ao iderio de modernizao do pas, abraado pelos intelectuais,
direta ou indiretamente, relacionados ao modernismo e, por meio deles, como condio de
sua prpria realizao, foi vinculada ao projeto da oposio liberal paulista.
No centro dessa incorporao est o pensamento de Mrio de Andrade, no qual o
interesse pelas tradies mveis como a dana, a poesia e a cantiga populares, nas quais
ele fundava a brasilidade, espcie de civilizao especfica capaz de inserir os brasileiros na
universalidade moderna, sem perder sua identidade fundiu-se ao interesse das tradies
imveis, provavelmente a partir do conhecimento da obra de Gilberto Freyre e de Lcio
Costa, bem como do contato com o cultualismo bandeirante do Instituto Histrico e
Geogrfico de So Paulo, ao qual, como grande parte dos intelectuais da poca, fora
filiado.32
Paulo Duarte, companheiro de Mrio de Andrade no Departamento de Cultura,
eleito deputado pelo Partido Constitucionalista, em 1933, procuraria estender o iderio
daquela instituio para o Estado de So Paulo e, posteriormente, para o Brasil, caso o
candidato da oposio democrtica paulista presidncia da Repblica, Armando de Salles
Oliveira, vencesse as eleies programadas para 1938. Seria ento criado o Instituto
Brasileiro de Cultura, rgo que centralizaria os institutos estaduais a serem organizados a
partir do modelo paulista proposto por Paulo Duarte. Tratava-se de dar o melhor de So
Paulo para melhorar o Brasil. Duarte pretendia estabelecer estreita vinculao entre os
institutos e as universidades; os primeiros, sob a forma jurdica de fundaes, receberiam
subvenes do Estado, segundo o previsto pela Constituio de 1934, uma porcentagem de
impostos destinada aos servios educativos.33
No segundo semestre de 1936, antes que tramitasse no Congresso Nacional o
projeto de criao do Servio de Patrimnio, Paulo Duarte preparava a organizao do
31
Carta de 6.4.1937, in Andrade, 1981, p.65. 32
Andrade, 1976. 33
Duarte, 1977, p.61.
-
Imagens do passado
20
departamento de patrimnio paulista. Para isso, pretendia tomar como modelo o projeto
elaborado por Mrio de Andrade a pedido de Gustavo Capanema, no incio daquele ano.
A inteno de Paulo Duarte colocaria em cuidados Mrio de Andrade e Rodrigo
Mello Franco de Andrade, que procuraram contornar possveis mal-entendidos, uma vez
que So Paulo era um reduto de oposio a Vargas e a criao de um rgo estadual com a
mesma finalidade do servio federal poderia trazer problemas de atribuio e ferir as
perspectivas centralizadoras da Unio. De fato, Capanema solicitaria
retardar por algum tempo a apresentao do projeto estadual, at que se saiba ao certo
o que a Cmara far do servio federal.34
Em outubro de 1936, Capanema e Rodrigo elaboraram a mensagem presidencial que
remetia o anteprojeto do Sphan Cmara. Diante disso, Paulo Duarte adiou a apresentao
de seu projeto de modo a incorporar artigos de interesse que porventura iriam constar da lei
federal. Um ano depois nada se resolvera em relao ao Servio Nacional e Duarte
apresentou seu projeto ao Legislativo paulista.35
O fato foi precedido de intensa campanha
entre junho e novembro de 1937, no jornal O Estado de S. Paulo.
compreensvel que O Estado, porta-voz de parte da oposio democrtica
paulista, dirio que prestava total apoio a Armando de Salles Oliveira, tenha abraado a
defesa do Departamento de Patrimnio Histrico e Artstico de So Paulo.
Durante aproximadamente cinco meses foram publicados artigos e discursos de
Paulo Duarte, editoriais, ofcios, comentrios e cartas de apoio de intelectuais e instituies
to diversas como a Academia Paulista de Letras, a Sociedade de Sociologia, o Instituto de
Estudos Genealgicos, a Sociedade de Etnografia e Folclore e o Instituto Histrico e
Geogrfico de So Paulo. Este passaria a coordenar a campanha um ms aps seu
lanamento.
A exemplo do que ocorrera na Frana no final do sculo XVIII quando, ao
alcanar o poder a ala moderada da burguesia consagrou o termo vandalismo como crime
contra o patrimnio , a campanha paulista tambm opunha vandalismo e proteo.
34
Carta de Rodrigo M. F. de Andrade para Mrio de Andrade, em 25.9.1936, in Andrade, 1987, p.121.
35 Projeto de Lei n.279, apresentado na 74
a Sesso da Assembleia Legislativa de So Paulo, em 7 de outubro
de 1937.
-
Imagens do passado
21
Intitulada Contra o vandalismo e o extermnio, ela mobilizou liberais e conservadores aos
quais, por razes diversas, parecia imprescindvel salvar os documentos materiais da
histria de So Paulo,36 ameaados pelo progresso, pela incria dos homens estrangeiros
indiferentes ou caboclos broncos, em suma, o povo inculto e pelo descuido dos poderes
pblicos.
Para os liberais, a ao de proteger o patrimnio guardava um carter educativo.
Plinio Ayrosa, em um artigo no qual defendia a criao do Departamento, apontava a falta
de amor ao passado como um caracterstica do nosso povo cujo cosmopolitismo impedia a
formao de uma conscincia nacional; as instituies culturais, segundo Ayrosa, tinham o
papel de aproximar o povo das coisas de sua terra.37
Do ponto de vista conservador, a iniciativa de Paulo Duarte propiciaria o resgate do
que se supunha estar ameaado pela ordem social urbana, ao mesmo tempo em que
representava o reconhecimento do valor de um passado que se julgava comum. Afonso Jos
de Carvalho, em discurso pronunciado no Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo,
classificou a criao de um rgo de patrimnio como um esforo de
exaltao e reabilitao dos homens e dos fatos at ento nunca desenvolvido atravs
da conservao das verdadeiras testemunhas imveis da arte, do engenho e da vontade
dos antigos vares formadores da histria bandeirante.38
Os remanescentes materiais que referenciavam opinies to diversas compunham
um s corpo representativo, o da histria bandeirante. Essa fora construda desde o final do
sculo XIX no interior do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo por uma elite que
pretendia estruturar a Repblica. Como registra Schwarcz,39
construiu-se uma histria
regional que procurava dar conta da totalidade brasileira.
Sintetizada na figura do bandeirante, a histria paulista foi revigorada durante a
dcada de 1920, momento de avano da oposio democrtica, que a usaria como emblema,
e do nacionalismo, no quadro do qual se impunha o conhecimento do nosso passado,
36
Duarte, 1938, p.29. 37
Publicado em 16.6.1937, in Duarte, 1938, p.172. 38
Sesso de 5.10.1937, in Duarte, 1938, p.224. 39
Schwarcz, 1989, p.45-50.
-
Imagens do passado
22
tambm como fator de nacionalizao do filho do imigrante, condio necessria para se
constituir em bases slidas a mentalidade de nova gerao de brasileiros.40
A veemente retrica de Paulo Duarte encontrou, por isso, campo frtil ao apontar o
calamitoso estado de conservao dos documentos materiais da histria de So Paulo,
como Cotia que j no tem nada da Acutia de Ferno Dias Pais e Gaspar Godi
Moreira.41 Ento, como atualmente, a ideia de preservar estava diretamente relacionada
de perda e implicava o desejo de retomada total de situaes que s o podiam ser
fragmentariamente, uma vez que o passado impossvel de ser reconstitudo em sua
totalidade e sentido.
Baseado no estudo de Mrio de Andrade, no anteprojeto de lei redigido por Rodrigo
Mello Franco de Andrade e nas legislaes francesa e italiana, Paulo Duarte props um
Departamento cuja atribuio era
prover e superintender aos servios de organizao, guarda, tombamento, preservao,
defesa, enriquecimento e propaganda do patrimnio histrico e artstico de So
Paulo.42
Cabia tambm ao Departamento a administrao de alguns museus a serem criados
no Estado, o controle do trabalho de misses cientficas estrangeiras e a promoo de
publicaes.
O Departamento seria composto por um Conselho Deliberativo, do qual fariam parte
oito profissionais historiador, etnlogo, arquelogo, msico, pintor, escultor, arquiteto e
biblifilo com mandato de dois anos e substituio de apenas 50% dos conselheiros a
cada ano, de modo a permitir a continuidade dos trabalhos.43
Enquanto o projeto de Paulo Duarte estava sendo revisto pela Comisso de
Educao e Cultura da Assembleia paulista aps a apresentao de 54 emendas cuja
finalidade era desvincular a proteo do patrimnio histrico da proteo do patrimnio
40
Discurso de Alfredo Ellis, in So Paulo, Cmara dos Deputados, Anais da Sesso Ordinria de 1926, 51a
sesso, 30.9.1926. 41
Artigo publicado no Suplemento em Rotogravura de O Estado de S. Paulo em 1937, in Duarte 1938, p.29. 42
Projeto de Lei n.279. Anais da Sesso Ordinria da Assemblia Legislativa do Estado de So Paulo, 1937. 43
Ibidem.
-
Imagens do passado
23
artstico, proposta que atendia os interesses contrrios integrao da Pinacoteca44
ao
Museu de Artes Plsticas a ser criado, subordinado ao Departamento do Patrimnio ,
aconteceu o golpe do Estado Novo, em 10 de novembro, em decorrncia do qual foram
suspensos o funcionamento do legislativo e as eleies.
Pouco tempo depois, uma carta de Rodrigo Mello Franco45
a Mrio de Andrade
revela ter havido alguma movimentao provavelmente encabeada pelo prprio Paulo
Duarte para a criao do Departamento, por meio de decreto do Executivo paulista. De
fato, nenhuma medida se concretizou.
Outras tentativas
De 1937 a 1968, a instituio do patrimnio de So Paulo foi atribuio exclusiva
do poder federal. Desta atuao resultou o reconhecimento de edificaes remanescentes do
povoamento do litoral, as casas rurais bandeiristas, sedes de antigas fazendas de caf,
capelas e igrejas dos seiscentos, como representaes mximas do passado paulista. A
importncia desse trabalho regional foi inestimvel. Porm, em parte pela perspectiva que o
norteava, o conhecimento da arquitetura regional acabou por assumir caractersticas de
assunto acadmico, que dizia respeito apenas a especialistas, distanciando do cotidiano da
maioria da populao, para a qual os bens eram apresentados como portadores de
importncia para a histria da nao e da arquitetura brasileira. Desse modo, bens antes
vistos como integrantes da paisagem cotidiana tenderam a representar um universo distante,
alheio ao cidado comum, espcie de ddivas resgatadas do esquecimento pela ao heroica
de pioneiros.
Do ponto de vista da sociedade, esse quadro se prolongaria at a dcada de 1970,
quando a preservao ambiental e, depois, a da memria passaram a ser vistas como um
direito a ser conquistado ou mantido. compreensvel, portanto, que as propostas de
extenso da responsabilidade do poder estadual ao patrimnio que se seguiram de Paulo
Duarte, assim como esta, no partissem de reivindicaes da sociedade, mas nascessem nos
44
Desde janeiro de 1932, por fora do Decreto n.5.361, a Pinacoteca achava-se sob guarda da Escola de Belas
Artes, entidade privada dirigida por Paulo Vergueiro Lopes de Leo. 45
Carta de 3.12.1937, in Andrade, 1987, p.141.
-
Imagens do passado
24
pequenos crculos voltados para a cultura e para a histria, entendida como fator de civismo
e tradio. Para essas elites, a destruio dos bens devia-se ignorncia da populao que
no permitia que se compreendesse o alcance histrico e cultural dos bens que tinha a seu
redor.
No incio da dcada de 1950, usando uma das competncias do rgo federal, a
realizao de acordos com vista a melhor coordenao e desenvolvimento das atividades
relativas proteo do patrimnio,46 Lus Saia, diretor do 4o Distrito do Dphan, em So
Paulo, sugeriu a elaborao de um projeto apresentado pelo deputado Antnio da Cunha
Bueno ao legislativo. Tornado Lei n.1.048 em 5 de junho de 1951 pelo governador Lucas
Nogueira Garcez, previa a criao de um servio de patrimnio que atuaria sempre em
colaborao com o rgo federal. O acordo deveria ser elaborado por uma comisso e
aprovado pelo Legislativo.
Em seu trabalho Morada paulista, Saia47
no faz referncia lei de 1951, mas
lamenta que, em 1953, tenha desaparecido misteriosamente nos escaninhos do Palcio e da
poltica um projeto entregue ao governador. Tratava-se, provavelmente, do estudo a ser
aprovado pelo Legislativo para funcionamento da lei, cujo documento bsico foi
denominado Sugestes para uma frmula de colaborao.
Esse documento,48
possivelmente elaborado com a colaborao de Saia, demonstra
que, mais do que transformaes na estrutura de proteo ao patrimnio, buscava-se
ampliar a possibilidade de ao do rgo federal. O Sugestes estabelecia uma espcie de
hierarquia cultural dos bens arquitetnicos cuja responsabilidade financeira de manuteno
era dividida entre o poder estadual e o federal, a saber: As casas grandes rurais do segundo
sculo, ... documentos nicos em todo o Brasil, e as residncias urbanas e rurais do sculo
XVIII, das quais interessava resguardar pelo menos um documento de cada tipo de
arquitetura, caberiam ao Dphan. Aquele exemplares que, embora excelentes documentos,
no apresentam importncia nacional ficariam a cargo dos cofres estaduais cabendo,
porm, ao rgo federal a exclusividade de orientao na aplicao de verbas e de
assistncia tcnica.
46
Decreto-lei n.25, Art.23, in Brasil, 1980b, p.111-9. 47
Saia, 1972, p.56.
48 Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan), Arquivo 9
o CR, Pasta AD24.1, doc. 006.
-
Imagens do passado
25
Mantinha-se, portanto, a garantia de que os cuidados com o patrimnio
continuariam a ser aplicados segundo a prtica j estabelecida e, alm disso, que o trato
com os documentos da Histria da Arquitetura permaneceria sob o controle do Dphan. Tais
cuidados revelam ainda o esprit de corps existente entre os poucos profissionais do
patrimnio, extremamente zelosos de sua atividade e posio. A distino de atribuies
no aparecia no anteprojeto do qual resultou a lei; segundo esse documento, ao servio
estadual caberia colaborar com o Dphan e velar pela preservao do acervo histrico e
artstico regional. Suas atribuies seriam:
inventariar, estudar e classificar as coisas mveis e imveis de valor histrico, artstico,
arqueolgico e etnogrfico, assim como os stios naturais a eles equiparados e
quaisquer outros bens de natureza equivalente.49
No seria da competncia do servio estadual tombar, mas apenas organizar uma
listagem de bens que, embora no tombados pelo rgo federal, devessem ser preservados
e zelados como parte integrante do patrimnio histrico e artstico de So Paulo.50
Em 1957, Jnio Quadros, ento frente do governo do Estado, manifestou a
inteno de ampliar a ao cultural de seu governo, nomeando uma comisso composta por
Srgio Buarque de Holanda, Lourival Gomes Machado e Ernani da Silva Bruno, para
elaborar o anteprojeto de criao do Servio de Patrimnio Histrico e Artstico do Estado
de So Paulo.51
Lus Saia52
informa que essa comisso retomou as sugestes anteriores e quando o
trabalho j estava quase terminando, uma pendncia entre o governador e os professores da
Universidade provocou a demisso de Gomes Machado e Buarque de Holanda, substitudos
por Paulo Duarte a Herbert Baldus.
Segundo notcias veiculadas pela imprensa, pretendeu-se, ento, criar um rgo com
plenos poderes. Em razo disso, um editorial de O Estado de S. Paulo, depois de elogiar a
49
Ibidem, doc. 002. 50
Ibidem, doc. 002. 51
Dirio de So Paulo, 28.10.1957, p.12. 52
Saia, 1972, p.56.
-
Imagens do passado
26
ideia, recomendava a realizao de um convnio entre Estado e Unio de modo a serem
evitadas prejudiciais concorrncia e interferncia.53
Ainda dessa vez o servio estadual de proteo ao patrimnio no seria constitudo.
A administrao Quadros optou por orientar sua ao no campo da cultura histrica para
a instalao de museus histricos e pedaggicos na sede de diversos municpios paulistas.
Partindo de uma perspectiva cvica e disciplinadora, os museus visavam manter
permanente culto das tradies nacionais, incentivando as interpretaes de dados
histricos, o trato constante coma documentao, a evocao dos grandes vultos da histria
ptria e os seus lances gloriosos, com o duplo objetivo de esclarecer e edificar, contribuindo
para formar uma vigilante conscincia cvica entre os estudantes de nossas escolas,
conforme esclarecia um documento oficial.54
Com o objetivo de complementar a ao dos museus, o governo estadual tambm
criou o Servio de Reconstituio Histrica Municipal,55
que, com unidades instaladas em
cada municpio, deveria incentivar a pesquisa das histrias locais.
Posteriormente, a instalao de um rgo estadual de patrimnio foi includa, em
1962, entre as propostas do 2 Plano de Ao do Governo Carvalho Pinto, mas tambm no
se efetivou.
53
O Estado de S. Paulo, 29.11.1957, p.2. 54
Mensagem do governador Jnio da Silva Quadros Assembleia Legislativa em 14.3.1958, So Paulo:
Imprensa Oficial, 1958, p.162. Os Museus Histricos Pedaggicos foram criados pelo Decreto n.26.218 de
3.8.1956. 55
Decreto n.32.767 de 16.6.1958.
-
Imagens do passado
27
Um servio de patrimnio de So Paulo
A proteo do governo paulista se estenderia ao patrimnio histrico apenas em
1968, com a criao do Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Artstico e Turstico
(Condephat), cujas atribuies um ano depois alcanaram a guarda do patrimnio
arqueolgico, razo do acrscimo de mais uma vogal em sua sigla.
A criao do Condephaat tornou-se possvel quando fraes conservadoras e
tradicionalistas da burguesia paulista buscaram reafirmar a identidade bandeirante nos
limites do quadro autoritrio estabelecido em 1964. O ato protetor pressupunha uma
ameaa de destruio quase sempre atribuda, pelos que escrevem a histria, queles que
nela no so includos. Essa ideia j estivera presente na campanha de Paulo Duarte,
Contra o vandalismo e o extermnio, mostrando que de h muito as elites
intelectualizadas de So Paulo haviam entendido a proteo do patrimnio como uma
misso civilizadora.
Proteger o patrimnio era mais um trao distintivo desse grupo em relao aos
demais que compunham a sociedade. Em seu discurso de final de mandato, em 1971, Lucia
Piza Figueira de Mello Falkenberg, primeira presidente e uma das idealizadoras do
Condephaat, referindo-se aos conselheiros afirmou:
Cada um de ns, independentemente, em diferentes posies e em diferentes
situaes, h muito lutava desesperadamente em defesa deste patrimnio que
desaparecia dia a dia em mos ignorantes, de interesses particulares e acima de tudo
dos que desconhecem o que brasilidade.1
As condies propcias criao do Condephaat surgiram durante a gesto de
Roberto Costa de Abreu Sodr, em 1967, eleito governador pela Assembleia Legislativa.
1 IBPC, Arquivo 9 CR, Pasta AD24.2, doc. 005.
-
Imagens do passado
28
O Grupo Executivo da Reforma Administrativa (Gera), por ele institudo,
reorganizou a administrao estadual criando, entre outros rgos, a Secretaria de Cultura,
Esporte e Turismo, qual foram sendo agregadas instituies culturais antes locadas nas
Secretarias de Governo e de Educao.2
Um dos responsveis pelo Gera, Lus Dria,3 observa que no existia ento um
programa de governo articulado antecipadamente, o que daria chance concretizao de
propostas de diferentes setores da sociedade, segundo sua possibilidade de acesso aos
canais de deciso. Assim, Jos Bonifcio Coutinho Nogueira, em 1967, articulou a
organizao da Fundao Padre Anchieta,4 destinada a promover atividades educacionais e
culturais pelo rdio e pela televiso. Luiz Arrbas Martins, secretrio do Planejamento e,
depois, da Fazenda, empenhou-se na organizao do Festival de Inverno de Campos do
Jordo, na instalao do Museu de Arte Sacra5 e, com a assessoria de Waldisa Russio, dos
Museus da Imagem e do Som,6 da Casa Brasileira
7 e do Pao das Artes.
8
Tais iniciativas, inscritas no quadro da expanso do mercado cultural, no
obedeceram a um plano estabelecido a partir de uma poltica de governo, mas refletiram,
segundo Waldisa Russio,9 os projetos de uma vanguarda poltica e intelectual que pde
operar aproveitando contradies do governo autoritrio e traduzindo, sua maneira, a
obrigao constitucional de o Estado amparar a cultura. Congregando oposicionistas de
diversos matizes, essa vanguarda procuraria superar o didatismo que marcara o discurso
nacional-populista e projetar a popularizao de uma viso erudita da cultura brasileira.10
2 Na Secretaria de Cultura, criada pelo Decreto n.49.165 de 29.12.1967, foram sendo locados o Arquivo do
Estado, o Servio de Museus Histricos, o Servio de Fiscalizao Artstica, a Pinacoteca e o Conselho
Estadual de Cultura. 3 Entrevista concedida autora em 21.2.1992.
4 Lei n.9.849, de 26.9.1967.
5 Decreto-lei de 28.10.1969.
6 Decreto n.247 de 29.5.1970.
7 Decreto n.246 de 29.5.1970.
8 Decreto n.52.423 de 25.3.1970.
9 Entrevista a Maria Lucia Pinheiro Ramalho e Walter Pires, em 25.4.1984, Centro de Documentao do
Condephaat. 10
Seu projeto mais ambicioso foi a criao do Centro Estadual de Cultura cuja proposta coube a um grupo
especial organizado em 1970; os estudos foram interrompidos na gesto Laudo Natel. O Centro, integrado ao
Palcio dos Campos Elseos onde deveria ser instalado o Museu da Civilizao Urbana do Caf, segundo proposta de Paulo Emlio Salles Gomes , concentraria a maior parte das atividades culturais promovidas pelo governo; teria teatros, salas de projeo, de conferncias e atelis.
-
Imagens do passado
29
Chama a ateno que o esforo dessa vanguarda no abarcasse a atividade
patrimonialista. Se isso, por um lado, se relaciona prpria postura dos preservacionistas
que protegiam a rea como um campo de atuao de portadores de saber arquitetnico ,
por outro, provavelmente, deveu-se a concepo de ao cultural do Estado, que desde
ento privilegiava o espetculo e as artes plsticas limitando o cuidado com a memria a
criao de arquivos e museus.
A rea do patrimnio histrico configurava-se, portanto, como de atividade cultural
no prioritria, distante, cujos contornos eram difusos, afeta a poucos profissionais da
arquitetura e eruditos que viam na histria uma forma de expresso de seus conhecimentos
e de culto ao passado. Este ltimo aspecto, em particular, talvez motivasse o pequeno
interesse dos profissionais da histria pelo patrimnio; esses, em grande parte, concebendo
a histria como conhecimento cientfico da sociedade, restringiam suas atividades a
docncia.
Assim a proposta de criao de um rgo de defesa do patrimnio pde impor-se a
partir da mesma matriz conservadora e tradicionalista que influra, por intermdio de
Vinicio Stein Campos, na criao dos Museus Histricos e Pedaggicos e do Servio de
Reconstituio Histrica, na segunda metade da dcada de 1950, durante o governo Jnio
Quadros.
Vinicio Stein Campos e Lucia Falkenberg estavam entre os fundadores do Instituto
Histrico e Geogrfico de Guaruj e Bertioga, criado em 1958 e, dois anos depois,
reconhecido como de utilidade pblica. Entre seus objetivos constava o de
identificar e preservar os marcos referenciais da colonizao portuguesa no litoral
paulista, desde o sculo XVI, que se encontravam em completo abandono e cuja perda
seria inestimvel constituio da memria social.11
A ao do Instituto ia ao encontro do que preconizava o Decreto Estadual de 1958
referente reconstituio do quadro histrico dos municpios paulistas; ele promoveria
cursos, comemoraes cvicas, organizaria museus e incentivaria o restauro de
remanescentes da ocupao lusitana no litoral.
11
IHGGB, s.n.t., p.13.
-
Imagens do passado
30
Museus Pedaggicos, Servios de Reconstituio Histrica e Instituto afiguram-se
pontos constitutivos de um mesmo projeto de defesa da tradio que se completou com a
criao do Condephaat. Como observou Lucia Falkenberg, o Conselho atendia urgncia
de coibir as destruies sucessivas que vinham dizimando o patrimnio cultural de So
Paulo.12 A proteo pretendida, embora formalmente no difira da proposta pelo rgo
federal de patrimnio, se origina de uma perspectiva diversa que guardava um profundo
sentido cvico; isso e o interesse em promover o turismo fizeram que o governo paulista
acampasse a idia de proteger bens culturais.
A interveno do Estado na cultura, que, desde 1964, se tornara incisiva, alcanaria
o patrimnio histrico sob o ponto de vista de sua valorizao econmica.13
Esse aspecto
tornara-se relevante no apenas no Brasil. O documento final do encontro promovido pelo
Departamento de Assuntos Culturais da Organizao dos Estados Americanos (OEA),
realizada em Quito, em novembro de 1967, do qual o Brasil foi signatrio, recomendava
que projetos de valorizao do patrimnio monumental fizessem parte dos planos de
desenvolvimento nacional e fossem realizados simultaneamente com o equipamento
turstico das regies envolvidas. Recomendava-se, ainda, a cooperao dos interesses
privados e o respaldo da opinio pblica para o desenvolvimento dos projetos.14
A explorao sistemtica das atividades tursticas estava entre as intenes do
governo Castelo Branco. Ele institura o Conselho Nacional de Turismo e a Empresa
Brasileira de Turismo (Embratur),15
ambos voltados a coordenar as atividades do turismo s
necessidades do desenvolvimento econmico e cultural, e o Sistema Nacional de Turismo,
esse em 1967, ano em que tambm se realizou o I Encontro Oficial de Turismo Nacional.
Tratava-se de fomentar uma atividade econmica que atendia ao desenvolvimento social,
meta que com a segurana e a integrao nacionais constituam o ncleo da poltica do
governo federal. A valorizao turstica do patrimnio j se mostrara eficiente em outros
12
O Estado de S. Paulo, 18.3.1971, p.5. 13
O dever do Estado amparara cultura foi firmado no Artigo 180 da Constituio Federal e na Constituio
Estadual de 1967, Artigo 128. Miceli (1984) observa que, no mbito federal, a presena do Estado foi
proporcional impossibilidade de autofinanciamento de uma atividade o que, entre outros fatores,
impulsionou uma postura eminentemente patrimonial que se voltava quer para a restaurao de monumentos de pedra e cal e outras de arte do passado ... como para as atividades que no encontravam receptividade no mercado de bens culturais. 14
Encontro de Quito, in Unisinos, 1986, p.75. 15
Decreto-lei n.55, de 18.11.1966.
-
Imagens do passado
31
pases e, alm disso, possibilitava a manipulao de um universo simblico de considervel
importncia para o reforo do civismo. A propaganda dos monumentos histricos,
juntamente com as das festas tpicas e das belezas naturais, promoveria aos olhos do
mundo e dos brasileiros a imagem de um pas com tradio e potencialidade para enfrentar
o futuro.
Em So Paulo, o governador Sodr promoveria em 1967 uma reforma
administrativa que uniu as atividades oficiais de turismo s da cultura e esportes, tendo por
objetivo, entre outros, o de melhor coorden-las;16
assim foi criada a Secretaria de Cultura,
Esporte e Turismo, qual ficaria subordinado o rgo de preservao do patrimnio criado
no mesmo governo. At ento, as questes culturais haviam sido tratadas no mbito da
Secretaria de Educao; a criao de uma secretaria voltada para os negcios da cultura se
daria apenas quando essa j se configurara como indstria no Brasil e como tal passara a
interessar ao poder pblico.
A criao do rgo de proteo ao patrimnio em So Paulo inscreveu-se nos
contornos do culto cvico ao passado e da consagrao pragmtica desse mesmo passado,
como produto de consumo cultural valorizado com a expanso da indstria do turismo.
Essas concepes opunham-se quela, de matriz modernista, que orientara a formao do
Sphan e dos profissionais que atuavam no Patrimnio, segundo a qual o passado era
referncia para a constituio da nacionalidade e fonte de conhecimento da Histria da
Arquitetura.
Embora anteriormente apresentada ao governador Laudo Natel,17
a ideia de criao
de um rgo estadual de patrimnio s pode desenvolver-se durante a discusso da nova
Constituio Estadual. Em maio de 1967, a deputada Dulce Sales Cunha Braga props
Assembleia Legislativa a emenda n.565, que previa fosse includa no texto constitucional a
criao do Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico e Artstico do Estado. A proposta
seria vetada pela Comisso Especial por considerar que a matria seria melhor tratada por
lei ordinria.18
16
Decreto n.49.165 de 29.12.1967. 17
Entrevista de Lucia Falkenberg a Maria Lucia Pinheiro Ramalho e Walter Pires, s. d., Centro de
Documentao do Condephaat. 18
So Paulo, Assembleia Legislativa de So Paulo, GAT Seo de Documentao. Proposies apresentadas Constituio do Estado de So Paulo, 1967/1975. Parecer n.385/67, relator Slon Borges dos Reis, p.32.
-
Imagens do passado
32
A parlamentar, porm, voltaria ao plenrio argumentando com a convico de estar
defendendo uma causa justa:
Justamente nesta poca de subverso dos valores artsticos e desprezo dos
valores histricos, impe-se a criao de um rgo estatal nem sequer oneroso ao
errio estadual, que promova no somente o levantamento do patrimnio espiritual dos
paulistas como tambm a defesa deste mesmo patrimnio, atravs de projetos e
propostas de governo, atravs da defesa de nossa paisagem, considerada mundialmente
monumento natural, defesa de nossas bibliotecas, museus, obras de arte, igrejas, inclusive assistncia tcnica, artstica aos municpios que necessitem ... Todas as
atividades que pretendemos reunir como atribuio desse Conselho se acham esparsas
e perdidas junto a rgos pertencentes a diversas secretarias de Estado, numa flagrante
evaso de esforos que se deveriam concentrar na consecuo de um objetivo
comum.19
Apesar do exagero retrico prprio da tribuna, a fala da deputada deixa entrever um
rgo centralizador, de funes to amplas quanto pouco definidas, talvez pretendido nos
moldes do Conselho Estadual de Cultura,20
rgo constitudo por comisses que, contando
com uma pequena estrutura administrativa, tratava de questes referentes a reas diversas
como o teatro, as artes plsticas e publicaes. A criao do Condephaat foi consignada no
Artigo 128 da nova Constituio, na qual tambm se firmou o dever do Estado amparar a
cultura.
Em setembro de 1967, o governador Sodr assinou a Resoluo n.1.926, instituindo
na Secretaria de Governo, sob a responsabilidade do titular da pasta, uma comisso especial
para elaborar um anteprojeto de lei dispondo sobre o amparo cultura e a proteo do
patrimnio histrico, artstico e turstico do Estado. A Comisso foi composta pelo assessor
cultural da Secretaria de Governo, Miroel Silveira; pelo procurador do Estado, Olavo
Fernandes; por Vinicio Stein Campos, diretor do Servio de Museus Histricos e
Pedaggicos da Secretaria de Educao; por Lucia Piza Figueira de Mello Falkenberg,
presidente do Instituto Histrico e Geogrfico de Guaruj-Bertioga; por Eurpedes Simes
19
Discurso, 31 Sesso Extraordinria, 8.5.1967, Assembleia Legislativa de So Paulo, DROAG, Caixa 25,
1967. Tambm publicado no Dirio Oficial do Estado de So Paulo, 12.5.1967. 20
O Conselho Estadual de Cultura fora criado pelo Decreto n.34.825 de 9.4.1959 e era ligado Secretaria de
Educao.
-
Imagens do passado
33
de Paula, diretor do Museu de Arte e Arqueologia da USP; e pelo jornalista Francisco Ruiz
Ribeiro.21
O projeto elaborado pela Comisso que contara extraoficialmente com a
colaborao de Paulo Duarte e Rodrigo Mello Franco de Andrade , segundo Waldisa
Russio,22
passaria pelo Gera com ordens expressas de no sofrer alteraes de estrutura.
Desse modo, embora alvo de crticas de funcionrios administrativos relativas s
representaes do Conselho por no corresponderem aos rgos que, naquele momento, se
ocupavam da cultura em So Paulo, apenas foram verificados os dispositivos referentes
viabilizao financeira do rgo.
Em agosto de 1968 o executivo encaminhou o projeto de lei para a aprovao na
Assembleia. Nas consideraes preliminares o governador ressaltava:
A preservao de tal patrimnio constitui, antes de mais nada, dever do Estado,
no s pelo resguardo desses valores culturais da populao, mas tambm pelos
atrativos que deles resultam como imediata repercusso no mbito do turismo.23
O projeto tornou-se a Lei n.10.247, de 22 de outubro de 1968, promulgada por
Abreu Sodr em cerimnia solenidade realizada no Palcio dos Bandeirantes, em dezembro
do mesmo ano. Durante a solenidade, o governador foi condecorado com a medalha
Martim Afonso de Souza, distino conferida pelo Instituto Histrico e Geogrfico de
Guaruj-Bertioga a personalidades que se destacam por relevantes servios prestados
ptria.24
Na imprensa diria o processo de criao do Conselho no mereceu destaque e a
cerimnia de assinatura foi anunciada sem comentrios. Sua criao ia ao encontro da
poltica federal de ampliao da participao do Estado em diversas reas da produo
cultural, fato, entre outras medidas, posteriormente firmado no documento resultante do
Encontro Nacional para a Defesa do Patrimnio, o Compromisso de Braslia, de 1970.
21
Dirio Oficial do Estado de So Paulo, 20.9.1967, p.7. 22
Entrevista concedida a Maria Lucia Pinheiro Ramalho e Walter Pires, em 24.4.1984, Centro de
Documentao do Condephaat. 23
Dirio Oficial do Estado de So Paulo, 15.8.1968, p.55. 24
Dirio Oficial do Estado de So Paulo, 23.10.1968, p.1.
-
Imagens do passado
34
Nele, reconhecia-se a necessidade de uma ao supletiva dos Estados e Municpios
atuao federal no que se refere proteo dos bens culturais de valor nacional.
Em janeiro de 1969, quando os nove membros do Conselho de Defesa do
Patrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico e Turstico se reuniram pela primeira vez,
apenas estavam estabelecidas as condies mnimas para o funcionamento do rgo.
Composto por conselheiros escolhidos pelo governador como representantes da
Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo; da Universidade de So Paulo, Departamento de
Histria e Instituto de Pr-Histria; dos Institutos Histricos e Geogrficos de So Paulo e
de Guaruj-Bertioga; do Instituto dos Arquitetos do Brasil Seo de So Paulo; da Cria
Metropolitana de So Paulo e da Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, o
conselho deveria adotar
todas as medidas para a defesa do patrimnio histrico, artstico e turstico do Estado,
cuja conservao se impunha em razo de fatos histricos memorveis, do seu valor
folclrico, artstico, documental e turstico, bem como assim dos recantos paisagsticos
que meream ser preservados.25
A lei, porm, que determinava sua competncia era omissa em relao estrutura
administrativa necessria sustentao das atividades. Essa foi sendo definida lentamente,
e obrigou os conselheiros a acumularem, por um longo tempo, funes tcnicas e
administrativas, o que os levaria a protestar, paralisando as atividades do Conselho entre
maio e agosto de 1969.
A urgncia em regulamentar as atividades levara os conselheiros a elaborarem um
anteprojeto de lei no qual procuraram contornar tambm o que lhes parecia falhas da Lei
n.10.247, entre essas, a omisso relativa ao suporte financeiro das atividades
preservacionistas e o uso dos edifcios pertencentes ao Estado e tombados que, segundo o
estabelecido no Artigo 6o, deveriam ser utilizados exclusivamente para a instalao de
museus, ou, ainda, a indeterminao das autoridades competentes, s quais o Artigo 2o
remetia a deciso dos tombamentos26
propostos. Na opinio de Paulo Duarte, conselheiro
representante do Instituto de Pr-Histria, o tombamento cabia ao Conselho que, ao
25
Lei n.10.247 de 22.10.1968. 26
Tombamento uma figura jurdica que protege da destruio e da alterao os bens culturais reconhecidos
como portadores de valor cultural pelo poder pblico sem, entretanto, impedir sua alienao do bem.
-
Imagens do passado
35
contrrio, deixaria de ser o executor do preceito constitucional,27 tendo dessa forma seu
trabalho invalidado.
O comentrio de Paulo Duarte sugere adiante pretender-se para o Conselho extrema
autonomia, condio prpria dos que se propem realizar uma misso. Algumas
observaes de Rodrigo M. F. de Andrade a respeito do anteprojeto inspirado no Decreto
n.25 que criara o Sphan em 1937 parecem apontar para uma certa exacerbao de
poderes, que comprometeria a constitucionalidade do projeto, especialmente no que se
refere s restries do exerccio e uso da propriedade privada e a possveis dificuldades de
aplicao de uma lei estadual, diante de lei federal sobre a mesma matria. Sugeria, por
isso, que o anteprojeto se referisse ao Artigo 172 da Constituio Federal de 1967, que
colocava sob proteo especial do poder pblico os documentos, as obras e os locais de
valor histrico e artstico, os monumentos e paisagens naturais notveis e as jazidas
arqueolgicas; sugeria tambm meno ao Decreto n.25 e, por ltimo, que se
estabelecesse a precedncia dos bens tombados pela Unio, para a inscrio nos livros do
Tombo.28
Em 1o de setembro de 1969, o governador assinou o Decreto-lei n.149 dispondo
sobre o tombamento de bens; a regulamentao das atividades do Conselho seria,
finalmente, estabelecida por um Decreto que no recebeu nmero, possivelmente calcado
no anteprojeto de autoria dos conselheiros. Nele foram estendidas as atribuies do
Conselho ao patrimnio arqueolgico, o que, em parte, se deve ao empenho de Paulo
Duarte, h muito envolvido na obteno da proteo do Estado s reas de interesse
arqueolgico. O Decreto estabeleceu, tambm, ser competncia do secretrio de Cultura,
Esporte e Turismo a deliberao final sobre os tombamentos. Porm, no fazia referncia
ao apoio financeiro do rgo e utilizao dos bens pblicos tombados.
Do ponto de vista administrativo, o Decreto estabelecia a figura de secretrio do
conselho deliberativo, eleito entre seus membros. O cargo foi ocupado pela primeira vez
por Vinicio Stein Campos, que nele permaneceu at outubro de 1971, quando Ruy de
Azevedo Marques foi indicado para a Secretaria Executiva do Condephaat, criada pelo
27
Reunio do Conselho, Ata n.2, 8.1.1969, Centro de Documentao do Condephaat. 28
Carta a Luis Saia, em 2.2.1969, Arquivo 9 CR IBPC, Pasta AD24.1, doc. 011.
-
Imagens do passado
36
Decreto n.52.620, de 21 de janeiro de 1971, que tambm estabelecia a composio e as
atribuies das unidades tcnicas do rgo.29
Secretaria Executiva, com exceo do conselho deliberativo, estavam
subordinadas todas as unidades componentes do Condephaat: Comisso Tcnica de Estudos
e Tombamentos, Servio Tcnico de Conservao e Restauro, Seo Tcnico-Auxiliar e
Secretaria de Administrao, cujas competncias administrativas e tcnicas tambm foram
determinadas no Decreto. Os bens tombados deveriam ser inscritos em cinco livros do
Tombo, o Arqueolgico, o Etnogrfico, o Paisagstico; o das Artes Aplicadas, o das Artes,
o das Artes Populares e o Histrico.
Em 1975, ao iniciar sua gesto no governo do Estado, Paulo Egydio Martins criou a
Secretaria de Cultura, Cincia e Tecnologia,30
qual foi integrado o Condephaat. Pouco
depois, em 3 de fevereiro de 1976, o secretrio Jos Mindlin assinou o Decreto n.7.516
acrescentando ao conselho mais duas representaes da Universidade de So Paulo do
Departamento de Histria da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do
Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas ; uma
da Comisso de Artes Plsticas do Conselho Estadual de Cultura; e uma da Conferncia
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), totalizando treze conselheiros.
Essas medidas atendiam solicitao contida em um documento enviado ao
secretrio no qual fora apontada a duplicidade de representaes dos Institutos Histricos e
a falta de representao de reas especializadas, o que, diante das cada vez mais frequentes
exigncias de deciso sobre o valor de reas naturais e de colees de pintura, se tornava
imprescindvel.31
Em razo disso, o Decreto tambm estabelecera a escolha de conselheiros em lista
trplice, acompanhada de curriculum vitae dos profissionais indicados pelas entidades
representadas. O mesmo documento institua, ainda, a vice-presidncia do Conselho que da
29
Tambm exerceram o cargo de secretrio executivo do Condephaat: Jos Geraldo Nogueira Moutinho,
1977-1979; Aldo Nilo Losso, 1979-1983; Celso Marchi, 1983. 30
Decreto n.5.929, de 15.3.1975. 31
Relatrio de Atividades, 1974; organizado por Ruy de Azevedo Marques, entregue a Jos Mindlin em
31.3.1975.
-
Imagens do passado
37
mesma forma que a presidncia, era de escolha do governador, entre os conselheiros
designados.32
Essas disposies foram posteriormente ratificadas no decreto que reorganizou a
Secretaria de Cultura, Cincia e Tecnologia.33
Uma nova ampliao do conselho deliberativo efetivou-se em 1983, quando da
reorganizao da Secretaria de Cultura, criada pelo governador Paulo Salim Maluf, em
1979.34
Foram, ento, includas representaes dos Departamentos de Cincias Sociais e
Antropologia de todas as universidades pblicas do Estado e ampliadas as representaes
dos Departamentos de Geografia, Histria e Histria da Arquitetura para a Universidade de
Campinas e para a Universidade Estadual Paulista.
Outro Decreto, n.22.986, de 30 de novembro de 1984, acrescentou ao conselho
deliberativo mais duas representaes, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento e da
Secretaria de Esporte e Turismo, totalizando 25 conselheiros. Ao iniciar seus trabalhos, o
Condephaat no contava com um setor tcnico; embora no estruturado por lei, ele
comearia a ser formado em outubro de 1969, por profissionais comissionados de outras
secretarias. O arquiteto Carlos Lemos, que trabalhava no setor de engenharia sanitria da
Secretaria de Sade, foi o primeiro responsvel pela coleta de dados tcnicos para os
tombamentos em estudo.35 Em seguida, outro arquiteto, Raphael Glender, se transferiu do
Instituto de Penses do Estado de So Paulo para o Condephaat.
Os primeiros historiadores foram contratados a ttulo precrio somente em 1973.
Dada a exiguidade de tcnicos, grande parte dos servios necessrios era contratada fora do
rgo e orientados por Carlos Lemos, que se tornou responsvel pela Comisso Tcnica de
Estudos e Tombamentos. A inexistncia de um corpo tcnico prprio e estvel dificultaria a
reflexo sobre o trabalho e retardaria a possibilidade de estruturao de uma cultura de
preservao prpria do rgo. Ao mesmo tempo em que o Condephaat reproduzia, quase
sem questionamentos, a ortodoxia do Sphan, a relao entre o Conselho e a Universidade,
segundo as possibilidades da prpria estrutura do Conselho, era tnue. Por si s, a presena
32
Decreto n.7.516, de 3.2.1976, respectivamente 2 e 3. 33
Decreto n.7.730, de 23.3.1976. 34
Decreto n.13.426, de 16.3.1979; a reorganizao foi determinada pelo Decreto n.20.955, de 1.7.1983 que,
no Cap.II, Art.162, estabeleceu a nova composio do Conselho. 35
Reunio do Conselho, Ata n.28, 15.10.1969, Centro de Documentao do Condephaat.
-
Imagens do passado
38
de conselheiros representando as universidades embora especialistas em suas reas, no
garantiu a troca necessria entre a prtica preservacionista e os centros de produo do
conhecimento a partir do qual a noo de patrimnio poderia ampliar-se para a de objeto
pluridisciplinar.
A contratao de um corpo tcnico permanente para compor o Servio Tcnico de
Conservao e Restauro (STCR) ocorreria apenas em 1982, compondo-se prioritariamente
de arquitetos e historiadores.
-
Imagens do passado
39
O Condephaat As prticas definem a poltica
O Condephaat foi criado no momento em que se acelerava a expanso do consumo e
da cultura de massas no pas. Embora o projeto modernista que pretendera definir a
brasilidade e, nesse quadro, traara a ao preservacionista como instituidora do passado da
arquitetura brasileira j houvesse sido absorvido por outras tentativas de explicao do pas,
a ortodoxia criada pelo Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional impunha-se
ainda como nica e adequada misso de salvar a cultura nacional da destruio.
Tecida sob o argumento da perda, buscando a continuidade do que considerava
autntico e parecia se perder em meio ao desenvolvimento tecnolgico ocorrido desde a
modernidade, essa ortodoxia, aponta Santos,1 valorizava a esfera pblica como normativa,
orientadora de um tica. Por isso, ressalta a mesma autora, o Sphan fora organizado nos
moldes de uma academia, na qual a estratgia de documentao permitia comprovar os
valores histricos e estticos nacionais e universais, o que revestia os tombamentos de um
carter de utilidade pblica.
Em razo disso, as divergncias relativas aos critrios, procedimentos e mtodos a
serem adotados para o reconhecimento da importncia histrica de bens pelo Condephaat
de pronto expressaram-se entre os conselheiros. Alguns, profissionais do patrimnio
formados na perspectiva do Sphan, como Lus Saia, entendiam que os bens deveriam ser
avaliados como documentos da arquitetura, o que implicava a valorizao de aspectos
como o das tcnicas construtivas, dos materiais e das formas que lhe davam concretude e os
tornavam testemunhos da histria e da cultura brasileiras. Esses se oporiam frontalmente
queles que pretendiam que antigos edifcios fossem valorados, predominantemente, como
testemunhos da tradio nobilirquica ou pela relao com a vida dos grandes heris do
passado.
1 Santos, 1992.
-
Imagens do passado
40
Tais opinies encontraram um ponto de convergncia, a valorizao do bandeirismo
e dos primeiros anos da ocupao do litoral brasileiro, que representavam momentos
bsicos da memria histrica regional e nacional. As aes do Condephaat se orientaram
inicialmente por essas balizas histricas s quais foi acrescentado o perodo clssico de
expanso do caf no Vale do Paraba e na regio de Campinas. Em plano absolutamente
secundrio permaneceram outros processos regionais de importncia, como a
industrializao.
At 1987, os critrios de valorao de bens ampliaram-se sem que, entretanto,
fossem definidas explicitamente polticas de preservao. Na ausncia de referncias
maiores, as polticas culturais do Estado, as prticas do Condephaat foram circunstanciais e
definiram polticas a partir da composio dos conselhos deliberativos, das presses
externas resultantes da vontade poltica do poder pblico, de interesses do setor privado, em
especial os relativos especulao imobiliria intensificada a partir da dcada de 1970, e de
referncias tericas e conceituais assumidas por conselheiros e tcnicos.
A influncia dos setores sociais no representados no Conselho na determinao do
patrimnio se faria pelo uso do direito de todo cidado solicitar tombamentos. Os pedidos,
at a dcada de 1980, grande parte dos quais advindos de rgos pblicos, corroborariam o
critrio valor histrico. Por meio deles possvel avaliar-se a intensa penetrao da
histria oficial nos diferentes estratos da populao, pois os argumentos dos solicitantes
eram, em geral, os da passagem de personagens histricos pelo espao que se pretendia
consagrar como patrimnio ou a posio social e nobilirquica de seu proprietrio.
A valorizao da histria oficial estabeleceu a consonncia entre a ao do Conselho
e a expectativa de parte da sociedade, embora outros fatores, como o precrio estado de
conservao dos bens tombados, influssem negativamente na imagem do rgo junto
opinio pblica.
A partir de ento, alguns pedidos de tombamento comearam a apresentar
argumentos referentes memria de um grupo social ou memria local e, tambm,
importncia de manuteno das condies ambientais. O aparecimento desses argumentos
correspondeu ampliao do entendimento social sobre o patrimnio e sobre os direitos de
cidadania que, se no foi de todo acompanhada por uma renovao na atuao do
Condephaat, foi parcialmente assumida por ele, que se tornou pioneiro, no Brasil, na
-
Imagens do passado
41
preservao de reas naturais por meio de tombamento. Esse movimento da sociedade
incentivou, no mbito interno, a ampliao de uma discusso que se fazia sobre alguns
conceitos, desde os meados da dcada de 1970 e, entre eles, o de patrimnio. Antes restrito
definio de monumentos histricos, o termo passou a abranger outros objetos e, pouco a
pouco, a ser entendido como referente ao conjunto da cultural material, e no apenas s
formas arquitetnicas. Isso abriria as possibilidades de estender a proteo oficial para
reas naturais e urbanas de porte, bem como para a considerao da memria social como
um dos vetores envolvidos na preservao de artefatos materiais.
Essa ampliao conceitual, porm, se refletiria apenas parcialmente na metodologia
de trabalho adotado pelos tcnicos e nos critrios determinantes das decises sobre os
tombamentos que continuariam influenciadas por circunstncias de momento.
O estudo da trajetria dos primeiros dezoito anos de atuao do Condephaat indicou
que, de modo a sistematizar o conhecimento de sua ao, fossem estabelecidas trs fases,
delimitadas cronologicamente com base na adoo de critrios e conceitos diferenciadores
que, embora sempre mesclados com procedimentos anteriores, caracterizaram a definio
de um perfil particular das prticas instituidoras de parte da memria oficial da sociedade
paulista.
Com os olhos na tradio, de 1969 a 1975
Abelardo Gomes de Abreu, representante do Instituto dos Arquitetos do Brasil no
primeiro conselho deliberativo, recorda que a dinmica deste era realmente interessante,
porque cada conselheiro agia com estilo prprio e no existia uma orientao, uma diretriz
bem-definida para os procedimentos.2
Apesar dessa impresso, desde logo conhecedores de procedimentos tcnicos e de
conceitos relativos preservao, os conselheiros arquitetos procurariam desempenhar
papel central no estabelecimento da metodologia do novo rgo, que acabou por tornar-se
herdeiro e reprodutor da ortodoxia do Sphan.
2 Entrevista concedida autora em 24.10.1991.
-
Imagens do