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Ao falar em educação inclusiva tem-se que vis- lumbrar o âmbito que abrange tal proposta para uma política educacional. Este processo visa não só a integração social, mas tem uma dimensão bem maior, objetivando um movimento que transforme concepções sobre a diversidade humana e a participação das pes- soas, com deficiência ou não, em uma sociedade em que todos sejam de fato cidadãos. Este processo tem dimensões políticas, sociais, educacionais, filosóficas IMAGENS VISUAIS COMO RECURSOS PEDAGÓGICOS NA EDUCAÇÃO DE UMA ADOLESCENTE SURDA: UM ESTUDO DE CASO 1 Clarisse Alabarce Nery 2 Cecília Guarnieri Batista FCM - Universidade Estadual de Campinas Resumo: O uso de imagens visuais vem sendo ressaltado por Reily como recurso pedagógico no trabalho com crianças surdas. No presente estudo, essa proposta foi testada com uma jovem surda, visando observar possíveis contribuições do uso de imagens visuais no processo de aprendizagem dessa jovem, durante os atendimentos em pedagogia, que constituem parte das atividades de que ela participa em clínica-escola especializada. Foram realizadas três sessões pedagógicas, com utilização sistemática de representações visuais (desenho, fotos, pinturas). As sessões foram filmadas, transcritas e analisadas de modo qualitativo. Os resultados indicaram o desenvolvimento de uma prática discursiva com diálogos extensos, abordando elementos descritivos e estabelecendo relações e inferências entre os assuntos propostos. O estudo confirmou achados anteriores sobre o efeito facilitador da imagem visual na educação do surdo e trouxe a discussão sobre as dificuldades de inclusão social dos jovens surdos. Palavras-Chave: Imagens Visuais na Educação; Educação e Surdez; Inclusão Educacional. VISUAL IMAGES AS PEDAGOGICAL RESOURCES IN THE EDUCATION OF A DEAF TEENAGER: A CASE STUDY Abstract: Visual images have been adopted by Reily as a pedagogical resource with deaf children. In the present study, this use was tested with a deaf teenager girl. The objective was to identify possible contributions of the use of visual images in her learning process. The study was conducted during the meetings with the pedagogue, at an institution for especial education. For the three meetings analyzed, visual images were systematically used (drawings, photos, pictures). The sessions were taped, transcribed and then analyzed. The results indicated the development of discursive practices with extended dialogues, that included descriptions, associations and inferences among the topics. The study confirmed previous data about the facilitating effect of visual images in the education of a deaf person. It brought forward the discussion about the difficulties of social inclusion of young deaf people. Key-Words: Visual Images in Education; Education and Deafness; Educational Inclusion. que devem atender às diferenças de todas as pessoas. Neste sentido, o Estado tem responsabilidades de pro- porcionar condições, oferecendo oportunidades e mei- os para que a inclusão aconteça de fato. Para Andretta (1999), educação inclusiva é um processo em que alunos com necessidades educativas especiais freqüentam redes comuns de ensino, que deverão estar preparadas para dar apoio, instrução, atender às potencialidades individuais e promover a 1 Artigo recebido para publicação em 11/05/2004; aceito em 19/10/2004. 2 Endereço para correspondência: Clarisse Alabarce Nery, Rua Macedo Soares, 807, Cidade Universitária, Campinas, SP, 13083-130, E-mail: [email protected] Paidéia, 2004, 14(29), 287-299

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Ao falar em educação inclusiva tem-se que vis-lumbrar o âmbito que abrange tal proposta para umapolítica educacional. Este processo visa não só aintegração social, mas tem uma dimensão bem maior,objetivando um movimento que transforme concepçõessobre a diversidade humana e a participação das pes-soas, com deficiência ou não, em uma sociedade emque todos sejam de fato cidadãos. Este processo temdimensões políticas, sociais, educacionais, filosóficas

IMAGENS VISUAIS COMO RECURSOS PEDAGÓGICOS NA EDUCAÇÃODE UMA ADOLESCENTE SURDA: UM ESTUDO DE CASO1

Clarisse Alabarce Nery2

Cecília Guarnieri BatistaFCM - Universidade Estadual de Campinas

Resumo: O uso de imagens visuais vem sendo ressaltado por Reily como recurso pedagógico no trabalhocom crianças surdas. No presente estudo, essa proposta foi testada com uma jovem surda, visando observarpossíveis contribuições do uso de imagens visuais no processo de aprendizagem dessa jovem, durante osatendimentos em pedagogia, que constituem parte das atividades de que ela participa em clínica-escolaespecializada. Foram realizadas três sessões pedagógicas, com utilização sistemática de representações visuais(desenho, fotos, pinturas). As sessões foram filmadas, transcritas e analisadas de modo qualitativo. Os resultadosindicaram o desenvolvimento de uma prática discursiva com diálogos extensos, abordando elementos descritivose estabelecendo relações e inferências entre os assuntos propostos. O estudo confirmou achados anterioressobre o efeito facilitador da imagem visual na educação do surdo e trouxe a discussão sobre as dificuldades deinclusão social dos jovens surdos.

Palavras-Chave: Imagens Visuais na Educação; Educação e Surdez; Inclusão Educacional.

VISUAL IMAGES AS PEDAGOGICAL RESOURCES IN THE EDUCATIONOF A DEAF TEENAGER: A CASE STUDY

Abstract: Visual images have been adopted by Reily as a pedagogical resource with deaf children. Inthe present study, this use was tested with a deaf teenager girl. The objective was to identify possible contributionsof the use of visual images in her learning process. The study was conducted during the meetings with thepedagogue, at an institution for especial education. For the three meetings analyzed, visual images weresystematically used (drawings, photos, pictures). The sessions were taped, transcribed and then analyzed. Theresults indicated the development of discursive practices with extended dialogues, that included descriptions,associations and inferences among the topics. The study confirmed previous data about the facilitating effectof visual images in the education of a deaf person. It brought forward the discussion about the difficulties ofsocial inclusion of young deaf people.

Key-Words: Visual Images in Education; Education and Deafness; Educational Inclusion.

que devem atender às diferenças de todas as pessoas.Neste sentido, o Estado tem responsabilidades de pro-porcionar condições, oferecendo oportunidades e mei-os para que a inclusão aconteça de fato.

Para Andretta (1999), educação inclusiva é umprocesso em que alunos com necessidades educativasespeciais freqüentam redes comuns de ensino, quedeverão estar preparadas para dar apoio, instrução,atender às potencialidades individuais e promover a

1 Artigo recebido para publicação em 11/05/2004; aceito em 19/10/2004.2 Endereço para correspondência: Clarisse Alabarce Nery, Rua Macedo Soares, 807, Cidade Universitária, Campinas, SP, 13083-130, E-mail:[email protected]

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integração com a comunidade.Pensando e acreditando nesta concepção de

educação, a política de educação inclusiva tem toma-do alguns rumos em busca de soluções. No Brasil,desde a Lei de Diretrizes e Bases de 1996, há procu-ra por uma educação inclusiva dos alunos com ne-cessidades educativas especiais, nas classes comunsda rede regular de ensino. De acordo com Boneti(2000), numa educação inclusiva existe um espaçode diversidade e a aprendizagem acontece para cadaum, conforme suas possibilidades.

A pedagogia da inclusão propõe um processode aprendizagem cooperativo, que respeita os dife-rentes estilos de aprender e a singularidade dos apren-dizes, reconhece os diferentes ritmos, interesses, de-sejos e concepções de mundo. Portanto, a pedago-gia inclusiva não pretende a correção do sujeito, masa manifestação do seu potencial, contemplando asnecessidades de todos os alunos.

Educação Inclusiva e Desenvolvimento da pes-soa com Deficiência

Quando se fala em inclusão, é interessante lem-brar, como diz Kassar (1999), que “é sempre em umdeterminado ‘mundo’ (no contato com o outro) que osujeito nasce, cresce, se desenvolve, se constitui. Éeste mundo (de incontáveis e encantáveis outros) queserá, por ele, internalizado, no processo de sua cons-tituição social.”(p.69). E a escola pode ser um des-ses mundos.

Além do conhecimento formal, a inclusão pos-sibilita o desenvolvimento do potencial humano; nasinterações sociais com os adultos pode ocorrer o apren-dizado de regras, normas, valores que proporcionamexperiências que serão transpostas para a vida coti-diana. Nesta relação, pode-se criar também o espa-ço da interlocução, da enunciação e do diálogo quefavorecerá a significação do sujeito, levando o alunoa construir relações com seus parceiros por meio debrincadeiras e múltiplas atividades cooperativas ecompetitivas, podendo conquistar amigos, desenvol-ver habilidades sociais, aumentar a capacidade decontrole pessoal, gerar condições para que o sujeitose signifique como autor e ator de sua história.

Participando de um ambiente escolar, nainteração com o outro, a criança ou o adolescentetem a oportunidade de se desenvolver como ser cul-tural, socializar-se, adquirir competências sociais, con-trole dos impulsos agressivos, a relativização dos pon-tos de vista. Assim, por meio das trocas com os parese nas atividades formais e informais, é dada à pessoacom deficiência a possibilidade de construir o conhe-cimento, constituindo-se enquanto sujeito, sendo seuaprendizado e desenvolvimento favorecidos nestecontexto de relações sociais.

Padilha (2001) considera que a pessoa comdeficiência deve ser pensada em sua integridade, queela não é a “deficiência” o tempo todo; ele afirmaque ela precisa vivenciar situações significativas, ex-pandir possibilidades e diminuir suas limitações, cons-tituir-se como sujeito simbólico, ou seja “[...] sujeitode práticas discursivas criando e interpretando sig-nos, dando-se a perceber e a conhecer não mais pe-las incapacidades, mas pelas suas condições de fun-cionamento cognitivo, na e pela linguagem, com ooutro, no processo dialógico [...]” (p. 135).

Especificando o tipo de aprendizado que a cri-ança com deficiência necessita, Kassar (1999) diz:“O aprendizado escolar (praticamente silenciado pelanossa legislação educacional para pessoas que fre-qüentam instituições especializadas do país) pode serum tipo de aprendizado novo na vida do sujeito, porser acompanhado e sistematizado. Quando bem pla-nejado, propicia seu desenvolvimento, possibilitandoacesso sistematizado à cultura produzida historica-mente.” ( p.86)

As perguntas que surgem, são: Como se signi-ficar como pessoa, num mundo sócio-histórico-cultu-ral, sem que as “faltas” sejam as principais evidênci-as? Como se tornar sujeito de sua própria história eaprendizagem, tendo limitações biológicas que trazemespecificidades na participação no processo educa-cional?

Partindo da concepção acima para a elabora-ção de uma proposta pedagógica, a intervenção devepotencializar as capacidades da pessoa com defici-ência, a partir do conhecimento de suas limitaçõesbiológicas, sua história de vida, seu ritmo, seu modode aprender, seus desejos e emoções.

Clarisse Alabarce Nery

3 Nome fictício.4 Também esta professora tem pouco domínio da língua de sinais.

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Crianças surdas – Propostas educacionais re-centes

Considerando que as interações com o outro eas mediações entre os sujeitos e os signos possibili-tam o aprendizado, a socialização e a significação,pode-se dizer que uma proposta pedagógica que utili-ze como recursos os instrumentos semióticos dispo-níveis na cultura estará favorecendo o aprendizadodas pessoas com deficiência, fazendo com que o co-nhecimento e a significação do mundo aconteçam demaneira construtiva e com sentido. O desafio é, pois,torná-los acessíveis e disponíveis para os alunos comnecessidades educativas especiais.

No que se refere à surdez, as propostas recen-tes reconhecem a Língua de Sinais como a língua dosurdo, a ser adotada preferencialmente desde o ber-ço. Essa concepção contrapõe-se à ênfase anteriorno treino de fala e leitura labial, que passa a ser vistacomo recurso comunicativo adicional, considerando-se que a aquisição da Língua de Sinais permite o usoda linguagem com todas as funções e possibilita aconstituição do surdo enquanto sujeito que pensa, sen-te, se expressa.

De acordo com Sacks (1998), a linguagem nospossibilita o ingresso pleno no estado e cultura huma-nos. Por meio da língua, comunicamo-nos livremen-te, adquirimos e compartilhamos informações. Casonão possamos desenvolver este processo lingüístico,ficaremos incapacitados e isolados, sejam quais fo-rem nossos desejos, esforços e capacidades inatas.Para o autor, uma das formas para o surdo ter estaaquisição é a aprendizagem da Língua de Sinais eque quanto mais cedo a criança for colocada em con-tato com ela, mais fluência ela terá na comunicação.O autor diz que “as pessoas profundamente surdasnão mostram em absoluto nenhuma inclinação natapara falar. Falar é uma habilidade que tem de serensinada a elas, e constitui um trabalho de anos. Poroutro lado, elas demonstram uma inclinação imediatae acentuada para a Língua de Sinais que, sendo umalíngua visual, é para essas pessoas totalmente acessí-vel” (p. 43). Ele afirma que na medida em que a cri-ança faz a aquisição da Língua de Sinais, ela vai de-senvolvendo o livre intercurso de pensamento, o flu-xo de informação, o aprendizado da leitura e escritae, talvez a fala.

Para Goes (2000), a linguagem é uma força dereprodução e transformação criativa, uma atividadeque constitui os processos humanos, sem a qual nãohá encontros entre os sujeitos e formação da subjeti-vidade. Assim, com a Língua de Sinais, o surdo cons-titui-se enquanto sujeito, ao desenvolver a linguageme o pensamento, interagindo e identificando-se comoser social e histórico, apresentando condições deaprender, construir e reconstruir o conhecimento nainteração com o objeto a ser conhecido; além disso,ela é “adquirida pelos surdos com naturalidade e ra-pidez, possibilitando o acesso a uma linguagem quepermite uma comunicação eficiente e completa comoaquela desenvolvida pelos sujeitos ouvintes, permitin-do ao surdo um desenvolvimento cognitivo e socialmuito mais adequado e compatível com sua idade.”(Lacerda, 2000, p.53)

Assim, o surdo pode significar o mundo por pro-cessos semelhantes aos dos ouvintes, através de umaestrutura lingüística que permite compreender, darsentido a fatos, objetos, sentimentos e emoções, poisa língua é o requisito básico para as ações educacio-nais, possibilitando a comunicação, o pensamentogeneralizante (Vygotsky, 1989), a inserção social ecultural.

No que se refere ao processo educacional, éimportante discutir propostas que garantam o acessoà Língua de Sinais. Um dos recursos propostos en-volve a adoção do intérprete na sala de aula, de talmodo que o aluno surdo recebe a informação escolarem Língua de Sinais, por meio de uma pessoa comcompetência nesta língua e que dá apoio ao profes-sor. Contudo, Lacerda (2000), que vem estudandoessa questão com alunos das primeiras séries escola-res, considera que a presença do intérprete na salade aula não tem garantido a aprendizagem para o alu-no surdo, observando que há situações em que suainteração com o professor é reduzida, e em que amediação pelo intérprete não a faz comparável à ob-servada com os demais alunos. Segundo a autora, “Éfundamental que a condição lingüística do sujeito sur-do seja contemplada, se se pretende que ele apreen-da conteúdos e desenvolva conhecimentos. Todavia,se a escola não faz concessões metodológicas ecurriculares”... às suas necessidades .... “sua esco-laridade deixa a desejar.” (p.81)

Assim, a questão da introdução da Língua de

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Sinais em contextos educacionais inclusivos continuaa sugerir estudos e estratégias para suaimplementação, e várias têm sido propostas para otrabalho educacional com surdos, entre elas, a utiliza-ção de imagens visuais.

O uso de material predominantemente visualna educação de crianças surdas é discutido por Reily(2003), a partir de sua experiência de ensino e pes-quisa em arte-educação. A autora afirma que “crian-ças surdas em contato inicial com a Língua de Sinaisnecessitam de referências da linguagem visual comas quais tenham possibilidade de interagir, para cons-truir significado” (p.16); ela adota uma abordagemsociocultural, que coloca o homem como um ser so-cial, cujas relações com o mundo, com o outro e con-sigo mesmo são mediadas por sistemas sígnicos; nessesentido, é importante o uso de representações visuaiscomo estratégia de ensino numa proposta pedagógi-ca inclusiva, pois ela favorecerá a apropriação de sig-nificados pela criança, bem como possibilita a repre-sentação mental de experiências. Ele relata um tra-balho de arte-educação realizado com grupos de cri-anças surdas pré-escolares, de três a seis anos, noCepre-FCM-Unicamp, em que integra uma propostaeducacional que visa propiciar às crianças surdas apossibilidade de inserção em comunidade lingüísticaque utiliza a Língua de Sinais como principal formade comunicação, utilizando imagens visuais (incluin-do livros, fotografias, figuras de calendários, repro-duções de quadros), objetivando a apropriação de sis-temas de representação de natureza não verbal e aconstituição da linguagem, possibilitando que possamse comunicar.

Entre os exemplos, inclui-se a atividade reali-zada com os livros de imagens de Eva Funari. Emuma delas, a autora/ilustradora criou situações en-graçadas para um bicho: em cada página, o rabo apa-rece de forma inusitada, e a expressão do bicho mudade acordo com a situação criada. As crianças, esti-muladas por esse livro, imitaram as caras e sinaliza-ram as situações denotadas pelo desenho do rabo.Em seguida, elas criaram as suas próprias possibili-dades com rabos de barbantes de todos os tamanhos,sem uma única solução, e sim quantas a imaginaçãopermitisse criar.

Reily (2003) afirma que o processo de ensinodo aluno surdo se beneficia do uso das imagens visu-

ais e que os educadores devem compreender maissobre seu poder construtivo para utilizá-las adequa-damente; a formação de conceitos seria facilitadautilizando representações visuais, e a sua adoção, nasatividades educacionais, auxiliaria no processo dedesenvolvimento do pensamento conceitual, porquea imagem permeia os campos do saber, traz uma es-trutura e potencial que podem ser aproveitados paratransmitir conhecimento e desenvolver o raciocínio.A imagem exerceria as funções de descrição e deléxico, permitindo identificar a figura e até nomeá-la.Com isto, aparece a idéia subjacente do genéricoversus o específico. Na linguagem verbal, a palavrapossibilita a generalização e o raciocínio classificatório,e, no caso dos surdos, a representação visual poderáauxiliar nesses processos de pensamento. Além des-tas funções, a imagem favorece um pensamentorelacional, utilizando os elementos visuais para esta-belecer relações e comparações. São citados comoexemplo as seqüências temporais e espaciais e asrelações de causa e efeito.

Reily acrescenta, ainda, uma outra função paraa imagem, lembrando que existe um aspecto lúdicona mesma. Por sua natureza polissêmica, significa-dos diversos e às vezes incongruentes, presentes lite-ralmente ou em sentido figurado numa cena visual,possibilitam ao surdo perceber as interfaces dos sig-nos, compreender o humor e o absurdo da imagem.Essa compreensão poderá servir de ponte para queele faça o mesmo na segunda língua que aprenderána escola.

O trabalho descrito acima demonstra que ascrianças surdas podem ser favorecidas em sua apren-dizagem pelo uso de imagens visuais como estratégiade ensino, e sugere a pergunta sobre a possibilidadede utilização desses recursos para alunos surdos maisvelhos, especialmente os que apresentem outros pro-blemas de aprendizagem e/ou de relacionamento so-cial. Em nosso país, os estudos sobre educação desurdos estão centrados nos alunos que estão nas pri-meiras séries do Ensino Fundamental, ou nos pré-es-colares. Há poucos trabalhos sobre adolescentes, esabe-se que a maioria deles apresenta defasagem naescolaridade, quando não o abandono do ensino re-gular. Tendo em vista que as propostas de adoção deLíngua de Sinais são recentes, e estão em implanta-ção, muitos tiveram uma história bastante truncada

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em termos educacionais. A maioria recebeu algumtreinamento de fala e leitura labial; e a exposição àLíngua de Sinais, em geral, não ocorreu de modo sis-temático, e, portanto, sem resultados consistentes emseu desenvolvimento cognitivo e global.

Neste relato, apresenta-se um estudo de casorealizado com uma jovem surda, de 19 anos, que ti-nha, desde pequena, alguns comportamentos que di-ficultavam sua inserção escolar. O objetivo foi ob-servar possíveis contribuições do uso de imagens vi-suais no processo de aprendizagem dessa jovem, du-rante os atendimentos em pedagogia, que constituemparte das atividades de que ela participa em clínicaespecializada.

Método

Caracterização do sujeito

O estudo foi realizado com Janete3 , uma jo-vem de dezenove anos, com um quadro de surdezprofunda bilateral desde bebê. Filha adotiva de mãeprofissional da área da saúde, sem informações so-bre o seu histórico pré-natal, a causa da surdez ououtras características da família biológica; pais adoti-vos com nível de escolaridade superior, padrão sócio-econômico de classe média.

Quando criança, os relatórios médicos indica-vam um atraso no desenvolvimento neuropsicomotor,sem diagnóstico de patologia determinada, além dasurdez. Os sintomas foram observados desde a épo-ca da adoção, com um ano e cinco meses, sendo quea criança se achava internada no hospital há meses,tratando de vários problemas de saúde, apresentandoalta imunidade a todas as doenças (o que é atípico), esem histórico que justificasse o quadro.

Segundo informações da mãe, desde pequenaJanete tinha comportamentos como falta de atençãoe de concentração, auto-estimulação através de mo-vimentos repetidos (ex: balançar), e atitudes exacer-badas quando colocada em situação adversa, e sem-pre apresentou dificuldades de socialização. Em ter-mos de comunicação, ela não fala, faz um pouco deleitura labial e utiliza a Língua de Sinais com pessoasda família, com a educadora e colegas.

De acordo com seu Histórico ela freqüentouberçários e escolas infantis a partir de dois anos de

idade. Aos sete anos foi matriculada na escola especi-al para surdos, e cursou até a 4ª série do Ensino Fun-damental, tendo, nesse momento, quatorze anos; hou-ve dificuldades desde o início; com freqüência ela serecusava a fazer as tarefas e, às vezes, gritava na salade aula; foi reprovada na 4ª série e, daí em diante fre-qüentou escolas especiais e particulares, por mais trêsanos. Depois, foi para uma clínica-escola privada.

Durante todo o período escolar teve acompa-nhamento nas áreas de pedagogia, fonoaudiologia,terapia ocupacional e psicologia, em clínicas particu-lares; a mãe disse que após muitos anos obrigandoJanete a freqüentar escolas, ela desenvolveu algu-mas técnicas de adaptação como bom comportamentoe copiar tudo o que era colocado na lousa, emboracom dificuldade de compreensão. Ao mesmo tempo,começou a mostrar sintomas de prováveis doençaspsicossomáticas (vômitos e dores abdominais), quecessaram quando foi para a clínica-escola e informa-ram-lhe que não iria retornar à escola. Durante essesanos Janete adquiriu leitura e escrita em nível ele-mentar e algumas noções de matemática.

No presente, ela freqüenta a clínica-escola,onde participa do Grupo de Oficinas Terapêuticas (te-celagem, bordado, pintura e marcenaria) três vezespor semana, por meio período. Nesse grupo das ofi-cinas, somente Janete é surda, e os demais partici-pantes têm outras deficiências. Dos profissionais queatuam com ela, poucos usam a Língua de Sinais; elaparticipa ainda de aula individual de pintura duas ve-zes por semana4 . Janete apresenta algumas dificul-dades motoras, principalmente para execução domovimento de pinça, tem pouca força nas mãos enos dedos, o que dificulta a escrita manual com cla-reza, embora não atrapalhe o manuseio de pincéis. Éconsiderada afetiva com os colegas e profissionaisque trabalham com ela, não participa de grupos dejovens, ou de outras atividades fora da clínica; temdificuldade para criar diálogos, manter uma conversae explorar com profundidade o assunto que está sen-do discutido: seus diálogos tendem a ser curtos, semelaboração ou transposições para novas situações.

O atendimento pedagógico individual, parte dasatividades na clínica-escola, ocorre uma vez por se-mana, com duração de duas horas. Envolve a reali-zação de atividades de leitura, escrita e raciocínio ló-gico, numa proposta contextualizada em relação aos

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interesses e preferências de Janete. Os diálogos sãona Língua de Sinais, e ela tem certo domínio da leitu-ra labial.

Além dessas atividades, Janete e a mãe rece-bem aulas particulares de Língua de Sinais Brasileira(LIBRAS) uma vez por semana, em sua casa.

Quadro 1: Atividades pedagógicas

Análise de dados

A interação foi centrada em aspectos observa-dos durante a realização do trabalho e utilizados comocategorias de análise.a) Identificação e reconhecimento de atributos das

figuras. Exemplo: Pintura de uma almofada -Identificou que é de tecido, e que é uma pintura.

b) Reconhecimento de aspectos imediatos que a re-presentação visual oferece. Exemplo: Pintura decobra – Reconheceu que é uma cobra pintada,cores laranja, amarelo e preto.

c) Relações entre significado e situações do cotidia-no. Exemplo: Desenho do peixe - A partir do de-senho do peixe, estabeleceu-se um diálogo sobreos peixes da casa da educadora e da aluna.

d) Transposição de situações, da representação visu-al para a realidade. Exemplo: Foto de um leão,deitado em cima de um tronco - Relação consigomesma, comentando que o leão está cansado,assim como ela também está.

e) Relações de significado metafórico com fatos do dia-a-dia. Exemplo: Figura de um homem com a língua

para fora - Relação com uma pessoa cansada.f) Mediação da educadora com o apoio da represen-

tação visual, com perguntas e explicações e asinterações da participante. Exemplo: Figura dabailarina - Comentários a respeito do seu interes-se e experiências com balé e produção de texto.

Com base nas categorias destacadas, as trans-crições foram examinadas e feitos comentários emrelação aos diferentes episódios e fatos relevantesdurante a realização das atividades. A análise teveseu foco no processo do trabalho, nas aquisições par-ciais observadas ao longo dos diálogos.

Com este enfoque, observou-se com quais ele-mentos Janete trabalhou, como vivenciou as situa-ções oferecidas e mediadas pela educadora, que tipode contato e exploração fez do material apresentado,as relações estabelecidas com a representação visu-al utilizada e os seus significados.

Resultados

Resumos das atividades e trechos representa-tivos do desempenho de Janete nas três sessões.

Procedimento de coleta de dadosNo contexto dos atendimentos, três sessões

consecutivas foram selecionadas, para o presente tra-balho, em que o uso de imagens visuais foi intensivo.Cada sessão teve a duração de duas horas, com pro-gramação descrita no Quadro I. As atividades foramfilmadas, gravadas e transcritas.

Clarisse Alabarce Nery

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As situações foram escolhidas segundo as di-ferentes atividades em que Janete demonstrouenvolvimento, participação, diálogos mais longos eformas diversas de compreensão. É importante des-tacar que, em todos os diálogos, Janete usou a Lín-gua de Sinais para se comunicar, enquanto a educa-dora usou Língua de Sinais e falou ao mesmo tempo.Convencionou-se, que as transcrições trazem a “fala”de ambas, embora Janete tenha se comunicado naLíngua de Sinais, aqui traduzidos.

SITUAÇÃO 1 - Sessão 1, atividade 1: ObservarGravuras

Na primeira atividade proposta, Janete tinha queobservar figuras de objetos e relacionar as funçõesdos mesmos com o que eles representavam e o ma-terial de que eram feitos. Foram utilizadas as figuras:esculturas de um galo, de um cavalo de metal, umaalmofada de tecido com desenho de tartaruga, qua-dro com a pintura de cobra.

Figura de almofada com pintura da tartaruga –Relato:

Janete olha a figura. A educadora dirige o diá-logo para o aspecto: material de que é feito. Obser-vando a gravura (tartaruga / almofada), chamo a aten-ção de Janete, perguntando:

Educadora - Qual é o gesto de tecido? É rou-pa? Isto aqui? (apontando para a figura da al-mofada)J - É tecido. (Janete mostra a blusa, várias ve-zes, gesto de pergunta e confirmação. É teci-do)Educadora - escreve a palavra macio e mole.(Janete mostra com sinais, que a roupa era molee macia).J - Janete olha para a almofada e diz: - Servepara dormir. Qual é o nome disso? Escreve onome aqui. (aponta para o papel)Educadora - O nome disto aqui é almofada.(escreve a palavra) - Janete, você coloca noseu sofá?J - Sim.Educadora - Tem almofada na sua casa, paradormir no sofá?J - Não. (Janete olha para a palavra escrita e

para a educadora, várias vezes e responde.)J -Você tem almofadas em sua casa?Educadora - Na minha casa tem almofadas.J - Quais cores?Educadora - Na minha casa tem almofadasbrancas, vermelhas e laranja. Na sua casa,Janete, tem almofadas?J - Você tem almofadas iguais à da figura?Educadora - Não, eu não tenho almofadas iguala esta, são diferentes.J - (Escreve a palavra rosa, para perguntar seeducadora tem almofada rosa.)Educadora - Rosa? Não, eu não tenho! Ah!tenho rosa. No domingo eu fiz almofadas rosana minha casa. Fiz três almofadas rosas. E nasua casa, tem almofada rosa?J -As almofadas são velhas, precisa comprarnovas.Educadora - Jóia. Vamos lá. O nome dissoaqui é almofada.J - ( Janete escreve o nome “almofada”.) -Você fez igual à outra gravura, recortou da re-vista. É igual às outras gravuras. Você pegouna revista? (Janete fez sinais e datilologia).Educadora - Sim.

Iniciando com uma investigação sobre o materi-al de que é feita (tecido), Janete fala de uma função daalmofada (serve para dormir), pergunta o nome do ob-jeto e segue-se um diálogo sobre usos e característicasde almofadas de sua casa e da casa da educadora.

Nesta situação, observa-se que o uso da ima-gem visual favorece o início de um diálogo. Janetefaz relações com o seu cotidiano, a partir de um reco-nhecimento do objeto, estabelece significados alémdos explicitados na gravura. A imagem apresentadatraz a possibilidade de várias conversações, e com oapoio da mediação através de perguntas, explicaçõese exposição da imagem, ela toma contato com umpensar não tão literal, num movimento para criar no-vos conceitos e entender os diferentes sentidos dasrepresentações, elaborando relações entre elas.

SITUAÇÃO 2 - Sessão 1 – Atividade 2: DesenharAnimais

Na atividade seguinte, foi proposto que Janete

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desenhasse os animais solicitados – passarinho, pei-xe, gato e cachorro e determinasse outra função paraos mesmos. Os nomes dos animais estavam escritosna mesma folha.

Janete desenha um peixe de forma bastanteesquemática, apresentando difícil identificação doanimal por outra pessoa. A educadora, conhecendoseu interesse por peixes, introduz uma conversa per-guntando se ela tinha quadros com pintura de peixes.

Educadora - Agora, com o peixe.J - (Janete desenha um peixe)

Figura 1: Desenho do Peixe

Educadora (Lendo a palavra peixe, perguntaa Janete:) - O que posso fazer com o peixe?Ele não é de verdade. Existe quadro pintadocom peixes? Tem?.J - Sim.Educadora -Na sua casa tem quadros pinta-dos com peixes? Pintura? Tem ou não?(Janete olha para a educadora e presta aten-ção nos sinais que ela faz, sem responder àsperguntas.) - Na sua casa tem peixe de verda-de?J -Tem.Educadora - Janete, você tem peixe de verda-de? Tem?J - Sim.Educadora - Janete, você tem aquário emcasa? (Escreve a palavra aquário.)J - Sim.Educadora - Eu, na minha casa, tenho um aquá-rio grande, tem muitos peixes diferentes.

J - Os peixes são grandes ou pequenos?Educadora - Tem um pequeno, tem maioresum bem grande, tem um todo pintado de ama-relo. Ele é preto pintado com amarelo, destetamanho (mostra com sinal). E o seu aquário,tem peixes pequenos?(Janete presta atenção à educadora falando efazendo os sinais)J - Sim.Educadora - Qual a cor do peixe?J - É laranja.Educadora - Janete, quantos peixes tem?J - Tem um monte!Educadora - Um monte? Janete, você dá co-mida para eles?J - Todos os dias.

A atividade foi realizada de modo completo,tendo Janete feito os desenhos dos quatro animaispropostos. A partir do desenho, é mantida uma con-versa sobre os aquários da educadora e de Janete,com riqueza de detalhes. Exploram as característi-cas dos peixes e seus hábitos.

Nesta atividade, Janete estabelece um diálogoque vai além das características físicas do objeto. Coma educadora realizando perguntas, ela começa a ex-plorar outro campo conceitual, relaciona com suasvivências, seu dia-a-dia, consegue manter um diálogocom maior extensão e organização das idéias. A partirda utilização da imagem criada (desenho do peixe), aeducadora estimula sua participação e ela consegueuma relação dinâmica entre conceitos e vivências.

SITUAÇÃO 3 - Sessão 1 – Atividade 3: Associa-ção de Metáforas

A proposta desta atividade era que Janete as-sociasse as cartas (tipo baralho) com desenhos querepresentavam determinadas situações (ex: pessoaparecendo cansada) com a frase que indicava o sig-nificado correspondente aos desenhos (ex: “Ficar delíngua de fora”). Do conjunto de 17 cartas apresen-tadas, Janete fez a correspondência correta em trêscasos, aproximou-se do significado em cinco e nãoacertou nove. Educadora - (Pega a carta em queestava escrito: “Ficar de língua de fora.” e lê a frasejunto com Janete. Pede para Janete procurar a carta

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com o desenho correspondente.) J - (Janete mostrasinais de ansiedade, pega a carta correspondente ediz:) - O homem está cansado.

Janete ao observar o desenho apresentado, olhade perto e lê a frase com a educadora (sinais). Pega acarta com a figura representativa da frase e expressasua compreensão, relacionando figura e fato a que ametáfora se refere (“O homem está cansado”).

Janete consegue identificar em todas as figu-ras o que está desenhado em cada uma. Por exem-plo, no desenho de uma orelha com uma pulga, Janetediz que a pulga está na orelha (descrição literal) enão que a pessoa está desconfiada de alguma coisaou de alguém (captação do significado). Ela mostrainteresse e, quando tem dúvida, pergunta para a edu-cadora o significado da frase ou da palavra, fica atentaàs explicações, e, com o apoio das mesmas, pareceestabelecer relações, aumentando a compreensão dosignificado das frases.

Trabalhar com frases metafóricas é uma ativi-dade com um nível de complexidade maior que ashabitualmente apresentadas, pois exige atividademental diversa; tendo em vista que esta foi a primeiravez que fez isto, ela parece ter obtido ganhos, escu-tando as explicações da educadora, fazendo pergun-tas e estabelecendo relações.

SITUAÇÃO 4 - Sessão 1- Atividade 4: Produçãode Texto

Nesta atividade, foi proposto a Janete que ob-servasse a gravura de uma bailarina e produzisse um

texto. O trabalho iniciou com a apresentação da gra-vura de uma menina vestida de bailarina, com umcasaco jeans curto sobreposto e usando tênis, estan-do escrito junto um verso de Cecília Meireles: “Estamenina tão pequenina quer ser bailarina”

Janete demonstrou grande interesse pela gra-vura, pois gostava de dançar. O diálogo foi direcionadopara as características físicas da bailarina (roupa,sapatos) Janete questionou a adequação do tipo deroupa usada pela menina, perguntando como poderiadançar vestida daquele jeito.

J - (Janete olha a figura e aponta para o casa-co, uma jaqueta de jeans). Olha os pés e apon-ta o tênis.J - Como pode?

Ela fala sobre sua infância, dizendo que dança-va balé e que ainda guarda sua roupa em casa. Dizque gosta de dançar, que assistiu a alguns espetácu-los de dança.

Após esta primeira exploração da figura, a edu-cadora fez perguntas que favorecessem a elabora-ção de um pequeno texto. Perguntou qual seria o nomeda menina, sua idade, o que fazia... Janete disse quetambém gostaria de dançar. A educadora perguntouonde ela gostaria de dançar, se sozinha ou com ou-tras pessoas, quem ela queria que fosse assistir suadança. Janete respondeu às perguntas da educadorae, com o apoio da imagem, iniciou uma pequena cons-trução de texto.

1- Letra de Janete

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2- Letra da educadora

Figura 2: Produção de Texto – Menina Bailarina

A partir da gravura da bailarina, Janete conse-gue apontar características da menina, seu nome e ida-de, o que gosta de fazer. Ao observar a gravura,direciona uma conversa a seu respeito, falando de suainfância e desejos futuros em relação à dança. Com amediação da gravura e das perguntas, inicia uma pe-quena produção de texto e após algumas palavras pedepara a educadora escrever o restante. Ela fala (emsinais) e a educadora escreve. Ao trabalhar com aimagem da bailarina, ela faz relações de vários tipos(de significado), demonstra capacidade de perceberdetalhes da roupa, de criticar a incongruência davestimenta (jaqueta jeans e tênis), para além da obser-vação direta, e considera que mesmo vestida de formadiferente, a menina continua sendo bailarina; depoisrelaciona atributos da imagem com sua vida pessoal.Aproveita a imagem e os elementos que ela traz e trans-põe os mesmos para uma situação da sua vida, queaconteceu no passado. Com o apoio da imagem, nodiálogo com a educadora, ela enriquece seu vocabulá-rio e cria uma relação com a realidade, mantendo umaconversa dentro de um contexto mais amplo.

É provável que se as imagens oferecidas fos-sem menos relacionadas a seus interesses e vivênciasela não a teria explorado tanto e estabelecido rela-ções em outro nível.

SITUAÇÃO 5 -Sessão 2. Atividade 2: Ler, identifi-car semelhanças e diferenças na vida de algunsanimais

A atividade consistiu na leitura (com sinais) delegendas com informações a respeito de característi-

cas e hábitos de animais e observação degravuras coloridas suas. A proposta era deque Janete estabelecesse relações de se-melhanças e diferenças entre os animais,apresentados na seguinte ordem: mico-leão-dourado, lobo-guará, arara azul, onça-pinta-da e jacaré-de-papo-amarelo. O tema era“animais em extinção”; as legendas foramlidas pela educadora; Janete demonstrougrande interesse em saber as característi-cas de cada um, olhando as figuras bem deperto e pedindo que a educadora lesse.

Destacou-se a situação em que Janete estabele-ceu semelhanças entre o lobo-guará e a onça-pintada.

Janete - Antes da leitura da legenda, olha agravura da onça-pintada, faz sinal de pintas,dizendo que era uma onça pintada; lê o nomedo animal e comenta que pensou que suas man-chas eram pintura.Educadora - Explica para Janete que a onçanão é uma pintura, ela tem este nome porqueseu corpo apresenta manchas, que parecem serpintadas.Janete - faz comentários pertinentes sobre asmanchas, dizendo sua cor e qualificando o ani-mal de bonito.Educadora - Lê a legenda da gravura da onça-pintada.Janete - comenta, dizendo que os dois animais,a onça-pintada e o lobo-guará são iguais, pelofato de terem hábitos noturnos.Educadora - confirma a informação, falandoque os animais gostam de caçar à noite.

A partir da observação de gravuras dos ani-mais, Janete demonstra interesse em ter informaçõessobre hábitos e características dos mesmos. Olha asfiguras de perto, inicia diálogos, pede para a educa-dora ler as legendas, passa o dedo em cima das gravu-ras, comenta sobre os animais; durante a leitura daslegendas, faz perguntas para esclarecimento do vo-cabulário desconhecido e estabelece semelhançasentre os animais que possuem os mesmos hábitos.Mantém a atenção durante toda a atividade, pergun-ta e comenta a respeito dos animais observados.

Nesta atividade, pode-se verificar que comapoio das imagens e mediações (leitura, explicação,

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esclarecimento de vocabulário, observação da gra-vura) o interesse de Janete cresce e faz com que seuconhecimento sobre o mundo se amplie.

SITUAÇÃO 6 - Sessão 3. Atividade 2: Pintar, re-lacionando animais, coisas ou pessoas com situ-ações de vida diária

A proposta desta atividade era que Janeteutilizasse a pintura para representar o significado realdas frases metafóricas, lidas com a educadora, con-forme descritas no Quadro I. Foram apresentadasquatro frases; no primeiro momento, a educadorapediu-lhe que escolhesse uma frase. Janete pediu paraa educadora pintar junto com ela, então ela escolheuduas frases e a educadora duas, para serem repre-sentadas através da pintura.

Enquanto pintava, representando o significadoda frase “Tem dias que estamos acabados”, Janetefez algo fora da proposta inicial, transferindo da pin-tura para uma situação que havia vivenciado, a ida,num final de semana, com sua mãe, a um ateliê depintura onde são oferecidas oportunidades de expres-são artística, numa proposta aberta.

Janete pega a folha e começa a desenhar. Cha-ma a atenção com a mão, batendo no braço da edu-cadora para que olhe o desenho. Desenha uma pes-soa pintando, sentada em uma mesa e faz o sinal decasa. A educadora pergunta quem é a pessoa queestá pintando, ela responde que é ela, depois desenha

uma outra pessoa que diz ser o Rafael, escreve onome: Rafael. A educadora pergunta se ele está pin-tando, ela ri e diz que não, que ele tinha pintado no diaanterior; faz sinal de “depois”, explicando que outrapessoa pintou depois. Escreve o nome de várias pes-soas que pintaram, olha a folha em que estão escritosos nomes, para e olha para a educadora; escreve“Rafael” três vezes; a educadora pergunta se eramtrês pessoas com nome de Rafael e se ela estavajunto pintando. Janete responde que sim e que cadaum foi pintando, um após o outro.

A educadora olha o desenho, em que Janeteestá representando o ateliê, e pergunta quem estavasentado na mesa, pintando; responde que era ela eque tinha muitas pessoas pintando; olha para a folhados nomes, ri e desenha na outra folha a pessoa daqual acaba de ler o nome.

Desenha as pessoas numa ordem, do maior (maisperto) ao menor (mais longe). Janete continua olhan-do e desenhando as pessoas. Desenha a si mesma pin-tando e os amigos esperando. Janete escreve o nomede cada amigo embaixo do desenho feito. A educadoraajuda a associar o nome ao desenho..

A partir da atividade proposta (pintura), Janeterepresenta, por meio do desenho, uma situaçãovivenciada no seu dia-a-dia. Partindo de uma ativida-de de pintura direcionada, faz relação com uma ex-periência de pintura em outra situação, com outraspessoas. Desenha e escreve o nome das pessoas quepintaram, organiza o relato de fatos ocorridos com

Figura 3: Desenho do Ateliê

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ela, de forma a deixar claro que era um lugardiferente e que tinha muitas pessoas. Faz o desenhodas figuras humanas em diferentes tamanhos, pare-cendo tentar uma representação em perspectiva. Trazelementos novos para a atividade proposta e para umdiálogo com a educadora. Nesta atividade, pode-severificar como Janete transpõe seu conhecimento, doque lhe é proposto para fazer uma vinculação com arealidade. Interagindo com a educadora, realiza con-versas que possibilitam a compreensão de significa-dos diferentes, e percepção de atributos que as ima-gens oferecem. Percebe-se que representa concei-tos de forma mais generalizada e dinâmica.

Conforme destacado, os exemplos apresenta-dos foram selecionados dentre os melhores desem-penhos de Janete. Em relação às fotos do livro “Umdia daqueles”, sua participação centrou-se na descri-ção dos atributos dos animais fotografados, sem fa-zer relações metafóricas, que foram apresentadas pelaeducadora, em diálogos que contaram com o interes-se de Janete. Entretanto, não ficou explícita a com-preensão das referidas metáforas, o que pode terocorrido, em alguns casos, na reapresentação das ati-vidades. De modo geral, considera-se que Janetemanteve diálogos mais extensos que usualmente,abordando elementos descritivos e estabelecendomais relações e inferências do que habitualmente.

Discussão e Conclusão

Com base nos registros feitos pela educadora,após cada encontro com Janete, alguns aspectos fo-ram percebidos e desenvolvidos, no decorrer das ati-vidades. Observou-se o desenvolvimento de uma prá-tica discursiva com diálogos extensos, abordando ele-mentos descritivos e estabelecendo relações einferências entre os assuntos propostos. Janete apre-sentou um nível de atenção e de participação maiorque a habitual, com elaboração dos temas propostose capacidade de compreensão em níveis diferentesde complexidade, o que esteve associado às ativida-des com uso intensivo de imagens visuais. Para umajovem que tinha dificuldade em manter um diálogo,uma experiência discursiva, ela mostrou mudançassignificativas. Com o uso das representações visuais,suas interações com a educadora foram se tornandocada vez maiores e mais ricas. Utilizando as gravu-

ras de objetos de arte (de natureza polissêmica, commais de um atributo, função e sentido) e seus dese-nhos, Janete estabeleceu relações de seus conheci-mentos com a vida cotidiana (pensamento relacional),e seus diálogos se tornaram mais elaborados. As re-presentações visuais favoreceram uma conversação,maior concentração e manutenção do diálogo.

As observações das fotos do livro e leitura dasfrases metafóricas possibilitaram o início da compre-ensão de conceitos diferentes e mais complexos paraJanete, a partir dos comentários sobre atributos dire-tos das imagens visuais, pôde extrapolar sobre o sig-nificado das mesmas. As próprias pinturas realizadaspor Janete demonstraram uma compreensão de sig-nificados e relações com fatos que ocorrem nodia-a-dia, possibilitando a transferência destes con-ceitos para outras situações vivenciadas por ela,exemplificado no caso da visita ao ateliê de pintura.

O trabalho de Reily (2003), utilizando a ima-gem visual como recurso pedagógico, constituiu-seem ponto de partida para o presente trabalho, namedida em que despertou o desafio de realizá-lo compessoas surdas com mais idade, diferentes das queparticiparam da proposta inicial. A idéia se mostroufecunda. Selecionando-se imagens e atividades apro-priadas à idade e nível de conhecimento de Janete,foi possível estabelecer interações mais ricas que ashabitualmente desenvolvidas sem o uso intensivo des-se recurso.

A resposta de Janete a propostas educacionaisalternativas traz uma reflexão sobre a questão dametodologia utilizada nas escolas, tendo em vista ainclusão. O uso de imagens visuais parece represen-tar um recurso bastante significativo para o alunosurdo, além de pedagógico, possibilitando um desen-volvimento cognitivo mais significativo, viabiliza a cri-ação de um contexto inclusivo mais adequado às suasnecessidades, oferecendo uma forma visual de aces-so ao conhecimento e uma alternativa para que acomunicação do surdo, de fato, aconteça na escola.

Pensando na população dos jovens surdos, ve-rifica-se que, na nossa sociedade, existem poucosrecursos e espaços culturais onde possam dar conti-nuidade ao seu desenvolvimento cognitivo, iniciado,seja nas escolas especiais, seja nas inclusivas com ointérprete de sinais.

A questão é saber por que existem poucas es-

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colas e centros de convivência em que esteja dispo-nível a Língua de Sinais e outros recursos para aten-der a pessoas surdas, especialmente as que apresen-tem algumas dificuldades e especificidades, como nocaso de Janete. Discute-se por que não foi possível aparticipação e a aprendizagem de Janete no sistemaformal de ensino. Por que ela, que demonstra com-petências em uma situação planejada e adequada asuas capacidades, ficou fora da escola na adolescên-cia?

Considera-se que o presente estudo indica apossibilidade de se pensar em recursos facilitadoresda aprendizagem do surdo. A adoção de imagens vi-suais pode ser um deles, assim como outros recursosdevem ser explorados, descobertos e até mesmo cri-ados com o objetivo de possibilitar uma metodologiae um currículo escolar que seja adequado às diferen-ças do aluno surdo, possibilitando sua real inclusão naescola.

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